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Sumário

O ser humano é maior que aguerra

“Não quero me lembrar…”“Cresçam meninas… Vocês

ainda estão verdes…”“Fui a única a voltar para minha

mãe”“Em nossa casa vivem duas

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guerras…”“O gancho do telefone não

atira”“Nos condecoravam com umas

medalhas pequenas…”“Não era eu”“Até agora me lembro daqueles

olhos…”“Não atirávamos”“Eram necessários soldados…

Mas também queríamos serbonitas…”

“Senhoritas! Vocês sabem queum comandante de pelotão desapadores só vive dois meses…”

“Só olhar uma vez…”“Sobre a batata miudinha…”

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“Mamãe, o que é papai?”“E ela botava a mão ali, onde

fica o coração…”“De repente me deu uma

vontade enorme de viver…”

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“Quando as mulheres entrarampara o Exército pela primeira vezna história?”

“Já no século IV a.C., em Atenase em Esparta, havia mulhereslutando nas tropas gregas. Depois,elas participaram das campanhasde Alexandre, o Grande.

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“O historiador russo NikolaiKaramzin escreveu sobre nossosantepassados: ‘As eslavas às vezesiam para a guerra com seus pais emaridos, sem temer a morte: assim,no cerco a Constantinopla em 626,os gregos encontraram várioscadáveres de mulheres entre oseslavos mortos. Uma mãe, aoeducar o filho, preparava-o paraser um guerreiro’.”

“E na Idade Moderna?”“Primeiro, na Inglaterra; nos

anos de 1560 a 1650 começaram ase formar hospitais militares emque mulheres-soldados serviam.”

“O que aconteceu no século

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XX?”“No começo do século… Na

Primeira Guerra Mundial, naInglaterra, já aceitavam mulheresna Força Aérea Real; foramformados um Corpo Auxiliar Reale uma Legião Feminina deTransporte Rodoviário: eram 100mil pessoas.

“Na Rússia, na Alemanha e naFrança, muitas mulheres tambémcomeçaram a servir em hospitaismilitares e em trens-enfermarias.

“Mas, na Segunda GuerraMundial, o mundo foi testemunhado fenômeno feminino. Em muitospaíses, as mulheres serviram em

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todas as forças armadas: nas tropasinglesas eram 225 mil; nasamericanas, 450, 500 mil; nasalemãs, 500 mil…

“No Exército soviético lutaramaproximadamente 1 milhão demulheres. Elas dominavam todasas especialidades militares,inclusive as mais ‘masculinas’.Surgiu até um problemalinguístico: as palavras ‘tanquista’,‘soldado de infantaria’, ‘atirador defuzil’, até aquela época, não tinhamgênero feminino, porque mulheresnunca tinham feito esse trabalho.O feminino dessas palavras nasceulá, na Guerra…”

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De uma conversa comum historiador

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O ser humano é maiorque a guerra(Do diário do livro)

Milhões de assassinadospor nadaAbriram um caminho naescuridão

Óssip Mandelstam

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1978-85

Estou escrevendo um livro sobrea guerra…

Eu, que nunca gostei de lerlivros de guerra, ainda que,durante minha infância ejuventude, essa fosse a leiturapreferida de todo mundo. De todomundo da minha idade. E isso nãosurpreende — éramos filhos daVitória. Filhos dos vencedores.Qual é minha primeira lembrançada guerra? Minha tristeza infantilentre palavras assustadoras eincompreensíveis. Estavam sempre

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relembrando a guerra: na escola eem casa, nos casamentos ebatizados, nos feriados e velórios.Até nas conversas das crianças. Ummenino da vizinhança uma vez meperguntou: “O que as pessoasfazem embaixo da terra? Comoeles vivem lá?”. Nós tambémqueríamos decifrar o mistério daguerra.

Foi então que comecei a refletirsobre a morte… E nunca maisparei de pensar nela, tornou-separa mim o principal mistério davida.

