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História do Cerco de Lisboa José Saramago História narrada em terceira pessoa É focalizada a Lisboa do presente (final do século XX) e a Lisboa moura (época do cerco em 1147)

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Page 1: A História do Cerco de Lisboa -  · PDF fileassim mesmo, consciente de que o erro, cedo ou tarde, será descoberto. Passados 13 dias, é convocado para uma reunião na editora

História do Cerco de Lisboa José Saramago

História narrada em terceira pessoa É focalizada a Lisboa do presente (final do século XX) e a Lisboa moura (época do cerco em 1147)

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Aspectos históricos: A península Ibérica estava ocupada pelos mouros desde o ano 711, e Lisboa desde 719. O Cerco de Lisboa efetivamente teve início em julho de 1147, estendendo-se até outubro, durando aproximadamente três meses e meio. O líder da conquista de Lisboa foi D. Afonso Henriques, considerado do primeiro rei português. D. Afonso contou com o auxílio dos Cruzados que estavam de passagem para o Oriente Médio no período da Segunda Cruzada.

José

Saramago

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O revisor Raimundo Silva conversa com o autor do

livro que está revisando, História do Cerco de

Lisboa. A conversa é num tom filosófico, em que se nota um certo

desprezo do revisor (apesar de ter consciência de sua

inferioridade social) pelo outro. O autor, por sua vez, percebe a

arrogância de Raimundo e o ceticismo, mas demonstra confiar no

trabalho revisor e reconhece o profissionalismo e a inteligência

deste (lembrar Apeles e o Sapateiro).

Como se passássemos a ler o livro do autor/historiador, vemos

uma descrição detalhada do despertar de um velho almuadem

cego (aquele que convoca os mouros para suas orações)

soltando seu grito agudo, e a cidade murmurando suas rezas.

Então ficamos sabendo que esse relato não foi escrito, que não

passava de pensamentos vagos de Raimundo Silva enquanto

revisava a obra, como se corrigisse ou acrescentasse

mentalmente detalhes que julgava ali faltar.

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Apeles, importante pintor grego (séc. IV a. C.),

expôs à porta uma pintura sua, e pôs-se detrás do

pano a escutar os votos e censuras várias dos que passavam.

Veio um sapateiro e notou defeito na chinela de uma figura

principal. Percebendo o equívoco, emendou Apeles a falta; e

no dia seguinte o sapateiro tornou a passar, e, vendo a

emenda, ficou satisfeito de si, e atreveu-se a notar outra coisa

na perna da mesma figura. Então Apeles, aparecendo, disse-

lhe:

— “Não suba o sapateiro além

da chinela”.

Daqui ficou o adágio contra

os que dão votos no que não

entendem.

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Raimundo Silva tem mais de 50 anos, vive sozinho,

sempre solteiro, não tem família. É extremamente

profissional no que faz. Tem uma boa biblioteca de

consulta para averiguar imprecisões cometidas por autores. É

obsessivo nos detalhes. Vive modestamente e praticamente nada

faz além de ler e de revisar. Depois de trabalhar até tarde, recebe

pela manhã um telefonema da editora para a qual revisa. Querem

as provas do livro para hoje. Raimundo diz que terminará

amanhã, mas o Costa, da Produção, toma o telefone e fala

rispidamente. Raimundo argumenta que as revisões feitas às

pressas dão ocasião a erros, mas Costa responde que é melhor

passar dois erros que perder um dia de vendas. Acabam

acertando a entrega do trabalho para as oito horas do dia

seguinte. Pela primeira vez, em muitos anos, Raimundo não fará

a leitura final e completa de um livro. Teria de ficar acordado toda

a noite, e foi tomado de antipatia pela obra e pelo autor dela. Mas

a consciência profissional faz com que ao menos vá percorrendo

devagar as páginas.

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Quando relê o discurso que o rei Afonso Henriques

fez aos cruzados, acha inverossímil. Em seguida lê

que, após o discurso, irão os representantes dos

cruzados informar ao rei que o auxiliarão na conquista de Lisboa.

