a historia da pascoa

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www www.eadseculo21.org.br Página 1 O Mistério da Páscoa Padre Raniero Cantalamessa A HISTÓRIA DA PÁSCOA Paz e bem a todos os telespectadores da Rede Século 21 da parte de Padre Raniero Cantalamessa, que é o meu nome. Devemos falar da Páscoa para que nos preparemos, então, para essa Páscoa. Quando se diz “Páscoa”, as pessoas pensam imediatamente na ressurreição, no domingo de Páscoa. No entanto, nem sempre foi assim. E mais: nos primeiros séculos da Igreja, a Páscoa coincidia com a sexta-feira santa e a palavra “Páscoa” era explicada como sinônimo de paixão. Também porque os primeiros cristãos fizeram um pouco de “confusão” em relação a isso, para dizer a verdade. Eles pensavam que a palavra “Páscoa” derivasse de uma palavra grega chamada πάσχω (Pasquein), que quer dizer “sofrer”. É ingênuo porque “Páscoa” é uma palavra hebraica e aquela que citei é uma palavra grega e foi justamente por causa dessa semelhança entre a palavra “Páscoa” e “Padecer” que interpretaram a Páscoa fazendo referência à imolação de Cristo. Por outro lado, o primeiro texto que fala da Páscoa cristã é de Paulo e está em 1 Cor 5, 7, que diz: “Cristo, nossa Páscoa, foi imolado”. Portanto, é a “imolação” que constitui a novidade cristã. Além disso, sabe-se que São João retrata a morte de Cristo no dia 14 do mês de Nisã, relacionando-a ao momento em que no templo eram imolados os cordeiros pascais. No caso, para dizer que Cristo na cruz é o verdadeiro cordeiro pascal. Para São João, a última ceia não é uma ceia pascal e a verdadeira Páscoa de Cristo se realiza na cruz, quando o verdadeiro cordeiro de Deus vem imolado. E João diz: “Nenhum de seus ossos foi quebrado para que se cumprisse a profecia” (Jo 19, 36), a profecia que se refere ao Cordeiro Pascal. Compreende-se porque os primeiros cristãos tinham essa preferência de retratar a Páscoa como paixão, como sexta-feira Santa: porque eram séculos nos quais os cristãos sofriam o martírio e sentiam a morte de Cristo como um fato encorajante, como modelo de todo martírio, de todo sofrimento. O que vou dizer agora pode servir para a cultura cristã em geral e não fará mal: Aconteceu, no início da Igreja, no século 2, uma grande controvérsia, que poderia ter provocado o primeiro grande cisma cristão, o qual estava relacionado justamente à data da Páscoa. Por quê? Porque as igrejas da Ásia menor, a atual Turquia, seguiam a tradição de João, a qual colocava a Páscoa de Cristo no aniversário da sua morte, independente do dia que caísse: domingo, segunda-feira, terça-feira. Havia somente um dia fixo no mês, ou seja, dia 14 do mês de Nisã,

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    O Mistrio da Pscoa Padre Raniero Cantalamessa

    A HISTRIA DA PSCOA Paz e bem a todos os telespectadores da Rede Sculo 21 da parte de Padre

    Raniero Cantalamessa, que o meu nome.

    Devemos falar da Pscoa para que nos preparemos, ento, para essa Pscoa.

    Quando se diz Pscoa, as pessoas pensam imediatamente na ressurreio, no

    domingo de Pscoa. No entanto, nem sempre foi assim. E mais: nos primeiros

    sculos da Igreja, a Pscoa coincidia com a sexta-feira santa e a palavra Pscoa era

    explicada como sinnimo de paixo. Tambm porque os primeiros cristos fizeram

    um pouco de confuso em relao a isso, para dizer a verdade. Eles pensavam que

    a palavra Pscoa derivasse de uma palavra grega chamada (Pasquein), que

    quer dizer sofrer. ingnuo porque Pscoa uma palavra hebraica e aquela

    que citei uma palavra grega e foi justamente por causa dessa semelhana entre a

    palavra Pscoa e Padecer que interpretaram a Pscoa fazendo referncia

    imolao de Cristo.