Para nós, tudo começavanaquele mundo distante e

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misterioso. Em nossa família, meuavô ucraniano, pai da minha mãe,morreu no front, foi enterrado emalgum lugar em terras húngaras;minha avó bielorrussa, mãe domeu pai, morreu de tifo entre ospartisans; de seus três filhos, doisserviram no Exército edesapareceram nos primeirosmeses da guerra, só um voltou.Meu pai. Onze parentes distantes,junto com os filhos, foramqueimados vivos pelos alemães —uns em sua casa, outros na igrejada vila. Em todas as famíliasacontecia o mesmo. Em todas.

Os meninos das aldeias ainda

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por muito tempo brincaram de“alemães” e “russos”. Gritavampalavras em alemão: “Händehoch!”, “Zurück”, “Hitler kaput!”.1

Não sabíamos como era omundo sem guerra, o mundo daguerra era o único queconhecíamos, e as pessoas daguerra eram as únicas queconhecíamos. Até agora nãoconheço outro mundo, outraspessoas. Por acaso existiram emalgum momento?

A vila de minha infância depoisda guerra era feminina. Das

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mulheres. Não me lembro de vozesmasculinas. Tanto que isso ficoucomigo: quem conta a guerra sãoas mulheres. Choram. Cantamenquanto choram.

Na biblioteca da escola, metadedos livros era sobre a guerra. Tantona biblioteca rural quanto na dodistrito, onde meu pai sempre iapegar livros. Agora, tenho umaresposta, um porquê. Como ia serpor acaso? Estávamos o tempo todoem guerra ou nos preparando paraela. E rememorando comocombatíamos. Nunca tínhamosvivido de outra forma, talvez nemsaibamos como fazer isso. Não

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imaginamos outro modo de viver,teremos que passar um tempoaprendendo.

Na escola, nos ensinavam aamar a morte. Escrevíamosredações dizendo como queríamosmorrer em nome de…Sonhávamos com isso…

Mas as vozes na rua gritavamoutras coisas, me atraíam mais.

Por muito tempo fui uma pessoados livros: a realidade me assustavae atraía. Desse desconhecimentoda vida surgiu uma coragem.Agora penso: se eu fosse umapessoa mais ligada à realidade,teria sido capaz de me lançar nesse

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abismo? De onde veio tudo isso:do desconhecimento? Ou foi umaintuição do caminho? Pois aintuição do caminho existe…

Passei muito tempoprocurando… Com que palavrasseria possível transmitir o queescuto? Procurava um gênero querespondesse à forma como vejo omundo, como se estruturam meusolhos, meus ouvidos.

Uma vez, veio parar em minhasmãos o livro Ia iz ógnennoi deriévni[Eu venho de uma vila emchamas], de Aliés Adamóvitch,Iánka Bril e Vladímir Koliésnik. Sótinha sentido essa estupefação uma

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vez, ao ler Dostoiévski. Tinha umaforma incomum: um romanceconstituído a partir de vozes daprópria vida, do que eu escutara nainfância, do que agora se escuta narua, em casa, no café, no trólebus.É isso! O círculo se fechou. Achei oque estava procurando. O queestava pressentindo.

Aliés Adamóvitch tornou-semeu professor…

Durante dois anos, mais do quefazer entrevistas e tomar notas, eufiquei pensando. Lendo. Sobre oque será meu livro? Ah, mais um

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livro sobre a guerra… Para quê? Jáaconteceram milhares de guerras— pequenas e grandes, famosas edesconhecidas. E o que se escreveusobre elas é ainda mais numeroso.Mas… Foi escrito por homens esobre homens, isso ficou claro nahora. Tudo o que sabemos daguerra conhecemos por uma “vozmasculina”. Somos todosprisioneiros de representações esensações “masculinas” da guerra.Das palavras “masculinas”. Já asmulheres estão caladas. Ninguém,além de mim, fazia perguntas paraminha avó. Para minha mãe. Atéas que estiveram no front estão

