a hermenêutica da compreensão

22
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 655-676, set./out. 2008. 655 Anderson Clayton Pires, Cláudio Ivan de Oliveira A HERMENÊUTICA DA COMPREENSÃO: UMA REFLEXÃO SOBRE O SENTIDO Resumo: este artigo pretende disponibilizar recursos teórico- reflexivos capazes de descortinar, sob o prisma epistemológico da fenomenologia da fé, a possibilidade de se legitimar os processos de construção de um conhecimento marcado pela ‘irrupção’ do numinoso na esfera da percepção interpretativa de sujeitos cognoscentes. A com- preensão hermenêutica deverá ser considerada aqui como metódica de aproximação apreensivo-cognitiva desta realidade supra-sensível que caracteriza o grau de plausibilidade epistêmica do fenômeno que se dá entre os sujeitos que se envolvem com a experiência de apropriação do saber religioso e, que se torna, posteriormente, na dinâmica da intellectus fidei, teologia reflexiva (Niklas Luhmann). Palavras-chave: hermenêutica da compreensão, verdade, intellectus fidei, sujeito cognoscente e atitude interpretativa Artigos ALETOLÓGICO DA INTELLECTUS FIDEI Q ual é a distância compreensiva entre um sujeito interpretante e uma realidade interpretada? A verdade, enquanto meta hermenêutico- cognitiva, pode ser considerada uma possibilidade atingível à atitude com- preensiva de um sujeito interpretante? Estas perguntas têm relevância num dado contexto em que a compreensão acerca da verdade (aletheia) parece ter um valor fundamental para equacionar os problemas provenientes da incer- teza cognitiva e da dúvida em relação ao futuro. A patogenia do cogito cartesiano eclode com/na irrupção psicofenomenológica da dúvida quando esta instaura a ambigüidade hermenêutica na percepção de um sujeito epistêmico acerca da realidade que o circunda. Quando esta última perde o

Upload: janilson-conceicao

Post on 29-Jan-2016

9 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Compreender é de certa forma uma tarefa filosófica.

TRANSCRIPT

Page 1: A Hermenêutica Da Compreensão

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 655-676, set./out. 2008. 655

Anderson Clayton Pires, Cláudio Ivan de Oliveira

A HERMENÊUTICA DA COMPREENSÃO:

UMA REFLEXÃO SOBRE O SENTIDO

Resumo: este artigo pretende disponibilizar recursos teórico-reflexivos capazes de descortinar, sob o prisma epistemológico dafenomenologia da fé, a possibilidade de se legitimar os processos deconstrução de um conhecimento marcado pela ‘irrupção’ do numinosona esfera da percepção interpretativa de sujeitos cognoscentes. A com-preensão hermenêutica deverá ser considerada aqui como metódica deaproximação apreensivo-cognitiva desta realidade supra-sensível quecaracteriza o grau de plausibilidade epistêmica do fenômeno que se dáentre os sujeitos que se envolvem com a experiência de apropriação dosaber religioso e, que se torna, posteriormente, na dinâmica da intellectusfidei, teologia reflexiva (Niklas Luhmann).

Palavras-chave: hermenêutica da compreensão, verdade,intellectus fidei, sujeito cognoscente e atitude interpretativa

Artigos

ALETOLÓGICO DA INTELLECTUS FIDEI

Q ual é a distância compreensiva entre um sujeito interpretante e umarealidade interpretada? A verdade, enquanto meta hermenêutico-

cognitiva, pode ser considerada uma possibilidade atingível à atitude com-preensiva de um sujeito interpretante? Estas perguntas têm relevância numdado contexto em que a compreensão acerca da verdade (aletheia) parece terum valor fundamental para equacionar os problemas provenientes da incer-teza cognitiva e da dúvida em relação ao futuro. A patogenia do cogitocartesiano eclode com/na irrupção psicofenomenológica da dúvida quandoesta instaura a ambigüidade hermenêutica na percepção de um sujeitoepistêmico acerca da realidade que o circunda. Quando esta última perde o

Page 2: A Hermenêutica Da Compreensão

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 655-676, set./out. 2008.656

relativo grau de ‘visibilidade compreensiva’, que malogra pedagogicamentea engenharia cognitiva da verdade pensada em termos de um ‘ideal de cer-teza’, aquele outro acaba se compreendendo como instaurador de uma ‘or-dem fenomenológica’ capaz de ser mesmo sem ser completa e racionalmenteapreendida. Esta é uma alternativa epistemológica endossada pelo sugesti-vo aforismo pascaliano: credo ergo sum.

Esta constatação, no entanto, parece ser considerada uma gafe episte-mológica para o credo da fenomenologia hermenêutica heideggeriana. Poisna teleologia da aletheia, a compreensão, por sua meta pedagógica, parecequerer atingir o vértice de sua perfeição ontológico-hermenêutica pela via daracionalidade cognitivo-interpretativa. O ‘ser-em-sendo’ jamais pode ser pri-vado de sua cognoscibilidade. Razão pela qual sendo ele objeto cognoscível,acaba, inevitavelmente, reclamando a existência de um sujeito cognoscente(S. Hekman). Daí a ‘entificação da linguagem’ se apresentar como categoriahermenêutica fundamental no processo da ‘epifanização do ser’ para o olhoobservador interpretante acerca de uma realidade (mesmo que esta seja denatureza supra-sensível) ‘desocultada’ à medida que o logos demonstra sua‘fenomenologicidade’. Entre o logos e a aletheia se estabelece um nómos deinteligibilidade. No invólucro teleológico do logos, o fenômeno da verdade setorna demonstrável por meio de seus arquétipos (Eriúgena). A linguagem,então, passa a assumir sua grande missão metodológica: tornar-se critério dedemonstrabilidade interpretativa de uma ‘ainda-não-realidade’, cuja veraci-dade só pode ser ontologicamente concebida em termos de hermeneuticidade.Esta afirmação certamente contraria os postulados epistemológicos da filoso-fia da linguagem wittgensteiniana, segundo a qual a estrutura ôntica de umameta-realidade está irremediavelmente privada de uma ‘inteligibilidade acei-tável’, em virtude, sobretudo, de sua ‘natureza inobjetivável’, que faz dela umfenômeno racionalmente inassimilável, corroborando, semelhantemente, overedicto filosófico anteriormente afirmado na Crítica da razão pura, deImmanuel Kant.

Certamente aqui temos assoalhado a dificuldade hermenêutico-epistemológica constitutiva do pensamento ocidental moderno: o que estápara além do experimental não pode ser dito, nem pensado e nem tampoucoquestionado (R. Carnap). Simplesmente porque esta [realidade] não possuiuma existência empiricamente demonstrável. É possível dizer, desta forma,que a realidade (ontologia) parece estar umbilicalmente ligada à capacidadecognitiva de compreensão/percepção (hermenêutica) de um sujeitoepistêmico. É a capacidade perceptivo-compreensiva acerca de uma dadarealidade que dever-se-á ser entificada, enquanto a linguagem deverá ser

Page 3: A Hermenêutica Da Compreensão

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 655-676, set./out. 2008. 657

compreendida, expressis verbis, como modus probandi, isto é, como méto-do/modo de ‘demonstrabilidade interpretativa’, sem a pretensão de assu-mir, com isso, nenhum tipo de vocação epistemológica que seja totalizadorada verdade. Haja vista que esta última, como nos sugere Bachelard, está re-lacionada à dinamicidade metodológica que se dá entre um sujeito epistêmicoe um objeto cognoscível e, por isso mesmo, é um fenômeno aberto econstruível, e não pronto e, dogmaticamente, inalterável.

