a historiografia contemporânea e seus domínios: deslocamentos e mutações. tempos históricos,...

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ – UNIOESTE CAMPUS DE MARECHAL CANDIDO RONDON REITOR: Prof. Alcibíades Luiz Orlando PRÓ-REITOR DE PÓS-GRADUACAO e PESQUISA – Prof. Mário César Lopes DIRETOR GERAL DO CAMPUS: Prof. Davi Félix Schreiner DIRETOR DE CENTRO – CCHEL – Prof João Carlos Cattelan COORDENADOR DO CURSO DE HISTÓRIA: Prof. Valdir Gregory CONSELHO EDITORIAL Antonio de Pádua Bosi, Carla Luciana Souza da Silva, Gilberto Grassi Calil, Méri Frotscher (Coord.), Petrônio José Domingues, Valdir Gregory CONSELHO CONSULTIVO Adriana Facina - UFF Ana Lúcia Vulfe Nötzold - UFSC Arno Alvarez Kern – PUC/RS Astor Antônio Diehl - UPF Bartomeu Meliá – Univ. Católica Assunción Célia Calvo – UFU Cristina Scheibe Wolff – UFSC Dilma A . de Almeida – UFU Edmundo Fernandes Dias – Unicamp Eurelino Coelho UEFS Gilmar Arruda – UEL Heloisa de Faria Cruz – PUC/SP Jaime de Almeida - UnB João Klug - UFSC Jorge Luiz Ferreira - UFF José Fernando Kieling – UFPel Jozimar Paes de Almeida – UEL Marcelo Badaró Mattos – UFF Mário Maestri - UPF Osvaldo Coggiola – USP Paulo Pinheiro Machado – UFSC Paulo Roberto de Almeida - UFU Paulo Zarth - Unijuí Pedro Paulo Funari – UNICAMP René Ernani Gertz – PUC/RS Sidney Munhoz – UEM Sílvia Helena Zanirato – UEM Théo L. Piñeiro - UFF Virgína Fontes – UFF PARECERISTAS AD HOC DESTE VOLUME:

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Artigo publicado na Revista Tempos Históricos, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), em 2005.O artigo sintetiza algumas idéias desenvolvidas pelo autor no primeiro capítulo do livro O Campo da História (Petrópolis: Vozes, 2009, 6a edição)Referências:BARROS, José D'Assunção. A Historiografia Contemporânea e seus Domínios: deslocamentos e mutações. Tempos Históricos, Unioeste, 2005. p.63-90BARRO, José D'Assunção Barros. O Campo da História. Petrópolis: Vozes, 2009. 6a edição

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Page 1: A Historiografia Contemporânea e seus Domínios: deslocamentos e mutações. Tempos Históricos, Unioeste, 2005

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ – UNIOESTECAMPUS DE MARECHAL CANDIDO RONDON

REITOR: Prof. Alcibíades Luiz Orlando PRÓ-REITOR DE PÓS-GRADUACAO e PESQUISA – Prof. Mário César Lopes DIRETOR GERAL DO CAMPUS: Prof. Davi Félix Schreiner DIRETOR DE CENTRO – CCHEL – Prof João Carlos Cattelan COORDENADOR DO CURSO DE HISTÓRIA: Prof. Valdir Gregory

CONSELHO EDITORIAL Antonio de Pádua Bosi, Carla Luciana Souza da Silva, Gilberto Grassi Calil, Méri Frotscher(Coord.), Petrônio José Domingues, Valdir Gregory

CONSELHO CONSULTIVOAdriana Facina - UFFAna Lúcia Vulfe Nötzold - UFSCArno Alvarez Kern – PUC/RS Astor Antônio Diehl - UPFBartomeu Meliá – Univ. Católica AssunciónCélia Calvo – UFU Cristina Scheibe Wolff – UFSC Dilma A . de Almeida – UFU Edmundo Fernandes Dias – Unicamp Eurelino Coelho UEFS Gilmar Arruda – UEL Heloisa de Faria Cruz – PUC/SPJaime de Almeida - UnBJoão Klug - UFSCJorge Luiz Ferreira - UFFJosé Fernando Kieling – UFPelJozimar Paes de Almeida – UEL Marcelo Badaró Mattos – UFFMário Maestri - UPFOsvaldo Coggiola – USP Paulo Pinheiro Machado – UFSC Paulo Roberto de Almeida - UFU Paulo Zarth - UnijuíPedro Paulo Funari – UNICAMP René Ernani Gertz – PUC/RS Sidney Munhoz – UEM Sílvia Helena Zanirato – UEMThéo L. Piñeiro - UFFVirgína Fontes – UFF

PARECERISTAS AD HOC DESTE VOLUME:

Page 2: A Historiografia Contemporânea e seus Domínios: deslocamentos e mutações. Tempos Históricos, Unioeste, 2005

André Pereira Neto - FiocruzAngela Katuta - UEL Arlene Renk - UNOCHAPECÓCelso Castro - FGV Davi Félix Schreiner - UNIOESTEEdmundo Dias - UnicampEliane Cardoso Brenneisen - UNIOESTEEliézer Rizzo de Oliveira - UnicampFrederico Neves - UFC Gisálio Cerqueira - UFF Heloísa Reichel - UFRGSJosé Ames – UNIOESTEJosé Rivair Macedo - UFRGSMárcia Menendes Motta - UFFMarcos Broietti - UNIOESTE Marta de Almeida - MAST Renan Frighetto - UFPR

Page 3: A Historiografia Contemporânea e seus Domínios: deslocamentos e mutações. Tempos Históricos, Unioeste, 2005

APRESENTAÇÃO

É com especial satisfação que apresentamos ao leitor o volume 7 da TemposHistóricos, publicação científica do Colegiado de História da UNIOESTE – UniversidadeEstadual do Oeste do Paraná – Campus de Marechal Candido Rondon, neste ano em quetivemos a grata notícia da aprovação pela CAPES do projeto de Mestrado em História destainstituição.

Abrindo esta edição, encontram-se duas conferências proferidas durante o VIIISimpósio em História da UNIOESTE “História, Poder e Práticas Sociais”, ocorrido entre 24e 27 de outubro de 2005, cujo tema remete à denominação da Área de Concentração dorecém-aprovado projeto de Mestrado, cujo curso se iniciará em 2006. A conferência deabertura do evento, da Professora Virgínia Fontes, da Universidade Federal Fluminense,sintetiza reflexão em torno do tema geral do evento, em que a autora aponta algumasformas de abordagem do tema, concentrando-se na relação entre a História como umaprática social e o poder.

A conferência de encerramento do evento é apresentada em forma de artigo pelaprofessora Sílvia Zanirato, da Universidade Estadual de Maringá, no qual apresentaalgumas reflexões em torno da gestão do patrimônio cultural que permitam a participaçãocomunitária e seu entendimento como um instrumento importante para a construção dacultura de cidadania.A sessão de artigos deste volume reúne nove textos com temáticas e reflexões teórico-metodológicas bem diversificadas. Reflexões sobre historiografia constituem tema dos trêsprimeiros artigos. O primeiro, de Diogo da Silva Roiz e Jonas Rafael dos Santos, trata da“Escola dos Annales” enquanto uma tradição historiográfica inventada e das estratégias deconstrução de hegemonia historiográfica. O segundo artigo, de José D´Assunção Barros, faz umadiscussão sobre metodologia e escrita da história, discutindo aspectos relacionados aos diversos“domínios” da história, em especial ao da Biografia. O artigo que segue, de Manoela Pedroza, temcomo objeto a historiografia marxista brasileira, procurando analisar a forma com que ocampesinato e a questão agrária se estruturaram como objetos de estudo por esta historiografia,entre as décadas de 1930 e 1980.

Em seguida, apresentamos o artigo de Maria Aparecida de Oliveira Silva que tratadas mudanças havidas no Exército romano, à época do imperador Augusto, as quais teriamcontribuído para a construção de uma nova ordem militar, cuja influência teria se estendido portoda a história política de Roma. O artigo seguinte, de Bruno Miranda Zétola, trata da transição daAntigüidade ao Medievo, especialmente no que se refere à substituição do evergetismo clássicopelo modelo caritativo, o qual se constituiu em importante veículo de legitimação do poder políticoe econômico da Igreja, e em especial, do episcopado.

Os artigos que seguem se inserem na temática História & Cidade, muito emboratematizem a cidade sob abordagens diversas. O artigo de Rosângela Maria Silva Petuba,sobre a cidade de Uberlândia – MG, aborda a cidade a partir das experiências vividas detrabalhadores ocupantes de terra de um de seus bairros, avaliando a importância da lutapolítica como fonte de aprendizado para esses trabalhadores. O artigo seguinte, de MarcoAntonio C. Sávio, trata da cidade de São Paulo, nos primeiros trinta anos do séculopassado, procurando discutir a adoção de novas tecnologias da eletricidade trazidas pelaempresa canadense Light & Power, com o auxílio das forças políticas da cidade. O artigo deMarie Felice Weinberg tematiza São Paulo focalizando a imigração judaica, entre o final daSegunda Guerra Mundial e 1956, em especial, mulheres empresárias. Através da HistóriaOral, a autora procura revelar o papel das mulheres nas relações de poder entre os gêneros.

Page 4: A Historiografia Contemporânea e seus Domínios: deslocamentos e mutações. Tempos Históricos, Unioeste, 2005

E, por último, a revista traz artigo de Tarcísio Vanderlinde que desenvolve seuargumento baseado na idéia da existência de mediações entre concepções da IECLB –Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – e o ideário do CAPA – Centro deApoio ao Pequeno Agricultor.

Encerram o volume duas resenhas, a primeira do professor Pedro Paulo Funari,sobre o livro L’Histoire culturelle, de autoria de Pascal Ory, publicado em 2004, na França,e a segunda, de Ana Paula Cantelli Castro, sobre o livro Reforma Urbana e Luta deClasses: Uberabinha/MG (1888 a 1922), publicado por Antônio de Pádua Bosi.

O Conselho Editorial agradece a todos os autores e pareceristas que contribuírampara que mais este volume fosse publicado.

O conselho ainda informa que já estamos recebendo, até dia 10 de março de2006, contribuições para o próximo volume, cujo tema do dossiê é “Poder e PráticasSociais”. A pré-definição de dossiês temáticos, adotada pelo Conselho Editorial, tem comoobjetivo dar continuidade à sua política de qualificação da revista.

O dossiê “Poder e Práticas Sociais” pretende reunir artigos resultantes de pesquisasque articulem reflexões teórico-metodológicas na área de História, em torno de questõesrelativas a poder e práticas sociais. Apreendem-se as relações entre história e poder deforma ampla, presentes nas diversas dimensões da vida social, política, cultural eeconômica, bem como as múltiplas práticas de contestação, subordinação ou consenso àordem social. De outro modo, nas relações entre história e práticas sociais, abrem-sepossibilidades de compreender os processos sociais vividos e construídos por sujeitos,individuais e coletivos, em meio a tensões e conflitos, historicamente experimentados ereelaborados.

Profa. Dra. Méri FrotscherCoordenadora do Conselho Editorial

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO

CONFERENCIAS História, Poder e Práticas Sociais Virgínia Fontes As instituições de proteção do patrimônio cultural: gestão política e participaçãocomunitária Sílvia Helena Zanirato

ARTIGOS

A invenção de uma tradição: a “Escola dos Annales”Diogo da Silva Roiz e Jonas Rafael dos Santos

A historiografia contemporânea e seus domínios: deslocamentos e mutações José D`Assunção Barros

O debate na historiografia marxista brasileira sobre trabalhadores rurais no século XXManoela Pedroza

A política do poder: o Exército na era de Augusto Maria Aparecida de Oliveira Silva

Da Antigüidade ao Medievo: o cristianismo e a elaboração de um novo modelo caritativo –Bruno Miranda Zétola

Pelo direito à cidade: articulações e aprendizados na luta política dos trabalhadoresocupantes da terra urbana na cidade de Uberlandia Rosangela Maria Silva Petuba

A Light & Power e a construção do momentum da eletricidade em São Paulo Marco Antonio S. Sávio

Imigrantes empreendedoras em São Paulo (1945-1956): Ashkenazitas, Sefarditas eOrientais Marie Felice Weinberg

CAPA: o jeito luterano de atuar com os pequenos agricultores no Sul do Brasil Tarcísio Vanderlinde

Page 6: A Historiografia Contemporânea e seus Domínios: deslocamentos e mutações. Tempos Históricos, Unioeste, 2005

RESENHAS

ORY, Pascal. L’Histoire culturelle. Paris: Presse Universitaires de France, 2004. Pedro Paulo A. Funari

BOSI, Antonio de Pádua. Reforma Urbana e Luta de Classes: Uberabinha/MG (1888 a1922). São Paulo: Xamã, 2004.Ana Paula Cantelli Castro

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Conferência

História, Poder e práticas sociais1

Virgínia Fontes2

Em primeiro lugar, gostaria de falar sobre minha imensa felicidade de estar aqui, na

Unioeste, Universidade com a qual mantenho estreito contato apesar de ser a primeira vez

que aqui venho. Participei desde os primórdios do convênio interinstitucional com a UFF,

mas não pude vir – por razões alheias à minha vontade – na época dos primeiros cursos.

Participei entretanto intensamente das atividades de orientação e de bancas de diversos

colegas daqui e tenho mesmo a impressão de já conhecer a cidade, através das dissertações

e teses que tive o prazer de acompanhar de forma bem próxima. Além desses espaços mais

formais e institucionais, ganhei também laços de grande amizade, construída em debates,

longas tardes e noites de estudo e em encontros festivos – com chopp e conversa, em

almoços coletivos e jantares animados. Assim, me sinto em casa... e faço questão de

mencionar, em especial, Carla Luciana Silva e Gilberto Calil, mais que amigos,

companheiros.

Agradeço pois a honra de estar com vocês neste VIII Simpósio em História que tem

um certo sabor especial, de vitória: comemoramos o novo Curso de Mestrado em História

da Unioeste, com votos de longa vida, de sucesso e, sobretudo, de coerência intelectual e de

defesa da Universidade Pública, laica, gratuita e de qualidade.

Vamos, pois, a nosso tema, História, poder e práticas sociais. Há muitas maneiras

de abordar as inúmeras questões que o tema suscita, assim como há diversos caminhos

teóricos para seu tratamento. Vou levantar algumas desses temas e problematizá-los um

pouco, de forma a que pensemos juntos sobre algumas dessas possibilidades, e, em seguida,

nos centraremos no primeiro ponto.

1 Conferência de abertura do VIII Simpósio em História da UNIOESTE – História, Poder e PráticasSociais, ocorrido entre 24 a 27 de outubro de 2005.

2 Professora do Programa de Pós-Graduação em História da UFF (Universidade Federal Fluminense).Email: [email protected].

Page 8: A Historiografia Contemporânea e seus Domínios: deslocamentos e mutações. Tempos Históricos, Unioeste, 2005

1. A relação entre a História como uma prática social e o poder. Que laços unem

nossa prática, a de historiadores, com o poder? Podemos partir de dois

caminhos: o da história de nossa disciplina e o das maneiras pelas quais os

historiadores lidam com o poder. Retornaremos a este ponto mais adiante.

2. As concepções tópicas do poder. Há uma forte tendência a conceber o poder

como se estivesse “acima” e separado da vida social, enquanto as práticas

sociais estariam figuradas como se estivessem “abaixo”. Essa disposição tópica

caracteriza o pensamento liberal, que vê o poder como resultando de pactos (ou

do grande pacto, o Leviatã) que, uma vez instaurado, se autonomizaria frente ao

conjunto das demais relações sociais. Pensar o poder, ao contrário, nos parece

exigir pensar as relações sociais que não somente o instauram, mas que

permanentemente o reconstróem. É nas relações sociais – econômicas, políticas,

culturais, organizativas, de cotidiano – onde se implanta e se exerce a

desigualdade como condição de existência, que se originam os meios de coerção

para assegurar a desigualdade.

3. O poder externalizado. Derivada, em grande parte, da modalidade anterior,

alguns tendem a pensar o poder isoladamente do conjunto (da totalidade) das

relações sociais. Muitas vezes nos deparamos com interpretações do poder como

se fosse externo às relações sociais (providencialismo, por exemplo); nesse viés,

o poder constituiria uma “esfera própria” ou “específica” de existência, sendo

abordado isoladamente. Aqui se apóia a suposição de senso comum de que tudo

‘derivaria’ do poder, que se torna, assim, a-histórico, isento de processo, numa

seqüência linear de auto-desdobramento infinito.

4. O desafio histórico de explicar e compreender o poder na totalidade histórica.

Uma quarta possibilidade seria tratar o desafio que significa para nós, os

historiadores, explicar (e compreender) os processos históricos que instauram

formas específicas de poder derivadas das relações sociais – e portanto das lutas

e das práticas. Enfrentar este desafio exige superar as linearidades, quer sejam

sociológicas (que às vezes o analisam como instantâneos fixos ou como

desdobramentos lineares), quer sejam temporais (como concebem a história

Page 9: A Historiografia Contemporânea e seus Domínios: deslocamentos e mutações. Tempos Históricos, Unioeste, 2005

como um longo fio de tempo contínuo, esquecendo suas contrações, acelerações,

rupturas bruscas e, também, as persistências do velho no interior do novo). Este

desafio exige pensar a totalidade das relações sociais (a objetividade e a

subjetividade nas quais nos constituímos), analisar o chão social no qual toda e

qualquer forma de poder lança raízes. Exige identificar as formas cristalizadas

que, por parecerem naturais e corriqueiras, permeiam toda a vida dos seres

singulares, como as formas diferenciadas dos Estados e sua íntima conexão com

as diferentes maneiras de assegurar, consolidar e legitimar a dominação de

pequenos grupos sobre a maioria, assentada sobre a exploração. Mas também

exige decifrar a razão pela qual essa dupla, dominação/exploração se apresenta,

muitas vezes, como seu próprio contrário! Como se fosse vontade subjetiva

externa à história (vontade divina), ou, mais complexo ainda, como se fosse o

próprio desejo dos dominados e dos explorados – o de submeter-se “livremente”

ao jugo social que lhes é imposto. Esta é a característica mais perversa do

capitalismo, ao empurrar, pela massiva expropriação na qual se sustenta e da

qual retira sua seiva (o sobretrabalho), a imensa maioria da população para uma

procura incessante de trabalho (expresso como se fosse emprego, contrato

estável, direitos), acreditando que o faz... “livremente”. Esta imagem alterada,

falsificada de si, apenas apresenta a percepção de uma parte da sociedade –

percepção daqueles que se beneficiam desse processo – como se expressasse a

realidade efetiva da grande maioria. Este movimento perverso – e complexo –

aparece hoje também na questão democrática, onde o fato de votar parece querer

responsabilizar a grande maioria pela expropriação política que lhe retira seus

direitos, a começar pelo próprio contrato de trabalho, espraiando-se sobre a

destruição de conquistas de cunho universalizante – saúde, educação, habitação,

alimentação, dignidade, direito à vida, etc...

Como se pode observar, qualquer das vias que tomemos para abordar o tema implica

desafios similares. Retornemos, pois, ao primeiro ponto, para aprofundá-lo um

pouco mais, relacionando a prática social dos historiadores ao poder.

Page 10: A Historiografia Contemporânea e seus Domínios: deslocamentos e mutações. Tempos Históricos, Unioeste, 2005

1. A relação entre a História como uma prática social e o poder

Como todos sabem aqui, o termo história tem inúmeros significados, é polissêmico

e essa riqueza de significados deriva do intenso uso social – e da importância - que adquiriu

com o tempo. Como exemplos, a palavra história pode designar namoro (“Fulano está de

história com Sicrana”); pode significar objeto ou coisa (“que história é essa na sua

roupa?”); confusão, complicação (“não me venha com histórias”). No dicionário Houaiss,

estão listadas 15 acepções... Para nosso intuito, podemos classificar as acepções

diretamente ligadas às atividades dos historiadores em dois grandes grupos: no primeiro,

nos referimos aos processos sociais passados ou em curso; no segundo grupo, designamos a

atividade de conhecimento que se exerce sobre o conjunto daqueles processos. No primeiro

sentido, a matéria prima e, no segundo sentido, a atividade (a “fábrica”) de explicações. No

primeiro sentido, o movimento no qual estamos imersos; no segundo sentido, a procura da

reflexão sobre as grandes linhas e as grandes direções nas quais esse movimento nos

impele. Nosso trabalho, dos historiadores, nos move a nos interrogar sobre o significado

desse fluxo do qual participamos, assim como sobre as possibilidades que se descortinam

para nós, como seres coletivos que somos.

Por exemplo, em nossos dias podemos nitidamente identificar a catástrofe social e

humana que se abate sobre nós. Vivemos sob relações sociais que realizam também uma

destruição brutal (mas extremamente lucrativa) da própria natureza. Esse processo hoje

envolve inclusive privar de água a maioria da população do planeta, através da privatização

das fontes e mananciais e de sua mercantilização. A miséria social, a degradação humana, a

destruição dos elos afetivos, a mercantilização das almas (corações e mentes) e a inutilidade

da grande maioria dos objetos mercantis dos quais estamos cercados são características que

se impõem à nós, de forma assustadora. Porém nossa reflexão deve ir adiante, analisando as

formas de construção histórica dessa barbárie, identificando as possibilidades existentes de

exercício de nossa historicidade efetiva e a capacidade de transformação social que

subsiste.

As duas atividades – viver historicamente e pensar e escrever a história – não estão

totalmente imbricadas. As formas de escrever, pesquisar, explicar, pensar e sentir a história

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se alteram segundo os períodos e momentos históricos e segundo o ponto de vista social no

qual nos localizamos.

Nossa forma contemporânea de pensar a história (tanto o processo real quanto a

disciplina histórica) nasceu estreitamente ligada com a justificativa do poder e dos

poderosos. Em outros termos, a disciplina acadêmica história se configura, desde os

primórdios renascentistas (com Maquiavel, O Príncipe e, principalmente, em sua História

de Florença e Guicciardini, História da Itália e História de Florença – esta última

publicada apenas em 1859), muito próxima ainda da genealogia das famílias reais (traços

marcantes dos textos, digamos proto-históricos anteriores) mas, sobretudo, como uma

reflexão sobre o poder, ligando-o diretamente ao Estado e aos homens que encarnavam este

poder, os príncipes e os guerreiros.

Com muitas oscilações, a disciplina História se consolidaria somente no século XIX,

quando se constituiu como um corpus de conhecimentos incorporando a crítica erudita,

uma definição, ainda que muito frágil e descritiva, do que poderia ser sua matéria-prima (os

“fatos históricos”) e uma profunda desconfiança com relação à filosofia (e, portanto, com

relação à explicação e à compreensão). Lastreada na descrição e, em sua forma mais

literária, em narrativas épicas, permaneceria muito próxima das grandes questões suscitadas

a partir do poder, pensado como algo em si. A História, concebida dessa forma, seria a

disciplina avalista da construção do Estado-nação moderno (juntamente com o direito),

investigando no passado as linhagens do “povo”, que doravante se impunha, ao lado das

linhagens nobiliárquicas. Encontramos, assim, grandes relatos dos povos anglo-saxônicos,

dos gauleses, dos germânicos como protagonistas de uma unidade específica cujo percurso

era apresentado de forma linear, congregando uma matriz histórica (temporal), um

território, uma forma de ser (identidade) e uma unidade política que figurava como se

tivesse sido, desde sempre, a meta a atingir. A Revolução inglesa e, principalmente, a

Revolução francesa, com a irrupção do povo comum nos processos políticos (isto é, dos

não-nobres, dos burgueses, mas também do “populacho”, do que era até então apontado

como a “ralé”), exigia sua incorporação no grande painel histórico até então reservado às

famílias nobres. A construção das nações seria, em parte, obra de historiadores. Escrever a

nação era inscrevê-la na História. As nações resultavam de um processo complexo, fruto de

uma intensa aspiração à igualdade, expressa nas reivindicações populares e,

Page 12: A Historiografia Contemporânea e seus Domínios: deslocamentos e mutações. Tempos Históricos, Unioeste, 2005

simultaneamente, derivavam de tradições inventadas, incorporando subalternamente a

grande maioria. A nação, lugar de luta, se mirava numa tradição inventada (e produzida

também por historiadores), onde uma comunidade de desiguais inventaria uma igualdade

fictícia, a de “nacionais”.

O estado burguês moderno que se consolidava no século XIX extraía sua

legitimidade, em grande parte, da nova disciplina que ele apoiava, sustentava e difundia,

através, por exemplo, da criação dos Institutos Históricos nacionais (implantado no Brasil

em 1838). Os historiadores tinham o augusto papel de naturalizar a nação e de demonstrar

sua indissociabilidade do Estado. Em muitos casos, isso implicou na destruição de

culturais regionais, cujo caso mais evidente foi o da Itália. Para o tema que nos interessa, o

poder, vale lembrar que o Estado era considerado como seu lugar “natural”, o condutor

“natural” da nação, como sua expressão imediata. Assim, a nova disciplina reatava os laços

com as tradições anteriores, agora alargadas – a História era, sobretudo, a história dos

homens no poder do Estado. Não mais suas genealogias nobiliárquicas, mas as estratégias e

ardis dos grandes homens, sua psicologia e suas batalhas. O povo, dignificado como

“origem”, permanecia como mero coadjuvante. Uma prática social – dos historiadores –

distanciada das grandes massas e próxima dos aparatos governamentais produzia a

legitimação dos Estados paralelamente à consolidação de tradições nacionais. Uma história

de base eurocêntrica, colonizadora e “civilizadora” exaltava os países centrais (e suas

“raças”), enaltecendo seus “povos” os quais, entretanto, deveriam manter-se distantes dos

cenários de poder nos quais ela se desenvolvia.

Num século como o XIX, povoado de revoltas populares e de grandes revoluções

(como a Comuna de Paris, em 1871), essa maneira de apresentar a história seria fortemente

contestada pelos movimentos operários e populares. Em seguida, essa crítica seria

consolidada pela poderosa reflexão de Marx.

Abria-se uma profunda cisão no mundo dos historiadores, agora já plenamente

profissionais. O eixo principal até então dominante, a narrativa dos grandes feitos, dos

grandes homens, a exaltação abstrata das qualidades dos povos (os alemães, os franceses, os

ingleses), que se completava com a exposição dos supostos vícios e da degradação dos

povos subalternizados3, seria fortemente questionado. Uma nova prática social, feita por3 . Não se pode esquecer que, enaltecidos enquanto origem nacional, os setores populares (mesmo os

“nacionais”) continuavam desconsiderados, apresentados como brutos, incompetentes, incapazes dedirigir-se, devendo depender, portanto, de seus governantes.

Page 13: A Historiografia Contemporânea e seus Domínios: deslocamentos e mutações. Tempos Históricos, Unioeste, 2005

grupos sociais concretos, que se organizavam e combatiam as práticas sociais naturalizadas

da exploração e da produção de desigualdades, inclusive simbólicas (a própria classe

operária, então reunida em enormes instalações fáusticas), demandava e exigia outra forma

de pensar a história. Esta se evidenciaria doravante como um processo de transformação,

resultante não da vontade singular dos dirigentes, mas do caudal volumoso das inúmeras e

anônimas lutas sociais. Pensar historicamente passava a exigir a compreensão da forma

social da dominação de classes, como lugar de lutas e de conflitos no interior da própria

sociedade (e não apenas de batalhas épicas entre indivíduos singulares com seus projetos de

poder). O mundo da economia, até então reservado dos olhares populares como se fosse um

lugar técnico, se evidenciava como encharcado de política. A fala técnica (e cada vez mais

matematizada) da economia era desnudada como o discurso específico da ocultação das

relações sociais que sustentavam a dominação de classes. Expor a economia como um

concentrado de relações sociais, como lugar de exploração social e de produção (e não um

mundo feito unicamente de “coisas”), resultava de – e impunha – uma crítica completa do

que era exibido como “necessidade”4.

Agora, o próprio poder (o Estado) deveria ser explicado, não se limitando mais à

fonte de explicação. Marx demonstrava claramente que o poder não é uma coisa em si, mas

deriva da exigência de coerção homogeneizada (e naturalizada por seus ideólogos)

engendrada pelas diferentes formas históricas de extrair sobretrabalho, e, para tanto, de

organizar a vida social. Para Marx, o poder deriva portanto da organização da dominação

de classes, ou do modo de produção (mais precisamente, dos modos de ser, maneira mais

próxima de sua formulação).

A prática dos historiadores, ou a atividade histórica como prática social tornava-

se, também, lugar explícito de luta social. O século XX demonstraria o quanto essa luta

atravessaria o mundo dos historiadores e, a rigor, todo o conjunto das disciplinas sociais. A

neutralidade fictícia de uma descrição dos fatos se mostrava como seleção parcial e

arbitrária.

4 Podemos entender isso com um exemplo anacrônico, mas tristemente pertinente: o episódio da“blindagem” de Henrique Meirelles e da defesa da “independência” do Banco Central. Um jornal como OGlobo defendeu explicitamente a intocabilidade legal do dirigente do Banco Central como forma deassegurar a manutenção de uma política econômica que não mais se submetesse à política na qual todospodem, ainda que subalternamente, participar. O interesse dos setores financeiros dominantes foi assimapresentado como necessidade social.

Page 14: A Historiografia Contemporânea e seus Domínios: deslocamentos e mutações. Tempos Históricos, Unioeste, 2005

Não poderemos fazer, neste curto espaço de tempo, uma longa apresentação das

grandes questões da historiografia do século XX, mas uma das mais importantes polêmicas

foi a que opôs uma ciência histórica neutra e apassivadora a uma história engajada e

fortemente crítica. Basta lembrar dos primórdios dos Annales5, quando Marc Bloch

aprofundou, a partir de uma leitura muito sagaz das classes sociais, a compreensão do

mundo medieval e de suas formas de ser; quando os primeiros textos de Lucien Febvre

apontam para a materialidade das relações culturais (como o problema da descrença em

Rabelais).

Os Annales, porém, de local de luta pelo reconhecimento de uma leitura histórica

engajada, totalizante, explicativa e crítica se transformaram numa instituição forte e

consolidada, espécie de espelho no qual se mirava a historiografia francesa contemporânea.

Plenamente integrados à lógica do Estado francês, num viés republicano (contra a força

ainda remanescente da Ecole de Chartes e de seu viés conservador e, até mesmo,

monarquista) paulatinamente perderiam sua força contestadora e crítica. Gradualmente, o

foco das análises se modificaria, para instaurar uma espécie de “revolução permanente” de

técnicas de pesquisa que se distanciou grandemente dos grandes questionamentos sobre o

conjunto da vida social que o originaram.

Permito-me transcrever uma citação um pouco extensa de Pierre Bourdieu, um dos

filhos da EHESS – Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, instituição sob o controle

do grupo dirigente da revista Annales, num texto redigido no final dos anos 70:

...a classe dominante “nada tem a esperar das ciências sociais, a nãoser, no melhor dos casos, uma contribuição particularmente preciosa para alegitimação da ordem estabelecida e um reforço do arsenal dos instrumentossimbólicos de dominação. (...) o que está em jogo na luta interna pela autoridadecientífica no campo das ciências sociais, isto, o poder de produzir, impor einculcar a representação legítima do mundo social, é o que está em jogo entreas classes no campo da política” (...) “A idéia de uma ciência neutra é umaficção, e uma ficção interessada, que permite fazer passar por científico uma formaneutralizada e eufêmica, particularmente eficaz simbolicamente porqueparticularmente irreconhecível, da representação dominante do mundo social.Desvendando os mecanismos sociais que asseguram a manutenção da ordemestabelecida, cuja eficácia propriamente simbólica repousa no desconhecimento de

5 Originalmente, Annales d’histoire économique et sociale; depois Mélanges d’histoire sociale; em seguidaAnnales. Economies, Sociétés, Civilisations (1945-1993) e, finalmente, após 1994, Annales. Histoires,Sciences Sociales.

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sua lógica e de seus efeitos, fundamento de um reconhecimento sutilmenteextorquido, a ciência social toma necessariamente partido na luta política.”6

Essa luta é ainda hoje constitutiva do mundo das práticas historiográficas e sociais

dos historiadores. Utilizando termos próximos aos de Bourdieu, o que divide as ciências

sociais (e a história) é a admissão – ou não – da divisão social e, portanto, da luta social.

Assim, enquanto para alguns a vida social é local de harmonia (visão irenista) ou da

sobreposição de indivíduos, para outros é lugar de divisão e de luta de classes, divisão

funda e instauradora de uma determinada maneira de ser, de existir e de pensar que conflita

com a vida real da maioria, com as experiências e processos efetivos de sua vida. Essa

divisão conforta a exploração através reprodução generalizada de seus mecanismos de

dominação, como a própria violência simbólica.

No entanto, essa luta constitutiva das ciências sociais – e da história, ou da

historiografia - vem mudando de forma, se alterando, se metamorfoseando nas últimas

décadas.

Antes porém de comentarmos alguns dos recentes desdobramentos dessa complexa

relação entre prática historiadora e poder, vale retornar um pouco ao campo do marxismo e

a algumas de suas dificuldades. A revolução soviética, ao entrar na fase de cristalização e

de enrijecimento do período stalinista, produziu também seus historiadores oficiais,

similares aos dos países capitalistas. Mais grave ainda, a mitificação do poder stalinista

forjava uma caricatura do próprio marxismo. Este era brandido como teoria necessária e, ao

mesmo tempo, esterilizado. Suas exigências críticas eram podadas e, com isso, uma espécie

de tecnicismo analítico de manuais se generalizava no mundo soviético. A reflexão

histórica produzida dessa forma cumpria uma função legitimadora – e não mais

questionadora – ainda que falando em nome do marxismo. O uso do referencial do

marxismo, amputado de sua força profundamente subversiva, tanto intelectual quanto

socialmente, abriria espaço para ecletismos diversos, que ocorriam nos países capitalistas

mas também nos pós-revolucionários, gerando marxismos pragmáticos, economicismo,

messianismo, politicismos, que conviviam perfeitamente (e disputavam espaço) com os

ecletismos fundados em outras áreas teóricas. Os embates tendiam a se limitar à ocupação

6 P. Bourdieu, O campo científico. In: Bourdieu, P. Sociologia. SP, Ática, 1982. (p. 147-8). Itálicos do autor,PB; negritos VF.

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de espaços no interior das universidasdes e academias, perdendo sua força social. Se

academicizavam e se tecnificavam (pragmatismos diversos), ou, em outra vertente, se

esterilizavam na pura erudição. Este não foi, felizmente, um processo monolítico. Ao lado

de uma vertente que se fossilizava, brotavam novos e originais pensadores, em diferentes

regiões do mundo e que, partindo de plataformas similares (com base em Marx),

descortinavam novos horizontes.

Vou referir-me apenas a dois destes pensadores. O mais importante, sem dúvida, foi

Antonio Gramsci, com sua arguta denúncia do reducionismo dos manuais e,

principalmente, do mecanicismo e do economicismo no interior do marxismo. Não era

historiador de ofício. Reintroduzia a cisão entre o mundo oficial dos historiadores e a

reflexão histórica. Podemos dizer que Gramsci (como Marx), é um historiador sem o ser.

Refaz e reconstrói a explicação da vida social italiana (elabora a categoria de

transformismo; renova a reflexão dialética apresentando a relação histórica entre o norte e o

sul da Itália); esclarece de maneira incisiva as modalidades de organização do estado

capitalista contemporâneo, pensando de forma original a questão da totalidade (hegemonia

e coerção; sociedade civil e sociedade política); inaugura a compreensão do

“americanismo”, cuja hegemonia era então incipiente. Mantendo-se muito próximo às

reflexões de Marx e de Lênin, não os toma como textos canônicos e, assim, analisou a

maneira como o Estado – e seu aparato – se erigia a partir da vida social, a partir da luta

entre as classes, das formas organizativas que a elas se ligam, da produção de visões de

mundo e da cultura. Mostrou como as classes se articulavam na sociedade civil e como o

Estado se cristalizava como relação entre forças profundamente desiguais, nascidas no chão

fundamental da produção da vida (“a hegemonia nasce da fábrica”).

Como exemplo de historiador de ofício que retomou explicitamente Marx e Gramsci

para sua prática de se trabalho, um dos mais importantes foi E. P. Thompson. Mas – quiçá

para fugir do oficialismo a que muitos historiadores são induzidos – Thompson sempre

recusou o mundo das academias, sendo um professor do setor de extensão (aulas para

adultos e para operários), concentrando suas pesquisas nos processos de constituição das

classes sociais como modo de ser (priorizando a experiência como forma de articulação

entre objetividade e subjetividade). Em Thompson, a questão do poder liga-se diretamente

às classes sociais, às formas de subordinação do mundo do trabalho.

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* * *

Nos últimos anos e, em especial, na década de 1990, a relação entre o poder e as

práticas sociais dos historiadores parecem se tornar mais opacas e confusas. Refiro-me ao

período do pós-modernismo, com uma expansão requentada do pragmatismo, período que

se traduz por disputas no interior de um campo de historiadores profissionais cada vez

maior, mais competitivo e crescentemente hierarquizado. Vou sugerir alguns caminhos para

compreender isso.

A evidência dos profundos problemas no mundo soviético levou muitos autores a

criticar fundamente a concepção marxiana de poder, considerando a experiência soviética

como se fosse uma “aplicação” imediata do marxismo. Outros procuraram outras fontes de

rebeldia, como por exemplo a reflexão de Foucault, desencantado com a maneira pela qual

os que se proclamavam contestadores do poder (os Partidos Comunistas) reproduziam

lógicas de dominação em seu próprio interior. Essa constatação o leva a abandonar a

reflexão sobre as formas centrais de constituição do poder dominante (o capital, em

primeiro lugar e o Estado) e a dedicar-se às porosidades, aos micro-poderes, às margens

aparentemente não ‘contaminadas’ pela lógica dominante (loucos, doentes, bruxos,

marginais). Reflexão vigorosa, com profundo impacto sobre os historiadores mas que, no

entanto, virava as costas a dois problemas centrais. No primeiro, abandonava o tema da

historicidade, ou das formas (e sujeitos) da transformação histórica, que constituem o cerne

do marxismo. No segundo ponto, centrando suas análises na questão do poder,

desconsiderava entretanto o fulcro fundamental que expressava o poderio de classe, a

exploração, e sua forma mais visível de convencimento, o Estado. Deixava de lado assim

suas bases fundamentais, as classes sociais. No final da vida, Foucault voltaria a apontar a

questão da “estatalidade” como eixo importante de análise, mas os historiadores que o

seguiram não o fizeram.

As práticas de antipoder propugnadas por Foucault derivaram, entretanto, na

constituição de novas linhagens – e poderosas – de historiadores. Sem mais ter as classes

sociais (ou o Estado) como um problema, alguns assumiram um papel ambivalente:

ocupavam o lugar social da legitimação social do poder dominante através do Estado (e,

portanto, das classes), lugar clássico dos historiadores, porém não mais questionavam sua

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própria inserção, dedicando-se ao estudo das margens e deixando de lado o eixo central

que, a rigor, definia inclusive o limite e a extensão de tais margens. O Estado (como

condensação de relações de classe e expressão central desse poder) ficaria secundarizado

nas pesquisas. Esse esquecimento, entretanto, não correspondia ao que ocorria na vida

social e vale pensar sobre o enorme o papel e a constituição, então em curso, do poderio

bélico estadunidense, e em sua íntima conexão com o Estado.

Outros autores confundiram a vulgata marxista (ou o marxismo stalinista) com as

formulações marxianas. Algumas vezes por engano, pois só haviam conhecido a vulgata.

Outras vezes como uma estratégia para reduzir o tamanho do adversário e, dessa forma,

aparentemente derrotá-lo. Nunca Marx morreu tantas vezes como nos últimos 30 anos e,

em especial, neste decênio neoliberal.

Entretanto, não era mais possível supor uma história (ou uma ciência social) neutra.

As ciências chamadas de “naturais” mostravam cada vez mais suas conexões sociais e a

própria física incorporava questões sociais e subjetivas. O que poderia ser um enorme

avanço, com a desnaturalização das ciências e com a exigência mais rigorosa da articulação

entre objetividade e subjetividade levou a um giro peculiar – a suposição de que seria

possível eliminar a própria realidade da reflexão histórica. Dois foram os caminhos

principais utilizados: o do giro lingüístico (e o culturalismo) e o do pragmatismo. No

primeiro, tratou-se de descolar a linguagem da vida social que a possibilita, a molde e a

transforma. Se só podemos expressar o mundo através de representações lingüísticas – e

isso é verdadeiro – derivaram daí que o mundo real não existe, sendo o resultado de

representações e crenças... Não haveria mais ciência, para estes, nem sentido ou significado

histórico. Existiriam apenas culturas, representações, formas incompatíveis, umas com as

outras, de ver o mundo. A dominação e o poder voltaram a ser apresentadas como entidades

abstratas, sem chão social consistente – derivadas diretamente da linguagem, sem vínculo

social, eram mostrados como se fossem puro convencimento (e a filantropia voltou a ser

convocado para corrigir as eventuais distorções). Em outros casos, expressariam

circunstâncias casuais (inteligência, eficácia, competitividade, etc.) e, assim sendo, eram

legitimados. Apresentavam-se como entidades intangíveis, tal como o mercado ou o capital,

desaparecendo o mundo das classes sociais. O Estado voltava a figurar como lugar imediato

da vontade de seus integrantes e de sua capacidade de convencimento (o grande consenso).

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A proximidade com a expansão e a oligopolização da mídia neoliberal, difundindo e

naturalizando esta concepção, foi uma das condições e uma de suas mais graves

conseqüências. De maneira peculiar, essa forma de pensar aderia como uma segunda pele à

lógica desenfreada da mercantilização no final do século XX.

O segundo caminho foi o do pragmatismo utilitarista (R. Rorty). Partia também da

impossibilidade de definir uma realidade que desse fundamento à análise. Considerando

todos os fenômenos sociais como pura contingência, abandonava as questões cruciais da

organização da vida social para enveredar pelo estudo do que tivesse utilidade prática mais

imediata.... Onde ser mais útil imediatamente do que coligando-se, por cima, aos poderes

estabelecidos? Onde a “utilidade” aparece de forma mais evidente do que na pregação

filantrópica? O mundo deixa de ser histórico (e transformável) para limitar-se aos remendos

úteis a serem aplicados num tecido social “esgarçado” mas que é apresentado como eterno,

calcado na “natureza humana contingente”.

O terceiro caminho foi o mais propagandístico de todos e, de certa forma,

incorporava os dois primeiros – a negação de qualquer história futura. Teríamos chegado ao

ponto máximo do processo histórico e ele assinalaria o fim da história. Nem é necessário

falar de Fukuyama7.

No entanto, o mundo real continua colocando desafios efetivos. A barbárie não

desaparece porque deixamos de pensar nela ou porque a enfeitamos de filantropia, (quer

derivem de ONGs, de formas associativas empresariais ou confessionais); a violência

fundamental, estrutural, não desaparece porque passamos a pensar unicamente em termos

de um consenso que só tem plena validade para alguns (como fizeram muitos em nome de

um “agir comunicacional”, por exemplo).

Nós, historiadores, estamos imersos em práticas que nos relacionam intimamente ao

poder e a luta social. Se não tivermos uma reflexão crítica, podemos construir belos textos,

mas que naturalizam o mundo; nos arriscamos a fazer derivar todo o poder de sua imagem

mais aparente, o Estado e seus ocupantes (ou de entidades para-estatais internacionais ou,

ainda, de algum Estado específico, como os EUA), esquecendo a extração do sobretrabalho

7 O artigo de Fukuyama, publicado em 1989, foi difundido em todo o mundo pela John M. OlinFoundation, instituição estadunidense que gasta milhões de dólares para favorecer um giro à direita noensino das ciências sociais e que financiou também François Furet, historiador francês contestador daRevolução francesa e que foi um dos diretores de Annales, em sua nova etapa. Ver Fontana, J. La historiadespués del fin de la história. Barcelona, Ed. Crítica, 1992, p. 7.

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que a tudo produz e sustenta. Nos arriscamos a não ver o fundamento das divisões sociais

na extração crescente de sobretrabalho para nutrir classes sociais dominantes e conter a

rebeldia social. Não devemos, pois, passar ao largo das lutas e práticas transformadoras,

assim como do movimento histórico que efetivamente exercem. Nosso desafio é o de

mostrar as entranhas, mostrar como se enraízam, na vida social e na história, as formas

específicas e peculiares de que se veste o poder de classes em cada momento, a maneira

como o convencimento e a coerção revestem e aderem às transformações no mundo do

trabalho. Vivemos um dos momentos de maior subalternização do trabalho e de intensa

extração real (e não fictícia, nem resultante de uma forma de ver o mundo) de mais-

trabalho, inclusive sob formas de trabalho compulsório, de tráfico de mulheres e de

crianças, de trabalho infantil, além de uma cascata hierarquizada de subordinação, que vai

desde as formas contratuais até as modalidades mais precarizadas de trabalho.

Se tivermos a ousadia de reconhecê-lo, talvez tenhamos a capacidade de combatê-lo.

Nosso papel social é difícil e muitas vezes ambíguo. Nossa relação é ao mesmo tempo

subordinada (como trabalhadores) e combativa, se pensarmos em nossa função tal como

Gramsci pensou o papel dos intelectuais. Somos responsáveis pela socialização do

conhecimento e das lutas que o atravessa, somos organizadores de uma forma de ver e

pensar e sentir o mundo. Quem sabe, assim, conseguiremos avançar na explicação e na

compreensão de nosso mundo, de sua historicidade transformadora necessária e, dessa

forma, sejamos mais que historiadores, mas também sujeitos plenamente históricos.

Bibliografia adicional:

Anderson, Benedict. Nação e consciência nacional. (Comunidades imaginadas). SP, Ática,1989.

Anderson, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental. Porto, Afrontamento, 1976.Bloch, Marc. La société féodale. Paris, Albin Michel, 1968.Duayer, M. e Moraes, Maria Célia M. “Neopragmatismo: a história como contingência

absoluta”. Tempo. Revista do Departamento de História da UFF. Vol. 4, 1997.Fontana, Josep. – Historia, analisis del pasado y proyecto social. Barcelona,

Critica/Grijalbo, 1982.Foucault, Michel. Microfísica do poder. 5ª ed., Rio, Graal, 1985.Gramsci, A. Cadernos do Cárcere. Rio, Civilização Brasileira, 2001 a 2002 (6 volumes).Hobsbawm, Eric J. Nações e nacionalismo desde 1780. Rio, Paz e Terra, 1990.Hobsbawm, Eric J. e Ranger, T. A invenção das tradições. Rio, Paz e Terra, 1997.

Page 21: A Historiografia Contemporânea e seus Domínios: deslocamentos e mutações. Tempos Históricos, Unioeste, 2005

Lefebvre, Georges – El nacimiento de la historiografia moderna. Barcelona, Martinez-Roxa, 1974.

Marx, K. Manuscritos econômico-filosóficos (Manuscritos de Paris). In: Os Pensadores.SP, Nova Cultural, 1982.

Meszáros, I. Para além do capital. SP. Boitempo, 2002.Thompson, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio, Paz e Terra (3 volumes).

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As instituições de proteção do patrimônio cultural: gestão política e participação comunitária8

Silvia Helena Zanirato9

Resumo

O conceito “patrimônio cultural” passou por transformações de sentido nos últimos

anos. De um discurso patrimonial referido aos grandes monumentos artísticos do passado,

interpretados como fatos destacados de uma civilização, se avançou para uma concepção do

patrimônio como o conjunto dos bens culturais que são referentes das identidades coletivas.

Ele agora compreende as múltiplas paisagens, arquiteturas, tradições, festas, gastronomias,

expressões de arte, documentos, sítios arqueológicos, ritos, músicas, expressões

reconhecidas e valorizadas pelas comunidades e organismos governamentais na esfera

local, estadual ou nacional. Essa nova concepção não pode deixar de ser associada ao

processo de “mundialização” e a tentativa de homogeneização de hábitos e consumos em

face ao vertiginoso ritmo de transformação e trocas que se processa na contemporaneidade.

Os bens que hoje formam o patrimônio têm permitido a cada sociedade reconfigurar seus

elementos de identidades e de pertencimento a um tempo e lugar. Esses bens conformam o

patrimônio de uma comunidade a partir de diversas perspectivas, fortalecem o sentido de

pertencimento e impulsionam a participação coletiva ao recompor o tecido social, recuperar

a herança e definir os caminhos do que virá. Com base nesses preceitos neste texto me

proponho a apresentar algumas reflexões em torno da gestão do patrimônio cultural, que

permitam a participação comunitária e seu entendimento como um instrumento importante

para a construção da cultura de cidadania.

Introdução

Por patrimônio cultural entendem-se os diferentes modos de vida e de expressão dos

seres humanos, as manifestações materiais e imateriais que afirmam e promovem a

identidade cultural de um povo.

8 Texto-base da conferência de encerramento do VIII Simpósio em História da UNIOESTE – História,Poder e Práticas Sociais, ocorrido entre 24 a 27 de outubro de 2005.

9 Professora da Universidade Estadual de Maringá. E-mail: [email protected].

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Esse entendimento, bem como as medidas de proteção destinadas a salvaguardar o

patrimônio são resultantes de uma formulação lenta e gradual da cultura no mundo

ocidental. É claro que se pode encontrar desde a Antiguidade objetos valorados e

conservados, bem como medidas jurídicas para sua proteção, advindas de motivações de

ordem cultural, política, econômica e religiosa. Todavia, uma reflexão crítica acerca dos

valores históricos, artísticos e culturais dos bens considerados patrimônio e a busca de

meios para sua conservação ocorreram em épocas mais recentes.

Foi em finais do século XVIII, sobretudo a partir da Revolução Francesa, que se

elaborou uma outra sensibilidade quanto a proteção e conservação de bens dotados de valor.

Se no decorrer da Revolução houve a depredação dos signos pertencentes ao passado

monárquico, ela instigou, por outro, o desejo de conservação de elementos considerados

‘testemunhos irrepreensíveis da história’, os monumentos que faziam referência à memória

do país, considerados então de interesse público, cujo conhecimento e desfrute deveria ser

disposto a todos os cidadãos. Buscaram-se então ações políticas para a conservação desses

bens, entre as quais uma administração encarregada de sua conservação e da preparação dos

instrumentos jurídicos e técnicos para esse fim (CHOAY, 2001, p. 95).

Assim, a partir do século XIX podem ser encontradas as primeiras medidas para a

proteção do patrimônio e o surgimento dos conceitos modernos de conservação e

restauração, forjados diante da necessidade de se evitar novas destruições.

O século XIX também transformou o conhecimento histórico em conhecimento

científico e, nesse processo, os monumentos considerados por seus valores históricos,

cognitivos, econômicos e artísticos, passaram a ser valorados principalmente pelo valor

histórico, que se tornou preponderante para o reconhecimento de um bem como um

patrimônio. Os monumentos tornaram-se testemunhos das etapas do desenvolvimento

evolutivo da humanidade (GONZÁLEZ-VARAS, 2003, p. 37-38).

Naquele contexto, a atribuição de valor ao monumento amparava-se em critérios

estéticos ou históricos. As obras de arte eram consideradas dotadas de muito mais valor do

que um objeto de uso utilitário, com isso, as produções das classes subalternas raramente

apareciam como bens cuja conservação devesse ser contemplada, o que favoreceu a perda

de inúmeros objetos considerados não relevantes (IDEM, pp. 43-44). O bem considerado

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patrimônio era preservado como uma figura museal, isolada de uso, disponível apenas para

a contemplação (CHOAY, 2001, p. 181).

A aceleração da urbanização nas décadas iniciais do século XX mudou o

entendimento a respeito do que é uma cidade. Esta passou a ser compreendida como um

tecido vivo, com espaços que podem ser conservados e, ao mesmo tempo, integrados à

vida, conciliando sua morfologia com novos usos. A cidade tornou-se então um nível

específico da prática social na qual se vêm paisagens, arquitetura, praças, ruas, tradições,

festas; um lugar de expressão da memória coletiva, de identidades compartilhadas pelos

diferentes habitantes que a integram e que não é um todo homogêneo e articulado, mas

antes um mosaico muitas vezes sobreposto, que expressa tempos e formas diferenciadas de

viver (IDEM, p. 200-236).

A compreensão de que a cidade é composta por edificações e por pessoas implicou

na reformulação do conceito de patrimônio, uma vez que nos bens a serem preservados se

incorporou o valor cultural, a dimensão simbólica que envolve a produção e a reprodução

das culturas, que se expressa nos modos de uso dos bens.

A partir da segunda metade do século passou a haver um interesse cada vez maior

aos aspectos nos quais se plasma a cultura de um povo. As línguas, os instrumentos de

comunicação, as relações sociais, os ritos, as cerimônias, os comportamentos coletivos, os

sistemas de valores e crenças passaram a ser vistos como referenciais culturais dos grupos

humanos, signos que definiam a cultura de um povo e que necessitavam de salvaguarda.

Frente a isso se ampliou a noção de monumento histórico como elemento condensador de

valores, que expressa as capacidades criativas de uma cultura. Surgiu assim a definição de

bem cultural como a manifestação ou testemunho significativo da cultura humana

(GONZÁLES-VARAS, 2003, p. 44).

A ampliação do conceito permitiu a compreensão de que os signos das identidades

de um povo não podem ser definidos tendo como referência as culturas ocidentais, assim

como a cultura campesina não pode ser vista como menor em face às atividades industriais.

O reconhecimento da mudança conceitual se fez presente nos fóruns internacionais

destinados a refletir sobre a preservação de bens culturais ou patrimônio cultural. A

Convenção de Haia de 1954, patrocinada pela UNESCO, empregou o conceito dessa forma.

A partir de então ele passou a ter o sentido de objetos e estruturas herdados do passado,

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com valores históricos, culturais e artísticos, bens que representam as fontes culturais de

uma sociedade ou de um grupo social e que podem ser materiais ou imateriais.

Ao longo das duas décadas seguintes, a essa definição incorporaram-se as noções de

cultura e natureza, compreendidas como complementares e formadoras das identidades dos

povos. O patrimônio cultural converteu-se no conjunto de elementos naturais ou culturais,

materiais ou imateriais, herdados do passado ou criados no presente, no qual um

determinado grupo de indivíduos reconhece sinais de sua identidade (CASTILLO RUIZ,

1998, p. 22).

Ao mesmo tempo em que houve essa mudança, houve também um processo de

aceleração da ocidentalização, “uma americanização dos costumes, que caracterizam uma

maneira de viver, de produzir, de consumir, de vestir, de comer e de dilapidar” (MARIN,

2005) Não obstante, a ocidentalização do mundo não deixou de ser sempre confrontada

com a resistência cultural. A valorização da diversidade cultural surgiu então como a

expressão positiva de um objetivo geral que procura a valorização e a proteção das culturas

do mundo, frente ao perigo da uniformização.

A questão que passou a ser colocada foi a de como proteger os valores ancestrais da

diversidade cultural do “rolo compressor” da padronização cultural. Isso porque esse

mesmo processo de globalização acarretou o afastamento do Estado das atribuições que

lhes eram próprias, entre as quais a gestão dos bens culturais.

As transformações políticas, sociais e econômicas havidas em diferentes partes do

mundo tornaram bastante complexa a manutenção da responsabilidade do Estado em gerir e

conservar os bens culturais. Essa complexidade, assim como a privatização crescente,

acabou por acarretar uma necessidade de compartilhar responsabilidades e envolver outros

segmentos da sociedade nessa tarefa. Nesse contexto, a conservação do patrimônio natural e

cultural passou a ser reconhecida como um componente essencial do processo de

planejamento integrado, ciente de que os múltiplos campos de interesse e as conseqüentes

situações de conflito que envolve a gestão, não tornam fácil essa empreita.

Baseada na compreensão dessas transformações e na necessidade de redirecionar a

gestão dos bens culturais de uma forma mais eficaz, a Constituição Brasileira de 1988

estabeleceu as competências locais para a gestão do patrimônio. Ficou definido que o

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município pode instituir legislação própria que proteja os bens históricos e regulamente o

seu uso e conservação.

Assim, conforme o art. 30, inciso IX, compete ao município “promover a proteção

do patrimônio histórico – cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora

federal e estadual”. A partir desse dispositivo o poder local pode estabelecer políticas para

gerir a conservação dos

I - conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico,

ecológico e científico;

II - museus, as casas de cultura ou de memória, os arquivos, as obras, objetos,

documentos e edificações que reflitam e registrem a história, a cultura e a arte do povo e da

região;

III - criações científicas, tecnológicas, artísticas, artesanais e folclóricas, os

monumentos e estátuas erguidas em praça pública;

IV - festas religiosas populares e as manifestações profanas peculiares ao

Município;

V - bens tombados por Lei Municipal e Estadual, localizados dentro do Município.

E é com a preocupação de gerir e conservar o patrimônio que entendo a importância

de traçar os principais pontos que embasam um plano de gestão dos bens culturais para a

cidade, ou seja, um conjunto de medidas destinadas à implantação de políticas públicas

municipais capazes de:

1. Estabelecer mecanismos institucionais de gestão dos bens culturais,

2. Realizar um mapeamento e a identificação precisa de todos os bens da cidade,

3. Promover campanhas de educação patrimonial em todo o município, integrando o

tema da conservação nos currículos das escolas locais,

4. Sensibilizar a sociedade para a importância dos bens culturais,

5. assegurar a manutenção e a conservação do que existe de específico,

irreprodutível e não renovável na configuração da cidade.

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O Plano de Gestão dos Bens Culturais

O Plano de Gestão é um conjunto normativo constituído de ações e recursos

técnicos, institucionais e financeiros que estrutura todos os procedimentos que devem atuar

na operação e na normatização da gestão dos Bens Culturais, que busca organizar o

desenvolvimento das atividades de criação, conservação e difusão dos bens culturais da

cidade, mediante um quadro temporal de 5 anos, utilizando todos os atores e recursos

disponíveis (Pontual, 2002, p. 115).

Para a sua elaboração é fundamental articular em sua montagem requisitos tais

como o desenho de uma estrutura organizacional com a definição de mecanismos de

participação, negociação e decisão, a constituição de uma equipe técnica, a montagem de

um programa de trabalho que atue na mobilização e sensibilização dos atores envolvidos e

na elaboração de um esquema de divulgação e comunicação do trabalho.

O objetivo central de um plano assim proposto deve ser o de promover a gestão

compartilhada dos bens culturais da cidade de forma a manter a especificidade, diversidade

e autenticidade da morfologia urbana bem como das expressões de vivência e tradições

culturais, integradas às exigências contemporâneas de novos usos e atividades (Pontual,

2002, p. 115). Assim, esse plano deve:

a) Contribuir para a integração de todos os atores públicos e privados envolvidos

na atividade de gestão;

b) Articular as políticas públicas federal, estadual e municipal;

c) Promover um melhor planejamento das atividades de criação, conservação e

difusão dos bens patrimoniais;

d) Associar a atividade com a conservação integrada do patrimônio cultural;

e) Integrar o processo de gestão dos bens patrimoniais ao processo de

desenvolvimento sócio-econômico da cidade;

f) Indicar os mecanismos de negociação e de participação entre os diversos atores

envolvidos na gestão.

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A atividade da gestão pode ser organizada mediante um modelo que trabalhe a

diversidade cultural existente na cidade e que também atue na gestão das tarefas simples e

complexas do dia-a-dia, bem como naquelas do planejamento estratégico. Um planejamento

capaz de garantir a execução de quatro tarefas ou fases que se integram e que se interligam

e são consideradas permanentes durante o processo. Essas tarefas são:

Análise e Avaliação

A tarefa de “análise e avaliação” consiste na sistematização de dados e

informações relativos aos bens culturais na cidade, bens materiais e imateriais. Por

meio dela podem ser avaliados a diversidade de formas e funções da configuração

urbana, bem como os valores da tradição cultural dos habitantes da cidade.

Monitoramento e Controle

Essa tarefa compreende uma atividade direcionada para o planejamento do

futuro do desenvolvimento da gestão dos bens culturais na cidade. Tem como

objetivo observar e mensurar o resultado sócio-econômico e de indução do

desenvolvimento de atividades culturais, bem como os impactos e os riscos

impostos ao patrimônio. Deve também propor e orientar ações corretivas à

programação das atividades, no tempo e no espaço da cidade.

Negociação

Esta tarefa, por sua vez, compreende a mediação dos conflitos, dos interesses

e objetivos dos atores envolvidos com o patrimônio cultural da cidade. Nele se

empregam técnicas de construção de consenso visando parcerias para tornar o

planejamento efetivo e eficaz. Pode ser executada mediante a criação legal de um

Fórum de proteção dos bens culturais da cidade, composto por representantes e por

todos os atores envolvidos no processo e pela adoção dos termos negociais da

parceria.

Page 29: A Historiografia Contemporânea e seus Domínios: deslocamentos e mutações. Tempos Históricos, Unioeste, 2005

Proposições

As proposições se referem à formulação de alternativas de intervenção técnica,

institucional e financeira relacionada aos bens culturais. Nela se podem construir cenários

que possibilitem avaliar o impacto da intervenção nos bens culturais (Pontual, 2002, p.114).

O plano pode ser ainda mais aprimorado mediante a execução de:

I – Um Plano Diretor Para os Bens Culturais que contemple:

1. A definição, no âmbito do Plano Diretor da Cidade, de políticas destinadas a preservar,

proteger e recuperar o meio ambiente e o patrimônio cultural, histórico, paisagístico,

artístico e arqueológico municipal;

2. A realização de estudos e pesquisas objetivando avaliar a dimensão, composição e

importância dos bens culturais da cidade;

3. A efetivação de projetos que possam priorizar a memória, a história, a contemplação e a

imagem dos bens culturais da cidade.

II – Um Plano de Parceria Público-Privado no qual se organizem ações e tarefas

compartilhadas:

1. A recuperação da história do local e que permita contemplar os bens

arquitetônicos do município;

2. A adequação de um espaço de animação fixa, aberto para a exposição dos bens

culturais, sobretudo os bens imateriais.

3. A devida importância à paisagem natural, proporcionando maior transparência

na relação dos edifícios com essa paisagem.

4. A elaboração de projetos de formação em educação patrimonial,

Page 30: A Historiografia Contemporânea e seus Domínios: deslocamentos e mutações. Tempos Históricos, Unioeste, 2005

É importante que tal plano envolva em sua composição atores das esferas municipal,

estadual e federal, ou seja o âmbito governamental, bem como atores oriundos da sociedade

civil tais como representantes de associações profissionais, de associações comunitárias, de

associações de ensino.

Para a organização e o cumprimento das diretrizes é importante que sejam elaborados

convênios de parcerias com vistas à gestão compartilhada e à formulação das normas de

PPP – Parceria Público Privada, estabelecendo-se um conjunto concreto de medidas e de

competências de cada um dos atores.

A gestão dos bens culturais assim proposto pressupõe os seguintes componentes:

a) A criação de um organismo municipal, no âmbito da administração direta,

próprio e específico da Secretaria de Cultura da Cidade, dentro da estrutura

básica da Administração Municipal;

b) A criação e implementação do Conselho Municipal de Patrimônio Cultural –

CMPC, com composição paritária público – privado. Esse Conselho será

responsável pela discussão e aprovação do Plano Diretor dos Bens Culturais da

Cidade, dentre outras tarefas;

c) Criação, instalação e posse de um Fórum de Gestores dos Bens Culturais –

FGBC da cidade. Uma organização aberta, composta por atores públicos e

privados, além de pessoas físicas e jurídicas interessadas na gestão dos bens

culturais. O FGBC necessitará de um calendário periódico de reuniões, de pautas

definidas e de uma coordenação executiva a ser exercida em Colegiado. Suas

tarefas são: indicar ao Conselho as prioridades da criação, conservação e difusão

dos bens culturais, em constante integração com o planejamento das atividades

gerais da cidade como um todo;

d) Criação e Implantação de um Fundo Municipal de Preservação dos Bens

Culturais, vinculado a SEC, recursos oriundos do setor público e privado e

alocados mediante diretrizes do CMPC e do FGBC (ZANIRATO et. alli, 2004).

Page 31: A Historiografia Contemporânea e seus Domínios: deslocamentos e mutações. Tempos Históricos, Unioeste, 2005

A tarefa dos organismos propostos por esse arranjo é a de integrar todos os setores da

administração municipal que atuem em prol dos bens culturais e assim promover

melhorias no sistema de gestão das atividades voltadas para esse fim.

Com isso, tarefas de animação de atores, coordenação de atividades, integração de

planos de trabalho, ações integradas, parcerias público-privado, qualificação do pessoal

técnico, organização institucional moderna e enxuta e compartilhamento da gestão, podem

ser executadas com precípua finalidade de executar essa missão.

Acredito que um plano como esse possa ser orientado pelos princípios de uma nova

postura ética, apreendida do conceito de desenvolvimento sustentável, que visa a atender as

necessidades do presente sem comprometer a possibilidade das gerações futuras atenderem

às suas próprias necessidades, e que considere a multidimensionalidade da sociedade, em

seus aspectos econômico, político, social, ambiental e cultural.

Para que a gestão do Plano dos Bens Culturais seja sustentável é necessário que ele

seja:

a) economicamente viável, que gere riqueza para sua própria manutenção;

Com. Munic.

Patr. Cult.

Gabinete doPrefeito

Sec.Ind

Sec.Turism

Sec.Edu.

Sec.Plan.

Fórum de Gestão dos Bens Cult.

Séc. Cultura

DiretoriaEventos

DiretoriaMarketing

DiretoriaTécnica

DiretoriaAdm Fina

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b) ecologicamente equilibrado, que observe a natureza em sua capacidade de

regeneração limitada em face ao crescimento econômico e populacional e

considere os critérios ambientais para preservar os recursos naturais estratégicos;

c) socialmente includente, que através da integração inter e multisetorial das

políticas públicas, da participação social e da implementação de projetos

promova a inclusão social;

d) culturalmente conservador, que seja capaz de preservar o patrimônio natural e

construído;

e) urbanisticamente adequado, que suas normas e leis sejam adequadas à

conservação do patrimônio;

f) administrativamente ético e competente, que seja dirigido do ponto de vista

político por uma liderança competente e que atue democraticamente.

Dentro de tais preceitos, levando em conta ainda os instrumentos institucionais

propostos como o Fórum, o Conselho Municipal e o Fundo, viabilizam-se possibilidades de

sustentabilidade do Plano de Gestão ao mesmo tempo em que se abrem espaços para a

resolução de conflitos entre os grupos e atores sociais envolvidos, de modo a garantir a

legitimidade dos pleitos. Somente assim criam-se mecanismos de concertação de idéias e

práticas para fazer convergir valores e concentrar ações que, em suma, promovam a

conservação integrada do patrimônio cultural da cidade.

Ter uma cidade preservada através de iniciativas públicas e privada demonstra

consciência cultural, bem como a oportunidade de transmitir às gerações futuras o que

somos hoje, dando-lhes referências históricas e fortalecendo os laços em comum.

Omitirmo-nos diante dessas necessárias medidas fará com que nos esqueçamos de quem

somos.

Referências bibliográficas

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CASTILLO RUIZ, J. Hacia una nueva definición de patrimonio histórico? PH Boletín del

Instituto Andaluz del Patrimonio Histórico, n. XVI, Sevilla, IAPH, septiembre 1996.

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CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo, Estação Liberdade, ED. UNESP,

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Maringá, EDUEM, 2005.

PONTUAL, Virgínia A gestão da conservação integrada. In JOKILEHTO, J. et alli. Gestão

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ZANIRATO. Sílvia Helena et alli. A gestão do turismo no Bairro do Recife. Especialização

em Gestão do Patrimônio Cultural Integrado ao Planejamento Urbano da América

Latina. Cátedra UNESCO. CECI. UFPE. Recife, março 2004.

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A invenção de uma tradição: “A Escola dos Annales”10

Diogo da Silva Roiz11

Jonas Rafael dos Santos12

RESUMO: Preocupa-se, neste artigo, com o estudo da construção de uma tradiçãoinventada, a “Escola dos Annales”, na França, por meio das estratégias de manutenção deuma hegemonia historiográfica, com aqueles que ficaram conhecidos como a terceirageração do grupo nos anos 1970 e 80.

PALAVRAS-CHAVE: Revista Annales; Escola dos Annales; relato fundador;historiografia francesa.

ABSTRACT: It Worries, in this article, with the study of the construction of oneinvented tradition, ‘Annales School’, in France, by the maintenance strategies of ahistoriographical hegemony, with the ones that they were known as the third generationof the group in the 70ths and 80ths.

KEY WORDS: Annales Magazine; School of the Annales; founder report; Frenchhistoriography.

Propõe-se a estudar, neste artigo, a possibilidade de elaboração de um relato sobre

a história do surgimento da revista Annales (que ao longo dos anos agrupou diversos

intelectuais franceses, como também de outras nacionalidades), nas décadas de 1970 e

1980, fundamentalmente, pela ‘terceira geração’ do grupo [1968/9-1988(?)]. Para justificar

um projeto historiográfico proposto depois da década de 1960 e contrapor críticas à ‘Nova

História’ francesa, na medida em que se buscava, com àquele relato fundador, construir

uma possível identidade para o grupo, ao redor da revista Annales, em todas as suas fases.

10 Este texto é uma versão reformulada de parte do primeiro capítulo de uma pesquisa concluída no final de2003. Foi elaborada entre 1998 e 2002, e se originou no Programa Especial de Treinamento (PET) docurso de História da Unesp, Campus de Franca. A pesquisa foi orientada pela Prof.ª Dr.ª Aparecida daGlória Aissar. O texto completo é intitulado: A recepção da “Escola dos Annales” no Estado de SãoPaulo: da FFCL\USP a FHDSS\UNESP. Partes da pesquisa já foram publicadas sob a forma de artigos.

11 Mestre pelo programa de pós-graduação em História da Unesp, Campus de Franca, com financiamento daCAPES. Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul(UEMS), Campus de Amambaí. E-mail: [email protected]

12 Mestre e Doutor pelo programa de pós-graduação em História da Unesp, Campus de Franca, comfinanciamento da CAPES. Professor da Rede Pública Municipal de Campinas/SP. E-mail:[email protected]

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A revista Annales foi fundada, em janeiro de 1929, por dois historiadores que

despontavam no campo dos estudos históricos, na universidade de Estrasburgo. No período

a instituição incorporava um grupo de cientistas sociais, que anos depois seriam inovadores

em suas áreas de pesquisa. Não foi nos primeiros números que a revista havia sido notada

internacionalmente, mas a partir deles que o projeto do grupo despontava como crítica

direta, e alternativa possível, à “Escola metódica” na França (CAIRE-JABINET, 2003).

Com os desdobramentos dos conflitos gerados pelas guerras mundiais ocorridas nas

primeiras décadas do século XX e as transformações do cenário político e econômico

mundial, que as críticas levantadas, a partir da revista (pelo então movimento gerado pela

Annales), passariam a ser reconhecidas, pelos historiadores franceses e de outros países. E

as inovações da revista e o projeto do grupo viriam a servir de inspiração em outras

iniciativas. Na década de 1940, com a criação da IV seção de estudos históricos

(posteriormente transformada em VI seção) da Escola Prática de Altos Estudos, de Paris, o

movimento inseria-se institucionalmente na França, começando a ser denominado como

uma ‘escola’ (HUNT, 1992: 1-11).

Quando a revista Annales foi fundada, Marc Bloch e Lucien Febvre já haviam

absorvido parte do debate que ocorria nas primeiras décadas do século XX, e estavam

lecionando na Universidade de Estrasburgo. M. Bloch havia passado por universidades

francesas e alemãs (entre 1908 e 1910) e se familiarizava com os métodos da lingüística e

da sociologia, além de publicar textos e artigos. L. Febvre se familiarizava com as

discussões da época e desenvolvia a sua crítica contra a ‘história dos vencidos de 1870’.

Embora ambos pretendessem constituir carreira acadêmica nas principais universidades

francesas, somente em 1933 L. Febvre conseguia uma vaga no Collège de France, e em

1936, M. Bloch alcançava uma vaga na Sorbonne. Enquanto M. Bloch recebia a influência

dos Anais de Sociologia e de E. Durkheim, L. Febvre a recebia da Revista de Síntese

Histórica e de H. Berr (REIS, 2000: 65-90). Assim, enquanto M. Bloch enfatizava em sua

análise, a estrutura sobre os eventos – como exemplo se poderia mencionar A sociedade

feudal (elaborada entre 1930 e 1940) –, L. Febvre enfatizava a análise estrutural de uma

época, a partir de acontecimentos ou personagens, tal como fez em Martin Luter, um

destino (de 1928) e em O problema do anacronismo no século XVI: a religião de Rabelais

(de 1942). Mas foi com Apologia da História ou o ofício de historiador, obra póstuma e

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inacabada, publicada originalmente em 1949, que Marc Bloch se expressou de forma

sistemática sobre os limites e os campos da pesquisa histórica. Enquanto, numa outra base,

Lucien Febvre reuniu parte dos artigos e resenhas que publicou nos primeiros anos do

periódico, sob o título Combates pela história (de 1953), com o qual demonstrava sua

insatisfação em relação aos estudos históricos produzidos, particularmente na França, entre

o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Em especial, aqueles

elaborados pela historiografia (que de modo genérico se denominava) positivistai.