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caladas. Se de repente começam alembrar, contam não a guerra“feminina”, mas a “masculina”.Seguem o cânone. E só em casa, oudepois de derramar algumalágrima junto às amigas do front,elas começam a falar da sua guerra,que eu desconhecia. Não só eu,todos nós. Em minhas viagensjornalísticas, mais de uma vez fuitestemunha, a única ouvinte detextos absolutamente novos. Eexperimentava um espanto igual aode minha infância. Nesses relatostransparecia o esgar monstruoso domistério… Quando as mulheresfalam, não aparece nunca, ou

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quase nunca, aquilo que estamosacostumados a ler e escutar: comoumas pessoas heroicamentemataram outras e venceram. Ouperderam. Qual foi a técnica equais eram os generais. Os relatosfemininos são outros e falam deoutras coisas. A guerra “feminina”tem suas próprias cores, cheiros,sua iluminação e seu espaçosentimental. Suas próprias palavras.Nela, não há heróis nem façanhasincríveis, há apenas pessoasocupadas com uma tarefadesumanamente humana. E alinão sofrem apenas elas (aspessoas!), mas também a terra, os

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pássaros, as árvores. Todos os quevivem conosco na terra. Sofremsem palavras, o que é ainda maisterrível.

Mas por quê? — perguntei-memais de uma vez. — Por que,depois de defender e ocupar seulugar em um mundo antesabsolutamente masculino, asmulheres não defenderam suahistória? Suas palavras e seussentimentos? Não deram crédito asi mesmas. Um mundo inteiro foiescondido de nós. A guerra delaspermaneceu desconhecida…

Quero escrever a história dessaguerra. A história das mulheres.

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* * *

Depois dos primeirosencontros…

O espanto: mulheres quetiveram profissões militares —enfermeira-instrutora,francoatiradora, atiradora demetralhadora, comandante decanhão antiaéreo, sapadora —agora são contadoras, auxiliares delaboratório, guias turísticas,professoras de escola… Os papéislá e cá não combinam. Recordamcomo se não estivessem falando desi mesmas, mas de outras garotas.Hoje, se espantam consigo. E aos

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meus olhos a história vai “sehumanizando”, ficando maisparecida com a vida comum. Surgeoutra interpretação.

Encontram-se narradorasformidáveis, elas têm páginas navida que rivalizam com asmelhores páginas dos clássicos. Oser humano vê a si mesmo comtanta clareza de cima — a partir docéu —, e de baixo — a partir daterra. Diante dele há todo umcaminho para cima e para baixo: deanjo a animal. As lembranças nãosão um relato apaixonado oudesapaixonado de uma realidadeque desapareceu, mas um

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renascimento do passado, quandoo tempo se volta para trás. Antesde mais nada, é uma criação. Aocontar, as pessoas criam,“escrevem” sua vida. Aconteceinclusive de “acrescentarem” e“reescreverem” passagens. Quantoa isso, é preciso ficar alerta. Deguarda. Ao mesmo tempo a dorfunde e aniquila qualquerfalseamento. A temperatura é altademais! Os mais sinceros, estouconvencida, são as pessoas simples— enfermeiras, cozinheiras,lavadeiras… Elas — como definircom mais precisão? — tiram aspalavras de si mesmas, e não dos

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jornais ou dos livros que leram,não do que é alheio. Apenas dospróprios sofrimentos e emoções. Ossentimentos e a linguagem daspessoas cultas, por mais estranhoque pareça, estão mais sujeitos aser reelaborados pelo tempo. Pelacodificação geral. Contaminadospelo conhecimento indireto. Pelosmitos. Às vezes, é preciso percorrerum longo caminho, dar váriasvoltas, para escutar um relato daguerra “feminina”, e não da“masculina”; como foi a retirada, oataque, em que lugar do front…Exige não só um encontro, masvárias sessões. Como um retratista