Nos termos de uma hermenêutica psicanalítica, a fala, como catego-ria cognitivo-interpretativa, pode ser compreendida como uma espécie de‘holofote instrumental’, cuja meta heurística não é outra senão descortinaro que está por trás do invólucro que envolve o inconsciente em suaabsconditucidade, convertendo-o em linguagem codificada, racionalmen-te inteligibilizada. A categoria revelação, mesmo aqui, acaba assumindo asina pedagógica de heurística da verdade sempre quando a realidade que sedeseja compreender é considerada, à luz da razão crítica, uma “variávelinobjetivável”. Talvez seja, em parte, esta a razão psico-cognitiva que se es-conde por traz da hermenêutica desconstrucionista presente nas teorias dainterpretação de alguns dos pensadores pós-modernos no Ocidente pós-cristão. Parece que para estes, a verdade é a utopia da epistemologia con-temporânea. Diante desta atitude interpretativa da ‘suspeita’ (Foucault,Derrida, Ricoeur), que adereça significativo contingente do arcabouço refle-xivo das modernas epistemologias que ainda vivem a ressaca do Aufklärung,a pergunta sobre a função da compreensão no processo da aquisição de umconhecimento plausível acerca de uma realidade supra-sensível parece per-tinente nesta reflexão.

A VERDADE COMO PRESSUPOSTO E COROLÁRIO DA TAREFA/POSTURA HERMENÊUTICO-EPISTEMOLÓGICA DA FIDESQUAERENS INTELLECTUM

A verdade, como realidade psico-cognitivamente alvejada de primeiragrandeza, é a mais nobre tarefa empreendida pela “atitude interpretativa”(Mesters). O termo grego aletheia, como foi exposto magistralmente porM. Heidegger em sua hermenêutica fenomenológica, significa ‘desocultação’ou desvelamento. Isto implica dizer que ela (a verdade) precisa ser arreba-tada do lugar em que se encontra ocultada através do discurso/linguagem(logos). E o ensino, no dizer de Gadamer interpretando a ontologia dacompreensão de Heidegger, é o nexo através do qual a verdade se realizacomo tal na engenharia da comunicação/linguagem. Portanto, há uma fi-

Page 4: A Hermenêutica Da Compreensão

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 655-676, set./out. 2008.658

nalidade pedagógica última a ser alvejada no empreendimento filosófico dodiscurso, que está intimamente associada à idéia escolástica de inteligibilidadepresente na epistemologia anselmiana. Por esta razão, a intellectus é a ex-pressão da verdade no discurso que ocupa seu locus primordial na atividadedo juízo. Este, porém, pode ser considerado como método a partir do qualse procura obter a certeza de uma realidade que se deseja aproximar porintermédio da verificação metódica (caminho de seguimento). E fundamen-tado nos postulados da filosofia cartesiana – que caracteriza o verdadeiroethos da ciência moderna, de acordo com Gadamer – a verdade só pode serconsiderada como tal quando consegue satisfazer o “ideal de certeza”(GADAMER, 2002, p. 57-62) oriundo da herança epistemológica docartesianismo.

No entanto, como na epistemologia contemporânea se postulou àquase dogmática necessidade de alcançar ordinariamente o máximo graude correspondência entre o enunciado e o fato fenomenologicamente refe-rido pela via do critério de coerência verificacional – isto é, a “verdade comocorrespondência” ou “conhecimento como exatidão das representações”(linguagem e existência) de acordo com o que Rorty (1988) analisa, de for-ma contestatória, ao sistema de correspondência apresentado nas teorias derepresentações – a realidade de Deus e a linguagem religiosa acabam seinadequando a esta exigência por não satisfazerem objetivamente o critérioda “controlabilidade” (PANNENBERG, 1981), o que de fato, em termoslógico-formais, seria um verdadeiro contra-senso de se admitir. Pois Deus,pela sua própria natureza, de acordo com Wolfhart Pannenberg, não é umobjeto do qual podemos dispor analiticamente do ponto de vista da abor-dagem científico-fenomenológica.

Por outro lado, a verdade não pode ser reduzida às categorias raci-onais da cientificidade moderna – que exigem a verificação e o controleem termos de demonstração e repetição como critério de normatizaçãodo fenômeno compreendido e interpretado cientificamente pelo sujeitoepistêmico – justamente porque não podemos desconectá-la (a verdade)da dimensão geo-histórica que tanto a determina como possibilita suamelhor compreensão (isso de alguma forma já inviabiliza a crença nodogma ‘científico’ do universalismo dedutivista tanto do positivismoquanto do cientismo). A pretensão de que a ciência, com seus respectivosmétodos apropriados, pode atingir a realidade como um todo e ser con-siderada como o “único lugar da verdade” (LAMBERT, 2002, p. 28) já seconstitui um pseudodiscurso frente às atitudes epistemológicas mais só-brias nos dias de hoje. Neste sentido, a teologia satisfaz, sim, como noti-

Page 5: A Hermenêutica Da Compreensão

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 655-676, set./out. 2008. 659

fica Pannenberg (1981), o postulado da coerência, pois suas proposiçõestêm, outrossim, o caráter cognitivo (pois estas mantêm uma relação deidentificação com a história/realidade concreta) que torna seus artigosconstitutivos inteligíveis do ponto de vista da racionalidade epistemológica,haja vista que nela também existe tanto o “objeto material” quanto o “su-jeito epistêmico” (BOFF, 1998, p. 41-2).

Ora, com base nesse último pressuposto, não há como olvidar que averdade é uma condição/intenção que pode caracterizar preferencialmentea atitude interpretativa de todo sujeito cognoscente, que deseja, outrossim,transformar sua suspeita intuitiva em certeza epistemológica. Este procedi-mento marca a intencionalidade do cogito cartesiano frente a quaisquerfenômenos ontológicos existentes e fundamentados por uma crença aprio-rística de orientação tendenciosamente religioso-metafísica1. Nesse sentido,esta postura hermenêutica também passa a ser caracterizada pela cientificidademetódica que pretende transcender os limites imaginários do conhecimen-to sensível (popularmente reconhecidos e articulados no senso comum),convertendo-o em certeza epistemológica para o sujeito compreensivo-interpretante. A verdade, enquanto valor motivacional e meta alvejada doempreendimento cognitivo, deve ser identificada no testemunho revelacionalda experiência histórica, geografia epistemológica esta que demarca o seugrau de autenticidade, bem como sua legitimidade e validação cognitivas.Na teologia, enquanto ciência da fé [atribuição que Heidegger outorga aela] (HEIDEGGER, 1991), ela jamais pode deixar de ser sua meta primeirae final, se consideramos como os pais da igreja (sobretudo Justino)2 de quea verdade só é referencial da fé (ou do sujeito pístico)3 porque ela, antes detudo, lhe é constitutiva.

Assim sendo, o que deve haver de comum, em termos de atitudehermenêutica de todo sujeito interpretante (sobretudo naquele que transitano e pelo reino da epistemologia bíblica), é exatamente a honestidade inte-lectual orientada para o desvelamento da verdade última existente enquan-to objetivo epistêmico do empreendimento cognitivo. Neste sentido, anatureza heurística de todo esforço cognitivo numa atitude interpretativaserena jamais poderá direcionar, para determinados interesses secundáriosnão especificados aprioristicamente (ideológicos), os significados possíveis(e os não possíveis) de uma verdade encontrada em um determinado texto/discurso/realidade. Esta compreensão nos permite alcançar maior grau deobjetividade na percepção/apreensão de uma realidade/verdade pesquisadamesmo considerando que, na própria tarefa hermenêutica, já exista uma“readequação compreensiva” que é apreendida e comunicada por um sujei-

Page 6: A Hermenêutica Da Compreensão

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 655-676, set./out. 2008.660

to interpretante, o que não implicaria, inevitavelmente, num tipo modal depseudo-objetividade. Isto, porém, não significa dizer que a mesma (a ver-dade) seja necessariamente aprisionada e determinantemente condiciona-da pela ótica de seu sujeito que a percebe para não redundarmos, assim, nasentença existencialista de orientação kierkegaardiana quando esta afirmaque a verdade é essencialmente subjetividade. Se a verdade, enquanto fenô-meno factível de uma percepção/apreensão hermenêutica, torna-seinalcançável e ininteligível sem a necessária utilização dos ‘óculos’ fabrica-dos (ideológicos) por um topos epistêmico/subjetivo, então jamais podere-mos considerar que ela (verdade) seja vicejada no horizontecognitivo-hermenêutico da fenomenologia da compreensão (muito embo-ra se fala que esta está preocupada não com a verdade em si, mas com osentido4 que a ela damos na Dasein), o que poderia ser compreendido, grossomodo, como um obstáculo epistemológico primário para as ciênciasinterpretativas em geral, na qual se inclui aqui a teologia como ciênciahermenêutica5.