Na história do movimento, embora repudiassem a história dos acontecimentos,

voltada aos eventos políticos e construída, em parte, pela ‘escola histórica alemã’ e pela

‘escola metódica francesa’, não deixaram de aproveitar daquelas as suas contribuições à

pesquisa histórica, ao refazerem diagnósticos e interpretações sobre fontes ‘oficiais’, e

abrirem caminho para o estudo e a interpretação de fontes, até aquele momento, não

incorporadas ao corpus documental do historiador (BOURDÉ & MARTIN, 1983). É sabido

que as críticas sobre os metódicos (REIS, 1999) transparecem melhor do que as

contribuições que deixaram, porque para se colocarem como uma alternativa no estudo das

sociedades passadas, os Annales acabaram por silenciar o que de profícuo foi feito pela

historiografia oitocentista (BOUTIER & JULIA, 1998; SILVA, 2001). Se por um lado, a

historiografia ‘positivista’ fora repudiada pelos Annales (ainda que não de forma completa)

e seus elos sejam pouco visíveis num primeiro olhar, as relações, entre a historiografia

francesa, em especial à dos Annales, e o marxismo, aparecem também como amistosas.

Marx e o marxismo sempre foram heranças difíceis de serem incorporadas nas

universidades francesas. Mesmo trazendo questionamentos sobre as formas de se estudar as

sociedades passadas da maneira como os metódicos (e positivistas) as haviam pesquisado,

por trazerem junto ao seu suporte metodológico um projeto político de transformação

social, o marxismo também foi, por isso, criticado pelos Annales (LOPES, 2002;

CHAUVEAU & TÉTARD, 1999).

Nesse sentido, L. Febvre, que firmou seus combates contra a história metódica,

embora continuasse a pesquisar seus temas, mas sob outra ótica, junto com M. Bloch, que

desenvolveu uma abordagem mais estrutural e criticou as concepções sobre a história da

época, inovaram com algumas teses: a “história-problema”, a “história total”, a

“interdisciplinaridade”, o “alargamento do campo das fontes históricas” e o “fato histórico

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como construção teórica” (REIS, 2000: 73-85). Por meio das contribuições que receberam

das Ciências Sociais, junto com outros integrantes do grupo nesse período, desenvolveram

áreas como a história econômica, a história social e a geo-história, que igualmente estavam

sendo desenvolvidas em outros países. Nesse momento, eram elaboradas diversas teses na

França, por meio de monografias regionais, em que as principais fontes pesquisadas foram:

documentos pessoais e correspondências, censos populacionais, registros paroquiais, fontes

literárias. Foi a época das grandes coleções sobre a história das civilizações, na França.

Sendo nas décadas de 1950 e 1960, proliferadas com as coleções de história social. Esse foi

o momento em que os fundadores da revista buscavam firmar novos campos de pesquisa e

ocupar postos de comando dentro dos meios universitários franceses, ainda dominados

pelos metódicos (BURKE, 2002). Nos anos 1930 a revista Annales, de Estrasburgo passa

para Paris. No entanto, os “Annales mudam porque em torno deles tudo muda também: os

homens e as coisas; em uma palavra, o mundo. Já o de [19]38 não era mais o de [19]29”

(MOTA, 1978: 174).

Dentro desse contexto social que surgiu o pensamento de Fernand Braudel, ao

buscar sintetizar as abordagens de L. Febvre e M. Bloch e desenvolver teoricamente uma

interpretação do tempo histórico, expressando-se de forma sistemática no artigo ‘História e

Ciências Sociais: a longa duração’ de 1958 (REIS, 1994). Em 1958, com o nascimento da Quinta República, pode-se até falar de umaverdadeira política das ciências sociais rumo à institucionalização. Esse impulsorepresenta um novo desafio para os historiadores (...) ao qual será precisoresponder tanto no plano institucional, em que a concorrência é acerba, quantono teórico, para mostrar a capacidade de adaptação da escrita histórica (DOSSE,2001: 23).

Sobre a época, assim se expressou Fernand Braudel: Em 1958 (...) expliquei-me minuciosamente nos Annales sobre a longa duração(...) E não foi naquele ano que percebi a importância da longa duração, a qual,se quiserem, descobri ou encontrei em meu caminho. Eu queria apenas, nessaépoca distante [da década de 1950 e de 1982/3, quando escreveu o texto], depoisdo desaparecimento de Lucien Febvre (...), orientar com certo vigor a revistaAnnales numa nova direção, pois esta revista pretende estar, por vocação, navanguarda da pesquisa e da mudança, qualquer que seja o preço a pagar, o objetoou o setor a escolher, o erro a afrontar. Uma revista assim está condenada aevoluir, a mudar. Orientei-a, portanto, para a longa duração, que tanto MarcBloch como Lucien Febvre não haviam privilegiado ou posto em evidência atéentão. No entanto, ela se inseria virtualmente na linha de pensamento de ambos,não obstante suas afirmações em contrário (BRAUDEL, 2002: 368-69).

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Ele se forma em meio às influências de acontecimentos como as duas guerras

mundiais, e de sua experiência com a História Africana e da América do Sul. Com ele os

Annales avançam em seus combates, que se desdobrariam pela economia, sociologia e

antropologia. “Mas parece-me que Braudel encerrou (...) uma fase da escola dos Annales

ainda ligada às velhas tradições e às velhas estruturas universitárias” (LE GOFF, 1989:

215). Com ele o grupo obteve uma expansão pelas universidades e pelas áreas da história

serial, da história quantitativa e da história econômica. A história imóvel, nesse período, era

pouco comentada, desenvolvendo-se, essencialmente, na fase seguinte do grupo. “Com a

era F. Braudel, ocorre também a evolução para uma história cada vez mais imóvel [ainda

que a dinâmica dos tempos curto, médio e longo fosse a base das expectativas a serem

atingidas nas pesquisas, sob um viés econômico, mais até, talvez, do que social]. Ela

rompe, portanto, com a concepção da primeira geração de uma história-ciência da

transformação” (DOSSE, 2001: 22). Nessas áreas abria-se a oportunidade de análises que

visavam pesquisar sistematicamente fontes: cartoriais (inventários, testamentos,

nascimentos, casamentos, impostos, livros de abertura de firmas), correspondências, censos

populacionais, registros paroquiais como: registros de nascimento, casamento e morte, além

de um retorno aos documentos oficiais sobre novas perspectivas de análise (CARDOSO &

VAINFAS, 1997).

Entretanto, na década de 1960 e 70, em função do movimento estudantil de ‘Maio

de 1968’, do estudo das obras de Sigmund Freud (que resultaram nas análises de Lacan,

Deleuse e Derrida) e da expansão do estruturalismo (com Althusser, Passeron, Nicos

Poulantzas, e que culminou na obra crítica de Michel Foucault), houve uma revisão sobre

àquelas orientações (FERRY & RENAUT, 1988).

A agitação intelectual dos anos [19]70, no campo da historiografia, é frutotambém do desconforto provocado pelas práticas políticas do mundo socialista,cujos vícios e impasses colocaram em discussão a mais bem-sucedida teoriaglobal da história, o marxismo, que marca profundamente o mundo intelectualfrancês desde a primeira metade do século. No campo dos estudos históricos, énítida a influência da reflexão marxiana, mesmo em territórios não filiados a essaproposta, como o grupo dos Annales. São inúmeros os estudos que mostram aaproximação entre o marxismo e as metamorfoses da historiografia francesa apartir da ruptura com a escola chamada positivista. Porém, os sinais mais nítidosdessa aproximação estão nas próprias obras produzidas pelos Annales: ahegemonia da abordagem econômico-social na primeira e segunda gerações, abusca insistente da história total, a explicação estrutural como condiçãoindispensável à exploração de qualquer objeto de investigação. Essas posturas e

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esses procedimentos metodológicos não podem ser desvinculados da atmosferamarxiana que impregnava, direta ou indiretamente, a formação dos intelectuaisfranceses (D’ALÉSSIO, 1998: 15-6).

Da análise sobre as fontes quantitativas, estudadas até aquele período sobre padrões sociais

e econômicos, passou-se a dar maior preferência aos estudos de longa duração de modo a

perceber a psicologia social, a mentalidade e o imaginário de sociedades passadas

(TÉTARD, 2000). Destacando-se, nesse sentido, as atitudes culturais, mais que os quadros

sócio-econômicos. A nova tarefa do historiador já não consistirá em ressaltar as acelerações emutações da história, mas sim os agentes de reprodução que permitem arepetição idêntica dos equilíbrios existentes (...) História se escreve agora noplural e sem maiúscula: ela renuncia a realizar um programa de síntese paramelhor se desdobrar com vistas aos múltiplos objetos que se oferecem a seuolhar sem limites (DOSSE, 2001: 26-9).

Se no período de 1929 a 1946, e no de 1946 a 1968, tal perspectiva não fazia parte da

maioria dos trabalhos publicados (e no corpo central das orientações do grupo), a partir do

final dos anos 60, um grande número de pesquisas, foram desenvolvidas sob a perspectiva

de estudo das mentalidades e do imaginário das sociedades passadas (LE GOFF, 1998).

Embora a maior parte desses trabalhos estudasse a cristandade ocidental na época

medieval, houve trabalhos que pesquisaram o desdobramento daquelas mentalidades nos

séculos XVI, XVII e XVIII, como foi o caso das obras de Robert Mandrou e Phillipe Ariès,

pioneiras na recuperação do estudo das mentalidades de sociedades passadas, nos anos

1950 e 1960 na França, porque inspiraram uma retomada em diversas pesquisas sobre essa

linha de estudos históricos – que haviam sido anteriormente produzidos por Marc Bloch e

Lucien Febvre, ainda que sob perspectivas distintas (GURIEVITCH, 2003). Nos anos 1960

e 70, os estudos sobre a história das mentalidades e a história do imaginário social

contribuíram no desenvolvimento de metodologias de pesquisa, com novos padrões de

análise sobre as fontes quantitativas, seriais, demográficas, fundamentalmente produzidas

em cartórios e paróquias. Nessa fase muitos trabalhos se baseavam e desenvolviam

metodologias para a história oral (VAINFAS, 2002: 13-51). Embora nesse período a revista

não possuísse mais uma direção centralizadora, mas sim colegiada, o grupo teve grande

repercussão na mídia e com o público francês e de outros países.

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Para Rogério Forastieri da Silva (2001), ao mesmo tempo em que, muitas vezes,

não ocorria um debate, no campo historiográfico internacional entre grupos franceses,

alemães, italianos, norte-americanos e ingleses, algumas vezes até se desconhecendo uns

aos outros, o sucesso atingido pelas primeiras fases da revista Annales fez com que, grosso

modo, a terceira geração do grupo construísse um relato pertinente aos seus objetivos, tanto

que os justificassem dentro e fora da França.

Assim, levanta-se a possibilidade de fabricação de uma imagem na década de

1970 sobre os Annales que viria a constituir-se como uma tradição. Destarte, conforme

havia dito Eric Hobsbawm, na introdução do livro: A invenção das Tradições, “muitas

vezes ‘tradições’ que parecem ou são consideradas antigas são bastante recentes, quando

não são inventadas”. Assim: ... por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas, normalmentereguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de naturezaritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamentoatravés da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade emrelação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidadecom um passado histórico apropriado (...). Contudo, na medida em que háreferência a um passado histórico, as tradições ‘inventadas’ caracterizam-se porestabelecer com ele uma continuidade bastante artificial. Em poucas palavras,elas são reações a situações novas que ou assumem a forma de referência asituações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetiçãoquase que obrigatória (HOBSBAWM, 1997: 9-10).

Para este, a invenção de uma tradição, que envolve a elaboração de práticas e de

um relato fundador que se repita no tempo, ocorre, fundamentalmente, quando os atores

sociais que fazem parte deste relato fundador deixam de desempenhar as suas funções.

Segundo Ângela Alonso:

É da natureza dos movimentos intelectuais e políticos inventarem rótulos deidentidade, como estratégia de diferenciação, bem como uma tradição, umpanteão de heróis e obras de legitimação de suas posições, especialmente emperíodos de mudança social (ALONSO, 2002: 32).

Os movimentos intelectuais e políticos, portanto, ou inventam uma tradição por

meio de um repertório discursivo que os diferenciem de outros grupos, ao mesmo tempo em

que delineiam uma pretendida originalidade teórica e prática, com obras e manifestos de

seus atores sociais originários, ou elaboram retrospectivamente uma tradição discursiva

como forma de definir campos de atuação, em meio às obras e autores das fases iniciais do

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movimento, para os quais se preocupam em situar objetivos paralelos, com base numa

identidade comum.

Embora houvesse, no início do século XX, movimentos intelectuais propondo

renovações no campo da pesquisa histórica em vários países, tanto dentro como fora das

universidades, costuma-se verificar (no Brasil e em outros países), preferencialmente,

aquelas proporcionadas pela historiografia francesa. Para tanto, ressalta-se que a Nouvelle

Histoire, isto é, a História sob a influência das Ciências Sociais foi uma criação francesa,

fundamentalmente desenvolvida, a partir da fundação da revista Annales, em 1929, por

Marc Bloch (1886-1944) e Lucien Febvre (1878-1956), mediante uma inovação quanto ao

conceito de tempo histórico (REIS, 1996; WALLERSTAIN, 1996). O projeto original de uma nouvelle histoire não partiu de historiadores, mas desociólogos durkheimianos. Ao adotarem o ponto de vista desses sociólogos,traduzindo-os para o discurso histórico, os historiadores dos Annales romperamcom a influência até então predominante da filosofia sobre a história (REIS,2000: 37).

Antes destes haveriam discussões, principalmente efetuadas entre sociólogos e

antropólogos, sobre as formas como deveriam ser interpretadas as sociedades e os homens

no tempo. Todavia, supõe-se que foi com àqueles pesquisadores, fundadores e

colaboradores da revista Annales, que os estudos históricos efetivamente teriam sido

repensados, e em função disso abertas possibilidades de ‘novas’ leituras sobre o passado.

Para estes, a concepção iluminista sobre o tempo histórico, no século XVIII, e sua recepção

no século XIX pelas principais “escolas históricas” do período: o marxismo, o positivismo

e o historicismo viram as sociedades e os homens apenas enquanto sujeitos históricos

(REIS, 1999). Elas se limitariam a perceber as ações humanas na dinâmica do processo

histórico, sem com isso notarem a possibilidade de verificar naqueles atores sociais, objetos

de pesquisa. A matriz da revolução historiográfica surgida com a revista dos Annales foi (...)a elaboração de uma nova concepção de tempo histórico. A história tradicionalfoi questionada no momento em que o tempo curto, por ela praticado, foiconsiderado insuficiente para a explicação da experiência coletiva dos homens.Os fundadores da revista e seus seguidores tomaram essa questão como o grandetema da história e seus ecos perduraram durante décadas (D’ALÉSSIO, 1994:129-30).

Entretanto, a revolução historiográfica conduzida a partir de uma ‘nova’

concepção de tempo histórico, não manteve apenas continuidades entre os membros das

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várias fases do movimento, mas houve também redirecionamentos sobre a interpretação do

tempo. A interpretação do tempo histórico de Lucien Febvre, inaugurada entre as décadas

de 1920 e 1930, não foi a mesma de Fernand Braudel, desenvolvida nos anos 40 e 50, e que

não foi a mesma de Emmanuel L. R. Ladurie, construída nos anos 60 (REIS, 1994).

Se ainda hoje se ressalta os méritos do grupo em torno da revista Annales, que

surgiu naquele contexto, foi, em parte, pelo sucesso que obtiveram depois da segunda

guerra mundial, em função do conjunto de métodos, problemas e fontes propostas ao campo

de pesquisa histórica, quando renovaram intercâmbios entre a História e as Ciências

Sociais, por meio de inovações à interpretação do tempo histórico (REIS, 2000: 29). De

uma abordagem ‘acontecimental’, voltada para os fatos que irrompem em curto espaço de

tempo, antes praticada para estudar homens (que ocupavam funções de destaque nas

instituições que circunscreviam o Estado) e sociedades, passou-se a rastrear movimentos

duradouros, por meio de uma abordagem estrutural (REIS, 2003). Por esse e outros motivos

foram posteriormente interpretados como uma das grandes contribuições, na época, para a

pesquisa histórica. Todavia, se as contribuições que envolvem a “Escola dos Annales” em

suas diversas fases é notoriamente observada, os motivos que levaram a elaboração de um

discurso fundador sobre a história dos Annales foi ainda muito pouco questionado (SILVA,

2001).

Em função da organização institucional e do sucesso alcançado pelos fundadores

da revista, na sua fase do pós-guerra, que houve a elaboração de um relato fundador sobre a

história dos Annales, principalmente, por parte da terceira geração do grupo. Tal relato

indicava que a ‘Nova História’ seria uma criação, essencialmente, francesa, uma vez que

sua expansão estaria fortemente vinculada com os projetos do grupo desde a fundação do

periódico (DOSSE, 2001; 2003). No entanto, os desdobramentos da ‘Nova História’ vieram

a demonstrar que a sua história estava comprometida com um determinado relato da

história geral da historiografia no qual os elos importantes seriam: da ‘história positivista’ à

‘escola dos Annales’ e em direção a ‘Nova História’ (SILVA, 2001).

Para Carlos Antonio Aguirre Rojas:... mas allá de la continuidad formal que se establece a partir de la publicaciónperiódica u regular de la revista, durante casi toda su existência, existen sinembargo claras divergências en torno a los sucessivos proyectos intelectualesque la han animado, y que dándole vida y continuidad, la han utilizado al

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mismo tiempo como foro de proyección y como mecanismo de vinculación yde debate côn el médio académico exterior (AGUIRRE ROJAS, 1995: 18).

De fato, segundo Daniel Roche (PALLARES-BURKE, 2000: 153-85), a ‘Escola

dos Annales’ não era uma realidade, mas uma fabricação dos anos 80, pois, até meados da

década de 1970 não era assim designada. Havia, certamente, um movimento ao redor da revista, porém, não era umaescola; ou seja, não havia uma vontade de definir objetivos muito precisos,mas, ao contrário, uma grande abertura, sendo a principal a abertura para asciências sociais. Ora, tal abertura era muito diferente da que caracterizava osestudos históricos que se faziam a essa época na Sorbonne, onde havia grandesmestres representativos da tradição erudita, letrada, positiva... (2000: 158).

Provavelmente, apenas na década de 1970, que se inauguraria, na França, por

meio de projetos-manifestos a ‘Nova História’, sob a direção de Jacques Le Goff e Pierre

Nora, culminando com a organização, em três volumes, da obra: Fazer História, traduzida

para o português (no Brasil), simplesmente, como História, com os subtítulos: novos

problemas, novos objetos, novas abordagens. “Se nos autores ou no espírito da obra

freqüentemente for encontrada a marca da pretensa escola das Annales, isso se deve ao fato

de a nova história ser bastante devedora a Marc Bloch, a Lucien Febvre, a Fernand Braudel

a todos os que continuam a inovação por eles iniciada” (LE GOFF & NORA, 1976: 11). “A

elaboração desses três volumes (...) passou a história dos Annales para um público mais

amplo (...). Não bastava fornecer uma imagem da disciplina tal como ela era; era preciso

pensar em que ela estava prestes a tornar-se” (LE GOFF, 1989: 222). Naquela coletânea

participaram 33 pesquisadores, sendo 30 dos quais parisienses, apenas um provinciano,

ainda que este se trate, nesta época, de Paul Veyne, que viria ser professor do Collège de

France e dois estrangeiros, Jean Starobinski (professor em Genebra) e H. Zerener

(professor em Harvard). Entre os pesquisadores franceses, 11 estavam na VI seção da

Escola Prática de Autos Estudos, então administrada por Jacques Le Goff (substituindo a

Fernand Braudel, que alguns anos antes havia solicitado a sua aposentadoria), outros 12

vinham das diferentes universidades parisienses, que surgiram da fragmentação que se

iniciava com o turbilhão de acontecimentos que envolveram o movimento estudantil em

Paris no ano de 1968, sendo que: de Paris – I vieram 4 pesquisadores; de Paris – IV, 2; de

Paris – VII, 3; de Paris – VIII, 3. Houve ainda aqueles que estavam em instituições de

pesquisa, muito respeitadas, como: do Collège de France, 3; do CNRS outros 3 e do

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Instituto de Estudos Políticos mais 1 pesquisador. A maioria estava na faixa de 35 a 40 anos

de idade (BOUTIER & JULIA, 1998: 21-61).

No conjunto eram jovens pesquisadores, alguns já consagrados (em suas áreas de

pesquisa) dentro e fora da França, mas nem por isso aquele elenco de intelectuais estava

completo, seja por parte daqueles que contribuíam diretamente com o periódico, seja entre

os que estavam inovando campos da pesquisa histórica. A ausência de Fernand Braudel,

embora muito notada no período, talvez se explique pela alteração de projetos no

direcionamento do periódico, ruptura de projetos então efetuada por aqueles que assumiram

a administração da VI seção da dita Escola Prática de Autos Estudos e da revista Annales.

Por outro lado, Pierre Vilar, encontrava-se entre aqueles que faziam parte de um elenco de

intelectuais que estavam na faixa dos 50 aos 60 anos de idade e defendiam posições

políticas e metodológicas distintas – como neste autor eminentemente marxista – do

conjunto de pesquisadores que compunham a obra coletiva Fazer História. De fato, este

autor, assim interpretou o grupo: A palavra ‘Escola’ parece significar que há uma doutrina ensinada e imposta pormestres. Ora, não foi, de forma alguma, o que se passou em torno da revista dosAnnales. Essa revista simplesmente pediu aos historiadores – dentro do espíritoda síntese histórica, já inaugurado no início do século [XX] – que se ocupassemdas sociedades em geral, tanto de suas bases materiais quanto de seu coroamentointelectual, sentimental e ideológico, e que olhassem se existem, entre esses trêsníveis, relações a estabelecer, problemas a resolver. Jamais uma recomendaçãofoi feita pelos Annales para que se tratasse dessa ou daquela maneira umproblema colocado. Havia, é verdade, grandes mestres (...) Ocorre que osAnnales foram conhecidos, sobretudo, por suas exclusões (...) Houve, portanto,um espírito dos Annales, mais que uma escola; e, sobretudo, jamais existiram‘capelas’ (...) Ou seja, esta abertura dos Annales a outras disciplinas fazia partede suas características (...) Além disso, existe em torno da Escola dos Annalestoda uma atmosfera ideológica que faz parte da história de nosso tempo(D’ALÉSSIO, 1998: 64-5).

Por fim, resta notar a ausência de autores como Maurice Agulhon, Michel Vovelle, Philippe

Ariès e Alain Gerreau, que estavam abrindo campos, que nos anos subseqüentes se

tornariam férteis à pesquisa histórica, e apenas nos anos 1980 foram incorporados ao

movimento dos Annales.

Desde os anos 1970, pelo menos, que o hábito, de tempos em tempos, na França,

de se voltar a História e a sua escrita (com vistas a propor quais os caminhos que se

tornariam pertinentes ao pesquisador e quais procedimentos de análise das sociedades

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passadas deveriam ser revistas na pesquisa histórica), se tornou recorrente, como uma

estratégia de constituição de um discurso historiográfico, em busca de hegemonia nos

setores e lugares produtores de pesquisas históricas, dentro e fora da França, isto é, na

própria história das historiografias internacionais (BÉRIDA, 1995; DOSSE, 2003).

Até então, a ‘Nova História’, como foi efetivada, era apenas uma expectativa e

não um caminho a se chegar. Nos períodos anteriores os projetos foram distintos. Quando

Fernando Braudel (1902-1985) dirigiu o periódico, entre 1956 e 1968, desenvolviam-se

projetos junto ao grupo dos Annales, que viriam a possuir vínculos com a ‘Nova História’,

mas eram essencialmente divergentes desta. Conforme disse o próprio Fernand Braudel nos

anos 1970, sobre o movimento: ...apesar de sua vivacidade [os Annales], nunca constituíram uma escola, nosentido estrito, isto é, um sistema de pensamento fechado sobre si mesmo. Aocontrário. A senha de entrada é a paixão pela história, nada mais – porém émuito –, e, confundindo-se com essa paixão, igualmente a pesquisa de todas assuas novas possibilidades, a própria mudança da problemática segundo asnecessidades e as lógicas do momento. Porque passado e presente mesclam-seinextricavelmente. Sobre esse ponto, todos os diretores sucessivos dos Annalesestão de acordo(BRAUDEL, 2002: 30).

Por certo, esta não foi à primeira vez que Fernand Braudel analisou o grupo ao

redor da revista Annales. Em 1957, logo após o desaparecimento de Lucien Febvre da

direção do periódico (ocorrido em 1956), Braudel faria o seguinte comentário no primeiro

número da revista daquele ano: En moins de trente ans de leur propre histoire, les Annales de Marc Bloch et deLucien Febvre ont connu un essor et un reyonnement exceptionnels. Elles ontoussi connu d’exceptionnelles difficultès. La mort tragique de Mar Bloch en1944; il y a quelques mois à peine, la mort brusque de Lucien Febvre. Mais lesAnnales se doivent de continuer (...) Ni Marc Bloch, ni Lucien Febvre n’ont enla volanté ou l’illusion d’avoir fondé une Ecole, avec ses formules et sessolutions (BRAUDEL, 1957: 1)ii.

Naquele editorial intitulado ‘Os Annales continuam’, F. Braudel falava das características

dos Annales no tempo de Febvre e Bloch, e ressaltava que não tiveram a pretensão de

limitar o movimento em uma escola. Para ele esta idéia foi, a princípio, supostamente

elaborada com a fundação da IV (depois VI) seção da Escola Prática de Autos Estudos.

Mas apenas retrospectivamente teria sido construída.

Entretanto, se a idéia de ‘escola’ para os Annales foi muito criticada, não foram

poucos os autores que adotaram esta tradição discursiva para pensar o desenvolvimento do

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movimento ao redor da revista Annales, em suas diferentes fases, tanto na França como em

outros países. Traian Stojanovitch (1976) foi um dos pioneiros a interpretar o grupo dos

Annales enquanto um paradigma, caracterizando-o dentro do movimento geral da nouvelle

histoire, na França, em quatro fases: a) de 1900 a 1920, cujo período foi caracterizado

genericamente de fase de ‘crise da consciência histórica’, em que houve a criação de

diversos periódicos, em muitas áreas do saber, e de expansão de debates nas Ciências

Sociais, criticando-se procedimentos de pesquisa da ‘escola histórica alemã’ e da ‘escola

metódica francesa’, principalmente nos Anais de Geografia, nos Anais de Sociologia e na

Revista de Síntese Histórica; b) de 1929 a 1946, com a fundação da revista “Annales de

História Econômica e Social” e dos combates travados por Marc Bloch e Lucien Febvre,

junto com outros intelectuais daquele período, pois, muitos dos quais não fizeram parte do

periódico recém inaugurado e nem por isso deixaram de trazer grandes contribuições à

pesquisa histórica; c) de 1946 a 1968, com a expansão institucional, a partir da VI seção da

Escola Prática de Autos Estudos e a denominação do periódico, agora como: “Annales.

Economias, Sociedades, Civilizações”, tendo a sua frente Fernand Braudel na

administração do periódico, e em instâncias universitárias. Segundo este autor o período

posterior à saída de F. Braudel, junto aos acontecimentos de ‘maio de 1968’, na França,

resultaram numa revisão das metas e orientações, até então, seguidas internamente pela

revista.

Mesmo entre aqueles que herdaram a tradição historiográfica dos Annales mais

diretamente, como foi o caso de Jacques Revel (1989, pp. 13-41), isso não o privou de ter

uma visão crítica sobre o movimento. Quando, em 1979, publicou um artigo intitulado

‘História e Ciências Sociais: os paradigmas dos Annales’, a princípio uma crítica dirigida à

interpretação de Stojanovich, procurava revelar as peculiaridades do movimento,

aproveitando os ensejos da comemoração dos cinqüenta anos de fundação da revista.

Ressaltava a contribuição da Sociologia durkheimiana para o desenvolvimento das

propostas do movimento na década de 1930, e demonstrava a variedade de procedimentos

de pesquisa, então utilizados pelos membros do movimento. Já na década de 1990, em duas

entrevistas concedidas a professores universitários do Brasil, assim se referiu sobre os

Annales: ... a Escola dos Annales não é propriamente uma escola, mas ao mesmo temposei que há traços reconhecíveis em sua produção, que alias tem se transformado

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ao longo do tempo, renovando a sua agenda (...) Por outro lado, os Annalesrenovaram-se inúmeras vezes (...) o que não significa admitir uma falta decoerência. Diria que se trata de algo mais plástico, preocupada sempre em pensaras relações entre História e Ciências Sociais (...) No entanto, de uns 20 anos paracá, muitas coisas mudaram nos Annales e também, é claro, em torno da revista(...) Gostaria de começar dizendo (...) que não existe, no meu entender, ‘a escolados Annales’, enquanto muitos utilizam esse modo cômodo de chamá-la. Omovimento historiográfico fundado pela revista de Bloch e Febvre baseou-se emconvicções gerais ambiciosas e, ao mesmo tempo, simples: por um lado, a de quea história é uma ciência social, o que não é evidente em muitas tradiçõeshistoriográficas. E por outro lado, a de que as disciplinas que compõem asciências sociais tendem a se cruzar, a se confrontar, a se enriquecer mutuamente(...) Os Annales não pararam de redefinir sua posição, ao mesmo tempo emfunção da evolução interna da disciplina-mãe, a história, e também porque asrelações entre a história e as ciências sociais (...) mudaram (DAHER, 2001: 192-3 e 201-2).

Todavia, as reflexões desse autor, compõem uma análise retrospectiva sobre a

recepção de um discurso construído nos anos 1970 e 80. Pois, a história escrita sobre os

Annales pelos integrantes da ‘terceira geração’ do grupo e que, necessariamente, visava

demonstrar o desenvolvimento de um pensamento que se desdobraria e ao mesmo tempo

justificaria o projeto historiográfico do grupo, depois da década de 1960, foi também à base

de um relato fundador, que atingiu um consenso relativo mesmo em parte significativa dos

maiores críticos da ‘Nova História’ (SILVA, 2001).

Por outro lado, George G. Iggers (1988) caracterizou o movimento em duas fases:

uma anterior a 1945, quando esteve em efervescência estudos com aspectos mais

qualitativos, e um segundo momento, para o qual as pesquisas passaram a ter uma

abordagem mais quantitativa, fundamentadas nos estudos de F. Braudel e E. Labrousse.

Peter Burke (1997), ao estudar a história do movimento, dividiu-a em três períodos: a) de

1920 a 1945, quando ainda era pequeno e não ocupava a hegemonia no campo intelectual

francês e seus projetos foram mais subversivos; b) um segundo, de 1946 a 1967,

aproximadamente, quando de discurso subversivo passa a ser o hegemônico, do ataque aos

metódicos (positivistas) franceses, que ocupavam os cargos de comando e do discurso

vigente nas universidades e institutos de pesquisa na França, à defesa das criticas recebidas

pelos remanescentes daquela concepção da pesquisa histórica, tanto quanto a de

profissionais vindos da antropologia e das ciências sociais; c) e um terceiro momento que se

iniciaria com os desdobramentos provocados pelos movimentos estudantis de 1968, nas

universidades francesas (e em outros países), ao trazerem a tona ‘novos sujeitos e fontes’ a

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pesquisa e ao discurso historiográfico. André Burguière (1993: 49-55), ainda que não

expressasse propriamente uma divisão no conjunto do movimento (embora tenha notado

mudanças sucessivas entre seus atores principais, no comando administrativo e intelectual

do grupo), vinculou-o a “escola dos Annales”: a revista criada em 1929; a rede de

intelectuais, colaboradores e simpatizantes, que se formou ao redor do periódico e se

transformou, depois da Segunda Guerra Mundial, em instituição universitária, com a VI

seção da Escola Prática de Autos Estudos em Paris; a concepção da história, nas suas

exigências metodológicas, seus objetos e suas relações com as outras ciências do homem.

José Carlos Reis (2000: 91-146), a partir das contribuições dos autores

mencionados acima, assim definiu as fases da ‘Escola dos Annales’: a) de 1929 a 1946, b)

de 1946 a 1968; c) e de 1968 a 1988 [?], período sob a influência inicial do movimento

estudantil de ‘maio de 1968’, que obrigou a reformulação da orientação da revista e a

reorganização institucional. Contudo, vislumbrou também o período que antecedeu a

criação do periódico, como um momento de formação do ‘espírito’ dos Annales, do que se

denominou, de forma genérica, como nouvelle histoire no campo intelectual francês e que,

depois dos anos 1950, desdobrou-se em outros países sob a forma de uma ‘Nova História’.

Para ele, depois de 1988, houve redefinições quanto às fronteiras da interdisciplinaridade e

uma revisão sobre os campos de pesquisa, que culminaram com a mudança no título do

periódico para ‘Annales. História, Ciências Sociais’, em 1994, mas esse momento do grupo

ainda não estaria muito bem definido.

Embora ainda estejam pouco definidas as fronteiras de atuação dos Annales, para

este período, os membros do grupo, dentre os quais, André Burguière, Jacques Le Goff e

Jacques Revel, participantes do comitê de direção da revista, pontuaram, no editorial de

1994, entre os objetivos do periódico: a) o estudo de processos de construção do

conhecimento e das relações sociais; b) e a análise do tempo atual. Foi Roger Chartier quem

ofereceu um painel bastante coerente sobre o clima dos estudos históricos anos antes do

redirecionamento da revista, com as seguintes palavras: O editorial da primavera de 1988 da revista Annales conclamava os historiadoresa uma reflexão a partir de uma dupla constatação (...) ele afirmava a existênciade uma ‘crise geral das ciências sociais’, percebida no abandono dos sistemasglobais de interpretação (...) o texto não aplicava à história a integralidade de umtal diagnóstico (...) A história era então vista como uma disciplina ainda sadia evigorosa, atravessada, no entanto, por incertezas devido ao esgotamento de suasaliadas tradicionais (como a geografia, a etnologia, a sociologia) e ao

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apagamento das técnicas de tratamento como modos de inteligibilidade quedavam unidade a seus objetos e a seus procedimentos (CHARTIER, 2002: 61).

Portanto, muitas foram às críticas subseqüentes sobre a terceira geração dos

Annales e a ‘Nova História’ (COUTAU-BEGARIE, 1989). Tais críticas – efetuadas desde a

década de 1960, quando ocorreu uma renovação no movimento, em relação aos seus

projetos – podem ser uma das razões para a necessidade da elaboração de um relato

fundador sobre a história dos Annales. Nesse período os combates do grupo foram mais

internos, provavelmente porque não houve uma linha mestra a ser seguida como nos

momentos anteriores, em função das direções centralizadoras (DOSSE, 2004). Um outro

motivo está atrelado com o próprio sucesso dos Annales dentro e fora da França, que veio a

criar a necessidade de elaboração de uma identidade comum ao grupo em todas as suas

fases: daí a denominação de diferentes gerações, daí também a construção da imagem de

uma ‘escola’ em constante processo de desenvolvimento. Ressaltava-se, nesse sentido: os

grandes debates travados pelos administradores do periódico, em suas diferentes fases; as

características do diálogo entre História e Ciências Sociais; os acontecimentos chave que

repercutiram na reorientação e no posicionamento do grupo perante o estudo dos homens e

das sociedades passadas e, enfim, a delimitação das abordagens que acompanhavam os

‘novos’ objetos e os ‘novos’ problemas, levantados a partir das próprias transformações

sociais, observadas pelos ‘novos’ historiadores, em suas pesquisas. (Quadro – 1).

Quadro n. 01: Distribuição das diferentes fases do movimento da Nouvelle Histoire francesa,representada pelos membros das diversas gerações da ‘escola dos Annales’.

1929-45 – 1ª Geração 1946-68 – 2ª Geração 1968 – 1988 (?) – 3ªGeração.

1988/9 (?) – 4ª Geração.

Principaisrepresentantes

Lucien Febvre (1878-1956)

Marc Bloch (1886-1944)

Fernand Braudel (1902-1985) Jacques Le Goff; MarcFerro; Emmanuel L. R.Ladurie.

Jacques Revel; AndréBurguière; Roger Chartier.

Colaboradores H. Pirenne; M. Halbwachs; H.Hauser; P. Monbeig; A.Demageon; etc.

E. Labrousse; P. Vilar; R.Mandrou; Ch. Mozaré; etc.

P. Nora; M. Vovelle; G.Duby; D. Roche; P.Chaunu; F. Furet; etc.

J-C. Schmitt; F. Hartog; M.Ozouf; R. Remond; etc.

Inspiradores/Discussões

Paul V. de La Blache;Ferdinand Saussure;Ch. Seignobos; Ch. Langlois;Emile Durkheim.

Claude Lévi-Strauss;Karl H. Marx;Maurice Dobb.

Michel Foucault; Michel DeCerteau;Paul Veyne; SigmundFreud; Jules Deleuse; LoisAlthusser; Nicos Polantzas;Phillipe Ariès; EricHobsbawm; Paul E.Thompson; Perry Anderson;Cornelius Castoriadis;Michele Perrot.

Pierre Bourdieu; Norbert Elias;Peter Burke; Louis Marin;Hayden White; CarloGinzburg; Geovani Levi; R.Willians; Lynn Hunt;

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Acontecimentos I e II Guerra Mundiais; Criseda bolsa de valores em 1929;Questionamentos sobre asFilosofias da História;

Congressos internacionais;Inauguração de centros depesquisa; avanços noscombates pela história;Discussões sobre as origens doCapitalismo;

Movimento estudantil de1968; Feminismo;Homossexualismo;movimento negro e dasminorias;

Queda do muro de Berlim em1989; Fim da URSS;Globalização;Questionamentos de regimespolíticos; conflitos religiosos;

Propostas História-problema; Históriatotal; Interdisciplinaridade;Alargamento do campo dasfontes históricas; O fatohistórico como construçãoteórica;

Simultaneidade de tempos(curto, médio, longo); Ahistória total é a história dascivilizações?

Um tempo imóvel nosocial?História Total ou HistóriaGeral?

Renovação do campo político; Debate sobre o estilo doHistoriador (narrativa);Revisão dos estudosbiográficos;

Novas Áreas História Econômica e Social;Geo-história;

História Econômica; HistóriaQuantitativa; HistóriaDemográfica; História Serial;

História das Mentalidades;História Imóvel; HistóriaAntropológica; HistóriaOral; História doImaginário;

Nova História Cultural;História das representaçõessociais; Nova História Política;Nova História Biográfica;

DisciplinasAuxiliares

Geografia; Sociologia;Psicologia; etc.

Economia; Geografia;Antropologia; etc.

Psicologia Social;Lingüística; CríticaLiterária; etc.

Títulos doPeriódico.

Annales de HistóriaEconômica e Social (1929-43)

Annales. Economias,Sociedades, Civilizações(1946-93)

Annales. História, CiênciasSociais (1994)

Fontes Documentos pessoais; Diários;Correspondências; FontesLiterárias; Censospopulacionais; FontesOficiais; etc.

Registros Paroquais(nascimentos, batismos,casamentos, óbitos)Registros Cartoriais(inventários, testamentos,nascimentos, casamentos,óbitos)Censos populacionais, etc.

EntrevistasLivros (historiografia)Censos populacioanais;Registros paroquiais eCartoriais; etc.

Fontes Literárias; Censoseleitorais; populacionais;Entrevistas; etc.

Fontes: DOSSE, 1994; REIS; 1994; 1999; 2000; BURKE, 1997; 2002; 1992; AGURRE ROJAS, 1999; 1995;BOUTIER & JULIA, 1998; FONTANA, 1986; HOBSBAWM, 1998; 2002; SILVA, 2001; STOJANOVICH,1976.

Com base no quadro acima se nota, de imediato, uma contradição entre o discurso

e a prática de pesquisa daquele grupo que dirigiu a revista Annales, depois de 1968, e que

está relacionada à própria história escrita por eles sobre o movimento (que envolveu

diversos grupos ao redor do periódico). Há em toda história dos Annales (que vai da criação

do periódico até seu momento atual) uma tradição de rupturas em meio a continuidades,

isto é, a substituição de discursos, de ‘uma geração’ sobre a outra ao se contraporem

posições, mas que se desdobra dentro de um mesmo projeto, construído, principalmente,

por Marc Bloch e Lucien Febvre. Ou seja, se na prática de pesquisa historiográfica dos

integrantes que compunham o grupo nos anos 1960 e 1970 existia uma crítica sobre a idéia

de progresso material, no relato sobre a história do movimento dos Annales a idéia de

progresso foi adequada naquele discurso, na medida em que a história da historiografia

referida por aqueles, desdobrava-se da ‘escola histórica alemã’ e da ‘escola metódica

francesa’ à ‘escola dos Annales’, até vir, enfim, culminar com a ‘Nova História’ francesa

dos anos 60 (SILVA, 2001).

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Por outro lado, quando se volta ao período inicial da revista, entre as décadas de

1930 e 40, nota-se (no pouco que é ainda conhecido da correspondência entre Lucien

Febvre e Marc Bloch) não uma afinidade total entre os editores e outros membros do grupo,

mas uma grande diversidade de pensamentos. Não menos controvertidas foram as relações

travadas entre Fernand Braudel e outros intelectuais colaboradores e críticos do movimento,

no período posterior a Segunda Guerra Mundial, bastando para tanto, apenas como um

exemplo entre outros possíveis, se verificar o clima amistoso entre Braudel e Robert

Mandrou depois da morte de Lucien Febvre, em 1956, no setor administrativo do periódico;

ou ainda entre os debates públicos de Braudel com Claude Lévi-Strauss.

Enfim, ainda existe a sobreposição de uma representação construída sobre o

grupo, aos fatos ‘vividos’ por aqueles que administraram o periódico em suas primeiras

fases. A tal ponto, que se passou a lembrar de Lucien Febvre, Marc Bloch, Fernand Braudel

e dos Annales daquele momento, a partir das obras escritas como uma referência aos

pioneiros e como uma forma de justificar as posições ulteriores do periódico. Portanto, as

obras que compuseram o relato ‘oficial’ sobre os Annales e que são a representação de

eventos e circunstâncias históricas precisas, atingiram um consenso relativo abrangente a

ponto de suplantar àqueles fatos precisos. Evidentemente existe a representação, mas não se

pode esquecer as circunstâncias históricas que lhe deram origem. Por que a representação

silenciou a história da qual ela se originou? Porque a história é escrita segundo relações de

força retórica e poder de ação (GINZBURG, 2002), e o poder emanado por aqueles que

falam de determinados lugares sociais, e que, portanto, são reconhecidos por seus pares, se

torna não apenas o discurso ‘oficial’, mas também, a própria história existente daquelas

circunstâncias e eventos do passado (CHAUVEAU & TÉTARD, 1999).

Alinha-se, desse modo, a idéia de ‘escola’ nos Annales, não apenas, uma

correspondência direta ao periódico criado em 1929, mas também, imagens, em torno das

quais, construiu-se sobre a direção da VI seção da Escola Prática de Autos Estudos que

estaria, desde, pelo menos, a década de 1940, envolvida sobre uma perspectiva

interdisciplinar, e, portanto, sendo um canal e um veículo de circulação das idéias

desenvolvidas no interior do grupo, em cada uma de suas diferentes fasesiii.

Todavia, se as circunstâncias históricas viabilizam o aparecimento de formas de se

escrever a história, ao mesmo tempo em que se questionava formas anteriores, deve-se

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notar, que por traz dos procedimentos de pesquisa anunciados como inovadores, existia

todo um projeto político, que não apenas procurava camuflar as contribuições de projetos

historiográficos anteriores, mas, muitas vezes, reduzir outras inovações que ocorriam de

modo simultâneo em outros países (DOSSE, 2003, 2004), na tentativa de criar uma

hegemonia nacional e internacional, no campo historiográfico.

Portanto, a história sobre o movimento dos Annales até agora conhecida foi à

história construída a partir daquele discurso historiográfico que se tornou hegemônico no

interior do grupo, na década de 1960, e que coexiste junto a uma história ainda pouco

conhecida sobre os Annalesiv. Pois, esta só virá a ser escrita na medida em que o período de

memória coletivav que ainda cerca o grupo se dissipar. Porque torna a escrita da história

ainda emotiva e comprometida com certas posições, por parte, essencialmente, dos

membros ainda vivos da ‘terceira geração’ e que, em alguns casos, continuam a ocupar

cargos administrativos importantes no periódico e na VI seção da Escola Prática de Autos

Estudos em Ciências Sociais. E mais, daí então, com a publicação de artigos, manuscritos e

correspondências trocadas entre os membros que compunham o movimento nas suas

primeiras fases, será viável a elaboração de outros relatos sobre a história dos Annales, e

que procurem, além de complementar os existentes, dar uma melhor compreensão sobre a

história do grupo em todas as suas fases, demonstrando os pontos convergentes e os

distanciamentos, entre a ‘história vivida’ pelas pessoas que fizeram parte do movimento,

nas duas primeiras ‘gerações’, junto à ‘terceira geração’ que passou a escrever a ‘história

conhecimento’ a respeito dos Annales.

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1 . Segundo José Carlos Reis (1994), a História sob a influência das Ciências Sociais produziu uma terceira

revolução na compreensão do tempo histórico. A primeira havia sido feita pela cristandade ocidental, ao

criticarem a concepção circular dos gregos e delimitarem linearmente a interpretação do tempo, com um

passado e um futuro organizados segundo um projeto político, fundamentado numa filosofia da história. A

segunda foi produzida pelos filósofos iluministas, no século XVIII, ao criticarem a religião e a fé e

secularizarem a sua concepção, embora tivessem mantido uma interpretação linear do tempo, na

compreensão que faziam do progresso material. No inicio do século XX, houve uma terceira revolução na

interpretação do tempo histórico, produzida sistematicamente pelo grupo dos Annales, ao criticarem a

abordagem ‘acontecimental’ e a postura das ‘filosofias da história’ (por projetarem perspectivas

teleológicas), com uma abordagem estrutural dos acontecimentos, a partir de uma história problema, que

recebia influências e mantinha intercâmbios com as Ciências Sociais.

2 . Tradução: “Em meados de [19]30, os Annales de Marc Bloch e de Lucien Febvre sofreram uma mudança

excepcional. Eles também encontraram dificuldades excepcionais. A morte trágica de Marc Bloch em 1944;

a morte brusca de Lucien Febvre [em 1956]. Mas os Annales continuaram se desenvolvendo... Nem Marc

Bloch, nem Lucien Febvre tiveram a vontade ou a ilusão de fundar uma escola, com suas fórmulas e suas

soluções.”

3 . Segundo Josep Fontana: “A escola dos Annales teve uma função renovadora importante nos anos que se

seguiram a Segunda Guerra Mundial. A viragem que Lucien Febvre havia realizado para facilitar a

sobrevivência da revista nos tempos da ocupação alemã a preparou para entrar no mundo do pós-guerra

como uma opção que tinha um prestígio progressista, mas que havia eliminado claramente as marcas do

marxismo. Foi a partir do momento do seu acesso ao ‘poder’ na seção VI da École Pratique des Hautes

Études que os homens dos Annales, dirigidos por Lucien Febvre, encontraram, desde 1947, um instrumento

de projeção, nos cursos que contaram com a participação de Febvre, Labrousse, Braudel, Leroi-Gourhan,

Page 56: A Historiografia Contemporânea e seus Domínios: deslocamentos e mutações. Tempos Históricos, Unioeste, 2005

Lévi-Strauss, Raymond Aron, Barthes, Bourdieu, Derrida, Le Goff, Taton, Pierre Vilar... Ernest Labrousse,

com seu propósito de combinar o estudo das estruturas e das conjunturas, e Fernand Braudel, com seu

modelo de encadeamento de ritmos temporais distintos, deram à escola a base teórica para o cultivo de uma

história social adequada às demandas do momento, cujo efeito foi plenamente aceitável nos anos da guerra

fria, durante os quais pôde ser vista como uma substituta do marxismo” (FONTANA, 1998: 8-9).

4 . De acordo com a tese de Paul Veyne (1998) – em Como se escreve a história – segundo a qual não existe

a ‘História’, mas sempre ‘histórias de...’, ou seja, quando aquele autor se pergunta: o que é a história,

segundo a construção do discurso do historiador, que seleciona não tudo o que ocorreu no passado, mas os

fragmentos que dele restou e pôde consultar, portanto, a história escrita pelo historiador não é a ‘História’,

‘que só poderia ser escrita por Deus’, mas simplesmente, histórias possíveis, isto é, ‘histórias de...’.

5 . Para Maurice Halbwachs (1990), a memória coletiva resulta de um quadro histórico de uma época. É uma

construção social que dá sentido a identidade de um grupo de pessoas, que ao mesmo tempo estão limitadas

as circunstancias sociais de sua época, e por isso entendem aquela história rememorada como ‘real’; sendo

esses atores sociais resultados e resultantes daquela atmosfera psicológica que construiu suas personalidades

individuais.

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Deslocamentos e mutações na Historiografia Contemporânea – a Biografiae outros campos históricos13

José D’Assunção Barros14

RESUMO

Este artigo busca esclarecer e discutir alguns aspectos relacionados às diversasmodalidades da História, criticando os critérios que presidem estas divisões historiográficase sintetizando uma visão panorâmica dos vários campos em que se divide o conhecimentohistórico nos dias de hoje, particularmente no que se refere às divisões historiográficas quedenominaremos “domínios”. Entre outros domínios possíveis, enfatizamos no texto odomínio da Biografia Histórica. Ao lado disto, são discutidos ainda aspectos diversos,incluindo os objetos, fontes e abordagens mais comuns a cada um dos campos aquidiscutidos. Palavras-chave: Campos da História, metodologia da historia; escrita da história,Biografia.

ABSTRACT

This article attempts to clarify and discuss some aspects related to the modalities ofHistory, criticizing the categories in which ones these modalities are elaborated, andorganizing a panoramic view of the various fields in which ones the historical knowledge isdivided nowadays. Among others, the article emphasizes the domain of the HistoricalBiography. Otherwise, the aspects to be discussed are diverse, and include the objects,sources and approaches more common in the fields presented here. Key Words: Fields of History, historical methodology; historical writing, Biography.

A História, nos dias de hoje, divide-se em inúmeras modalidades. Ouve-se falar em

História Cultural, em História das Mentalidades, em História do Imaginário, em Micro-

História, em História Serial, em História Quantitativ... o que define estes e outros campos?

Em obra recente, tivemos por objetivo central precisamente o esclarecimento destas várias

modalidades do saber histórico, discutindo suas singularidades, suas interpenetrações umas

13 O presente artigo remete, como referência principal, a um livro publicado recentemente pelo autor, e que serefere a um estudo das várias modalidades da História. BARROS, José D’Assunção. O Campo da História –Especialidades e Abordagens, Petrópolis: Vozes, 2004, 222 p.14 Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF); Professor da Universidade SeverinoSombras (USS) de Vassouras, nos Cursos de Mestrado e Graduação em História, onde leciona disciplinas ligadasao campo da Teoria e Metodologia da História. E-mail: [email protected]

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com as outras, suas relações interdisciplinares, suas fontes e objetos privilegiados (BARROS,

2004).

A tese central daquele trabalho é a de que existem três grandes grupos de critérios que

presidem a divisão da História em modalidades mais específicas, e a de que muito da confusão

sobre o que é uma sub-especialidade ou o que é outra, ou sobre como enquadrar uma dada

obra neste complexo caleidoscópio de sub-especialidades que coincide com o campo

disciplinar da História, está no fato de que algumas coletâneas de balanceamentos

historiográficos misturam inadvertidamente critérios de classificação sem alertar devidamente

o leitor, que acaba perdendo a oportunidade de desenvolver uma maior clareza sobre a rede de

modalidades que organiza o pensamento historiográfico na atualidade.

A chave para compreender estes vários campos da História, conforme a argumentação

que desenvolvemos na referida obra, está em distinguir muito claramente as divisões que se

referem a dimensões (enfoques), as divisões que se referem a abordagens (ou modos de fazer

a História), e as divisões intermináveis que se referem aos domínios (áreas de concentração em

torno de certas temáticas e objetos possíveis).

Para registrarmos algumas exemplificações, podemos dizer que o primeiro grupo de

critérios que gera divisões internas na disciplina histórica e que se refere ao que chamamos de

dimensões corresponde àquilo que o historiador traz para primeiro plano no seu exame de uma

determinada sociedade: a Política, a Cultura, a Economia, a Demografia, e assim por diante.

Desta maneira, teríamos na História Econômica, na História Política, na História Cultural ou

na História das Mentalidades campos do saber histórico relativos às dimensões ou aos

enfoques do historiador. Um historiador cultural, por exemplo, estuda os fatos da cultura; um

historiador político estuda o poder nas suas múltiplas formas; um historiador demográfico

orienta o seu trabalho em torno da noção que lhe é central de “população”.

Um segundo grupo de critérios para estabelecer divisões no saber histórico é o que

chamamos de abordagens, referindo-se aos métodos e modos de fazer a História, aos tipos de

fontes e também às formas de tratamento de fontes com os quais lida o historiador. São

divisões da História relativas a abordagens a História Oral, a História Serial, a Micro-História

e tantas outras. A História Oral, por exemplo, lida com fontes orais e depende de técnicas

como a das entrevistas; a História Serial trabalha com fontes seriadas – documentação que

apresente um determinado tipo de homogeneidade e que possa ser analisada sistematicamente

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pelo historiador. A Micro-História refere-se a abordagens que reduzem a escala de observação

do historiador, procurando captar em uma sociedade aquilo que habitualmente escapa aos

historiadores que trabalham com um ponto de vista mais panorâmico, mais generalista ou

mais distanciado.

Por fim, podemos pensar divisões da História que chamaremos de domínios, e que se

referem a campos temáticos privilegiados pelos historiadores. O objetivo deste artigo será

precisamente o de refletir sobre os vários domínios da História que têm surgido e desaparecido

no horizonte de saber desta complexa disciplina que é a História. Estamos falando de

domínios quando nos referimos a uma História da Mulher, a uma História do Direito, a uma

História de Sexualidade, a uma História Rural, ou a uma História da Vida Privada.

Tentaremos esclarecer a seguir este grupo de critérios.

Os domínios da História são na verdade de número indefinido. Alguns domínios

podem se referir aos ‘agentes históricos’ que eventualmente são examinados (a mulher, o

marginal, o jovem, o trabalhador, as massas anônimas), outros aos ‘ambientes sociais’ (rural,

urbano, vida privada), outros aos ‘âmbitos de estudo’ (arte, direito, religiosidade,

sexualidade), e a outras tantas possibilidades. Os exemplos sugeridos são apenas indicativos

de uma quantidade de campos que não teria fim, e qualquer um poderá começar a pensar por

conta própria as inúmeras possibilidades.

Tal como dissemos, os critérios de classificação que estabelecem domínios da História

referem-se primordialmente às temáticas (ou campos temáticos) escolhidas pelos

historiadores. São já áreas de estudo mais específicas, dentro das quais se inscreverá o objeto

de investigação e a problemática constituídos pelo historiador.

A maioria dos domínios históricos presta-se a historiadores que trabalham com

diferentes dimensões históricas, e certamente às várias abordagens. Mas existem domínios

que têm muito mais afinidade com uma determinada dimensão, dada a natureza dos temas por

eles abarcados. Assim, a História da Arte ou a História da Literatura são praticamente sub-

especialidades da História Cultural (embora se deva chamar atenção para uma História Social

da Arte, ou uma História Social da Literatura, que não deixam de ser possibilidades dentro da

História Social).

De modo análogo, um domínio como o da História das Imagens (entendida como

história das imagens visuais obtidas a partir de fontes iconográficas, fotográficas, etc) é quase

Page 60: A Historiografia Contemporânea e seus Domínios: deslocamentos e mutações. Tempos Históricos, Unioeste, 2005

que um anexo da História do Imaginário. Mas, bem entendido, uma série de imagens visuais

tomadas como fontes históricas sempre poderá dar a perceber qualquer das dimensões que

discutimos atrás, como a História Econômica, a História Política, a Geo-História ou a História

da Cultura Material. Pense-se em uma iluminura de Livro de Oras, [Horas] da qual o

historiador lança mão para perceber aspectos da economia rural no ocidente medieval, as suas

representações políticas, as relações do homem medieval com o seu meio natural ou traços de

sua cultura material; ou pense-se em uma pintura impressionista utilizada para captar aspectos

da História Social na Belle Époque; ou ainda nas cerâmicas gregas utilizadas para levantar

aspectos da História Política da Atenas da Antigüidade Clássica. Mas de uma maneira ou de

outra, em todos estes casos sempre estará ocorrendo um diálogo evidente da História do

Imaginário com uma destas outras dimensões.

Também a História das Representações, por motivos análogos, sempre terá intimidade

com o campo definido como História do Imaginário, embora também se abra a uma História

das Mentalidades. Já a História do Cotidiano, ou a História da Vida Privada, abrem-se a

inúmeros campos de enfoques para além da História das Mentalidades, como a História da

Cultura Material, a História Social a História Econômica ou a História Política (neste último

caso, focando a questão dos micropoderes). Raciocínios similares podem ser encaminhados

para outros domínios igualmente abertos, como a História das Religiões ou a História da

Sexualidade.

Conforme estamos vendo, os domínios tendem a ser englobados por uma dimensão

(são poucos os casos) ou então partilhados preferencialmente por duas ou mais dimensões.

Mas é possível ainda que algum campo que hoje esteja sendo tratado como ‘domínio’, mas

que possua uma abrangência em potencial, possa vir a transformar-se futuramente em uma

‘dimensão’. A História da Sexualidade tem sido pouco estudada em relação à importância da

sexualidade para a vida humana na concretude diária, e é talvez isto o que lhe dá um status de

domínio. Mas seguramente esta poderia ser vista como uma dimensão tão fundamental como a

Economia, a Política ou as Mentalidades. O que ocorre é que estas não apenas são dimensões

significativas que definem a vida humana, elas constituem na verdade ‘macro-campos’, ou

tornaram-se ‘macro-campos’ devido à atenção que lhes prestaram os historiadores e outros

pensadores.

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As dimensões, deve-se ter percebido, são sempre macro-campos capazes de se

desdobrar em ambientes internos, de produzir interfaces mais diversificadas, e de darem

margem a um número significativo de obras historiográficas. Além disto, para nos

apropriarmos de uma imagem de Fernando Braudel utilizada com um sentido totalmente

distinto, as dimensões correspondem ao leito do rio, mais perene e abrangente, que só muda

muito lentamente; e já os domínios correspondem às espumas que se fazem e refazem na

duração mais curta da superfície, por vezes atendendo a tendências da moda ou a movimentos

de ocasião (É verdade, contudo, que há domínios extremamente duradouros, conforme

veremos oportunamente).

Voltando ao problema de a História da Sexualidade ser atualmente um domínio

histórico, e não uma dimensão histórica de acordo com o critério que operacionalizamos neste

ensaio, há algo ainda a ser dito. É claro que um novo giro do caleidoscópio historiográfico

pode mudar um dia isto, e a Sexualidade poderá então passar a ser apreendida como

‘dimensão’ historiográfica, inspirando tantas obras como a História Demográfica ou a História

Econômica. Mas por ora ela está apenas nos seus primórdios, mesmo que o seu potencial em

extensão e capacidade de desdobramentos seja inegável – e para confirmar isto basta lembrar

que a primeira História da Sexualidade, definida como uma dimensão mais ampla, foi escrita

por Michel Foucault há alguns anos atrás (FOUCAULT, 1977-1985), sem que haja muitas

experiências no gênero.

O giro do caleidoscópio historiográfico, enfim, ocorre em consonância com as

motivações de uma época, com as suas necessidades sociais, com as suas nem sempre

perceptíveis imposições políticas, com a sua capacidade de colocar determinados problemas

(que geralmente ocorre quando esta sociedade tem a capacidade de resolvê-los, conforme já se

disse alhures).

No século XIX, os historiadores praticamente só prestavam atenção à ‘dimensão

política’, e assim mesmo em um pequenino traço da dimensão política. Marx e Engels

começaram a atentar para a dimensão econômica, mas também para a dimensão social. Os

Annales, no século XX, reforçaram este olhar pioneiro, no que logo foram acompanhados por

todos os historiadores que quiseram acompanhar o movimento da modernidade, isto é, o giro

do caleidoscópio historiográfico. Depois os olhares dos historiadores foram se voltando

sucessivamente para a Demografia, para a Cultura Material, para a Geo-História, para as

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Mentalidades, para a Cultura. Nada impede, podemos prever, que novas dimensões apareçam

nos horizontes historiográficos das próximas gerações (ou que um domínio migre para o

campo mais abrangente das dimensões) e a Sexualidade pode ser uma forte candidata.

Voltando ao campo de critérios que estamos categorizando como domínios, podemos

dizer que também existem aqueles domínios que se conservam como setores mais limitados,

ou sob estrita vigilância da racionalidade científica, em função de interditos não declarados.

No moderno mundo laico e tendente a uma ciência materialista, por exemplo, a

Espiritualidade só pode ser um domínio. É difícil que venha a ser reconhecida como uma

dimensão historiográfica da vida humana enquanto persistir a atual tendência paradigmática de

organizar os saberes científicos. Fora dos ambientes científicos e acadêmicos, contudo, grande

parte dos seres humanos acredita ou movimenta-se nisto que eles definem como

espiritualidade, inclusive os cientistas. Mas para a Ciência oficial de hoje em dia, este

território é por demais ambíguo, avesso a comprovações ou experiências mais diretas. O

resultado é que se tem um domínio como a ‘História Religiosa’ – que pode se desdobrar em

histórias dos sistemas religiosos, das Igrejas, das formas espiritualizadas de sentir ou das

crenças – mas não uma ‘dimensão historiográfica’ Religiosa ou da Espiritualidade, com o

mesmo status científico e gerando tantos desdobramentos como a Economia ou a Política. Em

suma, com a História da Igreja poderemos ter a história de uma instituição, com a História da

Religião ou das crenças religiosas poderemos ter a história de uma representação, com a

História das práticas religiosas (ou da religiosidade stricto sensu) poderemos ter a história de

uma prática ... mas a História Religiosa definida dimensionalmente da mesma maneira como

se define a História Política ou a História Cultural não existe nos atuais parâmetros

disciplinares da historiografia.

Até aqui falamos dos domínios históricos que se referem a âmbitos (Arte, Sexualidade,

Religiosidade, Representações). Conforme definimos antes, existem outras categorias

definidoras de domínios históricos que se referem a agentes históricos específicos (História da

Mulher, História dos Excluídos), ou a determinados ambientes sociais (História Rural,

História Urbana). Naturalmente que, em um caso ou outro, teremos domínios que se prestam a

todos os enfoques (dimensões) possíveis – da História da Cultura Material à História das

Mentalidades. Os ‘excluídos’ podem ser historiados com a atenção voltada para as

Mentalidades, como fez Bronislaw Geremek, com a atenção voltada para a Economia, como

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fez Kula, ou com a atenção voltada para a Cultura, como fez Thompson, ou com a atenção

voltada para o Social, como fez Michel Mollat. A História Urbana ou a História Rural podem

ser avaliadas a partir de enfoques direcionados para cada uma das dimensões que já foram

mencionadas neste livro, da Cultura Material às Mentalidades – afinal, estes domínios são

rigorosamente ambientes menores dentro do mundo humano que não deixam de ser unidades

totalizantes (são mundos humanos específicos, que podem ser examinados na totalidade de

seus aspectos).

Vale lembrar também que existem os domínios que são aparentemente sub-campos de

um domínio maior. A História das Doenças poderia ser inscrita em uma História do Corpo. A

História da Prostituição poderia ser inserida na História dos Excluídos (embora em alguns

aspectos também possa ser incluída na História da Sexualidade). A História da Criança, da

maneira como têm funcionado até hoje as nossas instituições familiares, poderá ser inscrita

sem maiores dificuldades em uma História da Família. Tudo isto, por outro lado, ficará bem se

englobado por uma História da Vida Privada.

Para além disto, são inúmeros os domínios que se enquadram opcionalmente como

sub-campos em mais de um domínio mais abrangente, ou que se localizam nos interstícios

situados entre dois ou mais outros domínios. A História da Medicina, enquadrar-se-á na

História das Ciências, na História dos Sistemas de Pensamento ou dos sistemas repressivos

(como propôs Michel Foucault) ... estará em afinidade com os já mencionados domínios da

História das Doenças ou da História do Corpo? Incluirá como subconjunto a História da

Clínica? Temos nestes e em tantos outros casos um entrelaçado de domínios históricos,

abrindo espaços por dentro do labirinto do saber historiográfico.

Poderemos também desviar um pouco do campo da historiografia profissional, para

vislumbrar este universo ambíguo e limítrofe que espreita o saber histórico, mas que também

chama a si de História (e quem poderia convencê-los, aos seus cultuadores, de que não temos

aí também uma História, tão legítima como as outras?). Existem assim aqueles domínios que

são tão pontuais que praticamente se confundem com um objeto único, não faltando entre eles

aqueles que beiram o absurdo e que aparentemente poderiam ser inscritos em um campo novo

que poderia ser ironicamente denominado de História das Futilidades. Pense-se na História

dos Perfumes, na História das Nádegas, na História do Estupro, ou em uma História do

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Onanismo, curiosidades que mereceram edições recentes, e que por vezes passam longe da

historiografia profissional feita com maior seriedade.

Os domínios da História, enfim, multiplicam-se. Para o bem e para o mal, a

criatividade dos historiadores sempre poderá organizar mais e mais campos, prontos a

acolherem novos objetos ou a receberem no seu seio objetos antigos, deslocados com um novo

propósito. O grupo dos ‘domínios’ é a parte mais móvel, mais flutuante, mais diversificada e

intercambiante do caleidoscópio historiográfico (com o perdão da insistência nesta metáfora).

Assim, enquanto as dimensões costumam sofrer alterações em uma duração mais longa (que

às vezes pode ser medida em décadas); as abordagens costumam surgir, alterar-se ou serem

desativadas com uma rapidez maior, cumprindo uma espécie de média duração; já os

domínios, por fim, surgem e desaparecem com a rapidez da curta duração, às vezes

perseguindo ditames da moda e caindo para segundo plano tão logo se saturam.

*

Neste momento passaremos a falar de um domínio, que é na verdade um gênero. A

Biografia pode ser tanto encarada como um domínio ou como uma abordagem (neste último

caso, um ‘campo de observação’ ou um ‘meio’ para alcançar uma História Social ou para

realizar um trabalho de Micro-História). Como ‘domínio’, praticamente se confunde com este

‘gênero’ historiográfico ou literário que já é conhecido desde a Antigüidade. Se for possível

situar a Biografia como domínio, ela será talvez o único domínio tão perene e duradouro

quanto a própria História – pois, ao que se sabe, os homens de todas as épocas sempre foram

freqüentadores assíduos deste fascinante campo de estudos que poderia ser chamado de

“História das Vidas Humanas”.

A velha pergunta, que indaga se uma biografia é História ou Literatura, certamente

jamais será respondida de maneira única e definitiva. Com algumas variações, é uma

indagação tão antiga quanto o gênero, e que desde a Antigüidade desperta polêmicas tão

acirradas como hoje. Políbio pretendeu demarcar bem a fronteira: a História devia buscar a

síntese, a sobriedade do estilo, o registro da verdade desvencilhado da ornamentação ilusória;

a Biografia poderia investir na narrativa dramatizada, possuir um estilo mais livre e

conseqüentemente um compromisso menor com a verdade. Por outra parte, acreditando que o

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que havia de mais verdadeiramente humano escondia-se precisamente na alma individual,

Plutarco dedicou-se por inteiro a este gênero que havia sido desprezado por Tulcídides. Na

verdade, praticamente inventou um novo gênero: a biografia comparada, ou o que ele chamou

de “vidas paralelas”.

A polêmica atravessa a Idade Média, o Renascimento, todo o período moderno e atinge

a Idade Contemporânea. Mas a partir da terceira década do século XX, o novo modo de fazer a

História – doravante reconhecido como o paradigma a orientar a historiografia profissional –

passa à tendência de rejeitar este gênero que estivera em alta na historiografia do século XIX.

Os historiadores profissionais já não o discutem: a Biografia é banida para um limbo – para

um espaço especial entre a História e a Literatura que será pouquíssimo freqüentado pelos

historiadores acadêmicos. E, apesar disto, a despeito do desprezo dos historiadores

profissionais de novo tipo, talvez nunca tenham sido escritas tantas biografias como neste

século. Literatos e diletantes invadem prazerosamente este antigo domínio historiográfico,

abandonado pelos pregadores dos Annales e dos novos marxismos da primeira metade do

século XX.

Mas a partir das últimas décadas do século XX, depois das quatro décadas de

quarentena, os historiadores profissionais retomam o gênero. De novas maneiras, eles dirão.

Agora os mais variados sujeitos históricos merecem ser biografados: não apenas os heróis e as

grandes individualidades políticas, mas também os indivíduos anônimos que jamais sairiam

dos arquivos empoeirados se de lá não os tivessem arrancado os historiadores – um moleiro

herético, um padre exorcista de segundo plano, um impostor que se faz passar por um marido

desaparecido até ser desmascarado, e que carrega em sua própria vida um enredo tão

novelesco que se tornou matéria prima para uma produção cinematográfica.

São estes os novos biografados da Micro-História (se é que é possível chamar de

“biografia” a uma prática que não pretende se concentrar no indivíduo examinado em si

mesmo, mas apenas se valer dele para examinar o seu ‘em torno’). De fato, a estes indivíduos

cuidadosamente escolhidos, a Micro-História pretende tratá-los como pequenos fragmentos

privilegiados para através deles perceber realidades mais amplas, ou pelo menos para estudar

problemas históricos ou sociais específicos. Do moleiro herege, como já vimos anteriormente,

Carlo Ginzburg almeja perceber algo sobre as trocas culturais, sobre o diálogo de culturas que

transparece através dos detalhes de um processo de Inquisição (GINZBURG, 1989). Do

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impostor que toma o lugar do marido de uma obscura camponesa do século XVI, a

historiadora Natalie Davis (1987) extrai um diversificado panorama da vida camponesa de sua

época, do seu cotidiano aos seus modos de sentir. Do padre exorcista, o micro-historiador

italiano Giovanni Levi (2000) pretende extrair variados elementos para a compreensão da

economia das sociedades rurais do Antigo Regime, das suas hierarquias sociais e estratégias

de ascensão e enriquecimento, dos saberes mágicos oriundos da cultura popular, do

imbricamento destes saberes mágicos com a medicina taumatúrgica daqueles meios rurais.

Tal como nos ensinam estes exemplos, deve-se ter sempre em vista que o interesse

micro-historiográfico no estudo de caso ou no fragmento de vida que se examina é conquistar

um acesso a aspectos que, embora não visíveis a uma primeira aproximação, têm uma

existência real e cujo desconhecimento comprometeria a efetiva compreensão de um problema

mais geral. Giovanni Levi, em entrevista concedida em Costa Rica, oferece como exemplo o

clássico problema das “migrações” (2002). Se queremos ultrapassar o questionamento

meramente quantitativo (quantos migram?), deveremos começar a fazer a pergunta certa:

“quem migra?”. Enquanto a pergunta sobre quantos migram pode não ser uma pergunta

necessariamente interessante para o historiador (ela pode mesmo, se ficar nisso, dar uma

imagem totalmente distorcida do problema), já as perguntas “quem migra?” e “quem não

migra?” tornam-se necessárias em todos os casos. Mas para começá-las a responder é preciso

descer às vidas. É preciso ir, por exemplo, ao âmbito da família, aos ciclos da vida familiar, às

redes de solidariedades locais. Um caminho, poderíamos acrescentar, seria o de seguir o

indivíduo no interior de suas trajetórias familiares e comunais. “Biografar” talvez não fosse a

palavra exata para este estudo de uma vida com objetivos bem definidos, mas como não existe

um verbo substituto poderemos empregá-lo sem maiores problemas.