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insistente.Passo muito tempo sentada em

casas ou apartamentosdesconhecidos, às vezes o diainteiro. Bebemos chá,experimentamos blusinhas recém-compradas, discutimos cortes decabelo e receitas. Olhamos juntasas fotos dos netos. E então…Depois de certo tempo, nunca sesabe quanto nem por quê, derepente chega aquele esperadomomento em que a pessoa seafasta do cânone — feito de gesso econcreto armado, como nossosmonumentos — e se volta para si.Para dentro de si. Começa a

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lembrar não da guerra, mas de suajuventude. De um pedaço da suavida… É preciso capturar essemomento. Não deixar passar! Mas,muitas vezes, depois de um dialongo, cheio de palavras, fatos,lágrimas, só resta uma frase namemória (mas que frase!): “Eu eratão pequena quando fui para ofront que, durante a guerra, atécresci um pouco”. Eu a deixo nobloquinho de anotações, apesar devoltar com dezenas de metros defita no gravador. Quatro ou cincofitas cassete…

O que me ajuda? O que meajuda é estarmos acostumadas a

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viver juntas. Em comunidade.Somos gente da comunhão. Tudoentre nós acontece na presença dosoutros — tanto as alegrias quantoas lágrimas. Somos capazes desofrer e contar o sofrimento. Osofrimento justifica nossa vida durae sem graça. Para nós, a dor é umaarte. É preciso reconhecer que asmulheres se lançam nesse caminhocom coragem…

* * *

Como elas me recebem?Me chamam de “menina”,

“filhinha”, “mocinha”; se eu fosse

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da mesma geração que elas, talvezse comportassem de outra forma.Com tranquiladade, de igual paraigual. Sem a alegria e a surpresaque acompanham o encontro entrejuventude e velhice. Este é umelemento muito importante: naépoca elas eram jovens e agora selembram disso na velhice. Estãolembrando depois de uma vida —depois de quarenta anos. Merevelam seu mundo com cuidado,preservando-se: “Me casei logodepois da guerra. Me escondi atrásdo meu marido. Atrás do dia a dia,das fraldas das crianças. Meescondi com gosto. Minha mãe

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também me pedia: ‘Fique calada!Fique calada! Não confesse’.Cumpri meu dever perante apátria, mas fico triste de ter estadolá. De conhecer aquilo… E você étão mocinha. Fico com pena devocê…”. Muitas vezes reparo emcomo elas estão escutando a simesmas. O som de sua alma.Conferindo-o com suas palavras.Depois de longos anos, a pessoaentende que aquilo era a vida, eque agora é preciso fazer as pazes ese preparar para a partida. Contra avontade e com pena dedesaparecer assim sem mais nemmenos. Sem cuidado. Na

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caminhada. E, ao voltar o olharpara trás, nele está presente não sóo desejo de contar sua história,mas também de alcançar o mistérioda vida. Responder para si mesmaà pergunta: para que aconteceutudo isso? Elas olham para tudocom o olhar triste, de quem sedespede um pouco… Quase dolado de lá… Não há por queenganar os outros e enganar a simesmas. Elas já entenderam que,sem a ideia de morte, não se podedistinguir nada no ser humano.Seu mistério existe acima de tudo.

A guerra é um sofrimentoíntimo demais. E tão infinito

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quanto a vida humana…Certa vez, uma mulher que

havia sido piloto recusou-se a seencontrar comigo. Por telefone,explicou: “Não posso… Não querolembrar. Passei três anos naguerra… E, nesses três anos, nãome senti mulher. Meu organismoperdeu a vida. Eu não menstruava,não tinha quase nenhum desejofeminino. E era bonita… Quandomeu futuro marido me pediu emcasamento… Isso já em Berlim, aolado do Reichstag… Ele disse: ‘Aguerra acabou. Sobrevivemos.Tivemos sorte. Case comigo’. Euqueria chorar. Começar a gritar.