Na epistemologia teológica, como já nos alertou Barth (2000, p. 27-33), os artigos da verdade só são requeridos porque eles são, antes de tudo,“desejados pela própria fé” [interpretação que Barth dá à proposição ‘fidesquaerens intellectum’ de Sto. Anselmo contida no clássico ‘Proslogion’].A intelligere é, ontogicamente, constitutiva da fides quaerens. Em sua me-tódica, a verdade não pode ser compreendida como rota casual do percursocognitivo da fides, mas como ponto de chegada por ela desejada (quaerens).Os artigos fundantes da epistemologia da fé reivindicam o desdobramentoreflexivo de sua própria natureza para salvaguardar o grau de compreensãodesejado por ela acerca dela mesma, garantindo, em última análise, sua pró-pria sobrevivência diante da pergunta acintosamente objetivante da angús-tia hermenêutica do interpretante quando se pergunta a si mesmo: afinal decontas, o que significa a minha fé? A diacronia desta pergunta encontra econa história da tradição teológica desde a patrística, com santo Agostinho,até o suntuoso tratado da Suma teológica do escolástico são Tomás. A ver-dade, durante todo seu itinerário na tradição teológica do Ocidente, foimotivo de divergências interpretativas entre os cânones traditivos do pen-samento cristão; mas, ainda assim, ela nunca deixou de ser o fôlego bemcomo a maior ambição cognitiva a ser alcançada pela pretensão noética datradição reflexiva presente da epistemologia teológica ocidental. Esta é tam-bém a variável psicoteológica que está por trás do princípio hermenêuticoda sola fide presente na epistemologia da Reforma protestante em Lutero.Veritas et fides são conceitos que se equivalem aqui.

Page 7: A Hermenêutica Da Compreensão

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 655-676, set./out. 2008. 661

OBJETIVIDADE INTERPRETATIVA COMO PEDAGOGIA DERUPTURA: O DISTANCIAMENTO HERMENÊUTICO DOSUJEITO EPISTÊMICO COMO CONDIÇÃO PSICOPEDAGÓGICADO APRENDIZADO DE UMA SEMPRE NOVA VERDADE

O que marca a condição de um sujeito cognoscente, de acordo comRicoeur (1978), é sua capacidade de existir compreendendo à medida queexiste, ou como notabiliza Apel (2000, p. 30) em sua exposição sobre ahermenêutica fenomenológica heideggeriana, “o Compreender como for-ma de ser-no-mundo”. A proposta hermenêutica de Heidegger infunde, nacompreensão do sujeito hermenêutico, a bagagem proveniente de sua expe-riência existencial, aglutinando, assim, na estrutura de uma pré6, a relaçãode correspondência entre o ser e a linguagem7. Esse achado de Heidegger(que tem em Rorty um forte oponente) tem seu equivalente interdisciplinartanto na sociologia do conhecimento de Mannheim (1954), para o qualtodo conhecimento é socialmente condicionado, e por isso revela traços ide-ológicos de sujeitos cognoscentes situados em uma pertença socio-existen-cial específica, quanto na psicologia da linguagem de Vigotski (2001), parao qual a linguagem está relacionada com uma classe de nossa experiência.

Rudolf Bultmann, influenciado pela hermenêutica fenomenológicade Heidegger, escreve, num artigo de 1950 intitulado O Problema daHermenêutica, dizendo que uma interpretação nunca está isenta de umapremissa. Esta está sempre orientada por um enfoque ou por um certo rumoconfigurado/estruturado naquilo que ele chama de “compreensão prévia”(BULTMANN, 2001, p. 288-92). Para Bultmann, a interpretação é resul-tante da compreensão da “relação vital” compartilhada, em termos de ex-periência existencial, entre autor e intérprete de um mesmo assunto que seexprime em um texto específico (BULTMANN, 2001, p. 293). Nesse sen-tido, Bultmann (2001) diz que a exigência de uma atitude interpretativaisenta de elementos característicos da subjetividade engajada no mundo parase alcançar um conhecimento objetivo acerca de alguma realidade é absur-da e inimaginável. Num outro artigo, publicado em 1957, intitulado SeráPossível a Exegese Livre de Premissas?, ele já inicia seu argumento dizendoque o exegeta não é nenhuma “tabula rasa”, e, que, portanto, sempre possuiuma certa noção do assunto que trata o texto, ou o aborda com certo enfoquepretendido. Em termos mais incisivos, “nenhuma exegese está isenta depremissas” (BULTMANN, 2001, p. 367).

No entanto, ao considerarmos o ideal de objetividade e de neutralida-de como valores científicos insustentáveis do ponto de vista da pesquisa/in-

Page 8: A Hermenêutica Da Compreensão

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 655-676, set./out. 2008.662

vestigação científica, poderemos facilmente nos incorrer em alguns outros ris-cos: por exemplo, o de não apreendermos, por conta daquilo que Bachelard(1996) chama de “obstáculo epistemológico”, o verdadeiro significado/sentidoprovável tratado por um texto/realidade/linguagem justamente por acreditar-mos que dele já sabemos o suficiente a ponto de não mais precisarmos aprender.Afinal, aquilo que pensamos saber, com freqüência, nos impede de aprender oque ainda não sabemos perfeitamente (Claude Bernard).

O filósofo francês Bachelard se propôs a pensar sobre o “saber científi-co”, ou a relação do ser humano com este saber. Mesmo considerando o fato deque Bachelard, ao pensar a ciência, o faz no sentido mais estrito do conceito,isto é, numa perspectiva estritamente empírico-formal das ciências naturais, pensoque sua reflexão acerca dos obstáculos epistemológicos nos é extremamentepertinente (para nós que lidamos com o texto sagrado numa perspectiva cien-tífica), sobretudo porque, a meu ver, poderá nos ajudar a reconsiderarmos, emalgum grau, nossa postura diante da realidade vicejada pelo empreendimentoepistemológico/exegético que julgamos conhecer relativamente bem quandonos deparamos com o texto compreendido/interpretado.

Bachelard (1996, p. 17) começa sua reflexão fazendo a seguinte afir-mação: “o conhecimento real é a luz que sempre projeta algumas sombras”.Isto significa dizer que “diante do real, aquilo que cremos saber com clarezaofusca o que deveríamos saber” (BACHELARD, 1996, p. 18). Nesse senti-do, a atitude epistemológica exige um procedimento de desconstrução do “eu-cogito” diante daquilo que aparentemente se julga conhecer suficientemente.Esta é a tese fundamental que aparece no epicentro da crítica de Bachelard.Neste sentido, a proposta bachelardiana se aproxima relativamente da atitudecartesiana frente ao ontologicamente determinado, freqüentemente assumi-do como um axioma ou como uma verdade absoluta. A dúvida metódica(instrumentalizada pelo “cogito ergo sum”) sugere uma reorganizaçãopsicopedagógica do conhecimento sensível do sujeito epistêmico (agora por-tador de uma razão inquiridora/instrumental) diante de tudo aquilo que éaceito com relativa ingenuidade racional para obter a clareza mediante o usodo cogito. Num primeiro momento, a fé, na perspectiva cartesiana, é fé nocogito orientado por uma lógica matemática que torna possível a certeza comrelação ao objeto referenciado pela razão intuitiva. De acordo com Bachelard,a “opinião” (que demos o nome aqui de ‘razão intuitiva’) está sempre equi-vocada. Pois pensa mal à medida que traduz necessidades em conhecimen-to. Por esta razão, não se pode basear nada sobre ela (BACHELARD, 1996).O espírito científico é muito mais esclarecível, do que esclarecedor; possuium instinto “formativo”, e não “conservativo” (BACHELARD, 1996, p. 19).