Tal como assinala Levi, é aqui que entra o problema fulcral da ‘escala de observação’,

empregada não como uma redução por si mesma, mas como uma redução de escala que visa

uma finalidade específica – a de examinar um problema mais geral, mais extensivo. Deve-se

ter uma consciência especial do que significa aqui “generalizar”. Generalizar para a Micro-

História não é “equalizar”, ou reduzir a complexidade. Para o micro-historiador, generaliza-se

nas perguntas, mas não nas respostas. Admitir a riqueza e a complexidade da vida humana não

impede, contudo, a possibilidade de alcançar uma extensão maior no conhecimento essencial a

respeito da vida social. Retomando a metáfora do microscópio proposta por Levi, examina-se

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o “micróbio” não para entender propriamente o micróbio, mas sim para entender a

enfermidade:

“En este sentido, la discusión de la reducción de escala es fundamental.Es imposible estudiar al microbio sin el microscopio. El microbio puedematar, como puede ser el caso de la peste bubónica, pero si no lo observasa través del microscopio no puedes entender cómo se causa la peste. Alpercibir el microbio puedes generalizar y entender la enfermedad” (LEVI,2000).

Esta colocação é fundamental, pois contribui para desfazer determinados mal-

entendidos a que já nos referimos antes. Conforme alerta Giovanni Levi, muitos pensam que a

Micro-História significa estudar coisas pequenas, mas na realidade ela analisa coisas grandes:

“muchos italianos piensan que micro historia es historia local, debo decir queesto es una locura total. Para ellos uno puede estudiar una comunidad o lahistoria de una persona, a lo mejor alguien con un mal patológico y presentan sutrabajo como micro histórico sin serlo. Justamente, un amigo mío, unhistoriador español, Jaime Contreras, ha llamado a esa historia, la historiabasura. Me parece que hay que diferenciar entre micro historia y la historiabasura, o la historia pequeña que no es interesante por que no es generalizable.Es decir aquella micro historia que busca a través del microscopio las formas”(LEVI, 2000).

O que podemos extrair da entrevista de Levi para a compreensão destas “biografias” de

novo tipo é bastante claro: não se trata de estudar qualquer pessoa por qualquer motivo.

Estuda-se através de uma vida com vistas a enxergar mais longe, mais profundo, mais

densamente, de maneira mais complexa, ou porque o estudo desta vida permite enxergar a

vida social em sua dinamicidade própria, não excluindo os seus aspectos caóticos e

contraditórios. O “indivíduo qualquer” é um “qualquer” cuidadosamente escolhido (estamos

muito longe da prática da amostragem). Escolhemo-lo porque ele nos dá acessos aos

problemas que nos interessam, ou porque as fontes em torno deste indivíduo concentraram-se

de determinada maneira. Podemos estudá-lo por ele ser “demasiado comum” ou por ele ser

estranhamente incomum, não importa. As perguntas que faremos a esta ou àquela vida é que

nos dirão se a escolha é menos ou mais adequada.

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Outro aspecto remarcável é que a vida a ser escolhida pelo micro-historiador não se

desenvolverá de maneira autônoma, “biográfica” no mal sentido. Ela ocorre no interior de uma

configuração relacional. Micro-historiadores como Giovanni Levi têm procurado trabalhar de

maneira muito específica com o conceito de “configuração social”. A configuração social não

é feita de coisas ou aspectos imobilizados, mas sim de relações que envolvem todos os seus

protagonistas. Quando modificamos algum de seus elementos, modificamos a totalidade das

relações.

Esta noção é muito importante para compreender o modo como o micro-historiador

trabalha o gênero biográfico. Uma vida não existe por si mesma, suspensa teleologicamente e

tendente a um destino, de modo que o que ocorre em torno são personagens coadjuvantes e

situações de apoio que apenas confirmam ou reforçam os caminhos mais ou menos autônomos

desta vida. Não existem propriamente as vidas coadjuvantes, pois todas elas desempenham um

determinado papel na configuração relacional mais ampla. Posso tomar um “biografado”

como ponto focal, mas ele não se destaca de forma alguma do meio em que vive, da

configuração social dentro da qual ele estabelece múltiplas relações. Por isto, o micro-

historiador está atento a tudo: um pequeno ponto pode ser importante para dar um sentido

maior a uma determinada configuração social. Quando se estuda o indivíduo, estuda-se a sua

comunidade, a sua localidade, ou, conceitualmente falando, a sua configuração social –

mesmo que se tenha escolhido o caminho metodológico de acompanhar uma trajetória

individual, neste caso necessariamente imbricada e inter-relacionada com outras trajetórias. É

neste sentido que, conforme assinalamos atrás, a Biografia torna-se para o historiador uma

‘abordagem’, e não um ‘domínio’ ou um mero gênero. Ela é o meio escolhido pelo historiador

para compreender uma determinada configuração social.. Um caminho para fora, e não para

dentro da vida do indivíduo.

Por fim, algo que costuma distinguir algumas das biografias que são produzidas no

âmbito da macro-história tradicional das produzidos no seio da abordagem micro-

historiográfica é que, neste último caso, procura-se enxergar mais de perto a liberdade dos

indivíduos no interior dos grandes sistemas normativos que o envolvem. Como indica

Giovanni Levi na entrevista atrás mencionada, “o poder deixa sempre uma margem de

liberdade, uma margem que cria uma ‘intersticialidade’ e a possibilidade de mover-se entre as

contradições dos sistemas normativos”. O indivíduo não é inteiramente determinado de fora,

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nem constrangido sem margens de ação pelo sistema que o envolve. Não se trata de resgatar

aqui o antigo modelo do século XIX para a biografia dos grandes indivíduos, onde estes

moviam a História com a força do seu gênio e da sua ação. Mas não se trata também de cair no

modelo oposto, da sobredeterminação absoluta, que move o indivíduo ou que o constrange de

maneira imperiosa. As pesquisas em Micro-História têm levado precisamente à percepção das

estratégias que os indivíduos desenvolvem nos sistemas que os comprimem, à compreensão

das suas negociações, da sua inventividade realizada através da vida cotidiana e das práticas

sociais.

De uma maneira geral, é o que se poderia dizer a respeito da abordagem micro-

historiográfica da Biografia. Com relação às fontes apropriadas para estas biografias de novo

tipo (ou para estes estudos micro-historiográficos de vidas anônimas) são freqüentemente

processos criminais, inquéritos, registros da inquisição – documentos que têm por

característica proeminente o rastreamento obsessivo e rigoroso de detalhes, a exposição de

contradições reveladoras, o registro de minúcias, de tudo o que possa incriminar ou absolver,

expor o réu na tentativa de tornar transparentes os seus pensamentos, os seus hábitos, o seu

cotidiano mais inconfessável. Usam-se também os diários íntimos, as correspondências

pessoais, os livros de notas que geralmente só aparecem nos períodos menos recuados (a não

ser para o caso de pessoas com um mínimo de notoriedade), e que também fornecem

flagrantes excepcionais pelo simples fato de que em geral não foram escritos com a intenção

de serem lidos senão pelo seu próprio autor, ou no máximo por um interlocutor para o caso

das correspondências.

Para registrar exemplos brasileiros de estudos biográficos elaborados de acordo com os

parâmetros da Micro-História, poderemos citar a biografia de Luiz Mott sobre Rosa

Egipcíaca, uma ex-escrava do Brasil Colonial (1992), ou a obra de Eduardo Silva intitulada

Dom Obá II D’África, o Príncipe do Povo: vida, tempo e pensamento de um homem livre de

cor (1997). Este último utiliza o estudo de caso em torno de uma trajetória individual para

apreender precisamente o cotidiano dos ex-escravos na transição do antigo sistema colonial-

escravocrata para o âmbito capitalista, fundado exclusivamente nas relações de inclusão e

exclusão em torno do trabalho assalariado – este mundo que tem significativas dificuldades de

acolher os egressos do sistema antigo. Trata-se de perceber, através deste fragmento que é uma

vida humana, não apenas o cotidiano do grupo social de ex-escravos na passagem para o novo

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século, mas também a sua ambiência mental e as relações com os demais grupos sociais. Na

verdade, o “biografado” é escolhido precisamente por ser um ponto fulcral para a percepção

destas relações, já que se apresenta como uma espécie de ponte mediadora entre elementos dos

novos grupos dominantes e os ex-escravos que a custo vão sendo absorvidos pelos novos

regimes de produção, quando não permanecem à margem.

Para além das biografias de indivíduos sem importância política em sua época, e que

por isto mesmo se tornam reveladores de aspectos que não poderiam ser percebidos através

das fontes tradicionais, também retornam nas últimas décadas do século XX as biografias de

indivíduos ilustres. Jacques Le Goff biografa São Luís (1999) e escreve artigos sobre São

Francisco de Assis (2001); Georges Duby constrói uma narrativa em torno da vida de

Guilherme Marechal (1988), com o fito de compreender a vida cavaleiresca na Idade Média;

Christopher Hill, com O Eleito de Deus (1970), aborda a vida de Oliver Cromwell (2001).

Agora, estes indivíduos que foram proeminentes nas suas épocas oferecerão suas vidas

não para o enaltecimento de sua memória ou para o deleite de leitores interessados em

curiosidades históricas e na vida dos grandes homens. Suas vidas serão matéria prima para

uma “biografia-problema”, tornar-se-ão índices de uma significação histórica mais ampla. É

assim, por exemplo, que Christopher Hill trata o seu eleito de Deus. O calvinismo que ele vê

refletido e refratado através do seu fragmento humano “Oliver Cromwell” é mais do que um

credo – trata-se na verdade de uma cosmovisão que abrange todas as áreas da vida, e que dota

os seus portadores de um sentido especial que eles mesmos imputam à sua existência. É a

apropriação deste sentimento e desta cosmovisão no elan revolucionário do movimento

puritano na Inglaterra do século XVII o quer ele pretende captar, e não a mera singularidade

humana de Oliver Cromwell. Hill está precisamente interessado nas complexas tensões que

permeiam a relação entre o indivíduo e a sociedade, mas que não são exclusivas do

carismático líder da revolução puritana:

“comentou-se amiúde o aparente paradoxo de um sistema baseado napredestinação e que suscita em seus adeptos uma ênfase sobre o esforço e aenergia moral. Uma explicação para esse fato postula que, para o calvinista, a fése revela por si mesma através das obras e que, portanto, o único modo peloqual o indivíduo poderia ter certeza da própria salvação seria examinarcuidadosamente seu comportamento noite e dia, a fim de ver se ele, de fato,resultava em obras dignas de salvação (...). Os eleitos eram aqueles que sejulgavam eleitos, pois possuíam uma fé interior que os fazia sentirem-se livres,quaisquer que fossem suas dificuldades externas” (HILL, 2001: 205)

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Através de Cromwell, o que Hill procura resgatar é o perfil destes indivíduos que na

sua época aceitaram o calvinismo e o inseriram tanto em sua vida cotidiana como em uma

prática revolucionária, transformando-se em um grupo social através de uma rede de

identificações mútuas e reciprocidades. A maneira como a crença em uma missão junto a Deus

entretece a vida nos seus múltiplos aspectos e a revolução encaminhada por estes homens – eis

o objeto criativamente construído através desta “biografia” (se é que poderíamos chamá-la

assim). Em certo sentido, e por paradoxal que pareça, Cromwell está interessando aqui não

tanto pela sua singularidade política, mas pelo que ele tem de comum em relação a outros

homens, pelo que ele revela das tensões psicológicas e sociais de sua época, pelo que ele dá a

perceber com relação a determinadas práticas sociais. É verdade que Cromwell permite um

acesso a privilegiado a estes múltiplos elementos, em virtude da sua posição de liderança

beneficiar-se de maior iluminação histórica e dos registros que deixou através de suas

atividades revolucionárias. Mas o historiador aproveita-se desta posição mais iluminada

precisamente para visualizar um extrato mais amplo da sociedade e a sua inserção em uma

dinâmica específica.

Esta oportunidade de aproveitar a especial iluminação de que se beneficia o indivíduo

biografado é portanto fundamental no novo estilo de biografar dos historiadores profissionais.

Os micro-historiadores, vimos atrás, escolhem indivíduos anônimos, sim, mas que por uma

circunstância específica achem-se especialmente iluminados (por exemplo, por um processo

inquisitorial ou judicial que lhe rastreia todos os passos e que lhe dá uma voz especial que ele

não teria na sua vida cotidiana de indivíduo comum). Por um caminho complementar, é

também um pouco de luz especial o que buscam os historiadores que escolhem o chamado

‘personagem-chave’, de importância política reconhecida na sua época e que por isto deixou

maiores registros. Assim em uma entrevista em que fala das biografias que escreveu, Jacques

Le Goff expõe com tranqüilidade as razões de sua escolha:

“Por outro lado, acho que só se pode escrever uma boa biografia se esta forsobre um personagem de quem se acredita ser capaz de chegar bem perto. Poisbem, antes do século XIII a ausência de fontes confiáveis tornava essaempreitada impossível. Decidi então ficar no século XIII, onde trêspersonalidades se destacavam não apenas por sua importância, mas sobretudo

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por causa das fontes disponíveis sobre eles: São Francisco de Assis, oimperador germânico Frederico II e São Luís” (LE GOFF, 1996).

O problema central, como assinala Jacques Le Goff, é o das fontes. A biografia tem de

ser coberta por muitos lados, tem que dar a perceber aspectos da vida pública e da vida

privada, tem de trazer à tona os gestos teatralizados do indivíduo proeminente, mas também os

seus gestos espontâneos. Tanto um tipo de gesto como o outro – o teatralizado e o espontâneo

– são reveladores de práticas e representações específicas. Em seguida à oportunidade especial

oferecida pelas fontes, Le Goff acrescenta um segundo aspecto fundamental para as novas

escolhas biográficas: um problema adequadamente colocado.

“Sobre os dois primeiros [São Francisco e Frederico II] já existem ótimosestudos, portanto São Luís logo se impôs. Mesmo porque a maior parte dasnumerosas biografias feitas sobre ele nos últimos vinte anos não me parecematender suficientemente as exigências de rigor histórico. Duas obras no entanto,de grande qualidade e publicadas nos anos 80 por dois historiadores, umamericano, Edil Jordan, o outro francês, Jean Richard, eram exceção. Mas, nemum nem outro colocou a si mesmo a pergunta quanto ao indivíduo (econtrariamente às idéias recebidas, a noção de indivíduo emerge no século deSão Luís), e todos dois haviam centrado mais ou menos seu estudo nas cruzadas.Sem negar sua importância na vida de São Luís, eu não acho que as cruzadastenham sido o grande pensamento de seu reinado. Do ponto de vista dahistoriografia, achei portanto que o terreno estava livre” (LE GOFF, 1996).

Assim, Le Goff delineia com muita precisão um problema que acompanhará em

contraponto a sua construção biográfica, que é o da “emergência do indivíduo” – ou a

emergência de uma nova maneira de conceber o indivíduo – no século XIII. Em seguida, o

historiador francês explicita simultaneamente a ordem de dificuldades que deve acompanhar o

historiador-biógrafo e um programa ou estilo de biografar, que se refere àquele ir-e-vir entre a

vida individual e a vida coletiva que já fizemos notar para o caso da biografia realizada por

Christopher Hill. Ouçamos as próprias palavras de Jacques Le Goff:

“Fiel à concepção de história-problema da Escola dos Anais, minha primeiradificuldade consistiu em definir uma problemática que me permitisse apreendero indivíduo São Luís em interação com a sociedade do século XIII, evitando oque o sociólogo Pierre Bourdieu chamou de a "ilusão biográfica", que pretendeque se considere a vida de um grande homem como alguém com um destino játraçado, excluindo as eventualidades da vida. Eu, ao contrário, limitei-me amostrar as hesitações, as decisões e os momentos cruciais da vida de São Luís, a

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partir da sua infância de rei. Porque se o homem constrói sua vida, ele também éconstruído por ela.” (LE GOFF, 1996).

Colocar-se em guarda contra a tendência em enxergar o grande indivíduo de maneira

teleológica (como um caminho que aponta já para um fim que está previamente inscrito na

cabeça do historiador, antes mesmo que ele comece a biografar) é portanto um alerta que deve

acompanhar o biógrafo, pelo menos se ele pretende efetivamente realizar uma biografia

múltipla e verdadeira (e que por ser múltipla e verdadeira deve ser, de certo modo, tão

contraditória como a própria vida). Da “ilusão biográfica”, o historiador deve passar ao

enfrentamento da ilusão das fontes – porque também elas impõem a sua teleologia,

sobrepondo-a à teleologia que o historiador pode trazer espontaneamente antes de iniciar o seu

trabalho:

“Foram as fontes, na verdade, que representaram as principais dificuldades demeu trabalho de historiador, e isso por causa de sua própria natureza. De fato,uma grande parte dos documentos disponíveis sobre São Luís é de caráterhagiográfico ou normativo. Através de São Luís pinta-se mais o retrato do reique ele deveria ter sido do que o que foi realmente, como em Les Miroirs desPrinces, textos que nos informam mais sobre a concepção do soberano ideal doque sobre a verdadeira personalidade dos reis. As qualidades e os fatosatribuídos a São Luís - freqüentar os pobres e os leprosos, oferecer numerosasesmolas, etc. - são assim atribuídos a outros reis. No entanto, eu tive algumasvezes a impressão de cair em detalhes suficientemente concretos de sua vidacotidiana para dizer: é ele finalmente. Mas mesmo aí eu tive surpresasdesagradáveis” (LE GOFF, 1996).

Existe portanto um perigo que espreita o biógrafo dos personagens ilustres, e que já o

biógrafo dos personagens anônimos pode facilmente contornar. O indivíduo célebre – um rei,

um líder, um santo – tem despejada sobre a sua memória, que vai se construindo já no seu

próprio tempo, uma espécie de luz falsa (ou um feixe de luzes falsas). O indivíduo que nasce

na notoriedade, ou que a adquire em função de alguma situação-limite, começa a ser

construído coletivamente em paralelo à sua existência física e concreta. As fontes nos dão os

sinais precisamente desta construção. Elas são a parte mais visível desta construção.

Mas o historiador-biógrafo pode se beneficiar precisamente deste caráter construtivo,

desde que esteja dela consciente. Ele pode se valer, como fontes, dos trabalhos dos biógrafos

da época, que são co-responsáveis (conjuntamente com toda a coletividade) pela construção

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do indivíduo imaginário que chega até o historiador através dos arquivos. Assim, também

Jacques Le Goff teve o seu interlocutor nesta empreitada:

“Em primeiro lugar, os textos laudatórios não escondiam, apesar de tudo, algunsde seus defeitos. Nós sabemos, principalmente graças às confidências de seuconfessor, dispensado do segredo da confissão para o processo de canonização,quais eram as tentações de São Luís e como ele lutava para não sucumbir a elas!Uma série de historietas revelam-nos o temperamento de um homem muitovoltado para a carne, dividido entre a tentação e o escrupuloso respeito àsproibições da Igreja... Em seguida, nós dispomos do testemunho mais do queexcepcional de um companheiro próximo do rei, Jean de Joinville, autor deUma História de São Luís” (LE GOFF, 1996).

Identificar a posição do biógrafo-fonte em relação ao seu biografado é um

procedimento primordial para o historiador. No caso que tomamos para exemplo, existia

precisamente uma proximidade que poderia ser aproveitada pelo historiador – uma “relação”

entre o biógrafo-fonte e o biografado, que nem sempre ocorre, mas que quando ocorre deve

ser bem aproveitada pelo historiador:

“Joinville foi o primeiro não-religioso a escrever sobre a vida de um santo,ainda por cima em língua vulgar, ou seja em francês e não latim. Comofreqüentou o círculo mais íntimo de São Luís, Joinville foi uma testemunhaprivilegiada de sua vida cotidiana. Embora tivesse uma grande admiração pelorei, Joinville sabia ao mesmo tempo julgá-lo e não hesitava em repreendê-loquando achava, por exemplo, que o rei se comportava mal com sua mulher. Otítulo da obra demonstra aliás essa distância tomada pelo autor em relação aoassunto. Esse documento permitiu-me assim chegar ao indivíduo, o que chameide "verdadeiro" São Luís, e de "trazer" junto com ele uma grande parte dasociedade e dos problemas de sua época” (LE GOFF, 1996).

Percebe-se aqui que, além de biografar o personagem-foco, o historiador deve como

que biografar os biógrafos-fontes, identificar o lugar de produção em que se encontravam os

homens que registraram as primeiras construções do personagem na sua própria época. Pode

ser que o historiador veja-se levado a construir um conjunto de entremeados biográficos: o

biografado principal acompanhado de uma pequena órbita daqueles que foram os responsáveis

pela construção de sua imagem na própria época.

Munido dos elementos para resgatar o indivíduo por trás da pele imaginária, o

historiador não descuidará contudo de aproveitar-se dele como fragmento privilegiado para a

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percepção do coletivo. Só assim o historiador começa a sobrepor à mera vida individual –

mesmo que seja a vida de uma pessoa ilustre que possa eventualmente interessar a inúmeros

leitores – aquilo que efetivamente terá uma significação histórica hoje em dia, de acordo com

os atuais parâmetros historiográficos:

“São Luís foi beneficiado em vida por um extraordinário prestígio, querepercutiu por toda a França. Ele se baseava, acredito eu, em três coisas. Emprimeiro lugar, num inegável carisma de chefia, retomando a noção dosociólogo alemão Max Weber. As pessoas que o encontravam eram atingidaspor essa aura que o envolvia, em parte de forma física, e que sua devoçãocontribuía, sem sombra de dúvida, para aumentar. Mas os dois traços de suapersonalidade mais impressionantes, ainda hoje, residem em seu apetite pelajustiça e na sua paixão pela paz. Constantes no Ocidente desde o ano 1000,essas aspirações concretizam-se finalmente sob o reinado de São Luís. Suavontade de pacificar o reino sucede a movimentos populares contra o poderfeudal e senhorial, que repousa na violência e na guerra. São Luís era, por essasrazões, o que se poderia chamar de consciência da cristandade” (LE GOFF,1996).

São Luís mostra-se aqui, portanto, a sede de uma expressão coletiva. Os movimentos

pela paz (a “paz de Deus”), em um jogo de tensões com os movimentos pela guerra (as

cruzadas), falam eloqüentemente através dele. São Luís, tanto o indivíduo concreto como o

indivíduo imaginário, mostra-se aqui como construção de uma época – produto de um trabalho

coletivo que deve ser decifrado pelo historiador. É aliás este tenso diálogo entre a paz e a

guerra que Jacques Le Goff se permite recuperar, porque ele é um diálogo que se projeta

dentro de São Luís mas que, na verdade, corresponde a um diálogo que é inerente à sua

própria sociedade:

“Na época, fazer a paz entre cristãos e partir em cruzada contra os "infiéis" nãoparece ser absolutamente contraditório. É preciso lembrar que São Luís estáprofundamente impregnado pela concepção cristã de guerra definida por SantoAgostinho. Segundo este, é justa toda guerra feita aos pagãos ou que viserestabelecer a justiça onde existir injustiça (invasão territorial, por exemplo).Aliás, é unicamente neste caso que Santo Agostinho admite a guerra entrecristãos. E finalmente, para limitar as guerras, Santo Agostinho pretende queelas dependam da ordem política, ou seja do Príncipe, único a ter o direito dedeclarar a guerra e fazer a paz. Uma idéia que inspirará muito São Luís. Aoabolir a guerra entre os fidalgos, mais uma vez ele acerta em dois alvos: pacificao reino e fortalece consideravelmente o poder real” (LE GOFF, 1996).

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Vemos aqui como se cruzam todas as grandes questões da época no interior do

biografado. No caso, a desfeudalização, a centralização estatal, as aspirações imaginárias da

cristandade pela paz, a construção e o monopólio de um novo sentido de justiça, a oposição e

a alteridade em relação ao inimigo muçulmano sem falar na intertextualidade que se

derrama sobre os modos de pensar a política e a vida a partir de Santo Agostinho ... todos

estes fios encontram o seu lugar nesta trama.

“finalmente, partir em cruzada também significa para São Luís uma maneira deperpetuar a tradição de seus ancestrais, os reis cristãos, que remonta a 1095.Suas outras motivações são de ordem religiosa, porque São Luís teve uma visãoda cristandade que compreende, do ponto de vista territorial, a Europa, onde ocristianismo se instalou, mas também a Terra Santa, local de suas origens e dapresença mística do Cristo. Ao mesmo tempo em que São Francisco de Assispreconiza na Terra Santa uma cruzada pela palavra, São Luís realizará umacruzada militar. Entretanto, no momento da entrega aos muçulmanos do resgateque deveria libertá-lo, São Luís havia obrigado os de seu círculo a entregar-lhesuma quantia espertamente retirada no momento da transação. Um senso dejustiça quase universal para a época...” (LE GOFF, 1996).

Construir uma biografia, desta forma, remete à necessidade de não apenas instaurar um

diálogo entre o indivíduo e a sociedade de sua época, mas também de dar voz aos diálogos que

atuam na própria constituição do indivíduo que vai sendo biografado. Este indivíduo também

constrói a si mesmo a partir destes diálogos, e reconstruí-los também faz parte do trabalho do

historiador. O indivíduo biografado, enfim, é ponto de encontro de muitos imaginários, de

muitas práticas e representações, de intertextualidades diversas, e tudo isto se agita no

redemoinho formado tanto pelas circunstâncias como pelos grandes processos históricos e

coletivos, de média ou de longa duração. A biografia sobre São Luís realizada por Jacques Le

Goff é representativa, postulamos, de um modo novo de biografar que é o da atual

historiografia profissional.

Mergulhadas e produzidas neste novo modus operandis, as biografias de personagens-

chaves da história, portanto, têm na atualidade um novo sentido que antes não comportavam.

Assim mesmo, apesar desta nova função da biografia-problema na produção historiográfica

profissional, continuarão sendo produzidas em quantidade as biografias de grandes homens no

estilo antigo. Jacques Le Goff queixa-se da proliferação destas biografias superficiais e

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anedóticas que concorrem com as novas biografias-problema – biografias “incapazes de

mostrar a significação histórica geral de uma vida individual” (LE GOFF, 1989).

Com relação ao estilo, as novas biografias clamam por novos modos de narrar e por

novas possibilidades de perceber a natureza humana. Pierre Bourdieu, ao falar sobre a “ilusão

biográfica”, chama atenção para o fato de que mesmo as biografias elaboradas no seio da

historiografia profissional descrevem a vida individual ainda de maneira demasiado linear,

como um simplificado caminho teleológico que comporta “um começo (uma estréia na vida),

etapas e um fim, no duplo sentido de termo e de objetivo” (BOURDIEU, 1986: 62-63).

Pergunta-se pela multiplicidade de “eus” que cada um esconde dentro de si, pelos

diversos papéis que qualquer indivíduo precisa desempenhar na sua vida social

multidiversificada, pelas suas incoerências, pelas várias histórias que atravessam a sua vida

sem convergirem necessariamente para o mesmo fim. Pergunta-se pelos vários projetos

interrompidos que fazem de todo homem um “projeto inacabado”, como diria Jean-Paul

Sartre, e que nas biografias tradicionais têm as suas arestas aparadas para encontrar uma

coerência em um enredo central, ou que simplesmente são esquecidos quando se rebelam

contra o pensamento centralizador do biógrafo.

Esta multiplicidade de eus que a psicanálise já examina, e esta fragmentação da

unidade individual ou mesmo o desaparecimento do sujeito, que a moderna filosofia toma

como um de seus objetos privilegiados ... eis aí um universo de possibilidades que a literatura

moderna já explora, mas que a historiografia contorna em biografias que, embora já

problematizadas, continuam por vezes a serem teleológicas, portadoras da moral única que

orienta a trama, de um roteiro que apaga as incoerências internas e as muitas vidas dentro da

vida.

De qualquer modo, o antigo gênero e domínio historiográfico retorna anistiado para o

bem vigiado universo da historiografia profissional. Boas biografias históricas continuarão a

abundar na nova produção historiográfica, mas também na literatura histórica mais

romanceada, e em um caso ou outro teremos sempre um gênero que atrairá a atenção do

público leitor. Leitores de vários tipos e competências culturais poderão se comprazer com

biografias extremamente sofisticadas como a de Le Goff sobre São Luís, ou como a de

Christopher Hill sobre Oliver Cromwell. Mas também o leitor interessado em um outro tipo

de curiosidades históricas poderá sempre se deleitar com um farto material continuamente

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presente na literatura produzida nestes dois últimos séculos, como alguma obra sobre A Vida

Amorosa de D. Pedro I ou coisas do gênero.

*

Será oportuno encerrar esta reflexão sobre os domínios historiográficos e este ensaio

chamando atenção, mais uma vez, para o fato de que – como qualquer campo de saber – a

História está fadada a permanentes transformações no interior do seu espaço disciplinar. Os

rearranjos internos serão sempre possíveis. E mais, o que está dentro da História um dia, como

objeto de estudo possível, pode se ver repelido para o seu exterior no outro dia. Será eficaz,

para retermos uma maior compreensão acerca das variâncias da disciplina historiográfica,

retomar um célebre trecho de A Ordem do Discurso, onde Michel Foucault esclarece como

ninguém o que é uma disciplina (em geral):

“uma disciplina se define por um domínio de objetos, um conjunto de métodos,um corpus de proposições consideradas verdadeiras, um jogo de regras e dedefinições, de técnicas e de instrumentos: tudo isto constitui uma espécie desistema anônimo à disposição de quem quer ou pode servir-se dele”(FOUCAULT, 1996: 30)

Este sistema anônimo, contudo, como faz notar Foucault logo adiante, está em

permanente mutação porque é aberto a expansões – na verdade ele depende para existir de

desencadear expansões. Conforme ressalta o filósofo francês, “para que haja disciplina é

preciso, pois, que haja possibilidade de formular, e de formular indefinidamente, proposições

novas” (FOUCAULT, 1996: 30).

E no entanto existe um incessante jogo entre o interior e o exterior da disciplina, e

entre um campo de estudos e o seu campo de objetos. A História (campo de conhecimento)

jamais será constituída por tudo o que se pode dizer de verdadeiro sobre a História (campo dos

acontecimentos). Para que uma proposição pertença à disciplina “História” de uma época, é

preciso que ela responda às condições desta disciplina tal como a definem ou definiram os

seus praticantes de então. A História, como qualquer outra disciplina, estará sempre repelindo

para fora de suas margens determinado conjunto de saberes, proposições e domínios que em

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momento anterior poderiam ter estado ali, e que em um momento subseqüente da história dos

saberes e dos discursos já não estão. Ou, como registra Michel Foucault para todas as

disciplinas científicas em geral:

“O exterior de uma ciência é mais ou menos povoado do que se crê: certamente,há a experiência imediata, os temas imaginários que carregam e reconduzemsem cessar crenças sem memória; mas, talvez, não haja erros, em sentido estrito,porque o erro só pode surgir e ser decidido no interior de uma prática definida;em contrapartida rondam monstros cuja forma muda com a história do saber.Em resumo: uma proposição deve preencher exigências complexas e pesadaspara poder pertencer ao conjunto de uma disciplina [...]”(FOUCAULT, 1996:30)

A disciplina História atrai e repele objetos, domínios, proposições, métodos, práticas,

representações. Houve um tempo em que a hagiografia caía dentro da História, em que Deus

conduzia a História. Depois, no século XVIII, a História tende a se tornar imanente entre os

historiadores profissionais. Deus sai da História, e a deixa aos homens – ou, se ele permanece

na História, como ocorre com vários dos historiadores do século XIX, é como uma grande

sombra providencial que age através dos homens (mas não mais de milagres). Com o

Iluminismo, o mundo extrafísico ou sobrenatural parece ter sido definitivamente repelido para

fora da História. Voltará um dia? Atualmente, não se escreve uma história dos fenômenos

paranormais. Quem quer que queira historiar estes fenômenos terá de fazê-lo do exterior

histórico, já que este não é um dos assuntos de que tratam os historiadores profissionais.

Outros tantos exemplos poderiam ser dados. Os historiadores escrevem a História das

Ciências, dos saberes jurídicos, da Medicina, da Psiquiatria – mas quem historia a Astrologia

são os astrólogos (os historiadores só o fariam para avaliar socialmente ou culturalmente as

suas representações, para indagar pelas ideologias que se escondem por trás das

representações astrológicas, e assim por diante).

Há os exemplos políticos. O Nazismo entrou na história como monstro – quem quiser

historiá-lo com maior simpatia terá dificuldade em fazê-lo no interior dos círculos

historiográficos ocidentais. Deverá fazer isto do seu exterior, como simpatizante de uma

doutrina. Isto porque, na historiografia ocidental, o Nazismo é estudado no corpo dos estudos

dos autoritarismos, dos fanatismos, das patologias sociais, da violência. Não se estuda, por

exemplo, a Arte Nazista, a não ser ligada a um destes aspectos.

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Um exemplo não muito distante de proposições que até então caíam como luvas para o

campo histórico, e que hoje são repelidas enfaticamente, refere-se ao circuito da “evolução” e

do “progresso”. Com os desenvolvimentos antropológicos, e com o auto-reconhecido

descentramento do homem europeu, já não se admite falar no campo da historiografia

profissional em “evolução de sociedades” (com aquele sentido próximo ao darwiniano).

Também já não se fala no “Espírito da Nação”, que teria animado as narrativas nacionalistas

de historiadores como Ranke ou Jules Michelet nos idos do século XIX. Estas proposições

estão atualmente em baixa – ou melhor, estão como que fora da órbita do campo histórico.

Exemplo mais recente de idas e vindas, agora já relativo a uma das antigas

especialidades da História, é o campo da História das Civilizações. Com Arnold Toynbee

(1953), este domínio parecia ter conhecido o seu último grande investimento. No final do

segundo milênio, ele parece querer voltar com toda a força, pelo menos a julgar pelo impacto

de O Choque das Civilizações de Samuel P. Huntington (2000).

Exemplo importante de resgate de um domínio ou de uma prática historiográfica – que,

depois de ter sido expulsa da órbita da historiografia profissional pela ojeriza ao factual dos

anos 1930, começa a ser atraída de novo pela sua gravidade – é este gênero que poderia ser

descrito como “história de acontecimento” (a descrição de uma batalha, por exemplo). O

primeiro sinal foi dado por Georges Duby, quando aceitou em 1968 escrever um livro sobre o

Domingo de Bouvines (famosa batalha na história da Idade Média francesa). O seu prefácio

para esta obra é precisamente uma justificativa para a sua aceitação, como historiador

profissional, em retomar este gênero (DUBY, 1993).

Para pontuar com um último exemplo de domínio que veio à tona, é bastante lembrar

que a História da Loucura só começou a ser historiada recentemente. E naturalmente que

começou a ser historiada do ponto de vista de uma racionalidade que desde já a imobiliza,

com a exceção do trabalho pioneiro de Foucault (FOUCAULT, 1978). Mas, em todo o caso, é

um tema que começa a entrar na moda – a invadir a órbita do historicizável. Desta forma, o

que um dia esteve no exterior histórico é hoje atraído com menor ou maior força para o núcleo

historiográfico, tal como vimos acontecer com os vários objetos descontraídos ou desvendados

pela História das Mentalidades, pela História Vista de Baixo, pela Micro-História. Da mesma

forma, os assuntos mais amplamente tratados pela história, hoje, poderão um dia ser repelidos.

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Isto novamente produzirá reviravoltas nos domínios históricos, nas suas dimensões, nas suas

abordagens.

*

Chegamos ao fim desta reflexão sobre os domínios da História e seu incessante

surgimento, desaparecimento, deslocamento e mutabilidade. Para além dos domínios e

campos aqui comentados, o leitor de História poderá continuar contando cada vez mais com

uma multidão de novos objetos. Os domínios multiplicam-se. Tal como foi se discutiu em

ensaio mais desenvolvido sobre o assunto (BARROS, 2004), a profusão de uma infinidade de

domínios da História nos quais foram se especializando diversos historiadores é decorrente de

um duplo processo. De um lado, lembramos que esta profusão inscreve-se na tendência dos

saberes modernos à hiper-especialização crescente. Por outro lado, a chamada “pulverização

da História” é a decorrência mais visível da crise dos grandes modelos explicativos e do

declínio das ambições totalizadoras dos historiadores ocidentais que, notadamente na época de

Fernando Braudel e em algumas das abordagens marxistas do início do século, almejavam

construir exclusivamente “histórias-sínteses”.

Atualmente, a historiografia ocidental mostra-se como um grande vitral de

possibilidades. Para retomar a imagem empregada no primeiro capítulo do ensaio mencionado

(BARROS, 2004), vivemos a época de Clio Despedaçada. A História partiu-se em muitos

fragmentos; os editores recolhem as suas migalhas para vendê-las a preço de ouro a uma

multidão de consumidores que não cessam de se interessar pelos mais variados objetos

historiográficos. Há os que preferem se deleitar nas sofisticadas tabelas de logaritmos que

abundam nos ensaios de História Econômica, há os que preferem as aventuras cavalheirescas

que os conduzirão aos castelos medievais. Há os que se interessam pelo Poder em todas as

suas formas, e existem os que, confortavelmente sentados em salões de luxo, têm alguma

curiosidade a respeito da história dos marginalizados. Talvez existam os leitores do sexo

masculino que ainda hoje destratem suas mulheres na alcova de seus casamentos e que

busquem na poeira dos tempos os seus pares na misoginia dos tempos antigos; ou que, ao

contrário, achem-se perplexos diante das conquistas femininas do último século e por isto

sonhem secretamente com um tempo em que os homens dominavam explicitamente as

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mulheres. E haverá também os que nas páginas da historiografia profissional buscarão a

aventura ou as raízes de sua nacionalidade, a origem de seu pessimismo ou de seu otimismo

com relação aos seres humanos, ou quem sabe um conforto para os seus medos presentes e

futuros.

Estes são os leitores comuns, que consomem História como qualquer outro gênero

literário. Já os historiadores vivem seus temas por vocação ou por necessidade profissional, e

repartem-se naqueles que pretendem dar uma feição mais artística ao seu trabalho e naqueles

que buscarão aproximá-los mais rigorosamente de um imaginário da ciência concebida de

acordo com os parâmetros da racionalidade da última hora, sem contar os que esperam com o

saber histórico transformar a própria História. Entre os historiadores profissionais – não há

como evitar (e nem talvez porque evitá-lo) – os compartimentos se multiplicam.

Dimensões, domínios e abordagens são fundamentalmente os critérios distintivos que

podem ser empregados para criar subdivisões no interior do Campo Histórico. Critérios que

não se misturam, mas que eventualmente se complementam. O importante é deixar claro que

as ‘dimensões’, ‘abordagens’ e ‘domínios’ da História articulam-se de múltiplas maneiras, e

que não se trata de o historiador encontrar um compartimento para dali empreender um

trabalho isolado e hiper-especializado. Muito da confusão que tem sido estabelecida em torno

destas classificações decorre daquelas grandes coletâneas de artigos, escritas por diversos

autores, em que são apresentados desavisadamente os diversos campos da História sem ser

desenvolvida uma explicação mais sistematizada de que existem diversos critérios imissos ali

envolvidos.

Outrossim, mesmo dentro das divisões geradas por um mesmo critério de coerência, é

possível perceber que existem abundantemente as possibilidades de interfaces e

interpenetrações, as combinações de duas ou três dimensões historiográficas, as convivências

de duas ou três abordagens, seja por alternância ou por complementaridade, e por fim as

ambigüidades e objetos comuns aos vários domínios. Apenas para mencionar uma última vez

uma vez o problema das ‘dimensões’ da realidade social, existem pelo menos três delas que

são extremamente complexas e de certo modo deixam suas marcas em todas as outras: a

Política, a Cultural e a Social. De alguma maneira, tudo nas relações humanas é perpassado

pelo “poder” nas suas múltiplas formas (macro-poderes e micro-poderes), tudo o que é

humano é parte da “cultura” no seu sentido mais amplo, e o “social” pode estar identificado

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com a própria sociedade. De qualquer modo, a historiografia será sempre um campo

complexo, que resiste às subdivisões, o que não impede que elas sejam pensadas como

parâmetros mais gerais de orientação.

Por fim, resta retomar aquele alerta a que havíamos chegado na primeira parte deste

texto. Ter plena clareza do solo particular em que está sendo estabelecida uma determinada

ação historiográfica (uma pesquisa, por exemplo) não deve servir de pretexto a uma

insuficiente hiper-especialização que por vezes é bem intencionada, mas por outras vezes é

preguiçosa ou oportunista. No mundo dos especialistas, onde por vezes são convocados para

receber cifras significativas aqueles que falam javanês, é uma tentação sempre presente tornar-

se uma grande orelha, um grande olho ou uma grande boca, para utilizar uma significativa

metáfora de Friedrich Nietzsche (1976).

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Referências bibliográficas

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O debate na historiografia marxista brasileira sobre trabalhadores ruraisno século XX

Manoela Pedroza15

RESUMOSabendo que foi dentro da corrente marxista que se processou a maior parte das discussõesteóricas e políticas sobre o “problema do campesinato” em países capitalistas, com grandeinfluência na academia brasileira, o objetivo deste artigo é analisar a forma com que ocampesinato e a questão agrária se estruturaram como objetos de estudo para as ciênciashumanas no século XX, a partir da aceitação ou rejeição das teses de Karl Marx e dastransformações econômicas e sociais ocorridas, sobretudo, fora do mundo acadêmico.Optou-se pela análise dentro do campo da historiografia marxista brasileira, entre asdécadas de 1930 e 1980, tentando entender os motivos pelos quais esta área doconhecimento não incorporou as discussões e novos conceitos sobre a ‘questão camponesa’que estavam sendo formulados em outros campos.Palavras-chave: campesinato, questão agrária, debates.

ABSTRACT The objective of this article is to analyze the form that the “peasantry” and agrarianquestion have rendered itself as objects of study for humans sciences in the XX century,with point of start: the accept or rejection of the Karl Marx’s thesis and the economic andsocial transformations that occurred over all outside of the academic world. The option wasmade for the analysis over all inside the Marxism field, not forgetting that in this tendencythat the majority of the theoretical and politic discussions were made and it was the mostimportant influence for the debates in the Brazilian academic. Key words: peasantry, agrarian question, debates.

Introdução: Capitalismo no campo: um tabu para a historiografia?

Os pesquisadores de história agrária brasileira, ou das histórias dos homens e

mulheres que viveram de seu trabalho no campo, têm uma série de dificuldades que já

foram muito lamentadas: o difícil acesso às fontes documentais, a descentralização e

desorganização dos arquivos, os diversos interesses políticos e econômicos contrários à que

se mexa nesse assunto, entre outros. Mas, ainda há um outro tipo de problema, ligado aos

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campos disciplinares e seus respectivos instrumentais teóricos e metodológicos que lidam

com este objeto, que conformaram atualmente a situação de que quase não há trabalhos de

História sobre este grupo social, ao passo que eles abundam em outras disciplinas, como a

Sociologia, a Economia, a Geografia e a Antropologia.

Trabalhos sobre ‘universo rural’ ou ‘mundo do trabalho agrícola’ na Grécia antiga,

na França medieval, nos impérios asiáticos, entre outros exemplos, são numerosos e muito

ricos em suas análises (CARDOSO, BOUZON & TUNES, 1990; CARDOSO, 1985; 1994;

DUBY, 1962). O problema se coloca quando lidamos com estes grupos de trabalhadores na

história contemporânea, sobretudo no século XX. Explicando com outras palavras, a

questão que se tornou tabu é a relação destes grupos de trabalhadores/as com o

desenvolvimento industrial e a conseqüente penetração capitalista no campo, processos

marcantes em nosso país após 1930.

Mais do que um fato consumado que deva ser lamentado como leite derramado, vou

encarar estas opções acadêmicas de recortes temporais e temáticos como históricas, frutos

de dois outros processos: primeiro, o papel político que foi sendo atribuído aos camponeses

desde os primeiros escritos de Marx até a década de 1970; segundo, as sucessivas clivagens

e o enrijecimento das ossaturas dos campos acadêmicos nas áreas das ciências humanas.

Minha hipótese é que a compreensão ampla destas relações entre campos acadêmico e

político – por vezes negligenciada – é o que pode tornar inteligível este dar de ombros da

historiografia do mundo do trabalho em relação ao trabalhadores e trabalhadoras do campo.

Por isso, o objetivo deste artigo é sondar as causas do silenciamento da historiografia no

debate a respeito de grupos camponeses no século XX.

Parte 1: estudos sobre campesinato

O primeiro pesquisador contemporâneo que se debruçou sobre o problema da

relação difícil entre campesinato e capitalismo se situava na fronteira entre a história e a

sociologia: Karl Marx. Ele nos legou um vasto campo conceitual utilizado pelas ciências

humanas até nossos dias para análise e explicação do problema (MARX, 1991)16. Sobre a

16 Max Weber também travou uma discussão a respeito da especificidade ou não da economia da GréciaAntiga, que em certo sentido pode ser considerada camponesa. Cf WEBER, Max. General EconomicHistory. New York. Colliers. 1961. Para uma revisão deste debate sobre o Oikos ver POLANYI et al.Trade and Market in the early empires. New York. The Free Press. 1957.

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relação entre o camponês e o capitalismo, a que chamou de questão camponesa, a

conclusão que Marx expressa no 18 brumário é de que

"Os pequenos camponeses constituem uma imensa massa, cujos membros vivem emcondições semelhantes mas sem estabelecerem relações multiformes entre si. Seumodo de produção os isola uns dos outros, em vez de criar entre eles um intercâmbiomútuo (...) a grande massa da nação francesa é assim, formada pela simples adiçãode grandezas homólogas, da mesma maneira por que batatas em um saco constituemum saco de batatas (...) na medida em que existe entre os pequenos camponesesapenas uma ligação local e em que a similitude de seus interesses não criaorganização política, nessa exata medida não constituem uma classe" (MARX, 1969:115).

Neste trecho, conhecido como 'metáfora do saco de batatas', Marx utilizou os

conceitos de classe social, relações sociais, organização política e modo de produção (já

aplicados na análise do sistema capitalista) ao estudo do caso específico do campesinato

francês na segunda metade do século XIX. Ao fazer isso ele tinha duas intenções distintas:

por um lado tentava investigar teoricamente um grupo social não capitalista com um

instrumental cunhado para análise do capitalismo, mas também intervir politicamente na

luta social perdida pelo proletariado francês com o golpe de Luiz Bonaparte.

O uso desse instrumental levou Marx a duas conclusões na análise do campesinato:

a primeira é que, enquanto a estrutura capitalista -- as condições de exploração fabris, as

tensões entre trabalho social e apropriação privada, a vivência coletiva da exploração --

possibilitaria ao proletariado forjar sua consciência de classe para si e, ao final, acumular

forças para derrubar esta mesma estrutura e implantar o socialismo; no universo rural

tradicional a estrutura social fazia o trabalho contrário: isolava os camponeses, criando

neles o senso de manutenção de suas pequenas propriedades ao invés do sentimento de ação

coletiva revolucionária.

A segunda tese, decorrente da primeira, era que os camponeses existiriam como

vestígios do passado feudal, sem papel funcional no momento em que viviam. Em sua

visão evolutiva das relações sociais, o camponês tradicional para Marx seria parte de um

passado pré-capitalista, cujo sentido histórico só poderia ser o desaparecimento no novo

sistema que se afigurava. Isso porque a totalidade do sistema capitalista não seria baseada

no modo de produção camponês, isto é, ele não seria uma relação social determinante para

seu desenvolvimento. O capitalismo então se relacionaria com o campesinato apenas como

contingência histórica a ser paulatinamente eliminada pela diferenciação social dos

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camponeses em proprietários ou proletários rurais. Neste sentido, a estrutura capitalista que

Marx propôs se desenvolveria, inexoravelmente, engolindo as relações de produção

tradicionais, num processo de expansão que chegaria a ser total (em profundidade) e global

(em extensão).

Esta ficou sendo a mais lembrada posição de Marx a respeito do campesinato,

embora não seja a única. Essa é a idéia básica do paradigma marxista sobre a questão

agrária, e daí se inicia uma série de estudos que, de maneira valorativamente negativa,

caracterizaram a estrutura social do modo de vida camponês como contendo uma série de

características específicas que impediriam ou dificultariam sua ação coletiva.17 Essa linha

de pensamento pode ser verificada sobretudo nos textos de Karl Kautsky (1980) e de

Vladimir Lênin (1982), seus seguidores.

Karl Kautsky era ativista e pensador influente do Partido Social Democrata Alemão.

Ele defendeu que os camponeses eram burgueses por serem proprietários, e a pequena

propriedade camponesa deveria ser aniquilada pelo capitalismo pelo seu atraso técnico,

cunhando os termos "industrialização da agricultura" e "lei tendencial de concentração da

propriedade" (Kautsky, 1980). Para Kautsky “a expropriação do pequeno produtor e a sua

transformação em trabalhador rural assalariado seria, portanto, não apenas um processo

inevitável – decorrência necessária do desenvolvimento do capitalismo no campo – como

também positivo” (Araújo, 2002:66). Ele elaborou, desdobrou e generalizou o exemplo

inglês de Marx para produção industrial n’O Capital, vol. I parte 8 (Shanin, 1980; Araújo,

2002; Hegedüs, 1984).

Depois dele, Lênin vaticinou a aldeia camponesa russa -- o mir -- como um

resquício da sociedade feudal que devia ser totalmente destruído e dar lugar ao capitalismo

agrário.18 Debatendo diretamente com os populistas russos, para ele o desenvolvimento do

17 Michael Duggett, baseando-se sobretudo nos Grundrisse [MARX, 1991] matiza a forma taxativa expostaem Marx dizendo que se deve considerar a dificuldade teórica deste em conceituar o campesinato comoclasse ou não a partir de um instrumental que se aplicava bem para o proletariado urbano e para os clubesda burguesia, mas não para camponeses dispersos em um vasto país. A essa busca por rigor teórico eintervenção política atravessa toda a produção teórica marxiana sobre o campesinato, mas não foiconcluída a ponto de ter sido possível, após sua morte, que diversos intelectuais no campo do marxismoformulassem conclusões ou opiniões distintas a respeito dos mesmos textos (DUGGETT, 1976).

18 LENIN, V. O desenvolvimento do capitalismo agrário na Rússia, original de 1899. O mir russofuncionava como controlador e distribuidor de terras segundo critérios costumeiros que não obedeciam aocódigo civil russo. Ao analisar a situação em que as famílias camponesas mais ricas eram beneficiadas nadistribuição das terras porque com freqüência agregavam novos membros, Lênin concluiu que essasituação estaria contribuindo para a diferenciação social e a criação de classes sociais antagônicas no meiorural russo (Moura, 1986). Segundo Hamza Alavi, foi por esse motivo que, mesmo mudando suas táticas

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capitalismo no campo implicaria na extinção pela diferenciação social dos camponeses

feudais em burguesia agrária, pequenos burgueses ou proletários rurais. Essa proposição

poderia não ter tido tanta repercussão não fosse o sucesso político de Lênin após 1917. A

partir daquele momento, suas teses tiveram decisiva influência nas posteriores gerações de

marxistas no que concerne ao debate sobre campesinato e capitalismo, e seus escritos

dominaram as análises de sociedades camponesas na III Internacional e nos movimentos

comunistas do Leste Europeu19 (Shanin, 1980:54; Hegedüs, 1984).

Essa concepção marxista dominante compreendia o desenvolvimento histórico em

etapas: do feudalismo ao capitalismo e deste ao socialismo. A partir dela, o VI Congresso

da III Internacional, realizado em 1928, determinou uma estratégia revolucionária a ser

adotada por todos os países do terceiro mundo: a realização de uma revolução burguesa,

nacional e democrática, de caráter anti-imperialista e anti-feudal, que primeiro alçaria esses

países à condição de capitalistas para depois poderem, com suas massas proletárias no

campo e na cidade, chegarem ao socialismo (Araújo, 2002). Veremos mais adiante a

repercussão dessas políticas no Brasil.

Com raras exceções, as correntes marxistas hegemônicas neste campo político

exacerbaram as interpretações que Marx fez sobre a França e a Inglaterra no século XIX

para todo o mundo. A preocupação com a problemática da transformação capitalista no

campo foi expressa em dois debates conceituais: a diferenciação do campesinato e a

especificidade ou não de um 'modo de produção camponês' (SHANIN, 1980: 53). Tudo

isso a partir do critério de propriedade ou expropriação da terra como definidor dos grupos

sociais camponeses, e as possibilidades de sua organização política mecanicamente

decorrentes.

É claro que isso não aconteceu sem matizes nem contradições. Porque o significado

político do conceito camponês garantiu uma periodicidade em seu próprio uso, sempre

refletindo a história social em sentido amplo, mas, também, uma dinâmica específica do

pensamento acadêmico. A exemplo disso, podemos perceber que até o começo do século

XX, na Europa do Leste, a sociologia rural e a economia agrária contribuíram enormemente

para os trabalhos sobre a especificidade da economia camponesa. Como passavam por um

políticas em 1905, os bolcheviques jamais chegaram a conseguir uma base sólida junto ao campesinatorusso (Alavi, 1969: 311). Sobre esse assunto ver também Hegedüs, 1984.

19 Isso não quer dizer que a obra de Lênin não possa ter mudado no que trata do campesinato. Mas essadiscussão já foge dos objetivos deste capítulo. Para aprofundar as discussões, ver Shanin, 1980, parte 3.

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momento de profundas mudanças econômicas (industrialização) e políticas (ascensão dos

movimentos nacionalista, populista e socialista), o debate sobre o conceito e repercussões

do campesinato que se produziu neste período formou a maior parte do instrumental

conceitual e ideológico relevante de que hoje dispomos, sendo bons exemplos os trabalhos

de Galeski (1972) e Chayanov (1966).

Esta torrente de estudos foi interrompida nas décadas de 20 e 30 do século passado e

passou por um longo silêncio forçado, provocado pela polarização ideológica, pela intensa

vigilância na produção acadêmica do leste europeu e, posteriormente, nas décadas de 40 a

60, pelo auge das "teorias da modernização pós-coloniais" (SHANIN, 1973). O sentimento

geral era de que o desenvolvimento e a modernização incessantes situavam os camponeses

na jaula do rústico, do tradicional e da bruxaria, junto com tudo o que seria fatalmente

relegado a segundo plano nas preocupações de quem era "progressista". Uma taxonomia

básica de moderno/tradicional (com uma implícita suposição nós/eles) tornou os

camponeses terminologicamente invisíveis, dentro do pacote geral dos "tradicionais" e

outros exóticos, que ficavam a cargo dos estudos antropológicos (SHANIN, 1973: 72)

Na década de 60, quando houve uma sucessão de crises dos países pobres e da

agricultura mundial, com o colapso das prescrições modernizantes simples e rápidas, a

decisão da China de 'andar com os próprios pés' e a conseqüente descoberta de uma

tenacidade camponesa (sobretudo depois que camponeses derrotaram a potência mais

moderna do mundo no Vietnã), essa situação mudou. A análise apurada do conjunto destes

fatos mostrou aos pesquisadores do tema que as profecias de fim do campesinato

propaladas pelos clássicos de Marx (1991, 1969, 1968-1983, 1978), Lênin (1982) e Kautsky

(1980) efetivamente não se realizaram. Mesmo nos países desenvolvidos o pequeno

produtor não se tornou necessariamente miserável, nem se tornou proletário rural, e o

progresso técnico não foi incompatível com a produção familiar (ABRAMOVAY, 1992).

Se o camponês tornou-se um fascinante e problemático tema de estudocontemporâneo, foi exatamente porque os esquemas que o interpretavam comoresíduo de uma formação social anterior, como resquício ou sobrevivência de épocaspassadas, revelaram-se um instrumento analítico e conceitual inadequado àapreensão de sua condição social viva em tantas regiões agrárias (MOURA, 1986:68).

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Estes fatos históricos contundentes fizeram com que pesquisadores buscassem, a

partir de então, encontrar ou cunhar outras maneiras de explicar a relação do capitalismo

com o campesinato. Campos disciplinares distintos resgataram autores esquecidos e

criaram um novo aparato conceitual para a análise dos camponeses no mundo. Em

benefício do próprio objeto de análise, vários aspectos da estrutura social camponesa foram

enfocados: o geral e o específico, a escala nacional e o nível da unidade familiar de

produção, entre outros. Para embasar esse esforço, vieram a tona as teses de Alexander

Chayanov20 que, ainda na década de 1920, tivera a preocupação de melhor conhecer a lógica

que presidia a tomada de decisão pelos agricultores russos, na URSS recém criada. Mas,

essa retomada de interesse já não se processava no mesmo contexto de antes. Neste meio

tempo, as estruturas acadêmica mundial e brasileira se segmentaram em campos com seus

próprios objetos e métodos preferidos. “O afastamento entre os campos disciplinares e sua

falta de comunicação levou a várias 'redescobertas' de coisas que já eram conhecidas por

outras disciplinas, além de várias formas de mútua ignorância e até hostilidade”

(ABRAMOVAY, 1992: 47). Penso que um desses casos se deu nos estudos sobre

camponeses no Brasil. Vejamos mais a fundo as particularidades deste processo.

Parte 2: O debate sobre o campesinato no Brasil

No Brasil, a trajetória dos estudos sobre campesinato também se relacionou

intimamente com os diferentes momentos e transformações da questão agrária e camponesa

no país, daí a necessidade de reconstituir aqui o processo de conformação da questão

agrária tanto no campo econômico e político quanto em suas decorrências no campo

acadêmico brasileiro.

O conceito de camponês referia-se originalmente a um grupo social bem localizado

estrutural e historicamente, [os camponeses feudais europeus] não sendo criado pelos

cientistas sociais, mas tendo sido apropriado por estes (Velho, 1979:41). No Brasil, a

situação do camponês não se equipara com o caso camponês clássico nem mesmo com

20 Alexander Chayanov, russo, foi professor e trabalhou no Instituto Agrário de Moscou ainda nos tempos do czar, sendo Ministro da Agricultura depois da

revolução de 1917 e durante toda a década de 20, quando organizou cooperativas agrícolas de pequeno e médio porte na URSS. Terminou eliminado pelos

expurgos de Stálin. Um balanço de sua biografia e pesquisas pode ser encontrado em Abramovay, 1998: cap 3, e Araújo, 2002, e na palestra proferida por

Theodor Shanin em http://www.msses.ru/shanin/chayanov.html.

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outros países latino-americanos onde sobreviveram comunidades indígenas. A definição

conceitual dos homens e mulheres que trabalham no campo brasileiro foi, portanto, fonte de

polêmicas, geradora de muitos debates dentro e fora das ciências humanas.

Mesmo assim, nas décadas de 1930 e 40 não houve propriamente uma discussão

nacional sobre a questão agrária. Isso porque o Estado, que se instaurava com o golpe de

1930, em grande parte pactuava com as oligarquias rurais, que mantinham seu velho estilo

de produzir e dominar. Se esse pacto, por um lado, não impediu que os capitais gerados no

setor primário passassem a viabilizar o processo de industrialização crescente, fazendo com

que esses antigos "donos" do Estado perdessem a partir de então sua posição dominante

dentro desse aparelho, por outro condicionou essa subordinação geral do setor agrícola à

não intervenção estatal direta sobre ele. Isso se materializou economicamente no assim

chamado "complexo rural"21, que possibilitou a manutenção por mais algum tempo das

formas de propriedade, poder e trabalho tradicionais (Oliveira, 1987; Martins, 1981; Facó,

1976; Leal, 1949; Medeiros, 2002).

Os estudos sobre homens e mulheres pobres das áreas rurais mudaram

completamente seu teor a partir dos anos 50. Essa mudança teve relação direta com o

afrouxamento da costumeira 'obrigatoriedade da não modernização' no campo brasileiro,

que começava a ser posta em xeque nos anos do desenvolvimentismo. A crença geral de

que o país alcançaria em pouco tempo o "primeiro mundo" se chocava frontalmente com a

situação de "atraso" e "arcaísmo" na zona rural, para usar os termos da época. Assim, a

partir desses anos, malgrado a vontade do setor latifundista mais conservador de que a

questão agrária continuasse a não existir, crescia o debate sobre as possibilidades de

transformações no universo rural, tanto da "esquerda-revolucionária" quanto do Estado. Ao

mesmo tempo, esses anos presenciaram a progressiva publicização tanto a partir da

identidade política de camponês quanto dos problemas que enfrentava, produto de um

conjunto de lutas sociais por certos direitos trabalhistas, sociais e agrários dessa categoria

que se firmava enquanto classe social (Medeiros, 2002).

O sociólogo francês Pierre Bourdieu (1977) trabalha com a noção de identidade

como um produto de lutas. Para ele, a representação que os grupos fazem de si mesmos e

dos outros contribui, em grande parte, para fazer deles aquilo que eles são e o que fazem.21 Por complexo rural entendemos um conjunto intrincado de atividades agrícolas e manufatureiras

indissoluvelmente ligadas e internalizadas nas fazendas, que reproduziam em nível local os setoresagrícolas e manufatureiros que eram a base da economia colonial brasileira. Mais detalhes em Silva, 1996.

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Essa representação, por sua vez, não é um dado ou um simples reflexo, mas fruto de ações

de construção que se realizam a cada momento, nas lutas entre os grupos para imporem a

representação do mundo social mais de acordo com os seus interesses. Dessa forma, uma

das facetas da dominação estaria, justamente, na imposição de uma representação do mundo

social. Ela incidiria sobre a produção da identidade social do dominado. Os grupos

dominados se constituem, assim, naquilo que Bourdieu chama de uma “classe-pour-autri”,

isto é, uma classe que conta com uma verdade objetiva de si mesma que não foi ela quem

produziu. E de todos os grupos dominados, aquele onde isto se colocaria de forma mais

evidente seria o campesinato (Grynspan, 1987:86). Entenderemos o processo de disputa

entre mediadores políticos segundo a teoria de Pierre Bourdieu, que nos diz que as lutas

travadas no campo político têm uma dupla determinação: ao mesmo tempo são lutas entre

os seus agentes (os próprios mediadores) pelo poder, e são também lutas pelos grupos

sociais que se encontram fora do campo.

Moacir Palmeira, antropólogo do Museu Nacional da UFRJ, em um texto e um

artigo publicado na coletânea Igreja e Questão Agrária (Palmeira, 1985, 1975), se ocupou

de duas questões: o porquê da diferença na periodização dos sindicatos de trabalhadores

rurais em relação aos sindicatos urbanos no Brasil, e o papel da CONTAG e do

sindicalismo rural na formação da identidade política camponesa. Privilegiando a análise

de relações de poder, o autor defendeu que foi a diferenciação política do campesinato e a

redefinição das relações entre este e o Estado que possibilitaram a “internalização da luta de

classes”. Parte desse processo complexo se deveu à substituição de mediadores tradicionais

por novos, capazes de introduzir novas diferenciações sociais no seio da comunidade

camponesa tradicional. Por fim, a autor concluiu que foi a mobilização política que gerou o

campesinato no Brasil como uma identidade política nova. Algumas das hipóteses

sugeridas nesse pequeno artigo de Moacir Palmeira parecem ter suscitado uma série de

novas questões para estudos posteriores, como demonstra sua constante citação.

É nesse ponto da conjuntura política e econômica brasileira, momento de intensas

transformações, que se situam os debates sobre a “questão camponesa” dentro do Partido

Comunista Brasileiro. Um dos primeiros pesquisadores comunistas a tentar definir a

especificidade desse grupo social foi Caio Prado Jr., ainda na década de 1940, com a

intenção de

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"dar à expressão campesinato um conteúdo concreto e capaz de delimitar umarealidade específica, dentro do quadro geral da economia agrária -- trabalhadores epequenos produtores autônomos que, ocupando embora a terra a títulos diferentes --proprietários, arrendatários, parceiros... -- exercem sua atividade por conta própria.Esse tipo de trabalhadores, a que propriamente se aplica e que se deve reservar adesignação de camponeses, forma uma categoria econômica e social caracterizada edistinta dos trabalhadores dependentes que não exercem suas atividades produtivaspor conta própria e sim a serviço de outrem (...) (PRADO JR., 1966, 204/5)".

O primeiro aspecto bastante conhecido da atuação política de Caio Prado Jr foi a

posição crítica assumida por esse intelectual comunista em relação à linha e às práticas do

PCB, críticas que ficam evidentes sobretudo nos seus dois últimos textos publicados na

Revista Brasiliense em 1963 e 196422, o que acabou lhe conferindo uma imagem de

“intelectual maldito”.

Dentre essas críticas, consagrou-se como mais importante a que considerava uma

desatenção das “forças políticas de esquerda e progressistas” à luta pela ampliação da

“legislação social-trabalhista para o campo”23, que seria para Caio Prado Júnior o caminho

mais eficaz para a solução da questão agrária no Brasil, deixando claro seu desacordo com

a tese dos “restos feudais”, sustentada oficialmente pelo PCB e por outras forças políticas

“nacionalistas”. Para ele, somente uma interpretação amparada em modelos vindos de fora,

aplicáveis às situações históricas verificadas na transição do modo de produção feudal para

o capitalista na Europa, explicariam o estímulo dado pelas “forças de esquerda” às

reivindicações tipicamente camponesas e a “subestimação” do potencial transformador da

implantação de uma “legislação social-trabalhista” no campo.

Na visão de Caio Prado Júnior, a ênfase dada pelas “forças políticas de esquerda”,

entre elas “os comunistas”, ao entendimento da reforma agrária como o parcelamento das

grandes propriedades de terra era provocada por um grave erro teórico cometido por essas

forças e seus intelectuais. Caio Prado Júnior interpretava os “acentuados traços servis”

22 É importante notar, porém, que em resenha do livro Manual de Economia Política, publicado pelo“Instituto de Economia da Academia de Ciências da URSS” (tradução espanhola), presente no n. 5 daRevista Brasiliense (maio-junho de 1956), Caio Prado Júnior já acusava a impropriedade do uso do“modelo colonial” que analisava a questão agrária brasileira em termos de “restos feudais”. No entanto,nesse texto de 1956, não apontaria com tanta veemência, como aconteceria nos artigos de 1963 e 1964, oserros políticos provocados ao se considerar a existência de um importante setor camponês no Brasil(FRIED DA SILVA, 2005).

23 Caio Prado Júnior, “O Estatuto do Trabalhador Rural”, Revista Brasiliense, n. 47, maio-junho de 1963, p.1.

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verificados nos “setores mais atrasados do país” como permanências do longo período de

utilização da mão-de-obra escrava no Brasil24.

A negação da existência dos camponeses no Brasil por Caio Prado Júnior pode ser

considerada um desenvolvimento de formulações anteriores nas quais defendeu que o

Brasil seria capitalista desde a origem, premissa que fundamentou toda uma corrente de

interpretação historiográfica que se consolidou a partir da Universidade de São Paulo

(USP). A partir de uma visão circulacionista, todo um conjunto de pesquisadores concluiu

que o Brasil participou de uma suposta fase comercial do capitalismo através de sua

inserção no circuito mercantil formado no Atlântico com a expansão marítima européia

iniciada na passagem do século XV para o XVI. Inserção com um papel bem definido, qual

seja, o de fornecer matérias-primas produzidas em grandes propriedades monocultoras que

se utilizavam largamente de mão-de-obra escrava.

Em linhas gerais, Caio Prado Júnior lançou as bases desse modelo interpretativo no

livro Formação do Brasil Contemporâneo. No texto “O sentido da colonização”, o autor

apontava os “objetivos” que, na sua opinião, nortearam a montagem da colônia portuguesa

na América, isto é, servir como espaço de exploração. Podemos perceber ainda hoje uma

relativa influência da tese do “capitalismo desde a origem”, principalmente entre os

historiadores paulistas. Sem podermos avançar na discussão sobre os modelos

interpretativos de nosso passado colonial, é importante apenas ressaltar que o debate entre

Caio Prado Júnior e os intelectuais que defendiam a “tese feudal”, entre eles Alberto Passos

Guimarães, passava por uma disputa sobre o passado do país, pois era na história colonial

que buscavam alicerçar suas posições.

Em concordância com Carlos Maurício Fried da Silva, em importante balanço da

obra de Caio Prado Jr sobre a questão agrária (2005), consideramos que a negação da

existência da “classe camponesa” no Brasil no pensamento de Caio Prado Júnior já se

encontra devidamente superado na historiografia, principalmente com as pesquisas que se

desenvolveram inspiradas na idéia de “brecha camponesa” presente na obra de Ciro

Cardoso e Jacob Gorender, demonstrando a existência de setores camponeses nos períodos

24 Idem, ibidem, p. 12.

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colonial e imperial da história do Brasil 25, quando se desenvolveu novo modelo explicativo

que se convencionou denominar de “modo de produção colonial-escaravista”26.

Mas também é importante frisar, sobretudo em um balanço historiográfico, que a

peremptória negação da existência de uma agricultura camponesa no Brasil sustentada por

Caio Prado Júnior nos seus dois textos publicados na Revista Brasiliense nos anos de 1963

e 1964 não é encontrada nos seus artigos anteriores presentes nessa mesma revista. Antes,

Caio Prado Júnior reconhecia a existência dos camponeses no Brasil e a importância da

desconcentração da propriedade fundiária como política de reforma agrária para o país27.

Mesmo nestes últimos textos, o reconhecimento, mesmo que indireto, da existência de um

setor camponês pode ser percebido na importância que deu à reforma agrária entendida

como parcelamento das grandes propriedades e posterior distribuição para os “trabalhadores

sem terra”28.

Carlos Maurício Fried da Silva (2005) sustenta que o próprio raciocínio do autor se

modificaria durante os anos. Nos principais artigos produzidos sobre a questão agrária, nos

anos de 1960 e 1962, além de colocar como primeira tarefa da reforma agrária a

desapropriação das grandes propriedades de terra e não a extensão da “legislação social-

trabalhista” para os “trabalhadores rurais”, Caio Prado Júnior defendeu que uma maior

oferta de terras criaria melhores condições para o desenvolvimento das lutas dos

empregados rurais por melhor remuneração. Já nos textos produzidos nos anos de 1963 e

1964, defenderia o contrário, isto é, que a ampliação dos direitos trabalhistas para o campo

levaria ao parcelamento da terra, já que a aplicação dessa legislação encareceria a mão-de-

25 O Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal Fluminense concentrou umgrande número de trabalhos que percorreram essa trilha aberta por Ciro F. S. Cardoso. Nesse sentido,podemos destacar as pesquisas de Márcia Maria Menendes Motta, Nas Fronteiras do Poder: conflito edireito a terra no Brasil do século XIX, 1998; Hebe Mattos de Castro, Ao Sul da História, 1987; Sheila deCastro Faria, Terra e Trabalho em Campos de Goitacases (1850-1920), 1986; entre outros, que, emgrande medida, comprovaram empiricamente a existência dos camponeses na formação do Brasil.

26 Uma síntese interessante sobre essa discussão pode ser encontrada na introdução do livro de João Fragoso& Manolo Florentino, O Arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantilno Rio de Janeiro (1790-1840), 1993.

27 Carlos Maurício Fried da Silva (2005) se refere ao uso do termo “servil” e à expressão “semifeudalismo”que aparecem em alguns momentos nos diferentes textos de Caio Prado Júnior produzidos no períodopesquisado.

28 Caio Prado Jr. Contribuição para a análise da questão agrária no Brasil, in Revista Brasiliense, n. 28,março-abril de 1960) e Nova Contribuição para a análise da questão agrária no Brasil in RevistaBrasiliense, n. 43, setembro-outubro de 1962.

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obra, exigindo, assim, dos grandes proprietários investimentos em tecnologia para

compensar o aumento dos custos com aumento da produtividade29.

Como observamos, Caio Prado Júnior não ficou imune ao clima conturbado

daqueles anos, produzindo interpretações divergentes de acordo com o avanço da

conjuntura. O que, aliás, não deve ser entendido como nenhum demérito, mas sim como

característica da evolução do pensamento social brasileiro ocorrida naqueles intensos anos

das décadas de 1950 e 1960. Mesmo para além do circuito comunista, se pudermos resumir

o ambiente intelectual e político de 1950 até 1968, poderíamos enxergar que, para a

sociedade civil brasileira daquele momento, a questão agrária era um problema que deveria

ser superado por um movimento nacional de transformação, mesmo sabendo dos rumos

diversos que cada grupo (trabalhistas, comunistas, católicos, proprietários) imprimia a essas

mudanças. Havia um consenso nacional no desejo de democratização interna,

industrialização e justiça social, e isso marcava o paradigma da questão agrária naquele

momento.