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Bater nele! Como assim casar?Agora? No meio de tudo isso —casar? No meio da fuligem preta,de tijolos pretos… Olhe paramim… Veja em que estado estou!Primeiro, faça de mim umamulher: me dê flores, flertecomigo, diga palavras bonitas. Euquero tanto isso! Esperei tanto! Porpouco não bati nele… Queriabater… Uma de suas bochechasestava queimada, vermelha, e eu vique ele tinha entendido tudo:desciam lágrimas por essabochecha. Pelas cicatrizes aindarecentes… E eu mesma nãoacreditei que estava dizendo: ‘Sim,

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eu me caso com você’.“Desculpe… Não posso…”Eu a entendi. Mas isso também

é uma página ou meia do futurolivro.

Textos, textos. Textos para todolado. Nos apartamentos da cidadee nas casas do campo, na rua e notrem… Vou escutando… Cada vezmais vou me transformando emum grande ouvido, sempre voltadopara outra pessoa. “Leio” a voz.

O ser humano é maior do que aguerra…

A memória guarda justamente

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os momentos em que ele foi maior.Ali, ele é guiado por algo maisforte do que a história. Precisopegar o que é mais amplo —escrever a verdade sobre a vida e amorte em geral, e não só a verdadesobre a guerra. Fazer a pergunta deDostoiévski: o quanto há dehumano no ser humano, e comoproteger esse humano em si? Semdúvida, o mal é tentador. Ele émais hábil do que o bem. Maisatraente. Mergulho cada vez maisfundo no infinito mundo daguerra, todo o resto perde umpouco das cores, torna-se maiscomum do que o comum. Um

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mundo grandioso e feroz. Entendoagora a solidão da pessoa que voltade lá. É como se viesse de outroplaneta ou do além. Ela tem oconhecimento de algo que osoutros não têm, e só é possívelconquistá-lo ali, perto da morte.Quando tenta transformar isso empalavras, tem a sensação de umacatástrofe. A pessoa se cala. Elaquer contar, o resto queriaentender, mas estão todosimpotentes.

O espaço delas é semprediferente do de seus ouvintes.Estão rodeadas por um mundoinvisível. Pelo menos três pessoas

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fazem parte da conversa: a que estácontando agora, a pessoa que elaera na época em que aconteceu eeu. Meu objetivo é, antes de maisnada, extrair a verdade daquelesanos. Daqueles dias. Sem falsear ossentimentos. Logo depois daguerra, a pessoa contaria umaguerra; passadas dezenas de anos,claro, algo muda, porque eladeposita nas lembranças toda a suavida. Tudo de si. Aquilo que viveunesses anos, o que leu, viu, quemencontrou. Por fim, se é feliz ouinfeliz. Se conversamos a sós ou sehá mais alguém por perto. Família?Amigos — quais? Se são amigos do

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front, é uma coisa; se são osdemais, é outra. Os documentossão seres vivos, eles mudam evacilam junto conosco, é possívelextrair algo deles eternamente.Algo novo que nos é necessáriojustamente agora. Neste minuto. Oque estamos procurando? Emgeral, o que nos parece maisinteressante e próximo não são osgrandes feitos e o heroísmo, masaquilo que é pequeno e humano.Por exemplo, o que eu maisgostaria de saber sobre a vida naGrécia antiga… Sobre a história deEsparta… Eu gostaria de ler sobreo que as pessoas conversavam em

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casa. Como partiam para a guerra.Que palavras diziam no último diae na última noite antes de seseparar daqueles que amavam.Como se despediam os guerreiros.Como eram esperados na volta daguerra… Não os heróis e chefesmilitares, mas as pessoas comuns.