Page 9: A Hermenêutica Da Compreensão

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 655-676, set./out. 2008. 663

Assim sendo, para ele todo conhecimento é fruto de uma resposta dada a umapergunta feita, ou como sugere Unamuno (1996), como resposta à necessidadede sobrevivência do instinto de perpetuação no qual a pergunta feita emergecomo problema. O obstáculo epistemológico se esconde no conhecimentonão questionado. Infelizmente, porém, Bachelard admite que quando o espí-rito humano se apresenta à cultura científica, ele já não é tão jovem. Pois trazconsigo toda a bagagem recebida ao longo de sua experiência da vivência coti-diana. Neste sentido, a idade de um espírito que se apresenta à cultura cientí-fica é a idade de seus preconceitos. Ora, de acordo com Bachelard, as crises decrescimento do pensamento implicam uma reorganização total do sistemade saber, segundo o qual, toda cabeça bem feita deve necessariamente serrefeita (BACHELARD, 1996). Esta postura caracteriza a verdadeira condi-ção do espírito humano frente ao totalmente inusitado, configurada naquiloque Boff (1998) chama de “humildade intelectual” num sentido geral, e“humildade teológica” no sentido estritamente acadêmico para a realidadede teólogos e teólogas. Santo Agostinho (apud BOFF, 1998), consideradocomo um dos maiores pensadores do Ocidente cristão (assim como Barth),não se envergonha de rever criticamente seus 232 livros em suas Retractationes.Mas para o educador, de acordo com Bachelard, este senso de humildadepode se encontrar praticamente invalidado, razão pela qual ele (o educa-dor) dificilmente terá um senso de fracasso. O educador se vê invariavel-mente como mestre, e não como aprendiz; como sujeito epistêmico maduro,e não como uma espécie de mutante intelectual como é exigido pela culturacientífica (BACHELARD, 1996). No entanto, o espírito científico é umeterno itinerante, haja vista que o discurso científico será sempre um dis-curso de circunstância. Num outro trabalho, Bachelard (1994) diz que todopensamento científico deve mudar perante uma experiência nova. Esta fle-xibilidade psico-interpretativa do sujeito epistêmico só é possível porque ajovialidade, caracterizada pela abertura do espírito científico, não é supera-da pela letargia anestésica da maturidade improdutiva de sujeitos epistemo-logicamente envelhecidos. Bachelard (1996) chega fazer menção à fala deum epistemólogo irreverente que dizia serem úteis à ciência somente ho-mens e mulheres na primeira metade de suas vidas, pois na outra, seriamextremamente nocivos (BACHELARD, 1996).

Em Bachelard (1996), há uma nítida separação entre o conhecimen-to sensível oriundo da experiência comum, configurado na fragilidade dossentidos e do espírito humano, e o conhecimento científico, decorrente daracionalidade dinamizada que transcende o nível da percepção ordinária/doxográfica da realidade sensível, tornando-se “experiência científica”.

Page 10: A Hermenêutica Da Compreensão

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 655-676, set./out. 2008.664

Com Bachelard, aprendemos que a atitude hermeneuticamente cor-reta é aquela que traz a pergunta antes de incorporar quaisquer pressupos-tos, sejam eles de ordem hermenêutico-filosóficos, sejam eles oriundos daexperiência comum. Esta pergunta sugere muito mais a ingenuidade de umespírito que ainda não sabe (e por isso pergunta para aprender algo novo,e nisso consiste o “conhecimento científico” para Bachelard), do que a pers-picácia de quem pergunta para cristalizar a diferença epistemológicaestabelecida no diálogo intersubjetivo.

A atitude objetiva do espírito científico é neutra à medida que elaassume a inocência de uma consensual convicção de que o conhecimentohumano é fragmentário e estruturalmente microdimensionado (portanto,essencialmente limitado), contendo em si deficiências constitutivas, poden-do, desta forma, perceber a verdade somente de muito longe. A pedagogiade ruptura incide sobre e no sujeito epistêmico na medida em que ele elegeum novo método de apreensão de uma verdade ainda desconhecida pararomper com o convencionado conhecimento habitual (BACHELARD,1994). Há, portanto, uma irrefutável relação entre método e verdade quepode não só determinar o curso do empreendimento epistemológico, comotambém os resultados a serem obtidos pelo mesmo. Por conta disto, Bachelardacaba condenado o método cartesiano de ser redutivo, e não indutivo. Poiseste não só falsea o resultado da análise, como também entrava o desenvol-vimento extensivo do pensamento objetivo (BACHELARD, 1994). Deacordo com Bachelard (1994, p. 97), a “perenidade” de métodos, infelizmen-te (por melhores que sejam), torna o pensamento científico absolutamenteinfecundo e a nova verdade inalcançável, além do que eles acabam inviabili-zando a macrocompreensão desta última. Numa de suas citações aparece aseguinte asserção: “uma verdade demonstrada mantém-se constantementeapoiada não na sua própria evidência, mas em sua demonstração” (BACHE-LARD, 1994, p. 97).

O conflito configurado na atitude hermenêutica revela uma aporiade difícil superação epistemológica. A psicologia da pertença ontológico-histórica revelada na “relação existencial” estabelecida entre sujeitointerpretante e coisa interpretada (configurada na estrutura daquilo queBultmann compreende por “premissa”), acaba se constituindo, por um lado,em recurso hermenêutico de “compreensão da própria história”(BULTMANN, 2001, p. 368), figurada na relação sujeito epistêmico/interpretante e a “coisa do texto”8 (usando a terminologia de Ricoeur) e,por outro, e simultaneamente, em obstáculo epistemológico à luz da pro-posta de orientação bachelardiana que vimos até agora. Neste sentido, lon-

Page 11: A Hermenêutica Da Compreensão

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 655-676, set./out. 2008. 665

ge de se falar de neutralidade epistemológica da postura hermenêutica deum interpretante, o que se pressupõe a partir da proposta hermenêuticabultmanniana acaba se convertendo em engenharia da “congenialidade”9

(identificação entre sujeito interpretante e a intenção subjetiva da coisa in-terpretada construída e configurada no ato interpretativo).

A questão que se levanta neste instante é que o que para Bultmann seconstitui fato hermenêutico significativo de irrefutável valor cognitivo-epistemológico (a pre-compreensão), para Bachelard constitui preconcei-to/obstáculo que inviabiliza a perfeita compreensão da coisa a ser conhecida.O autêntico espírito científico se revela na atitude de desconstrução não somen-te de um tu-cognoscível (texto/linguagem/realidade), mas também e, sobre-tudo, de um preconceituoso eu-cogito interpretante. É a partir deste axiomahermenêutico que o distanciamento tornar-se-á modus operandi daquilo queRicoeur (1989, p. 137) chama de “hermenêutica da apropriação” da coisa/realidade interpretada (ou coisa do texto). A postura interpretativa de um sujeitointerpretante deve se configurar como aquiescente ‘submissão cognitiva’ di-ante de uma realidade nova a ser revelada como verdade desejada. Em termoshermenêutico-teológicos, o diálogo entre o intérprete e o texto/realidadeinterpretada pressupõe uma condição prévia: a “atitude de fé” (GEFFRÉ,2005, p. 35), que na lógica de uma engenharia cognitiva significa assumira condição de um “inveterado aprendiz”, como nos sugeriu Bachelard (1996).A objetividade intencionada pela correta postura hermenêutica acaba cons-trangendo o sujeito cognoscente/interpretante a assumir, do ponto de vistapercepção cognitiva, sua finidade gnosiológica figurada na gramática da ‘hu-mildade intelectiva’ (tapeinophrôsýne) frente a uma sempre ‘nova verdade/realidade’ (cognoscível) a ser revelada (apokalyfthênai) de maneira processu-al. Por esta razão, ela (a verdade) é considerada, stricto sensu, um fenômenohermeneuticamente inexaurível em sua absconditucidade ontológica. Emteologia, de acordo com Geffré (2005, p. 39), “a manifestação da verdade ésempre manifestação do devir”, e compete, ao sujeito interpretante, se resig-nar diante da imponderabilidade deste fato hermenêutico. A cada nova des-coberta se instaura sempre uma nova releitura (que compõe cada camadainterpretativa do processo hermenêutico)10, que desembocará, outrossim, emuma nova necessidade cognitiva. Esta circularidade hermenêutico-cognoscitivaproduz no sujeito interpretante a necessidade de se entregar à descoberta deuma sempre nova verdade, de maneira completamente infantil (no sentidobachelardiano). E nisto se confirma a condição de objetividade interpretativada postura hermenêutica frente a uma realidade/verdade a ser conhecida einterpretada.