Tomado por um sentimento que não compreende, acrescenta um

não. Os cruzados não ajudarão os portugueses a conquistar

Lisboa. Jamais havia alterado o sentido da frase de um autor, e

não sabe por que o fez. O próprio Costa vai buscar as provas do

livro na manhã seguinte. Raimundo sente remorso por estar

enganando o encarregado da Produção, mas entrega o livro

assim mesmo, consciente de que o erro, cedo ou tarde, será

descoberto. Passados 13 dias, é convocado para uma reunião na

editora. Estão presentes o diretor literário, o diretor de produção e

uma mulher, que Raimundo desconhece. Afirmam que o erro foi

claramente intencional, querem saber como um profissional

competente faz uma coisa dessas, mas Raimundo continua

afirmando que não sabe por que o fez, para maior irritação dos

diretores.

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Percebe que não será demitido, mas é comunicado

que a mulher ali presente passa a dirigir todos os

revisores da editora, a partir de agora. Raimundo

terá de escrever ao autor e à editora apresentando desculpas.

Quando iam dar a reunião por encerrada, a mulher diz estranhar

que Raimundo não tenha tentado explicar o que fez. O revisor

fica com raiva dela, e travam um sutil debate, ríspido, com frases

inteligentes. Após a saída dele, os diretores, que antes estavam

num tom conciliador, comentam que teria sido melhor demiti-lo,

mas a mulher argumenta que teriam perdido um bom revisor.

Raimundo não soube reprimir a agressividade. Fica pensando

nessa mulher, de menos de 40 anos, de quem ele ainda não sabe

o nome. O telefone de casa toca. A chefe dos revisores, Maria

Sara, marca uma reunião para organizar o trabalho. Recebe

Raimundo cordialmente e dá-lhe o único exemplar da História do

Cerco de Lisboa sem a errata. “Esse livro é o seu.”

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Ela demonstra que leu vários pareceres que

Raimundo deu sobre obras, muito bem escritos,

críticos, singulares, e propõe que ele escreva a história do cerco

em que os cruzados não ajudam os portugueses. Raimundo fica

perturbado, diz que não faz sentido, e retira-se. Em casa, puxa

uma folha de papel e escreve o título do livro. Pergunta-se o que

vai escrever, por onde deve começar. Pensa que talvez com um

novo discurso inventado, de Afonso Henriques, pudesse justificar

a recusa dos cruzados, depois de descartar hipóteses como o

clima ou as pestes. Terá de inventar uma outra história em que,

mesmo sem a ajuda dos cruzados, os portugueses derrotaram os

mouros. Suas dúvidas agora são por que os cruzados foram

embora e como os portugueses venceram. Raimundo vai até o

local onde o fato histórico se passou, não longe de sua casa.

Pensa em Maria Sara. Observa o castelo que fora tomado pelos

mouros. A razão do “não” dos cruzados ficou-lhe clara.

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No discurso de Afonso Henriques aos cruzados, o

rei destaca que os mouros que tomaram Lisboa não

têm as riquezas dos que estavam em Granada e

Sevilha, e que por isso sugeria que os cruzados se contentassem

com uma remuneração simbólica. Acrescenta que, mesmo que

não cheguem a um acordo, sozinhos os portugueses seriam

capazes de vencer, como o fizeram em Santarém, até porque

contam com a ajuda de Jesus Cristo. Os cruzados percebem na

oratória do rei, além da avareza, muita petulância e orgulho. O rei

ainda diz que, assim como Cristo lhe apareceu anos atrás para

garantir outra vitória dos portugueses, bem poderia aparecer de

novo. Os cruzados prometem resposta para o dia seguinte.

Maria Sara liga com o pretexto de perguntar sobre o

andamento de outras revisões que Raimundo está fazendo. Ela

pede que ele não a decepcione, e ele responde firmemente que

não a decepcionará, percebendo que ambos podem estar se

referindo à reescrita do livro.

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Os cruzados trazem a resposta ao rei. O porta-voz,

com sarcasmo, menciona que, já que os

portugueses terão ajuda fácil e eficaz de Nosso

Senhor Jesus Cristo, que fossem sozinhos ao combate, pois já

tinham segura a vitória, e Deus lhes agradeceria a oportunidade

de provar o Seu poder. D. Afonso responde que então partam

para a Terra Santa, onde não poderão fugir à batalha como estão

fugindo desta. O porta-voz leva a mão à espada, mas é

interrompido pelos companheiros, e um deles diz que quem falou

não mencionou os motivos materiais que movem a negativa, mas

que mesmo assim alguns deles resolveram ficar e lutar. D.

Afonso fica contente.

Raimundo vai à editora encontrar Maria Sara, com o pretexto

de entregar outro livro revisado. Tem pensado muito nela. Ao sair

de casa, depara-se com um cão faminto que o segue. Volta à

casa e busca comida para ele.