Mas, a partir do golpe militar, o debate sobre a questão agrária perdeu sua

polarização e deixou de ser propriamente um debate. Isso porque a repressão às oposições

políticas e a aplicação sem meios-termos do receituário da "modernização conservadora" no

campo se tornou a proposta claramente vencedora. Isso gerou uma grande crise e forçou

uma reestruturação das teses de esquerda, motivada pela tentativa de compreender, ou

mensurar, os efeitos desta modernização para as classes sociais envolvidas no processo, e

depois, revisitar as teses das décadas de 50 e 60 sobre a questão (PRADO JR, 1966).

De fato, o governo ditatorial implantado sabia bem a quem agradar e, já no final dos

anos 70, o Estado tinha sido eficaz no aprofundamento das relações capitalistas no campo:

aumento de produtividade e do mercado interno, internalização do D1 agrícola nos

complexos agroindustriais, diferenciação do campesinato tradicional, criando uma situação

bem diferente da que havia antes de 1950. Nestes anos, a concepção de Reforma Agrária

em curso se tornou praticamente sinônima de "política de terras", e isso também se explica

com o termo 'modernização conservadora': processo em que transformações na base técnica

e econômica não tiveram correspondência nos planos social e político. Disso decorreram

'conseqüências perversas', dentre elas a expropriação de milhares de famílias por empresas

capitalistas ou pela especulação fundiária das metrópoles em expansão, concentração das29 Id., ibid., p. 10.

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propriedades, disparidade das rendas, êxodo rural, aumento da exploração tanto dos

empregados rurais quanto dos minifundistas, deterioração da qualidade de vida da

população rural e do meio-ambiente (SILVA, 1996; STÉDILE, 1994; LEITE &

PALMEIRA, 1998).

Neste contexto, começaram as discussões de alguns grupos de pesquisadores

brasileiros, sobretudo antropólogos do Museu Nacional, sobre o problema específico do

desenvolvimento capitalista aqui, onde a 'modernização conservadora' se dera a revelia

tanto de grupos de oposição política quanto de grande parte dos pesquisadores do tema.

Estas mudanças no universo rural brasileiro eram fato social que tinha que ser mais bem

entendido, e para isso foram buscados os conceitos e teorias já dados no cenário intelectual

da época, marcadamente no campo do marxismo europeu. Dentre os trabalhos que

começaram a ser produzidos aqui no início dos anos 70 sobre sistemas econômicos

camponeses,

existiam os que buscavam compatibilizar reflexões sobre o sistema econômicocamponês (feitas a partir dos neo-populistas russos) com o materialismo histórico,mas alguns só o tinham um relativo sucesso, pois tratava-se de esforço extremamentedifícil e do qual surgiu a noção do modo de produção camponês (VELHO, 1979).

Concordamos aqui que o uso ou não do conceito de camponês para designar um tipo

social no Brasil se relaciona com a subestimação (ou não) da penetração do capitalismo no

campo levando à proletarização rural; e também com a prioridade da pequena propriedade

em projetos de reforma agrária, para saber se a reivindicação básica dos rurícolas é a posse

da terra ou o aumento de salário. É essa problemática que dá o caráter extra acadêmico

deste “debate agrarista”, e suas profundas motivações políticas (VELHO, 1979).

É fundamental conhecer os trabalhos de José de Souza Martins como balizas deste

debate, ele que se apresenta como o fundador da sociologia rural no Brasil. Professor da

USP por quarenta anos, durante boa parte deste período se dedicou a pesquisar e pensar as

transformações no mundo rural brasileiro, que, para ele, eram sintomáticas das

características peculiares que assumiu o desenvolvimento capitalista no Brasil. Os novos

conceitos criados por ele, somados à inversão das premissas com que tradicionalmente era

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tratado o mundo rural, fazem de sua obra um divisor de águas do “debate agrarista”

brasileiro30.

Analisando criticamente o que já havia sido produzido de conhecimento sobre o

mundo rural brasileiro, Martins concluía que este era marcado por uma análise simplificada,

onde predominavam análises evolucionistas e economicistas, preocupadas em explicar a

sociedade brasileira sob a ótica de modelos europeus, ou a partir de categorias estranhas que

não correspondiam à realidade social brasileira. Sua crítica estava baseada principalmente

na existência de uma leitura ortodoxa do marxismo realizada por muitos autores no Brasil,

amplamente dominante naqueles anos. A seu ver, as leituras “apressadas” das obras de

Marx apresentavam uma sociedade que evoluía linearmente em modos de produção, como

se o modo de produção fosse unicamente caracterizado pelo processo de trabalho. Essas

análises desconsideravam o processo de exploração e as formas de dominação e sujeição,

estas sim definidoras do modo de produção. Para essas teorias, a mesma mentalidade que

regeria o capitalista urbano regeria o capitalista do mundo rural. Martins afirmava que estes

equívocos, presentes em muitos estudos sobre o mundo rural, continuavam a separar aquilo

que o capital já unificara, o rural e o urbano. Além disso, Martins ressaltava que essas teses

careciam de pesquisas empíricas, de investigações teoricamente fundamentadas, “em que o

pesquisador tem o domínio tanto do método de investigação quanto do método de

explicação” (Martins 1986: 100).

Martins partia de algumas hipóteses principais para compreender a dinâmica do

rural. Sua tese central é de que a complexidade do capitalismo no Brasil se expressa, no

mundo rural, pelos diferentes ritmos e tempos deste desenvolvimento (Soto 2002: 105).

Neste sentido, ele relativizava as teses de Marx em “O Capital” e se utilizava mais dos

“Grundrisse” (1991), para provar que os modos de produção coexistem e se transformam

em ritmos diferentes.

Para provar essa tese, Martins fez uma série de estudos empíricos na região da

fronteira, ratificando que era possível a produção capitalista de relações não-capitalistas

30 É importante frisar que as obras de referência citadas na bibliografia não esgotam nem de longe o conjuntoda produção de José de Souza Martins nem de suas reflexões, já que ele escreveu mais de 195 textos, entrelivros e artigos publicados. Aqui se faz um recorte para um das fases de trabalho do autor, que versa sobre o“debate agrarista”. Para os interessados na obra desse autor, há também uma tese e uma dissertação queversaram sobre este autor e discutiram suas balizas teóricas principais (Soto 2002 e Alves 2003), e umaentrevista concedida pelo próprio Martins para a revista Informe, no segundo semestre de 2004.

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(Soto 2002: 106,144-146). Distinguiu os termos não-capitalista e pré-capitalista,

abandonando esse último por estar este carregado de evolucionismo (Soto 2002: 144).

Criticou os evolucionistas, dizendo que

“nessa orientação teórica, a articulação e a subordinação substituem a noção decontradição e eliminam, portanto, as formas não-capitalistas de exploração dotrabalho enquanto mediações determinadas pelo processo de reprodução ampliada docapital, de acumulação. Desse modo, a forma passa a ser o seu próprio conteúdo, queaparece nas ilusões mecanicistas e evolucionistas como “restos” de modos deprodução pré-capitalistas que serão varridos pelo desenvolvimento do capital que ossubordina” (Martins 1984: 77 apud Alves 2002: 47).

Disse também que o capitalismo ao expandir-se redefinia e subordinava relações

sociais não-capitalistas, mas também engendrava estas relações, igual e contraditoriamente

necessárias à sua reprodução. Martins dava como exemplo disso a subordinação da renda da

terra e do modo de produção camponês (Soto 2002: 145-6; 168). Concluindo que o

capitalismo era uma totalidade inacabada, constituída de partes distintas em conflito, com

incoerências e contradições, e que a reprodução das relações sociais implicava também a

reprodução dessas contradições (Martins 1975; 1997; 1979; 1994).

A partir daí, Martins passou a estudar a funcionalidade contraditória de estruturas

arcaicas, ou não-capitalistas, dentro do sistema capitalista brasileiro, que seriam necessárias

para sua reprodução enquanto totalidade dialética, e não como simples reprodução de

dualismos (Soto 2002: 91-95). Como objeto maior dessa pesquisa, Martins elegeu a cultura

caipira, para provar que ela não está necessariamente em contradição com a modernização

tecnológica e o desenvolvimento capitalista (Soto 2002; 82). Em “Capitalismo e

Tradicionalismo” (1975), ele defendeu que

“a modernização da agricultura restringiu-se à adoção de práticas e de técnicas semfazer com que as unidades de produção agrícolas adotassem uma racionalidadecapitalista. Para ele, esta é a contradição fundamental. Em “A imigração e a crisedo Brasil agrário” (1975) mostrou que o agrarismo rústico e o caipira são ofundamento do processo de industrialização e de formação do capitalismo no Brasil”(Soto 2002: 107-108).

Uma segunda hipótese importante de Martins é a de que os meios de vida têm

importância histórica tanto na sociabilidade, quanto na solidariedade e reprodução social do

homem do campo. Percebe-se aqui a influência dos textos de Lefebvre, do Marx de “A

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ideologia alemã” e de Antonio Candido sobre cotidiano (1977), onde estes defenderam que

a historicidade do homem se constrói cotidianamente com os seus meios de vida. Para

Martins,

“O que define a natureza de um processo não é seu resultado, mas o modo como foiobtido, isto é, o modo de produção do excedente econômico. No caso da escravidão,o resultado pode ser capitalista (na produção de mercadorias), mas o modo de obtê-lo não é.” (Martins 1997:96)

Por isso, ele postula que não dá para avaliar só o resultado, mas sim todo o processo

social em si, porque só é possível dizer que o capital é progressista e o camponês é

reacionário se se tem uma visão já teleológica e dogmática do processo de expropriação

(Soto 2002:186). Segundo Martins,

“Seria pura imbecilidade tentar convencer o camponês que está sendo despejado,cuja casa está sendo queimada pelo jagunço e pela polícia, de que deve aceitar talfato como uma contingência histórica, como ocorrência que é ruim para ele, mas queé boa para a humanidade (...) pois é o que vai permitir o desenvolvimento do capital,daquele mesmo que o antagoniza patrocinando violências”. (Martins 1981:13 apudSoto 2002: 191-2)

Martins nesse sentido faz um esforço de relacionar processos microssociais com

situações macrossociais, e dirige sua prática de pesquisa centralmente aos processos

microssociais (Soto 2002: 96-97). Dessa forma, a maior parte da sua obra será preocupada

com aspectos que muitos cientistas sociais considerariam como “menores”, pois não estão

condicionados à análise das grandes estruturas e dos grandes processos, especialmente os

econômicos. Na obra de Martins, é exatamente o “homem simples” e sua sociabilidade que

revelam as grandes contradições de nosso tempo (Martins 2000: 12 apud Alves 2003: 26).

Uma outra opção de pesquisa de Martins foi estudar as particularidades do mundo

rural – o atrasado, as vítimas, o anômalo e o marginal -- como forma de entender os limites

e particularidades do desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Martins discorda das teses

de influência leninista que pregam o fim do campesinato no Brasil. Ele acha que o

camponês é, ao mesmo tempo, resultado e necessidade do desenvolvimento capitalista

brasileiro (Soto 2002: 35). Em seu balanço da obra de Martins, Soto afirma que

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“Para Martins, a existência de relações não-capitalistas e, por conseguinte, docampesinato no Brasil, está dada pelo movimento do capitalismo, que recria esubordina relações sociais não-capitalistas, portanto, é resultado do seu processo deampliação e desenvolvimento” (Soto 2002: 258).

Por último, o autor defende que não são as relações de assalariamento que

caracterizam o capitalismo no campo, mas sim a instauração da propriedade privada da

terra, isto é, a mediação da renda capitalizada entre produtor e sociedade (Soto 2002: 124,

143; Martins 1975). Para ele, o campesinato surge na transição do trabalho escravo para o

livre, com a lei de Terras de 1850 e a imigração estrangeira (Martins 1979). É a propriedade

privada da terra que provoca as contradições sociais e crises no campo e dá origem à

questão agrária. O movimento de expropriação, gerado pela penetração da propriedade

privada capitalista, é o que dá início à questão agrária, pois gera migração para terras mais

distantes, migração para as cidades ou resistências à expulsão (Soto 2002: 126-127).

Parte 3: E onde entra a história nessa história?

Ainda não nos detivemos no campo historiográfico. Que se passava por lá no

período de crises e re-estruturações da ditadura militar? A historiografia marxista de viés

althusseriano penetrou com toda força historiografia brasileira na década de 1970,

carregando consigo tanto a tendência vanguardista de ditar as regras de certo e errado para

as ações dos trabalhadores que estudava, quanto a prescrição das classes com e sem futuro.

Para entender a conformação específica deste campo entendo que, se não grassava nestes

meios uma produção teórica ufanista do capitalismo, mesmo assim ela compartilhava da

mesma problemática da industrialização mundial e suas conseqüências. Em outras

palavras, se a lógica do capitalismo era aceita como avassaladora na análise da

historiografia (CUEVA, 1979), as estratégias dos trabalhadores também deveriam seguir às

mesmas orientações das ditadas por Marx, quando este generalizou a partir da análise do

operariado londrino as explicações sobre a possibilidade de revoluções socialistas em todo

o mundo31. 31 Embora não se relacione diretamente com o que discutimos neste momento, vale a pena lembrar da

ressalva de Tiago B. de Oliveira quando concluiu que "apesar de se alterar a hegemonia da história quantoaos seus personagens principais, colocando "os de baixo" em evidência, a historiografia do movimentooperário reproduz velhos esquemas do poder político, econômico e intelectual que uma região "definidora

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Não é de se esperar outra coisa naquele contexto:

o Brasil e os demais países do terceiro mundo durante o século XX estavam fadadosa "tirar o atraso", pensando e desenvolvendo políticas apoiadas em modelos externosde industrialização, de esquerda ou de direita (Hobsbawm, 1998: 15-16)

Na problemática das pesquisas acadêmicas, a industrialização era um ponto

consensual que representaria o grau máximo de desenvolvimento humano. Pelos partidários

do capitalismo era sinônimo de progresso, fartura e conforto jamais vivido e presenciado

nestes anos dourados; para os seus críticos, era a etapa em que afloravam as contradições

sociais, a luta de classes entre operariado e burguesia se explicitava e se construiria o

socialismo. Para ambos os lados era consenso que o capitalismo imperialista transformou e

continuaria transformando todas as regiões do globo. Algumas delas, mesmo mantendo

lógicas internas diversas, nunca mais funcionariam como antes, numa tendência unívoca de

estreitamento dos laços de dependência (IANNI, 1998).

Quando falamos antes que os primeiros estudos sobre trabalhadores no Brasil a

contrapor a produção tradicional se inseriam na mesma problemática da industrialização

mundial, isso teve como principal conseqüência teórico-política o fato de a classe operária

ser privilegiada como o agente central -- ou mesmo único – da revolução. O movimento

operário, para os setores acadêmicos ligados ao pensamento de esquerda, era a esperança de

futuro e, conseqüentemente, deveria ser mais bem estudado no passado. Para tanto, este foi

o foco privilegiado da resistência política no campo da historiografia, desde uma produção

dita 'tradicional' -- ligada ao estudo das organizações formais de classe (sindicatos e

partidos), das lideranças e das instâncias de dominação (a burguesia e o Estado) -- até os

novos estudos que passam pela cultura operária, formação e cotidiano da classe (com clara

influência da Nova Esquerda Inglesa) (PETERSEN, 1997; BATALHA, 1998: 151).

A isso se somou uma outra divisão 'costumeira' de campos acadêmicos em que à

História, segundo novos critérios e metodologias de rigor e crítica, que se consolidavam

naquele momento, caberia destrinchar "o mais antigo", visto como "o mais difícil" no

trabalho de decodificação das fontes arquivísticas, algo que pudesse se submeter ao crivo

metodológico que qualificaria a formação de historiador. Os estudos temporais mais

recentes eram vistos como muito escorregadios... fontes arquivísticas escassas ou de acesso

de sentido" pudesse ter em relação às outras" (...) no caso, as análises do eixo Rio-São Paulo.(OLIVEIRA, 2001).

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restrito levando a necessidade de "ir a campo", fazer entrevistas ou buscar novos meios

alternativos aos arquivos, métodos estes que continuam sendo mais habituais às outras

ciências sociais (HOBSBAWM, 1998).

Assim, a historiografia brasileira 'dos de baixo', ao priorizar o olhar para grupos

sociais não dominantes nem determinantes, optou pelos caminhos que considerou melhores

para elucidação de processos históricos e seus problemas teóricos: os escravos na colônia,

os homens livres e pobres no império e o proletariado urbano na primeira república. Estas

vertentes são fruto de um amadurecimento muito benéfico do olhar que incidia sobre estes

grupos sociais e dos métodos que os tratavam, graças à trajetória de debates internos ao

campo historiográfico e às influências de outros campos disciplinares, sobretudo da

antropologia (PEDROZA, 2003; NEGRO, 1997; SERNA & PONS, 1993).

Mas, ao mesmo tempo, enquanto a historiografia se encarregaria de pensar um

passado com possibilidades de futuro, ou, em outras palavras, as origens do que (e de

quem) construiria o futuro, ficou relegado à antropologia o estudo sobre grupos que "não

fizessem diferença" no conflito com o capitalismo mundial (índios, bruxas, camponeses).

Pelas mesmas razões por que o camponês foi considerado marginal e residual naprodução, a avaliação de suas representações e ações na análise política sempre foiminimizada. A minoridade conferida à ação política do camponês está presente emdiversas tendências de interpretação sobre o meio rural brasileiro. É ilustrativorelembrar as análises que explicavam o comportamento político do camponês comopatológico ou certas concepções da esquerda que julgam o camponês um indivíduopreso a ficções alienantes, cabendo aos ativistas a tarefa magistral de "ensiná-lo"(Moura, 1986: 52)

Seguindo o raciocínio de Margarida Maria Moura,

O uso abusivo e formalista de conceitos, como 'classe fundamental', por exemplo,tem servido, muitas vezes, para atribuir aos operários ideologias e práticas sociaisque concretamente não desempenham, mas que utopicamente desejava-se queviessem a desempenhar (Moura, 1986: 53)

Portanto, a conseqüência destas concepções tem sido, freqüentemente, a glorificação

do proletariado urbano (e às vezes também do rural) como classe redentora da ordem social

injusta.

Antes de finalizar, é preciso ao menos registrar a influência dos trabalhos de Edward

P. Thompson sobre os novos estudos historiográficos “dos de baixo”, ao criticar as teorias

consagradas e desmontar preconceitos macrológicos e ortodoxos recorrentes na

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historiografia até então (1981; 1998; 2001). Sobre o universo rural, a influência de

Thompson serviu, por exemplo, para relativizarmos a generalização do modelo de ação das

Ligas Camponesas para julgamento de todas as ações camponesas, e criticarmos a

manutenção da dicotomia operários X camponeses. Mesmo entendendo que as cisões

disciplinares fizeram com que Thompson fosse apropriado diferentemente entre

historiadores e sociólogos, sua contribuição para esses campos acadêmicos foi inegável

para o alargamento dos objetos da história e sociologia do trabalho rumo a uma nova visão

não institucional do processo político, que passa pela construção de identidades na luta de

classes, e pela apreensão de que a resistência camponesa no Brasil é uma herança cultural.

Mas o conjunto de trabalhos surgidos a partir destas novas preocupações já é tema para

outro artigo.

Considerações finais

Espero ter conseguido percorrer com o/a leitor/a um pouco da trajetória histórica dos

estudos sobre campesinato na historiografia brasileira. Mas este artigo tem muitas

limitações. Dentro deste limite de páginas, seria muito difícil fazer uma discussão mais

completa, das principais obras sobre o campesinato dos fisiocratas até toda a produção

acadêmica atual. Por isso, o recorte necessário que fiz tentou pontuar as principais

discussões sobre a “questão camponesa” dentro da historiografia de vertente marxista

brasileira, com suas principais influências internacionais, inflexões políticas e alguns

debates com outras escolas.

Essa linha-base exclui, deliberadamente, tanto os fisiocratas quanto todos os

trabalhos que, baseados em referenciais teóricos mais diversificados, e atuais, já se colocam

outros problemas que não as questões básicas pensadas pelos marxistas durante pelo menos

um século (quais sejam, a extinção/diferenciação do campesinato pelo capitalismo).

Busquei pontuar o início dessas mudanças em meados da década de 1970, com o início da

discussão sobre o modo de produção escravista colonial e o novo papel dos homens livres e

pobres na história.

A idéia era que esta “revisão de bibliografia contextualizada” pudesse explicar as

razões das preferências da historiografia pela análise de outros grupos de trabalhadores que

não o campesinato. A hipótese que aventei é de que, malgrado as origens comuns destes

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estudos em fins do século XIX, a ossatura já consolidada dos campos acadêmicos com o

ressurgimento do interesse pelo tema, na década de 1960, fez com que os interesses e

problemáticas da historiografia tivessem se distanciado deste recorte.

Por isso, nos dias de hoje, no debate sobre campesinato falta que os historiadores e

historiadoras vejam que podem contribuir com o hábito de desnaturalizar o que parece

dado desde sempre, pela busca de articulação entre os diferentes fenômenos, pelo costume

de pensar processos, integrando tempo e lugares diferentes (FONTES, 1998: 2). Se já nos

atrasamos ou ignoramos este debate, considero este silenciamento uma falta grave.

Primeiro, porque me parece considerar como “poeira da história” um campo tão crucial

para nosso devir quanto o é a questão agrária nos países de terceiro mundo. Depois, porque

algumas vozes já têm há muito nos alertado que em fatias acadêmicas o verdadeiro

conhecimento nunca se dará, e não parece ser esse isolamento o caminho para qualquer

proposta supradisciplinar de sucesso (SANTOS, 1989). Enfim, o campesinato precisa de

reflexão histórica. Não de qualquer uma, mas daquela que

incorpora as diversas modalidades de explicação dos processos sociais, desde asdimensões mais abrangentes (estruturais ou psicologizantes) até as proposições maispontuais, não se limitando a produção dos historiadores stricto sensu (...) Reflexãohistórica pois, será tomada em seu sentido mais amplo, incorporando contribuiçõesoriundas de diversas áreas (...)(FONTES, 1998: 2).

Deixo aqui a idéia, como instrumento de análise para a historiografia, que o

campesinato passe e ser visto como processo, que se tece -- e destece -- nas experiências e

relações sociais, para que se possa ser historicizado. E que também o processo histórico do

qual faz parte seja percebido como não determinado a priori por nenhuma lei ou teoria

geral, para que possam ser percebidas as complexas contradições e tensões geradas pela

relação entre campesinato e capitalismo no Brasil.

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A política do poder: o exército na era de Augusto•

Maria Aparecida de Oliveira Silva32

RESUMO Após as vitórias sobre Marco Antônio e Crasso em Actium, Augusto implementou mudanças napolítica militar, ao ser aclamado imperador de Roma, centralizando o comando do exército sob seucontrole. O objetivo deste artigo é demonstrar que sua política contribuiu para a construção de umanova ordem militar, cuja influência estendeu-se por toda a história política de Roma. PALAVRAS-CHAVE: Augusto, Exército Romano, Política Romana

ABSTRACTAfter the victories over Marcus Antony and Crassus in Actium, Augustus implemented changes ofthe military policy and centralized the command of the Army under his control immediately afterhe was acclaimed emperor of Rome. The aim of this article is to demonstrate that his policycontributed to construct a new military order and its influence was spread throughout the politicalhistory of Rome.

KEY-WORDS: August, Roman Army, Roman Policy

O papel do exército nos primeiros anos de Augusto

Ao tomar ciência do assassinato de Júlio César, seu sobrinho-neto, Otaviano, partiu

de imediato à cidade de Roma, onde Marco Antônio já se preparava para suceder o ditador.

Otaviano impediu que Marco Antônio e alguns membros do Senado ocupassem o poder

político ao pressioná-los à leitura do testamento no qual Júlio César, que também era seu

pai adotivo, o nomeia seu sucessor. As circunstâncias, que se apresentavam após a abertura

do testamento, levaram à formação do triunvirato: Otaviano, Marco Antônio e Lépido. O

primeiro passo de Otaviano para garantir a sua participação no governo romano, mesmo

com a oposição da sua mãe e do seu padrasto - Marco Filipo - foi dado quando ele

reivindicou o seu direito adquirido de exercer o poder em Roma. Esses fatos, narrados por

Suetônio na biografia de Augusto, demonstram o interesse de Otaviano em adentrar a esfera• Este artigo é fruto de um trabalho final de curso de Pós-Graduação, intitulado: “Permanências e

Transformações no Principado de Augusto”, ministrado pela Profa. Dra. Maria Luiza Corassin.32 Doutoranda em História Social pelo Departamento de História da Faculdade Filosofia, Letras e CiênciasHumanas da Universidade de São Paulo. FFLCH/USP. Bolsista da FAPESP. E-mail: [email protected]

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do poder romano, tal empenho resultou-lhe em doze anos de poder partilhado e quarenta e

quatro anos de absoluto poder.

Nota-se na narrativa de Suetônio que, para o exercício e a manutenção desse poder

reivindicado por Otaviano, fez-se necessária a imediata organização de um exército

particular, como pode ser visto nesta passagem:

Então, ele recrutou tropas e doravante governou o Estado, primeiro com Marco Antônio e

Lépido, depois só com Marco Antônio durante doze anos e, finalmente, sozinho por

quarenta e quatro anos ( Suetônio, VIII, 3).

Da necessidade de organização de um exército para o exercício do poder em Roma

depreende-se que esta sociedade estava permeada pela violência, incitada pelas disputas

internas, o que tornava o poderio bélico de um governante o instrumento indispensável para

sua permanência no poder. Cumpre ressaltar que o uso do exército como suporte político se

acentuara após as conquistas romanas decorrentes das Guerras Púnicas. As novas

dimensões do território romano reclamavam a formação de um exército capaz de mantê-las

e administrá-las, a fim de que se mantivessem alinhadas e aliadas à política romana.

Os problemas de tal expansão apresentaram-se quando os fatos demonstraram que

as conquistas romanas não eram apenas do Império Romano, pois os líderes do exército

romano desfrutavam de grande prestígio junto aos povos conquistados, desse modo, a

autoridade do Império Romano foi suplantada pela autoridade dos líderes locais, fenômeno

observado na Gália com César. A personificação das conquistas em Roma teve como

resultante o aparecimento de diversos exércitos dentro de um, gerando uma fragmentação

que atingiu não apenas o poder militar, mas também o poder político. Um dos artifícios de

Otaviano para agregar várias legiões foi o de adotar o nome de César, passando a se chamar

César Otaviano.

Nesse quadro de incertezas e divergências políticas, César Otaviano apresenta-se

como a figura do filho ultrajado que estava decidido a vingar a morte do pai, com isso, parte

dos veteranos leais a Júlio César passou a integrar seu exército, pois como apontou

Southern (2001: 36-37), as legiões cesarianas e seus veteranos estavam inseguros quanto à

escolha do novo comandante e, com isso, muitos se aliaram ao exército de Marco Antônio,

o qual havia recebido o comando da Macedônia e o governo da Gália Cisalpina. A nosso

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ver, este sentimento de vingança, manifesto novamente na guerra contra Marco Antônio, foi

utilizado com mestria por César Otaviano no intuito de gerar uma comoção social e com

isso obter a aprovação dos cidadãos, uma vez que ele era o indivíduo que simbolizava essa

luta contra os infiéis.

A adesão da sociedade romana ao empreendimento bélico de César Otaviano contra

os assassinos de Júlio César e, posteriormente, contra Marco Antônio e Cleópatra, revela

que os romanos ansiavam por um indivíduo que conduzisse Roma ao caminho da ordem e

da paz internas. No período de interdictio aquae et ignis, isto é, de exílio e confisco dos

bens dos inimigos da República (PICCAROLO, 1939: 11) e da eliminação dos assassinos

de Júlio César, conforme concluiu Néraudau (1996: 78), a imagem de César Otaviano era a

de um homem arrivista, ambicioso, violento, detentor de um perfeito cinismo e uma

vontade obstinada de ocupar o poder. Depreendemos de tais acontecimentos que as medidas

violentas de Augusto pretenderam eliminar as facções coexistentes no cenário político

romano as quais impediam o restabelecimento da ordem social.

César Otaviano tinha motivos de natureza pública e privada a justificarem a

vingança pela morte de Júlio César, tendo em vista sua relação de parentesco e sua

legitimidade sucessória. Em virtude disso, qualquer atitude de Otaviano nesse sentido

contaria com o apoio dos romanos, pois eles também sentir-se-iam vingados, uma vez que

Júlio César, conforme a vontade popular, seria sagrado ditador vitalício, mas sua morte

impediu que isso ocorresse. César Otaviano era o representante do Divus Julius, a ele cabia

a missão de vingar a morte de seu pai, o seu assassinato se tratava de uma questão pessoal e

de Estado para Augusto, portanto, suas ações corresponderam às expectativas dos romanos,

conferindo legitimidade à contínua supressão dos opositores da República.

A justificativa para o uso extremado da violência nos primeiros anos de César

Otaviano está nas primeiras linhas das Res Gestae, nas quais é possível notar que Augusto

obteve a aceitação da sociedade, representada na figura dos Senadores, os quais o

agraciaram por suas iniciativas de extinguir os grupos contrários, como pode ser observado

nesta passagem:

Na idade de dezenove anos, recrutei, por iniciativa própria e com os meus própriosrecursos, uma armada que me permitiu dar liberdade ao Estado que era oprimido por umafacção. Como recompensa, o Senado, por meio de seus decretos honoríficos, admitiu-me

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em seu círculo, no consulado de Caius Pansa e de Aulus Hirtus, dando-me o direito de falarno mesmo nível dos consulares, e ainda, conferiram-me o imperium” ( Res Gestae, I, 1-233)

Esses anos de violência, na interpretação de Néraudau, estavam sob o signo da dor e

do furor, em latim dolor e furor, dois sentimentos característicos da psicologia dos heróis

da tragédia latina. A dolor seria o desejo de vingança, enquanto o furor nasceria do destino

inconteste do herói de cometer atos terríveis, eliminando compulsivamente os inimigos,

como comportava o seu destino heróico (Idem: 83). Ainda no entender do autor, César

Otaviano soube aproveitar a imagem de uindex libertatis, ou seja, de defensor da liberdade;

primeiro, ao declarar guerra aos contrários à manutenção da República e, posteriormente, ao

investir contra Marco Antônio, atuando como protetor do Ocidente contra as traições do

Oriente. Dessa maneira, César Otaviano pretendia amenizar as sucessivas ações violentas

que marcaram os anos de 43 a 31 a. C., isto é, desde a constituição do triunvirato até a

vitória em Ácio (Idem: 136).

A união de Marco Antônio e Cleópatra incomodava o sentimento romano de

superioridade nutrida em relação ao mundo Oriental, que em última instância era grego, à

medida que os romanos percebiam a orientalização de Marco Antônio, fato explorado por

Augusto como prova da traição aos costumes e à tradição romana cometida pelo triúnviro

Marco Antônio. Trabalhos arqueológicos recentes demonstram que não faltavam indícios

do fascínio que Cleópatra e o Oriente exerceram sobre Marco Antônio, por volta de 34- 35

d. C., foram cunhadas moedas em que essa união é celebrada (BADIAN, SHERK: 1984:

111). Além do testamento de Marco Antônio, que revela a intensidade do romance do

triúnviro com a rainha egípcia, havia muitas outras provas desse envolvimento que

poderiam se utilizadas por César Otaviano.

Na vida de Marco Antônio, escrita por Plutarco, observa-se que havia uma

espionagem que informava César Otaviano sobre os fatos ocorridos no palácio egípcio, estas

as informações chegavam, incontinente, ao conhecimento do povo romano, como vemos

neste trecho:

Quando ela adentrou o palácio, no desejo de agradá-la, presenteou-a com regalos que nãose pode dizer de porte pequeno, nem de pouco valor: a Cele-Síria, Chipre e grande parte daCilícia; somada à região da Judéia produtora de bálsamo e parte da Arábia Nabatéia que

33 As traduções são de responsabilidade da autora.

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confina com o mar Exterior. Estes presentes provocaram indignação nos romanos.(Antônio, XXXVI, 2)

A propaganda de César Otaviano contra a união de Marco Antônio resultou na

construção da imagem de um traidor do povo romano que pretendia orientalizar o ocidental

mundo romano, destruindo sua tradição e colocando-o sob o domínio de uma bárbara. Essa

imagem de Marco Antônio atendeu às expectativas de César Otaviano, pois redundou no

fortalecimento de seu poder e na adesão de novas legiões a seu exército.

Como observou Piccarolo, a verdadeira política de César Otaviano se inicia após a

batalha de Ácio, com a eliminação de Marco Antônio e de toda a oposição (PICCAROLO,

1939: 123). Depois do evento, César Otaviano mudou sua política de extermínio para

tornar-se o pacificador, unificando as instituições e centralizando o poder em suas mãos.

Como notamos, as alterações na natureza da política de César Otaviano devem-se à

derrubada de seu último e representativo inimigo, Marco Antônio. Com a unificação do

poder político e militar, somada à sua consagração em Imperator e Augustus; o novo

Imperador preocupou-se em conferir unidade à fragmentada sociedade romana, pondo fim

às insatisfações existentes. Como pode ser percebido nessa passagem de Tácito:

Quando o assassinato de Brutus e Cassius tinha desmantelado a República; quando Pompeutinha sido esmagado na Sicília e, com Lépido neutralizado, e Marco Antônio assassinado e,até mesmo o partido Juliano estava sem líder, Augusto, após renunciar seu título triunvirale autoproclamar-se um simples cônsul, com autoridade na tribuna para defender os comuns,primeiro pacificou o exército por meio de gratificações, cativou a população barateando omilho, reconciliou o mundo com suas cortesias de paz que, passo a passo, iniciaram suaascensão e que unia em sua própria pessoa as funções do Senado, de magistratura e dalegislatura. Não havia oposição, os mais corajosos espíritos haviam sucumbido em camposde rendição ou por meio de proscrição, enquanto o resto da nobreza encontrou umaagradável aceitação da escravidão, o meio mais fácil para a riqueza e obtenção de cargos. Ecomo eles haviam tido sucesso na revolução, agora se sustentavam pela nova ordem esegurança preferível à antiga ordem e aventura. O estado das coisas também não estavaimpopular nas províncias onde a administração pelo Senado e o povo havia sidodesprestigiado pela animosidade dos magnatas e pela ganância dos funcionários públicoscontra os quais havia uma frágil proteção no sistema legal para sempre desordenado pelaforça, pelo favoritismo ou, como último recurso, pelo ouro.” (Anais, I, 1-3)

No quadro retratado por Tácito, a fonte relata como a falta de liderança no partido

Juliano propiciou a Augusto a ocupação desse vazio no comando, utilizando para isso do

emprego da força militar. Ao instaurar o medo na sociedade, por intermédio de uma

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vigilância permanente, Augusto intimidava os mais acomodados, enquanto conquistava

novas regiões com o uso da força militar, dessa forma, ele pode reduzir o preço do milho e

com isso, obter o apoio popular. A importância do exército na constituição do Império é

sentida na eliminação dos opositores e na conquista de novos territórios proporcionaram a

Augusto sua ascensão e a conseqüente centralização do poder em suas mãos.

O exército de Augusto

Com o recebimento das honras conferidas após a batalha de Ácio, Augusto unificou

os exércitos, alcançando-se à condição de líder supremo da corporação. No parecer de

Southern (2001: 197), a liderança de Augusto devia-se ao fato de que, embora a sua posição

fosse a de Princeps, o primeiro entre os cidadãos, e de Imperator, comandante supremo do

exército, seu comportamento era modesto e comedido. A legitimidade de seu comando

estaria na auctoritas inerente à sua posição e invocada por Augusto, o que explicaria o fato

de ele não ter criado um posto equivalente ao que ocupava no exército. Concluímos que

Augusto não ambicionava incorporar sua imagem à do exército ocupando o mais alto posto

dentro da corporação, seu intento era afirmar-se como um civil, cujo poder de imperium lhe

conferia o comando do exército, deixando claro que os soldados lhe deviam obediência,

uma vez que ele representava a sociedade civil. Dessa forma, colocava a sociedade civil

acima do corpo militar, invertendo a ordem estabelecida no período das guerras civis.

No comando da corporação militar, ainda que Augusto propagasse a paz em sua

ideologia estatal nos seus monumentos e construções (MACDONALD: 1986: 146), ele não

podia romper com o que Finley (1985: 80) denominou de “Estado de conquista”. A Pax

Romana, como concluiu Woof (1993: 172), não estava relacionada com a ausência de

guerras , mas significava um período em que os acordos militares eram de caráter

terminativo ou preventivo. Para Woolf (Idem: 176), esse período representava a unidade do

povo romano e o sentimento de humanitas criado pelo poder romano em seus assuntos

políticos, relacionando a Pax ao seu Principado (Idem: 178). Pois como Le Bohec (1994:

207-208) apontou, a ideologia imperial estava embasada no trinômio: vitória, paz e

prosperidade.

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Na prática, a política romana mantinha a sua natureza expansionista pautada no seu

poderio militar, assim, o exército permanecia uma peça fundamental na política de Augusto.

É preciso considerar que Augusto escreveu nas Res Gestae que:

Eu tornei o mar pacífico e livre de seus piratas. Nesta guerra eu capturei cerca de 30.000escravos os quais tinham escapado de seus donos e pegado em armas contra a República, eeu os devolvi aos seus donos para a punição” (Res Gestae, XXV,1)

A crer nos números de Augusto, conclui-se que seu exército era numeroso e bem

armado para dominar tantos escravos. A questão principal é compreender como Augusto

conseguiu tantas vitórias militares, sem conhecer profundamente os assuntos de guerra?

Colaboraram para o seu sucesso os conselhos e as ações militares de Agripa, e,

fundamentalmente, a presença atuante do exército nas conquistas do imperador, alcançada

pela profissionalização de seus membros através do pagamento do soldo e da

implementação de uma rígida disciplina militar. Além dessas medidas, outra de grande

importância foi a redução do número de legiões do exército que passou de cinqüenta para

vinte e oito, redistribuindo-as em locais estratégicos visando a proteger as fronteiras do

Império e a montar um sistema de segurança interna de Roma.

Augusto foi o primeiro a criar um exército permanente com vinte e oito legiões, mas

no ano de sua morte incluía vinte e cinco permanentes, com aquartelamento regulares,

efetivos e nomes definidos. Três legiões – XVII, XVIII e XIX – tinham sido aniquiladas no

desastre de Varus e esses números jamais voltaram a ser usados. Com o pagamento do

soldo, houve a profissionalização do exército e, como o soldado dependia da instituição,

validou-a desenvolvendo um espírito corporativo imprescindível à coesão nas ações bélicas.

A dedicação exclusiva ao serviço militar favoreceu a criação de novas técnicas que

viabilizaram a conquista de territórios antes considerados inexpugnáveis (KEPPER, 1998:

160-161).

Entretanto, somente o pagamento do soldo não geraria resultados tão positivos à

armada romana, fez-se necessária a organização interna da corporação, com o

estabelecimento de regras visando à criação de uma disciplina, ou seja, de uma ideologia

militar que garantisse a fidelidade do soldado ao seu Imperador. O exército imperial

diferenciava-se, em muitos aspectos, do exército republicano, porém nota-se a permanência

de práticas correspondentes ao período da República, como nos relata Suetônio:

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Ele efetuou muitas mudanças e introduziu inovações no exército, ao mesmo tempo em quereviveu alguns costumes antigos. Ele exigiu rigorosa disciplina. E foi com muita relutânciaque ele permitia que mesmo seus generais visitassem suas esposas, mas somente na épocado inverno. (Suetônio, XXIV,1)

As legiões romanas permaneceram com os mesmos nomes, números e títulos; para o

soldado receber os benefícios da aposentadoria deveria servir por um longo período, a

estrutura financeira que asseguraria o pagamento dos salários continuava a mesma. Até o

ano de 5 d.C., o serviço militar admitia jovens de dezesseis anos, somente após esse ano,

passou a recrutar rapazes a partir de vinte anos. No ano seguinte, em 6 d.C., Augusto criou

o aerarium militare cuja função, por meio da cobrança de impostos, era obter fundos para o

pagamento de gratificações aos soldados. Houve mudanças nas formas de arrecadação do

erário para a provisão do exército e medidas de contenção de gastos como a proibição do

casamento de soldados durante o serviço.

O Imperador autorizou a formação de um segundo exército, constituído de

provinciais e no qual o comando era destinado aos oficiais romanos da classe eqüestre.

Após vinte e cinco anos de serviço, esses homens tornavam-se cidadãos romanos. Essas

legiões tinham, porém, uma situação inferior e eram chamadas de Auxiliares, servindo

como parte acessória do exército romano. Sua finalidade era amenizar o peso do serviço

militar para os cidadãos e eliminar a necessidade de recrutamento compulsório.

A importância da hegemonia marítima no mar Mediterrâneo para o controle de suas

rotas comerciais concorreu para que Augusto criasse uma marinha permanente. Parte da

esquadra ficava ancorada em Miseno, no sul da Itália, e a outra em Ravena, no Adriático. A

frota era grande, estima-se que o número de remadores, marinheiros e soldados atingisse o

contingente de dez mil homens. Os navios pequenos e leves eram usados principalmente em

funções policiais como a perseguição e a caça de piratas.

As inovações continuaram, Augusto formou um grande destacamento com o

objetivo especial de proteger a pessoa do Imperador. Ao contrário do costume anterior, um

comandante-chefe, o da Guarda Pretoriana (cohors praetoria), fixara residência em Roma.

Além da Guarda Pretoriana havia três cortes urbanas (urbanae cohors) recrutadas entre os

cidadãos, as quais compunham uma espécie de polícia militar. A manifesta preocupação do

Imperador com a sua integridade física revela a fragilidade das relações políticas em Roma,

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pois, a qualquer momento, poderia surgir um grupo de revoltosos interessado em usurpar-

lhe o poder.

Outra providência adotada por Augusto, que evidencia seu temor de uma revolta

militar que colocasse termo ao seu Império foi a retirada dos assuntos militares da

competência do Senado e da Assembléia Popular (Idem: 150-154). Dessa forma, Augusto

pretendia distanciar os civis da cultura militar. Seu principal objetivo dissociar os assuntos

militares dos cidadãos e, com isso, pacificar os civis tendo em vista a sua própria proteção.

A preocupação de Augusto com as questões relativas à segurança da cidade, das

províncias e com a figura do Imperador, revela a instabilidade do poder em Roma ao

mesmo tempo em que explicam a longevidade do Império de Augusto. Se, por um lado, a

reorganização da defesa do Império demonstrou a debilidade da estrutura do poder; por

outro lado, ao concluí-la, Augusto conferiu segurança aos cidadãos e aos moradores de

Roma, bem como a confiança de que o Império se tratava de algo duradouro.

Penso que a grande façanha de César Otaviano foi a de criar o Exército de Augusto,

assegurando a preservação de todas as demais inovações implementadas durante o período

em que esteve no poder. Como observou Le Bohec (op. cit: 182), Augusto fez excelentes

escolhas na esfera militar e não por coincidência, os melhores generais de seu exército

integravam a sua família. Os casamentos de Júlia com Agripa, Lívia com Tibério e Antônia

com Drusus são resoluções augustanas que apontam para a tênue relação existente entre a

formação de um exército forte e a permanência de Augusto no poder.

O soldado de Augusto

Á medida que o Império crescia, aumentava a necessidade de efetivo militar para as

guerras de conquista, bem como para a garantir o domínio das províncias conquistadas. O

número de ricos cidadãos romanos mostrou-se insuficiente para a demanda do exército,

assim foi preciso incluir os pobres nas fileiras militares. Conforme Carrié (1991: 90), o

exército ao abrir-se aos pobres e aos proletários, em busca de prestígio, de promoção no

estatuto social e de salários, sem o sentimento de cidadania de outrora, dissociava o ofício

das armas do ofício do nobre cidadão. Segundo o autor, tal característica do Exército de

Augusto será a marca inovadora e permanente da versão do soldado romano.

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Como formação militar, o soldado recebia um treinamento inicial que consistia em

marchar diariamente a fim de aperfeiçoar o passo militar. Nos meses de verão, o soldado

marchava vinte milhas romanas que deveriam ser concluídas em cinco horas, nessa estação,

os soldados também praticavam a natação. Outros exercícios como a corrida, salto, treino

com armas e carregamento de bagagens também eram executados pelo soldado (WATSON,

1985: 54-55). O estágio seguinte compreendia o aprimoramento das técnicas adquiridas

durante o primeiro treinamento. O soldado recebia um treinamento físico específico

desenvolvendo as habilidades com as armas, bem como aprendia a montar cavalos, sendo

capaz de executar várias acrobacias com o animal (Idem: 61).

Após o treinamento inicial, o soldado era preparado para o combate em campo

marchando corretamente por longas rotas com pesadas bagagens, aprendendo técnicas de

sobrevivência em ambientes hostis e reconhecendo o território, estes soldados eram

conhecidos como as mulas de Mário (muli Mariani). O objetivo básico desses treinamentos

era conferir ao exército romano superioridade militar sobre o bárbaro nos embates. O

soldado formado poderia aspirar a funções diferenciadas, entre elas, a de immunes, um

soldado que era excluído dos serviços inferiores do acampamento (Idem: 75).

A despeito das mudanças implementadas por Augusto no exército, vários aspectos

da antiga organização militar atuavam conforme a tradição, de acordo com Carrié (op.cit.:

91) dois princípios fundamentais foram mantidos: o conceito de cidadão-soldado,

reinventado para soldado-cidadão e a exclusividade dos cargos de comando conferida às

classes superiores. Ao exigir soldados com formação literária e aritmética para os cargos

superiores, a seleção social que subjazeu no processo de escolha do comandante favoreceu

a permanência dos bem-nascidos nos postos mais elevados e com salários diferenciados

(TELLEGEN-COUPERUS, 1993: 81). O soldado, com conhecimentos literários e

aritméticos, pertencia ao grupo dos principales, dentre as diversas funções desempenhadas,

a mais comum era a de escrivão (librarius legionis), contudo, o cargo que despertava o

interesse do soldado qualificado era o de Centurião (WATSON, op.cit.: 77).

O soldado de Augusto recebia 225 denários por ano, a mesma quantia paga por Júlio

César, não se sabe ao certo qual o valor pago aos comandantes das legiões. Os vigiles

recebiam o mesmo valor dos soldados e as forças auxiliares, dependendo da função, poderia

receber de 100 a 225 denários por ano. Já um integrante da Guarda Pretoriana percebia a

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quantia de 450 denários por ano (Idem: 95-99). Em um outro estudo no qual foram

analisados papiros referentes ao pagamento dos soldados estacionados no Egito, Alston

(1994: 121) concluiu que os auxiliares recebiam o suficiente para o pagamento das despesas

com a sobrevivência e com as armas de guerra.

O exército romano empregava o sistema de premiações e punições para estimular a

coragem do soldado e manter a disciplina do acampamento. A cerimônia da condecoração

servia para recompensar o soldado pela sua marcada contribuição a Roma, na qual ele

poderia receber colares (torques), bandanas (armillae) e discos (phalenae). O grupo dos

principales recebia coroas diversas como corona áurea, corona vollaris ou a corona

muralis. Castigos exemplares eram aplicados aos soldadoos que rompessem com a

disciplina militar, como por exemplo, o decimation, punição na qual dez homens de uma

cohorte eram escolhidos para que fossem apedrejados ou golpeados pelos demais soldados

da legião (Idem: 115-119).

Os severos castigos aplicados nos soldados indisciplinados e a rigorosa rotina

militar contrapunham-se à imagem que os cidadãos civis faziam do soldado-cidadão, visto

como dispendiosos, fanfarrões, enfim, um desperdício do erário. No entanto, o salário do

soldado de Augusto, se comparado ao pago na época dos Gracos, 112 denários e meio,

parece superior, entretanto, como observou Watson (op. cit.: 89), de 125 a. C. até o governo

de Júlio César, o soldado recebia o salário após descontar o alimento e as armas

consumidos, mas não pagava as vestimentas, enquanto na época dos Césares, havia a

dedução dos gastos com vestuário, alimentação e armamentos, cujos preços eram

reajustados mais amiúde, onerando as despesas do soldado (Idem: 89).

No entender de Carrié (op. cit.: 91), a exclusão do exército da sociedade civil foi a

razão preponderante para que esta perdesse o contato com a realidade militar, construindo

“verdades” a partir do imaginário popular civil sobre o soldado. Esse pensamento abstruso

dos civis transformou o soldado numa abstração na qual “o soldado é um miles, termo

singular com valor coletivo.” A visão equivocado do soldado alimentada pelos civis

contrapõe-se à narrativa de Suetônio na qual a disciplina era fundamental para o exército:

Depois das guerras civis, ele nunca chamou nenhum dos membros das tropas de“companheiro”, nem na Assembléia e nem num edito, mas sempre “soldados” (...)pensando que esse termo tão bajulador “companheiros” não condizia com a disciplina

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militar, com a tranqüilidade dos tempos tanto no Estado como em seus assuntos privados(Suetônio, XXV, 1)

O impacto dos salários pagos aos militares na economia dos locais em que estavam

estacionados nas fronteiras é percebido pelo aparecimento de cidades em torno dos

acampamentos. A importância do soldado na dinamização da economia dos vilarejos

ocorreu devido à sua condição de consumidor e, principalmente, pela sua atuação como

agente responsável pelo aumento da disponibilidade de crédito na região, o que se dava por

meio da concessão de empréstimos aos seus habitantes. O soldado operava como um agente

econômico, como concluiu Carrié (op. cit.: 111), na qualidade de consumidor ou na de

emprestador de pequenas somas, o soldado alimenta e propaga as formas monetárias da

economia. Nesse contexto, o soldado desempenhava um papel importante para o

crescimento econômico do Império, bem como para o fortalecimento das relações entre os

romanos e os provinciais.

Para Carrié (Idem: 108), outra contribuição dos soldados para o fortalecimento do

Império Romano estava na aculturação dos soldados oriundos das províncias, dessa forma,

eles atuavam como um agente de unificação cultural, já que o exército romano propagava a

sua “cultura militar”. A maior parte das legiões estavam estacionadas nas regiões menos

desenvolvidas do Império, e, em certa medida, os soldados poderiam ser considerados os

pioneiros da civilização romana. Segundo Watson (op. cit.: 144), os soldados eram o

elemento-chave para a romanização do Império. As influências da cultura romana nas

localidades onde havia legiões romanas apareciam nos hábitos alimentares, nas construções

e na religião de seus habitantes.

A lealdade do soldado a Augusto compõe o pilar da disciplina militar romana. Sua

fidelidade era assegurada pela propaganda estatal augustana, pelo pagamento do soldo, pelo

juramento prestado nas Sete Colinas e ainda, pelo sentimento de orgulho de ser membro do

exército da maior potência do mundo antigo. Embora, como apontou Keppie (1996: 382), a

excessiva confiança no potencial militar de algumas legiões auxiliares poderia funcionar

contra o Império, como por exemplo, na revolta da Panônia em 6 d.C. na qual os auxiliares

da Dalmácia voltaram-se contra o seu comandante romano Maroboduus.

Restringir a lealdade do soldado de Augusto ao recebimento do soldo, constitui-se

em uma visão tão equivocada quanto a de limitar o mérito de seu exército aos resultados de

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caráter meramente militar, pois desconsidera a sua função dinamizadora da economia, tais

análises limitam o seu papel na disseminação da cultura romana pelos lugares mais

longínquos do Império além de sua importância na ocupação territorial do Império. Ainda

de acordo com Keppie (op. cit.: 377), em 16-14 a. C., Augusto e Agripa supervisionaram

um programa de colonização e assentamento de colonos nas províncias, provavelmente,

aqueles que lutaram em Ácio. Em suma, nota-se que Augusto percebeu no exército o apoio

necessário para o desenvolvimento de sua política imperialista, valorizando-o, prática

repetida por seus sucessores.

Conclusão

Sem desconsiderar a propaganda imperial presente nas artes cênicas, na literatura,

nas construções, nos monumentos, é preciso avaliar que a violência percebida na época

republicana não se dissipou com a mudança de governante, ela permaneceu, o que mudou

durante o Principado de Augusto foi o bem-sucedido controle da violência ainda existente,

bem como a eliminação dos grandes opositores e a cooptação dos pequenos.

Visto que a violência já estava entranhada na mentalidade dos romanos, foi

necessária a adoção de medidas eficazes para refreá-la, tais como; instauração de uma

milícia interna para controlar os ânimos mais exaltados, a criação de uma guarda pessoal

para o Imperador – Guarda Pretoriana - a fim de garantir-lhe estabilidade no poder. Além

dessas medidas, também pode-se destacar o posicionamento das legiões em territórios

estratégicos do Império para a proteção das fronteiras enfim, a violência no território

romano permanecia sob o controle do Imperador, que estava sob a égide do exército.

Em suma, desde a sua decisão de tomada do poder até a criação do Principado,

Augusto encontrou no exército a ferramenta mestra para operar mudanças na sociedade

romana, adotando políticas ordenadoras e voltadas para o desenvolvimento econômico e

social de Roma. O seu êxito deveu-se à eficiente política de propaganda imperial aliada à

uma rígida estrutura de segurança pessoal e do Império cujo pilar precípuo era a disciplina e

a fidelidade do Exército de Augusto. Tais procedimentos políticos estavam presentes nas

estratégias políticas dos imperadores subseqüentes a ele.

Bibliografia

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DA ANTIGÜIDADE AO MEDIEVO:O CRISTIANISMO E A ELABORAÇÃO DE UM NOVO MODELO CARITATIVO

Bruno Miranda Zétola∗

RESUMOA elaboração de um novo modelo caritativo é apontada por vários especialistas como umdos mais significativos marcos da transição da Antigüidade ao Medievo. O evergetismoclássico mostrava-se pouco viável no conturbado período das migrações germânicas, sendopaulatinamente substituído pela caridade cristã. Este modelo caritativo, instigado pelabusca da intercessão divina e da remissão dos pecados, colocava a Igreja comointermediária entre a recepção e a redistribuição dos donativos. Nesse sentido, percebe-seque a caridade cristã foi um importante veículo de legitimação do poder político eeconômico da Igreja, e em especial, do episcopado.

PALAVRAS-CHAVE: pobreza, caridade, episcopado

ABSTRACTThe elaboration of a new charity model is pointed out by several specialists to be one of themost expressive signs of transition from Antiquity to Middle Ages. The classicalevergetism was not much feasible during the restless period of Germanic migrations, beingreplaced by the Christian charity. This new charity model, instigated by the search ofdivine intercessions and by redemption of sins, placed the Catholic Church as anintermediary between reception and redistribution of donations. In this way, Christiancharity became an important legitimation vehicle of political and economical power of theCatholic Church, and particularly, of the bishopric.

KEY-WORDS: poverty, charity, bishopric.

A caridade se desenvolveu de modo muito particular no mundo romano. Assumiu a

forma do evergetismo, combinação de civismo urbano com ostentação socioeconômica. Eradirigida mais aos concidadãos do que aos realmente necessitados e possuía mais a funçãode exaltar a honra do patrono do que a de aliviar os problemas da plebe. Com o advento docristianismo, essa noção de caridade foi, gradualmente, transformada. O discurso cristão,embora pregasse o amor ao próximo, serviu para fortalecer o poder episcopal e como meiode controle social às elites. Portanto, apesar de sociedades diferentes terem elaboradodistintos sistemas caritativos, em ambos os casos um mesmo interesse dissimulado pelabeneficência foi responsável pela utilização dos pobres como objetos, ao invés de sujeitosda caridade. (DÍAZ MARTINEZ, 1993: 163). De fato, o conceito de caridade sugere a idéiade, ao menos, dois agentes – um doador, responsável pelo ato caritativo, e um receptor, quesofre a ação desse ato. Os maiores beneficiários, contudo, nem sempre são aqueles querecebem a doação. Tanto a aristocracia romana quanto o episcopado auferiam, das atitudesbeneficentes que praticavam, vantagens político-econômicas maiores do que as recebidasdiretamente pelos objetos de sua caridade. Porém, a despeito da existência de algumassemelhanças, a transformação do ideal caritativo é apontada por muitos especialistas comoum dos mais significativos marcos da transição da Antigüidade ao Medievo.∗ Aluno do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná. E-Mail:

[email protected]. Este texto é resultado de nossa pesquisa de Dissertação de Mestrado, em fasede conclusão.

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Em verdade, o cristianismo impôs significativas transformações culturais nocotidiano das pessoas. Por ser uma religião teleológica, prometia aos humildes umarecompensa eterna – a Cidade de Deus. Nesse sentido, a prática caritativa foi um dos meiosmais utilizados por aqueles que desejavam atingir tal objetivo. Reis, nobres, imperadores ecamponeses, incentivados por um refinado discurso eclesiástico, acabaram por transformara caridade num traço cultural bastante significativo da sociedade cristã. As doações aospobres eram vistas como um remissivo aos pecados cometidos e um meio de se alcançaralguma intercessão divina. Isso fomentava um dinâmico circuito caritativo que, geralmente,era intermediado pela Igreja, fazendo do episcopado seu maior beneficiário. Nosso intuito étraçar algumas considerações sobre a transformação do ideal de caridade, que favoreceusobremaneira o fortalecimento do poder político e econômico dos bispos. Para tanto, foifundamental a elaboração de um novo conceito de pobreza, permitindo a suplantação domodelo romano evergeta de caridade pelo cristão.

O EvergetismoO termo evergetismo é um neologismo derivado do grego cujo significado

aproximado seria “atitude beneficente”. Embora o conceito tenha sido utilizado por AndréBOULANGER na década de 1920 e por Henri-Irinée MARROU na de 1940, é PaulVEYNE em sua obra “Le pain et le cirque”, de 1976, que o desenvolve. (MAGNANI, 2005:269). Na tradução ao inglês de que dispomos, VEYNE define evergetismo como “themanifestation of an ‘ethical virtue’, of a quality of character, namely magnificence”.(VEYNE, 1990: 14). Algumas críticas têm sido feitas recentemente ao conceito deVEYNE, como enfatizar o argumento de manipulação das massas pela elite, desconsiderara diversidade social e colocar uma ênfase excessiva no aspecto político. (GARRAFFONI,2004: 82). Embora matizado por suas limitações, o termo continua sendo utilizado pormuitos especialistas, visto que remete a uma idéia fundamental para o entendimento doprocesso caritativo romano – a reciprocidade. Se os aristocratas romanos praticavam umaatitude beneficente para a plebe, tal ato não era fortuito; desejavam receber algo em troca –o reconhecimento de seu status.

Para entendermos a real dimensão do ideal de caridade romano temos de considerarque foi justamente entre os notáveis municipais, mais que entre os nobres senadores deRoma, que o evergetismo assumia seu verdadeiro caráter. Esse processo era favorecido pelofato de que as milhares de cidades que formavam o Império Romano possuíam uma relativaautonomia face ao poder de Roma. Conforme VEYNE, os romanos “distinguiam malfunções públicas e dignidade privada, finanças públicas e bolsa pessoal. A grandeza deRoma era propriedade coletiva da classe governante e do grupo senatorial dirigente; assimtambém cada uma das milhares de cidades autônomas que formavam o tecido do Impérioera coisa dos notáveis locais”. (VEYNE, 1989: 103). É esse sentimento de posse da ciuitas,esse anseio de ser um homem público por excelência que norteava os potentados locais naprática do evergetismo. Quando um dignitário local ascendia a uma magistratura, era depraxe que promovesse espetáculos, doasse uma volumosa soma ao erário da cidade ouempreendesse a construção de um pomposo edifício público. Caso não estivesse em boascondições financeiras no momento, comprometia-se por escrito a levar a cabo essas açõesum dia, pessoalmente ou por meio de seus herdeiros. (VEYNE, 1989: 104). Tais atitudes,sob a ótica estritamente econômica, não eram muito compreensíveis, mesmo considerandoque, através das benesses de seu cargo, um nobre que desempenhava uma magistraturativesse oportunidade de retirar muito mais do que gastara pelo bem da cidade. Mais

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enigmáticos seriam os casos daqueles que promoviam benefícios à ciuitasindependentemente de assumirem qualquer tipo de função pública. Banquetes, jogos econstruções de edifícios eram, amiúde, ofertados por livre e espontânea vontade de algunsindivíduos.

Civismo e ostentação, eis as raízes do evergetismo numa sociedade em que asesferas pública e privada estavam inexoravelmente intrincadas. O civismo remete a umaidéia de dever para com sua sociedade que, no mundo romano, geralmente estava associadaà ciuitas. Dada sua estreita relação com o poder, os ricos sentiam-se naturalmente figuraspúblicas. Convocavam seus concidadãos para participar das mais diversas comemorações enão perdiam uma oportunidade para exercer, e demonstrar, seu civismo em prol de suacidade. Já a ostentação remete à idéia de demarcação social. Para um dignitário local,contribuir para o bem da sua ciuitas também era contribuir para seu honor. Conforme MariaHelena da Rocha PEREIRA, o conceito de honor

tem uma ligação muito clara à vida política romana, que se traduz, quer nas formas dereconhecimento público [...], quer na própria expressão cursus honorum, que marcava aprogressiva ascensão dos cidadãos aos cargos principais da Urbe. [...] Reconhecimentopúblico do mérito, que actua como estímulo, e tem, por conseguinte, uma funçãopedagógica na cidade. (PEREIRA, 1984: 336).

Por depender do julgamento da sociedade, o honor é mais facilmente alcançadoatravés de obras e feitos de grande visibilidade. O reconhecimento público, a consagraçãopelo honor, são motivos que explicam por que muitos nobres romanos praticavam oevergetismo espontaneamente, sem qualquer vínculo com as magistraturas. Para as camadassuperiores da população, o evergetismo era um ponto de honra nobiliárquico, em que oorgulho de casta acionava motivações cívicas e liberais. Só através da promoção, aaltíssimos custos, do benefício da cidade, é que um notável se transformava num benfeitormagnânimo, num patrono da cidade. O evergetismo permitia, desse modo, que as eliteslocais tivessem a oportunidade de dizer que a cidade lhes pertencia. Tratava-se, em suma,de um espírito tipicamente nobiliárquico que promovia celebrações e erguia edifíciospúblicos e estátuas com um único objetivo – enaltecer a glória de um indivíduo ou de umadinastia promovendo o bem de “sua” cidade.

Um exemplo de evergetismo é a distribuição de dinheiro, prática que se aproximaum pouco da noção caritativa cristã. Mas as diferenças são grandes. A começar pelojulgamento se seria correto dar dinheiro aos pobres. Temia-se que os donativoscorrompessem os pobres, incentivando-os a não trabalhar. E, pobres desocupados, era sinalde tumulto iminente. Por isso, distinguiam-se os pobres bons dos maus, os dignos dosindignos de receberem doações, seja de dinheiro, seja de alimentos. Há de se lembrar,portanto, que as distribuições públicas eram feitas somente aos cidadãos de cada ciuitas.Por isso, teoricamente, escravos e libertos, pessoas que compunham os estratos sociais maisextremos da pobreza e não se enquadravam na categoria jurídica de cidadão, dificilmente sebeneficiavam dessas práticas assistenciais. (WHITTAKER, 1992: 243). Estas eramdirigidas mormente a uma plebe intermediária, embora, com certa reprovação moral, oscidadãos mais abastados também tivessem direito de entrar na fila para receberem seuquinhão.

Qual seria, porém, a visão acerca do evergetismo que possuíam as camadasdesprivilegiadas da população, aquelas pessoas que constituíam o objeto da caridade? Ao

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que as fontes indicam, a plebe sabia capitalizar muito bem o espírito de evergetismo dosricos para seu próprio benefício, independentemente de quem fosse o patrono. Sob essaperspectiva, Petrônio, em seu Satyricon, faz questão de evidenciar o tom irônico dosprotagonistas em um banquete oferecido pelo rico Trimalcião. “Agradecemos a nossoanfitrião sua generosidade e indulgência, verdadeiramente extremas, e, para não sufocar deriso, recorremos à bebida”. (Pet. Sat. XLVII). A idéia que nos passa é a de que, ainda que seaproveitassem da generosidade de Trimalcião, este era ridicularizado pela plebe. O pobreEncólpio assim descreve a entrada de Trimalcião no banquete que o próprio ofertava:

Estávamos mergulhados nesse oceano de delícias quando, ao som de uma sinfonia,apareceu Trimalcião em pessoa, conduzido por escravos que o colocaram, delicadamente,num leito coberto de almofadas macias. A esse imprevisto não pudemos conter uma ruidosagargalhada. Era preciso ver sua cabeça calva emergindo de um véu de púrpura e seupescoço ridiculamente enfeitado com um imenso guardanapo, cheio de listras, que lhecobria todas as vestes, e que caía, em franjas, para os dois lados. (Pet. Sat. XXXII).

Trata-se, certamente, de uma obra de ficção em que os defeitos e atitudes daspersonagens são exagerados. Não obstante, a figura que Trimalcião representa há de ter sidoalgo bastante palpável para que Petrônio o incluísse em seu texto. O Trimalcião de Petrônioseria, portanto, um exemplo satírico levado ao limite de um novo-rico que gastava grandesoma para ostentar sua posição social. Marcial, igualmente satírico, mas provavelmentemenos ficcionista, legou-nos em seus Epigramas vários relatos dessa prática pelos romanosricos, numa perspectiva que, provavelmente, era compartilhada pela plebe e,principalmente, pelos menos ricos. Eis alguns exemplos de como os menos privilegiadosconsideravam as beneficências que um cidadão mais rico poderia custear: “Quando a turbade toga grita um grande ‘bravo’ para ti, não és tu, Pompônio, mas o teu jantar que éeloqüente”. (Mart. Epig. VI, 48). “Se os potentes te disputam os pedaços por tua companhiaem banquetes, nas colunatas, nos teatros, e gostam de se vestir e de se banhar contigofreqüentemente, não te exultais em demasia, Philomuso. Dás-lhes prazer, porém não ésamado”. (Mart. Epig. VII, 76).

Note-se que o evergetismo implica uma constante interação entre pessoas dedistintos estratos socioeconômicos. Pobres, segmentos intermediários e ricos possuemvivências sociais em comum. Essa inter-relação entre pessoas de diferentes estratos sociaisera necessária para que o evergetismo funcionasse. O patronus precisava doreconhecimento de seus concidadãos menos abastados. E estes aproveitavam os prazeresque lhes eram proporcionados por um rico senhor. Ao fim e ao cabo, mesmo que a plebe seaproveitasse das benesses de um rico patronus, entendia o evergetismo como atitudetipicamente aristocrática. Do mesmo modo, muitos humiliores que haviam enriquecidorapidamente gastavam grandes fortunas com onerosas atividades de magnificência.Buscavam, com tais benesses, equiparar seu status social com o econômico. Comoexemplo, tem-se o relato de Marcial de um padeiro que ganhava muito dinheiro, mas queesbanjava tanto que sua fortuna se esfarelou. (Mart. Epig. VIII, 16). São indícios de que osvalores do evergetismo não eram compartilhados apenas por uma elite socioeconômica,mas por pessoas de condições inferiores que almejavam alcançar o honor e serem vistoscomo dignitários da cidade. Portanto, a despeito do tom irônico com que Marcial e Petrôniorelatam o evergetismo e das diferentes implicações que o mesmo possuía para diferentesgrupos sociais, ele era visto por todas as classes como uma peculiaridade nobiliárquica, umdistintivo de classe.

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A partir do século III d. C., quando o Império atravessa uma crise fiscal e política, aselites locais sofreram um sério golpe em suas finanças, em maior ou menor medidaconforme a região. Isso levou a um dilema entre finanças pessoais e obrigações morais, poisas doações para o bem da ciuitas haviam se transformado quase que num dever das elites, oque lhes custava quantias enormes. Plínio, o jovem, em uma epístola ao Imperador Trajano,expõe sua preocupação sobre os problemas financeiros que as atividades de evergetismopoderiam provocar aos que assumem a toga viril. (Plin. Epist. X, 116). Muitosconcordavam com a idéia de Plínio e, na hora de decidir entre estabilidade econômica eglória pessoal, optavam pela primeira opção. Por isso, não nos iludamos ao pensar que,mesmo em período anterior à crise, todos os ricos se dispunham a beneficiar suas cidades otempo todo. Embora o honor fosse uma virtude altamente desejável e a magnanimidadepública um meio de se atingi-la, havia condições econômicas que dificultavam a prática doevergetismo. Paul VEYNE sugere que isso ocorria freqüentemente:

A nomeação de dignitários anuais fornecia a oportunidade; todo ano, em cada cidadedesenrolavam-se pequenas comédias: era preciso encontrar novas fontes de financiamento.Cada membro do conselho declarava-se mais pobre que seus pares e dizia que emcompensação Fulano de Tal era um homem feliz, próspero e tão magnânimo queseguramente aceitaria naquele ano uma dignidade que acarretava o dever de garantir àprópria custa a água quente dos banhos. O interessado protestava que já passara por isso. Omais teimoso ganhava. Se não se via saída, o governador da província interferia; ou a plebeda cidade, zelosa de sua água quente, intervinha pacificamente: aclamava a vítimadesignada, levava às nuvens sua generosidade espontânea e elegia-a dignitário erguendo asmãos ou por aclamações unânimes. (VEYNE, 1989: 115).

Embora influenciado por aspectos monetários, o evergetismo não era norteado poruma racionalidade econômica, mas pela ostentação e civismo. Assim como muitosdignitários em cidades com dificuldades econômicas se esquivavam de seus deveresnobiliárquicos, outros tantos, em cidades mais prósperas, exerciam mais ativamente oevergetismo. Petrônio traz excelentes exemplos do ostentatório mecanismo do evergetismo.Durante um banquete, um dos convidados relata que seu amo patrocinaria um grandeespetáculo de gladiadores. Seu pai ao morrer, deixara-lhe trinta milhões de sestércios.Desse modo, “se gastasse quatro mil, seu patrimônio nada sentiria, e seu nome serialembrado para sempre.” (Pet. Sat. XLV). Portanto, se, num primeiro momento, o patronodesembolsava uma grande soma de dinheiro, recebia, do mesmo modo, uma grandeprojeção social, tanto entre a plebe, como entre seus pares, assegurando seu honor. Porém,se o espetáculo, desagradasse aos espectadores, longe de atingir a glória, o patrono tornava-se motivo de chacota, conforme o caso de um evergeta que promoveu um pífio jogo degladiadores, que Petrônio descreve:

De fato, o que Norbano nos fez de bem? Ofereceu-nos, em espetáculo, gladiadores dealuguel já decrépitos que, se os assoprassem, cairiam. Já vi melhores bestiários. Cavaleirosmorrerem sob luz de tochas. Aqueles gladiadores pareciam galináceos. Um se arrastava,outro tinha as pernas tortas, um terceiro, que substituía outro que morrera, já estava meiomorto, pois tinha os nervos despedaçados [...].Eu te dei um bom espetáculo – disse Norbano.E eu te aplaudi – respondi. Façamos as contas, te dei mais do que recebi. Uma mão lava aoutra. (Pet. Sat. XLV).

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Eis nitidamente a lógica do evergetismo, que fazia com que notáveis gastassem largas

somas de dinheiro para o deleite dos seus concidadãos, visando ostentar sua condição de

homem público, de patrono da cidade. Não importava se a construção de um porto seria

mais útil que a de uma estátua, ou se os jogos de gladiadores não aliviariam os problemas

dos pobres da cidade. Isso era efeito secundário para o evergetismo. O que importava, além

da projeção social do patronus, eram os prazeres e o prestígio de que o corpo cívico como

um todo, ricos e pobres, se beneficiaria através do evergetismo. Por isso mesmo a caridade,

no mundo romano, não tinha como alvo os mais pobres. (WHITTAKER, 1992: 230). Essa

característica pode ter sido um dos fatores que favoreceu a disseminação do cristianismo,

num primeiro momento, entre a população marginalizada das cidades.