Page 12: A Hermenêutica Da Compreensão

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 655-676, set./out. 2008.666

A DIMENSÃO SOCIOFENOMENOLÓGICA DA HERMENÊUTICADA INTELLECTUS FIDEI: COMPREENDER PRA EXISTIR SENDOCOMPREENDIDA

A ‘desparadoxalização’ da vida num sistema socioexistencial comple-xo, de acordo com Niklas Luhmann, deve ser compreendida como ‘funçãoda religião’ (Fuktion der religion), quando esta é pensada em termos de“subsistema autopoiético”11. A afirmação deste pressuposto teórico-socio-lógico de Luhmann traz à baila questões relativas à finalidade hermenêuticae relevância da fé (religião) na sociedade contemporânea12, onde sua demandapressupõe o irretorquível estabelecimento dos frágeis limites epistemológicosde uma racionalidade pretensamente objetivadora/explicativa. Os pressu-postos da fé podem ser, sociologicamente, identificados na linguagem deum pragmatismo funcional, e sua natureza social transformadora pode serinferida a partir da análise de um sistema de crença moral (comportamentoético) capaz de definir seu lugar de pertença, bem como sua teleologia dahistória. Esta constatação hermenêutica pode ser inferida da instrumenta-lidade do conceito weberiano de racionalidade burocrática. A ética protes-tante (calvinista) conserva, em seu substrato axiológico, elementos de uma‘compreensão de mundo’ (Weltanschauung) em que a fé se torna pressu-posto fundamental para construção e legitimação de uma configuração socialde existência específica. Dessa forma, a secularização, como corolário deuma ética orientada por postulados religiosos intramundanizados, acabadenunciando, outrossim, a vocação inextricavelmente profana da fé (reli-gião) em sua relação com a realidade imediata (Welt). E pensar a existênciaa partir dela é a função hermenêutica de uma “teologia reflexiva” (Luhmann),como o teólogo alemão Johann Baptist Metz (1969) nos sugere a pensar emsua Teologia do mundo13.

A fé, conquanto tenha uma dimensão místico-fenomenológica naqual se enquadra a definição de experiência numinosa de Rudolf Otto14

(mysterium tremedum et fascinans), e que atinge o ser humano de umamaneira indescritível – razão pela qual Paul Tillich a compreende comoexperiência supra-racional15 – possui, em sua própria dimensão ontofânica(Geffré), a inegável pretensão epistemológica de assumir seu lugar de inter-câmbio apologético16 com/na experiência histórica. Aliás, ela (experiênciahistórica), como linguagem dos fatos concretos, é definida por Pannenberg(1988, p. 230-58) como “lugar da revelação” de Deus e, conseqüentemen-te, como instrumento hermenêutico de inteligibilização. Mesmo pelo veiode uma crítica negativa, os chamados “mestres da suspeita” conseguiram

Page 13: A Hermenêutica Da Compreensão

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 655-676, set./out. 2008. 667

detectar esta relação de interatividade dos mecanismos de sobrevivência queo ser humano desenvolve em sua experiência de contingencialidade.Unamuno (1996) diz que é desta relação “homem e contingência/necessi-dade” que nasce a antropologia do conhecimento. Na experiência concreta,a fé acaba se tornando pressuposto hermenêutico de compreensão e estímu-lo diante de uma realidade aberta hetero-imposta que vai se configurandocomo “mistério apofático”. Esta compreensão é corroborada na sociologiada religião de Luhmann (apud PACE, 1990), segundo a qual ela (a religião)nasce da necessidade de reduzir a indeterminação que cerca a vida que ca-minha sempre em direção ao desconhecido.

A fides não poderá ser compreendida, desta forma, somente em ter-mos de uma linguagem ontológico-metafísica. Aliás, o pressupostoepistemológico da teologia da libertação é de que, enquanto a experiênciareligiosa for privada de sua dimensão crítica em sua inserção histórico-social,ela não poderá ser completamente compreendida, ontologicamente, do pon-to de vista do olhar hermenêutico. Gustavo Gutiérrez17, mesmo não despre-zando o legado histórico-filosófico presente na tradição teológico-cristã doOcidente, (ele) acaba propondo um novo modelo hermenêutico-teológicoque possa ser responsivo diante de uma realidade histórica prenhe de contra-dições. A fome de apreensão da verdade, identificada ontologicamente naestrutura cognoscitiva da intellectus fidei, denuncia a necessidade de com-preensão que a fé possui em sua dimensão de interacionalidade dialógica como ‘fato dado’ da experiência histórico-social. Afinal, é pressuposto do kerygmaa inteligibilização da fé expressa em termos de teleologia da comunicação dosseus próprios artigos. Na ontologia da fé, a intellectus deverá ser compreen-dida, peremptoriamente, como tentativa de responder uma dimensão trans-racional da realidade sensível que só compete ao saber teológico-religioso.A religião, aqui, se afirma como subsistema autopoiético com uma funçãoeminentemente desparadoxalizante da experiência histórica do homem inse-rido num sistema/contexto socioexistencial complexo. É claro que estadesparodoxalização não pode ser compreendida como tentativa pistológica18

de simplificar a densidade hermenêutica de fenômenos socioexistenciais (e/ou psicoantropológicos) presente numa configuração social com este perfil.Ao contrário, a resposta oferecida pelo saber teológico se torna complexa namedida que ele pretende hermeneutizar a dimensão supra-racional presentena tessitura virtual do imaginário religioso em que os outros saberes se tor-nam despersuasivos do ponto de vista epistemológico. Daí Luhmann enten-der como equivocado o vaticínio dos sistemas ateísticos da “modernidadesólida” no que tange à certeza do desaparecimento inevitável da religião do

Page 14: A Hermenêutica Da Compreensão

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 655-676, set./out. 2008.668

cenário histórico-social e cultural do Ocidente pós-iluminista. O ressurgi-mento da religião no contexto europeu nos primeiros anos depois da Segun-da Grande Guerra, diz Pannenberg, refletiu a fragilidade hermenêutica dacompreensão teleológica de história presente nas críticas feitas à religião teísticado Ocidente, produzindo, ao contrário do que se esperava, o efeito inverso nosentido de gerar dentro dela (a religião teística) a necessidade de oferecer uma“interpretação não-religiosa” da fé cristã a um contexto secular em crise. Estainiciativa aconteceu por parte de personalidades como Karl Barth e DietrichBonhöffer (PANNENBERG, 1975), muito embora este empreendimento,no caso deste último teólogo, tenha sido interrompido em função de sua morteprematura no contexto da Segunda Grande Guerra.

A compreensão da natureza e finalidade da fé colocada em situaçãode permanente interpretação dos processos inerentes à própria existênciahumana inserida num sistema socioexistencial complexo como o que aí está,faz, do ato hermenêutico, um salto qualitativo em direção a desmitologizaçãoda própria concepção mítica que as ciências humanas e naturais ainda têm dosaber teológico. No plano da hermenêutica, contudo, a epistemologia da fé nãoconsegue ser compreendida mais como ‘voz de veredicto’ que abarca compreen-sivamente a totalidade da realidade objetiva de maneira autônoma. Esta pre-tensão gnosiológica do discurso teológico não consegue agregar a simpatiados acadêmicos mais sóbrios desta área hoje em dia. No entanto, sua perti-nência como instrumento de compreensão de uma dimensão específica darealidade humana não pode ser preterida pelo discurso das demais ciências.A compreensão da realidade se tornou heurística de sobrevivência do própriosentido teleológico que se deve dar a ela (a teologia) como “saber interpreta-tivo-reflexivo” (nos sugeriu Luhmann) nos dias atuais, como há muito jáhavia sido mencionado por Paul Tillich em sua discussão sobre a naturezae o método da teologia nos tempos modernos.