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Pensa que o cão é idiota de viver ali, desprezando

as abundâncias de Lisboa, Europa e mundo,

mas que é fácil julgar, quando pode ser um caso de timidez.

Chega à editora, entrega o trabalho para a chefe e trocam

palavras amenas. Quando vai se retirar, Raimundo toca a rosa

branca que Maria Sara tem sobre a mesa. A chefe se

desestabiliza, fica ruborizada. Ele também. Ela diz que sai em

cinco minutos e lhe oferece carona. Ele diz que não quer desviá-

la de seu caminho, e ela não percebe, ou finge não perceber na

duplicidade maliciosa da frase. Ela sabe onde ele mora,

descobriu na ficha de emprego. Leva-o em casa, ele a convida

para entrar, mas ela responde que ainda não é tempo.

Retorna à escrita do livro. Os mouros comemoram a

partida dos cruzados, mas cem destes ficaram em

Lisboa, com suas armas.

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Raimundo está à procura de um personagem para

dar destaque, dentre os portugueses e cruzados

que irão à luta. Uma roda de homens escuta um soldado,

Mogueime, que conta como tomaram Santarém. Relata que subiu

nos ombros do capitão Mem Ramires e que, com uso de uma

escada, alcançaram o muro e começaram a invasão. Dois pajens

que ouvem a história divertem-se lembrando como abusaram das

mouras e depois cortaram-lhes o pescoço. Mogueime os

contraria, dizendo que matá-las assim, depois de amá-las, não foi

um ato cristão. Raimundo Silva é tomado de simpatia por este

gesto do personagem que ele mesmo criara. O que preocupa o

revisor é a mentira de Mogueime ao narrar a tomada de

Santarém, pois Mem Ramires era fidalgo da corte e teria subido

nos ombros do soldado, e não o contrário. Porém, “atire a

primeira pedra aquele que se julgar sem pecado”, numa clara

alusão à mentira do “não” e ao fato de ele pintar os cabelos.

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Raimundo sai à rua e compra uma rosa branca.

O rei Afonso Henriques manda enviados para falar

com os mouros. Pedem que entreguem a cidade em paz, que

podem continuar vivendo nela, e lembram que uma perigosa

doença ataca os estrangeiros. O governador mouro responde que

é difícil acreditar que apenas querem que entreguem a fortaleza

do castelo, depois do que fizeram em Santarém, onde mataram

até as mulheres, crianças e velhos. “Essa cidade foi outrora dos

vossos, agora porém é nossa.” O bispo do Porto, enviado luso,

diz que “quantas mais vezes nos for desfavorável o resultado de

uma empresa, tantas mais vezes havemos de tentar para que

bem nos suceda.” Retiram-se, negando saudação. O governador

mouro diz que se enganam se confundem paciência com temor

da morte. Diz que os portugueses se preparem para morrer,

porque eles, mouros, sempre estão preparados.

Raimundo vai à editora entregar mais um trabalho e descobre

que Maria Sara está doente, em casa. Consegue o número do

telefone dela. Pensa em ligar, mas não consegue. Volta ao livro.

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Tem de planejar a estratégia do ataque luso.

Retorna ao castelo onde tudo se passou para

imaginar a guerra. Dom Afonso manda cortar as

comunicações dos mouros com o mar para que ninguém possa

entrar ou sair. Raimundo volta para casa. Percebe que não sabe

nada da vida de Maria Sara, se é casada, se tem filhos. Sua

imaginação retorna a uma cena em que Mogueime à beira d’água

lava as mãos. Uma mulher perto lava a roupa. É a manceba do

cavaleiro Henrique, alemão, um dos cruzados que ficou.

Mogueime já reparara nela, mas um soldado como ele não se

atreveria a tentar a mulher de outro (como Raimundo e Maria

Sara?). Ele decide perguntar-lhe o nome. Ela diz que é Ouroana.

Raimundo vai à cozinha e vê o bilhete da mulher-a-dias (diarista).

Uma mulher telefonou e deixou o número. “Amanhã telefono.”

Acorda com uma visão muito clara de como dispor as tropas

para um ataque. A ordem é invadir ao meio-dia, quando os

mouros estiverem em oração. Raimundo resolve ligar.