Um novo conceito de pobrezaCerta ocasião Sêneca decidiu viver por dois dias como um camponês pobre. Para

tanto, levou consigo um número reduzido de escravos, apenas um carro, e sua comida eratão simples que se preparava em uma hora. (Sen. Epist. LXXXVII). Juvenal, em seu turno,considerava pobre uma pessoa que ganhasse menos de 20 mil sestércios por ano, quantiaque, segundo WHITTAKER, era a necessária para se ingressar na ordem eqüestre.(WHITTAKER, 1992: 230). Nessa direção, para a aristocracia romana, o pobre era o ricoque não era muito rico. Esses “pobres ricos” eram pessoas de boa condição econômica, masde status sócio-jurídico inferior. De fato, a pobreza estava muito mais associada à condiçãosocial que à condição econômica de um indivíduo. Geralmente as duas vertentesconvergiam, mas havia muitas exceções como, por exemplo, os libertos que enriqueciamgraças a seus ofícios. Por isso, o nascimento e a condição jurídica contavam tanto ou atémais que a situação econômica para definir a posição de um indivíduo na sociedade que, apartir do século II, apresentava-se polarizada nas categorias sócio-jurídicas de honestiores ehumiliores. (WHITTAKER, 1992: 239). Por mais que se esforçassem por imitar os hábitosda aristocracia romana, muitos homens ricos se enquadravam na categoria de humiliores,dada sua condição de nascença. Nos últimos tempos do Império, ao passo que oshonestiores fragmentavam-se em numerosas camadas com posições sociais das maisvariadas, os humiliores tendiam a assumir um caráter cada vez mais homogêneo, resultadode uma dependência cada vez mais acentuada no âmbito político, econômico e social.(ALFÖLDI, 1989: 216).

O extremo grau de miséria das inúmeras pessoas que não tinham onde morar, maltinham o que comer e viviam em ambientes totalmente insalubres era matizado por umacamada de pobres não tão miseráveis. Trata-se de uma plebe “respeitável”, que partilhavaalguns valores da aristocracia romana, sendo beneficiada através de ações de patronatopúblico e privado. (WHITTAKER, 1992: 245). Eram majoritariamente esses os pobres queassistiam aos espetáculos, que entravam nas filas para a distribuição de pão e de dinheiro, eque eram elogiados por virtudes inerentes a sua condição por determinados poetas. Essacamada de pobres tornava tolerável a diferença entre ricos e pobres e fazia esquecer asituação dos muito pobres.

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Era principalmente a esses indivíduos mais carentes e desprotegidos pelo sistemacaritativo romano, que a Igreja pregava seus universalizantes evangelhos no início da eracristã. Viúvas, órfãos, doentes, todos aqueles ignorados pela magnanimidade romana eramacolhidos no seio da Igreja. A célebre assertiva de Marcos ilustra bem essa idéia: “Vinde amim todos que sois fatigados e oprimidos e eu vos aliviarei”.(Bib. Mt. XI: 28). Com ocristianismo constrói-se, lentamente, um novo imaginário sobre a pobreza e, porconseguinte, de caridade. O cristianismo, aliás, também considerava a pobreza como umdado estrutural da humanidade. Nesse sentido é ilustrativa a passagem do Evangelho naqual Cristo teria dito: “sempre tereis convosco os pobres, mas a mim não haveis de tersempre”. (Bib. Mt., XXVI: 11). O cristianismo, portanto, não intencionava promoverqualquer tipo de reformulação socioeconômica em relação à figura do pobre. A grandemudança se deu no plano ideológico, visto que houve uma valorização da imagem dopobre. Sendo uma religião escatológica, prometia aos pobres o reino dos céus, como sugereo célebre Sermão da Montanha: “Bem-aventurados vós os pobres, pois vosso é o reino deDeus”. (Bib. Lc. VI:20).

Para o cristianismo, portanto, a pobreza também não está relacionadaexclusivamente com o aspecto material. De outro modo seria impossível garantir a salvaçãodos cristãos ricos, uma vez que que dos pobres é o Reino dos Céus. A idéia básica era que ahumildade espiritual fazia alcançar a glória divina, discurso que atenuava a degradaçãoeconômica e moral que acometia os pobres. (MOLLAT, 1988: 26). Muitos cristãosassociavam humildade espiritual à humildade material, desfazendo-se de seus bens elevando uma vida simples, desprovida de luxo, para que pudessem melhor contemplar aglória divina. Para aqueles cujo desprendimento era menor, Santo Agostinho abria umapossibilidade de salvação, ao afirmar que a humildade não é, de modo algum, exclusividadedos pobres. Afirma, inclusive, que muitos pobres se fazem mais soberbos que os ricos, nãopelas riquezas, mas pelos desejos, que Agostinho associa à cobiça e à avareza. (August.Serm. XIV, 7). Por outro lado, recorda que há muitos ricos que são humildes, que são“pobres de espírito”, ou seja, não são movidos pela avareza ou pela cobiça. Esses, queAgostinho denomina de “ricos pobres”, possuíam um lugar reservado no Paraíso. (August.Serm. XIV, 4). Embora Abraão seja um bom exemplo desse paradoxo entre riqueza terrenae humildade espiritual, o modelo mais exaltado era o de Cristo. Nas palavras do bispo deHipona, trata-se de “aquele que fez todas as coisas, Senhor dos céus e das terras, Criador detodas as coisas visíveis e invisíveis ocultou Sua majestade e Se fez pobre pela humanidade– eis o exemplo capital de um pobre de verdade”. (August. Serm. XIV, 9).

A imagem de pobreza de Cristo perpassa todo o discurso cristão na AntigüidadeTardia. O discurso eclesiástico da caridade valorizou ao máximo esses conceitos, o pecadoda avareza e a virtude da humildade. Os grandes padres do período, como Agostinho deHipona, João Crisóstomo de Antioquia e Ambrósio de Milão, vivendo em centros urbanosrepletos de populações marginalizadas, exortavam a população da cidade a auxiliar ospobres. Como recurso, utilizavam sermões, hagiografias, homilias que recordavam apobreza de Cristo, e o pecado que constituía não auxiliar os necessitados. Esse refinadodiscurso eclesiástico valorizou a figura do pobre a tal ponto que ele se tornou indispensávelpara a sociedade. Justamente por isso, a pobreza precisava ser reproduzida, o queaconteceu, dentre outros meios, através da caridade cristã.

A caridade cristã

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Até princípios da quarta centúria, a comunidade cristã respondia por cerca de dezpor cento da população do Império, mais concentrados no Oriente que no Ocidente, muitomais nas cidades que no campo. (ORLANDIS, 1989: 42). A caridade cristã se desenvolveuface às dificuldades com que se debatiam os membros dessa escassa comunidade decristãos no alto império. Tinha o intuito, num primeiro momento, de sustentar viúvas,órfãos, doentes e todos os cristãos que se encontravam com algum tipo de necessidade. Talcomo os judeus, os cristãos também se viam na obrigação de atender aos seus necessitados,visto que eram ignorados pela magnanimidade romana. Contudo, por volta do século III oscristãos estabeleceram a caridade também aos seus sacerdotes, para que pudessemdesempenhar de maneira mais apropriada as liturgias. Antes da conversão do Império aocristianismo eram esses os dois deveres materiais dos cristãos – auxiliar seus irmãos de fénos momentos de dificuldades e sustentar o clero. (BROWN, 2002: 24). Desenvolvia-se,dessa maneira, como uma rede de solidariedade entre membros de uma comunidadenumericamente pouco significativa durante os primeiros séculos do Império.

Essa situação se transformou com a rápida disseminação do cristianismo e com aassociação entre Igreja e Império fomentada por Constantino. Em pouco mais de trêsséculos de existência, o cristianismo se converte em religião majoritária do ImpérioRomano. Dois séculos depois da adoção do cristianismo como religião oficial de Roma, nãohá mais registros de pagãos confessos. O poder episcopal, cuja atuação era restrita e difusa,é fomentado a partir de Constantino, quando a Igreja é instigada a ingerir em assuntos queaté então eram de competência exclusiva do poder público. Uma das mais significativasatribuições, que exemplifica essa projeção política do episcopado, foi sua paulatina inserçãonos assuntos judiciários. Do foro privilegiado, concedido pelo Código Teodosiano, osbispos, já na segunda metade do século IV, haviam alcançado o título de defensor ciuitatis.Mesmo após o período das invasões germânicas, os bispos não perderam sua influênciacomo autoridades citadinas. Pelo contrário, no vácuo institucional deixado peloesfacelamento da máquina administrativa romana, os bispos ampliaram sua esfera deatuação, passando a gerir questões de ordem administrativa e a interferir mais ativamenteem assuntos da vida política. Tal situação se devia, certamente, pela projeção ideológica dafigura do bispo. Porém, mais significativo, é que “o episcopado soube garantir a expansãode sua influência sobre clérigos em funções administrativas e com a prática da assistênciamaterial e jurídica às populações urbanas necessitadas”. (SILVA, 2002: 82). Em outraspalavras, a interação do bispo com as comunidades urbanas era maior que a das elitesadministrativas romanas. Os bispos estavam mais atentos aos problemas daquelacomunidade, e poderiam atuar de maneira mais constante na resolução de problemasquotidianos. É o caso de bispos como Idácio de Chaves e o Papa Leão I que, na qualidadede maiores autoridades municipais, negociam com chefes Suevos, Visigodos e Hunos paratentar evitar o saque de suas cidades.

Desse modo, o poder imperial viu na aliança com a Igreja um meio de aliviar astensões sociais que as comunidades urbanas em crise geravam. (BAJO, 1986: 193).Amenizar o problema de uma indigência generalizada era algo de suma importância para semanter a paz social, especialmente num contexto de crise social, instabilidade política eameaças de invasões. Isso se fez não apenas através da mensagem escatológica docristianismo como também, e principalmente, através da prática caritativa cristã. E, nessequesito, a Igreja era muito mais eficiente que os potentados locais. Estes, emboradesejassem promover benesses públicas para o bem da “sua” cidade, não dispunham,principalmente a partir da crise do século III, de suficientes recursos para bancarem os

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exorbitantes gastos de tais celebrações. A Igreja, colocando-se como mediadora entre ricose pobres, angariava pequenas mas constantes doações que, ao fim e ao cabo, permitiamauxiliar os pobres mais freqüentemente e sem causar a bancarrota de ninguém. Outravantagem era que o sistema caritativo eclesiástico era muito mais abrangente, o quepermitia assistir aos mais necessitados. Ademais, devido às perturbações político-econômicas originadas no período das migrações germânicas, boa parte da aristocraciaromana dirigiu-se às uillae, cabendo quase que exclusivamente ao episcopado garantir aassistência social no meio urbano, onde a pobreza era mais nítida. Assim, com adesestruturação do sistema administrativo da parte ocidental do Império, na quinta centúria,evidencia-se a atuação cívica do episcopado em favor da romanitas/christianitas, de que acaridade era uma das principais dimensões.

Percebendo tais vantagens no assistencialismo cristão, o Império concedeu umasérie de incentivos e privilégios à Igreja, justificados, em sua maioria, no auxílio que estaprestava os pobres. É o caso da lei, decretada por Constantino e recolhida sob o número16.2.6 no Código de Teodósio, que eximia clérigos de determinadas taxas para que elescuidassem dos pobres. Desse modo, foi como protetores dos pobres que os bispos definiramsua função social e justificaram suas regalias, tornando a pobreza uma das mais importantesalegorias para o imaginário social da época. Nesse sentido, um especialista asseverou que,“in a sense, it was the Christian bishops who invented the poor.” (BROWN, 2002: 08). Defato, conforme sugeriu Michel MOLLAT, “os pobres”, como categoria social definida, nãoexistiam no mundo clássico romano. Foi com o discurso cristão que a pobreza passou a sero grande elemento de identificação de uma pessoa desprovida de um bem material ouespiritual. (MOLLAT, 1998: 10). Conforme esses autores, pode-se concluir que a divisãoda sociedade entre ricos e pobres é uma ideologia cristã, cujo objetivo era legitimar osprivilégios eclesiásticos situando a Igreja como intermediador necessário entre os doisgrupos para a manutenção da paz e da ordem social.

Obviamente que a transição de um modelo caritativo a outro não aconteceu deimediato. Já existia certo viés moral, e não cívico, de beneficência em alguns autoressofistas, cínicos e estóicos do mundo clássico, que a entendiam como uma dimensão dahumanitas. Marco Aurélio, em suas Meditações, indaga: “Por que, se praticaste um bem,beneficiando alguém, buscas como um desmiolado uma terceira coisa ainda – mostrar que ofizeste ou obter compensação?” (Mar. Aur. Medit. VII, 73). Não obstante, a Igreja, tentavaavocar para si a exclusividade da prática caritativa. Além de elaborar um circuitoinstitucionalizado de caridade, condenava oficialmente os espetáculos promovidos peloevergetismo, alegando que os mesmos traziam funestas conseqüências para as almas daspessoas. Isidoro de Sevilha, por exemplo, condena os espetáculos pois sua raiz estaria naidolatria, (Isid. Etym. XVIII, 16, 3); e afirma que aqueles que assistem aos jogos circensesservem ao culto dos demônios. (Isid. Etym. XVIII, 27, 1). Mesmo assim, a mudança foigradual, e os espetáculos patrocinados pelo evergetismo sobreviveram aos primeirosséculos do cristianismo, como o realizado em Zaragoza no início da sexta centúria. (Chron.Caesarg. 85a). A continuidade de eventos desse tipo justifica a releitura de um antigocânone proibindo os clérigos de assistirem aos espetáculos, conforme compilação anotadapor Martinho de Braga no Concílio II de Braga.

Ademais, mesmo de forma velada, podemos perceber certa continuidade dosentimento evergeta no âmbito da comunidade cristã. O que se nota é que houve aprosseguimento de atividades evergetas “tradicionais”, como a promoção de festas e aconstrução de edifícios, embora modificadas por elementos cristãos. Antes de orações

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solenes, quando era lida a lista dos que levavam oferendas ao altar, os nomes eramaclamados como na época da munificência cívica. Assim, no cânone 19 do Concílio deMérida de 666 recomendava-se aos presbíteros que procurassem “recitar ante o altardurante a missa os nomes daqueles que tenham construído basílicas ou tenham trazido outrazem algo a estas santas igrejas”. Tal normativa era um meio de estimular as doações daaristocracia local, acostumada aos mecanismos do evergetismo clássico. Segundo relataPeter BROWN, por volta da passagem da quarta à quinta centúria, o senador Paulinuspromoveu um grande banquete aos pobres em plena basílica de São Pedro no aniversário demorte de sua mulher. (BROWN, 1981: 36). Do mesmo modo que os banquetes evergetaspersistiam, a contribuição privada na construção de prédios públicos, que fora uma das maisimportantes dimensões do evergetismo clássico, continuará a existir no evergetismo cristão.Conforme Mark WHITTOW:

Leaving aside private houses, one has to keep in mind that there had been a dramaticchange in the sorts of public building wealthy Romans wanted to pay for. In the first andsecond centuries A. D. leading citizens had wished to build public baths, gymnasia, stadia,theatres and temples. By the sixth century, fashion and cultural values had changed.However wealthy, these men were no longer interested in such structures. [...] TheChristian Romans of the sith century wanted to display their wealth and status by buildingmonasteries, hospitals old peoples’ homes, orphanages and, above all, churches. Thereforethese are the buildings which reflect late Roman urban wealth. (WHITTOW, 1990: 18).

Face à existência desses atos privados de caridade, concorrenciais à caridadeinstitucional da Igreja, os bispos se esforçaram por desenvolver e ampliar seu própriocircuito caritativo. Além de condenarem o evergetismo clássico, tentaram esvaziar o sentidodo evergetismo cristão através da apropriação do “mundo superior”, tornando a Igreja aúnica intermediária entre os cristãos deste mundo e as entidades divinas (Cristo, mártires,anjos) do outro. Ao analisar as várias facetas desse evergetismo tardio, CarlesBUENACASA PEREZ concluiu que “el evergetismo cristiano no es gratuito. Los nuevosevergetas actúan pro remedio animae, por lo que, no pueden dejar de lado a la Iglesia. Enesta religión, es ella y sólo ella la que les pueden garantizar la felicidad eterna. Por estemotivo, la Iglesia acabará imponiendo un verdadero ‘trust sagrado’ en el campo religioso”.(BUENACASA PÉREZ, 1998: 140). Isso ocorria porque, no cristianismo, a Igreja detém omonopólio dos sacramentos que controlam a vida dos cristãos, desde a sua inserção nacomunidade cristã pelo batismo até a remissão dos pecados e a extrema unção.

Em verdade, fundamentado em três temas que não tinham tanta relevância nomundo antigo – o pecado, a morte e a pobreza – o cristianismo paulatinamente transformouo ideal de caridade. Esses conceitos intrincados delimitam o horizonte da sociedade cristãtardo-antiga. O tema dos pecados perpassa todos os momentos da sociedade cristã,influenciando decisivamente as relações sociais, as concepções de tempo, as práticas rituais,os saberes, enfim, toda uma visão de mundo. (CASAGRANDE, VECCHIO, 2002: 337).No discurso cristão, o conceito de pecado se relaciona de maneira muito interessante ao demorte. Conforme Jean DELUMEAU, “o animal não antecipa sua morte. O homem, aocontrário, sabe – muito cedo – que morrerá. É pois o único no mundo a conhecer o medonum grau tão terrível e duradouro”. (DELUMEAU, 1996: 19). De fato, percebemos que hána sociedade cristã um medo relacionado com o pós-morte, com o Juízo Final. Não que setema a morte em si, já que se trata de um dado da natureza. O que se teme é a “morte daalma”, a danação eterna que estava reservada àqueles que possuíam uma vida desregrada e

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díspar da que pregava o cristianismo. Graças ao livre arbítrio, todo homem pode pecar,transformando-se num agente do Demônio. Peter BROWN ao afirmar que, às vezes, ahierarquia do saeculum e a igualdade perante o pecado se chocam, nos relata que Ambrósiode Milão colocou o imperador Teodósio, senhor do mundo, despojado de manto e diademano meio dos penitentes, no fundo da basílica, por haver ordenado o massacre da populaçãode Tessalônica. (BROWN, 1989: 267). Esse episódio nos fornece uma melhor dimensão daimportância da temática dos pecados na vida cotidiana da cristandade ocidental,uma vezque desde um humilde camponês até poderosos reis e imperadores, todos estavam sujeitos atentações diárias.

O caminho que tirava o homem do mundo dos pecados era a Igreja. Isso porque “ocaráter remissível dos erros e o monopólio que a Igreja exerce sobre o poder de perdoar ospecados e de prescrever punições situam o binômio erro-castigo no interior de um sistemade trocas entre o mundo terreno e o Além (preces, penitências, indulgências), constitui umdos elementos específicos da religião cristã”. (CASAGRANDE, VECCHIO, 2002: 347).Daí decorre o terceiro elemento que delimita o horizonte dessa sociedade – a pobreza. Issoporque a caridade aos pobres, que espelham a humildade de Cristo, é um excelente meio dese redimir dos pecados. Conforme MOLLAT, essa seria a função dos pobres neste mundo.(MOLLAT, 1988: 46). Uma vez que eram extremamente necessários à sociedade, acaridade não tem o objetivo de suprimir as desigualdades sociais, mas de reproduzi-las. Éjustamente de sua exclusão econômica que decorre sua inclusão social.

Eclesiásticos comentavam com grande entusiasmo os evangelhos que condenavam aavareza e incentivavam a caridade. Nessa direção, Santo Agostinho, pregava que “assimcomo a água apaga o fogo, a oblação apaga o pecado”. (August. Serm. LX, 10). Do mesmomodo, o cânone sétimo do Concílio de Lérida de 546 também sugeria que a caridade aospobres redimia os pecados: “Que aquele que se obrigou sob juramento a não fazer as pazescom seu contrário em um pleito, seja apartado por um ano do corpo e sangue do Senhor. Eque expie seu delito com esmolas, lágrimas e quantos jejuns puder. E que se apresse emvoltar à caridade, a qual encobre a abundância de pecados.” Em contrapartida, o discursocristão sugeria que aquele que não praticasse a caridade recaía no pecado capital da avareza.O conceito de avareza já existia no mundo romano com um significado negativo, comodemonstra Marcial (Epig. II, 56) e Sêneca (Epist. 87, 22). Contudo, é com o cristianismoque ele ganha relevo no âmbito da tríade pecado/pobreza/morte. O avaro não seria apenas oque usurpa um bem alheio, mas também o que guarda os seus bens avaramente. Ademais,para Santo Agostinho, até os pobres poderiam ser avaros, caso recebessem ou desejassemobter algo de forma ilícita, como fornecendo um falso testemunho, por exemplo. (August.Serm. CVII, 9). Esse pensamento deve ser entendido à luz da virtude da humildade, e dodesapego não apenas dos bens materiais, como da vida terrena. Nesse sentido o discursocristão se dirige tanto aos pobres como aos ricos. Aos pobres confere uma esperança de umfuturo melhor, aos ricos lembra da importância da caridade para atingir o Reino dos Céus.Desse modo, Agostinho sugere que os pobres seriam os carregadores de riqueza entre aCidade dos Homens e a Cidade de Deus. (August. Serm. LX, 8). Ao fazer uma doação a umpobre se transfere uma riqueza perecível nesta vida para uma riqueza eterna no Paraíso. Aosque não alimentavam os pobres, porém, o bispo de Hipona lembrava que o destino preditopelo Senhor era “ir ao fogo eterno que está preparado ao diabo e seus anjos!”. (August.Serm. LX, 9).

Além da remissão dos pecados, os donativos possuíam outro importante suporteideológico – a busca da intercessão divina ou do apoio de algum mártir ou homem-santo.

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Intercessão buscada por pessoas de todas as condições econômicas, mas que era sem dúvidamais rentável quando era um rico que desejava obter a graça divina. (DÍAZ MARTINEZ,1987: 46). Peregrinos e habitantes locais dirigiam-se às basílicas que detinham relíquias deum mártir, propiciando um substancial ingresso de donativos por conta de graçasconquistadas ou desejadas. Os santos eram considerados “amigos do Senhor”, constituindo-se em intermediários entre a Cidade dos Homens e a Cidade de Deus. Seu corpo jazia nestemundo, mas sua alma pertencia ao outro. Em sua basílica, os dois mundos se encontravam,tornando possível os pedidos de intercessão divina que rogavam os fiéis. (BROWN, 1981:03). Assim, atuando em todos os aspectos da vida das pessoas, como a cura deenfermidades, o controle das forças da natureza e a proteção contra os inimigos, os santosexerciam um verdadeiro patrocinium sobre a população de determinada cidade. Os“homens-santos” eram outro significativo objeto de crença pelos cristãos, em especial nomeio rural. Dons divinos, capacidade de intercessão e poderes de cura eram atribuídos aestes religiosos. Por essa razão o rei Leovigildo, embora fosse ariano, ofereceu terrasprodutivas e servos ao abade Nancto para que este intercedesse por ele junto a Deus.(VSPE. III, 37). Outro célebre homem-santo hispano-visigodo é Valério do Bierzo. Valériofoi obrigado a atuar como presbyterum em um oratório de um poderoso dominus local quesabia do potencial atrativo daquele indivíduo para que as populações rurais das cercaniasofertassem suas dádivas. Essa vinculação do homem-santo ocasionou o enriquecimentodaquele oratório e, conseqüentemente, do patrimônio desse senhor. (FRIGHETTO, 2000:45). Porém, mesmo que não estivessem vinculados, os homens-santos encarnavam um idealde pobreza voluntária, devendo redistribuir boa parte daquilo que lhe era ofertado. De umou outro modo, os donativos aos homens-santos eram os únicos que não passavam pelaintermediação do clero. Isso explica, em parte, os constantes atritos desses indivíduos como episcopado, uma vez que eram concorrentes diretos pelo recebimento e redistribuição dasofertas dos fiéis.

De todo modo, os cultos aos mártires, as remissões de pecados e a intercessão desantos face aos problemas da vida cotidiana constituíram, a partir da Antigüidade Tardia,um elaborado circuito caritativo que unia Deus, pobres e ricos. A peça fundamental paraque esse sistema funcionasse era o aparato eclesiástico, visto que a redistribuição de partedos donativos dos ricos aos pobres passava, via de regra, pelo intermédio da Igreja.Conforme ressaltou Eliana MAGNANI, “desde Cipriano, as exortações à esmola não visamo dom dos fiéis diretamente aos pobres, mas às igrejas onde os bispos cuidavam da suadistribuição”. (MAGNANI, 2005: 271). Essa institucionalização da caridade só foi possívelporque eram os clérigos que dispunham do monopólio dos sacramentos e da remissão dospecados. Com a apropriação do culto aos mártires pela Igreja, também a busca deintercessão divina pelos fiéis passou a ser mediada pela Igreja. (BROWN, 1981: 33). Dessemodo, os donativos que um fiel fazia a um santo para alcançar alguma graça erampassavam pelas mãos de autoridades eclesiásticas responsáveis pela manutenção dabasílica. Quaisquer que fossem os objetivos das oferendas, a Igreja haveria de mediar suaredistribuição à sociedade. Esse elemento é central para se entender a caridade cristã e, aomesmo tempo, uma das principais diferenças em relação à caridade romana. No modelo doevergetismo, não poderia haver intermediário entre o patronus e a plebe. A dinâmica dosistema consistia em que ele pratique ações beneficentes da maneira mais visível possível,para assegurar seu honor e a imagem de magnânimo. Já no modelo cristão de caridade, amediação é essencial. Ainda que, no âmbito de certo evergetismo cristão, pesemmotivações de orgulho pessoal, a caridade cristã objetiva essencialmente a busca de

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intercessões divinas e da remissão de pecados. Objetivos que só podem ser atingidos com oaval da Igreja, dos clérigos que detêm o monopólio de intermediar o mundo dos vivos como dos mortos.

No período baixo-imperial, os donativos arrecadados pela Igreja eram divididos emquatro partes iguais: para o salário do bispo, para o salário do clero, para a manutenção dosedifícios eclesiásticos e para a assistência social. (BAJO, 1986: 194). Ainda que a maiorparte do que era arrecadado se destinasse a manter o clero e os patrimônios eclesiásticos,reservava-se uma parte para as obras de beneficência. Porém, essa tradicional divisão dosbens arrecadados foi preterida por uma divisão tripartite. E, tanto no Reino Hispano-Visigodo (Conc. Emerit. c. 7) como no Reino Suevo, (Conc. I Brac. c. 7), as normaseclesiásticas não mencionavam que deveria ser reservada certa quantia para oassistencialismo. No primeiro caso destinava-se uma parte aos bispos, outra aos presbíterose diáconos, e a terceira aos subdiáconos e clérigos menores. No caso do Concílio de Braga,a normativa previa que uma parte recebesse o bispo, a outra recebessem os outros clérigos,e a última fosse destinada à conservação das igrejas. De fato, conforme ensina LOT, a partirda sexta centúria “os cristãos reconciliam-se com a vida terrena e passam a prezar, e aprezar muito, os bens deste mundo”. (LOT, 1980: 54). Assim, em muitas ocasiões, odiscurso contra a avareza serviu à avareza episcopal, e a caridade serviu para enriquecer nãoapenas o patrimônio da Igreja, como também o patrimônio particular de seus membros.Nesse sentido é sintomática a constante censura nas atas dos concílios eclesiásticos dodesvio de bens e donativos das igrejas por parte de clérigos. No Concílio IV de Toledo, porexemplo, os bispos reunidos afirmam que “a avareza é raiz de todos os males, e a ânsia damesma se apodera também dos corações dos bispos. Muitos fiéis por amor de Cristo e dosmártires constroem basílicas nas paróquias dos bispos, e as enriquecem com doações, masos bispos arrebatam esses bens e os utilizam para seu próprio proveito”.(Conc. IV Tol. c.33). Um dos cânones do Concílio II de Braga, no Reino Suevo, leva o sugestivo título “Quenão seja consagrado o oratório construído por alguém em sua terra com fins lucrativos”.(Conc. II Brac. c. 6). No Concílio X de Toledo há outro caso significativo. Pouco antes demorrer, o bispo Rícimer de Dumio havia doado todos os bens da Igreja. Uma vez que “ospobres não tinham nenhuma necessidade iminente”, o que justificaria a atitude do bispo,tornou-se nulo o testamento, a doação e as manumissões feitas por Rícimer. (Conc. X Tol.Item aliud decretum). Do mesmo modo, o Concílio III de Toledo assegura que os bisposestão autorizados a socorrer as necessidades de peregrinos, clérigos e pobres “quandopossível e respeitando os direitos da Igreja”.(Conc. III Tol. c. 3).

Desse modo, a caridade era desenvolvida muito mais pelos bispos, pessoalmente, doque de uma forma institucionalizada pela Igreja. As doações que o aparato eclesiásticoangariava eram, em parte, redistribuídas como se fosse obra de determinado bispo,intermediário entre ricos e pobres, entre doadores e entidades divinas. Um dos melhoresexemplos de que dispomos da caridade episcopal é o relatado nas Vidas dos Santos Padresde Mérida, que narra obras de assistência que teriam sido desenvolvidas na cidade deMérida, mais rica sede episcopal da Península Ibérica em finais da sexta centúria. Aarrecadação de donativos estava institucionalizada a partir do culto de Santa Eulália,célebre mártir local. Contudo, as obras de caridade são descritas pela fonte como atividadespessoais de beneficência de determinados bispos. O empréstimo de dinheiro, a assistência aenfermos, a doação de comida e a construção de um xenodochium teriam sido algumasformas que os bispos da cidade encontraram para exercer a caridade. A política da caridadedo bispo Masona de Mérida frente ao episcopado, agindo e mostrando-se como o grande

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patronus da cidade, teria monumentalizado tanto seu poder, de modo que o bispo era vistocomo se fosse um rei em certas ocasiões, segundo seu anônimo biógrafo. (VSPE. V, 3, 52).De fato, o objetivo velado desse autor parece ter sido a busca de uma centralização depoderes na figura do bispo de Mérida, explicitando por meio de exempla, em especial o deMasona, que o episcopado emeritense era tradicionalmente caridoso e, por conseguinte,deveria ser respeitado. Assim, a argumentação das Vidas dos Santos Padres de Mérida temcomo pressuposto implícito a relação entre caridade e poder, na qual se alicerçou o poderepiscopal. No mundo imperial romano, esse vínculo entre caridade e poder manifestava-sede maneira mais explícita. Já no discurso cristão, tal relação não estava expressa. Porém, naprática e discurso caritativo dos clérigos fica assaz evidente que esse nexo causal continuoua existir, e que os bispos se esforçavam para substituir os antigos aristocratas romanos nafunção de patronos da cidade. Portanto, embora os dois modelos de caridade fossembastante diferentes, ambos buscavam enaltecer a figura do doador perante a comunidade.Seus métodos e objetivos foram diferentes, mas a relação entre caridade e poder existe emum e outro modelo caritativo.

Considerações Finais O evergetismo romano sustentava-se na idéia de cidadania – era dirigido aos

cidadãos de cada ciuitas e seu objetivo era exaltar o civismo e a honra de um patronus dacidade. Política e economicamente pouco viável no conturbado contexto da AntigüidadeTardia, o evergetismo foi gradualmente substituído pelo ideal de caridade cristão. Embora aideologia cristã tenha valorizado sobremaneira a figura do pobre, este continuou a ser vistocomo um dado natural. O discurso cristão passou longe da promoção da igualdade social.Ao contrário, valorizou a exclusão econômica do pobre, atribuindo-lhe uma série devirtudes peculiares, em especial a da humildade. Sua mensagem escatológica lhe prometia aCidade de Deus como recompensa aos infortúnios deste mundo. Assim, o cristianismo nãoobjetivava suprimir as desigualdades sociais, mas torná-las suportáveis através da caridade,mantendo a estabilidade da ordem social, na qual reside a paz. (MOLLAT, 1988: 47).

Tal escopo só poderia ser atingido, segundo os bispos, pela mediação eclesiástica.Na cidade de Mérida, após o bispo Masona ter feito uma ampla obra caritativa, seu biógrafoassevera que “ninguém, nem mesmo um pobre era visto fatigado pela necessidade oudesejava algo mais, de modo que os pobres, assim como os ricos, tinham abundância detodas as coisas boas, e todo o povo na terra parecia regozijar no céu, graças aos méritos detão grande pontífice.” (VSPE. V, 2, 16). Note-se que todo o povo é dividido entre ricos epobres, as duas categorias sociais em que a ideologia cristã repartiu a sociedade. E todo opovo só poderia regozijar no céu graças aos méritos de tão grande pontífice, graças àintercessão episcopal; que propiciava um meio para os ricos praticarem a caridade atravésde sua vasta obra caritativa e amenizava a miséria dos pobres.

Portanto, a caridade cristã tornava a pobreza suportável, não apenas do prismaeconômico, como também da perspectiva da moral, minimizando as tensões sociais.Tornou-se, um meio ideológico de controle socioeconômico que a Igreja avocou para si,pelo qual seu patrimônio aumentava continuamente e seus membros ganhavam cada vezmais poder. Um dos mais significativos exemplos da contradição entre o discurso cristão ea política da caridade levada a cabo pelo episcopado encontra-se no décimo-terceiro cânonedo Concílio de Mácon, que condenava a prática de alguns bispos soltarem cachorros ferozesnas pessoas que buscavam seu auxílio, “pois o bispo deveria resguardar os hinos aoslatidos, e as boas obras às mordidas venenosas”. (Conc. Matisc. c. 13). Esses indícios

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sugerem que o pobre, na transição da Antigüidade ao Medievo, teve um papel fundamentalem ambos os modelos caritativos. Não como sujeito, mas como lucrativo objeto dacaridade.

Nessa direção, podemos concluir que, teoricamente, a caridade cristãinstitucionalizada deveria redimir os pecados dos doadores e lhes garantir determinadagraça ao mesmo tempo em que atenuava, mas não suprimia, as desigualdades econômicas.Contudo, na prática, notamos que a busca de intercessão divina fomentou uma elaboradapolítica da caridade nos grandes centros urbanos, onde os maiores beneficiários eram osbispos e os grupos cujos interesses os prelados representavam. Essa vigorosa relação depatrocinium episcopal encontrou na caridade cristã seu principal veículo de legitimação,pelo qual o poder político e econômico dos bispos tendeu a fortalecer-se cada vez mais.Não resta dúvida, portanto, que o episcopado foi o grande agente da transformação de umsistema caritativo a outro, ou – conforme a feliz expressão de Fer BAJO – do câmbio domodelo de assistencialismo do panem et circenses para o do panem et religio. (BAJO,1986: 194). Reflexo inconteste de novas interações sociais, novos modelos culturais, enovas relações de poder, a gradual elaboração de uma nova concepção sobre o pobre e deum novo modelo de caridade espelha a própria transição da Antigüidade ao Medievo.

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ANEXOEndereço para contato: Rua Alcebíades Plaisant, n. 198. Bairro Água Verde. Curitiba-PR.CEP: 80620-270.Tel.: (41) 3342-3035E-mail: [email protected]

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Pelo Direito à Cidade:Articulações e Aprendizados na Luta Política dos Trabalhadores Ocupantes de TerraUrbana na Cidade de Uberlândia/MG.∗

Rosângela Maria Silva Petuba∗(

RESUMOA proposta do artigo é problematizar a maneira pela qual a experiência vivida contribuiupara a reelaboração dos valores dos trabalhadores ocupantes de terra do Bairro Dom Almirna cidade de Uberlândia, buscando também avaliar a importância da luta política com fontede aprendizado para esses trabalhadores.

PALAVRAS – CHAVE: trabalhadores, aprendizados, cidade, luta política.

ABSTRACTThis article studies how current practices contributed to the re-elaboration of the values ofworkers in the Dom Almir district in Uberlandia, also aiming to evaluate the importance ofpolitical battles as a learning tool for those workers.KEY WORDS: workers, learning tools, city, political battle.

∗ O presente texto faz parte da minha Dissertação de Mestrado intitulada: “Pelo Direito a Cidade:Experiência e Luta dos Ocupantes de Terra do Bairro Dom Almir – Uberlândia (1990-2000)”. Programade Pós-Graduação em História.Universidade Federal de Uberlândia, 2001.

∗ ∗ Professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Ponta Grossa - PR. E-mail:[email protected]

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FONTE: SÁ, Cláudio Oliveira Ribeiro de. Autoconstrução e Assentamentos Urbanos em Uberlândia–MG: EmQuestão os Bairros Dom Almir e Prosperidade. Uberlândia-MG:UFU, 1999. (Monografia).

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Digitalizado e reformulado objetivando destacar o Bairro D. Almir.

As ocupações que deram origem à constituição do bairro Dom Almir, na cidade de

Uberlândia-MG, entre os anos de 1990 e 1991, puseram em movimento, direta ou

indiretamente, outros setores da sociedade, que, por afinidade política-ideológica, no campo

prático ou discursivo, solidariedade humana ou oportunismo eleitoreiro aproximaram-se do

movimento, tecendo um campo de articulações e gerando relações dos mais diversos

matizes, tornando-as elementos constituintes dessa experiência histórica vivenciada e

construída pelos trabalhadores ocupantes de terra do bairro D. Almir. Em agosto de 1990,

trabalhadores sem teto ocuparam uma área pertencente ao poder público municipal,

batizando-a, na época, com o nome de Vila Rica, e de onde foram transferidos para uma

propriedade rural chamada Fazenda Marimbondo. Esta área daria origem ao atual Bairro

Dom Almir. Menos de um ano depois dessa transferência, houve uma segunda

ocupação, realizada por um outro contingente de trabalhadores, numa área paralela

àquela para onde haviam sido transferidos os ocupantes do Vila Rica. A essa área os

ocupantes denominaram D. Almir II, que viria a ser incorporado ao primeiro ao longo

do processo de luta e legalização dos lotes que até hoje não está consolidado.

Ocupar terras urbanas trouxe várias situações de privação, desconforto e exclusão

para os trabalhadores envolvidos. Por outro lado, a busca de soluções para essas situações

experimentadas representou a possibilidade de valiosos aprendizados políticos e humanos.

Esses ganhos trazidos pela a luta foram construídos coletivamente ao longo do processo e

expressam a capacidade de articulação, reelaboração política que redimensionou os espaços

coletivos e/ou individuais de atuação e compreensão da cidade.

Na procura de alternativas que apontassem para soluções e dessem um maior

destaque a sua situação precária, os acampados esforçaram-se no sentido de construir uma

teia de apoios que reforçasse sua expressividade como movimento social no cenário urbano

e garantisse aliados no seu embate e diálogo com o poder público municipal.

Para compreender o universo dessas articulações estabelecidas, é preciso visualizar

o conjunto das necessidades vivenciadas, das alternativas buscadas para elas e,

principalmente, dos obstáculos e perspectivas que se colocaram ao longo do caminho.

A luta desses trabalhadores inscreveu-se num horizonte mais amplo, que punha em

questão o próprio direito à cidade e uma série de expectativas e valores do que vinha a ser

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esse direito e as formas pelas quais ele poderia materializar-se no cotidiano dos moradores

acampados do bairro.

Em um documento34 enviado à Prefeitura Municipal de Uberlândia, a concretização

desse direito ganha forma e propostas objetivas:

Nós, moradores do Acampamento D. Almir, há mais de oito meses, nos dirigimos a V.Sa.para esclarecer a situação de miséria em que vivemos e exigir uma solução imediata para osnossos problemas.Somos hoje mais de 400 famílias que, a exemplo de outras milhares são excluídas de umdos direitos elementares garantidos em Lei, que é o direito à moradia. Por isso resolvemosacampar próximo ao bairro Dom Almir. Neste acampamento estamos vivendo uma série dedificuldades: falta de água, transporte, assistência médica, escola, saneamento básico, etc.Nesse sentido apresentamos as seguintes reivindicações:Que seja desapropriada imediatamente a área, demarcados os lotes e assentadas todas asfamílias;Ligação de água urgente;Materiais para a construção de três cômodos e um banheiro;Que seja negociado com carência e de acordo com as condições das famílias o pagamentodos lotes e dos materiais de construção;Atendimento médico e medicamentos no local;Instalação de uma creche urgente;Instalação de uma escola para garantir o ano letivo das crianças;Doação de barracas, enquanto não iniciam as construções;Regularização do transporte com mais ônibus e maior freqüência;Instalação de energia elétrica;Doação de cobertores e agasalhos.

Certos de uma breve providência, agradecemos.

COMISSÃO DOS MORADORES DO ACAMPAMENTO DOM ALMIR.” (35)

Ao se dirigirem diretamente a Prefeitura Municipal de Uberlândia, os moradores

acampados do bairro Dom Almir realizam um movimento político de implicações concretas

na dinâmica da cidade e na disputa travada com o poder público.

34 Boa parte desta documentação referente ao processo de luta e organização dos trabalhadores ocupantes deterra do Bairro Dom Almir foi se incorporando a esta pesquisa trazida pelos próprios depoentes emespecial Sr. Sebastião Correa e Sr. Djalma Morais de Souza. O primeiro era o atual Presidente daAssociação de moradores no início desta pesquisa e o segundo foi quem organizou os trabalhadores dasegunda ocupação da área. Essas fontes: abaixo – assinados, requerimentos, cartas, fichas de cadastro dasfamílias na área entre outras, foram guardadas, muitas vezes em condições precárias, pelos própriostrabalhadores.

35 Documento endereçado, em 18/01/1992, à Srª. Niza Luz, Secretária Municipal de Trabalho e Ação Socialna época.

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Ao assumirem as reivindicações expressas no documento, como fruto de uma

situação de privação experimentada por mais de 400 famílias, eles se colocaram como um

sujeito social coletivo, forjado nessas vivências mútuas, e trouxeram para si a legitimidade

de uma interlocução direta com o poder público. Essa postura estava embasada em

concepções sobre o que vinha a ser o poder e o papel político da administração pública

local, “o dever do político é ele trabalhar na comunidade, certo? Fazer o que ele precisa

fazer e o que ele prometeu, ele tem que ajudá”. (36)

Essa visão não levava a uma atitude de mendicância ou de uma muda e passiva

expectativa em torno da “boa vontade política” da Prefeitura, pelo contrário, foi no

convencimento da legitimidade e da justeza de seus direitos, aliados à dureza das condições

materiais vividas, que os acampados se puseram em confronto com essas autoridades e, no

desenrolar desses confrontos, forjaram uma visão política contestadora propondo uma nova

leitura da questão urbana em Uberlândia.

Essa nova leitura era o desdobramento lógico de uma outra postura subjacente no

teor dessa carta. Ela expressava o desejo, o interesse e os projetos de cidade na ótica de um

sujeito coletivo, que recolocava a ocupação de terras e o acampamento urbano de famílias

trabalhadoras como um lugar e uma fala que emergiam de dentro da cidade dando-lhe

concretude a expressar-se em forma de carência e segregação social no espaço geográfico e

no cotidiano desses trabalhadores.

Essa nova leitura não surgiu pronta, ela era a expressão de um conjunto de

trajetórias comuns vividas no dia a dia da cidade, brotava dos espaços físicos, sociais e

culturais compartilhados pelo conjunto da classe trabalhadora. Espaços que falavam de uma

cidade diferente daquela propagandeada pelo poder público, existente apenas para a elite

econômica e política ou, em alguns momentos, para a classe média ávida em sonhos de

consumo e de ascensão social propiciados pelas benesses do capital.

Esse modelo de cidade apresenta-se marcado por uma desenfreada busca de

progresso, que se m0aterializa em ações de implantação de indústrias, construção de

grandes obras públicas, modernização do sistema de transporte e vias de circulação para

acelerar o fluxo de pessoas e mercadorias, alta informatização dos serviços e propagandas

36 Entrevista concedida por Felismina Pereira em abril de 1999.

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para atração de Instituições de Ensino Superior Privado, com vista a uma formação em

grande escala, de mão-de-obra especializada, entre outros.

Obviamente, por sua natureza capitalista, esse projeto não visa ao usufruto de toda a

população, mas busca impor-se como aspiração de todos.

Porém o viver a cidade e na cidade constitui-se em experiências de reconhecimento

de espaços, de alternativas, de mudanças, de práticas de formação de sujeitos políticos.

Esses outros espaços, compartilhados e construídos pelos trabalhadores, informam

outras práticas e outras visões de cidade, em que os mecanismos de ação e informação são

trabalhados dentro de lógicas, muitas vezes, distintas daquelas visualizadas pelos projetos

das classes dominantes.

Exemplo concreto disso é própria maneira como se deram os processos de ocupação

constituintes do Bairro Dom Almir. Sem prévia organização, os trabalhadores foram

tomando conhecimento das notícias sobre os barracos do Parque São Jorge e depois do

Bairro Dom Almir (no caso da ocupação, Dom Almir II) e num movimento de identificação

de aspirações e perspectivas, foram engrossando a ocupação. Alguns ouviram a notícia pelo

rádio, outros foram informados e até convidados por parentes e vizinhos; algumas mulheres

contam terem sabido da existência da ocupação por meio de comentários na mercearia e na

farmácia. Djalma diz que saiu para trabalhar e, quando voltou, só teve a notícia de que sua

esposa havia ido limpar um terreno e levado os filhos maiores para ajudá-la, Veridiana

relata que foi à farmácia e ouviu, no Programa do Batista Pereira, a notícia, comprou o

remédio e já voltou para casa decidida “a entrar nessa vida”; Divina morava e trabalhava

junto com todos os filhos numa carvoaria, foi convidada por alguns colegas de trabalho e

resolveu ir.

O fato de essas pessoas tomarem conhecimento da existência da ocupação em seus

espaços normais de vida é significativo, pois demonstra que as informações circulavam em

espaços comuns e que guardavam uma certa similaridade de realidades vividas. A notícia

chegou a esses trabalhadores e foi assimilada como alternativa, porque a ocupação de terras

urbanas foi, em suas trajetórias de vida, delineando-se como a saída mais viável dentre as

oferecidas. A pronta identificação do acampamento como possibilidade real de aquisição de

moradia própria em Uberlândia deu-se por um movimento coincidente de vivências nessa

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cidade, elaboradas de forma particular, mas, no geral, perpassadas pelo sentimento de

exclusão, de pobreza, de dificuldade de acesso aos bens urbanos, em suma, por sentimentos

que só poderiam ser experienciados na condição de classe trabalhadora.

Parto do princípio que, para se compreender adequadamente o problema da

habitação, é preciso aliá-lo de forma intrínseca à questão da terra e da complexidade da vida

urbana. A partir dos anos 60, tem-se registrado no Brasil um crescimento demográfico

urbano muito superior ao crescimento dos seus domicílios. Além disso, os anos 80

trouxeram, com a recessão, a pauperização acelerada e uma violenta redução dos

investimentos, tanto públicos como privados, em obras de urbanização. Contraditoriamente,

nesse quadro, a população urbana passou, ainda no final da década, a representar 70% da

população total do país.(RODRIGUES, 1994:57-63;MARTINS,1994:74-83) (37)

Nas cidades, há um contingente cada vez mais expressivo de trabalhadores vendo-

se, crescentemente, privados da mais elementar condição de vida, com pouca ou nenhuma

perspectiva de trabalho e moradia dignos. Excluídos do mercado de consumo, esses

habitantes vêem-se forçados a saídas para sobrevivência: cresce o número de favelados; os

terrenos ociosos, e muitas vezes especulativos, são ocupados; os loteamentos em situação

irregular multiplicam-se; aumentam as construções à beira de córregos, rios, encostas,

causando profundos impactos sócio-ambientais; e, no âmbito do planejamento, os esforços

se frustram na maioria das vezes, inclusive, pela ineficácia da adoção de modelos pré-

estabelecidos e do equívoco das “soluções” correntes de “desenvolvimento urbano”.

Nesse quadro, as situações de conflito acirram-se rapidamente, passando a cidade a

conviver, permanentemente, com confrontos relacionados ao acesso à terra, habitação, em

que os despejos, as remoções, ocupações e a violência policial são uma constante.

No contexto amplo da produção de mercadorias em nossa sociedade, inclui-se a

produção de um tipo de espaço urbano que reproduz a pobreza, não como carência, mas

como parte integrante de uma lógica que vem transformando o espaço urbano num imenso

e sofisticado mercado, em que uma das mercadorias mais caras é a habitação, que se torna

37 Nestes livros, as autoras apresentam gráficos e dados estatísticos sobre o crescimento da populaçãobrasileira nas últimas décadas, abordando a questão das migrações internas, do êxodo rural e dascondições de vida das classes trabalhadoras nas cidades brasileiras. Os dados apresentados baseiam-se nosdados fornecidos pelo IBGE, mais especificamente no: Anuário Estatístico Brasileiro, 1977 a 1982,IBGE. Ver também: CEM – Centro de Estudos Migratórios. Migrações Internas no Brasil: a peregrinaçãode um povo sem terra. São Paulo: Paulinas, 1986.

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inacessível para a maioria dos seus moradores, funcionando como forte fator de exclusão do

direito à cidade.

Em Uberlândia, a produção de moradias, principalmente aquelas voltadas para as

classes trabalhadoras, sempre estiveram vinculadas a programas institucionais, fossem eles

de âmbito municipal, federal ou estadual (SOARES, 1993:07) (38). Entretanto ficaram de

fora desses planos, os trabalhadores que não podiam comprovar renda ou salário e, dessa

maneira, viram-se obrigados a encontrar alternativas de obtenção e de produção de

moradias: ocupações, favelas, cortiços, auto-contrução.

Para os trabalhadores ocupantes de terra e acampados do Bairro Dom Almir, esse

viver o cotidiano comum da cidade tinha características diferentes daquelas apontadas no

discurso oficial, como sendo atributos de Uberlândia. Em suas trajetórias, a cidade de

qualidade de vida invejável, em termos de transporte coletivo, atendimento médico,

educação pública, qualidade de moradia e saneamentos básicos, vida pacata e ordeira,

grande oferta de emprego, era percebida como o oposto de suas vivências, elementos

denunciadores de uma profunda desigualdade social e de distribuição de renda. A existência

desses bens da vida urbana foi vivenciada justamente pela impossibilidade de chegar até

eles ou foi sentida num movimento de distanciamento cada vez maior, o que, na prática,

representou o aprofundamento do fosso da desigualdade e a perda concreta de direitos

mínimos. É isso que nos relatam os depoimentos a seguir:

“... falava assim que aqui tinha muito serviço, na época tinha mesmo, só que daí prá cá,

nada saiu, não saiu serviço... quando aparece é limpeza de rua, mas gente é demais, num

chega prá todo mundo né? Prá mulher quando aparece é um servicinho de um salário, ás

vezes a mulher tem seis, oito filho quê que um servicinho de um salário dá, né? Num dá prá

nada”.(39)

38 Este texto foi produzido a partir da exposição da professora no encontro “A Moradia em Uberlândia” em28/03/93.

39 Felismina Pereira, abr./1999.

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“Então... uma coisa que eu tô achano é que duns tempo prá cá os político... de primeiro eu

tinha minha barraquinha de comida, eu vendia muita comida, é que eu esqueci a época, eu

sei que naquela época eu depositei até o meu dinheiro, eu tinha meu dinheiro d’eu comê,

d’eu dá aos meus filhos, de vestir...Hoje a gente num tem mais uma poupança, cabô com a

poupança que a gente tirava o juro e deixava o principal... hoje num tem mais poupança,

num tem mais nada. É pro povo ficá aí que nem cachorro... Uma cachorrada no mundo

sofreno!”. (40)

Mas, voltando ao teor da carta enviada à Prefeitura, pode-se refletir também para o

significado político inscrito na argumentação que aponta o direito a moradia como sendo

fundamental e garantido em Lei.

Não se trata de afirmar que os trabalhadores não tivessem consciência disso

anteriormente, mas o que chama atenção aqui é o fato de que em toda a documentação

analisada, essa foi a primeira vez em que essa formulação apareceu por escrito e remetendo-

se a um coletivo que extrapolava o acampamento, ligando-o a uma realidade que engloba

milhares de famílias na sociedade brasileira.

Esse alargamento de percepção aparece como um indicador de que a luta política na

ocupação e o embate em busca da legitimação desta, ampliaram o campo de entendimento

da Lei e dos direitos, bem como possibilitou uma leitura mais apurada da realidade sócio-

econômica brasileira, traduzida no dia-a-dia de privações e miséria de expressivos

contingentes da classe trabalhadora no país.

Uma outra leitura possível é a de que o aumento do nível de elaboração teórica e

refinamento da discussão pode indicar uma busca dos acampados de apoios e/ou assessorias

técnicas, em outros movimentos sociais ou no meio intelectual mais participativo para

auxiliar na elaboração de formulações teóricas que respaldassem, no nível do discurso, as

práticas e os saberes advindos da própria experiência de vida desses trabalhadores e que

40 Entrevista concedida por Maria Joana Lima em outubro1999.

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agora se amalgamavam num sujeito coletivo, em movimento baseado em interesses mútuos

e objetivos definidos.

Essa tendência foi marcante na trajetória de luta dos movimentos sociais urbanos da

década de 80, quando uma pluralidade de material foi produzida pelos movimentos de

moradia, expressando a complexidade e a riqueza das lutas empreendidas.

Segundo o historiador Robson Laverdi, o diálogo com essa produção apresenta-se

como um espaço privilegiado para discutir as experiências de aprendizado dos movimentos,

as relações entre as lideranças e a base e entre estas e as assessorias técnicas, sendo que, na

análise de tais materiais, é possível indagar sobre a produção de estratégias, concepções e

formas discursivas dos movimentos sobre a “questão urbana” e o direito à cidade,

reelaboradas na tensão entre saberes e lugares produtores, e as demandas definidas nos

caminhos das lutas que então se colocavam. (LAVERDI,1998).

As reivindicações e as críticas implícitas no documento analisado demonstram o

caráter da relação estabelecida com o poder público municipal, na época, personalizado,

para os acampados, nas figuras do prefeito Virgílio Galassi e da secretária de Trabalho e

Ação Social, a Niza Luz.

Esse relacionamento foi marcado pelos embates entre prefeitura e acampados e pela

negativa veemente (traduzida em discursos, práticas e políticas públicas) do poder

executivo em reconhecer a legitimidade do movimento e das reivindicações dos

trabalhadores.

Essas posturas podem ser acompanhadas, inclusive, pelos jornais da época, para os

quais o Prefeito nunca poupou declarações desqualificadoras sobre a ocupação, os

ocupantes e mesmo sobre os seus apoiadores.

“Eu quero deixar claro – e que não fique nenhuma dúvida-, que invasores, na minhaadministração não terão nenhum apoio”. (41)

Para o poder público, a ocupação era constituída por pessoas que não pertenciam à

cidade o que o desobrigava de qualquer compromisso e responsabilidade política e social

41 “Virgílio reafirma que não dará apoio a invasores sem-teto”. Jornal Correio do Triângulo. Uberlândia,21/01/1992

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com elas, “... o nosso compromisso é com a população de Uberlândia e os invasores não são

população de Uberlândia”.

Segundo João Marcos Alem, a elaboração de um discurso sobre o “nativo” em

Uberlândia remonta à própria fundação do município e visou, desde o início, manter a

cidade e seu desenvolvimento no controle das elites locais.(ALEM, 1991:79-101)

Nesse discurso, o que existe em Uberlândia são apenas conturbações sociais e não

processos políticos de luta; os sujeitos emergentes da experiência da cidade que cresce são

escamoteados, dissimulados em relações predeterminadas, e desaparecem nos discursos

subjacentes a essas relações.

A cidade é aberta e generosa para quem trabalha, valoriza a família e a vida em

comunidade, ou seja, quem está inserido e nunca perturbou sua ordem: trabalhou, casou,

constituiu família, sempre pagou aluguel em dia, tem o nome limpo.

“Uberlândia sempre foi uma cidade aberta. O indivíduo chega aqui e ninguém pergunta deonde ele veio, mas o que ele faz. Se é trabalhador integra-se a cidade em pouco tempo...”.(42)

Está claro o fato de que a cidade oficial reserva seus espaços a quem sempre viveu

de acordo com os mecanismos por ela ditados. É claro, também, que, dentro deste

entendimento, os desempregados, ou os que nunca sequer chegaram a colocar-se no

mercado de trabalho, não são considerados trabalhadores, eles são “sobrantes”, restos

incômodos, que só aparecem nas estatísticas da crise ou nas páginas policiais... sobras de

uma cidade moderna, resíduos inevitáveis do crescimento urbano e do progresso gerador de

desigualdades, ambos intrínsecos à lógica do sistema capitalista.

Porém, cabe ressaltar que o relacionamento entre o poder público e os trabalhadores

nunca se deu de forma linear. Ele foi construído com idas e vindas, ocasionadas, inclusive,

pelo acúmulo de forças políticas consolidado pelos ocupantes de terra durante o processo.

42 Revista Flash. n. 10, Uberlândia, SET\88.

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“... na época era o seu Virgílio, esse seu Virgílio que tá aí... é uma pessoa que eu... a modado outro, é um grande administrador, mas só que ele... ele num tem coração, pessoa que sóvê o lado dos ricos, se nóis tem o que nóis tem hoje foi a base da pressão mesmo e com oapoio de todos os outros segmentos da sociedade”. (43)

Nas atuações em relação ao poder público municipal, os acampados valeram-se de

vários recursos de ação direta como passeatas, ocupações da Prefeitura e da Câmara

Municipal que eram realizadas com a participação das crianças e das mulheres, levando

latas e panelas vazias para representar a falta de água e comida. Esses momentos foram

registrados pela imprensa local e também ressurgem na fala de alguns moradores

entrevistados:

“Quando nóis tava no São Jorge fizemos várias passeata ali e depois disso, a gente tivemosvárias vezes dentro da Prefeitura, através da multidão, ia muita gente, ia 50,60 100,150pessoas...” (44)

“Cerca de 100 pessoas, moradores acampados do bairro Dom Almir após realizarem umacurta passeata pela avenida Afonso Pena ocuparam, em companhia do deputado estadualGilmar Machado(PT) e da vereadora Nilza Alves(PPS), ontem a ante-sala do prefeitoVirgílio Galassi na tentativa de conseguir uma audiência”. (45)

Pelo que se pode perceber, essa ocasião não foi uma exceção nas relações entre o

poder público municipal e os moradores do Dom Almir. Durante o período de negociação,

o Prefeito adotou uma postura clara de jamais receber a Comissão dos sem teto:

“O prefeito Virgílio Galassi (PDS), segundo informou seu assessor de Gabinete, recusou-se a receber a imprensa para falar do movimento dos acampados do bairro Dom Almir. Eleconfirmou que a audiência fora marcada como o Deputado Gilmar Machado(PT) porémcom a restrição de que não receberia a comissão de moradores. ‘O prefeito já disse quenão recebe invasores’, reiterou”.(46)

43 Entrevista concedida por Djalma Moraes em abril de1999.

44 Idem.

45 “Moradores ocupam ante-sala da PMU tentando audiência”. Jornal Correio do Triângulo. Uberlândia,17/03/92.

46 Idem.

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Esse posicionamento causou momentos de muita indignação e exasperação entre os

moradores, mas a postura do Prefeito não foi jamais aceita como a palavra final, nem

tampouco a Comissão de Frente composta pelos moradores perdeu sua autoridade e

legitimidade diante nos impasses e conflitos das negociações, pelo contrário, foram os

momentos de acirramento dessa tensão que levaram a Comissão a enfrentar e organizar o

embate, utilizando-se dos argumentos disponíveis e aumentando o seu respaldo diante das

negociações com o poder público.

Djalma, que era componente da Comissão de Frente na época, evidencia um pouco

dessa relação em sua fala:

“... porque aquela comissão era respeitada, a gente tinha apoio lá dentro ...esse apoio vinhado seguinte: da maneira como as pessoas da própria comissão negociava com a própriaprefeitura, porque dentro da prefeitura se num tiver umas pessoas que num tem assim, numvô dizê uma inteligência, mas um argumento, porque contra um argumento num existenada, se você tem um argumento certo, você consegue as coisa, né?Então naquela épocaaquelas pessoas que tava ali, elas tinha argumento prá conseguir dobrar o prefeito,osvereador, os secretários...”.(47)

A argumentação construída pelos acampados embasava-se na questão dos impostos

pagos, da terra estar vazia, no fato deles serem trabalhadores e quererem pagar pelo lote e

pela casa. A base de sustentação dessas reivindicações diz respeito a valores e a

experiências de vida que forjaram, nessas pessoas, convicções sobre o significado do

direito, da propriedade, da justiça e honestidade, que, aliadas às condições precárias de

sobrevivência experimentadas por esses trabalhadores e suas famílias na cidade, os levaram

a reconhecer a justeza e legitimidade de sua luta, embora essas convicções aparecessem

num campo semeado por contradições.

Mas, além desses, outros argumentos foram usados para “dobrar” o prefeito,

vereadores e secretários, e expressam o grau de determinação e entendimento político dos

acampados no embate que se desenrolava:

“Uai, ali tinha muita coisa: às vezes eles falava que num dava, às vezes eles jogava práfrente, ficava empurrando com a barriga, certo? Então os argumento mais que a gente usavaera a pressão, propriamente a pressão, né? porque naquela época nóis era o quê?nóis era

47 Djalma Moraes, abr./1999.

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mais de 400 pessoas, a gente representava 400, 600 pessoas, então imagine você, 600pessoas dentro de uma Prefeitura, o quê que se faria ali? Então era assim mais ou menos,mais na pressão e no argumento certo, porque ou o prefeito fazia ou a gente fazia omovimento.”(48)

“Fazer o movimento” significava nesse contexto, estar em movimento, estar

inserido na dinâmica da construção e da articulação de uma luta que colocava homens,

mulheres e crianças como parceiros de um sonho comum e na busca da concretização de

um direito.

Essa fala também traz possibilidades de aprofundar a reflexão sobre a maneira pela

qual trabalhadores, antes individualizados, dispersos e privatizados, vão se constituindo

como um sujeito que é coletivo, é histórico e é social. “Imagine o que é 600 pessoas dentro

de uma Prefeitura? (49)”, a pergunta não remete a uma questão simplesmente numérica. Ela

trata de um grupo de pessoas que se conhecem e se reconhecem a partir de uma demanda

comum: a moradia. Experiências urbanas compartilhadas num cotidiano de desemprego ou

o sub-emprego, arrocho salarial, dificuldade de morar, trabalhar, estudar, criar os filhos,

divertir-se, em suma, de constante precarização das condições de vida e a frustração

reiterada de uma série de expectativas construídas em torno do morar e do viver na cidade.

Na conjunção desses fatores, que agregam em torno de si atores com vivências

comuns e que, portanto, geram identidade, pode-se perceber o gradativo processo de

constituição de um sujeito coletivo histórico, pois, ao se reconhecerem movidos por

demandas comuns e se colocarem na busca de alternativas para elas, eles trouxeram à luz

existências de práticas, vivências e valores essencialmente políticos e politizadores, num

espaço, até então, tido como à parte da política: o cotidiano dos lugares de moradia dos

trabalhadores urbanos. Foi olhando para dentro desse movimento que se tornou possível

perceber a maneira pela qual um grupo de trabalhadores dispersos por diferentes bairros da

cidade e envolvidos numa luta ferrenha e diária pela sua sobrevivência e de sua família, foi

se constituindo no sujeito coletivo: Moradores do Acampamento Dom Almir, que, a

despeito de todas as tentativas de ignorá-los como tal, colocou-se no início dos anos 90,

como interlocutores de considerável força política, num diálogo, muitas vezes, forçado,

com a Prefeitura Municipal de Uberlândia, trazendo à tona, de forma inegável,

48 Entrevista concedida por Haroldo da Silva em outubro de/2000.

49 Idem.

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questionamentos, reivindicações e disputas que versavam sobre a ordem e a desordem

urbana na ótica desses trabalhadores.

Além disso, a recusa insistente por parte do poder público em reconhecer em o

movimento de ocupação de terra, como ação legítima dos trabalhadores em busca de

moradia, e em dialogar com seus representantes, teve dois desdobramentos políticos muito

importantes:

O embate configurou-se como um campo de reafirmação do sujeito político

coletivo, no confronto com o poder público, forjou-se um processo que politizou e

organizou de forma crescente a ocupação, essa negativa em reconhecer sua existência

colocou-os em movimento, levando-os a aprimorar seu discurso e a articular suas ações no

campo prático.

Nas suas idas à Prefeitura, na ocupação das ante-salas do gabinete do prefeito, dos

secretários municipais, da tribuna no plenário da Câmara Municipal, na organização das

passeatas, nas palavras de ordem, no debate com os responsáveis pelos serviços públicos e

na defesa de suas pautas de reivindicações, eles foram desmistificando os motivos da ação e

da razão do Estado; foram percebendo os jogos de interesses privados no trato da “coisa

pública”, deparando-se com as demandas clientelistas e eleitoreiras, aprendendo o

complexo movimento das relações de força presentes nas disputas e nas decisões políticas,

administrativas e judiciais e avaliando o uso que poderiam fazer da força de pressão que

tinham acumulado.

Foi justamente diante da recusa em ter sua presença reconhecida pela administração

pública municipal que o movimento reforçou sua identidade como sujeito político,

aumentando-a em força inversamente proporcional à negativa da qual era alvo.

Além disso, foi por esses impasses gerados pelos posicionamentos da Prefeitura que

os acampados procuraram mediadores nesse diálogo necessário com a administração da

cidade, enriquecendo o percurso desse aprendizado de experiência social mediante as

conexões políticas engendradas.

Nessa gama de relações estabelecidas, aquela existente com a Igreja Católica

aparece em vários momentos nas fontes, sejam elas orais ou escritas.

A postura da Igreja Católica, ou pelo menos de setores dela, em relação à ocupação

do Bairro Dom Almir em Uberlândia, não era uma postura isolada, mas dizia respeito a

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todo um processo no qual ela foi se constituindo como um referencial, fosse em nível de

produção de uma determinada matriz discursiva50, amplamente adotada pelos movimentos,

desde o início da década de 80, e que apontava para a humanização da cidade, fosse como

sujeito legitimador de outras organizações sociais desse campo.

A Igreja vinha promovendo, desde a década de 80, uma série de Encontros, em nível

nacional, para discutir a questão do solo urbano, e contribuiu no processo que levou a

reelaboração de concepções sobre a questão urbana e o direito a cidade.

No caso do bairro Dom Almir em Uberlândia, vislumbra-se parte dessa postura,

rastreando diversos documentos em que a presença da Igreja foi marcante. Sua ação fez-se

sentir desde os momentos tensos de negociação no acampamento Vila Rica, quando em

agosto de 1990, saiu a ordem de despejo das famílias ocupantes da área municipal no

Parque São Jorge IV.

É interessante retomar a situação vivida pelos ocupantes naqueles momentos que

antecederam a entrada oficial da Igreja Católica, representada pelo Bispo Dom Estevão,

como mediadora no diálogo com o poder público.

Em agosto de 1990, dias após a ocupação, os jornais anunciavam uma reunião entre

uma comissão de vereadores (51) e o prefeito para discutir a situação dos “invasores” de

terrenos no Parque São Jorge, pois o prefeito negava-se a receber os próprios trabalhadores

que procuraram o Legislativo para tentar mediar a situação.

O posicionamento dessa Comissão de Vereadores não impediu que a Prefeitura

mantivesse e conseguisse o parecer favorável ao pedido judicial de reintegração de posse no

sentido de despejar as famílias do Vila Rica:

“Sair para onde? Essa era a pergunta feita por todos os sem casa que ocupam um terreno daEmpresa Municipal de Construção Popular (EMCOP) no Parque São Jorge IV. Os doisúltimos dias foram tensos para as 200 famílias depois que a Justiça deu parecer favorável aliminar de reintegração de posse para a Prefeitura. Reunidos em pequenos grupos eles

50 A idéia de “Matrizes Discursivas” trabalhada nesta pesquisa está referenciada na obra de:SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em Cena: Experiências e Lutas dos Trabalhadores daGrande São Paulo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. (Capítulo III).

51 A Comissão era formada pelos vereadores Normy Firmino (PSDB), Calcir José (PFL) e Nilza Alves(PCB).

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esperavam aflitos a chegada a qualquer momento de um oficial de Justiça ou mesmo daPolícia para conduzir os trabalhos de retiradas dos barracos”. (52)

Segundo o Sr. Haroldo, os boatos que chegavam até o acampamento eram de que a

Prefeitura tinha tanta certeza de que conseguiria o parecer favorável ao seu pedido, que já

havia colocado 22 caminhões de prontidão em frente ao Fórum da cidade, só esperando o

Juiz assinar a ordem para efetuar o despejo, o que de fato aconteceu: “Aí o Dom Estevão

entrou na frente e disse: _ ‘ Virgílio, você num vai fazer isso não!”.(53)

Para os acampados, o apoio do Bispo foi de fundamental importância, tanto que o

nome do bairro era para ser Dom Estevão, o que só não aconteceu porque, segundo a Lei,

não é permitido nomear bairros e outras localidades com o nome de pessoas vivas. A

entrada da Igreja nas negociações foi determinante, inclusive, algumas pessoas até hoje

acreditam que a área do bairro foi comprada pelo Bispo e doada aos moradores, o que

obviamente não é verdade.

Politicamente, a participação direta da Igreja nas negociações a favor dos

acampados alterou o quadro de forças, porque permitiu que o problema fosse visto sob

a ótica do direito e da humanização da cidade e não apenas pela ótica da invasão e da

vadiagem, mas também despertou críticas e acusações dos setores mais conservadores

da sociedade, sobretudo, do próprio poder público, que encarava a Igreja com um dos

principais elementos agitadores e incentivadores das ocupações de terras na cidade.

Esse enfrentamento entre a Igreja e a Prefeitura Municipal pôde ser particularmente

sentido na ocasião da segunda ocupação no bairro, ou seja, daquelas famílias de

trabalhadores que não vieram transferidos do Vila Rica e formaram o acampamento

denominado Dom Almir II.

“Segundo Virgílio Galassi, no ano passado foi feito um acordo com a Igreja Católica para aPrefeitura absorver o problema da invasão que já existia em Uberlândia, mas com ocompromisso de que aquela seria a última vez que a Administração Municipal iria interferirno assunto. Isso, no entanto, não aconteceu e segundo o Prefeito, o mesmo grupo de

52 “Posseiros do Bairro São Jorge ainda não sabem para onde ir”. Jornal Correio do Triângulo. Uberlândia,14/08/1990.

53 Sr. Haroldo da Silva, out./2000.

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agitadores que promoveu a primeira promoveu esta segunda, agora nas proximidades dobairro Dom Almir”.(54)

Para o Sr. Virgílio Galassi, administrador público eleito pelo povo, o problema dos

ocupantes de terra não exigia políticas públicas coerentes com a gravidade do quadro social

de miséria e privação e sim medidas de assistencialismo e caridade. Na sua opinião, as

Entidades ou Instituições que exigissem ação por parte da administração municipal

deveriam pagar, do seu próprio bolso, as medidas que recomendavam ao poder público,

pois estas se constituíam em mera demagogia de pessoas que criavam o problema para a

Prefeitura Municipal resolver.

A mentalidade estreita e conservadora expressada na fala do Prefeito em relação ao

trato das questões sociais na cidade demonstra, claramente, o grau de articulação que se

fazia necessário na disputa empreendida pelos acampados. Estes perceberam, sem demora,

a importância da aliança com os segmentos sociais que pudessem respaldá-los ou mesmo

mediá-los no processo de disputa que então se colocava.

Essa percepção deu aos trabalhadores a clareza política de que a estratégia de sua

resistência não poderia ser construída solitariamente. Ignorados pelo poder Executivo

recorreram ao Legislativo, negligenciados por este, buscaram outras formas de conexão

com a sociedade e, na impossibilidade de serem ouvidos seriamente por seus interlocutores,

somaram sua voz a outras:

“O bispo diocesano Dom Estevão Cardoso de Avelar, acompanhado por um grupo depopulares, padres e freiras, esteve ontem na Câmara Municipal com o objetivo de abrirdiálogo com o Prefeito Virgílio Galassi (PDS) sobre a situação dos acampados do bairroDom Almir II. Dom Estevão referiu-se a várias declarações dadas pelo prefeito VirgílioGalassi sobre o problema dos acampados negando-se a tomar uma decisão a seu favor,classificando-os de “invasores”.(55)

A administração municipal acusava a Igreja de ser a patrocinadora das ocupações,

inclusive, alegando que não daria apoio aos trabalhadores do Dom Almir II, porque, na

época dos acampados do Vila Rica, a Igreja teria feito um acordo com as autoridades do

54 “Virgílio reafirma que não dará apoio a invasores sem-teto”. Jornal Correio do Triângulo. Uberlândia,21/01/1992.

55 “Bispo interfere e apóia acampados do Dom Almir”. Jornal Correio do Triângulo. Uberlândia,

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Município, garantindo a não realização de novas ocupações de terra. A resposta da Igreja

não tardou: “Ora é a Prefeitura que anuncia em suas propagandas uma cidade de leite e

mel”. (56)

Esse episódio demonstra o nível de articulação adquirido entre os acampados do

Dom Almir e os demais setores da sociedade. Em muitos momentos, esses setores fizeram-

se ouvir e compraram a briga com o poder público em nome dos acampados, não porque

eles não tivessem condições de fazê-lo ou fossem incapazes de conduzir sua luta, mas como

estratégia construída no interior do próprio movimento de resistência e reivindicação.