A história relatada por umatestemunha ou por um participanteque ninguém notou. Sim, é issoque me interessa, é isso que eugostaria de transformar emliteratura. Mas as pessoas quecontavam não eram apenastestemunhas, menos que tudotestemunhas: eram atores e

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criadores. É impossível chegarmuito perto da realidade, cara acara. Entre a realidade e nósexistem os nossos sentimentos.Entendo que estou lidando comversões, cada um tem a sua, edelas, do volume e do cruzamentodelas, nasce a imagem do tempo edas pessoas que vivem nele. Eu nãogostaria que, a respeito do meulivro, dissessem: os personagensdela são reais e nada mais. Quedissessem: é a história. Apenas ahistória.

Não estou escrevendo sobre aguerra, mas sobre o ser humano naguerra. Não estou escrevendo a

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história de uma guerra, mas ahistória dos sentimentos. Sou umahistoriadora da alma. Por um lado,investigo o ser humano concreto,que viveu em um tempo concreto eque participou de acontecimentosconcretos; por outro, precisodistinguir neles o ser humanoeterno. A vibração da eternidade.Aquilo que sempre existe no serhumano.

Dizem: ah, mas memórias nãosão nem história, nem literatura. Ésó a vida, cheia de lixo e sem alimpeza feita pelas mãos do artista.Nosso cotidiano está repleto damatéria-prima da fala. Esses tijolos

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estão espalhados por todo lado.Mas os tijolos ainda não são otemplo! Para mim é tudodiferente… Justo ali, na calidez davoz humana, no reflexo vivo dopassado, está escondida umaalegria primitiva, e se desvela aintransponível tragicidade da vida.Seu caos e paixão. Seu caráterúnico e insondável. Ali, eles aindanão foram submetidos a nenhumaelaboração. São originais.

Construo templos a partir denossos sentimentos… De nossosdesejos, decepções. Sonhos.Daquilo que aconteceu, mas podesumir.

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* * *

De novo sobre a mesma coisa…Me interessa não apenas arealidade que nos circunda, mastambém aquela que está dentro denós. Não me interessa o próprioacontecimento, mas oacontecimento dos sentimentos.Digamos assim: a alma doacontecimento. Para mim, ossentimentos são a realidade.

E a história? Ela está na rua. Namultidão. Acredito que em cadaum de nós há um pedacinho dahistória. Um tem meiapaginazinha, outro tem duas ou

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três. Juntos, estamos escrevendo olivro do tempo. Cada um grita suaverdade. O pesadelo das nuances.E é preciso ouvir tudo issoseparadamente, dissolver-se emtudo isso e transformar-se em tudoisso. E, ao mesmo tempo, nãoperder a si mesmo. Unir o discursoda rua e da literatura. Outracomplexidade está no fato de queestamos falando do passado com alíngua de hoje. Como transmitirpor meio dela os sentimentosdaqueles dias?

De manhã, pelo telefone: “Nós

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não nos conhecemos… Mas eucheguei da Crimeia, estou ligandoda estação de trem. Fica longe dasua casa? Quero lhe contar minhaguerra…”.

Assim?!Eu e minha filha estávamos nos

aprontando para ir ao parque.Andar no carrossel. Como explicarpara uma menina de seis anos oque eu faço? Pouco tempo atrás,ela me perguntou: “O que éguerra?”. Como responder? Querosoltá-la nesse mundo com umcoração terno, e ensino que não sepode arrancar uma flor semmotivo. Dá pena de esmagar uma

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joaninha, de arrancar a asinha deuma libélula. Como explicar aguerra a uma criança? Comoexplicar a morte? E responder àpergunta: por que lá matam?Matam até os pequenos, como ela.Nós, os adultos, formamos umaespécie de complô. Entendemos doque se trata. Mas e as crianças?Depois da guerra, meus pais meexplicaram de alguma forma, maseu não consigo explicar para minhafilha. Encontrar as palavras.Gostamos cada vez menos daguerra, é cada vez mais difícilencontrar uma justificativa paraela. Para nós já é apenas uma

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matança. Ao menos para mim.Devia escrever um livro sobre a

guerra que provoque náuseas e quefaça a própria ideia de guerraparecer repugnante. Louca. Ospróprios generais ficariamnauseados…

Essa lógica “feminina” deixoumeus amigos baratinados (aocontrário das minhas amigas). Denovo escuto o argumento“masculino”: “Você não esteve naguerra”. Talvez isso seja bom: nãoconheço a paixão do ódio, tenhouma visão normal. Não militar,não masculina.