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Uma outra mulher atende e chama Maria Sara. Ele

pergunta como ela está, ela agradece dizendo que

ele foi o único revisor a interessar-se. A conversa

segue com dificuldade, como se Raimundo não quisesse admitir

o que sente por ela. Parece que ele é sempre agressivo. Ela diz

que ligou porque se sentia só, porque queria saber se ele estava

trabalhando, se queria lhe desejar melhoras, e então Raimundo

interrompe e diz que gosta dela. Foi difícil dizê-lo, pois não sabe

se ela tem alguém. Ela responde que também gosta dele, que é

divorciada há três anos, não tem filhos, vive na casa do irmão,

quem atendeu ao telefone foi a cunhada. Combinam de se ver

assim que ela melhore. Antes de se despedir, ela pergunta se ele

já começou a escrever a História do Cerco de Lisboa, e ele diz

que sim. Ela termina dizendo que não sabe se continuaria a

gostar dele se a resposta fosse não. Estão felizes.

Raimundo compra quatro rosas brancas. Chega em casa com

duas delas, e a diarista fica muito curiosa.

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Maria Sara telefona, diz que ele não devia ter feito

isso porque, a partir de hoje, não poderá viver sem

receber rosas todos os dias, e ele responde que não lhe faltarão

e que outras duas estão em sua casa. Ela quer ir lá logo.

Combinam a visita. Maria Sara pergunta o que ele vai fazer

quando desligar, e ele diz que vai rezar para que os mouros não

ataquem na calada da noite. Ela pede que ele se cuide, e

Raimundo diz que não veio de tão longe para morrer diante dos

muros de Lisboa.

Dom Afonso Henriques tratou de recolher as provisões de

alimentos que os mouros deixaram para trás. Cargas de trigo,

cevada, milho e legumes poderão fazer falta aos que se

defendem de dentro do castelo. Agora a questão é saber como se

pode entrar por portas tão fechadas, defendidas por guerreiros

nos topos das torres. As escadas não alcançam, e os sentinelas

nunca dormem. Há divergências no alto comando português

sobre a forma de combater os mouros.

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Uns propõem o ataque imediato; o cavaleiro alemão

Henrique quer usar seu conhecimento para construir

torres móveis. Outros, que defendem a espera, querem apoiar o

ataque súbito para que os estrangeiros não levem o mérito da

vitória. Diplomático, D. Afonso mostra por que é rei: determina

que primeiro se fará um ataque geral. No caso de falhar,

avançarão as torres. Falhando tudo, manterão o cerco

indefinidamente, matando os mouros de fome. Os aplausos são

unânimes.

Raimundo percebe que não consegue fazer valer seus

próprios pontos de vista. A história se movimenta sem seu

controle. Pensa em fazer os cruzados regressarem, mas acha

que desagradaria Maria Sara. Pergunta-se que relação há entre a

história imaginada e a sua com Maria Sara. Por dois dias falam

muito ao telefone. Ela anuncia que vai trabalhar e que depois

passa na casa dele. Finalmente encontram-se, pela primeira vez,

depois das declarações de amor.

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Ele conta que vive sozinho há muitos anos, sem mulher,

que gostaria que a vida lhe desse o que nunca teve.

Acrescenta que pintava o cabelo, mas que agora parou,

e ela diz que por causa dele foi pintar o cabelo hoje. Raimundo mostra

a casa e, enfim, o livro. Ela começa a ler e pergunta quem são

Mogueime e Ouroana, e ele diz que ainda não sabe bem. Ela quer ler

tudo agora, mas ele diz que fará uma cópia e levará amanhã à editora.

Conversam longamente, se beijam, e ela pede que Raimundo não vá à

editora nem telefone.

A narração em terceira pessoa traça uma bela comparação para

falar da ordem de ataque dos lusos. Diz que nunca se viu um

condenado ao pelotão de fuzilamento, à forca ou cadeira elétrica dar a

ordem de sua execução. Dom Afonso vai colocar na boca dos mouros o

grito de ataque, ou seja, quando o almuadem entoa o grito para chamar

as orações, ao meio-dia, os portugueses entram em ação. Os mouros

defendem-se bem derramando tochas de fogo sobre os portugueses,

que tratam de enterrar seus mortos. Mogueime escapa ileso e vai

ajudar no funeral. Caminha até o acampamento do rei para ver se

encontra Ouroana. Pensa que ela pode vir a ser sua, mas que ele pode

morrer antes disso.

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Raimundo trabalha em casa e divide sua atenção entre

a história e a janela, esperando Maria Sara. Receia

que a história não acabe. Resistiu à tentação de telefonar. Enfim

ela chega, passa os olhos pelo texto e percebe que ele não

escreveu muito mais. Finalmente vão para a cama. Jantam fora.