Essa relação com a Igreja foi construída num rico movimento de aproximação e

distanciamento, afinidade e exasperação. Momentos em que os trabalhadores foram

construindo sua experiência política, numa oscilação entre a autonomia coletiva e a relação

de dependência, apoio e proteção, como deixa entrever o abaixo assinado dos acampados,

endereçado ao próprio Dom Estevão:

“Nós, abaixo assinados, residentes e domiciliados em Uberlândia/MG, acampamento DomAlmir, vimos através desta fazer uma denúncia. Somos contra a politicagem que o PadreBaltazar juntamente com o Senhor João Batista da Fonseca, candidato a vereador pelo PT,PARTIDO DOS TRABALHADORES, estão fazendo dentro da nossa capela, no horário damissa, além do mais isto está gerando conflitos entre nossa gente, e, às vezes, alguém éameaçado de morte, como aconteceu alguns dias atrás. Somos pessoas humildes, mas nãosomos pessoas desligadas do mundo. Fazemos campanha para o PT, mas não podemosaceitar que alguém possa vir a morrer por uma simples causa.Esperamos contar com o apoio de Vossa Reverendíssima, para que tudo isto seja resolvidodemocraticamente (57)”.

Esse documento, datilografado em folha de caderno de desenho, data de 09 de

setembro de 1992 e foi assinado por 13 moradores. Ainda que o montante das assinaturas

seja de um número relativamente pequeno, o que pode ser indicativo tanto do pouco

incômodo que as atitudes do Padre Baltazar realmente geravam entre os acampados, quanto

da pouca predisposição de questionar as atitudes de um representante/autoridade da Igreja

Católica dentro do acampamento. A simples existência de um documento deste teor,

produzido e assinado por moradores, pode demonstrar uma faceta interessante da dinâmica

56 Idem.57 Abaixo Assinado endereçado a D. Estevão.

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que se vinha empreendendo entre as “autoridades constituídas” e aquela construída no ir e

vir das relações cotidianas entre os acampados e os seus apoiadores.

Nessa interlocução estabelecida com a Igreja, e indiretamente com o Partido dos

Trabalhadores, havia um reconhecimento da política eleitoral, inclusive, via participação na

campanha para candidatos do PT, mas esse reconhecimento tinha um limite bem definido,

quando essas ações eram realizadas em espaços, ocasiões e horários não previamente

estabelecidos, concedidos e combinados com o coletivo.

A capela, o horário da missa significava, para esses trabalhadores, em um cenário de

onde emergiam valores e expectativas diferentes daqueles convencionalmente denominados

de políticos; locais onde, diante da busca de reflexões, de tranqüilidade e de religiosidade, a

campanha eleitoral do momento, ainda que valorizada, convertia-se em “uma simples

causa”.

Para compreender tais posicionamentos faz-se necessário refletir sobre a dinâmica

desses movimentos, mediante os quais a experiência vivida pelos homens e mulheres

concretos e de “vida anônima” vem á tona em forma de ações coletivas, que politizam os

lugares e as práticas cotidianas da vida e alteram o roteiro pré-estabelecido do diálogo e da

articulação entre as diversas formas de expressão social dos trabalhadores e a

institucionalidade reconhecida, seja no poder público ou em diversos outros agrupamentos:

Igrejas, partidos, sindicatos etc.

As reflexões elaboradas por Eder Sader (SADER, 1988:55-56) foram de grande

valia, pois permitiram auscultar, nos meandros desse diálogo travado entre os acampados

do Dom Almir e seus apoiadores, não a noção do utilitarismo ou do oportunismo, mas a

idéia de autonomia como elaboração da própria identidade, construída num processo

coletivo de luta e vivências múltiplas, em que se organizam práticas por meio das quais

seus membros pretendem defender seus interesses e expressar vontades, constituindo-se

nessas lutas. Emerge, então, a figura de um sujeito coletivo autônomo, não como aquele que

é livre de todas as determinações externas, mas como aquele que é capaz de reelabora-las

em função daquilo que define como sua vontade e necessidade.

O recado bastante claro foi dado “... somos gente humilde, mas não somos pessoas

desligadas do mundo”. Não estar desligado do mundo podia ter uma série de significados,

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na base, creio que essa postura indicava uma atitude de autonomia construída no processo

de luta e negociação do acampamento, e essa autonomia era vivenciada no sentido de

admitir e até buscar a ajuda e a parceria de outros atores sociais nos embates travados, mas

com um posicionamento de que essa parceria era construída com base nas necessidades

advindas dos próprios acampados.

No início dos anos 90, o apelo á articulação nacional em torno da questão urbana e

do direito à cidade vivia ainda o seu auge devido ao processo constituinte, no qual vários

movimentos urbanos haviam se envolvido, numa intensa mobilização em torno da Emenda

Popular da Reforma Urbana.

Como aponta Laverdi, “... a luta para ampliar a participação de diversos grupos

sociais na definição de políticas para as cidades brasileiras recobre uma trajetória

interessante de construção de lutas, formulações de projetos e denúncias, articulações de

formas organizativas diversas e de um renovado aprendizado político”.

(LAVERDI,1998:55).

Assim, pode-se observar, no teor e na mobilidade das conexões estabelecidas pelos

trabalhadores no processo de constituição do bairro Dom Almir, um movimento

descontínuo, dicotômico, não alinhado diretamente a posturas definidas à priori como sendo

de esquerda ou direita. Isto porque as trajetórias de vida propiciadoras da experiência e dos

valores que criaram a linha básica de aglutinação entre esses sujeitos apontavam para a luta

da moradia como portadora de um sentido mais amplo: uma faceta da luta pelo direito à

cidade.

Essa noção do direito à cidade também não apareceu elaborada de repente, mas foi

se constituindo no universo das pequenas lutas diárias, desde a época da ocupação. Essas

lutas punham em evidência a disputa por um espaço urbano diferenciado, não aquele onde

somente têm prioridade os projetos arquitetônicos de grandes praças e avenidas. A cidade

em disputa era aquela das passarelas seguras, dos horários viáveis de transporte coletivo, do

postinho de saúde, da creche, da escola e da polícia eficiente dentro do bairro.

Embora a percepção dessas expectativas existentes nas reivindicações populares

tenha sido assumida pela esquerda da cidade, o movimentar-se desses trabalhadores, em

busca de seus interesses, acabou, vez ou outra, questionando, redefinindo e até

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revalorizando as formas de interlocução e ação existentes no universo das relações tecidas

entre os acampados e aqueles setores da classe trabalhadora.

A luta e sua forma de expressão imediata, a ocupação de terras urbanas, podia

aparecer, no discurso e no imaginário do poder público, como o lugar da “não-cidade” ou

dos “não-uberlandenses”, o que atestava de forma veemente a negativa de perceber a lógica

da urbanização brasileira como um processo historicamente excludente e segregacionista.

Mas foi justamente essa “não cidade” que os trabalhadores negaram em seu movimento,

pois as ocupações urbanas, à medida que questionam concretamente essa lógica da

urbanização, ampliam sentido das reivindicações de água, luz, transporte, educação e saúde

e ultrapassam o limite da luta por moradia, redimensionando-a na perspectiva da conquista

ao direito de participação no fazer-se da cidade e de recolocá-la sob a ótica dos setores

populares.

À proporção que os documentos e as falas iam sendo explorados, outros atores

sociais juntavam - se à trama das ações tecidas. A relação com os partidos políticos e os

parlamentares também possibilitam algumas reflexões importantes acerca do diálogo e das

posturas existentes.

Nas falas dos entrevistados, fica claro que a ação de alguns parlamentares tanto da

esquerda quanto da direita, foi importante no processo, sendo que alguns moradores, ao

fazerem o balanço da experiência, até chegam a afirmar que sem esses parlamentares a luta

não teria dado no que deu, e a situação poderia ser muito pior hoje. Eles apontam a

conquista da água, da escola e outros como fruto da ação direta de alguns vereadores e

deputados.

Essa percepção traz para o bojo da questão a possibilidade de problematizar a

maneira pela qual os atores avaliam o resultado do processo de luta empreendido e até onde

eles se vêem como sujeito central da ação. Isso pode ser visualizado na fala de um morador

quando ele diz que sem o apoio dos vereadores eles não teriam conseguido nada, pois eles

não tinham força. A postura pode estar ligada ao grau de comprometimento e alinhamento

político, pois, muitos moradores, passado o estágio do confronto com o poder público,

conseguiram alguns favores dentro da Prefeitura, como empregos, materiais para construção

de casa e outros.

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Obviamente, o lugar social ocupado hoje também influencia nessas análises, mas

elas não deixam de evidenciar o grau de articulação conseguido na época com os

parlamentares, tecendo relações políticas que, inclusive, serviram de base para

favorecimentos pessoais posteriormente.

Entretanto o movimento em direção aos parlamentares e partidos políticos também é

assinalado por aproximações e distanciamentos e demonstram uma leitura política apurada

de quando e como promover os contatos e com quem.

Pode-se ter mais indícios dessa postura, quando se acompanha a fala do Sr.Djalma

sobre as estratégias das ações realizadas dentro da Câmara Municipal de Uberlândia, no

período em que os trabalhadores ainda se encontravam no Vila Rica:

“Por exemplo, a gente tinha o apoio do Leonídeo (Bouças, do PFL) que no caso, já mexiaos pauzinhos deles lá dentro da Prefeitura (...) a gente não procurava político de esquerdaprá num dizê que a gente tava apoiano eles e contra o Prefeito, porque em política existetudo isso aí... a gente procurava assim... fora da Prefeitura ou fora do conhecimento delesné? por exemplo, tinha o Gilmar Machado, na época ele era Deputado Estadual (PT), entãoquê que a gente fazia? A gente trocava uma idéia com ele, ele falava o quê que a gentetinha que fazê né? e a gente ia lá e depois dava um retorno, ele apoiava a gente mais porfora (58)”.

É interessante observar também como essas posturas se expressaram nos momentos

de eleições, quando, plenamente cientes da importância e das possibilidades do momento,

os moradores não deixaram de perceber o fato de estarem tendo sua situação utilizada como

alvo de disputas e campanhas eleitorais, como já ficou demonstrado na carta endereçada ao

Bispo Dom Estevão e como se verifica também em um outro documento enviado à

Secretária de Habitação e Meio Ambiente, Sra. Cleuza Resende:

“Prezada Senhora.

Nós da Comissão de Moradores do acampamento Dom Almir, vimos a presença de V.Sa.reivindicar que as inscrições dos lotes urbanizados, situados no Seringueiras, sejasuspendido, para os moradores do mesmo, até passar as eleições.

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O motivo é muito sério: os nomes com relação a estas inscrições estão sendo usados napoliticagem de alguns políticos oportunistas, e estes, afirmam que estão conseguindo aurbanização dos lotes, para todos nós acampados.”(59)

Apesar da negativa em ser alvo de políticos oportunistas, os acampados perceberam

a importância do momento das eleições como a oportunidade de reivindicar seus direitos e

apresentar seus interesses coletivos. Durante o período de campanha, fizeram verdadeira

romaria em comícios e conversas com candidatos no sentido de conseguir trazer os

benefícios sociais para o bairro:

“nóis num tinha preguiça de cercar candidato... – O fulano vai fazer um comício noAlvorada, vamo lá conversa com ele. E nóis ia e fazia aquela comissão de frente e ia pediros benefício pro nosso bairro, nóis sempre luto por isso, nóis nunca teve essa vergonha, agente sempre lutô por isso”.(60)

Parte dessa postura advinha da clareza que os moradores possuíam de que o número

de famílias acampadas representava um potencial eleitoral considerável. Como já foi dito

anteriormente, ao entrarem em contato com o mundo das razões políticas estatais, eles

descobriam, sem demora a força de pressão política que poderiam exercer na disputa,

inclusive, eleitoral.

“... aí com o passar do tempo veio a época das eleições e eles queria mais voto, né? Porquetinha muita família aqui, era interesse deles próprio, aí nóis conseguimo arrumar a água”.(61)

“... Vinha e filmava, colocava as criancinha prá entrá dentro do barro e coisa e tal, prá fazêproveito político, que vinha a época das política na frente, né?”.(62)

O processo de eleições era reconhecido como um momento em estavam mais

presentes os interesses dos próprios políticos e quando as questões sociais vivenciadas

59 Reivindicação enviada à Secretária de Habitação e Meio Ambiente, endereçada a Srª. Cleuza Rezende.60 Entrevista concedida por Ireny Alves dos Santos em abril de1999.61 Djalma Moraes, abr./1999.62 Entrevista concedida por João Batista Naves em outubro de 2000.

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eram utilizadas “prá fazê proveito” em campanhas, discursos e promessas, que

dificilmente se concretizariam ou se reverteriam em favor do bairro.

A política eleitoral era recebida com desconfiança, porque eles reconheciam-na

como um espaço perpassado por mediações incompreensíveis ou que, na maioria das

vezes, não expressavam seus reais interesses e necessidades.

Porém isso não quer dizer que permanecessem passivos ou submissos diante

desse discurso, muito pelo contrário, os acampados puseram-se em movimento

também durante o processo eleitoral e fizeram valer, dentro de suas possibilidades,

aquilo que eles julgavam como suas reais necessidades.

Indo aos comícios, conversando com candidatos e até fazendo campanha, eles

conseguiram, em alguns momentos, reapropriar-se de uma lógica que deveria traduzir-

se em clientelismo e cooptação e tiraram eles mesmos proveito da situação que então

se desenhava.

“... é que os movimentos tomavam corpo no próprio espaço de legitimação dasautoridades, isto é, os moradores da periferia reconheciam nos governantes aautoridade como legitimamente constituída, embora essa legitimação se fundasse nopressuposto de que estavam lá para prover as condições de existência da sociedade”(SADER, 1988:217).

A documentação, embora de forma esparsa, também permite visualizar uma

articulação dos acampados com os Sindicatos da cidade; o grau de proximidade deste

relacionamento não pôde ser verificado com mais profundidade devido à escassez de

fontes que tratam do assunto, mas, por alguns documentos pesquisados é possível pelo

menos observar que nem os acampados ignoraram a capacidade política de alguns

sindicatos como força de pressão dentro do embate existente, principalmente, com a

Prefeitura Municipal de Uberlândia, como também estes não se mantiveram alheios ao

problema que então se delineava no acampamento do bairro Dom Almir. Em abaixo

assinado enviado à Prefeitura, pode-se visualizar um pouco dessa articulação:

Page 168: A Historiografia Contemporânea e seus Domínios: deslocamentos e mutações. Tempos Históricos, Unioeste, 2005

“Em solidariedade às famílias do Acampamento Dom Almir, vimos através destedocumento solicitar aos órgãos competentes, as necessárias providências no sentidode que as referidas famílias sejam urgentemente assentadas, onde possam viverdignamente como cidadãos que o são”. (63)

O documento foi assinado por nove sindicatos, duas Associações de Moradores

e por uma Pastoral da Igreja Católica, e ainda que ele não permita perceber se havia

outras ações levadas a cabo em conjunto, ou se estas se fizeram sentir concretamente

nas ações do poder público em relação ao Acampamento, ele demonstra um

movimento de aproximação e afinidade de interesses em jogo, pois os problemas

urbanos, dos quais a existência do Bairro Dom Almir era uma amostra concreta e

eloqüente, eram partilhados também nos locais de trabalho e moradia dos

trabalhadores daqueles setores que essas Entidades representavam. A palavra

Solidariedade representa um pouco do sentimento e dos valores advindo dessas

experiências urbanas compartilhadas

Um outro aspecto sobre a trajetória e o impacto da ocupação e da criação do

bairro na cidade pode ser acompanhado no relacionamento existente entre os

moradores do Dom Almir e os bairros vizinhos Alvorada e Mansões Aeroporto:

“Quando nóis chegou aqui, aquele povo das Mansões Aeroporto disse que era unsdesordeiros que tinha chegado prá cá, que ia fazê um abaixo-assinado prá tirá nóis daquique só tinha barraco preto, tava enfeiano as Mansões Aeroporto”.(64)

“O povo do Alvorada num gostava de nóis porque dizia que o povo do Dom Almirtinha os pé sujo”.(65)

63 O documento foi assinado pelas seguintes entidades: Associação dos Mutuários da Habitação eMoradores de Uberlândia (ASMUTHAM - UDI); Associação de Moradores do Conjunto Alvorada(AMCA); Seção Sindical dos Docentes da Universidade Federal de Uberlândia (ADUFU/SS); Sindicatodos Trabalhadores do Serviço Público Municipal de Uberlândia (SINTRASP); Sindicato dos Docentes deEscolas de Ensino Superior (SINDEES); Sindicato dos Trabalhadores em Telecomunicações de MinasGerais; Sindicato dos Trabalhadores em Indústrias de Alimentação e Afins de Uberlândia; SindicatoRegional dos Trabalhadores em Educação do Terceiro Grau; Sindicato dos Trabalhadores na Indústria daConstrução do Mobiliário de Uberlândia; Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de MinasGerais (SIND-UTE/Uberlândia); Pastoral Operária, Associação dos Moradores do Bairro ResidencialDom Almir (AMBDA).

64 Entrevista concedida por Haroldo da Silva em outubro de 2000.

65 Entrevista concedida por Sebastião Corrêa em abril de1999.

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São muitos os depoimentos reveladores dos conflitos entre os moradores do

bairro Dom Almir e seus vizinhos. Isto se deu, em grande parte, porque, na maioria

das vezes os moradores dos outros bairros assimilavam o discurso presente na

imprensa da época e que refletia as posturas e opiniões do poder público sobre o

significado das ocupações para Uberlândia. A noção de um bando de baderneiros,

ladrões e vadios vindos de outras cidades para pesar em cima da sociedade

uberlandense e enfear a bela cidade moderna, alcançou ressonância considerável entre

os próprios trabalhadores.

As relações mais conflituosas deram-se com os moradores do Bairro Alvorada,

por ser o bairro popular mais próximo, era para lá que os ocupantes dirigiam-se

quando necessitavam de médico e escola, além de se servirem do mesmo ônibus, o que

gerou muitos conflitos:

“Inclusive num vou te mostra muito longe não, naquela época que nóis mudamo práaqui, o Alvorada já era um arraialzinho, um conjuntozinho mas tinha escola, nóisfomo usar a Escola e disse que num aceitava esses sujo lá, nóis saía daqui e ia práavenida e chegava lá o ônibus tinha dia que num parava, o povo de lá brigava pránum parar prá nóis, dizia: Os sujos do Dom Almir!”(66)

Os moradores lembram-se de um episódio marcante nessas relações, quando

uma professora impediu que a aluna molhada de chuva entrasse na sala, na época

(1992) cerca de setenta e duas crianças estavam matriculadas na Escola e andavam em

torno de três quilômetros para chegarem até lá. O fato ocorrido gerou por parte dos

pais acampados um movimento de contestação:

“... foi todo mundo e nóis foi filmano até chegá lá... tinha um trilhozinho aqui debarro! Nós fomos os pais atrás, com as bandeiras, fazendo o manifesto, nóis fomo práconversar com a Diretora, o quê que tava aconteceno que os menino tava reclamandoque eles tavam até jogando ovo choco neles lá... que isso num era prá acontecê, queescola é pública e fizemo um acordo lá!”.(67)

66 Idem.

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Importa ressaltar que este trabalho recupera as relações sob a ótica dos

moradores do bairro Dom Almir, uma possível busca da memória dos habitantes do

Bairro Alvorada poderia ter trazido à tona outras opiniões e experiências.

Por outro lado, observa-se que, diante da negativa do poder público municipal

em dotar o bairro Dom Almir com os serviços públicos urbanos, tais como ônibus,

água, coleta de lixo, escola e posto de saúde, os bairros vizinhos sofreram um real

processo de saturação, materializado na sobrecarga e no desgaste dos seus próprios

serviços.

A Prefeitura, obviamente, se excusou da responsabilidade e da culpa que lhe

cabia no fato e, numa estratégia bem típica dos interesses do capital, preferiu

responsabilizar os próprios trabalhadores pela sua miséria e privação e pelo caos

social da cidade.

Essa prática, muito ironicamente, é a mesma utilizada hoje em relação aos

ocupantes de terra do Jardim Prosperidade, vizinhos ao próprio Dom Almir:

“A Prefeitura e os vereador, ainda ontem eu escutei no rádio falano, que depois queapresentou tanta invasão é que atrapaiou mais, é porque estrova controlar as coisaspros outros”.(68)

A experiência de se colocarem em movimento de luta e reivindicação por

direitos forjou, nos trabalhadores acampados do Bairro Dom Almir, novas leituras de

mundo e novas práticas dentro do cotidiano. A participação como sujeitos ativos do

processo trouxe, para eles, redefinições e reelaborações diante da vida, alterando de

forma significativa a maneira como eles mesmos se vêem dentro da cidade:

67 Maria Joana, out./1999.

68 Entrevista concedida por Maria Abadia de Jesus, 2000.

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“Naquela época a gente ficava muito reprimido, por que como diz o outro a gentenum tinha nada, num tinha onde morá, num tinha nem um endereço prá dá numserviço... Hoje eu me considero um cidadão como outro qualquer !”.(69)

A noção e o significado de cidadania aparecem aqui como o resultado de uma

elaboração construída num processo de luta efetiva por direitos concretos e básicos:

casa para morar com água encanada e luz elétrica, escola para os filhos estudarem,

ônibus na porta em condições decentes e horários viáveis, posto de saúde, creche. Esta

é a cidade em questão, esta é a cidade que se fez e se faz objeto de contínuas lutas e

disputas dos setores populares, “ser cidadão como qualquer outro!” é poder usufruir de

tudo isso e não apenas de um desenvolvimento e de um progresso que não conseguem

ultrapassar os discursos das promessas eleitorais e das propagandas de televisão.

Ao longo desses anos de luta, também foram se reelaborando, para esses

trabalhadores, as concepções do poder, seus atores, seus mecanismos e seus territórios.

A Prefeitura Municipal, a Câmara Legislativa, o Fórum Judiciário, entre outros, foram

deixando de serem espaços longe do cotidiano e da vida e converteram-se tanto quanto

a terra improdutiva, objeto de especulação imobiliária, em locais a serem ocupados

pelo povo: “Ele falava que nóis era desordeiro, porque nóis ia e ocupava a

Câmara Municipal, mas nóis foi num sei quantas vezes...”.(70)

Ao ocupar esses espaços, os acampados suscitaram a indignação dos que se

julgavam donos do poder, porque essa ação coletiva tinha uma implicação profunda:

ela questionava e, em boa medida, reelaborava a lógica política desses espaços

constituídos para estarem acima do povo, como centros emanadores de leis e de regras

a serem simplesmente cumpridas. Os trabalhadores recolocavam-se como sujeitos da

ação política, retomando esses espaços como locais públicos, “ ...aí eu disse prá ele:_

‘Você não é dono da Prefeitura, isso aqui é nosso, tudo isso aqui é patrimônio

nosso!”(71).

69 Haroldo da Silva, out./2000.70 Idem.71 Idem.

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Entretanto não foram – e nem deveriam ser – apenas os espaços do poder

instituído que tiveram sua rotina modificada pela ação dos moradores do

Acampamento, eles também ocuparam as margens da rodovia, indo em direção à

Prefeitura, as ruas do centro da cidade com suas passeatas carregando panelas e latas

vazias. Foram notícia nas manchetes dos jornais locais e nos programas de rádio,

fizeram caminhadas rumo ao Bairro Alvorada, ocuparam tempo nos sermões de

missas, tornaram-se alvos de disputas eleitorais, pauta de reuniões em Sindicatos,

Partidos e Entidades Políticas, foram vistos no CEASA, nas máquinas de Arroz do

Bairro Tibery. Nas suas andanças, levaram consigo a denúncia de sua situação,

explicitando a existência da pobreza, da exclusão social e do descaso governamental

em Uberlândia, mas também levaram o movimentar-se incômodo da esperança

persistente de trabalhadores que se puseram em luta pelo direito à cidade.

Aqui compartilho mais uma vez com a visão de Eder Sader, que aponta os

movimentos sociais como sujeito social e histórico, promovendo a reelaboração e a

revalorização do cotidiano dos trabalhadores, efetuando uma espécie de alargamento

do campo da política tradicionalmente instituída e politizando as questões do

cotidiano dos lugares de trabalho e moradia. (SADER, 1988).

Olhar para trás com os olhos do presente, avaliando as vivências e trajetórias,

traz à tona o saldo da experiência vivida. Por meio das falas, vai-se acompanhando o

significado profundo – que jamais poderá ser de todo apreendido, porque, sendo

histórico, é inacabado e inconcluso – transformador da luta desses trabalhadores a

refletir-se em sua visão de si mesmos e do mundo:

“Eu me senti... que nessa época, antes d’eu lutá aqui, eu achava que eu num eraninguém mas, depois disso eu acho que eu sô alguém, porque eu ajudei muita gente,ajudei a salvar muita gente, gente que ia até perdê a vida, eu acho que eu fui... eu sôuma pessoa!”.

Então, o que fico na memória é que eu com tudo que eu num tenho um estudo, eunum tenho um dinheiro, eu num tenho um nada, mas eu sou alguém!”. (72)

72 Ireny dos Santos, abr./1999.

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O processo vivido, as dificuldades superadas e a sensação de apesar de todos os

revezes, ter conseguido um lugar para morar e construído o seu espaço dentro da

cidade mediante própria organização e participação na luta, trouxe para os moradores

do Bairro Dom Almir uma sensação de orgulho e auto-estima, que se traduz na

compreensão de sua importância como pessoa, na reafirmação de sua “humanidade”

dentro de um sistema que de tudo faz para espolia-la.

Além disso, a experiência trouxe também um sentimento de solidariedade,

sentimento que, necessariamente, pode não se traduzir em consciência de classe

elaborada, mas que ensina muito sobre valores humanos como decência, justiça e

dignidade. Junto a isso surge o aprendizado político do processo que ampliou a noção

de cidadania, desmistificou, em muitos momentos, o poder instituído e reelaborou as

concepções e os valores sobre o fazer-se da política.

“O que eu sinto hoje é que eu tô melhor e quando eu vejo os outros debaixo da lona,aquilo me dói, me dá vontade de chorá e parece que quando eu chego lá eu enxergopouco, vê aquela escuridão de lona... se eu pudesse ajudava os outros a construir”.(73)

“Ah, eu aprendi só a raciocinar... aprendi muita coisa, aprendi a ser mais humanocom as pessoas, procurar relevar muitas coisas que a gente passa nessa vida dagente... às vezes ajuda um que tá em dificuldade, né? Eu entendo mais do queantigamente, as vezes até de política mesmo eu entendo muito, porque antigamente...às vezes eu num tinha esse entendimento e hoje em dia eu sei como se faz um projeto,como se veta um projeto, então a gente sabe muita coisa, né?”.(74)

A valorização do saber construído no dia-a-dia, a percepção de que suas

experiências não são insignificantes no quadro das lutas maiores e a clareza de que é

preciso contar a história do bairro para os filhos, para eles poderem dar valor, são

elementos que aparecem nas falas, quando os moradores são indagados sobre a

importância de terem participado da constituição do Bairro Dom Almir.

73 Felismina Pereira, abr./1999.74 Djalma Moraes, abr./1999.

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Para as mulheres, o significado ainda vem acrescido de um outro sentido, o da

revalorização do seu cotidiano e de sua capacidade de envolver-se com atividades que

extrapolam o ambiente doméstico:

“Porque eu nunca tinha trabalhado nesse tipo de serviço, né? Meu serviço era deajudar em casa, marido, filho e a patroa lá fora... eu nunca tinha parado prá, porexemplo, perder horas, déias e noites de sono prá ajuda o próximo e aqui eu já passeipor isso. Então hoje, se disse assim:- Dona Ireni tem uma ocupação lá em tal lugar eprecisa da senhora. Eu acho que eu vô, eu ia sim!(75)

A experiência não se constituiu apenas de vitórias, muitos aspectos negativos

são retomados pelos moradores.Boa parte das famílias que veio do Parque São Jorge

não está mais no Dom Almir, o que, na opinião dos entrevistados, dificulta a união do

bairro para conseguir maiores benefícios. Nas falas, aparece o sentimento de que, após

conseguir o lote, cada um foi cuidar da sua vida, e o bairro ficou esquecido. As

pessoas que chegaram depois não se identificam com a história de luta dos mais

antigos, e isto gera conflitos. Os moradores também apontam o aumento sensível da

marginalidade, o preconceito que ainda sofrem na hora de arrumar emprego e as

divisões político-partidárias como fatores que dificultam a vinda de melhorias para o

Dom Almir.

Impressiona o fato de que, após terem conseguido as casas no Bairro D. Almir

e uma certa infra-estrutura, as pessoas tenham como que deixado de acreditar na força

de sua atuação, na importância de seu papel como agente histórico transformador e

transferido para o âmbito da Associação de Moradores um poder que outrora era

coletivo, lá eles já não intervém mais, é como se ela pairasse acima deles.

“A associação é uma coisa que tem de ser muito registrada, muito organizada e otrabalho que a gente tinha que fazer acho que a gente já fez, foi trazer o benefício decada um pegar sues lotes, foi de trazer a água, trazer a luz, trazer a escola, posto desaúde, a creche, então agora é pôr a Associação prá fazer outras coisas, mas tá difícil,porque hoje em dia... igual eu te falei, o pessoal que morava aqui, que veio do VilaRica prá cá, já foi embora prá bem dizer , todo mundo. È outras pessoas, com outrascabeças, o pessoal quer é ter sua casa, suas coisas, num tá nem aí com o que táaconteceno lá fora, então é mais difícil. Prá te dize a verdade era bom luta num bairro

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como esse, parece que cê trabalhava com vontade, cê via as pessoas precisano e ocêia busca aquilo, agora hoje em dia não, pessoal que tá aqui maioria compro direitodos que foi embora, então é poucos que tem esse ideal.(76)

Mesmo assim, é importante para os trabalhadores poderem contar sua história,

pois, nesse ato de se reportarem ao passado, eles reavaliam as ações, as motivações

materiais e políticas, refletem sobre as vitórias e as derrotas, reafirmam-se no presente

e trazem para si a autoridade de um sujeito histórico. O bairro Dom Almir significa,

para os que ficaram, a certeza de que a luta valeu a pena, e, embora proporcionalmente

existam hoje poucos moradores da época da ocupação, a identidade criada entre eles e

com o bairro persiste, apesar de divergências político-partidárias terem estremecido

algumas relações.

Nos depoimentos, os companheiros daqueles dias turbulentos são sempre

lembrados, e as conquistas do Bairro dificilmente aparecem conjugadas no singular.

Há um pesar explícito em relação àqueles que, passada a luta, venderam suas casas “a

troco de banana” e foram embora do bairro, muitos após conseguirem a casa, entraram

para o movimento dos sem terra, porque descobriram que uma casa na cidade não era

garantia de sobrevivência digna.

Nesta perspectiva, outras pesquisas têm buscado problematizar os encantos e

desencantos dos trabalhadores com a vida urbana, enriquecendo e ampliando o campo

de reflexões sobre a trajetória dos trabalhadores do bairro Dom Almir e de muitos outros

bairros da cidade de Uberlândia. Trabalhos recentes têm discutido o ingresso desses

trabalhadores urbanos, no caso do Bairro Dom Almir antigos ocupantes de terras urbanas,

nas fileiras do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST. (SILVÉRIO,

2003). Essas novas pesquisas são bastante significativas, pois nos permite refletir e

questionar sobre até que ponto a luta pela moradia e a conquista da terra urbana garantiu

para esses trabalhadores o acesso à cidade. Nesta pesquisa não foi possível articular as

ocupações de terra que deram origem ao Bairro Dom Almir à ação do Movimento Sem

Terra numa possível organização prévia desses trabalhadores. E possível indagar se o

76 Idem.

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caminho seguido aqui não foi justamente o inverso, pois é a partir do final da década de

1990, que outros pesquisadores vão começar a visualizar a ação do MST no Bairro Dom

Almir, no sentido de organizar ocupações em áreas rurais próximas a cidade de Uberlândia.

Independente disso, ao serem questionados sobre a importância de seus depoimentos

para o trabalho, alguns trouxeram em suas falas evidências da importância de refletir

sobre a experiência dos trabalhadores desse país:

“Eu acho bom, porque assim... só pra muitas e muitas pessoas saber que a genteexiste , da intenção que a gente tem, a intenção da gente é boa não é ruim. E eu esperoassim, que aquilo que eu passei, os pedaço ruim..., eu espero que ninguém mais passeprá chegar onde eu cheguei”.

“Então a história foi essa... eles achava que nóis era bandido e nóis num era bandido,nóis tava procurano a moradia. Por que todo mundo tem que ter essa dignidade de tero seu lugá de morá, prá se esconde da chuva e do sol!

BIBLIOGRAFIA

ALEM, João Marcos. “Representações Coletivas e História Política em Uberlândia”.In:Revista História e Perspectivas. Uberlândia: Editora da Universidade Federal deUberlândia, 1991, n.04, jan/jun, p. 79-101. LAVERDI, Robson. Pelo Direito de Morar: Experiências de Luta pela Reforma Urbana.Dissertação de Mestrado, São Paulo: PUC/SP, 1998.

MARTINS; Dora. Migrantes. São Paulo: Contexto, 1994.

RODRIGUES, Arlete Moisés. Moradia nas Cidades Brasileiras. São Paulo: Contexto, 1994.

SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: Experiências e Lutas dosTrabalhadores da Grande São Paulo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

SILVÉRIO, Domingues Leandra.Campo/Cidade: Encantos, Experiências e Trajetórias deTrabalhadores no Município de Uberlândia –1970/2003. Uberlândia, UniversidadeFederal de Uberlândia, 2003. (Monografia).

SOARES, Beatriz Ribeiro. A Moradia em Uberlândia. Uberlândia, 1993. Mimeo.

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A Light & Power e a construção do momentum da eletricidade em São Paulo*

Marco Antônio C. Sávio77

RESUMO

Esse artigo procura discutir a adoção de tecnologias da eletricidade na cidade de São Pauloao longo dos trinta primeiros anos do século passado. Seguindo algumas idéias propostaspor Thomas Hugues, esse artigo busca uma melhor compreensão da adoção de algumasnovas tecnologias trazidas pela empresa canadense Light & Power que impôs os seusprojetos, com o auxílio das forças políticas de São Paulo, à população de cidade, induzindoo momentum tecnológico da eletricidade na cidade.PALAVRAS-CHAVE: Tecnologia, política e sociedade.

ABSTRACT

This article aims to discuss the adoption of electric technologies in the city of São Pauloduring the first 30 years of 20th century. Following some ideas proposed by ThomasHugues, this article finds a better understanding of the adoption of some new technologiesbrought by the Canadian company Light & Power that imposed its projects with the help ofSão Paulo’s political forces, to the city inhabitants, inducing the technological momentumof electricity in the city.KEYWORDS: technology, politics and society.

Introdução

Os primeiros anos do século 20 foram decisivos para constituir na cidade de São

Paulo aquilo que Flora Süssekind chamou de “horizonte tecnológico” (SÜSSEKIND,

1987). Essa nova paisagem foi induzida, principalmente, pela presença de uma empresa que

contava com apoio de grandes capitais internacionais, além de grande prestígio político

entre as elites paulistas no período, a Light & Power Company. Essa companhia foi

responsável por um radical processo de mudança no município, trazendo para o cotidiano

da população paulistana as mais modernas tecnologias relacionadas à eletricidade.

* O presente artigo é parte do primeiro capítulo da tese do autor: A cidade e as máquinas. Bondes eautomóveis nos primórdios da metrópole paulista. 1900-1930. PUC-SP, 2005.

77 Doutor em história pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Email:[email protected].

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No entanto, o papel dessa empresa foi muito além daquele relacionado à gerência e

manutenção de uma rede de bondes e de distribuição de energia elétrica. O papel da Light

foi também o de criar uma cultura técnica voltada à eletricidade, além de incentivar, em

larga escala, a adoção de novos produtos relacionados a essa forma de energia. Esse

processo de difusão tecnológico, no entanto, foi um processo centralizado na empresa e que

respondeu apenas aos anseios da companhia canadense em maximizar os seus lucros. Esse

processo de desenvolvimento e disseminação tecnológica foi chamado pelo historiador

americano Thomas Hugues de momentum. O objetivo desse artigo é o de procurar uma

melhor compreensão desse fenômeno, a adoção e o desenvolvimento de uma determinada

tecnologia, além de abordar de que forma algumas tecnologias se adaptam a um ambiente

diferente ao qual foram originalmente desenvolvidas. Esse processo de transferência, longe

de ser linear, expressa as características das sociedades onde esses novos sistemas técnicos

são aplicados e as relações dessa sociedade com esses sistemas.

No caso de São Paulo, difusão da eletricidade realizou-se de forma monopolista e

exclusivista, refletindo a organização política local, que tratava o bem público como uma

extensão dela mesma, além de impor decisões de forma vertical a toda á sociedade excluída

de quaisquer formas de participação. O momentum da eletricidade em São Paulo refletiu,

então, as formas com as quais a sociedade paulistana se organizava, resultando numa

manifestação extremamente destrutiva dessas novas tecnologias, que antes de

representarem uma melhoria, eram sentidas como uma forma de exclusão pela grande

maioria da população da cidade, que experimentava essas novas forças principalmente em

sua forma negativa.

A Light & Power Co: um novo paradigma de transportes em São Paulo

A história da mais influente, e também da mais odiada, companhia de São Paulo

teve o seu início não no Brasil, mas no distante Canadá. No início da década de 1890 o

engenheiro italiano Francisco Antônio Gualco (MacDOWALL, D. 1994: 13-71) fez fortuna

trabalhando como empreiteiro na maior obra de engenharia do Canadá até aquele momento,

a construção da ferrovia Canadian Pacific. O interesse de Gualco pelo Brasil, porém,

adveio de um assunto bastante distinto da tração elétrica e do fornecimento de luz e força.

Page 179: A Historiografia Contemporânea e seus Domínios: deslocamentos e mutações. Tempos Históricos, Unioeste, 2005

Seu interesse inicial pelo país se deu através de negócios que envolviam a emigração de

seus compatriotas para o trabalho nas lavouras de café. Sendo um homem com faro para

negócios, Gualco enxergou na imigração uma boa fonte de lucros. Com a restrição na

emigração de italianos para o Brasil, Gualco contatou, em 1895, o governo brasileiro, na

figura de Bernardino de Campos, então presidente do Estado de São Paulo, com uma

proposta no mínimo inusitada: substituir a mão-de-obra italiana por franco-canadenses. A

idéia de Gualco mostrou-se interessante para Bernardino de Campos e alguns membros da

elite cafeeira paulista, tanto que o presidente do Estado mandou no mesmo ano, em missão

oficial, um de seus filhos, Américo de Campos, para sondar a possibilidade de

concretização desse projeto.

A resposta do governo do Canadá para tal projeto foi negativa e, com o passar do

tempo, o próprio projeto de imigração de franco-canadenses mostrou-se um fiasco. No

entanto, o contato de Gualco com o Brasil, mais precisamente com a cidade de São Paulo,

lhe trouxe outras possibilidades para a realização de negócios. De sua estadia na capital

paulista, Gualco fez importantes contatos com as elites locais. Com o cartão de visitas

proporcionado pela família Campos, o engenheiro italiano passou a ter livre acesso pelo

restrito círculo das autoridades e dos grandes cafeicultores paulistas. Não tardou para que o

italiano se interessasse pelo rápido crescimento pelo qual passava a capital do Estado e

vislumbrasse ali uma boa possibilidade de lucros. A sua idéia era a de constituir uma

empresa para o fornecimento de força e luz, além de concorrer pelo transporte urbano

através da criação de uma rede de bondes movidos à tração elétrica. Em 1897, juntamente

com o comendador Antônio Augusto de Souza, um antigo gerente da Cia. Viação e sogro

do advogado Carlos de Campos (STIEL, W. 1978:123), Gualco entrou com um

requerimento junto à Câmara Municipal de São Paulo pedindo uma concessão para força,

luz e tração, com o intuito de formar uma empresa que fornecesse esses serviços à capital

paulista.

Com a concessão em mãos Gualco e seu sócio partem numa peregrinação em busca de

investidores que estivessem interessados em bancar seu projeto. Quando em Montreal,

Gualco entra em contato com um dos empreiteiros conhecidos seus, e que também

participou da construção da Canadian Pacific, James Ross, com o intuito de oferecer a

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concessão em troca de uma boa comissão. Ross, um homem bem relacionado não apenas

no mundo dos negócios canadenses, mas também com importantes contatos nos Estados

Unidos e na Inglaterra, entrega o contrato de concessão para a apreciação de um

conhecido seu, William MacKenzie, um bem sucedido advogado e um dos homens por

trás da Toronto Street Railway Company.

Tendo analisado a concessão, MacKenzie viu em São Paulo uma boa oportunidade

para expandir os seus negócios. Juntamente com o engenheiro americano Fred Stark

Pearson, de 40 anos de idade – letrado no mundo da tração elétrica –, MacKenzie decide

levar o negócio adiante e para isso conta com a ajuda de um amigo de Pearson, o também

engenheiro Robert Calthrop Brown, eleito para ir a São Paulo e levantar as potencialidades

do empreendimento. Em São Paulo, Brown vê uma cidade com grande potencial de

crescimento e, principalmente, uma cidade carente de uma infra-estrutura de serviços, o que

garantiria ao portador de uma concessão para o preenchimento dessa lacuna um grande

mercado em potencial. O resultado do relatório produzido por Brown foi a criação da São

Paulo Railway Light & Power Company, no dia 07 de abril de 1899, com o capital inicial

de seis milhões de dólares, divididos em ações de 100 dólares cada.

A empresa, em seus primórdios, não possuía um quadro fixo de funcionários. A sua

diretoria era composta por membros escolhidos dentro do escritório de advocacia de

William MacKenzie, apenas com o propósito de preencher os requisitos legais para a

formação de tal companhia. No entanto, a formação dessa empresa possibilitou a William

MacKenzie a mobilização do capital necessário para o início dos investimentos no Brasil,

cujo primeiro passo foi a contratação de um serviço jurídico que possibilitasse o rápido

início dos trabalhos em São Paulo, além de limpar o caminho da empresa de quaisquer

possíveis competidores locais. Os nomes escolhidos não poderiam ser mais apropriados:

Carlos de Campos, filho do então presidente de São Paulo, e Antônio Pinto Ferraz,

professor do Largo São Francisco e consultor jurídico do London and Brazilian Bank.

Com a fundação da companhia e com um serviço de advocacia que garantiria o

serviço da empresa no Brasil, a Light estava pronta para iniciar as suas atividades no país,

trazendo junto de si vultuosos capitais e o que de mais moderno havia em tecnologia na

área de transportes e transmissão de energia, além da experiência dos homens que dirigiam

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uma companhia similar no Canadá. Através de Alexander MacKenzie – nome escolhido

para, junto de F. S. Pearson e R. C. Brown, dirigir a firma em São Paulo –, foram dados os

primeiros passos da Light no Brasil. Os empreendedores trataram de garantir os terrenos

necessários para a construção de sua usina geradora – comprando áreas circunjacentes à

Cachoeira do Inferno, a cerca de 36 quilômetros da capital, no rio Tietê, na cidade de

Parnaíba –, além dos terrenos necessários para iniciar as suas operações de transportes de

passageiros na cidade de São Paulo. Obtidos esses terrenos e as necessárias autorizações

junto ao governo Campos Sales para a operação da companhia canadense no Brasil, faltava

apenas o último passo, adquirir a concessão de Gualco e Souza.

A compra da concessão repentinamente tomou um caráter de urgência já que

naqueles dias o italiano Antônio Gualco adoeceu gravemente. Com o risco de morte de um

dos proprietários da agora preciosa concessão, que mobilizara tantos recursos e custara

tanto trabalho, tornava-se urgente legalizar a situação da Light junto à Prefeitura da cidade

de São Paulo, o que foi feito no dia 28 de setembro de 1899. Nesse dia, Alexander

MacKenzie e F. S. Pearson se dirigiram à casa de Gualco na rua Piratininga, 18, no bairro

da Liberdade, onde oficializaram a compra da concessão originalmente de propriedade de

Gualco e Souza e que, daquele momento em diante, pertencia á São Paulo Tramway Light

& Power Company, que despendeu para isso a soma de £ 7750, 00, um bom dinheiro à

época. Nada mal para uma concessão que não custou mais do que alguns milhares de réis e

alguns pequenos problemas junto à Câmara Municipal. Pouco tempo após a transferência

do contrato seu idealizador e principal promotor, Francisco Antônio Gualco, faleceu sem

poder contemplar as realizações do maior empreendimento realizado na cidade até aquele

momento, resultado de uma história em que ele foi um dos principais protagonistas.

A chegada da empresa canadense em São Paulo gerou um misto de admiração e

revolta. Em todos os cantos o assunto que mais se comentava era o da chegada dos bondes

que não seriam puxados por burros e da energia elétrica. Juntamente com a ansiedade que a

chegada dessa nova tecnologia trazia, caminhava uma sensação de que a empresa canadense

representava apenas um bando de espoliadores que estavam interessados em conseguir tirar

dinheiro da municipalidade paulistana. Entre essas pessoas encontravam-se vários

vereadores e nomes ilustres, incluindo aí o prefeito da cidade, Antônio Prado.

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Alertado dessa situação, Alexander MacKenzie deu o primeiro passo para debelar as

resistências daquele que seria o homem chave para o sucesso do empreendimento. Com o

apoio de um ex-cônsul do Brasil no Canadá, José Custódio Alves de Lima, Alexander

MacKenzie organizou uma visita de Antônio Prado à agência local do London and

Brazilian Bank, em São Paulo. Na agência, o prefeito foi informado que, pelas mãos de

William MacKenzie, fora depositado em Londres fundos suficientes para cobrir todas as

operações da empresa em São Paulo, incluindo não apenas a construção da rede de bondes,

mas também de uma usina hidrelétrica para abastecer a cidade de luz e força

(MacDOWALL, D, idem:44).

Tendo convencido o prefeito de São Paulo e com os trabalhos já iniciados a empresa

começou uma nova luta, desta vez contra a sua concorrente e aquela que viria ser a sua

maior rival na cidade nos primeiros anos do século XX, a Companhia Viação Paulista,

detentora dos direitos de transporte por bondes no município, e disposta a usar de todos

os seus recursos e de sua influência para derrotar a empresa canadense. A Cia. Viação

Paulista via na concorrência da Light, e com plena razão, a sua ruína, já que não possuía

condições de competir com os vultuosos capitais mobilizados pela empresa canadense e

muito menos com as novas tecnologias que ela trazia para a cidade. Desde os primeiros

momentos, a Cia. Viação Paulista passou a usar de todas as armas que possuía para

tentar barrar a instalação da empresa canadense na cidade. O primeiro passo foi dado na

justiça, com um pedido de embargo (O Estado de S. Paulo, 27/03/1900) das obras da

empresa canadense sob a alegação de que a Cia. Viação possuía os direitos exclusivos

para o transporte de passageiros na cidade de São Paulo. A luta judicial pelo direito de

trafegar na cidade tomou as ruas e as páginas dos jornais da capital, mobilizando

argumentos acerca das qualidades de cada uma das empresas, da qualidade dos serviços

e mesmo argumentos clamando pelo patriotismo (Idem, 05/07/1900) dos representantes

da cidade na Câmara Municipal.

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Com seu competente serviço jurídico e com uma preciosa ajuda dos poderes

executivo e legislativo do município, a Light continuou os seus serviços de assentamento de

trilhos nas ruas da capital, anulando, um a um, todos os argumentos jurídicos da Cia.

Viação. O bom andamento dos trabalhos na justiça, o adiantamento das obras de

assentamento de trilhos nas ruas centrais da cidade e da construção da casa de força da rua

São Caetano – responsável pelo fornecimento de energia elétrica para os bondes, enquanto

a usina de Parnaíba estava em construção –, fez com que a companhia canadense inaugura-

se os seus serviços ainda no ano de 1900. Isso ocorreu no dia 07 de maio, um dia que foi

descrito pelo próprio Robert C. Brown, como sendo de festa para a cidade.

Naquele dia, São Paulo amanheceu sob a expectativa de um grande acontecimento.

O número de autoridades presentes dava a idéia do significado daquele momento. Numa

pequena casa da rua São Caetano, que guardava a usina provisória que moveria os bondes

da empresa canadense ruas afora, reuniram-se os nomes mais ilustres da política paulista do

período. Lá estavam o presidente do Estado, Rodrigues Alves; o vice-presidente do Estado

Domingos de Moraes; além do prefeito Antônio Prado e uma série de vereadores

paulistanos e vários nomes ilustres (STIEL, W. idem:127). Foi pelas mãos de Rodrigues

Alves que os dínamos da usina da rua São Caetano foram acionados. Poucos minutos

depois saía dos barracões da empresa, na alameda Barão de Limeira, o primeiro bonde a

trafegar por força elétrica na cidade. Guiado pelo engenheiro Robert C. Brown, o bonde

caminhou mansamente pela rua Barão de Limeira em direção ao centro da cidade, levando

em seus bancos uma ilustre comitiva.

Quando o bonde entrou na rua São João uma multidão nunca vista até aquele

momento aguardava pelo carro que seguia em direção à rua Libero Badaró. A população,

tomada de espanto e alegria, comemorava o evento. Naquela manhã em que o povo se

reuniu ao longo da avenida São João para assistir ao espetáculo do primeiro bonde a tração

elétrica da cidade, o que se esperava era vislumbrar o futuro. Um futuro que traria para a

cidade as mais modernas tecnologias e, juntamente com elas, as mais diversas benesses e

problemas que esses novos artefatos carregavam. O futuro da cidade de repente se

manifestava nas ruas, naquele lento vagar do bonde, atravessando a multidão de pessoas e

levando consigo os nomes mais ilustres da política paulista e nacional. Naquele carro

estavam representados o novo mundo ligado à revolução científico-tecnológica, os grandes

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capitais internacionais que alavancavam essas tecnologias e que as distribuíam pelos mais

remotos cantões do mundo e a elite política da nação, representada pelos grandes nomes do

PRP (Partido Republicano Paulista) à época. Em alguns minutos, parte importante da

história da Primeira República desfilava pelos olhares atentos da multidão quase que

hipnotizada pelo grande acontecimento. A cidade de São Paulo finalmente ingressara no

mundo moderno.

Enquanto a Light continuava o trabalho de assentamento de trilhos a Cia. Viação

Paulista lutava por sua sobrevivência e pelo direito de continuar operando as suas linhas.

Tentando evitar que a companhia canadense utilizasse as mesmas ruas que ela, os dirigentes

da Cia. Viação davam ordens a seus funcionários para que usassem de todos os recursos

disponíveis para, se não parar, ao menos atrapalhar os trabalhos da empresa norte-

americana. As formas encontradas por aquela companhia eram as mais diversas e, em

muitos momentos, incluíam o uso da violência. O principal argumento da empresa era de

que, por garantias contratuais, a Light não tinha o direito de transitar pelas ruas em que a

Cia. Viação Paulista já tivesse assentado os seus trilhos (Correio Paulistano, 06/07/1900).

Essa argumentação saltava do campo jurídico, principalmente após a promulgação da lei

407, que garantiu a presença da Light na cidade, para tomar as ruas, onde os embates entre

as duas empresas distraíam a população, quando não causavam grandes transtornos. Num

desses embates, a Cia. Viação Paulista, numa tentativa de impedir que a Light cortasse os

seus trilhos valeu-se de uma dupla estratégia, primeiro o embate jurídico, em seguida o

físico.

A empreza de bonds electricos, ante-hontem, no largo do Ouvidor, ultimou unsserviços de suas linhas, cortando o cruzamento de trilhos da Viação Paulista. Estacompanhia hontem, por seus advogados, pediu [pela] manutenção de posse paraaquelle ponto e outros, como os das ruas Quinze de Novembro no cruzamento dolargo do Thesouro e ruas Direita, Quintino Bocayva e largo S. Bento. (...) ACompanhia Viação Paulista, tendo conhecimento desta resolução da Light,procurou fazer valer alli tambem o embargo das obras dos pontos já indicados e, nointento de evitar o corte de trilhos no cruzamento com os seus bonds do BomRetiro, via rua dos Immigrantes, fez seguir para o local e atravessarem-se na linhados bonds de trabalhadores. (...) Diante da attitude dos trabalhadores da Viação, odr. Carlos de Campos, advogado da Light and Power, dirigiram-se á policia central,com uma petição, expondo os factos minuciosamente e pedindo providencias paraprevenir as desordens que disso pudessem resultar e as garantias para serviço daLight, que a lei permitte e o seu contracto municipal assegura. (O Estado de S.Paulo, 07/11/1900).

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No entanto, apesar de todos os seus esforços, a Cia. Viação assistia impotente o avanço

de sua rival, que ia construindo a sua complexa rede de transporte pelas ruas da cidade.

Até a região mais elegante da cidade, o espigão da avenida Paulista, foi palco de uma

dessas tentativas de usar a força para impedir o assentamento das linhas da companhia

canadense, o que forçou Robert Brown a requisitar ajuda policial para garantir a

continuidade do trabalho. Numa carta ao escritório em Nova Iorque, Brown se queixa

das atitudes da Cia. Viação Paulista que classifica como “beligerantes” e “tolas”. Sendo

tolas ou não o fato é que essas atitudes impediam o funcionamento da linha Avenida, a

principal da empresa, que graças à ação de sabotadores da Cia. Viação estava

funcionando apenas em parte.

O primeiro importante desenlace dessa disputa ocorre em agosto do ano de 1900,

quando é dada uma resposta contundente aos ataques que a Cia. Viação, por intermédio de

seus trabalhadores ameaçados de demissão e de seus advogados, vinha fazendo à

companhia canadense. Por ordem judicial, requerida pelo Banco Francês, e com o apoio da

Prefeitura, foi decretada a liquidação forçada da Cia. Viação, acabando de uma vez por

todas com a disputa pelo controle das ruas da cidade e deixando embate apenas para os

corredores dos tribunais. A justificativa para a tomada de tal atitude, por parte da Prefeitura,

foi o histórico da empresa de bondes de burro, que, segundo o prefeito, não era “fiel” ao

contrato. No seu relatório para a Câmara Municipal relativo o ano de 1900, Antônio Prado

desfia um rosário de problemas relacionados ao contrato firmado entre a Cia. Viação

Paulista e o município. Entre os problemas que justificaram o fim do contrato entre as

partes estão: a não prestação de contas, a ausência de garantias financeiras para o

pagamento de multas, o não calçamento de seus trilhos conforme estipulado no contrato, o

não cumprimento de determinações da prefeitura acerca de correções no traçado de linhas, a

não adoção dos trilhos determinados no contrato, a inexistência de carros operários (ou de

segunda classe), a não organização de grupos de limpeza de trilhos, a não submissão das

tarifas para análise da Prefeitura, o número reduzido de carros em circulação, o não

fornecimento de dados sobre movimento de passageiros e, por fim, as atitudes da

companhia em relação à sua concorrente. Ressalta o prefeito, no mesmo relatório, a

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condição lastimável do equipamento da companhia o que, por si só, já justificaria a sua

liquidação e o fim do contrato firmado com a Prefeitura.

O fato é que, com a decisão da Justiça paulista e da Prefeitura da capital, a Cia.

Viação Paulista tornou-se carta fora do baralho. Mesmo assim, em algumas ocasiões o

embate entre as duas empresas ainda se fazia sentir, pois os bondes da Cia. Viação

continuaram a circular até o início de 1901, resultando em cenas burlescas, com condutores

da companhia liquidada atirando os burros contra os bondes elétricos nos cruzamentos dos

trilhos das duas empresas (Correio Paulistano, 11/03/1901). No entanto, o caminho para a

Light estava aberto para que os seus trabalhos pudessem continuar em ritmo acelerado. Aos

proprietários da empresa liquidada restava apenas o caminho dos tribunais, um caminho

longo e incerto que envolvia não apenas os seus interesses, mas também os interesses da

empresa canadense, da Prefeitura Municipal e da multidão de credores que foram

apanhados de surpresa pela liquidação. Logo após a sua liquidação judicial, os advogados

da Cia. Viação Paulista entraram com uma ação de indenização contra a Light e a Prefeitura

do município, com valores girando ao redor 14.000:000$000, uma grande fortuna para a

época.

Enquanto isso, a luta por indenizações, tanto por parte da Cia. Viação Paulista,

quanto por parte de seus credores, continuava, num processo que duraria quase oito anos até

que a decisão de última instância fosse proclamada. Nesse meio tempo, várias afirmações

colocaram a companhia canadense e a justiça de São Paulo na berlinda, sempre deixando

dúvidas quanto à lisura do processo. Pouco tempo após o pedido de indenização perpetrado

pela Cia. Viação, e antes mesmo do leilão de seus bens, os credores da empresa liquidada já

estavam nos jornais clamando por transparência ao processo e até invocando o nome divino

para terem as suas súplicas atendidas. Lia-se num jornal da cidade a seguinte lamúria:

Ao exmo. Sr. dr. Presidente do EstadoPelo amor de Deus e de tudo quanto possa mover a S. Exa., pede-se que nomeiejuiz para a segunda vara da capital.O Sr. Thomaz Alves não garante direito algum e está, com a liquidação daCompanhia Viação Paulista, praticando toda a sorte de injustiças para favorecer osseus amigos.Os credores Prejudicados. (Diário Popular, 26/09/1900).

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De fato, os assuntos que envolviam a liquidação forçada da Cia Viação nunca foram

devidamente respondidos por parte da Prefeitura, nem por parte dos demais órgãos do poder

público. Esse fato reforçou a atuação de uma oposição existente na cidade, contra a empresa

canadense e contra a Prefeitura, naquilo que se tornou uma guerra e que se arrastou ao

longo de quase toda a administração de Antônio Prado, com troca de acusações entre as

partes envolvidas e um tom rancoroso envolvendo tudo aquilo que dissesse respeito ao

transporte de bondes em São Paulo. Logo que os primeiros procedimentos para a

regularização do serviço de transporte por bondes no município foram tomados, ou seja,

medidas para a unificação dos contratos, uma chuva de acusações caiu contra a Prefeitura e

a companhia canadense, a maioria delas denunciando a conivência dos poderes municipais

na formação de um monopólio nas mãos da Light.

A primeira menção no sentido da unificação dos contratos foi dada por R. C. Brown,

que via na existência de dois diferentes contratos, o da Light e o da Cia. Viação Paulista,

um empecilho jurídico e uma potencial fonte de confusão para a empresa da qual era um

dos diretores. No entanto, devido ao clima alimentado pelas partes prejudicadas na

liquidação da empresa paulista, os comentários de Brown foram recebidos como uma

interferência da Light nos negócios da Prefeitura, que mais uma vez foi acusada de

conivência para com a empresa canadense (O Estado de São Paulo, 05/03/1901).

Esse foi o ponto de partida de uma discussão que a rigor não foi resolvida até o final da

Primeira República e que valeu à Light o apelido de “polvo canadense”; ou seja, o papel

da companhia na cidade de São Paulo. Seria ela benéfica ou maléfica para o progresso da

capital paulista?

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Enquanto essa discussão ocupava os jornais locais, a batalha jurídica chegava à

instância mais alta do Estado de São Paulo, o Senado Paulista. Poucos dias após a

aprovação da unificação dos contratos, o que na prática dava á empresa canadense o

monopólio nos transportes da capital, o vereador Abílio Soares entra com um recurso junto

ao Senado Paulista para barrar a unificação, alegando que o número de privilégios

concedidos à companhia canadense era muito grande e prejudicava os interesses

municipais. Enquanto isso, importantes jornais como “O Estado de São Paulo” e o “Diário

Popular” atacavam a Prefeitura, acusando as autoridades locais de “deslumbramento” diante

o capital internacional que amparava a empresa e de falta de equilíbrio quando da

concessão.

Apesar dos clamores por parte da imprensa local, das pressões perpetradas pelos

membros da oposição e por pessoas e empresas que tiveram os seus interesses lesados pela

liquidação da Cia Viação Paulista, a Justiça paulista acaba por absolver, em primeira

instância, a Light e a Prefeitura Municipal da ação movida pelos advogados da empresa

liquidada. Seguindo o trâmite legal da justiça de São Paulo, o caso é remetido para a

segunda instância estadual, onde, após um longo período de apreciação o recurso é negado,

recebendo a Light & Power e o município nova absolvição. A última rodada para a Cia

Viação Paulista conseguir alguma restituição que seus proprietários acreditavam justa foi

dada com um requerimento junto ao Supremo Tribunal, pedindo o ressarcimento por perdas

e danos pela ação de liquidação judicial. Após quase oito anos de apreciações e lutas em

diferentes instâncias e envolvendo vários grupos da sociedade paulistana, o desfecho foi

pouco animador. Numa nota pequena e lacônica o jornal “Correio Paulistano”, o órgão

oficial do poderoso PRP (Partido Republicano Paulista), chama a atenção para uma

“decisão importante”:

O Supremo Tribunal Federal, unanimemente, deixou de tomar conhecimento dorecurso extraordinario interposto pela Companhia Viação Paulista da decisão pelaqual a justiça de S. Paulo julgou improcedente a acção de indemnização, no valorde 14 mil contos de réis, proposta por aquella companhia, contra a “Light andPower” e a camara municipal dessa capital. (Correio Paulistano, 30/01/1908)

A decisão do Supremo Tribunal encerrava definitivamente um capítulo da história

da cidade de São Paulo, encerrava definitivamente uma época em que os bondes eram

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puxados a burro, em que os preços das passagens eram mais acessíveis às camadas

populares e em que a eletricidade era apenas uma palavra encontrada em dicionários

técnicos e em romances de Júlio Verne. Os novos tempos eram de uma São Paulo em

rápido crescimento, passando por um processo de industrialização e proletarização de sua

população. Eram tempos em que a palavra progresso passou a ser corriqueira para descrever

a acanhada cidade que se transformava a olhos vistos. Era o tempo da São Paulo Tramway

Light & Power Company Limited consolidar os seus domínios e se tornar uma das maiores

empresas brasileiras do período, além da maior empregadora de mão-de-obra do país por

mais de sessenta anos.

Os anos heróicos da Light: a administração Antônio Prado

Os anos da administração Prado foram o que podemos chamar de anos heróicos para a

Light & Power. Ao longo desse período a companhia organizou e expandiu o serviço de

bondes para as mais remotas partes da cidade, além de consolidar a sua presença como

principal empresa do município, monopolizando não apenas os serviços de transportes,

mas também os de luz, força, telefonia e gás. Graças a essa enorme gama de serviços

prestados e a esse gigantismo que caracterizou as primeiras décadas da empresa no

Brasil, a Light passou a ser conhecida por alcunhas que davam conta de sua força e de

sua imagem perante a opinião pública. A mais conhecida de todas, que até hoje chama a

atenção dos estudiosos do período, é aquela que caracteriza a empresa como um polvo, o

“polvo canadense”, que estende os seus tentáculos por toda a cidade e controla tudo

aquilo ao seu alcance.

Se por um lado a companhia causava reações negativas no público, por outro é

inegável o fascínio que as novas tecnologias por ela aplicadas na cidade acabaram por

exercer sobre boa parte da população local. Os novos bondes por tração elétrica eram, nos

primeiros dias de sua operação, um espetáculo que entretinha os moradores da cidade e

atraía os olhares curiosos da imprensa que não deixava de louvar esses melhoramentos.

Eram vários os artigos de jornais tratando das novas tecnologias ou dando vivas aos novos

bondes que traziam para o município a tão afamada tecnologia norte-americana que, no seu

dia-a-dia, provavam a sua superioridade (O Estado de S. Paulo, 05/08/1900). Junto a esse

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novo espetáculo, confirmando as esperanças dos mais otimistas discursos da época, estava a

certeza de que a cidade definitivamente ingressara no mundo moderno. Os sinais estavam

por toda parte. A era da eletricidade começava em São Paulo, novas maravilhas

tecnológicas desfilavam pelas ruas da capital, os burros que serviam de tração para os

velhos bondes da Cia. Viação Paulista eram vendidos a preços baixos (Correio Paulistano,

06/11/1900), o que por si só era um sinal de que os tempos haviam definitivamente

mudado, enquanto que as cocheiras da velha empresa de bondes, um marco do passado,

eram alugadas pela Light (Diário Popular, 22/03/1902).

Esses primeiros anos da empresa norte-americana em São Paulo também foram

marcados por uma expansão das contratações e do processo de formação de uma mão-de-

obra local que pudesse dar conta das necessidades, presentes e futuras, da empresa. A todo

o momento se encontram em jornais da época anúncios de empregos da companhia. Esses

anúncios, publicados em diversas línguas, principalmente em português e em italiano,

mostravam a grande necessidade de trabalhadores que pudessem manter o ritmo de

expansão da Light na cidade e que garantissem a execução dos serviços que a empresa

prestava. Essa necessidade de contratação aumenta ainda mais na medida em que os

trabalhadores trazidos pela empresa, em sua maioria do Canadá e dos Estados Unidos, com

o vencimento de seus contratos, começavam a retornar para as suas terras natais. Graças a

isso, a Light se transforma na maior contratante da cidade de São Paulo logo nos primeiros

anos após sua chegada.

Apesar dos relatos de seus diretores de que a companhia não tinha “dificuldade em

obter homens capazes de operar os carros nas ruas”, o mesmo parecia não ocorrer quando

se tratava de instalação de trilhos e trabalhos relacionados com eletricidade. Para efetuar

tarefas simples era necessária a contratação de um grande número de trabalhadores, o que

resultava em constantes atrasos e confusões durante a instalação das linhas. Não é raro

encontrar comentários acerca do problema de substituição da mão-de-obra canadense e

estadunidense por trabalhadores nacionais. Numa de suas cartas para Toronto, um dos

representantes da empresa no Brasil, James Mitchell – que também era o representante

comercial da General Electric no país e o dono da maior casa de material elétrico de São

Paulo, a Casa James Mitchell –, reclama do tipo de homens que a companhia dispunha para

a instalação de sua rede aérea.

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A classe de homens que esta companhia vem empregando para construção éabsolutamente desqualificada para a instalação de fios; eles são lentos, desajeitadose desastrados. Nenhum deles está acostumado a trabalhar sob liderança (...). Emsua maior parte são homens de tipo ignorante, italianos, recebendo, é verdade,pequenos salários, mas fazendo um pequeno serviço em compensação; e o pior éque todo o trabalho que eles fazem é muito mal feito. (New York letters,02/12/1901).

No entanto, apesar das reclamações de Mitchell acerca dos “tipos ignorantes” e da

“qualidade do trabalho”, William MacKenzie, analisando os relatórios enviados para a

matriz da empresa em Toronto, parecia pouco satisfeito com a quantidade de mão-de-obra

utilizada no assentamento de trilhos e na colocação da rede aérea. Sua posição era a de que

a companhia paulistana estava gastando muito com contratações e que provavelmente ela já

possuía mais empregados do que a Toronto Street Railway. Os comentários de MacKenzie

não foram bem digeridos pelo engenheiro-chefe da Light em São Paulo, Robert C. Brown,

que apesar de concordar acerca das dificuldades em encontrar “pessoas capazes neste país”

não considerava que o trabalho estivesse sendo mal executado, ponderando, além disso, que

as criticas de William MacKenzie eram infundadas e completando uma carta resposta com

o seguinte comentário: “Sinto que estou sendo mal pago pela posição que ocupo, mas talvez

alguém possa ser encontrado para realizar o mesmo serviço”.

Discussões de contratações à parte, o fato era que o serviço de expansão das linhas,

assentamento de trilhos e colocação de rede aérea, não parava. Isso causou uma radical

mudança na cidade de São Paulo que, em poucos meses, teve de se adaptar à nova

tecnologia e enfrentar as agruras de um novo tempo. A primeira mudança perceptível ao

paulistano estava relacionada aos horários dos bondes, à supressão de algumas linhas e à

alteração de outras, o que fazia com que hábitos, há anos arraigados, tivessem de ser

mudados. Outra importante alteração se deu em relação à parada dos bondes. Nos tempos

da Cia. Viação, os bondes paravam a qualquer solicitação dos pedestres. Nos novos tempos

da Light, os pontos de parada eram determinados por cintas brancas amarradas aos postes

nas ruas. Isso causou uma série de transtornos aos transeuntes, acostumados a esperar os

bondes em frente de suas casas ou ao longo das ruas mais centrais da cidade. A nova

medida fazia com que fosse necessário se deslocar para os pontos determinados como

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paradas, além de ter de enfrentar aglomerações, unindo pessoas de diferentes classes

sociais.

Outro efeito causado pela presença da empresa de bondes elétricos foi uma alteração

na paisagem da cidade, com a instalação não apenas dos trilhos, mas também de postes e de

uma rede aérea. Foi nesse processo que ocorreu o maior número de conflitos entre a

empresa, representada por seus funcionários, e a população da cidade. O número de

reclamações contra a Light e seus empregados infestavam os jornais ao longo dos primeiros

anos do século XX. Numa dessas reclamações, um morador da cidade narra, num misto de

tragédia e comédia, o resultado dos trabalhos de uma das equipes da companhia canadense

em frente à sua residência, e o pior de tudo, logo num dia de chuva.

É o caso que hontem, por occasião da forte chuva que tivemos á tarde, tive ogrande desgosto e enorme prejuízo material de, ao chegar á minha casa, encontrardiversos commodos completamente innundados d’agua, com roupas, moveis,quadros, reposteiros e cortinas totalmente damnificados e, ainda mais, o reboquedas paredes humidecido, com grave risco de despegar-se todo. (...). Procurando,aflictissimo, a causa de tal fatalidade, verifiquei – confesso que sem surpreza – quea origem de tudo fora o péssimo serviço de collocação dos fios da Light, cujosempregados, quebrando e desviando as telhas, abrem enormes fendas e gotteirasnos telhados. (Diário Popular, 16/01/1902).

A descrição do desafortunado cidadão estava longe de ser uma exceção quando o

assunto era a instalação de postes ou o assentamento de trilhos. Em todas as partes da

cidade o problema se repetia, em maior ou em menor grau, envolvendo as classes mais

abastadas, as classes médias e as classes baixas, dando um caráter democrático no que diz

respeito às queixas desses concidadãos. Numa dessas ocasiões, numa tentativa de instalar

um de seus postes em frente a uma importante casa comercial na rua Boa Vista, na mais

rica região da cidade, o encarregado pelo serviço alegou, diante das negativas dos

proprietários do negócio, que a companhia tinha o direito de efetuar a instalação do poste

em qualquer parte da rua, já que os passeios municipais pertenciam à Câmara e graças ao

seu contrato a Light & Power tinha o direito dispor dos passeios da forma que melhor lhe

conviesse. A instalação somente não ocorreu graças à chegada da polícia e ao bom nome do

dono do estabelecimento (O Comércio de S. Paulo, 08/11/1907).

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Apesar dos constantes conflitos a empresa seguia abrindo caminho cidade afora. Em

pouco tempo ela já monopolizara os principais serviços da cidade e o último suspiro de

independência no transporte por bondes foi dado pela Companhia de Bondes de Santana,

que foi absorvida pela Light no ano de 1907, nos termos da lei n. 995 de 10 de maio do

mesmo ano. O serviço da Companhia de Bondes de Santana era feito somente entre a Ponte

Grande (atual Ponte das Bandeiras) e a rua Voluntários da Pátria, sendo os seus usuários

obrigados a fazer uma baldeação para a região central. A empresa canadense, alegando a

impossibilidade de efetuar o serviço direto, manteve o sistema de baldeação, com a

justificativa de que seus bondes não podiam trafegar pela Ponte Grande, obrigando os

moradores daquele bairro a percorrerem a pé a distância entre a parada dos bondes vindos

do centro e a parada dos bondes vindos de Santana, que se localizava na margem oposta do

rio Tietê.

Essa série de alterações fez com que a população da cidade iniciasse uma luta para

utilizar-se do novo sistema de transportes passando a pressionar por mudanças que

demoraram longos anos para serem efetuadas. Os principais problemas estavam

relacionados ao uso do novo meio de transporte por parte dos paulistanos, acostumados

com uma maior maleabilidade da antiga Cia. Viação, que ainda tentavam entender os novos

ritmos, a impessoalidade que marcava o novo serviço além, é claro, os novos preços, mais

altos. Além dessas situações os funcionários da companhia tinham ordens expressas para

seguir à risca a lei 367 de 20 de agosto de 1898, no que diz respeito ao bom trajar dos

passageiros. Isso fazia com que, na prática, a crescente população operária fosse excluída

do sistema, já que o julgamento do bem trajar ia muito além da moda ou do decoro.