A FIDES QUAERENS COMO MÉTODO DE COMPREENSÃO/APREENSÃO DA VERDADE CODIFICADA NA EXPERIÊNCIAHISTÓRICO-SOCIAL DO SUJEITO PÍSTICO-COGNOSCENTE

De acordo com Friedrich Gogarten, a origem sobrenatural da Bíbliase tornou insustentável devido à investigação histórica que se desenvolveuno final do século XIX. A dificuldade existente no epicentro desta críticaconsiste em não admitir a existência de duas classes de histórias separadasque se desenvolvem simultaneamente em planos de ações diferentes(GOGARTEN, 1977). A perspectiva de abordagem desmistificante pre-

Page 15: A Hermenêutica Da Compreensão

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 655-676, set./out. 2008. 669

sentes nas epistemologias modernas dos saberes científicos tornou fatigadoo pressuposto teológico da hermenêutica da compreensão da fides quaerensintellectum veritatem. As conseqüências desta atitude desmistificante emrelação ao saber teológico desembocaram na marginalização progressiva (paranão dizer quase irreversível) de sua epistemologia tradicional no âmbito dadiscussão sobre a função da teologia no mundo pós-metafísico (preocupa-ção esta que se ocupou Wolfhart Pannenberg). O pluralismo epistemológicopresente na chamada “modernidade líquida” (Bauman) predispôs os sabe-res acerca do homem, do mundo, da sociedade e do futuro da humanidadea um grau de fragilidade epistêmica tal que inviabilizou qualquer tentativahermenêutica de auspiciar uma metódica de aproximação maior daquiloque a tradição filosófico-teológica do Ocidente chamou de “verdade”(aletheia). Mas o som que ecoa desta proposição acima referenciada realçao seguinte questionamento que retumba dos anais epistemológicos dorelativismo presente na tradição racionalista do mundo moderno: Queverdade precisamos compreender, afinal?

Do ponto de vista teológico, a hermenêutica da verdade está relaci-onada à pergunta sobre o sentido da vida, muito embora Paul Ricoeur (1978)assinala para o fato de que, com o avanço da racionalidade produzida nocontexto da dessacralização, o conceito de “interioridade” acabou perden-do o sentido. O mistério da vida que caminha em direção sistemática rumoao desconhecido (futuro), contudo, deixa de ser irrelevante num contextopsicoexistencial em que a pergunta pelo sentido da vida tem sido variávelterapêutica fundamental que relaciona estabilidade emocional e saúde psi-cológica de um lado, e esperança de superação das contradições histórico-existenciais através da heurística da fé (sistema de crença operante), de outro19.A aporia proveniente deste paradoxo presente na gramática cotidiana dapsicologia da vida (na cultura ocidental moderna) poderá ser superada casose credite, ao conceito de “descomplexificação”20, a função “logoterápica”(Victor Frankl) reestruturante ao ser humano que vive em situação de crisediante de um “futuro imperscrutável” (Karl Rahner). A fé, no entanto,deve ser compreendida muito mais que um fenômeno ontológico signi-ficativo do ponto de vista de uma análise historiográfica ou psicoantro-pológica da religião. A fé, além de ser, em sua radical singularidade, o “ato(compreensivo) de captar o Incondicional”, e na ausência dela ele se torna“inapreensível” (TILLICH, 1973, p. 68), ela deve ser, outrossim, enten-dida em termos de perspectiva de compreensão/interpretação de toda rea-lidade pensada a partir dele. No dizer de Boff (1993), fazer teologia significaperguntar: o que tudo isso (realidade ecoantropológica e social existente)

Page 16: A Hermenêutica Da Compreensão

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 655-676, set./out. 2008.670

tem haver com Deus? A hermenêutica da compreensão é uma atribuiçãocognoscitiva constitutiva da fides que privilegia, no quaerens, sua metódicade apropriação/inteligibilização da própria veritas. A verdade, no entanto,não pode ser pensada aqui somente em relação ao “Incondicional” (PaulTillich) ou às realidades transcendentes, mas também em relação ao “con-tingencial”, no qual ela se torna variável de participação efetivo-construtivado processo progressivo de desvelamento dela mesma em sua inserção nomundo.

Quando se pergunta sobre a distância compreensiva entre um sujei-to cognoscente (que também é um interpretante) e uma realidade fenomênicacompreendida/interpretada, é importante dizer que a preocupação dahermenêutica da compreensão aqui pensada não pode ser o de revelar averdade em seu caráter singular e absoluto. A verdade é um construto quedeve ser pensado em termos de aproximação compreensiva progressiva, enunca como apropriação epistêmica de uma saber definitivo. Nas “concep-ções de mundo” (DILTHEY) que vão sendo construídas ao longo do pro-cesso histórico-interpretativo (Gadamer), a verdade não pode ser admitidade maneira unilinear e com uma tessitura monossignificante. Na polaridade“sujeito cognoscente” e “verdade/realidade compreendida” existe umaheurística da “percepção” (PONTY, 2000)21 que deve ser pensada em ter-mos de engenharia do saber cumulativo, e que nada tem haver com orelativismo gnosiológico presente na estrutura do saber fragmentário que seconfigura no cenário histórico-epistêmico da “segunda modernidade”(BECK). A noção de esgotamento da verdade pensada em termos de sabercientífico é tão primária quanto dogmática. Há elementos do saber acumu-lado culturalmente que não pode ser explicado cientificamente. A abscon-ditucidade também tem, nos recintos subterrâneos do patrimônio cognitivoda civilização ocidental contemporânea, sua legitimidade gnosiológica garan-tida e intocada. Neste sentido, o postulado do Esclarecimento (Aufklärung)de que o tijolo usado para edificar a parede do conhecimento da realidade deveser eminentemente racional perde seu caráter epistemológico hegemôniconormatizador, e abre novas e inúmeras possibilidades para se legitimar aconstrução dos diversos saberes em suas especificidades. Neste contexto, seriainadmissível promover, por razões de um preconceito mal fundamentado,a exclusão do saber teológico-religioso do cenário difuso e complexo dasociedade moderna, o que certamente soaria como ato unilateral de umacultura intolerante com o pensar diferente. A ‘fusão de horizontes’ inter-pretativos tem que pressupor, outrossim, a aceitação de saberes diferencia-dos, que em termos de construção cognitivo-hermenêutica da realidade, irá

Page 17: A Hermenêutica Da Compreensão

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 655-676, set./out. 2008. 671

significar acoplamento dos saberes existentes (o que Mannheim parece sugerirser a provável síntese) numa intersubjetividade hermenêutica significante.

A “ciência da fé” (HEIDEGGER, 1991) privilegia a verdade dosentido como seu lugar/objeto epistemológico mais significativo. Pensarnuma realidade/verdade que não pode ser descrita em termos de “lingua-gem objetiva” (crítica que se presta a filosofia da linguagem de Carnap eWittgenstein) não produz nela (na teologia) nenhum constrangimento deordem hermenêutica. Sua metódica de apreensão da realidade torna a ver-dade do sentido acerca da vida no mundo um trunfo que produz, no ima-ginário religioso do sujeito pístico, a certeza de que a história segue umadinâmica teleológica, mesmo em circunstâncias de ‘contradição’, que nafilosofia da história de Hegel é identificada como a “cruz do tempo presen-te”. Pensar a religião em termos de descomplexificação da realidade signi-fica admitir o paradoxo como possibilidade a ser superado. Por isso, o saberreligioso não foi pensado como “construção/projeção hipostática da cons-ciência”22 (FEUERBACH, 1989) do homem por Luhmann, mas como“função hermenêutica construtiva” a ser operacionalizada diante de umhorizonte socioexistencial compreendido em termos de incompletude eabsconditucidade.