Existe na óptica o conceito de

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“tempo de exposição” — acapacidade da objetiva de fixarmelhor ou pior a imagem captada.A memória feminina sobre aguerra, em termos de concentraçãode sentimentos e de dor, é a quetem mais “tempo de exposição”. Euaté diria que a guerra “feminina” émais terrível que a “masculina”. Oshomens se escondem atrás dahistória, dos fatos, a guerra osencanta como ação e oposição deideias, diferentes interesses, mas asmulheres são envolvidas pelossentimentos. E mais: desde ainfância, os homens são preparadospara que, talvez, tenham que

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atirar. Não se ensina isso àsmulheres… elas não se aprontarampara fazer esse trabalho… E elaslembram de outras coisas, oulembram de outra forma. Sãocapazes de ver o que estáescondido para os homens. Vourepetir mais uma vez: a guerradelas tem cheiro, cor, o mundodetalhado da existência; “nosderam sacolas, e com elascosturamos sainhas”; “no centro dealistamento, entrei por uma portade vestido e saí pela outra de calçase camisa militar: cortaram minhatrança, na cabeça só sobrou umtopetinho…”; “os alemães

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fuzilaram a aldeia e foramembora… Chegamos naquelelugar: areia amarela pisada e, emcima, uma botinha de criança…”.Mais de uma vez me avisaram(especialmente homens escritores):“As mulheres vão inventar paravocê. Vão criar”. Mas eu cheguei àconclusão: é impossível inventarisso. Copiar de alguém? Se épossível copiar isso, é só da vida; sóela tem tamanha fantasia.

Não importa de que falem asmulheres, nelas estava semprepresente a ideia de que a guerra ésó uma matança, e depois, trabalhoduro. E então só a vida habitual:

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cantavam, se apaixonavam, usavambobes de cabelo…

No centro, sempre o fato de nãoquerer e não aguentar morrer. E éainda mais insuportável eangustiante matar, porque amulher dá a vida. Presenteia.Carrega-a por muito tempo dentrode si, cria. Entendi que para asmulheres é mais difícil matar.

Os homens… A contragosto elesdeixam as mulheres entrar em suaguerra, em seu território.

Fui procurar uma mulher nafábrica de tratores de Minsk; ela

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tinha sido francoatiradora. Efamosa. Apareceu mais de uma vezem manchetes de jornal. As amigasdela me deram o número dotelefone de sua casa em Moscou,mas era antigo. Sobrenometambém, eu só tinha o de solteira.Fui à fábrica onde, como eu sabia,ela trabalhava, e no departamentopessoal escutei dos homens (dodiretor da fábrica e do chefe dodepartamento): “Por acaso faltahomem para isso? Para que vocêquer essas histórias de mulher?Fantasias de mulher…”. Oshomens tinham medo de que elasnão contassem direito a guerra.

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Estive com uma família…Tinham lutado o marido e amulher. Se conheceram no front ese casaram lá mesmo:“Organizamos nosso casamento natrincheira. Antes do combate. Epara costurar o vestido branco useium paraquedas alemão”. Ele eraatirador de metralhadora, ela eramensageira. O homem na horamandou a mulher para a cozinha:“Vá cozinhar alguma coisa para agente”. A chaleira já tinha fervido,os sanduíches já estavampreparados, ela sentou conosco,mas o marido a fez levantar alimesmo: “Mas cadê os morangos?