Para contornar esse estranhamento inicial a Light utilizava-se de diversos

expedientes, como promoções ou passeios para pontos determinados. As promoções

geralmente incluíam a distribuição de cupons que, em caso de sorteio, davam direito a

prêmios em dinheiro. Já a promoção de passeios se valia de quaisquer expedientes para

atrair mais passageiros a visitarem determinados pontos da cidade. Os pontos mais

apreciados eram o Parque Antártica, concorrido pelos matchs futebolísticos, além do

Bosque da Saúde. No entanto, outras atrações eram utilizadas como forma de incentivar o

uso do bonde, seja a novidade de um espetacular mergulhador americano, capaz de saltar de

grandes alturas dentro de um pequeno tanque e sair ileso (A Platéa, 19/07/1907), ou outros

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bizarros acontecimentos que atingiam a cidade naqueles anos e que chamavam a atenção

por outros prodígios. Comentando sobre o assunto, e aproveitando para falar de mais uma

das tantas ameaças de final dos tempos – no caso, a de um meteoro prestes a se chocar com

planeta Terra, causando uma “combustão geral da atmosfera” –, um cronista escreve o

seguinte acerca dessas promoções da empresa canadense:

O mais pratico e talvez o mais consolador dos meios para se resistir a um talterramoto, é a propria Light mandar para a Ponte Grande algumas bandas de musicae uns fogos de artificio, para ir alegrando os passageiros que ella convida a irapreciar o começo do diluvio paulista... (...). Uma enchente na Ponte Grande e aterra em combustão pelo choque de um cometa!... (A Platéa, 26/02/1907).

O dia-a-dia dos usuários dos bondes também mudou com a chegada da Light que, ao

que tudo indica, disseminou modismos e influenciou na difusão da propaganda pela cidade.

Pouco tempo após o início das operações da empresa já surgiam as primeiras propostas de

utilização do bonde como meio de propaganda. Essa propaganda foi assumindo, com o

passar dos anos, um caráter mais e mais agressivo, trazendo anúncios de pílulas, xaropes,

pomadas, vinhos finos, e consigo comentários acerca de assuntos pouco agradáveis à vista

de parte do público. Na ausência desse tipo de anúncio, os espaços eram preenchidos por

promoções da empresa, tais como “Já foram à Ponte Grande ver a enchente?” (A Platéa,

20/02/1907). Alguns chegavam a comentar que a empresa trazia consigo uma febre de

anglicismos que invadiam a língua falada no município. Expressões como up-to-date,

fashionable, smart, five o’clock tea, low tennis, football, graças às promoções da companhia

canadense, passaram a fazer parte do cotidiano dos bondes. Ficava evidente que, após a

chegada da Light, São Paulo nunca mais seria a mesma.

Essa nova realidade se fazia sentir no comportamento dos passageiros que

utilizavam os bondes, que rapidamente se transformou no meio de locomoção predileto das

classes mais abastadas da cidade. Além de representar o novo e o moderno, o serviço de

bondes afastava, graças às regulamentações de bem se trajar e de bem se portar, boa parte

das classes menos abastadas, que, além de todas as restrições que enfrentavam para o uso

do novo meio de transporte, não podiam arcar com os novos preços, que eram o dobro dos

praticados pela velha Cia. Viação. Esses novos passageiros de bonde cultivavam aquilo que

um cronista nos anos de 1920, Amadeu Amaral, chamou de psicologia dos bondes. Numa

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série de artigos publicados pelo jornal A Notícia, no início do ano de 1907, um cronista,

identificado apenas como Seu Figueiredo, tece uma série de comentários sobre a complexa

e nova psicologia, anos depois abordada por Amadeu Amaral, que exigia não apenas um

comportamento mais ágil, como também uma maior maleabilidade nos padrões morais,

requisito fundamental para se dividir o banco com outros passageiros. Comentando acerca

dessa nova psicologia, o autor aborda uma série de problemas relativos ao andar de bonde,

tratando de assuntos tão diversos como os malabarismos dos passageiros quando da

arrancada repentina dos carros (A Noticia, 16/01/1907), ou então sobre doenças às quais

inconscientemente estão expostos os passageiros dos bondes, ao inalarem as grandes

quantidades de poeira, levantadas graças à velocidade exagerada em que se movimentam os

carros da empresa (Idem, 17/01/1907).

Ao final dos artigos, Seu Figueiredo, se dispõe a escrever um livro que pudesse

auxiliar os passageiros dos bondes de São Paulo. Seria não bem um livro, mas um manual,

cujo nome dava bem a medida do que era um passeio de bondes pela cidade no início do

século XX, Gymnastica Applicada ao Bonde. Essa nova psicologia, acompanhada de uma

nova maleabilidade corporal, era o sinal dos novos tempos advindos com a Light, cujos

ritmos demoraram algum tempo para serem absorvidos por grande parte da população que,

primeiramente, tinha de lutar para ter acesso a esse serviço, para não ser por ele desterrada.

A consolidação da Light e o momentum da eletricidade em São Paulo

A consolidação da Light & Power na cidade de São Paulo foi um processo que passou

não apenas pela ocupação das ruas, distribuição das redes, popularização dos serviços e

destruição da concorrência. A consolidação da empresa canadense também passou pelo

aliciamento político e pela criação de demandas, não apenas para os seus serviços de

transporte ou de energia elétrica, mas também demandas para o desenvolvimento de

pesquisas relacionadas à eletricidade, potenciais fontes de geração de energia e,

principalmente, formação de mão-de-obra especializada em assuntos relacionados com a

engenharia elétrica. Em ambos os casos a empresa contou com um forte poder de

persuasão: o seu poder econômico.

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Quando de sua chegada a São Paulo os homens por trás da companhia canadense

tiveram extrema preocupação e cuidado para costurar alianças que lhes valessem algumas

facilidades nos meios políticos locais. A presença de Antonio Gualco, um amigo próximo

da família Campos, uma das mais influentes no Estado de São Paulo, foi um fator decisivo

para a aceitação da empresa canadense e para que o contrato original de transportes por

tração animal firmado entre o município e a Cia. Viação Paulista fosse rasgado. O que os

homens da Light procuravam eram pessoas influentes na comunidade com as quais a

empresa pudesse obter um bom relacionamento e, com isso, conseguir algumas vantagens

nas negociações que viessem a ocorrer com a municipalidade. O próprio Brown,

engenheiro-chefe e um dos diretores da companhia, tinha clara a necessidade de encontrar

aliados certos junto a comunidade local. As discussões acerca de que aliados encontrar em

São Paulo eram feitas sem a menor cerimônia entre os membros da empresa no Brasil e os

membros da empresa no Canadá ou mesmo nos Estados Unidos.

A estratégia da empresa foi a de encontrar aliados que pudessem, sempre que necessário,

fazer o lado da balança pender ao seu favor. Isso foi de grande eficiência quando de sua

chegada, aproveitando-se do misto de alegria e fascinação por São Paulo ser alvo de

vultosos capitais internacionais, porém, com o passar dos anos, e com o fascínio inicial

sendo substituído por desconfiança, a companhia canadense começou a adotar uma

estratégia que mais do que se aliar aos nomes certos era a de fazer com que os nomes

certos chegassem ao poder.

Existem poucas fontes que dão conta de tal estratégia, muitas delas relegadas apenas

aos jornais de linha mais independente e que chamavam a atenção para o “perigo yankee”.

Esse perigo, cuja atenção dos poderes públicos foi chamada logo nos primeiros dias da

empresa, após a unificação dos contratos, se manifestava no comportamento despótico e

monopolista da companhia que a todo custo procurava garantir o máximo de influência em

todas as áreas da capital. Os primeiros sinais de alerta foram dados no ano de 1906, quando

um jornal do município (A Platéa, 06 e 07/12/1906) chama a atenção para os projetos da

Light em Santo Amaro. Com o objetivo de construir uma barragem que servisse de

reguladora do fluxo de águas para a sua usina em Parnaíba, a empresa canadense começou a

pressionar a Prefeitura da então cidade de Santo Amaro para lhe conceder total liberdade

em realizar desapropriações dos terrenos para a área daquela que viria ser a represa de

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Guarapiranga. O objetivo da companhia era o de, após a conclusão de suas obras, especular

com os terrenos por ela comprados, para conseguir bons lucros no mercado imobiliário da

cidade, que desde a sua chegada vivia dias muito agitados.

O fato é que o caso ganhou certa repercussão e acabou sendo explorado por parte da

imprensa paulistana, levantando suspeitas sobre a atitude da companhia, queixas de

proprietários de terra prejudicados pelas desapropriações e uma ação no Senado Paulista

que aprovou o projeto da empresa em Santo Amaro, sob os auspícios de alguns lentes da

Escola Politécnica. Esse caso fez com que a Light, talvez como retribuição aos “homens

fortes” em que podia confiar, iniciasse um processo de aliciamento de eleitores, no que

se tornaria um escândalo eleitoral na cidade de São Paulo.

A história começa com um artigo no jornal “O Comércio de São Paulo”, onde um

jornalista chama a atenção para um estranho movimento de alistamento de eleitores, todos

eles empregados da companhia canadense. Ao que tudo indicava, a empresa pretendia

utilizar o grande número de trabalhadores que empregava como arma para influenciar no

resultado eleitoral, o que não seria muito difícil numa cidade onde o número de eleitores era

reduzido e num sistema eleitoral onde o voto não era secreto. O grande número de

estrangeiros empregados nas fileiras da Light fazia com que, inclusive, a empresa

trabalhasse para uma rápida naturalização dos mesmos, habilitando-os a participar do

processo eleitoral. Esse alistamento maciço de eleitores pela companhia concentrava um

enorme poder em suas mãos, fazendo dela a maior força econômica e também política da

cidade. De um lado, mobilizava enorme capital e era capaz de produzir grandes lucros

usando de seus contatos, valendo-se de sua concessão e de práticas especulativas; de outro

lado mobilizava um enorme cacife eleitoral, podendo influir decisivamente na eleição de

seus escolhidos.

Usando de linguagem belicosa, o jornalista que chamou a atenção para os aparentes

planos de transformar a empresa num entreposto eleitoral, diz que a Light agia na cidade

como o vitorioso age em terra conquistada, ou como se a população local fosse uma

população corrompida, à mercê da melhor oferta (O Comércio de S. Paulo, 10/07/1907).

No entanto, ao que parece, a prática da empresa, antes de reprovável perante os poderes

públicos municipais e estaduais, parecia receber o apoio velado dos mesmos, como que

uma garantia da manutenção do status quo, numa prática clientelista para garantir a

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hegemonia municipal e os seus planos para a capital paulista. Perante tal situação, restou ao

jornalista o amargo comentário acerca do quadro político-eleitoral do município:

A Light convertida em nucleo eleitoral, tem no Congresso do Estado, nas propriasrepartições municipaes, quem a auxilie, quem lhe dê apoio, quem a incite aproseguir em sua intervenção immoral em nossa política. Entre os cúmplices,comparsas da companhia cynica ha alguns que se incumbem de alistar eleitores ede dividi-los por secções (...) Em vésperas da eleição, os directores da Light, comose praticassem um acto licito, compromettem-se a dar a este ou aquelle candidatodeterminado numero de votos. (O Comércio de S. Paulo, 24/07/1907).

No entanto, não era apenas na arena política que a companhia procurava afirmar-se

na cidade, mas também junto aos responsáveis pela formação das elites locais, mais

especificamente, das elites que estariam ligadas á produção científica e que seriam de

fundamental importância para o desenvolvimento de uma força de trabalho nativa, o que

pouparia um bom dinheiro da empresa na contratação de mão-de-obra estrangeira; além de

criar um conjunto de idéias que colocassem o principal produto da Light, no caso a

eletricidade, como o centro da nascente economia industrial paulistana. Trata-se da Escola

Politécnica. A Escola Politécnica foi fundada no ano de 1893 e iniciou os seus cursos a

partir de 1894. Essa instituição representou, ao longo da Primeira República, um dos mais

importantes centros de pesquisa do país. A Escola era para São Paulo não apenas um centro

de estudos, mas um centro de representação e de afirmação da superioridade dos paulistas

em relação ao restante da federação, principalmente em relação à sua concorrente direta, a

Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Como uma das formadoras de quadros para o Partido

Republicano Paulista, já que os filhos dessa elite cafeeira formavam uma parte significativa

dos alunos de instituições como a Politécnica, o papel da Escola ia muito além da ciência e

esbarrava na política, já que aquela instituição forneceu importantes quadros para a vida

pública paulista e brasileira.

As relações entre a companhia canadense e a Politécnica começaram cedo. No dia

29 de maio de 1901, quando o engenheiro F. S. Pearson visitou pela primeira vez as

instalações da instituição, iniciou-se uma relação que se estenderia ao longo dos primeiros

trinta anos do século. Guiado por alguns professores e alunos, Pearson conheceu o prédio

que abrigava a instituição e fez à Politécnica uma oferta irrecusável: instalar um motor

elétrico e fornecer gratuitamente energia elétrica assim que as operações da usina de

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Parnaíba se iniciassem. O diretor da escola Politécnica, Paula Souza, lisonjeado com o

interesse e as declarações de Pearson, aceitou o presente e deu o primeiro passo para que a

cadeira do que hoje chamamos engenharia elétrica iniciasse as suas atividades

(NAGAMINI, N, 1994:64). Esse fato, aparentemente de importância secundária, foi um

momento chave para se entender o rápido sucesso da difusão da energia elétrica na cidade

de São Paulo e, posteriormente, no resto do Estado. Juntamente com o início da cadeira de

eletrotécnica, se iniciava em São Paulo um processo de difusão da eletricidade e uma

campanha pelo uso dessa forma de energia, incluindo aí a difusão de artefatos elétricos

diversos, tais como lâmpadas, panelas elétricas, motores elétricos, aquecedores de água,

dínamos e uma infindável série de objetos que passariam, nas décadas seguintes, a fazer

parte do dia-a-dia dos cidadãos paulistanos.

Esse processo de adoção de uma tecnologia, que tanto pode decretar a sua rápida

expansão, quanto o seu atraso, ou mesmo a sua morte prematura (ARTHUR, W. D.

1998:1906-112), teve na empresa canadense o principal núcleo de propulsão, sendo ela a

única responsável pela criação do momentum (HUGUES, T. 1989: 141-174). Uma

determinada tecnologia atinge o seu momentum quando um conjunto de fatores, que são

aparentemente independentes, se conjugam. A tecnologia ganha apoio de homens e de

instituições e começa a suscitar um campo de pesquisa, seja em instituições científicas, ou

em indústrias. Esse campo de pesquisas e as idéias a ela relacionadas tendem a se espalhar

sociedade afora e a tornar o caminho de adoção de determinada tecnologia mais fácil

quando comparada a outras formas de manifestação técnica. Os trabalhos de Thomas

Hugues tratam de vários exemplos de como a tecnologia da eletricidade atingiu o

momentum em diversos locais. Alguns dos exemplos dados pelo historiador americano são

de grande utilidade para uma melhor compreensão do fenômeno que ocorreu na cidade de

São Paulo no início do século XX. Esses exemplos são as cidades de Londres e Chicago.

A cidade de Londres era, no início do século XX, um dos maiores centros industriais

e financeiros do mundo. Apesar disso a cidade demorou, desde as primeiras aplicações das

tecnologias de eletricidade, quase 70 anos para substituir inteiramente o seu sistema de

iluminação a gás por eletricidade. Essa situação ocorreu por uma sobreposição da política

por sobre a tecnologia. A tradicional organização político-administrativa londrina dividia a

cidade por diversas autoridades locais, cada qual responsável pela administração de uma

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parte do que para nós seria o município. A primeira requisição para o fornecimento de

eletricidade para a cidade de Londres foi feita pela empresa English Electric Light

Company, proprietária dos direitos de uso no Reino Unido da tecnologia desenvolvida por

Thomas Edison em Merlon Park. No início de 1882 a companhia construiu o primeiro

grande gerador na cidade de Londres, sob o viaduto Holborn, usando a mesma tecnologia

aplicada com sucesso na cidade de Nova Iorque (Idem, 54-78), entrando em funcionamento

naquele mesmo ano, no dia 25 de abril. A partir desse momento teve início uma infindável

série de problemas que retardariam o uso da eletricidade em larga escala na cidade de

Londres por mais de três décadas.

O principal problema ocorria pela peculiar forma de organização político-

administrativa no Reino Unido. Para a construção da canalização subterrânea na cidade e a

necessária intervenção nas ruas, iniciou-se uma discussão para a criação de uma lei que

valesse não apenas para a cidade de Londres, mas também para todo o país, transformando

uma questão local em uma questão para o Parlamento Britânico. O problema para

desenvolver uma regulamentação se dava pelo fato dos conselhos municipais terem a

autonomia de decidir qual a melhor forma de lidar com questões como, no caso da

eletricidade, a construção de dutos para a instalação dos fios de transmissão, até qual a

corrente a ser adotada por um sistema de distribuição. Esse fato resultou numa grande

disseminação de pequenas companhias e na não adoção de um padrão único que

beneficiasse uma grande companhia como a English Electric Light, que viu frustrados os

seus esforços para a criação de uma empresa que centralizasse os serviços de fornecimento

de força e luz (Idem: 227).

Esse problema de definição de uma legislação, que ao final de contas ficou sob a

jurisdição dos diversos conselhos municipais, resultou na impossibilidade da instalação de

grandes empresas que investissem grandes somas de capital na construção de centrais

elétricas para o fornecimento de energia para a cidade. Essa contradição entre a política e

tecnologia se aguçou com o novo desafio que representava a eletricidade para uma cidade

como Londres, o que resultou na impossibilidade dessa nova tecnologia atingir o seu

momentum na cidade até o final da Primeira Guerra Mundial. Um paradoxo para uma

cidade que concentrava as maiores instituições científicas do mundo à época. Os problemas

enfrentados pela tecnologia da eletricidade na cidade de Londres podem ser resumidas nas

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palavras de Lloyd George, respondendo a um pedido para apressar o processo de unificação

dos padrões de transmissão e distribuição de eletricidade: “(...) Isto não é questão de

engenharia, é questão de política” (Idem:203).

O caso de Chicago seguiu um caminho completamente diverso do que o de Londres,

num processo que foi em certos aspectos semelhantes aos de São Paulo. No início do século

XX a cidade de Chicago possuía uma série de pequenas empresas fornecedoras de energia

elétrica e de força para cidade. A situação passou a mudar com a chegada em Chicago de

Samuel Insull, um ex-funcionário de Thomas Edison que tinha a intenção de unificar os

serviços de distribuição de força e luz na cidade. Valendo-se da peculiar condição política

daquela cidade, Insull, presidente da Chicago Edison Company, iniciou um processo de

monopolização da produção e distribuição de energia elétrica que criou as condições ideais

para atrair grandes investimentos para a sua empresa, usando muitas vezes para isso de

ações não lícitas.

Com grande influência na política local, Insull conseguiu que fosse aprovada uma

legislação que desse à empresa uma concessão de longo prazo, no caso de 50 anos, além de

separar os serviços de força e luz dos serviços de transportes (Idem:206). Isso possibilitou

que a empresa incentivasse o surgimento de uma demanda para força e luz, permitindo a

aplicação em larga escala das novas tecnologias relacionadas á eletricidade. O resultado

dessa combinação foi a criação de um sistema que envolvia as necessidades sociais e de

mercado, redes de financiamento, inovações tecnológicas, engenharia, design e técnicas

administrativas (Idem, 216). O momentum da eletricidade em Chicago representou a síntese

de diversos modelos e foi possível por um misto de desregulamentação no fornecimento de

força e luz e de uma acirrada competição na área de distribuição e transportes, além é claro

de um grande movimento junto ás universidades dos Estados Unidos para o

desenvolvimento de estudos relacionados com a eletricidade (Idem, 250).

O caso de São Paulo, apesar de guardar certas semelhanças com o caso de Chicago,

seguiu um modelo de desenvolvimento distinto. Quando uma empresa como a Light &

Power Company se instala numa cidade sem quaisquer melhoramentos relacionados com os

serviços os quais ela se propõe a fornecer, diferentemente dos casos de Londres e Chicago,

é natural o fornecimento de uma série de incentivos para que o público use os seus serviços.

No entanto, o que a companhia canadense incentiva na cidade de São Paulo e, por

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conseqüência, no Estado, é a adoção das tecnologias da eletricidade, fazendo com que essas

tecnologias se imponham sobre as outras, de forma a tornarem-se um paradigma (DOSI, G.

1998:387-420) a sempre ser levado em conta. Em outras palavras, o momentum da

eletricidade em São Paulo foi capitaneado por apenas uma única empresa, que impôs os

seus ritmos e projetos – amparada numa legislação permissiva e num executivo claudicante

– a toda a população da cidade.

O papel da Escola Politécnica nesse processo, ao contrário das grandes

universidades dos Estados Unidos que participavam com pesquisas e formação de mão-de-

obra especializada, foi a de chancelar os projetos apresentados pela companhia junto à

Prefeitura Municipal, em casos como os da iluminação, ou mesmo o da construção da

represa de Guarapiranga, que tanto escândalo gerou na cidade pela forma como os

processos de desapropriação estavam sendo conduzidos. A Escola Politécnica, através de

alguns artigos em sua revista, ou mesmo através de artigos de seus professores nos jornais,

acabou por colocar-se ao lado da empresa canadense e a dar um respaldo científico aos

intentos da Light. As relações entre a empresa canadense e a Escola Politécnica são, no

entanto, apenas uma parte do processo de formação do momentum da eletricidade em São

Paulo. Além da necessidade de se criar um consenso ao redor da eletricidade entre os meios

público e científico, foi também necessário difundir a nova tecnologia sociedade afora. Esse

trabalho de difusão também tem na Light o seu centro motivador.

Antes da instalação da empresa canadense no Brasil, um dos homens que serviram

de ponte para a coleta de informações sobre São Paulo e também como um intermediário

nas negociações junto à Câmara de Vereadores da cidade foi James Mitchell. Esse

americano que se radicou no Brasil em fins do século XIX era o representante da empresa

de material elétrico estadunidense General Electric, a maior empresa do ramo no mundo

àquela época. Como representante daquela empresa, Mitchell era o nome ideal para servir

de ponte com a Prefeitura e para tratar dos processos de compra e importação dos materiais

necessários para o funcionamento da nova companhia de bondes em São Paulo. O papel de

Mitchell como representante da General Electric no país e intermediário entre a empresa

canadense e a empresa estadunidense, lhe valeu sucesso como comerciante, o levando a

abrir uma loja que levava o seu nome na cidade de São Paulo, a famosa Casa James

Mitchell, a única casa autorizada a vender material elétrico em nome da Light & Power Co.

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A Casa James Mitchell era a responsável pela venda de motores para empresas interessadas

em trocar o vapor pela eletricidade, era a responsável pela venda de medidores elétricos,

além da distribuição de lâmpadas e de uma variada gama de produtos relacionados à

eletricidade, que podiam ser usados no dia-a-dia das donas de casa paulistanas, desde que, é

claro, pudessem arcar com as despesas com a compra desses artefatos elétricos. O papel da

casa James Mitchell era, entre outras coisas, o de gerar demanda para o consumo de energia

elétrica, ou seja, criar um movimento na sociedade paulistana que fosse capaz de

transformar a eletricidade num elemento corriqueiro no cotidiano do município.

Essa difusão da eletricidade, que teve o seu início com a inauguração do tráfego de

bondes em 07 de maio de 1900, fez com que, poucos anos após o seu início, as tecnologias

relacionadas com a eletricidade atingissem o seu momentum em São Paulo. É difícil

determinar o momento exato desse acontecimento. Certamente ele está relacionado com a

inauguração da usina de Parnaíba em 23 de setembro de 1901. A inauguração dessa usina

proporcionou á empresa canadense vender seus motores e oferecer a eletricidade como uma

alternativa ao vapor e à gasolina, além de concorrer para a iluminação publica e difundir e

iluminação privada. Para esse processo foi decisiva a participação da Escola Politécnica e

da casa James Mitchell. A primeira forneceu o seu discurso científico como salvaguarda

para a adoção da nova tecnologia, a segunda ofereceu os equipamentos e incentivou o uso

de produtos que utilizassem a eletricidade como força motriz.

Seguindo o esquema de Hughes para descrever o processo de desenvolvimento de

uma determinada tecnologia para atingir o seu momentum, nos primeiros anos do século

XX, a eletricidade atingiu no município aquilo que o autor chama de massa, a base de

produção da energia elétrica – no caso a usina de Parnaíba –; ganhou um movimento, que

pode ser notado num processo de difusão do uso da eletricidade sociedade afora; e uma

direção, a substituição de outras formas de força pela força elétrica, incluindo nisso também

a substituição da iluminação a gás por iluminação elétrica. No entanto, esse processo de

construção do momentum, por ter sido o resultado da ação de um único grupo de interesses,

levou a uma série de contradições que perduraram ao longo de toda a Primeira República,

isso graças à ação monopolista da empresa canadense. Essas contradições se manifestavam

no grande número de pessoas que eram, dia após dia, vitimadas pela eletricidade e pelo

grande número de pessoas que eram excluídas do acesso à energia elétrica. Essa situação

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levou a um sutil embate entre a população da cidade e as formas de utilização dessa nova

tecnologia, o que se manifestava no confronto direto, com ataques contra tudo o que

representasse a Light & Power na cidade de São Paulo, até formas de burlar as regras de uso

impostas pela companhia e se utilizar dessa nova tecnologia sem a devida remuneração para

a empresa, numa prática popularmente conhecida como “gato”.

Os “gatos” eram uma prática aparentemente comum à época, causando constantes

transtornos à empresa. Nos primeiros dez anos do século XX era normal encontrar relatos

sobre pessoas que se apropriam ilegalmente da eletricidade, através de ligações

clandestinas, com o intuito de iluminar a sua casa, geralmente usando apenas uma lâmpada

que ficava acessa ao longo do dia. A empresa, através de James Mitchell, o responsável por

essa área, procurava de todas as formas coibir esse tipo de prática, usando de estratégias

como o desconto para os consumidores que pagavam as contas em dia, até ameaças de

prisão e de corte de energia para aqueles que de alguma forma burlassem as regras.

Conclusão

Combinados todos esses ingredientes, a empresa, ao longo dos anos da

administração de Antônio Prado, em seus anos heróicos, angariou grandes antipatias junto á

população paulistana. A permissividade do executivo e legislativo municipal se, por um

lado, possibilitou uma grande difusão da eletricidade cidade afora, também resultou, por

outro, num grande processo de exclusão das classes menos favorecidas e numa

manifestação extremamente destrutiva dessas tecnologias, sendo que suas vítimas, na

maioria das vezes, eram pessoas pobres.

Ao final dos anos Prado, a cidade de São Paulo havia atingido seu momentum no

caso da eletricidade. Porém, a percepção era a de que as grandes promessas que esse

momentum trazia não se concretizaram, graças à forma como essa tecnologia foi aplicada.

As relações entre a Light & Power e a Prefeitura Municipal traziam uma sensação de

desconforto geral e levavam a população a crer que a “poderosa” – uma das tantas alcunhas

da empresa canadense – era a verdadeira detentora do executivo municipal.

A vitória do projeto de modernização tecnológica representada pela Light iria

causar, ao longo de todos os primeiros trinta anos do século XX, uma série de embates entre

a população do município, de um lado, e a companhia e os poderes municipais, de outro.

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Esses conflitos causados pelos serviços de má qualidade, pelo grande número de acidentes e

pelas relações promíscuas entre a Prefeitura Municipal e a empresa canadense marcariam a

adaptação dessa nova tecnologia na cidade, num embate que foi responsável por definir os

caminhos da eletricidade em São Paulo, e cujo resultado foi um grande número de vítimas,

em sua maioria velhos e crianças das classes menos favorecidas, sempre à mercê de sua

própria sorte.

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Imigrantes empreendedoras em São Paulo (1945-1956)Ashkenazitas, Sefarditas e Orientais

Marie Felice Weinberg78

RESUMOEsse estudo enfoca as judias que imigraram no período que se estende do final da SegundaGuerra Mundial até 1956, quando o general Gamal Abdel Nasser ascendeu ao poder doEgito. Os judeus que viviam na Europa, Oriente Médio e África do Norte, proibidos deimigrar para Israel, acabaram transferindo-se para outros países, entre os quais o Brasil.Embora ainda vigorassem no país restrições à entrada de imigrantes, as cidades brasileirasreceberam, terminada a Segunda Grande Guerra, os sobreviventes do Holocausto, osrefugiados da Europa Ocidental e Oriental e, dos países banhados pelo Mediterrâneo. Ametodologia escolhida para alinhavar a multiplicidade cultural do grupo étnico judaico foia História Oral que através das entrevistas captou os discursos de 22 empreendedoras. Estetrabalho revela outras verdades femininas, que os discursos patriarcais teimam emminimizar e permite questionar o papel das mulheres nas relações de poder entre osgêneros.

PALAVRAS-CHAVE: Gênero, Imigração, Judeus.

ABSTRACTThis study is focused upon Jewish women emigrants, comprising the period preceding theSecond World War until 1956, when General Abdel Nasser came to power in Egipt. TheJews who then lived in Europe, The Middle East and North Africa, and who wereforbidden to emigrate to Israel, ended up by moving to many other countries, includingBrazil. Although some restrictions to the entrance of immigrants were still in effect in thecountry at the time, the Brazilian cities received, by the end of the Second World War,survivors of the Holocaust and refugees from the Western and the Eastern Europeancountries, and also those from the countries bathed by the Mediterraneam sea. Themethodology chosen to delineate the multiple cultural aspects of this Jewish ethnic groupwas Oral History, through interviews which collected the discourses of 22 entrepreneurialwomen. This study reveals other female truths consistently minimized by a patriarchaldiscourse, and enables to question the part that women usually take in the relations ofpower between genders.

KEY-WORDS: Gender, Imigration, Jews.

78 Mestre em Língua Hebraica, Literatura e Culturas Judaicas, da Faculdade de Filosofia, Letras e CiênciasHumanas da Universidade de São Paulo, com a dissertação “Histórias Recontadas: Judias ImigrantesEmpresárias em São Paulo (1945-1956)”. Participante do grupo de Pesquisa “Mulheres Proprietárias”, doDepartamento de História Econômica da Universidade de São Paulo e do grupo de Pesquisa “E/Imigrantes”,do Departamento de Psicologia Social da Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

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Recentes estudos sociológicos vêm mostrando a importância das mulheres e a

valorização dos estudos sobre suas conquistas no mercado de trabalho. Nenhuma das

pesquisas, entretanto, abordou as mulheres judias que, inseridas no contexto familiar,

ousaram empreender ações em busca de soluções econômicas, visando o lucro para garantir

suas necessidades e a de seus familiares. Com este trabalho, pretendemos preencher esta

lacuna.

Os estudos realizados sobre a imigração de judeus em nosso país concentram-se em

núcleos de famílias e, em particular, na figura masculina, único partícipe de

empreendimentos econômicos e pela manutenção da estrutura familiar. Como chefes de

família ou como profissionais são responsabilizados, inclusive pela inserção do grupo no

meio social, restando às mulheres o papel de figurantes e elemento passivo no enredo

familiar dos grupos culturais judaicos.

O tema abrange o período que se estende do final da segunda guerra Mundial até

1956, quando no Egito e outros países árabes apoiaram a ascensão ao poder o General

Gamal Abdel Nasser, rompendo as antigas e amistosas relações entre muçulmanos e judeus.

Do outro lado, a cidade de São Paulo apresentava amplas possibilidades e perspectivas

econômicas a imigrantes que buscassem terras politicamente tranqüilas da América.

A pesquisa excluiu o período vivenciado pelas imigrantes judias durante o

Holocausto, o que facilitou a participação no estudo. Os judeus que viviam nas terras

atingidas pelo Nacional Socialismo estavam proibidos de emigrar para Israel e,

transferiram-se para outros países da Europa e América, entre os quais o Brasil. Embora

ainda vigorassem restrições oficiais à entrada de imigrantes, as cidades brasileiras

receberam, terminada a Segunda Guerra, os sobreviventes do Holocausto e os refugiados da

Europa Ocidental e Oriental, bem como os banhados pelo Mediterrâneo.

Para nossos objetivos a História Oral foi a metodologia escolhida para compor as

histórias de vida de mulheres que imigraram a São Paulo, entre 1945 e 1956 que

trabalharam, visando o lucro, apoiadas em seu próprio capital. Embora não assumam sua

autoria, elas romperam com os papéis tradicionais femininos mantendo a harmonia na

esfera familiar pautada numa organização patriarcal. Esta diretriz permitiu incluir as

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minorias, tornando-se um instrumento fecundo para compreender o universo desse estudo.

A pesquisa qualitativa foi a técnica utilizada, visando a criação de espaço na história deste

grupo étnico “valendo como revisão de situações estabelecidas, pois, quase sempre, ela

propõe alterações interpretativas que contrastam com a ordem vigente” (MEIHY, 2000:

15).

A primeira grande dificuldade encontrada para esse estudo foi a composição da

amostra. As mulheres casadas até o presente, não aceitam assumir seus papéis de

empreendedoras. Desta maneira, o objeto da pesquisa ficou quase ausente, visto que era

exigido como pré-requisito: ser mulher, judia, imigrante na cidade de São Paulo no período

e de ter exercido o papel de empresária79, independente do sucesso do empreendimento.

Essa constatação impele a certos questionamentos, como a possível falta de espaço

social ao empreendedorismo feminino ou a perpetuação do modelo conservador da

sociedade patriarcal judaica. E eventuais diferenças entre as imigrantes judias originárias

dos três principais grupos culturais.

Ainda que só no plano discursivo, há o desafio da releitura ou, re-ouvir as histórias

que poderão contribuir para contradizer os discursos normativos, encarados como naturais,

talvez, por corresponderem a uma narrativa patriarcal que até aqui permanece preservada

pelas próprias mulheres.

Para definir o grupo de 22 mulheres judias, a “auto-identificação“ (RATTNER,

1977: 132). serviu como referencial, abrangendo um universo das laicas ou não religiosas às

ortodoxas. A discussão sempre atual sobre o significado de identidade judaica converge

para a questão dos valores que geram diferentes processos identificatórios deixou de ser

analisado no momento.

As entrevistas foram individuais, na residência da família ou no escritório, e o

tempo de duração não foi limitado, mas estendeu-se, em média, por três horas. As mulheres

exigiram a omissão de suas identidades, pedindo a utilização de nomes fictícios. Tampouco

aceitaram a gravação de suas falas, ficando suas falas restritas às anotações. Ainda, uma

nova surpresa diante da presença inesperada do marido ou filho, no momento da entrevista,

o discurso se alterava. Diante disso, marcávamos novos encontros para melhor elucidação

da história.

79 “Pessoa ou grupo de pessoas que inicia e ou administra uma empresa, assumindo a responsabilidade por seufuncionamento e eficiência”. (SANDRONI, 1987: 138/139).

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Além das trajetórias de vida, oralmente obtidas, consultamos o acervo do Arquivo

Histórico Judaico Brasileiro, de São Paulo, de onde pudemos incorporar depoimentos orais,

ali registrados.

Diante desse panorama inquietante, que se traduziu numa minimização sobre as

iniciativas abre-se espaço para discussão sobre o exercício dos papéis femininos em conflito

com o âmbito público, mostrando-se um novo som, em meio ao silêncio sobre as iniciativas

das mulheres que parecem ousar e criar o avesso do homem.

Cenário

O povo judeu viveu disperso por séculos entre outras sociedades e manteve sua

unicidade na religião, filosofia, valores éticos, morais e ancestralidade, somando uma

pluralidade cultural resultante de sua participação em contextos nacionais diversos. Embora

a religião seja vista como o fio-mestre da unidade desse povo, a organização social

contemporânea abriu espaços para a valorização de outros conceitos, geradores de

diferentes processos identificatórios, como os preceitos ortodoxos, conservadores, liberais,

a filosofia ético-moral, a matrilinearidade e, após 1948, a identificação ideológica e política

com o Estado de Israel.

Considerando as diferenças culturais, pouco conhecidas, apresento um rascunho

referente à localização dos diferentes grupos culturais judaicos nos países de origem das

imigrantes aqui apontadas.

Distribuição da população judaica nas comunidades de origem

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Fonte: Esboço sobre mapa do Início do século XX - Mapa de Martin Gilbert (GILBERT, 1978: 60)

Esses grupos, fruto das incessantes diásporas, viveram em áreas,

concomitantemente, embora se mantivessem separados.

Na busca de estudos mais sistemáticos sobre as diferenças culturais existentes no

grupo étnico judaico apresentamos os valores modos de vida de cada grupo até sua ruptura

na origem e, recriação de laços de convivência na sociedade paulistana.

Ashkenazita:

As mulheres que vieram da Europa Central e Oriental, constituem-se no maior

número de entrevistadas deste trabalho, assim, iniciamos pelo grupo lingüístico-cultural

identificado com o iídiche - ashkenazitas.

A maioria dos judeus da Europa conheceu o período de consolidação das revoluções

do século XVIII tendo participando do “Estado Burguês”. Este cenário é o da modernidade,

determinante na separação definitiva entre as esferas do público e privado. Nas sociedades

tradicionais judaicas, as relações sociais caracterizam-se pela:

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(...) intimidade, comensalidade, solidariedade primária afetiva, emocionalidade, padrõesrigorosos de controle social, núcleo familiar organizado em torno da parentela sanguíneaque constitui além de sua função reprodutiva biológica, uma unidade de produçãoeconômica e de consumo coletivo (LEWIN, 1996: 448).

No contexto do final do século XIX, as mulheres judias do shtetl (aldeota, vila,

bairro étnico) vão precisar redefinir seus novos limites de âmbito privado, quando o público

laico passa a não mais só circundar, como interferir em seu cotidiano.

O processo é válido para toda a comunidade, pois, em primeira instância objetiva o

fortalecimento da família judaica. Assim, a autoridade do

(...) pai é formal, de acordo com os costumes e a lei judaica, mas o domínio real do espaçodoméstico pela prática da vivência cotidiana é da ”iídiche mame”. Ela manipula os recursosmateriais e simbólicos existentes no interior da família (....)(...) A aceitação pela família desse direito significa o reconhecimento implícito de suaautoridade (....) explicando (....) segundo a visão tradicional da vontade divina (....) nãopercebendo ou não querendo assumir explicitamente o papel de interventora. (LEWIN,1996: 452).

Apoiando-se no texto citado, a mãe, a responsável pela definição dos papéis e das

urgências, estabelece as partes com certo grau de autonomia. É seu dever acompanhar os

estudos, sobretudo dos filhos homens, conforme a cultura e a religião enfatizam (pois, é a

garantia da continuidade comunitário-judaica). Esses encaminhamentos são fundamentais

por definirem responsabilidades, ao mesmo tempo, em que hierarquizam as relações na

futura geração.

O estudo talmúdico para os homens, por exemplo, é tão valorizado a ponto de as

mulheres improvisarem algum trabalho remunerado para garantir as despesas e poupar o

esposo dessa preocupação, sem levá-lo a interromper os estudos. Acrescenta-se um

reconhecimento social da família que tem um sábio (o conhecedor dos mistérios do

sagrado, o estudado), que é vista como nobre e abonada, dada a capacidade de prover o

filho por tantos anos. Na ausência do filho, o mito de mulher fraca e dependente configura-

se; no contrário, isto é, no completo, em sua maternidade, a máxima e plena força

manifesta-se numa existência, vista como altruísta, provedora e protetora.

Essas mulheres ora mães, ora esposas, são pessoas que irão concomitantemente

participar dos processos sociais do período nas pequenas cidades da Europa Central e

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Oriental. Aos poucos, o mundo judaico vai ganhando novas formas e o espaço privado

invadido por distintas necessidades, abrindo oportunidades à mulher.

A sobrevivência econômica, a profissionalização, o proletariado, as novas

exigências de competência individual, a secularização da sociedade, entre outros fatores,

foram dissolvendo os muros que continham esse universo público separado e distante da

realidade privada judaica do período.

Personalidades consagradas da comunidade judaica viviam, em sua maioria, nas

grandes cidades, sobretudo, da Europa Ocidental inseridas no cotidiano laico, lutando pela

renovação mundial que incluía a integração judaica.

O Iluminismo, ideologia predominante na Europa Ocidental do século XVIII,

ventilou a filosofia judaica para além de sua religião, vislumbrou novas abordagens, releu o

judaísmo tradicional criando novos paradigmas.

Muitos judeus do Ocidente, pertencentes às camadas médias da população, puderam

engajar-se em universidades, imprensa e na literatura, indústrias, bancos e até trabalharam

em repartições públicas ou comércio, integrando-se à sociedade laica, usufruindo os direitos

iguais para o exercício da cidadania recém-conquistada. Os filhos de famílias abastadas

foram aceitos nas universidades européias e aos demais restaram os estudos orientados

dentro do corpo da comunidade.

Na Europa Oriental, grande número de judeus vivia predominantemente em áreas

rurais eram menos favorecidos, em vista da discriminação e exclusão social, ficando

fechados em sua comunidade, arraigados à consciência judaico-religiosa. Trabalhavam

como artesãos, sapateiros, alfaiates, carpinteiros, serralheiros, entre outras, e, em face ao

cotidiano restrito ao vilarejo estavam menos expostos às influências, mantendo seu modus-

vivendi judaico tradicional. Em 1923 as restrições anti-semitas polonesas dificultaram o

acesso de judeus aos estudos, caindo de 24,5% para 3,2% em menos de dez anos na

escolaridade oficial. Os dados referentes ao ano de 1914 auferem que mais de 70,0% das

famílias judias (HOJDA, 1995: 82) viviam do comércio, integrando-se às cidades

polonesas, caindo para 34,0% em vinte anos, levando quase a totalidade dos judeus à

miséria. A exigência do conhecimento do idioma polonês escrito aos judeus artesãos

impedia-os de exercer a profissão.

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Essa polarização é recorrente na história, porém, com a queda do Império Russo, a

Europa Ocidental e a Oriental viviam dilemas econômicos, recheados pelo nacionalismo. O

conceito que valorizava o espaço de nascimento e moradia, também, infiltrou-se entre os

judeus, abrindo uma fenda na comunidade entre os ideais sionistas80 e os socialistas.

Desse modo, a fase de convivência e absorção do judeu como parte integrante da

sociedade local, chamada de emancipação, abriu espaço às mulheres para participarem de

várias atividades econômicas, indo para dentro das escolas e conquistando lugar entre os

letrados. Quebrou-se o estigma de que a mulher não tinha condições intelectuais de

aprendizado, e muitas marcaram a história, a filosofia e a literatura, mudando os

paradigmas comportamentais, como nos lembram Hannah Arendt e Marie Curie.

As mudanças de mentalidade e os movimentos sociais penetraram nas comunidades

judaicas da Europa e Varsóvia que já se consagravam pela densidade populacional judaica,

assistiam a esses movimentos.

A violência contra o povo judeu havia iniciado e os ataques à população (pogroms),

expulsão dos empregos, de suas casas e perda de posses tornaram-se práticas comuns. Em

guetos ficaram confinados (bairros fechados e controlados, em condições de miséria

humana). Em circunstâncias mínimas para garantir a saúde física, sobreviveram à falta de

água, aquecimento, alimentação e medicamentos. Sem atividade ou possibilidade de

produção econômica ao menos para a subsistência, e sem encontrar no horizonte uma

esperança de liberdade, a agonia da dignidade maculava a sanidade mental. Os

acontecimentos geraram transformações que a guerra terminou por arrancar pessoas e, não

raro, famílias desta existência.

O momento era de fugas e esconderijos para zonas rurais ou onde fosse possível,

pois, na maioria dos países potencialmente receptores de imigrantes, já, imperava o sistema

de cotas e os judeus não estavam na lista dos preferenciais. Os destituídos estavam

obrigados a depender das entidades assistenciais, ou seguir, intermináveis caminhadas que

levariam por entre esconderijos a outros países, como na França, Itália, Inglaterra e Países

baixos.

As mulheres, às vezes, como esposas e mães ou filhas exerceram um papel de

destaque na luta pela sobrevivência. Suas articulações, ingerências, estratégias e atuação

80 - Movimento ideológico surgido em finais do século XIX na Europa Ocidental que propunha a criação deum Estado para o povo judeu.

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como porta-vozes do grupo que protegiam, puderam mostrar sua força, inteligência e

competência para resistir e vencer em tempos de guerra, enquanto os homens permaneciam

escondidos, fugindo da possibilidade de serem arrancados dali e submetidos a trabalhos

forçados.

Sefarditas e Orientais

Em países da Europa Ocidental e Oriental e nos banhados pelo Mediterrâneo

existiam, sobretudo, judeus sefarditas, tais como: França, Itália, Turquia, Chipre, Grécia,

Bulgária Tunísia, Líbia, Marrocos, Argélia e Egito, provenientes da Península Ibérica, e

identificados pelo idioma ladino. Próximos, os judeus orientais viviam no mundo árabe:

Palestina, Iraque, Síria, Líbano e Egito falando, em geral, o idioma árabe. O grupo sefardita

representava no século XII, 90,0% da população judaica mundial, caindo em 1700 para

50,0%, como conseqüência de emigrações forçadas, ficando reduzida a 10,0% em 1930.81

No Oriente Médio, de modo geral, os judeus concentraram-se nas grandes cidades,

pois contavam com o apoio dos califas, no endosso às oportunidades de estudos e ao

exercício de cargos de confiança, como apontam os censos demográficos do Professor

Hayim Cohen (LEFTEL, 1997: 49). No Egito, o composto cultural de judeus:sefarditas,

orientais e ashkenazitas, gerou um espírito cosmopolita ao conjugar o Ocidente e o Oriente.

A relação entre os judeus sefarditas que emigraram para o Oriente e se defrontaram

com uma comunidade judaica local seguiu: “(...) três cursos distintos: assimilação total aos

autóctones, preservação completa ou parcial da cultura dos exilados e a influência direta e

recíproca entre os dois grupos” (BEN AMI, 2003: 35), que Ianni (2000: 16 e 202) viria a

intitular de transculturação. Essa linguagem moderna traz em si a constatação da revolução

permanente, ao não negar a permanência ou a reiteração da identidade, seja individual ou da

comunidade. Ianni, ainda, enfatiza que são várias as formas que podem configurar os

movimentos de combinações, soltando as desamarras que as análises sociológicas e

ideológicas impõem ao pré-definirem “o que veio, o que deve ter vindo e como deverá vir a

ser”.

81 SEPHARADIC POPULATION FIGURES THOUGH HISTORY – [email protected]

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A comunidade sefardita vai caracterizar-se no Oriente Médio, pela manutenção da

cultura e tradições da origem e pela tendência mundial e cíclica entre integração e

secularização ou o forte apego religioso.

Os sefarditas como os orientais valorizavam a religião e primavam pela educação

religiosa aos filhos, que começava antes mesmo da escola regular. Os meninos eram

encaminhados ao “Kutab” (LEFTEL, 1997: 26), (quarto para estudos, equivalente ao

“chedder” entre os ashkenazitas), dirigido às crianças do sexo masculino e sobretudo, aos

mais abastados que poderiam sustentar os filhos em dedicação total aos estudos, por longos

períodos. No estágio escolar seguinte, os demais ingressavam nas escolas laicas.

Já, no início do século XX, a “Alliance Israélite Universelle” oferecia espaço aos

judeus com a uma educação ocidental, era a possibilidade do aprendizado de idiomas, como

o francês, o inglês ou italiano, habilitando-os ao mercado de trabalho. Era uma organização

internacional de origem francesa que acreditava numa tendência espiritual nova, mais

aberta (LEFTEL, 1997: 54), e de forte interesse cultural.

A difusão cultural possibilitou que, nas primeiras décadas do século XX, as cidades

cosmopolitas do Oriente Médio estivessem misturando os vários idiomas, utilizando o

francês em casa, o árabe com os criados e o inglês nas melhores escolas e ainda, não raro,

encontravam interlocutores armênios, turcos e iranianos.82 Assim, os judeus orientais eram

percebidos como integrados à comunidade local, que era tolerante ao exercício da

religiosidade, a população era agregada, não havia grande separação entre judeus e outros.

A partilha da Palestina, determinada pela ONU, intensificou nos países árabes

posturas nacionalistas. Em 1948, no Egito, onde vivia a maior comunidade judaica do

Oriente Médio, responsável pelo incremento comercial, industrial e bancário, fazendo parte

dos grupos que alavancaram a economia do país, inclusive, em cargos político-

administrativo, Senado e Câmara dos Deputados. Alguns, “chegaram a manter ligações

próximas com a aristocracia egípcia muçulmana, e os mais pobres, de modo geral vindos

das áreas rurais logo se identificaram com a proposta israelense, para onde buscaram

imigrar” (DECOL, 1999: 182), recorrendo a subterfúgios dados os impedimentos impostos

pela Liga Árabe.

Os sefarditas distinguiram-se dos outros dois grupos culturais significativos para

este estudo, por contar com maior participação efetiva feminina nas sinagogas e serviços82 REVISTA MORASHÁ - SETEMBRO, 1995, P.51

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religiosos. As moças aos 12 anos, também, faziam sua iniciação religiosa e apresentavam-

se oficialmente à comunidade. A liturgia sefardita contava com canto de coros mistos que

permeava todo o serviço religioso, num diálogo em que se alternavam fiéis e coro. Incensos

eram usados e dos salmos eram frisadas as entrelinhas compostas, permeando de

simbologias o universo místico da maioria das mulheres sefarditas. Esse grupo cultural

abriu espaço para a participação feminina nos estudos religiosos, trazendo a

institucionalização do “Bat-mitzva” (festa da maioridade feminina) no Brasil.

As mulheres orientais permaneceram em suas casas concentradas no grupo familiar

feminino e suas várias gerações que se desdobravam em afazeres femininos como a

educação dos filhos, a cozinha, os trabalhos manuais e artesanais. No grupo, expressavam-

se livremente os sentimentos, mas, mantidos numa atmosfera hermética do universo

feminino. As casadas, mães, avós e tias eram as interlocutoras desse universo para o mundo

masculino e público. A literatura e a música eram as aptidões diferenciadas e aceitas dentre

as práticas permitidas às bem-educadas, às recatadas moças de olhar baixo preparadas para

o casamento indicado e acertado entre as famílias.

Novos Horizontes

O extermínio de 6.000.000 de judeus pelo Nacional-Socialismo Alemão, mais de

um terço de sua população mundial (DELLA PERGOLA, 1986), resultou em grande

número de sobreviventes, desalojados, refugiados de uma Europa destruída e sem destino.

Na busca por alternativas de sobrevivência, imigraram legalmente para o Brasil e outros

países, estimulados pelas múltiplas possibilidades que essas economias, em expansão,

poderiam oferecer.

Do grupo imigrante, as mulheres judias, provenientes de vários países, onde

vivenciaram circunstâncias hostis ao exercício da religião e das tradições judaicas, ao

imigrarem encontraram no sudeste brasileiro, um período de crescimento demográfico e

econômico, circunstâncias favoráveis às iniciativas profissionais.

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A maioria dos imigrantes de São Paulo era formada de italianos, seguida de

portugueses e espanhóis e, em menor escala, japoneses, sírios, libaneses, poloneses, judeus,

armênios e alemães. A cidade também contava com um movimento migratório de outras

regiões brasileiras, criando tons diversos ao sotaque paulista. Essa multiplicidade étnica

modificou o tecido sociocultural, compondo uma nova urbanidade.

O censo de 1950 apontava para a cidade de São Paulo os números de 2.198.096

habitantes, demonstrando a multiplicação de sua população em relação a 1,32 milhão de

habitantes 1940 (CARIGNATO, 2002: 94-95). Este crescimento populacional é fruto de

movimentos migratórios que, ao final de 1959 já somava mais 700.000 (LESSER, 2000:

26), novos imigrantes.

Os dados da tabela mostram o número total de imigrantes na cidade de São Paulo no

período entre 1945 e 1956.

TABELA - Total de imigrantes por ano e segundo o sexo femininoAnos Números Mulheres

1945 3 230 1 2321946 13 039 4 5921947 18 753 7 8431948 21 568 10 0771949 23 844 9 9251950 35 492 12 9801951 62 594 *1952 88 150 *1953 80 242 *1954 72 248 28 3321955 55 166 24 1361956 44 806 19 762

FONTES: Departamento Nacional de Imigração e Instituto Nacional de Imigração e Colonização. Dados da Tabela extraídos de: Anuário estatístico do Brasil 1949. Rio de Janeiro: IBGE, v. 10, 1950.Anuário estatístico do Brasil 1952. Rio de Janeiro:IBGE, v. 13, 1953. Anuário estatístico do Brasil 1955. Rio de Janeiro:IBGE, v. 16, 1955. Anuário estatístico do Brasil 1956. Rio de Janeiro: IBGE, v. 17, 1956.Anuário estatístico do Brasil 1957. Rio de Janeiro: IBGE, v. 18, 1957. Anuário estatístico do Brasil 1960. Rio de Janeiro: IBGE, v. 21. 1960. * Dados não encontrados

Destaques da Pesquisa

As judias que se instalaram em São Paulo, originárias da Europa Central e Oriental,

eram ashkenazitas; as de origem Ibérica, sefarditas de países da Europa Ocidental e Oriental

e das terras do Mediterrâneo e, o terceiro grupo, o oriental, proveniente dos países árabes,

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entre os quais, Líbano, Síria, Egito e Iraque. Este estudo reflete uma participação maior de

imigrantes de origem ashkenazita - 17 participantes - garantindo 10%, proporcionalidade

dos demais grupos culturais, garantindo a significância.

A partir de 1945, os efeitos da política discriminatória contra os judeus tornaram-se

mais flexíveis, mas, ainda os vistos eram outorgados caso a caso. As solicitações de entrada

eram analisadas pela diplomacia brasileira, ponderando-se sobre a qualificação do

solicitante, apesar da manutenção da exigência da “carta de chamada” (documento de

convite ao estrangeiro com especialização profissional de interesse do residente e desde que

fosse para o exercício da atividade profissional junto e sob responsabilidade deste).

Nem sempre donos de seu destino, os emigrantes vagaram entre acasos e

fatalidades. No entanto, os diversos deslocamentos impostos aos judeus ao longo de sua

história, cunharam características na estrutura comunitária que favoreceram uma rápida

acomodação aos novos sistemas econômicos, culturais e políticos. A estruturação do

trabalho, em condições de escassez de recursos, cristalizou moldes baseados em

organizações familiares, perpetuando um comportamento dinâmico de inserção contra a

marginalização.

Num contexto de crescimento, rapidamente, as imigrantes ousaram agir. Buscaram

soluções econômicas para resolver a questão premente da sobrevivência, sempre

considerando a família a razão da mobilização e em contrapartida, contando com ela. Entre

as entrevistadas, 50,0% confirmam ter iniciado seu negócio com envolvimento de

familiares e ou parentes. As demais deixam brechas interpretativas em seus discursos sobre

a diminuta valorização da consangüinidade, ampliando o sentimento de família para além

dessa fronteira, passando a absorver os companheiros ou irmãos de viagem (schifsbrider)

como gesto de solidariedade, amalgamado a família. Salientamos ainda a força de

identificação com a origem, pois em mais de 40,0% o apoio veio de fora do grupo étnico.

“Na casa de meu tio, tínhamos almoços com os “irmãos de viagem”83, a família quepudemos reconstruir.....”84.

83 A expressão “irmãos de navio” refere-se aos companheiros de travessia oceânica, consolidada em relaçõesfamiliares, independentes de laços de consangüinidade.

84 Luiza ,aos 22 anos, casada, empreendeu uma produção artesanal de roupas para os filhos seus e deamigas. Relato de Luiza a Marie Felice Weinberg ou MFW em São Paulo, 2000.

Este nome, como os que se seguem são fictícios, de modo a preservar a identidade das entrevistadas, emacordo a exigência das mesmas. Os textos das entrevistas encontram-se na dissertação de mestrado na áreade Língua Hebraica, Literatura e Culturas Judaicas, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanasda Universidade de São Paulo, defendida em 03/09/2004, sob o título: “Histórias Recontadas: Judias

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“Eram aqueles que chamamos de família que trabalhavam, e a maioria morava junta. Nocomeço, as compras fazíamos para todos, sem divisão.”85

“Eu e as outras companheiras, a “nossa”família, sempre que tínhamos tempo livreajudávamos na impressão dos textos clandestinos. Tudo era nosso e para nós”86.

Enquanto os imigrantes criavam uma nova São Paulo, é interessante constatar que,

não tinham percebido que estavam fazendo parte de uma importante transformação

socioeconômica na cidade. Mas esta trajetória foi fruto de muito trabalho e não raro sem

discriminação. “Ser imigrante é não ter nada a perder”, definiu uma das entrevistadas87 e

sem a preocupação com a imagem e seus papéis sociais, sentiam-se livres para tentar fazer

o que fosse possível. Assim, fizeram self-made-men (IANNI, 1965: 36), ou melhor, self-

made-women, como este trabalho vem constatando.

Para esses indivíduos, em sua maioria, as profissões exercidas eram relacionadas às

funções desempenhadas pela família em sua terra de origem, atividades próprias do

proletariado-urbano como: alfaiates, sapateiros, costureiras,. Outro papel importante e que

já vinha sendo desempenhado pelos imigrantes de anos anteriores, era o “Klinteltichik”,

mascate ou prestamista, que era adequado aos recém-chegados que necessitavam fazer sua

rede de conhecimentos, partindo dos clientes de seus fornecedores.

Neste espaço, reconstruiu-se a família que passou a ser composta, também, dos

irmãos de navio de travessia do oceano em direção ao Novo Continente. A convivência

com os pares, aqueles que se percebem, tendo os mesmos objetivos, transforma o individual

no projeto de todos. Cada um começa a identificar-se com o outro e com os anseios,

complementando solidariamente as atividades e fortalecendo o grupo (VELHO, 1980: 33).

Essa construção social foi tecida, mesmo que, inconscientemente, pelos novos imigrantes

que elaboraram, na geografia da cidade, o projeto de inserção econômica, ao mesmo tempo

em que consolidavam sua identidade.

Imigrantes Empresárias em São Paulo (1945-1956)85 ”. Amelie, 36, viúva e com filhos, começou a fábrica de lingerie fazendo soutiens sob medida. Relato a MFW

em SP, 2000. 86 Ruth, 34, casada, com filhos, ativista política, trabalhou no comércio de roupas. Relato a MFW em SP,

2000.87 Dália, 27, casada, mas não teve filhos. Vendeu uma Bíblia relíquia para comprar a primeira máquina de

costura da fábrica de calças e camisas. Relato a MFW em SP, 2000.

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A reconstrução individual do elo de continuidade judaica no novo mundo ancorou-

se baseada na comunhão dos destinos e foi forjada na nova cidade, São Paulo, local onde os

valores puderam ser refeitos.

No início do processo de integração ao novo país e todas as dificuldades inerentes a

uma emigração forçada, o Brasil foi uma possibilidade favorável. A segurança física e o

cenário de crescimento econômico, tão divulgados entre os refugiados foram fatores

estimulantes, como podemos perceber no relato de Dália, uma ashkenazita: “Meu marido

fez um curso profissionalizante de caldeiras e turbinas, porque falaram que aqui tinha

grandes oportunidades e muita água, digo, litoral”.

O grupo cultural ashkenazita, ao imigrar, apresentava uma grande diferença entre os

demais grupos culturais. Diante da impossibilidade de portarem seus bens, valorizaram o

grande oceano que os separava do mundo das perseguições, mortes, humilhações e guerra,

para um mundo de esperança de uma vida digna, mesmo sem ter em suas mãos algo no que

apostar.

As mudanças que irão acontecer nos anos seguintes serão várias e o conflito sobre o

modo de vida judaico perpassará por várias etapas, e uma delas foi o abandono do idioma

ídiche, substituído pelo português como idioma do cotidiano. Essa alteração religiosa e

cultural, também, teve como ingrediente os outros grupos culturais judaicos, pois a partir da

década de 80 do século XX, uma nova fase de profusão dos costumes sefarditas está em

expansão.

Ao emigrar, os imigrantes do Oriente Médio, diferenciaram-se dos ashkenazitas, por

trazerem bens materiais e idéias não menos arrojadas que serviram de insumos na

implantação de uma economia de sobrevivência das famílias. Trouxeram em sua bagagem o

“capital” intelectual que se desdobrou nas iniciativas que ajudaram a desenhar a cidade de

São Paulo. “Além da coleção de Chamsa” (figura de mão como símbolo contra o mau-

olhado), ainda trouxemos o caderno de receitas de doces, que foi a base da minha

chocolataria artesanal, da qual sobrevivo até hoje.”88

88 Claudete, 28, casada e com filhos, faz e vende, desde então, doces artesanais. Relato a MFW em SP,2000.

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Conta uma das sefarditas entrevistadas, ou ainda, na declaração de uma de origem

oriental: “Tínhamos um plano arrojado que era baseado no interesse pelas pedras

brasileiras, já que nossa família trabalhava com ourivesaria, há varias ‘gerações.”89

A participação das três mulheres de origem sefardita e duas orientais, que aceitaram

contar sobre a luta pela sobrevivência é o resultado participativo possível de entrevistadas

de uma estrutura familiar judaica, acentuadamente, mais patriarcal e conservadora, se,

comparada com as mulheres oriundas da Europa Central e Oriental.

Acentua-se, ainda, como conseqüência da divisão dos papéis as questões sobre a

propriedade do capital, do prover e representar a família, tidas como atribuições

masculinas. Mesmo tendo como referência de origem, as mães das entrevistadas, que em

41,0% dos casos, já trabalhavam fora de casa com remuneração, podendo servir de

modelo para as iniciativas e alternativas de rentabilidade, porém, sempre relacionadas as

atividades ditas femininas. “Eu dava aula de órgão, que aprendi com as freiras italianas”,

comentário da sefardita Isabel.

Dentre comentários das ashkenazitas, podemos destacar a fala de Sofia: “As

mulheres ajudavam nas colheitas de morango, e as mais fracas cuidavam dos idosos e

doentes. Eram enfermeira.”

Regina relata: “Éramos feirantes de meias, e minha irmã, que era linda, trabalhava

como balconista”. NItza conta que: “Tínhamos um negócio de mulheres há muitas

gerações, fazíamos corsette e soutien e cintas.”

No universo pesquisado, houve grande resistência das entrevistadas em se

identificarem como empreendedoras, apesar das iniciativas econômicas realizadas.

Assim, cuidados semânticos foram necessários para o entendimento de palavras que não

raro podem ser tomadas como sinônimas: “trabalhar” e “ajudar”, característica do

patriarcalismo, cuja ótica atrela a identidade da mulher a seu marido.

Luiza acrescenta: “Eu comecei a costurar, não era trabalho. Depois fiz para as

amigas, e foi virando uma pequena produção, e o meu marido cuidava disso, eu só dava as

idéias. Deu certo, e assim é.”

Consideramos empresárias aquelas que arriscaram seu próprio capital investindo ou

transformando-o em produtos e serviços diversos (SANDRONI, 1987: 138-139), pelo uso

89 Margareth, 32, viúva com filhos projeto familiar de joalheria, hoje de envergadura internacional. Relato aMFW em SP, 2000

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de atributos próprios, independentes da participação de outros nas distintas fases do

processo.

Miriam diz: “Eu comecei sozinha para pagar a feira. Quando começou a dar certo,

é que meu marido largou seu emprego para me ajudar com as vendas.”

Para a ashkenazita Sofia, “Conhecemos um austríaco muito necessitado vendendo

um lote de couro de muito boa qualidade. Eu não deixei meu marido revender tudo, e

resolvi inventar como o meu pai fazia. Devo a ele a nossa fábrica de bolsas e carteiras.”.

A oriental Juliette declara:

Comecei vendendo meus próprios tapetes. Depois passei a importar através de contatoscom amigos de lá e com a ajuda do meu filho, que fazia as viagens. Assim que a situaçãodo meu marido se estabilizou, ele pediu que eu parasse com o negócio. Vendi o negóciopara um conterrâneo, mas continuo com uma participação. Até hoje eu falo para omeu marido que recebo dinheiro do meu filho para as minhas bobagens pessoais.

Há o relato de Linda, ashkenazita, que utiliza seu capital de conhecimento e de

risco. Ela trabalhou para o tio, por ter feito um curso profissionalizante de contabilidade.

Neste trabalho teve a oportunidade de negociar um lote de tecido que seria descartado, por

estar fora das especificações, e com ele costurou uma série de colchas em matelassê. Este

foi o embrião de seu negócio, que hoje exporta colchas e roupa de cama.

Há ainda o caso de Esmeralda, também ashkenazita, após a morte do marido, passou

a trabalhar como sacoleira em repartições públicas no Centro de São Paulo.

Ainda de Ruth, cujo marido foi perseguido político na Europa e no Brasil, por ser

socialista. Adquiriu capital para montar a sua loja, vendendo livros e quadros originais, que

são frutos do relacionamento que mantém até os dias de hoje com figuras de destaque no

universo cultural. A loja de roupas na Rua Rui Barbosa servia, inclusive, para acobertar as

atividades políticas de seu marido, pois no fundo da casa ficava a tipografia, que imprimia o

jornal ídiche.

Os empreendimentos na área de malharia e confecção representam 45 e 36,0% e

estão no ramo do comércio. Uma das pesquisadas monta uma joalheria baseada na

experiência familiar no ramo de ourivesaria. O caso do frigorífico repete esse mesmo

padrão:

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O relato da ashkenazita Zélia cita que: “O que trouxemos de mais importante foi a

faca de meu sogro que era shochet90. A partir dos conhecimentos que aprendi, observando

meu pai que era fazendeiro e meu sogro em suas atividades, é que decidi tentar o

açougue e depois ampliamos para um açougue convencional”

Diante do cenário pesquisado, 17 mulheres chegaram a São Paulo casadas e, das 22

entrevistadas, apenas duas não tiveram filhos. No período do início de seu empreendimento,

18 já eram mães, destas, 11, ainda tinham filhos em idade pré-escolar, para tanto tiveram de

contar com a participação do marido, parentes e ajudante contratada nas tarefas domésticas.

No início do empreendimento, 45,0% das mulheres trabalhavam em casa e podiam

administrar o próprio lar, era imperativo contar com apoio logístico para as tarefas

domésticas. É importante ressaltar que, quatro maridos, sendo eles ashkenazitas, dentre os

casos analisados, dividiam a responsabilidade dessas tarefas, dando suporte para que elas

pudessem dar andamento às atividades do empreendimento. Entretanto, isto nos remete ao

declínio do número de filhos por família, entre os três grupos culturais, embora houvesse

diferenças numéricas nas famílias de origem, possibilitando mais rápido às mulheres uma

imediata mudança de seu ciclo vital e, estando os filhos em idade escolar, abriram-lhes um

espaço de tempo produtivamente econômico.

O trabalho doméstico sendo entendido como um ciclo que cada dia se repete, as

tarefas diárias da casa deixam de ser valorizadas. Ao não serem reconhecidas como trabalho

e só notadas como importantes, quando não são feitas, isso pode explicar o interesse

demonstrado pelas mulheres, em geral, pelo trabalho não-doméstico. No entanto, embora

elas mesmas tenham se tornado empresárias, escorregavam nas respostas, apresentando

valores de sentido afinado com um padrão patriarcal:

Margareth, a oriental, relata que: “Algumas trabalhavam, mas era sinal de que o

homem não podia sustentar”. Esse comentário, reforça o patriarcado introjetado.

Não muito diferentes são os comentários entre as ashkenazitas, que ainda

minimizavam os feitos daquelas que estavam envolvidas com afazeres fora de casa:

Miriam considera que: “Não eram obrigadas, as casadas podiam ajudar os

maridos, as solteiras trabalhavam se quisessem”.

90 Shochet é aquele que aplica o abate de animais e aves (shechitá), prescrito pelas leis dietéticas para que acarne seja considerada “kosher” (apta ao consumo). UNTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas eTradições, p. 241.

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As mulheres entrevistadas foram as que, efetivamente, trabalharam e manifestam

opiniões compatíveis com o grupo familiar. Para garantir a possibilidade de exercer

atividades profissionais, preservando o código de conduta estabelecido dentro da família e

comunidade, a maioria delas criou esquemas, nos quais o “respeito” ao marido e pai

(autoridade masculina) fosse preservado.

“Tem que saber levar. Há artifícios como a subserviência” comenta uma

ashkenazita Luiza: “No meu caso, eu não tive opção, mas eu fazia isso escondido dos

amigos do meu marido”.91

Essas mulheres mesmo sendo responsáveis pela estabilidade econômico-familiar

submetem-se ao código patriarcal que receberam como modelo, exemplificado pela

autoridade do irmão mais velho, de família de origem oriental:

Segundo Margareth: “Não era bonito, mas no meu caso, eu estava cumprindo um

plano familiar. O meu irmão estava na Suíça montando a rede de lojas na Europa para as

jóias que eu aqui fabricaria”.

Pelo depoimento acima, não se surpreende que elas se recusem a serem

reconhecidas como empresárias, banalizando e minimizando suas iniciativas

empreendedoras e entregando esse mérito a seus maridos.

Samantha afirma que: “A mulher, que tem sucesso, não pode perder a humildade,

principalmente, com o marido. Guarde este lema!.”

Dentre as entrevistadas, Isabel, uma sefardita, fez questão de contar a respeito do

êxito de seu novo empreendimento. O lançamento do livro de culinária, fruto de seu

sucesso nas festas ao longo de sua história, que só poderia coroar a “Terceira Idade”.

Nem todas as entrevistadas, tiveram êxito nas atividades econômicas que

empreenderam, porém, de acordo com os códigos culturais, o efeito nos estudos e a

ascensão econômica dos filhos refletem a medida de sucesso valorizada pelo grupo

estudado.

Para as ashkenazitas como Nitza: “Essa união das pessoas que passaram pelo pior

é o que nos deu força para construir algo melhor para nossos filhos”. Ainda, para

Esmeralda: “O fato de ser imigrante permitia certas ousadias, ao mesmo tempo em que se

abria espaço para novas amizades e contatos.”

91 Relato de Claudete a MFW em SP, 2000. Op. cit. p.15.

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Esta visão é compartilhada pela entrevistada Juliette, de origem oriental: “Tinha o

espírito de não ter nada a perder.”

Por ser um grupo étnico que valoriza o êxito econômico, há um comportamento

tácito de também buscar soluções independentes da comunidade judaica. Este ponto é

reforçado quando analisamos a rede de relacionamentos apontada pelas entrevistadas para a

implementação do negócio. Dentro do universo pesquisado, a metade dos que participaram

dos empreendimentos, como clientes ou fornecedores, não pertenciam à comunidade

judaica, o que pode demonstrar, também, a iniciativa de ampliar ações, para além das

fronteiras do grupo.

Para Amelie: “A perspectiva de transformar o pequeno negócio iniciado na França

numa fábrica de lingerie que daria sustento a toda família.” Apesar de raramente assumir

o papel de empresária e, muitas vezes, dividir seu êxito com o marido e familiares ou com a

própria sorte, ainda menciona: “A gente precisa ter sorte na vida para tudo.”

Duas entrevistadas ashkenazitas que vivenciaram experiências em países

diferenciados, como na Suécia e Inglaterra, cidades cosmopolitas que valorizam uma

posição feminina de maior liberdade:

Rosa afirma: “A independência é o primeiro passo para a conquista da própria

identidade.” Assim, Samantha considera que: “Para a mulher a escola e o trabalho são

sinônimos de liberdade.”

Na declaração da entrevistada sefardita, Claudete: “Se não fosse a minha cara-de-

pau de entrar nos prédios, eu não teria chegado a lugar nenhum e nós teríamos

passado fome.”, e a oriental Juliette afirma que: “Foi uma questão de visualizar as

oportunidades e uni-las aos relacionamentos.”. Ambas exaltam sua contribuição na

liderança da solução financeira.

A pesquisa buscou avaliar as percepções das entrevistadas, sobre suas contribuições

à cidade de São Paulo por meio de suas iniciativas: Claudette, nascida em Alexandria,

declara: “Aqui não havia trufas de chocolate, só quando alguém recebia presentes de fora.

Passei pela fase onde o industrializado era o mais valorizado, e agora de novo o artesanal

é o bom. Eu sofri, mas sobrevivi.”92

92 Relato de Claudette a MFW em SP, 2000. Op.cit. p. 15.

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Seguindo a mesma linha, Margareth que comercializa jóias com pedras brasileiras

em São Paulo e, em outras cidades do mundo, acredita ter influenciado a valorização da

beleza destas pedras, inclusive entre as brasileiras.