    Por outro lado, o primeiro texto que fala da Pscoa crist de Paulo e est em

    1 Cor 5, 7, que diz: Cristo, nossa Pscoa, foi imolado. Portanto, a imolao que

    constitui a novidade crist. Alm disso, sabe-se que So Joo retrata a morte de

    Cristo no dia 14 do ms de Nis, relacionando-a ao momento em que no templo

    eram imolados os cordeiros pascais. No caso, para dizer que Cristo na cruz o

    verdadeiro cordeiro pascal. Para So Joo, a ltima ceia no uma ceia pascal e a

    verdadeira Pscoa de Cristo se realiza na cruz, quando o verdadeiro cordeiro de

    Deus vem imolado. E Joo diz: Nenhum de seus ossos foi quebrado para que se

    cumprisse a profecia (Jo 19, 36), a profecia que se refere ao Cordeiro Pascal.

    Compreende-se porque os primeiros cristos tinham essa preferncia de retratar a

    Pscoa como paixo, como sexta-feira Santa: porque eram sculos nos quais os

    cristos sofriam o martrio e sentiam a morte de Cristo como um fato encorajante,

    como modelo de todo martrio, de todo sofrimento.

    O que vou dizer agora pode servir para a cultura crist em geral e no far

    mal: Aconteceu, no incio da Igreja, no sculo 2, uma grande controvrsia, que

    poderia ter provocado o primeiro grande cisma cristo, o qual estava relacionado

    justamente data da Pscoa. Por qu? Porque as igrejas da sia menor, a atual

    Turquia, seguiam a tradio de Joo, a qual colocava a Pscoa de Cristo no

    aniversrio da sua morte, independente do dia que casse: domingo, segunda-feira,

    tera-feira. Havia somente um dia fixo no ms, ou seja, dia 14 do ms de Nis,

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    O Mistrio da Pscoa Padre Raniero Cantalamessa

    aniversrio da morte de Cristo. E por isso, durante as homilias, os bispos exprimiam

    o tema da Pscoa como Paixo e Imolao de Cristo. Em vez disso, o resto da Igreja,

    sobretudo em Roma, tinha o hbito de celebrar a Pscoa aos domingos, portanto,

    em um dia fixo da semana, no do ms. E isso provocou uma disputa que,

    afortunadamente, no provocou uma cisma porque, em meio a tudo isso, Santo

    Irineu veio Roma para pedir ao Papa que no excomungasse as Igrejas da sia

    Menor. Tudo isso para dizer que, por sculos, a Pscoa, para os cristos, se

    identificava com a morte de Cristo, mas isso tem uma importncia atual fortssima.

    Ns, cristos, no podemos pular para o domingo de Pscoa sem tomarmos

    conscincia de como Jesus chega ao domingo de Pscoa. Ele mesmo, explicando os

    acontecimentos aos discpulos de Emas, dir: No era necessrio que o Filho do

    Homem padecesse e assim entrasse na sua Glria? (Lc 24, 26). Ou seja, a Pscoa

    nos diz como Jesus chegou Ressurreio, estabelecendo um caminho que, de uma

    vez por todas, o caminho obrigatrio para se chegar gloria, alegria, felicidade.

    E aqui, caros amigos, quero explicar uma coisa que pode servir a vocs: Jesus trouxe

    uma revoluo em relao prpria alegria. Todos os homens buscam a alegria - e

    sei que os brasileiros mais que todos mas normal. Santo Agostinho dizia que

    basta que se pronuncie a palavra felicidade e os homens se curvam diante dos

    outros para procurar se algum tem algo que possa saciar aquela fome de

    felicidade. Portanto, todos querem a felicidade.

    A via que o mundo pecador descobriu para se chegar felicidade uma via

    errada e leva justamente para o lado oposto. Isto , o mundo conhece um prazer,

    quer o prazer imediatamente, mas esse prazer totalmente desordenado.

    desordenado, certo? Porque quando o prazer genuno, obra de Deus, no do

    inimigo. Quantos prazeres desordenados que vemos no abuso da droga, do sexo

    etc? Esses prazeres levam pena, ou seja, a um sofrimento de consequncia.