Ela quer saber como vai a história do cerco. Ele diz que pode

terminar em três linhas ou deixar sem fim, agora que estão juntos,

mas ela afirma que Raimundo tem de resolver a vida de

Mogueime e Ouroana, que o resto é menos importante. Ele

pergunta por que Maria Sara lhe lançou o desafio de escrever o

livro, e ela responde que no começo não sabia bem, mas que

ficou claro que era ele quem ela buscava, pela atitude de colocar

um erro onde deveria corrigir. Voltam para casa. Ela quer ler a

obra, diz que ele pode virar autor, que talvez a própria editora

queira publicar o livro, e ele responde que só com a condição de

ele ser o próprio revisor, para que não venham a colocar um sim

no lugar de um não. Dormem juntos. Ao acordar, ele retoma a

história.

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O cavaleiro Henrique prepara o ataque com as

torres. O rei lhe segreda que a guerra destruiu suas

finanças, que o ataque, se bem sucedido, pode poupar-lhe novo

gasto de salário com as tropas, que estão pagas até o final do

mês. Se vencer, o rei fará a Henrique proposta de naturalização,

com doação de terras e título. Henrique traz Ouroana consigo

para o acampamento, para a sorte de Mogueime, que terá muito

mais chances de vê-la.

Raimundo em casa tem de lidar com a bisbilhotice da diarista

Maria, que percebe que uma mulher andou pela casa, mas ele

não lhe satisfaz a curiosidade. Quando fica só, resolve dedicar-se

à construção das torres, para que a obra esteja adiantada quando

Maria Sara chegar. A construção demorou mais de uma semana,

no tempo do livro. Quando Ouroana vem ver o andamento da

obra, percebe o soldado que a olha. Mogueime tem tentação de

matar Henrique, mas não podia matar um homem que nunca lhe

fizera mal, só por desejar-lhe a mulher.

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Concluída a torre, que se desloca sobre rodas, há

problemas com o terreno inclinado. Atolam. Os

mouros derramam fogo e a torre cede, matando Henrique e seu

criado. Ouroana está só no mundo. Chora de pena do homem

que sempre a tratou bem, mas não há outros sentimentos. Um

dos homens tenta agarrá-la e ela o ameaça com um punhal

dizendo que o mata ou se mata, garantindo assim a liberdade.

Raimundo interrompe o trabalho após horas de escrita. Nem

pensou em Maria Sara. Vai à janela e olha a cidade. Os mouros

estão comemorando a destruição da torre, pensa. Ouroana vela o

cadáver, sem lágrimas. Mogueime ronda-lhe a tenda. Se Maria

Sara não telefonar, Raimundo ligará. Sinais de fome apertam os

mouros na cidade. Lá vivem cerca de 60 mil famílias.

Os portugueses continuam a lutar, mas apertam ainda mais o

cerco, vigiando para que nada nem ninguém entre ou saia.

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Mogueime pensa que o mais provável é que

Ouroana seja tomada por qualquer senhor, mas isso

não o perturba, talvez por acreditar que jamais será dele. Mas

não faz com deixe de segui-la, pois quer essa mulher. Tornou-se

público que Ouroana teve relações com soldados anteriormente.

Dois deles apareceram mortos, por coincidência, não tendo ela

nem Mogueime nenhuma culpa nisso, mas serviu para afastar

outros pretendentes. Enquanto ela lava roupa, ele se aproxima e

conversam. Ele pergunta se ela quer ficar com ele, e a resposta é

sim. Mogueime lhe conta de sua vida. Vão passar a noite juntos.

Chega Maria Sara trazendo comida, munições de boca, pois

veio para uma guerra. Trocam muitos beijos, mas ela pede que

ele não se distraia do trabalho, já que passarão duas noites

juntos. Ela quer saber da história, e Raimundo conta que

Mogueime e Ouroana já fizeram amor.