O caso que interferiu no padrão estético de decoração de interiores, Juliette conta

que, muito antes dos europeus, os paulistanos já tinham acesso aos tapetes vulgarmente

conhecidos como “persas”.

Sofia, também da Europa, a dona da loja de artigos de couro acredita ter elevado os

produtos paulistanos à categoria européia: “Os produtos de couro, eram simples e de

péssimo acabamento. A minha fábrica trouxe um padrão europeu que transformou a cara

da cidade antiga para a de uma metrópole.”93

A mesma auto-percepção tem Myetta, a primeira e maior fabricante de manteaux do

Brasil, em seu tempo.

De origem alemã, Nitza cita que a empresa contribuiu para a mudança da moda

íntima: “Com o tempo, fui modificando os moldes de minha coleção. As peças foram

ficando cheias de rendas, decotes, bicos e bojo, mas não tanto quanto hoje!”94

Em um período de crescimento da cidade de São Paulo e de novas oportunidades no

mercado de trabalho às mulheres, temos o caso de Samantha, empresária de origem

polonesa, educada na Inglaterra, que considera ter implantado a moda para executivas,

usando a tecnologia de novos tecidos que se mantinham impecáveis, durante a jornada. “Os

modelos de soutien que eu trouxe da França eram ultramodernos, eles modelavam. Não

havia nada parecido aqui”, declara Regina que aprendeu a profissão com sua tia

ashkenazita.

Considerações finais

Sendo o período estudado período econômico favorável face às altas taxas de

crescimento, o mercado produtivo reagiu, criando uma forte demanda. As empresas

crescendo e tornando-se complexas, abriam espaço para a contratação de mão-de-obra

administrativa. No entanto, o papel central familiar continua sendo adequadamente exercido

nas pequenas e médias empresas (PISCITELLI, 1999:13).

93 Sofia, 26, casada com filhos, aproveitou sobras de couro para aplicar conhecimentos técnicos absorvidospela observação da atividade profissional do pai, na origem. Relato a MFW em SP, 2000.94 Nitza, 36, casada com filhos criou uma marca de roupa íntima. Relato a MFW em SP, 2000.

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Neste contexto, as imigrantes puderam produzir recursos para resgatar o padrão

familiar de consumo, num contexto social de aumento geral da participação feminina no

mercado de trabalho. Essas atividades eram em sua maioria habilidades desenvolvidas no

ambiente familiar, o que “borra” (BRUSCHINI, 1994: 194) a percepção sobre a capacidade

técnica e o dom, permitindo uma minimização do caráter profissional.

Para os casos estudados, estas mulheres tinham um capital cultural que as

diferenciava e as colocava afinadas com a camada social dominante. Eram preponderantes

nas decisões do processo produtivo, pois criavam e reproduziam os gostos e padrões de

consumo, de acordo com as camadas mais abastadas, consolidando seu papel de mentoras,

ainda que em atividades fortemente relacionadas ao universo feminino.

Diante das conquistas relativas, as mulheres e os familiares começaram a participar

transformando rapidamente em “nosso” o resultado do trabalho, sem caracterizar o dinheiro

ganho como de propriedade da empreendedora. De acordo com Scott (SCOTT, 1990: 86),

constatamos, que as mulheres ainda, necessitam da aprovação dos homens em suas

conquistas comerciais e, assim, mantêm a subordinação à competência do masculino.

Assim, envolvidas com a imagem idealizada de suas funções femininas, abriram

mão do poder e da autonomia financeira para serem reconhecidas em seu papel “maior”:

encaminhar os filhos para serem motivos de orgulho familiar; administrar o orçamento e o

lar, exemplarmente, sem, contudo, deixar de ser a esposa ideal. Neste sentido, este trabalho

mostrou-se diferente de outros estudos sobre empresários, como o de Piscitelli (1999: 97),

que afirma ter encontrado “um tom neutro dentro das atividades de descendência”. Ao abrir

mão, da autoria de suas iniciativas, a maioria permanece omitindo atitudes relativas à

competência do universo masculino.

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No entanto, os papéis passaram por mudanças que podem ser constatadas entre as

descendentes, que mesmo não tendo sido envolvidas no negócio familiar, são graduadas e

exercem suas profissões. Fato relevante para os imigrantes, em geral, que apostaram numa

ascensão social, também, via projeto educacional e profissional dos filhos (OSMAN, 1997:

27), exceção feita às filhas de famílias religiosas que se dedicam à vida doméstica. Reforça-

se aí uma característica destas empreendedoras que não projetaram durabilidade de seus

negócios, privilegiando a ambição e vocação de seus descendentes. Esse desdobramento

pode ser justificado por uma percepção de atuação econômica circunstancial e sem

significado.

Surpreendeu-nos, em especial, a banalização demonstrada, nas histórias recontadas

sobre as iniciativas e conquistas alcançadas. E diante de um questionamento mais profundo

a questão da preservação dos segredos sobre as iniciativas femininas foi reafirmada e

apresentada como uma articulação para a manutenção da harmonia familiar, pois esta, ainda

permanece alicerçada no código da família patriarcal-judaica que faz uma clara referência à

divisão de papéis de gênero.

Pelos relatos, verificamos que a diferenciação sobre os graus de conservação das

relações patriarcais judaicas contrapõe-se às personalidades marcantes, que ousaram e com

muita coragem e energia, assumiram riscos. Da ação educativo-idiomática passando pelos

ajustamentos relativos aos mecanismos econômicos, as regras sociais, entre outros

aprendizados. As mulheres teceram, dia a dia a rotina familiar reafirmando o valor da

família. Dessa maneira, mantêm suas iniciativas restritas ao âmbito privado, eternizando a

divisão de papéis de gênero. Diante da densa neblina, que encobre a divisão entre o espaço

público e privado, as histórias permanecem como “segredos nossos”.

A singularidade das histórias que compõem este trabalho dá significado ao reexame

do ângulo da visão e à possibilidade dos ecos na sociedade patriarcal judaica, grifada pela

pequena participação numérica, mas significativa, das vozes vindas entre as sefarditas e

orientais. Mais resistentes às mudanças, ao diferente, tornam inconcebíveis certas

conquistas, mantendo com eufemismos os sorrisos e olhares condescendentes.

A pesquisa pretendeu reler os velhos momentos, embora pareçam novos ou, de fato,

momentos de inflexão que cada fala tem, ao perturbar o movimento previsível dos grupos

culturais judaicos. Desse modo, apoiados, nesta questão, apresentamos algumas nuances

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que percorreram o cotidiano das entrevistadas, trazendo a necessidade de reconhecer o

contexto e as possibilidades não somente de ser, mas estar na comunidade. Os resultados

prevalecem na questão de gênero ou sexo, neutralizando outras tantas variáveis, alinhadas

aqui.

BIBLIOGRAFIA

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CAPA: o jeito luterano de atuar com os pequenos agricultores no sul do Brasil95

Tarcísio Vanderlinde96

RESUMO A idéia do Capa – Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor – é considerada como o sinalluterano de se envolver com a questão da terra: voz e presença da IECLB – IgrejaEvangélica de Confissão Luterana no Brasil – na realidade agrícola brasileira, marcadapor tanta injustiça na terra. A idéia se identifica com a formulação da identidade da IgrejaLuterana no Brasil e preconiza, juntamente com os pequenos agricultores, num processo delibertação, a construção de uma “nova paisagem” no meio rural.

PALAVRAS-CHAVE: IECLB, mediação, identidade, pequeno agricultor, Capa.

ABSTRACTThe idea of Capa - Small Farmer Support Center – is considered to be a Lutheran sign ofgetting envolved with the land issue: the voice and presence of the IECLB – EvangelicalChurch of Lutheran Confession of Brazil – in the Brazilian agricultural reality, marked byso much injustice on the land issue. The Idea finds its identity with the formulation of theidentity of The Lutheran Church of Brazil and, in a liberation process, it commends, alongwith the small farmers, the building of a “new landscape” in the rural areas.

KEYWORDS: IECLB, mediation, identity, small farmer, Capa.

A título de introdução e esclarecimentos

Em número anterior desta revista (VANDERLINDE, 2002a:61-88), desenvolvemos

artigo onde se discutiu o surgimento da IECLB e a emergência do Capa no oeste do Paraná.

O artigo havia se originado de Dissertação de Mestrado e envolveu a temática da agricultura

familiar e formas associativas no campo. Como estudo de caso, a investigação levou em

conta o surgimento e o modus operandi do Capa, com recorte espacial para o núcleo oeste

do Paraná (VANDERLINDE, 2002b). O presente artigo retoma a questão e aprofunda a

discussão no que concerne aos aspectos relacionados à mediação desenvolvida pelas

entidades aqui mencionadas: IECLB e Capa. No que se refere ao surgimento do Capa, a

95 O artigo em pauta emerge de Tese de Doutorado defendida pelo autor, intitulada “Entre dois Reinos: ainserção luterana entre os pequenos agricultores do sul do Brasil”.

96 Doutor em História pela UFF (Universidade Federal Fluminense). É professor do CCHEL – Centro deCiências Humanas, Educação e Letras, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. E-mail:[email protected].

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discussão leva em conta novas fontes coletadas durante a fase atual da pesquisa e que

culminou em Tese de Doutorado.

Sobre as origens do Capa

O Capa - Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor caracteriza-se como organização

não-governamental ligada à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil - IECLB.

Juridicamente constitui um departamento da Instituição Sinodal de Assistência Educação e

Cultura – Isaec/Capa, sendo reconhecida como entidade filantrópica.

O XIII Concílio Geral da IECLB, em 1982, tratou do tema “Terra de Deus – Terra

para todos”. No documento final do concílio o Capa é reconhecido como instrumento de

apoio aos objetivos propostos, em sinal de compromisso da Igreja com a continuidade da

proposta original, orientando-se sempre pela própria recomendação do Concílio Geral:

“Todo o processo de conscientização, de sinais de apoio, reivindicações e propostas

concretas deve ser marcado à luz do Evangelho, por um espírito de amor, diálogo e

persistência luterana” (HISTÓRICO DO CAPA, 2003).

A organização objetiva principalmente promover a união dos agricultores familiares,

visando à diversificação da produção e à comercialização, além de desenvolver tecnologias

que preservem o meio ambiente. Visa, igualmente, na sua concepção resgatar a consciência

da função social da terra, como produtora de alimentos sadios e abundantes para o povo,

além de apoiar e lutar pelo desenvolvimento da saúde comunitária.

No ícone que representa o Capa, a cruz que aparece no símbolo da Igreja Luterana

“transforma-se” numa cruz ecológica e lembra uma semente brotando, “ressuscitando”. É

uma cruz viva que pode representar vida. O globo de onde “brota” a “nova cruz” ou uma

“nova semente” assenta-se sobre o ícone de um livro que pode indicar os novos

conhecimentos agroecológicos mediados pelo Capa mas que se adequam também aos

ensinos de Lutero e ao que está escrito na Bíblia. A “nova cruz” do Capa pode ser entendida

como um símbolo de libertação.

Considerando os efeitos da modernização agrícola, a exclusão dos pequenos

agricultores e os efeitos nefastos às vezes provocados pelas migrações destes, o Capa, no

início, foi relacionado a uma “agricultura libertadora”, que poderia viabilizar a permanência

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do agricultor em sua pequena propriedade. Ao ressaltar o significado místico da agricultura

libertadora, Hélio Musskopf retrata o contexto que legitima o surgimento da entidade:

Desde os tempos de Abraão, o povo migrava para a ‘terra prometida’, para Canaã. Aindahoje, no Brasil, o povo continua migrando, talvez não pelas mesmas razões. O povo do suljá procurou os Estados do Paraná, do Mato Grosso e Território de Rondônia. Já migrou atépara países vizinhos! Muitos tentaram voltar. Muitos morreram na peregrinação. Alguns sederam bem. Outros choram saudade da terra natal. Projetos de colonização levaram, econtinuam levando, muitos de um lugar para outro. Desalojados pela construção debarragens, as pessoas marcham forçadas rumo às novas áreas. O capitalismo selvagemimpõe técnicas e políticas agrícolas que acabam levando pequenos agricultores aodesespero, à miséria, à venda de suas terras para pagar dívidas acumuladas, àmarginalização rumo às luzes artificiais das cidades ou aos acampamentos às margens dasestradas, senão ao crime. Até quando o povo migrará ‘porque lhe falta o conhecimento’(Oséias 4.6)?”(MUSSKOPF,1982:66).

A IECLB tem sua história marcada pela trajetória dos pequenos agricultores. No

tempo presente, apesar do êxodo rural, ainda metade dos membros da Igreja vive em áreas

rurais, enquanto que a realidade demográfica brasileira aponta para uma alta concentração

da população em zonas urbanas. O processo de modernização da agricultura no país afetou

profundamente a vida dos agricultores familiares. Uma forte intervenção do Estado através

do crédito subsidiado para a adoção do novo padrão tecnológico, baseado nos insumos

agroquímicos e na mecanização, rompeu a lógica da agricultura familiar, cuja trajetória foi

de uso intensivo de mão-de-obra e diversificação de culturas agrícolas. A mudança de

relações de produção também resultou em novas relações sociais. A lógica do mundo da

colônia, de que quem trabalha progride, passou a não valer mais. Passou a progredir quem

tivesse acesso ao crédito e condições de desenvolver uma agricultura de capital intensivo.97

Nos anos 80 do século passado, os efeitos negativos do modelo de desenvolvimento

da agricultura brasileira eram evidentes. Houve concentração de terra, degradação do meio

ambiente e aumento das diferenças sociais no campo. A colonização das áreas do Centro-

Oeste-Norte do país, proposta pelo governos militares como uma alternativa para a não-

realização da reforma agrária no Sul, revelou-se como um “grande fracasso”. As cidades

cresceram rapidamente, surgindo os grandes cinturões de favelas. O emprego urbano já nãopara ter direito ao pão de cada dia, precisa ser revisto em decorrência das profundas mudanças pelas quais asociedade está passando. “O rolo compressor da modernidade avança sem se importar muito com os quevão sendo esmagados, ou seja, aqueles que não encontram mais espaço para viver dignamente a partir dosfrutos de seu trabalho” (CHRISTMANN, 2003:2).

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era mais um forte atrativo para o êxodo rural. O Capa emerge nesta circunstância e, desde a

sua fundação, passa a desenvolver iniciativas para auxiliar os agricultores diante do

contexto de exclusão no campo que se foi instalando(HISTÓRICO DO CAPA, 2003: 18-

19).

Além de buscar, juntamente com os agricultores, o “conhecimento que liberta” e

permitir que o agricultor permaneça em sua pequena propriedade, o Capa surge com o

objetivo de empenhar-se em apoiar e estimular o sindicalismo e desenvolver políticas no

sentido de reduzir o êxodo rural, em especial o dos jovens. Segundo Arzemiro Hoffman, o

trabalho desenvolvido pelo Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor, ao longo de sua

existência, vem demonstrando sua eficácia na construção da cidadania no meio rural. A

consulta às fontes indica que os resultados alcançados pela entidade se viabilizam, pela via

técnica e comunitária. Afirma o pastor que "a construção cidadã de pequenos agricultores

exigiu sempre um esforço pedagógico de perceber o lugar vivencial onde o grupo se

encontra (seu hábitat, seus costumes, suas referências...) para, a partir daí, construir

alternativas viáveis para sua sobrevivência econômica e social” (HISTÓRICO DO CAPA,

2000:1)98

É possível concluir que o propósito do Capa, como uma entidade não-governamental,

vincula-se aos interesses da IECLB em relação mediata, porém não exclusiva, com os

evangélico-luteranos.

O Capa, como entidade mediadora da IECLB, envolve-se com a idéia de que é

possível construir uma nova paisagem no meio rural. Uma paisagem que inclua a inserção

responsável do homem sem necessariamente deteriorar o ambiente onde ele está inserido.

Uma tarefa que não é considerada fácil e exige considerável esforço e sabedoria de todos os

envolvidos na empreitada. A idéia parte da constatação de que a revolução verde não

resolveu qualitativamente o problema alimentar, além de deteriorar significativamente o

meio ambiente com a introdução maciça dos chamados agrotóxicos. As conseqüências disto

foram as mais perversas possíveis, fazendo os agricultores abandonarem práticas saudáveis

de uso do solo em busca do lucro rápido. Este pode ser considerado o cenário em que atua o

Capa. Além de estimular a desintoxicação da terra, preocupa-se também em “reeducar” o

agricultor no sentido de não apenas garantir sobrevivência a ele e à sua família, mas

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também proporcionar mais saúde a produtores e consumidores. Esta pode ser entendida

como a “nova paisagem” preconizada pelo Capa. Uma paisagem em que se possibilita a

reconstrução de um ambiente saudável para todos.

A origem do Capa está diretamente ligada à história da IECLB cuja trajetória

acompanha o mesmo movimento que trouxe os imigrantes alemães para as "colônias

velhas", ou seja, as primeiras regiões colonizadas a partir de 1824, na região do Vale dos

Sinos. Com a expansão da fronteira agrícola e o deslocamento de colonos para outras

regiões do Estado/País, a IECLB, também foi ampliando sua área de intervenção.

Primeiramente em direção às "novas colônias" e, mais tarde, para o noroeste do Rio Grande

do Sul e oeste de Santa Catarina, para onde foram "empurrados" os descendentes dos

colonos alemães. Os latifúndios instalados nas terras planas do sul se impunham como uma

barreira intransponível a impedir que a nova corrente migratória para lá se dirigisse.

Na conferência dos pastores regionais realizada nos dias 17 e 18 de maio de 1978, é

criado o Capa, iniciando as suas atividades em 15 de junho de 1979, na cidade de Santa

Rosa/RS, atuando numa área que inicialmente abrangia 112 municípios do noroeste do Rio

Grande do Sul e oeste de Santa Catarina. O Capa, em suas diferentes fases, foi financiado

por entidades da Alemanha. Atualmente, o Capa é financiado pela Associação Evangélica

de Cooperação e Desenvolvimento – EZE/EED99. Apurou-se que os recursos, destinam-se à

formação de um fundo rotativo destinado a pequenos empréstimos aos agricultores

familiares, fundos que seriam ressarcidos posteriormente em produtos agrícolas. Além

disso, os recursos são destinados à manutenção e operacionalização técnica e administrativa

da entidade.

Constatou-se que há uma preocupação, por parte da entidade, em torná-la menosposteriormente recursos públicos para viabilizar seu trabalho. A organização apóia otrabalho no campo do desenvolvimento realizado por igrejas e outras ONGs. A entidadecoopera com parceiros em mais de 80 países da África, Ásia, América Latina e Caribe,freqüentemente por intermédio de Conselhos de Igrejas nacionais e regionais, e com aassistência de agências especializadas em desenvolvimento(Folder de divulgação da EZE,s. d.). Em 2001, juntamente com mais três outras organizações ligadas às igrejasevangélicas na Alemanha se integraram a EDD (Serviço das Igrejas Evangélicas naAlemanha para o desenvolvimento). A informação consta em correspondência da EDDendereçada ao Capa, núcleo de Marechal Cândido Rondon, Pr, 11 de junho de 2001.

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dependente de recursos externos. Em carta encaminhada pela coordenação do Capa, núcleo

de Marechal Cândido Rondon, PR ao secretário de agricultura do município, ficou explícito

que mais de 90% dos recursos ainda são externos, provindos da solidariedade internacional,

basicamente da EZE (SAAR, 2001).

Nos primeiros anos, as atividades do Capa ficaram limitadas à 3ª Região Eclesiástica

da IECLB, região onde foi idealizado o projeto.100 A intenção, no entanto, era estender o

trabalho a âmbito nacional, utilizando as estruturas existentes da IECLB. Atualmente o

Capa conta com cinco núcleos de atuação no sul do Brasil: Marechal Cândido Rondon e

Verê no Paraná, Erexim, Santa Cruz do Sul e Pelotas no Rio Grande do Sul. O núcleo de

Marechal Cândido Rondon atua no oeste Paranaense enquanto que o de Verê no sudoeste

do mesmo Estado. O núcleo de Erexim tem sua área de abrangência no norte do Rio Grande

do Sul e oeste de Santa Catarina. O núcleo de Santa Cruz do Sul tem sua abrangência na

região central gaúcha, enquanto que o de Pelotas atua no sul daquele Estado. A

concentração de sínodos101 no sul do país revela a região histórica da colonização alemã,

onde ainda permanecem o maior número de famílias e predomina a pequena propriedade. É

interessante observar que os 13 sínodos que se concentram no sul do país equivalem

aproximadamente à área geográfica do Sínodo Brasil Central. Em dados estimados, os 13

sínodos contam com 232.550 famílias-membro, enquanto que o Sínodo Brasil Central conta

com apenas 500 famílias. O número de famílias dos 5 sínodos restantes, perfazem 17.800

famílias. Destaca-se o Sínodo Espírito Santo a Belém com 13.000 famílias. O número

relativamente elevado de famílias-membro neste sínodo mais ao norte do país, deve-se a

colonização luterana que aconteceu no Estado do Espírito Santo (SCHÜTZ, 1999: 75-

77)102.

A rede Capa, de atendimento aos pequenos agricultores localiza-se no sul do país

onde há maior concentração de famílias e pequenas propriedades. De acordo com

informações coletadas junto a coordenação do Capa do Município de Marechal Cândido

Rondon, PR, talvez só em Rondônia e no Espírito Santo poderiam ser desenvolvidos

serviços semelhantes ao que o Capa realiza no sul do país. Para Rondônia teria emigrado

102 Conforme dados disponibilizados pela edição especial do Jornal Evangélico Luterano de outubro de 2002,a IECLB contava com 644.644 pessoas distribuídas em 1624 comunidades e 422 paróquias nos seus 18sínodos.

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número razoável de pequenos agricultores luteranos do sul, e, quanto ao Espírito Santo,

pela forma de colonização de luteranos lá havida. Mencionou-se que no caso do Estado do

Espírito Santo, este já possuiria trabalho similar ao que é realizado pelo Capa nos estados

do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Em seus cinco núcleos de atuação no sul do

Brasil, o Capa atende hoje cerca de 4,5 mil famílias (JORNAL EVANGÉLICO

LUTERANO, 2001: 1).

O Capa nasce com proposta alternativa de produção e consumo no mesmo momento

em que explodem, na região, ao final dos anos 70, as lutas sociais e políticas que se

constituíram nos quatro principais movimentos de trabalhadores rurais, ou seja, Movimento

Sindical Combativo, Movimento dos Sem–Terra, Comissão Regional dos Atingidos por

Barragens e Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais (NOVA PAISAGEM, 1998).

A proposta do Capa se fundamenta na disseminação de práticas alternativas,

econômica e ecologicamente sustentáveis, questionando o modelo de desenvolvimento e o

papel da extensão oficial, contrapondo-se aos “pacotes” da modernização e aos vínculos de

dependência criados pela integração do pequeno agricultor familiar à agroindústria de

alimentos.

Ao destacar 103 experiências inovadoras no meio rural gaúcho, Markus Brose ressalta

que, no auge da expansão do pacote tecnológico da revolução verde no interior do estado, a

Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil - IECLB passou a se preocupar cada vez

mais com o crescente número de seus membros que se tornaram migrantes e deixavam as

comunidades rurais, em especial aqueles que se dirigiam a Mato Grosso e Rondônia. Em

meados dos anos 70, foi criado o Centro de Aconselhamento ao Migrante - Cami, que

procurava assessorar estas famílias migrantes. No entanto, diante do vulto que o movimento

de êxodo acabou tomando, a IECLB decidiu tentar atuar junto à origem do problema, já que

a causa desta situação não estava nas famílias dos produtores, mas no modelo então vigente

no campo (BROSE, 2000:169).

Cabe ressaltar que a entidade, em seu modus operandi, dá relevância à informação,

que é feita de forma diversa, ou seja, nas reuniões, ou através de outros meios de

comunicação. Neste caso, os panfletos explicativos e cartilhas são de uso corrente entre os

associados103. Sobre o informativo técnico-rural “Nova Paisagem”, registre-se que começou103 Vale destacar, neste contexto, o desenvolvimento do projeto Terra Solidária, em curso no núcleo de

Marechal Cândido Rondon, que visa possibilitar que os agricultores concluam o ensino básico através demódulos ministrados periodicamente. Entre outros objetivos, este projeto visa preparar agricultores como

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a ser publicado em dezembro de 1979. Em 1988, ainda como suplemento do Jornal

Evangélico, atingia um público de 12.000 leitores. Registra-se, igualmente, o programa de

rádio que era produzido pelo Centro de Produção da Material (CEM), gravado nos estúdios

da Instituição Sinodal de Assistência, Educação e Cultura (ISAEC) em São Leopoldo,

transmitido por 20 emissoras, em espaços patrocinados por empresas comerciais locais.

De acordo com Vilmar Saar, o surgimento do núcleo do Capa no oeste do Paraná

aconteceu em função de um esforço comunitário envolvendo membros e obreiros da

IECLB, e, considerando que a região é de caráter predominantemente agrícola. Segundo

Saar, o Capa faz um trabalho a partir de organização de grupos de pequenos agricultores,

desenvolvendo paralelamente serviços técnicos de apoio à produção, comercialização,

divulgação técnica e relações institucionais, onde a entidade busca as mais diversas formas

de parcerias com outros órgãos e prefeituras. Questionado se o trabalho do Capa, surgindo

sob a égide da IECLB, não estaria apenas voltado aos interesses dos agricultores luteranos,

Vilmar esclarece tratar-se de um trabalho ecumênico, onde não há distinção de

confessionalidade, muito embora a origem possa ser luterana, principalmente em se

tratando dessa área de atuação, ou seja, a agricultura familiar. Vilmar informa que, em

muitos lugares onde atua o Capa, este conta com apoio de lideranças que pertencem a

outras denominações religiosas (SAAR, 2000).

No contexto do serviço pastoral luterano no campo, a criação do Capa e, o

estabelecimento de novas diretrizes pastorais a partir do ano de 1979 é saudado como um

importante passo na mudança da posição da Igreja, evidentemente dentro de um processo

antecedido por diversas discussões teológicas. Werner Fuchs104 se refere ao Capa como um

bom exemplo de combinação entre assistência técnica e organização sociopolítica (SAUER,

agentes de desenvolvimento rural. 104 Pastor militante no meio agrário luterano, é autor de vários artigos que relacionam a IECLB com sua

função social no campo. Escreveu Under tents of black plastic sheets or de agrarian question and thechurch: complicity and new challenges. Paper presented at the bi-annual meeting of the Latin American andCaribbean committee of the National Council of Churches of Christ in the USA. Stony Point, NY, April 13,1992. O pastor Fuchs, através da Comissão Pastoral da Terra, teve uma atuação relevante na luta pelosatingidos pela barragem de Itaipu no Paraná, no final dos anos 70 e início dos anos 80. Auxiliou osagricultores da região na fundação do Movimento Justiça e Terra. Em agosto de 2003, entre outraslideranças ligadas à CPT, organizou os “25 anos dos atingidos de Itaipu”. Tem participação ativa nasRomarias da Terra no Paraná. Na 18ª edição, que aconteceu na cidade de Guaíra no Paraná (31 de agosto de2003), Werner Fuchs proferiu a mensagem principal do evento. No que se refere a militância de pastores,registre-se a atuação do pastor luterano Gernote Kirinus eleito deputado estadual pelo Paraná em 1978.Gernote se reelegeu por duas vezes. Lançando-se candidato a deputado federal não consegue se eleger em1990. Sua atuação se deu principalmente no oeste do Paraná a partir do momento em que surge oMovimento Justiça e Terra.

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1996: 128-129).

Entre os que se integram à entidade, é entendido que o Capa tem por missão

contribuir ativamente na promoção do desenvolvimento que proporcione vida digna a todas

as pessoas, sendo que as suas ações estão centradas no fortalecimento da cooperação e

organização da agricultura familiar para a produção agroecológica, utilizando metodologias

de trabalho que valorizem a participação e o conhecimento local, associem a teoria com a

prática e promovam a eqüidade das relações, autonomia e bem-estar das famílias. A

estratégia de intervenção do Capa tem como elementos centrais: buscar a autonomia dos

agricultores familiares; o fortalecimento da organização dos agricultores; o trabalho com

grupos organizados para irradiar as ações; a construção de alianças e parcerias para

potencializar as ações; considerar as diferentes perspectivas; de gênero e de geração;

influenciar as políticas públicas rumo à agricultura sustentável, como componente do

desenvolvimento sustentável; proporcionar espaços de formação e buscar elevar o nível

educacional (escolarização); promover o protagonismo dos agricultores familiares”.105

O Capa, no seu objetivo de levar solidariedade e sustentabilidade ao agricultor

familiar pela via da agroecolgia, procura mostrar aos agricultores que por ela são apoiados

que aquilo que se chama hoje de agricultura convencional é, na verdade, agricultura

predatória, não sustentável e traz danos à saúde de homens e animais. Como foi possível

constatar na investigação realizada, esta não é uma tarefa das mais fáceis. O trabalho do

Capa foi definido por um dos seus técnicos como sendo uma gota d’água no oceano, tal a

predominância, na área de sua atuação, da agricultura convencional, que é aquela que

funciona a jusante das indústrias e do comércio de agrotóxicos. É possível imaginar aí uma

luta de Davi contra Golias, e que, a exemplo do relato bíblico, poderá ter igualmente um

final feliz. Muitos dos agricultores que são assistidos pelo Capa podem ser considerados

“sobreviventes” da revolução verde e vêem nessa entidade a possibilidade de reconstruir

suas vidas com qualidade, enquanto agricultores familiares, na medida em que,

progressivamente, reconstroem a biodiversidade de suas pequenas propriedades.

105 Lembrado pela equipe coordenadora do Capa-Erexim,RS, ao responder a questionário sobre “Os doisreinos”, elaborado por este historiador. Erexim, Abril, 2003.

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A construção do sagrado nos processos de mediação

Um dos aspectos considerados relevantes nos processos de mediação refere-se a

construção da mística ou do sagrado. A fundamentação religiosa dos discursos de mediação

é entendida como uma força motivadora e propulsora das lutas dos agricultores. Em

entrevista concedida a este historiador, Sérgio Sauer comentou sobre as dificuldades que

acompanham os processos de mediação na transição da “mística” para a “prática” nos

assentamentos. Entre outros assuntos considerou que ainda estaria para ser elaborada uma

“teologia da terra” neste particular (SAUER, 2003).

A construção da mística faz parte do discurso de mediação em que se envolvem

entidades religiosas, procurando motivar o agricultor nos objetivos que se pretendem

alcançar. Trata-se de criar referenciais e visões de mundo, onde o sagrado indica um

caminho viável a ser seguido. A mística é capaz de criar um encantamento na luta do

agricultor e um historiador atento poderá identificá-la em muitos movimentos e momentos

relacionados à história dos camponeses. O camponês tem uma religiosidade que nem

sempre coincide com aquela que lhe chega mediada por entidades religiosas. Através de sua

religiosidade, assim como nos “silêncios” e seus significados, o camponês também resiste e

avança. É o contato com a natureza e a percepção da seqüência dos dias e estações que

formulam uma experiência “espiritual” própria ao camponês. Este sentimento

fundamentado numa concepção de vida pode entrar em sintonia com outros discursos mais

“refinados” mediados pelos agentes religiosos.

José de Souza Martins, além de outros pesquisadores, estiveram atentos a este

particular e registraram exemplos da formulação e da intenção que acompanha a construção

da mística entre camponeses (MARTINS, 1994). É também da compreensão de Pierre

Bourdieu que o interesse religioso tem por princípio a necessidade de legitimação das

propriedades simbólicas associadas a um tipo determinado de condições de existência e de

posição na estrutura social. Neste caso, a mensagem religiosa mais capaz de satisfazer os

interesse religioso de um grupo determinado de leigos, e de exercer sobre ele o efeito

propriamente simbólico de mobilização, é aquela que lhe fornece um sistema de

justificação das propriedades que estão objetivamente associadas ao grupo na medida em

aquele ocupa uma determinada posição na estrutura social (BOURDIEU, 1987: 51).

Ao desenvolver sua tese sobre os processos de organização da vida cotidiana nos

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assentamentos rurais, Davi Felix Schreiner, analisa a construção da mística através da

mediação. Informa o autor que, subordinados nos processos de expropriação, fragmentação

e apropriação do território, pelo capital, os camponeses conseguem construir uma

insurgência em muitos casos motivados por referenciais político-religiosos da Teologia da

Libertação mediados pela CPT, que os levaram a traduzir seus próprios valores em

movimentos que se caracterizaram como resistência transformadora com repercussões para

além do espaço local (SCHREINER, 2002: 12-13).

A base para a construção da mística remete à “tradução” que a CNBB e a CPT

fizeram a partir da denúncia do modelo de modernização excludente implantado durante o

ciclo militar. De acordo com documentos da CNBB mencionados por Schreiner, expressões

como “Terra para quem nela trabalha” e “A terra é uma dádiva de Deus”, passaram a ser

incorporadas pela CPT e transmitidas em cantos, imagens, rituais, orações, cadernos de

formação, material de apoio para reuniões nas CEBs e de preparação para as Romarias da

Terra (SCHREINER, 2002: 169-170). A teologia da libertação, na ação mediadora da CPT,

reatualiza os valores de uso da terra e, através da interpretação bíblica, deu legitimidade

moral à mobilização dos trabalhadores sem terra ou com pouca terra que, fortalecidos pela

idéia, passaram a realizar acampamentos e ocupações. Na visão de Schreiner,

compartilhada por Douglas Teixeira Monteiro, o acampamento é compreendido como um

espaço e tempo de reencantamento, num processo de reconstrução que se faz a partir de

valores ameaçados pela crise, mas que pode ultrapassar este sentido. Neste caso, o

reencantamento na luta dá-se pela materiliazação de valores referidos à modernidade. Em

seu estudo, o autor revela que a CPT teve papel hegemônico na elaboração deste amálgama,

substrato para coesão interna necessária à ação coletiva direta dos agricultores

(SCHREINER, 2002: 171-174).

Inspirado pelos escritos de Thompson, e, considerando o processo que provoca o

encantamento, Schreiner chama ainda atenção para a criação dos símbolos mediadores

como a bandeira, a cruz de cedro ou outros da cultura camponesa que imbricados a

elementos de ordem moral, como honestidade, confiança, sacrifício, reforçam laços de

solidariedade, transformando o cotidiano presente em potencialidade do futuro. Em

decorrência, aparece uma cultura rebelde, que subverte ao reviver formas socioculturais

tradicionais e ao mobilizar para a luta através da interpretação e significação que os

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camponeses conferem às próprias existências (SCHREINER, 2002: 181-182).

A partir de 1930, com as frentes pioneiras de colonização, logo que o grupo de

migrantes se instalava, construíam uma capela para cultos e missas. Schreiner enfatiza que

a disposição geográfica das capelas representa a centralidade religiosa na vida da

comunidade. Os ritos e símbolos religiosos, seus significados, importantes na vida cotidiana

do acampamento para coesão, mobilização e fortalecimento da luta, foram recriados no

assentamento numa perspectiva tradicional, tanto pelos assentados, quanto pela presença da

Igreja (SCHREINER, 2002: 220). Não é difícil compreender que havia uma certa facilidade

em construir o encantamento nos processos de luta pela terra a partir da “mística” que de

certa forma constitui uma característica aparentemente inata à vida camponesa.

Em que pese a crítica de Martins, a criação da CPT pode ser considerada como um

elemento mediador que deu um novo fôlego ao trabalho pastoral no meio rural, envolvendo

inclusive outras igrejas, como foi o caso da IECLB. Numa reflexão compartilhada com Ivo

Polleto, Cândido Grzybowski e Vitor Westhelle, Sérgio Sauer, destaca que, desde o

princípio, estavam muito claros e explícitos a intencionalidade e o compromisso, por parte

da CPT, de afirmar e lutar pela autonomia e pelo protagonismo dos próprios trabalhadores e

trabalhadoras. A CPT procurou desenvolver sua atuação pastoral tendo em vista a

valorização da autonomia dos movimentos sociais, o que resultou inclusive na articulação e

organização do MST, postura esta, segundo o pesquisador, freqüentemente reafirmada e

enfatizada pela CPT. Na prática, no entanto, essa postura acabou sendo marcada, às vezes,

por um basismo simplista ou por um direcionamento político que ia além de uma simples

assessoria ou apoio às lutas. Sauer qualifica a ação da CPT afirmando que a postura política

de colaboração e reafirmação constante da autonomia dos movimentos sociais foi

determinante para consolidar canais de expressão do protagonismo dos próprios

trabalhadores e trabalhadoras. Afirma que a prática pastoral partindo de demandas, lutas e

perspectivas concretas dos trabalhadores acabou dando qualidade à mediação política e

oportunidade para o crescimento das lutas no campo. Uma das dificuldades foi reduzir toda

essa riqueza prática a uma concepção limitada da própria ação pastoral. Sauer reafirma que

a freqüente reafirmação dessa concepção de serviço impediu um enriquecimento das

reflexões e uma maior elaboração teórica sobre a prática. Segundo o autor, esta concepção

de serviço impediu a definição clara de uma concepção de reforma agrária. A posição

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dominante nas formulações teóricas era de que, como entidade de apoio, não deveria

formular tal projeto. Postura que não impediu que a CPT, assim como outras entidades de

mediação, acabassem defendendo, no final dos anos 80, uma reforma agrária com cunho

economicista e produtivista, argumento inclusive incluído na nova Constituição. Sauer

observa que, apesar da postura e da resistência a formulações teóricas mais explícitas, o

trabalho pastoral era baseado nos pressupostos bíblicos e teológicos da Teologia da

Libertação e na Doutrina Social da Igreja Católica, os quais ofereciam um cabedal teórico,

teológico e eclesial para fundamentar as ações práticas(SAUER, 2002: 163-167).

A questão da mediação religiosa é pertinente e, pela atualidade, está presente em

muitos trabalhos. A formulação da exclusão de trabalhadores rurais, de sua não-cidadania

ou de uma cidadania de segunda classe, traz consigo a necessidade da categoria mediação.

A concepção hoje ultrapassa barreiras epistemológicas. Regina Reyes Novais, contudo,

alerta que é preciso atentar para o perigo de, ultrapassando a polissemia, chegar à

banalização do uso da noção sem estabelecer um arcabouço teórico. O estudo dos

assentamentos rurais pela sua diversidade de atores e instituições sociais envolvidas pode

ser um lócus privilegiado para fazer avançar a reflexão envolvendo a categoria (NOVAIS,

1994: 177-183). Outras experiências de mediadores entre agricultores podem ser

igualmente interessantes como ponto de partida para estudos que envolvam mediação. A

inserção da IECLB nas questões do campo pode ser considerada um exemplo para esta

discussão. Embora em diversos momentos essa Igreja, numa postura interconfessional,

tenha desenvolvido trabalhos sociais com outras igrejas, mais notadamente com a católica,

não quer dizer que ela não se tenha preocupado com a problemática e desenvolvido idéias e

ações voltados à problemática do campo.

A mediação do Capa

O discurso mediador formulado pelo Capa representa interesses eclesiais da IECLB, e,

embora aponte a construção de um novo saber numa óptica de mão dupla a partir dos

mediadores e mediados, o processo apresenta suas resistências peculiares como já discutiu

Delma Pessanha Neves (NEVES: 1997).

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Ao pesquisar sobre a atuação do Capa núcleo de Marechal Cândido Rondon no

Paraná, detectou-se que agricultores tinham que, às vezes, dar um passo para trás, no que

tange à utilização de insumos agrícolas não permitidos na agroecologia. As dificuldades que

os agricultores enfrentam em dedicar-se integralmente à agroecologia como base para

sobrevivência é um outro problema detectado. Outra questão é o cerco físico e psicológico

provocado pelos agricultores que continuam se dedicando à agricultura convencional, mas

que acaba gerando um efeito positivo de resistência e fortalecimento coletivo do grupo

envolvido com a agroecologia. É possível concluir que esta é, sem dúvida, a situação que

gera um discurso ideológico de resistência. Mais que isso, a opção dos agricultores

mediados pelo Capa leva os agricultores a romperem com o sistema “convencional”, que

passa a ser totalmente desqualificado diante da emergência do novo106.

A organização comunitária constitui uma das ações que são priorizadas pelo Capa, e é

onde também ocorre resistência. A ação é desenvolvida com grupos e associações e se

fundamenta na crença de que se trata de um trabalho inovador e participativo de uma ação

que seja transformadora, promova autonomia e possa ser potencializada e multiplicada. Na

opinião dos mediadores da entidade, este trabalho exige análise sociológica e proposta

pedagógica e metodológica que promova e valorize a participação ativa e consciente. A

entidade mediadora entende que o espírito individualista, muito presente entre agricultores

tem como uma das causas principais o fracasso de inúmeras iniciativas comunitárias que,

apesar das boas intenções e objetivos, não lograram êxito. Na visão do Capa, é através da

organização comunitária, em especial das associações de agricultores familiares

agroecológicos, que se torna possível construir espaços de discussão, elaboração e

implementação de ações que possibilitam superar o individualismo. O individualismo é

visto como uma atitude negativa dos agricultores que pode atrapalhar o desenvolvimento

dos objetivos da entidade. A superação do individualismo, na visão do Capa, proporciona

alternativas de organização que se revertem em mais renda e dignidade para os agricultores

familiares. Esta postura também permite uma maior interferência nas políticas públicas,

fazendo com que os poderes e órgãos públicos estejam voltados para a agricultura familiar

(REVISTA DO CAPA, 2002: 11).

106 Para maior aprofundamento Cf. NEVES, Delma Pessanha. O Desenvolvimento de uma outra agricultura: opapel dos mediadores sociais. In: FERREIRA, Ângela Duarte Damasceno e BRANDENBURG, Alfio(org.). Para pensar outra agricultura. Curitiba: EdUFPR, 1998.

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No que se refere às formas de resistência articuladas pelos mediados, Delma Pessanha

Neves nos ensina a prestar atenção nas “querelas” que emanam num processo de mediação.

Algo que, às vezes, só é possível de perceber após um largo período de observação numa

pesquisa participante. Neste caso, as condições de pesquisa podem influir numa maior ou

menor identificação deste particular. Como já vimos, o individualismo é apontado pela

entidade mediadora como uma resistência que traz resultados negativos no processo

mediador, podendo inclusive comprometer o alcance dos objetivos propostos. Uma

entrevista pode, às vezes, esconder formas de resistência subterrâneas, passíveis de serem

identificadas apenas a partir de uma observação mais apurada. Quando o agricultor diz que,

na aplicação da metodologia e das técnicas aprendidas na mediação do Capa, precisa dar

um passo para atrás, é porque pode estar se utilizando de algum expediente que é indicado

pela entidade, porém por razões diversas não viável para o agricultor.

Na pesquisa realizada entre agricultores associados ao Capa - núcleo oeste do Paraná,

se considerados apenas os depoimentos orais aqui destacados, foi possível perceber que a

avaliação da entidade mediadora é de maneira geral positiva. Se verificadas as dificuldades

que os agricultores apresentaram para continuar viabilizando sua atividade, o Capa é

considerado uma espécie de “tábua da salvação”. Na opinião de um agricultor entrevistado,

que acompanhou a história do Capa no oeste do Paraná desde o início, talvez o trabalho

desempenhado pela entidade mediadora não fosse suficiente como se queria, pois sempre se

sonha ter mais ajuda do que é possível, numa alusão à estrutura de atendimento limitada da

entidade (STOEF, 2000). O interesse em se dedicar à agroecologia é viabilizado

tecnicamente pela ação mediadora do Capa (HEDEL, 2000). A deterioração da terra e as

condições de saúde fazem com que o agricultor familiar se volte para a agroecologia. Porém

as condições favoráveis do mercado aos produtos agroecológicos é outro motivador no qual

é percebida positivamente a inserção do Capa. O Capa é reconhecido como uma entidade

que cria espaços para que os agricultores inclusive estudem, possibilitando a conclusão de

cursos interrompidos em outros momentos (BOCK, 2000). A produção orgânica trouxe a

condição de viabilizar as atividades na propriedade familiar. O Capa é visto, nas palavras de

um agricultor, como um local de assistência técnica especializada e diferenciada que se

adequa aos seus interesses, possibilitando-lhe saúde, uma vez que o afastou da manipulação

de produtos químicos tóxicos ao organismo (KAISER, 2000). Mesmo que desenvolva a

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agroecologia em caráter experimental e não se dedique integramente a ela, o trabalho do

Capa é reconhecido como uma entidade mediadora que apresenta “muito conhecimento”, e

que atende às expectativas do agricultor(BESEN, 2000).

A metodologia do Capa, é explicada na óptica da própria entidade, a partir da idéia

que “revela” o jeito de fazer acontecer. Como entidade que promove ou realiza uma

atividade social, ela entende que deve caminhar “na frente para guiar, ao lado para

animar” ou “atrás para impulsionar”. No entanto, ela mesma coloca estas proposições em

questionamento ao remeter ao leitor a indagação sobre qual deveria ser o papel e postura de

uma entidade que não possui fins em si mesma? Com esta indagação a entidade chama uma

certa neutralidade ou imparcialidade sobre ela mesma na condução das ações entre os

mediados. A entidade entende que realiza suas ações embasadas numa metodologia que

parte da realidade dos agricultores, respeitando sua cultura e seus desejos. É propositiva,

mas sempre parte do que eles possuem em termos de infra-estrutura, mão-de-obra e

recursos financeiros, o que permite que as questões do que e como fazer são definidas

conjuntamente com as famílias envolvidas (REVISTA DO CAPA, 2002:7).

Chamam atenção aqui os aspectos contraditórios que envolvem os processos de

mediação em que mediadores e mediados partem em busca de um novo saber. Ao mesmo

tempo que é desqualificado o individualismo do agricultor, “lugar” onde podem estar

escondidos aspectos de sua cultura, afirma-se que as proposições partem dos mediados

havendo respeito às peculiaridades do grupo, como cultura e desejos, por exemplo. A forma

de relação entre mediados e mediadores, além de subjetiva, caracteriza-se como

estruturalmente contraditória, indicando um processo que deve ser constantemente gerido,

uma vez que não pode ser superado plenamente. A aceitação do discurso mediador do Capa

não garante que os mediados, e mesmo os mediadores, não lidem com reinterpretações e

reapropriações diversas. No discurso da parceria que procura valorizar a cultura do

agricultor, o conteúdo acaba sendo valorizado conforme os momentos e contextos do

processo. O que é indesejado no processo acaba sendo desqualificado. O processo é

conduzido sempre tendo em mente o fortalecimento da nova identidade do grupo mediado.

É adequado lembrar que a ação dos mediadores não deve ser reduzida a uma

intercessão ou a uma interligação. Ela só se produz por novas construções e modos de

gestão das contradições derivadas da posição de intercessão. Daí a relação contraditória que

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se estabelece nos processos. Os mediadores não se encontram tão distanciados do processo

para que se identifiquem apenas como elo de união de mundos diferenciados. Na

“parceria”, inevitável às vezes de ser contornada, são os próprios mediadores que

constroem as representações dos mundos sociais que pretendem interligar e o campo de

relações que viabiliza este modo específico de interligação. Significados diversos num

processo contraditório de difícil superação vão-se ordenando para viabilizar o trabalho

mediador. Neves lembra que na defesa dos interesses de suas instituições, mediadores

podem desconhecer que uma prática política orientada por objetivos emancipatórios

remonta a projetos de reordenação do mundo social construídos em outros contextos e

mediante outros objetivos. De qualquer forma, a mediação do Capa se fundamenta numa

concepção que ultrapassa a dimensão economicista do processo, não se resumindo a uma

“teologia da contestação”, como também discutiu José de Souza Martins em outros

contextos de mediação (MARTINS, 2000). Percebe-se aí também a crença de que a ação

que se constrói entre mediadores e mediados pode criar as condições favoráveis para a

transferência de ensinos e técnicas (numa perspectiva solidária) que, personificada num

exercício de cidadania, conduza a uma prática social amancipatória, autônoma e

antiexcludente. O trabalho mediador do Capa pode ser considerado pertinente, na medida

em que contribui no processo reflexivo para uma objetivação mais adequada e apreensível

de novas forças “invisíveis” e “incompreensíveis” que interferem no mundo dos mediados e

que, embora exteriores, acabam sendo consideradas imprescindíveis para a construção de

um novo modo de vida.

O desencadeamento de ações da entidade a partir da realidade é entendido como um

diferencial significativo relacionado a outras entidades congêneres. Busca-se assim atuar a

partir da realidade das famílias em seus grupos, somando esforços e priorizando ações

conjuntas e compartilhadas, a fim de que os resultados do trabalho possam ser

multiplicados. Esse “jeito de fazer acontecer” é entendido pela entidade como algo que a

diferencia da maioria das demais entidades que atuam com agricultura familiar. A

organização na defesa do seu jeito de atuar conclui que a maioria das demais entidades

tende a centrar suas ações em um só aspecto, enfocando só a organização, apenas a

produção ou só objetivam a comercialização. Ações que, se desenvolvidas numa forma

fragmentada, acabam não dando conta de toda a diversidade que constitui o universo da

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agricultura familiar. Trabalhar a agricultura familiar nas suas diversas dimensões visa à

construção de sujeitos de um projeto alternativo de desenvolvimento rural. A entidade

entende que suas ações contemplam a organização comunitária, a assessoria técnica à

produção agroecológica e o apoio à comercialização. A busca de parcerias e do

comprometimento de demais entidades sociais denuncia o propósito da ONG de atuar

articuladamente. Ela indica, como uma questão central de sua missão, comprometer os

poderes públicos com um novo projeto de desenvolvimento da agricultura familiar, baseado

na sustentabilidade e na solidariedade.

A assessoria técnica para a produção agroecológica é justificada pelo Capa como

imprescindível entre as famílias de agricultores tendo em vista os efeitos da agricultura

convencional.107 A entidade mediadora, no entanto, entende que sua ação vai além de uma

mera assistência técnica. Neste caso, atua com uma visão integral das unidades produtivas,

das propriedades e das próprias famílias. Respeitando-se as condições naturais e da família,

é elaborado um plano de reconversão e de produção da propriedade e definido “o que

fazer”. Na formação integral dos agricultores, o novo saber leva em conta a retomada da

concepção do amor à “mãe-terra” e o despertar da consciência de que a terra retribui

generosamente o cuidado que a ela for dedicado. A idéia da inconveniência da agricultura

convencional é freqüentemente utilizada para valorizar a atividade agroecológica. A

agroecologia surge como alternativa a um mundo intoxicado e doente e, mais do que

produzir e preservar a natureza, constitui um “ato de responsabilidade cristã” (GIESEL,

s.d.). O Capa entende que, diferentemente das práticas da agricultura convencional, onde

geralmente se vendem “pacotes” prontos, na agroecologia precisam-se construir processos

produtivos e sociais. Na defesa de sua proposta mediadora, o Capa salienta que não leva

propostas prontas, mas analisa e planeja, juntamente com as famílias, o processo de

produção. Todos os aspectos, incluindo limitações e fraquezas e potenciais, são analisados.

O Capa se considera um parceiro onde o objetivo maior é construir um processo que leve à

autonomia e à emancipação das famílias onde elas possam estar planejando, executando e

monitorando o seu sistema de produção (REVISTA DO CAPA, 2002:9).

A construção de um outro saber, objetivo perseguido nos processos de mediação

pelos agentes, resulta de fato da relação dialética que ocorre entre estes e os mediados,

107 Na visão da entidade mediadora e dos agricultores por ela assistidos, agricultura convencional é aquelaque emergiu a revolução verde e se caracteriza pelo uso maciço de adubos químicos e agrotóxicos.

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indicando um processo que deve ser administrado constantemente, uma vez que apresenta

dificuldade de superação plena. Porém, mesmo que se considere a mão dupla no processo

de mediação, ele apresenta resistências peculiares, explícitas ou dissimuladas nem sempre

previstas no curso das atividades. A mediação do Capa pode ser inserida no processo de

construção de uma outra agricultura, que se fundamenta mais em laços de solidariedade

entre mediados e mediadores e na preservação do meio ambiente do que na economia de

mercado. Neste caso, a mediação pressupõe uma prática que não pode apenas se pautar na

suposta inocência das boas intenções e dos compromissos, mas que deve ser

constantemente questionada ou colocada sob avaliação e reordenação, se de fato os

objetivos a ela atribuídos são desejados e se, de fato, o horizonte vislumbrado é a

construção de novas formas de cidadania e de participação social e política.

Algumas considerações sobre a “nova paisagem” do Capa

Na relação dialética que se verifica entre o Capa e os agricultores é possível perceber

a crença de que uma nova paisagem pode ser construída. Com relação a isso, é oportuno

lembrar que, ao discutir a história das paisagens, Francisco Carlos Teixeira da Silva

informa tratar-se de uma especificidade mais antiga que a própria história social ou a

história demográfica, pois, bem antes do despertar contemporâneo das preocupações

ecológicas, estudiosos de vários países europeus, no início do século passado, já

produziram obras nesse sentido. A idéia que se tem, quando se fala de paisagem, remete-

nos imaginariamente a locais geralmente amplos, com castelos, campos de cereais, perfis de

cidades, montanhas com florestas e rios, aldeias de pescadores, grandes metrópoles e assim

por diante. Elas refletem a ação do homem, mesmo que, a princípio, nem sempre

percebamos esse parâmetro. Para estudar as paisagens não existe uma receita pronta, sendo

que a eficiência do trabalho do pesquisador depende muito da sua sensibilidade e

criatividade (SILVA, 1997: 203-216).

O Capa, na sua relação com os pequenos agricultores busca a reconstrução de uma

nova paisagem em tempos de pós-modernidade. Os benefícios do progresso tecnológico

não são descartados na construção dessa paisagem. Porém o progresso é discutido

qualitativamente. O que se observa é a busca de uma inserção responsável da técnica no uso

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do solo. Busca-se recuperar uma relação holística do homem com o meio, onde os campos

de cultivo não sejam vistos apenas como commodities que flutuam unicamente em

decorrência do perverso humor do mercado, mas como uma paisagem que possa ser

sustentada por atitudes responsáveis entre o homem e a terra e desenvolvida por relações

solidárias entre os protagonistas que comungam neste mesmo local seus ideais.

Parafraseando Milton Santos, pode-se dizer que muito se tem falado nos progressos

da engenharia genética, que conduziriam a uma mutação do homem biológico, algo que

ainda é do domínio da história da ciência e da técnica. Porém pouco se fala das condições,

também hoje presentes no meio rural, que podem assegurar uma mutação filosófica do

homem, capaz de atribuir um novo sentido à existência de cada pessoa e da paisagem onde

esta se insere (SANTOS, 2000:174). A mediação do Capa, parece mostrar esta direção.

Neste caso, a construção dessa paisagem se revelaria a partir de uma atitude, de uma

postura cultural, uma posição que se toma frente ao mundo, que leva o ser humano a

estabelecer, além de uma relação de sobrevivência, um elo afetivo entre ele e o lugar ou o

ambiente em que vive (TUAN, 1980).

Perseguindo a trilha aberta por Yi-Fu Tuan, Solange T. de Lima Guimarães percebe

uma paisagem que se reconstrói pelo vivido. Sua análise parece indicar um caminho

semelhante ao que o Capa e os pequenos agricultores estabelecem numa relação

envolvendo informações e práticas solidárias de ação(GUIMARÃES, 2002:140). Observa-

se que mediante a consignação, percepção, afetividade e memória, há a tentativa de

reconstruir mundos vividos – percebe-se um sentimento de volta às origens – resgatando a

multiplicidade das imagens do meio ambiente, pois naquele resgate poderia residir a

identidade de um ser humano, a conservação de seus testemunhos, o legado cultural,

mediante a narrativa da própria história de vida, através das paisagens de seus espaços e

lugares. Na relação entre o Capa e os agricultores, estabelece-se a crença de que a paisagem

que resulta do trabalho desses agricultores é transformada ao associarem o contexto da

dimensão do vivido, transmutando o conteúdo de uma realidade banal em sagas de magia e

encanto das tradições, adquirindo um novo existir.

Em sua atual trajetória de ações entre agricultores, o Capa parte para campos inéditos

de atuação, como demonstra o projeto de apoio aos quilombolas no sul do Rio Grande do

Sul. O projeto é desenvolvido pelo núcleo do Capa – Pelotas, daquele Estado. Este trabalho

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pode ser considerado como uma inédita perspectiva de trabalho dessa entidade mediadora,

se considerada a história da IECLB108.

(...) Somos uma Igreja que afirma em seu nome e autodefinição ser uma Igreja de JesusCristo no Brasil. Com esta constatação assumimos que somos parte de uma sociedademultifacetada, multiétnica, multicultural e pluralista. A IECLB se define como uma Igrejaque quer encarnar a realidade brasileira. Como seres humanos, não estamos dispensados denosso estado de pecadores. Isto significa que nossas instituições também participam nos/dosmales do mundo. Por isso destacamos o princípio luterano da ‘eclesia semper reformanda’ (aIgreja deve estar se reformando).109

Conclusão

A idéia que resultou na formação do Capa emergiu das discussões realizadas pela

IECLB em relação à problemática da terra no Brasil. É talvez uma das discussões mais

relevantes se considerada a busca da identidade dessa Igreja e a sua inserção na realidade

social brasileira. A idéia do Capa não é descolada da discussão geral sobre reforma agrária,

mas circula melhor na comunidade luterana por se identificar mais com a história da

formação daquela Igreja no Brasil.

Ao final dos anos 70, A IECLB, através de seu conselho diretor, estabelece a reforma

agrária como uma das suas prioridades de reflexão e ação. O Concílio da Terra aconteceu

em 1982 e, entre outros assuntos, considerou-se pertinente a inserção da Igreja no assunto

se consideradas as Sagradas Escrituras e os ensinos de Lutero. A terra é de Deus, e como tal

mereceria atenção social e teológica devida. Mesmo antes do concílio, como também

depois, o assunto voltou em pauta reiteradas vezes.

108 Registre-se parceria recente entre Capa e Comin – Conselho de Missão entre os Índios, da IECLB. Atravésde parceria, o Capa passou a desenvolver apoio técnico para plantações entre 17 famílias de Mbya-Guaranis. A aldeia onde o Capa desenvolve seu trabalho situa-se em Coxilha do Sul, município de Barra doRibeiro/RS (BUCHWEITZ, 2003: 72-78). Além do envolvimento com os índios, o Capa integra umconglomerado de entidades que objetivam implantar uma área de cultivos livre de agrotóxicos na regiãoimpactada pela hidrelétrica de Itaipu e pela modernização agrícola no Estado do Paraná. O Capa nasce noRio Grande do Sul no mesmo ano em que explode a luta dos atingidos pela barragem de Itaipu. No tempopresente, em outra conjuntura, o Capa se torna parceiro da Empresa Binacional juntamente com outrasentidades que buscam com os agricultores, reconstruir, nas condições possíveis, a região impactada. Alémde Itaipu, o projeto recebe apoio do governo estadual que, na resistência contra a disseminação de produtosgeneticamente modificados, pretende tornar o Paraná uma área livre de transgênicos.

109 Trecho da manifestação do Simpósio “Abrindo as portas da Igreja: Afro-brasileiros luteranos, sonho oupossibilidade?”, citado na fundamentação teológica do projeto de inserção da IECLB entre os quilombolas.

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Na formulação do ideário do Capa, pouco se enfatizam termos como “invasão”,

“ocupação”, “acampamentos” e “assentamentos”. Estas concepções relacionadas à reforma

agrária dificultam a discussão sobre o assunto nas comunidades luteranas, o que não

significa concluir que a Igreja só atue em movimentos que tenham a “cara” do Capa.

Porém, mesmo com resistências internas, a Igreja tem avançado neste particular. Há que se

ressaltar que, no jeito luterano de atuar, o Capa tem avançado em áreas de ação até bem

pouco tempo não pensadas entre os luteranos, e não há como pensar isso a não ser como

uma forma de avanço, apesar das resistências.

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Resenha

ORY, Pascal. L’Histoire culturelle. Paris, Presse Universitaires de France, 2004.

Pedro Paulo A. Funari110

Pascal Ory, professor da Sorbonne, estudioso da História Cultural e autor de outros

clássicos sobre o tema, como L’Entre-deux-Mai: histoire culturelle de la France, mai 1968

– mai 1981 (Paris, Le Seuil, 1983), apresenta um balanço das discussões sobre a trajetória e

principais questões epistemológicas desse campo de pesquisa, não apenas na França, como

também em outros países, em especial no ambiente anglo-saxão. Começa pelas raízes mais

profundas, que localiza na sociologia durkheimniana e nas subseqüentes discussões sobre

representações mentais coletivas e sobre as identidades. Define a História Cultural, assim,

como a História Social das Representações. Mostra como os textos não existem sem seus

paratextos, sendo a História Cultural uma História da circulação e do relacionamento.

Volta-se, em seguida, para os debates gerados por essa abordagem e, portanto, para

as objeções apresentadas por seus detratores, que se referem à subjetividade da

representação, ao papel da exceção à regra da representação dominante, à diversidade das

formas. Conclui que o objeto da História Cultural é a regra, no que retoma as origens

durkheimnianas da disciplina, e que o conceito de aculturação, criticado na Antropologia,

continua útil para os historiadores. Esclarece, contudo, de que aculturação se trata: das

influências culturais entre culturas dominantes e dominadas (cultura das elites e culturas

populares), centrais e periféricas. Ao enfatizar os aspectos coletivos da cultura, critica um

dos erros típicos, a seu juízo, da História Política, que consiste em supor que os homens

políticos de peso são grandes teóricos, conhecedores das obras de referência da ideologia

que esposam quando, no mais das vezes, têm um conhecimento apenas indireto, por meio

da leitura de epígonos e vulgarizadores. A História Cultural desconfia a priori das

interpretações unificadas que falam de um homem simplificado e racional, e defende que o

ser humano é atravessado ou mesmo animado por contradições internas. 110 Professor Titular da Universidade Estadual de Campinas. Email: [email protected].

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Dedica atenção particular à genealogia da disciplina, a começar com Heródoto,

Tucídides, passando pela História da Civilização (século XIX), a busca das mentalidades

(com os Annales). Mostra como os cultural studies anglo-saxão e a Alltagsgeschichte

(História do Quotidiano, no mundo de fala alemã) ligam-se à desconstrução tão bem

representada por Jacques Derrida, Michel Foucault, Michel de Certeau e Gilles Deleuze,

mas também à releitura da Escola Marxista de Frankfurt, ao subjetivismo de Collinwood, à

Sociologia de Pierre Bourdieu, ao conceito de Weltanschauung. O tradicional privilégio

acordado ao documento escrito (de arquivo ou impresso) é complementado pelo uso de

outros documentos, como os arqueológicos, mas também os virtuais, digitais, sonoros,

visuais, assim como não se podem perder de vista os aspectos técnicos, econômicos e

políticos da cultura. O próprio corpo humano vê-se constrangido por regras culturais de

comportamento. Lembra o papel da hermenêutica, derivada da Lingüística, a partir dos

estudos inovadores de historiadores da Antigüidade, como Detienne, Vernant e Vidal-

Naquet.

Ory situa a História Cultural no contexto historiográfico e acadêmico de nossa

época, envolta na subjetividade e na diversidade de pontos de vista, de interesses e práticas.

Mostra, contudo, como suas fontes de inspiração epistemológica são muito variadas. A

História, como disciplina, não almeja produzir uma epistemologia própria, voltada que está,

por definição, ao particular, específico, irrepetível, efêmero, como já advertia Aristóteles.

A Filosofia e, modernamente, outras disciplinas como a Lingüística e as Ciências Sociais,

fornecem esses quadros heurísticos. A História Cultural, até por lidar com a cultura, “o

conjunto das representações coletivas de uma sociedade”, beneficia-se de uma pletora de

conceitos, nem sempre da mesma origem ou com os mesmos pressupostos, mas que podem

ser agenciados pelo historiador cultural de forma original e eclética, de Marx a Collinwood,

de Heródoto a Foucault. Se não tivermos isso em mente, poderemos entender como

confusão e falta de fidelidade aos cânones algo que é inerente à História Cultural e que faz

parte de sua riqueza.

Em seguida, e não menos importante, está a variedade do campo documental, que

engloba um universo bem mais amplo do que o tradicional documento escrito,

proveniente da tradição textual, arquivístico e/ou impresso. A História Cultural não pode

prescindir das representações sonoras, visuais, materiais e, por isso, interage,

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intimamente, com disciplinas afins, como a Música, as Ciências da Comunicação ou a

Arqueologia. Por fim, a diversidade de pontos de vista, de objetos, de abordagens, que

caracteriza a História Cultural, revela sua mais importante característica, um dos motivos

de seu grande êxito: o pluralismo e o respeito à diversidade. Ao afastar-se do discurso a

ser seguido, do caminho correto, da reta ‘opinião’ (doxa), para usarmos um termo de

Bourdieu, retomado dos gregos (ortodoxia), a História Cultural abre caminhos inovadores

para a pesquisa e para a prática social e atrai a tantos, insatisfeitos com a submissão à

doxa, seja ela qual for.

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Resenha

BOSI, Antônio de Pádua. Reforma Urbana e Luta de Classes. Uberabinha/MG (1888 a

1922). São Paulo: Xamã, 2004.

Ana Paula Cantelli Castro•

As questões propostas por Antônio de Pádua Bosi em Reforma Urbana e Luta deClasses – Uberabinha/MG (1888 a 1922) contribuem para a compreensão dascontradições sociais presentes no meio urbano, bem como das intervenções normativasdos poderes públicos na tentativa de encobrir tais contradições. Este trabalho, publicadopela editora Xamã, é fruto da pesquisa que resultou, originalmente, na tese dedoutoramento pela Universidade Federal Fluminense, em 2002, sob o título“Constituição do espaço urbano e conflito social: Uberabinha/MG (1888 a 1922)”.

Debruçando-se sobre amplo arcabouço documental, Antônio de Pádua Bosi nos

oferece um estudo cuidadoso sobre as relações sociais, nas primeiras décadas da

constituição do espaço urbano em Uberabinha. No livro, o autor discute, além das questões

urbanas, importantes aspectos do mundo do trabalho, perpassando temáticas pertinentes à

compreensão do processo constitutivo de uma cultura relativa ao mundo do trabalho no

Brasil.

Partindo do questionamento “O que exatamente define a constituição do espaço urbanoe quais mecanismos efetivamente operam tal definição?” (p.27) o autor estabelece umdiálogo com uma ampla bibliografia. A pesquisa documental de fôlego permite ao leitorum contato com as contradições e a dinâmica da luta de classes naquele espaço. Estadinâmica é explicitada por Bosi na análise da constituição de um Estado, que buscavaem cada nova lei, cada nova intervenção nos usos dos espaços, uma forma de se afirmarcomo poder, utilizando-se dos recursos públicos para acumulação de capital. Para tanto,o poder público valeu-se da dotação de infra-estrutura, os chamados “melhoramentosurbanos”, ao mesmo tempo em que buscou formatar a população, interferindo nas suaspráticas, inclusive profissionais, para que fossem condizentes com o modelo deprogresso e desenvolvimento pretendido pela classe dominante. Entretanto, essapopulação não esteve, nem está apresentada pelo autor, destituída de vontade e de açãonesse processo.

O grande mérito do autor foi conseguir buscar nos documentos, evidências daparticipação da população na construção da cidade. É importante salientar que quasetoda a documentação relativa a Uberabinha foi produzida pelos poderes públicos ou pormemorialistas que, financiados por tais poderes, construíram uma versão ufanista e

• Mestre em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia. E-mail:[email protected].

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asséptica da cidade. Já na introdução da obra, Bosi revela como essa documentação seapresenta ao pesquisador, muitas vezes, com a força de “evidência histórica”. Entretanto,o autor conseguiu se desvencilhar destas armadilhas, o que merece destaque, pois muitosque procuraram analisar os mesmos documentos não conseguiram evitá-las.

No que diz respeito, por exemplo, à instituição de impostos, prática que se fez presenteno Brasil com maior rigor a partir da instituição da República, Bosi desvenda aresistência dos trabalhadores ao seu pagamento. O autor mostra como esta prática,mesmo raramente articulada entre os trabalhadores, obstava as pretensões dos poderespúblicos.

No quinto capítulo, o Bosi demonstra, a partir do trabalho de um memorialista que éuma referência nos trabalhos sobre esta cidade, como a resistência da populaçãoincomodou a classe dominante que, servindo-se do poder público, aplicava os métodosque estivessem a seu alcance para fazer valer seu projeto de cidade. A análise do autordefine alguns desses métodos. Com uma leitura cuidadosa da documentação ele osrevela, especialmente, ao referir-se à gestão de Severiano Rodrigues da Cunha.

Um dos colaboradores do livro de Pezzuti referiu-se ao Cel. SeverianoRodrigues da Cunha – que fora agente executivo por duas vezes – comoum ‘senhor de coração boníssimo, odiava a violência na hora de praticá-la’. Não há porque duvidar de que homem era realmente violento, (...) Istonos dá uma idéia sobre um dos recursos empregados à época paragarantir o cumprimento da legislação municipal.(p.211)

Se por um lado, o poder público, muitas vezes, afirmou-se tendo como instrumento aviolência, o autor explicita que, por outro, a população encontrou outros caminhos, comono caso de João Borges e outros populares que recorreram à própria Câmara a fim deobter concessões para que pudessem manter sua sobrevivência. A Câmara buscoulegislar sobre a venda de carnes, sobre a prática da caça, sobre a criação de animais,enfim, toda atividade popular que pudesse fazer frente a uma nova lógica de mercadoque se pretendia impor. Por meio da leitura das atas da Câmara Municipal, Bosidesvendou as estratégias que, por meio do poder público, tornaram ilegais as atividadespopulares que pudessem fazer frente ao mercado que se procurou instituir nesta cidade.Esta é uma das manifestações do conflito de classes percebidas pelo autor.

Reforma Urbana e Luta de Classes demonstra ainda, que as pretensões econômicas dospoderes públicos não estiveram apenas centradas na transformação das feições do espaçourbano.

“Para a classe dominante, não era somente, portanto, uma questão de mudaro espaço, mas de padronizar também os usos desse espaço e, principalmente,adequar os comportamentos às suas necessidades e perspectivas sociais.”(p.210)

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Neste sentido, Bosi contribui com uma análise que permite ao leitor enxergar asmúltiplas contradições estabelecidas no urbano, nas disputas para configuração de novoshábitos e valores num espaço em construção.

Os novos valores implicavam também em novas relações de trabalho. A obra trata de umprocesso complexo, uma vez que esta questão não foi específica de Uberabinha. Ainterferência nos comportamentos dos trabalhadores, incutindo-lhes a noção de trabalhoassalariado, presumia uma nova noção tempo e de disciplina do trabalho. Revela-nosainda como “não havendo mais a prática oficial da coação física, a ‘obrigatoriedade dotrabalho’ requeria outros invólucros”(p.229). Na análise de Antonio de Pádua Bosi, percebemos que os trabalhadores negros sofreramde forma talvez mais contundente estas mudanças nas relações de trabalho, mas nãoforam os únicos. “De uma forma mais específica, porém, em Uberabinha, era avadiagem negra que mais incomodava a ordem e mobilizava as penas doslegisladores.” (P.238) A obra aponta também, como tais transformações chegaram aocotidiano dos trabalhadores imigrantes estrangeiros e migrantes rurais, outro alvo dalegislação e interferência do poder público.

A perspectiva de uma população ordeira e em consonância com os projetos de umacidade limpa e garrida, anunciada de forma sistemática pelos memorialistas que sãoreferência à escrita da história de Uberabinha é desmistificada na obra de Bosi. Dentre osmemorialistas o mais importante talvez tenha sido o cônego Pedro Pezutti.

“É necessário lembrar neste ponto que boa parte do que fora salientado nolivro escrito por Cônego Pezzuti chegaria até a década de 1980, na visão dahistoriografia local, como imagem profundamente divulgada e aceita sobre acidade: sua vocação para o comércio, para o progresso, para a ordem, para otrabalho.” (p.65)

O autor discute neste sentido, a formação da cidade como importante entrepostocomercial no início do século XX, ultrapassando a consagrada equação: estrada de ferro,Companhia de Autoviação e ideário burguês. E o faz, dialogando criticamente com umarica historiografia local já existente. Tal diálogo, e o levantamento de questões de ordemteórico-metodológica enriquecem o trabalho, embora tenham custado um adiamento daabordagem efetiva da realidade dos trabalhadores em Uberabinha, o que foi feito nosdois últimos capítulos. Este procedimento não desmerece o trabalho do autor, pelocontrário, revela a seriedade com a qual encarna o oficio do historiador.

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