    como uma onda do mar que, ao final, segue uma declinao. O exemplo mais claro

    o da droga: sente-se um momento de xtase, a pessoa parece tocar o cu com seu

    prprio dedo, mas depois fica deprimida at chegar destruio. Essa uma

    experincia retratada at pelos poetas pagos: Existe algo de amargo em meio s

    nossas vontades, dizia o pago Lucrcio, que envenena o nosso prazer, porque

    no mesmo momento em que gozamos desses prazeres, se anuncia o fim, a flor

    murcha. Sendo assim, qual a revoluo que Jesus nos trouxe a propsito da alegria,

    esse desejo universal dos homens? Falando de um modo bem breve, consiste nisto:

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    O Mistrio da Pscoa Padre Raniero Cantalamessa

    que no lugar de um prazer, que leva ao sofrimento, Jesus nos props um sofrimento

    que leva ao prazer. Eis o sentido da sexta-feira santa que leva ressurreio de

    Cristo. um problema se no enxergamos o caminho que nos leva felicidade.

    Algum pode pensar: Ento quer dizer que Jesus apenas inverteu os termos? Ou

    seja, o homem pecador procura um prazer que leva ao sofrimento, j Jesus apenas

    redimensionou o termo e props uma sexta-feira santa que leva ressurreio?.

    No, no bem assim. Nesse caso, a alegria que tem a ltima palavra e uma

    alegria que dura eternamente. uma alegria que j comea aqui.

    H um risco quando se fala do sentido do sofrimento humano, do sentido da

    morte de Cristo e que aqui, na Terra, somos chamados apenas a compartilhar dessa

    morte de Cristo e que nossa Pscoa significa somente levar a cruz com Cristo. Isso

    no certo. Os verdadeiros felizes neste mundo foram os santos. Eu no conheo

    nenhum libertino, ningum que se entregou aos prazeres que diga: Senhor, j

    basta de alegria, pois meu corao no pode cont-la mais. Mas, ao contrrio,

    algum santo deve ter dito isso. O que quer dizer? Que a alegria que pode vir do

    dever cumprido uma alegria que o mundo no conhece. Tambm aqui devo fazer

    uma ressalva, seno corre-se o risco de afastarmos as pessoas do Evangelho, ao

    invs de atra-las.

    Quando dizemos que a cruz que o cristianismo nos prope sim uma cruz que

    nos leva ressurreio e gloria, algum deve pensar: Bem, aqui, nesta vida,

    levamos a cruz e esperamos que venha a alegria post-mortem, a vida eterna. E isso

    est errado, porque quando Jesus nos diz para aceitarmos a cruz, no se refere aos

    sofrimentos que procuramos e provocamos sozinhos. Sim, a alguns santos Deus

    pede algumas mortificaes particulares, mas a eles dada uma graa para que,

    mesmo assim, sejam os mais felizes do mundo. Mas, normalmente, quando Jesus diz

    para carregarmos a cruz com Ele, quer dizer que devemos aceitar as renncias

    necessrias para que vivamos fielmente nosso prprio estado. Por exemplo, no

    matrimnio, aceitar o sofrimento que leva alegria, significa aceitar os limites e as

    mortificaes, que no so poucas, para que se permanea fiel, para aceitar o outro

    como ele , que o verdadeiro sentido do amor.

    Quando dizemos que Jesus nos prope a cruz da sexta-feira santa para

    chegarmos Pascoa, no significa que se tratam dos sofrimentos que no sabemos,

    mas, sim, daquilo que necessrio para respeitar o sentido das coisas. Por exemplo,

    o sexo - uma vez que algo que est relacionado ao homem de forma muito

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    O Mistrio da Pscoa Padre Raniero Cantalamessa

    prxima, alm do mais, ganhou tanta importncia que parece que a sociedade no

    vive de outra coisa a no ser de sexo at esse caso revela que somente com o

    Senhor se descobre o sentido desse dom que o Senhor deu ao homem. Foi Deus que

    criou o sexo, que criou a atrao recproca como fonte de vida, como capacidade de

    relacionar-se, de agir de forma recproca, de ser um algum diante da outra pessoa,

    enfim, Deus o criou. Portanto, quando dizemos que se deve aceitar o sofrimento,

    quer dizer que devemos aceitar a lei de Deus e Ele sabe melhor como funciona a

    sexualidade humana, que pode nos trazer tanto a alegria, quanto a destruio. Eu

    acredito que nem haveria a necessidade de explicar a vocs essas coisas, basta que

    vocs assistam televiso, vejam ao redor de vocs o fruto desse pansexualismo,

    dessa busca desenfreada de emoes, de prazeres. Olhemos ao nosso redor:

    acontece a destruio prpria e a de outras pessoas. Quantas vtimas da violncia

    so vtimas de algo que chamam de amor? Mata-se uma mulher e se justifica

    dizendo que porque a amava e no podia perd-la, como se aquele fosse o

    verdadeiro amor. Resumindo, carssimos amigos, a Pscoa Crist comea na cruz.