Vale ressaltar aqui que esta concepção de função interpretativa da reli-gião renasce no cabedal hermenêutico do espírito religioso que surge no cenáriohistórico-eclesial do Brasil contemporâneo, criando, assim, uma espécie de“racionalidade alternativa” (BAUMAN, 1998)23 de caráter histórico-hermeneu-ticamente explicativo e normatizador. A fé tem sido compreendida, no atualcontexto evangélico-eclesial brasileiro, como heurística do verdadeiro conhe-cimento de um horizonte que está para além do horizonte historicamente de-terminado. Quanto mais se conhece esta outra-realidade-transcendente, tantomais controle/competência explicativa se acredita ter da realidade-aqui-imanente.A lógica da fé, neste sistema hermenêutico, tem uma natureza compreensivo-interpretativa de desvelamento, e não de esvaziamento de sentido. Não seriaexagero, numa breve digressão, comparar o novo modelo interpretativo evan-gélico-eclesial do Brasil contemporâneo com o chamado protognosticismo doperíodo helênico-cristão do primeiro século da era cristã. A realidade concreta,para este modelo hermenêutico evangélico-eclesial brasileiro, não se transformaem teodicéia do paradoxo da razão providente, mas em lugar possível da “trans-formação histórica da vida”, convertendo a expectativa parusíaca24 do reino nalinguagem de uma “esperança quiliástica” que traz o escatológico para dentroda história e a traduz (a esperança) em termos de “redenção escatológica domundo” (MOLTMANN, 2003, p. 20).

Page 18: A Hermenêutica Da Compreensão

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 655-676, set./out. 2008.672

Pensar a fé numa perspectiva epistemológica não é uma tarefa fácilde se fazer. O conhecimento que se erige a partir de sua fenomenologicidadepressupõe a admissão de uma verdade significativa existente como holofoteque ilumina a caverna escura que estabelece a ponte ‘compreensiva’ entre oconhecimento e o mistério. Sua pertinência hermenêutica no mundo atual,prenhe de contradições e vicissitudes, deve ser compreendida como neces-sária e insubstituível, dado o seu caráter emergentemente desparadoxalizante.A compreensão é o hodos (caminho) de ligação que tornará a realidadedesejada pela fé uma realidade inteligível, e a verdade que dela se desdobrauma possibilidade hermeneuticamente alcançável, ainda que de maneiraprogressiva e escatológica: “Simplesmente temos o sentido da distância entrea posse sempre relativa da verdade no plano humano e o fato de que estaverdade aponta para uma verdade inacessível que coincide com a própriarealidade do mistério de Deus” (GEFFRÉ, 2005, p. 39). Para fazer teologia épreciso, antes de tudo, aprender, com humildade cognitiva, o que significa“teologar” (BARTH, 2000). Esta é a razão pela qual Sto Agostinho com-preende a teologia como intellectus fidei. Haja vista que nela, a reflexividadehermenêutica deve ser entendida como “caminho de aproximação compreen-siva” da verdade da fé desejada por ela mesma, e não como teoria de consu-mação explicativa de seus próprios artigos. Por esta razão, a fides quaerensintellectum deve ser compreendida, como foi sugerida por Barth (2000),como um evento novo a cada dia da vida (BARTH, 2000, p. 62).

CONCLUSÃO

Que relevância há numa reflexão teológica que pretende interpretara relação entre fé e verdade? A princípio, eu diria que o tema é aparentemen-te desinteressante. No entanto, esta pergunta precisa ser reavaliada quandoa busca pela verdade produz, no senso da fé, convicções capazes de geraratitudes humanas que são incompreensíveis do ponto de vista da análiseracional, e que, muitas vezes, desafiam o senso da racionalidade de umamodernidade cada vez mais secularizada. A teologia, enquanto ciênciainterpretativa, tem sua contribuição a dar como instância de compreensãocognitiva que reflete a subjetividade da fé em sua inserção sócio-histórico-existencial. À medida que o horizonte histórico-cronológico da sociedademoderna se complexifica, a pergunta sobre a natureza reflexiva da intellectusfidei se tornará cada vez mais significativa. Penso que a teologia hoje estámadura o suficiente para dar sua contribuição como ciência do homem quetenta pensar a realidade humana a partir da perspectiva da fé. Este esforço

Page 19: A Hermenêutica Da Compreensão

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 655-676, set./out. 2008. 673

não é novo, mais precisa ser redefinido à luz de um novo horizonte de com-plexidade sociocultural e psicoexistencial que se configura na era em quetanto o evento da morte das verdades/valores absolutos (niilismo) quantoo fim das “grandes utopias” (Habermas) tornaram-se visibilizados na civi-lização ocidental moderna.

A pergunta pelo sentido25 da vida traz em cena o antigo problemaque deu origem a grande parte dos conflitos hermenêuticos da modernidadeocidental, a saber: a verdade, o que é? Esta pergunta está subentendida comohipótese de reconstrução da realidade percebida na estrutura epistêmica dadúvida metódica cartesiana. Ao tentar responder esta questão, a modernidadesuprimiu a reflexão da fé sob a justificativa de que ela se tornara ineficazcomo instrumento de compreensão do mundo e das relações que se estabe-lecem dentro dele. Esta é a tese do positivismo. Será que isto é verdade? Pareceque algumas das chamadas ciências tradicionais (tais como a psicologia, apsiquiatria, a neurociência, as ciências da saúde, etc) estão chegando a umoutro espectro compreensivo acerca da função/relevância da fé/religião nostempos modernos. Mas esta é uma questão que ficará para uma outra refle-xão26.

Notas

1 Esta é a sintomática conclusão a que se chega da proposta metodológica da filosofia cartesiana docogito ergo sum. Para melhor esclarecimento, cf. Descartes (1992).

2 Cf. o primeiro capítulo de Tillich (1980).3 Conceito utilizado na teoria da epistemologia teológica que significa “sujeito portador da fé” (GEFFRÉ,

2004).4 Para melhor esclarecer esta discussão, cf. Schillebeeckx (1973, p. 35-45).5 Esta definição feita acerca da natureza e o status quo da teologia enquanto ciência da interpretação

está presente na já citada obra de Clodovis Boff (1998). Esta definição também é compartilhada porum teólogo hermeneuta em sentido similar. Cf. Geffré (2004, p. 29-61).

6 Este pressuposto da hermenêutica fenomenológica de Heidegger influenciou, sobretudo, o sistemateológico de Rudolf Bultmann. Cf. Heidegger (1962).

7 Parece-me que cf. Habermas em sua polêmica com Gadamer desenvolvida em seu clássico Dialéticae Hermenêutica, também não vê um sistema de correspondência entre “mundo da vida” e o “mundoda ciência/conceito”. Cf. Bleicher (1980, p. 216-223).

8 Ricoeur (apud HELENO, 2001, p. 182) “enfatiza a noção de pertença e o facto de aquele que in-terroga fazer parte da própria coisa sobre a qual interroga”.

9 Este é um conceito de uso sistemático na teoria hermenêutica de Schleiermacher que significa iden-tificação compreensiva entre um interpretante e a (intenção) do interpretado.

10 Sobre esta discussão, Croatto (1984) propõe o conceito de eisegese com conceito mais apropriadopara se falar de processo hermenêutico.

11 Autores europeus propuseram criar um glossário do pensamento de Luhmann, no qual o conceitode religião é satisfatoriamente definido nele. Cf. Corsi, Esposito, Paraudi (1996, p. 138-40).

12 Para maiores esclarecimentos desta temática, cf. Berger (1969).

Page 20: A Hermenêutica Da Compreensão

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 655-676, set./out. 2008.674

13 A relação “fé e realidade concreta” aparece, posteriormente, na estrutura epistemológica do fazerteológico dos teólogos da libertação no contexto latino-americano. Cf. Metz (1969, p. 9-10).