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Maria Sara pede que ele siga escrevendo, e

Raimundo diz que então vai retornar à sua cadeira

de revisor, que é o que ele é, para que tudo fique claro entre

Mogueime e Ouroana. Assim como o soldado nunca vai ser

capitão, o revisor nunca será escritor. Ela pergunta se ele tem

medo que Ouroana vire as costas a Mogueime quando descobrir

que nunca será mulher de um capitão. Maria Sara afirma que

gosta dele pelo que é. Raimundo acrescenta que parece que

estão em guerra, e ela diz: “Claro que estamos em guerra, e é

guerra de sítio, cada um de nós cerca o outro e é cercado por ele,

queremos deitar abaixo os muros do outro e continuar com os

nossos, o amor será não haver mais barreiras. O amor é o fim do

cerco.” “Bem dito, Ouroana querida. Obrigada, querido

Mogueime.” Preparam a mesa para o trabalho. Raimundo avisa

que vai escrever sobre os milagrosos casos de que foi autor o

falecido Henrique, e Maria Sara vai ler a obra dos milagres de

Santo Antônio.

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Depois de sua morte, aparece Henrique para Frei Rogério, o

cronista que dormia em sua tenda, e o cavaleiro pede que seu

escudeiro tenha o corpo trazido para junto do seu, Henrique. Frei

Rogério então cumpre a solicitação. Outros relatos fantásticos sobre Henrique

são comentados alternadamente com a leitura que faz Maria Sara.

Há mais de dois meses o cerco começou. Dom Afonso tinha esperanças

na engenharia militar de Henrique, e a morte deste abalou o entusiasmo das

tropas. A falta de dinheiro é outro problema. Os soldados portugueses estão

indignados que somente os cruzados terão direito a saquear a cidade. Os

outros receberão somente o soldo. A rebeldia já interfere na disciplina. Os

soldados que lideram a discussão, entre eles Mogueime, são chamados a falar

com os oficiais. O capitão Mem Ramires apela ao patriotismo. Mogueime

assume a palavra argumentando que querem ser pagos como os cruzados. O

rei recebe o relato da conversa e manda chamar cinco soldados. Diz-lhes que

não sabe se cortará os pés ou a cabeça deles se levarem adiante a proposta.

Mogueime responde que se D. Afonso fizer isso todo o exército ficará sem pés

nem cabeça. O rei pergunta o que eles farão se não tiverem parte no saque, e

Mogueime responde que só os cruzados atacarão. Dom Afonso diz que isso é

uma rebelião, mas Mogueime enfatiza que é um ato de justiça pagar o igual

com o igual.

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Não queira o rei que Portugal nasça torto. “Onde foi que te

ensinaram a falar assim? As palavras, senhor, estão por aí no

ar, qualquer as pode aprender.”

O rei anuncia que todos os soldados terão direito a saque. As tropas ficam

muito animadas, não só pelo dinheiro, mas também pelo sentimento de justiça.

Os mouros sentem o medo, a fome e as doenças. Alguns descem por cordas

das muralhas rendendo-se, pedindo batismo. Os portugueses pensam que eles

vêm negociar a rendição da cidade, mas quando vêem que não, matam todos.

O exército luso escava na base da muralha e preparam lenha para por fogo.

Preparam três torres de ataque. Os mouros, muito fracos, saem pela porta de

ferro para destruir uma das torres, mas não conseguem. Trava-se a batalha.

Mouros jogam-se nas águas, o muro vem abaixo. Lisboa estava ganha. Após a

rendição do castelo, o derramamento de sangue termina. Ouve-se o almuadem

do alto da mesquita. Um soldado sobe e degola o velho.

Raimundo pousa a caneta e vai para cama silenciosamente. Maria Sara

está acordada e pergunta como terminou, e ele diz que foi com a morte do

almuadem. Ela quer saber sobre Mogueime e Ouroana, e ele conta que

Ouroana vai voltar à Galiza, de onde veio, e que Mogueime irá com ela, e

antes de partirem acharão um cão escondido, que os acompanhará na viagem.

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Raimundo

Maria Sara

Mogueime – inverte a história que conta,

afronta o Rei e conquista Ouroana

(mulher acima de suas possibilidades)

O próprio cerco – faz sítio à Maria Sara

O cão abandonado – se sente parecido

Os portugueses – não recebem

ajuda para realizar a sua missão

Lisboa – Maria Sara é “sitiada” por Raimundo

Ouroana – é cortejada por um

homem socialmente “inferior”

O próprio cerco – faz “sítio” a Raimundo

Identidades

Fonte: Fernando Brum in Leituras Obrigatórias 2013 – Ed. Leitura XXI

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História do Cerco de Lisboa

Três possibilidades:

1. De José Saramago; 2. Do historiador (obra revisada por Raimundo); 3. De Raimundo (sugerida por Maria Sara).

Lisboa arde sob cerco dos Portugueses