    um problema se almejamos chegar ressurreio sem descobrirmos antes

    qual o ponto de partida, porque foi aceitando a cruz que Jesus abriu as vias para a

    Ressurreio. Vejamos, tambm, que o modo de calcular o tempo reflete a

    diferena que existe entre a ideologia do mundo e a ideologia do Evangelho.

    Segundo o clculo humano, a unidade de tempo de 24 horas, certo? Um dia e uma

    noite formam uma unidade. Segundo a Bblia, acontece o contrrio: a unidade de

    tempo se forma da noite para o dia. Se vocs se recordam, a narrao da criao se

    desenvolve assim: Passaram-se a noite e a manh: primeiro dia. Passaram-se a

    noite e a manh: segundo dia... (Cf. Gn 1, 5.8). Para a Bblia, a unidade do dia

    comea noite e termina na tarde que vem depois. O que isso significa? Significa

    que uma vida sem a f, sem Deus, sem Cristo, um dia que termina em uma noite e

    pode ser uma noite eterna. Uma vida com a f, com Jesus, pode ser um final de

    tarde, pode ser uma noite, no sentido que comporta tambm de sacrifcios, a qual

    os msticos chamam de noite escura, mas, sem dvida, terminar no dia seguinte,

    em uma manh sem fim. Portanto, a alegria que tem a ltima palavra.

    Recordem-se das palavras que dei a vocs no incio, aquela de Paulo, por

    exemplo: Cristo, nossa Pscoa, foi imolado (1 Cor 5, 7). Mas leiam tambm o que

    Paulo acrescentou a isso. Porque Paulo, tomando como base o que acontecia na

    famlia hebraica, que acontece ainda hoje, d um ensinamento moral. Na iminncia

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    O Mistrio da Pscoa Padre Raniero Cantalamessa

    da Pscoa, os hebreus revistavam a casa. E a mulher, como estava prescrito,

    assumindo o papel de dona de casa, com uma lmpada revistava a casa para

    constatar se no havia nenhum fragmento de po fermentado, o qual deveria ser

    eliminado, pois a Pscoa s poderia ser celebrada com pes zimos. So Paulo toma

    esse costume e nos traz um ensinamento moral. Ele diz que como Cristo, nossa

    Pscoa, foi imolado, tambm ns devemos tirar todo fermento velho da nossa vida.

    E o fermento pode ter um sentido positivo ou um sentido negativo: de fermentao

    ou de corrupo. Portanto, Paulo diz que se tire todo fermento velho para que se

    produza uma massa nova, porque Cristo, a nossa Pscoa, foi imolado.

    Celebremos a festa no com o fermento da malcia e da perversidade, mas

    com os pes zimos da sinceridade e da verdade. E por trs da palavra

    sinceridade, uma palavra neutra, digamos, h uma palavra grega, aquela original

    usada por Paulo, que sugere a ideia que ns, cristos, para celebrarmos

    verdadeiramente a Pscoa, devemos ser transparentes como o raio de Sol. A palavra

    usada por Paulo alecrineia, de elio, que significa Sol em grego. Portanto, quando

    So Paulo pede que os cristos vivam uma sinceridade e uma verdade ntegra, ele

    pede que sejamos transparentes, transparentes como a luz solar. Aqui est,

    portanto, caros amigos, a primeira etapa de um caminho pascal: aceitar o sentido e

    viver profundamente o sentido da cruz, da sexta-feira santa, da imolao de Cristo

    que o que renovamos a cada missa, pois em cada missa fazemos presente,

    fazemos memria da paixo de Cristo. Se a missa a nova Pscoa, isso se confirma

    que a primeira etapa de toda Pscoa deve ser a imolao de Cristo, a cruz, com tudo

    aquilo que significa e que tentei explicar para vocs.

    Nos vemos em breve!