14 Sugiro a leitura dos seis primeiros capítulos de Otto (1989).15 Para melhor esclarecimento, cf. Tillich (1962, p. 2ss).16 Uso este conceito na acepção semântica de Tillich segundo o qual a “teologia apologética é aquela

que responde a uma pergunta implícita configurada numa situação histórica específica”. Esta defi-nição está presente na introdução de Tiilich (1986).

17 Para maiores esclarecimentos, leiam a introdução de Gutiérrez (1984).18 Ciência que estuda o fenômeno das crenças em suas múltiplas manifestações. Pistis no grego significa

“fé, confiança ou crença”.19 A relação “sistema de crença” e “saúde psicológica” tem sido objeto de estudo/pesquisa de psiquia-

tras, psicólogos e de importantes centros de pesquisa no Brasil e Estados Unidos atualmente.20 A “descomplexificação do mundo” é uma tarefa hermenêutica que compete à religião como subsistema

autopoiético para Luhmann. O sentido que ela produz (a tarefa hermenêutica) revela a natureza efinalidade da religião na sociedade complexa de acordo com ele.

21 Percepção aqui significa “acesso à manifestação do mundo”. Sugiro a leitura de Ponty (2000).22 Esta compreensão foi desenvolvida por Feuerbach (1989) em sua obra prima.23 Este é um conceito que Bauman (1998) procura caracterizar o fundamentalismo como uma religião

tipicamente pós-moderna.24 Do grego parousia, significa “a segunda vinda de Cristo no eschaton (fim) da história”.25 A religião, no sentido weberiano, sobrevive na esfera do privado, como instância de produção de sentido

no nível subjetivo da vida humana. Cf. Weber (1967) e Gerth e Mills (1986, p. 347-70).26 Sugiro para leitura complementar, o livro recentemente traduzido para o português (Brasil) do então

Cardeal Ratzinger (2005).

Referências

APEL, K.-O. Transformação da filosofia I: filosofia analítica, semiótica e hermenêutica. São Paulo:Loyola, 2000.

BACHELARD, G. O novo espírito científico. Lisboa: Ed. 70, 1994.

BACHELARD, G. A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.

BARTH, K. Fé em busca de compreensão. São Paulo: Novo Século, 2000.

BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998.

BERGER, P. A rumor of angels: modern society and the rediscovery of the supernatural. Nova York:Doubleday & Company, 1969.

BLEICHER, J. Hermenêutica contemporânea. Lisboa: Ed. 70, 1980.

BOFF, C. Teoria do método teológico. Petrópolis: Vozes, 1998.

BOFF, L. Ecologia, mundialização e espiritualidade. São Paulo: Ática, 1993.

BULTMANN, R. Crer e compreender: artigos selecionados. São Leopoldo: Sinodal, 2001.

CORSI, G. C.; ESPOSITO, E.; PARAUDI, C. Glosario sobre la teoría social de Niklas Luhmann.Barcelona: Ed. da Universidad Iberoamerica, 1996.

CROATTO, J. S. Hermenêutica bíblica. São Leopoldo: Sinodal, 1984.

DESCARTES, R. Discurso do método. Lisboa: Edições 70, 1992.

FEUERBACH, L. A essência do cristianismo. Campinas: Papirus, 1989.

Page 21: A Hermenêutica Da Compreensão

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 655-676, set./out. 2008. 675

GADAMER, H.-G. Verdade e Método II: complementos e índices. Petrópolis: Vozes, 2002.

GEFFRÉ, C. Crer e interpretar: a virada hermenêutica da teologia. Petrópolis: Vozes, 2004.

GUTIÉRREZ, G. Teologia da libertação. Petrópolis: Vozes, 1984.

GOGARTEN, F. ¿Qué es cristianismo? Barcelona: Herder, 1977.

HEIDEGGER, M. Being and time. New York: Harpes & Row Publishers, 1962.

HEIDEGGER, M. Teologia y filosofía. Stromata, Salvador, Ano XLVII, n. 3/4, 1991.

HELENO, J. M. M. Hermenêutica e ontologia em Paul Ricoeur: Lisboa: Instituto Piaget, 2001.(Coleção Pensamento e Filosofia).

LAMBERT, D. Ciências e teologia: figuras de um diálogo. São Paulo: Loyola, 2002.

MANNHEIM, K. Ideologia e utopia. Rio de Janeiro: Globo, 1954.

METZ, J. B. Teologia do mundo. Lisboa: Moraes, 1969.

MOLTMANN, J. A vinda de Deus: escatologia cristã. São Leopoldo: Unisinos, 2003.

OTTO, R. O sagrado. Lisboa: Ed. 70, 1989.

PACE, E. Sociedade complexa e religião. In: PACE, E. Sociologia da Religião. São Paulo: Paulinas, 1990.

PANNENBERG, W. Teoria de la ciencia y teologia. Madrid: Livros Europa, 1981.

PANNENBERG, W. Revelation as history and as word of God. Systematic Theology, Michigan, v. 1,1988.

PANNENBERG, W. Escatologia y experiencia del sentido In: LEEUWEN, A, TH. Van;KOLAKOWSKI, L. El futuro de la religión. Salamanca: Sígueme, 1975.

PONTY, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: M. Fontes, 2000.

RATZINGER, J. Introdução ao cristianismo. São Paulo: Loyola, 2005.

RICOEUR, P. El lenguaje de la fé. Buenos Aires: Megápolis, 1978.

RICOEUR, P. Do texto à ação. Porto-Portugal: RÉS, 1989.

RICOEUR, P. Conflito das Interpretações: ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago, 1978.

RORTY, R. A filosofia e o espelho da natureza. Lisboa: Dom Quixote, 1988.

SCHILLEBEECKX, E. Interpretación de la fe: aportaciones a una teología hermenêutica y crítica.Salamanca: Sígueme, 1973.

TILLICH, P. Dynamics of faith. New York: Harpes & Brothers Publishers, 1962.

TILLICH, P. Filosofia de la religión. Buenos Aires: Megápolis, 1973.

TILLICH, P. História do pensamento cristão. São Paulo: Aste, 1980.

TILLICH, P. Teologia sistemática. São Paulo: Paulinas, 1986.

UNAMUNO, M. de. Do sentimento trágico da vida. São Paulo: M. Fontes, 1996.

VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: M. Fontes, 2001.

WEBER, M. Ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1967.

WEBER, M. As seitas protestantes e o espírito do capitalismo In: GERTH, H. H.; MILLS W. C.(Orgs.). Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1986.

Page 22: A Hermenêutica Da Compreensão

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 655-676, set./out. 2008.676

Abstract: this article that is now being offered to the academic public intendsto make theoretical-reflexive resources available that are capable of unveiling,through the epistemological prism of the phenomenology of faith, thepossibility of legitimizing the construction processes of a knowledge markedby the ‘irruption’ of the numinous in the sphere of the interpretativeperception of cognoscente subjects. The hermeneutic comprehension shouldhere be considered as a method of cognitive-apprehensive approximationof this super-sensitive reality that characterizes the degree of epistemicplausibility of the phenomenon that takes place among subjects that areinvolved in experiences of appropriating religious knowledge and whichlater, turns into the dynamic of the intellectus fidei, reflective theology(Niklas Luhmann).

Key words: hermeneutics of understanding, truth, Intellectus fidei, subjectcognoscente and interpretative attitude

ANDERSON CLAYTON PIRESDoutor em Teologia pelo Programa de Pós-Graduação da Escola Superior de Teologia em SãoLeopoldo. Doutorando em Sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em PortoAlegre (RS). Professor colaborador no Instituto Superior de Teologia Luterana (ISTL) em Goiânia.E-mail: [email protected]

CLÁUDIO IVAN DE OLIVEIRADoutor em Psicologia na Universidade de Brasília. Professor no Departamento de Psicologia daUniversidade Católica de Goiás e no ISTL em Goiânia.