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O nosso presentinho da datcha?”.Depois de meus pedidosinsistentes, ele cedeu seu lugar acontragosto, dizendo: “Conte comoeu te ensinei. Sem chorar e semessas ninharias de mulher; quequeria ser bonita, que chorouquando cortaram a trança”. Depoisela confessou para mim,sussurrando: “Ele passou a noiteestudando comigo um livro dehistória da Grande GuerraPatriótica.2 Estava com medo pormim. E agora deve estar aflito deque não lembre direito. Nãolembre do jeito certo”.

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Isso aconteceu mais de uma vez,em mais de uma casa.

Sim, elas choram muito. Gritam.Depois que eu saio, tomamremédios para o coração. Chamama “emergência”. Mas mesmo assimme pedem: “Volte. Volte sem falta.Ficamos em silêncio por tantotempo. Quarenta anos emsilêncio…”.

Entendo que o choro e o gritonão devem ser trabalhados, senãoo mais importante não vai ser ochoro nem o grito, mas aelaboração. Em lugar de vida, vaisobrar literatura. Esse é o material,a temperatura desse material.

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Sempre extrapola o limite. Umapessoa fica mais exposta e se revelamais, acima de tudo, na guerra e,talvez, no amor. Até no que é maisprofundo, até as camadas debaixoda pele. Diante da face da morte,todas as ideias empalidecem e serevela a eternidadeincompreensível, para a qualninguém está preparado. Aindavivemos na história, e não nocosmos.

Mais de uma vez recebi o textomandado para leitura comanotações: “Não precisa falardessas ninharias… Escreva sobrenossa grande Vitória…”. Mas as

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ninharias eram o principal paramim — o calor e a clareza da vida:o topetinho deixado no lugar dastranças, os caldeirões quentes commingau e sopa sem ninguém queos coma, pois de cem homens setevoltaram do combate; ou como,depois da guerra, era difícil ir àfeira e olhar as barracas de carnevermelha… Até a chita vermelha…“Ah, minha querida, já sepassaram quarenta anos, mas naminha casa você não encontranada vermelho. Desde a guerra,odeio vermelho!”

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Escuto a dor com atenção… Ador como prova da vida passada.Não existem outras provas, nãoconfio em outras provas. Mais deuma vez, as palavras nos levampara longe da verdade.

Penso no sofrimento como ograu mais alto de informação,diretamente conectado ao mistério.Ao mistério da vida. Toda aliteratura russa fala disso. Nela seescreveu mais sobre o sofrimentodo que sobre o amor.

E é a respeito disso que mais mecontam…

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O que elas são, russas ousoviéticas? Não, elas foramsoviéticas — e também russas,bielorrussas, ucranianas,tadjiques…

E, apesar de tudo, ele existiu, ohomem soviético. Pessoas assim,acho, não vão existir nunca mais,eles mesmos já entenderam isso.Até nós, seus filhos, somosdiferentes. Queríamos ser comotodo o resto. Parecidos não comnossos pais, mas com o mundo. E oque falar sobre os netos, então…

Mas eu os amo. Eu os admiro.Eles tiveram Stálin e o gulag, mastambém tiveram a Vitória. E eles

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sabem disso.Há pouco tempo recebi uma

carta:“Minha filha me ama muito: sou

a heroína dela. Se ela ler o seulivro, vai sofrer uma grandedecepção. Sujeira, piolhos, umainfinidade de sangue — tudo isso éverdade. Não nego. Mas será que alembrança disso é capaz de darorigem a sentimentos nobres?Preparar alguém para um grandefeito?”

Mais de uma vez me convenci:… nossa memória não é nem de

longe o instrumento ideal. Ela nãosó é arbitrária e caprichosa como

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está amarrada ao tempo, como umcachorro.

… olhamos para o passado apartir de hoje, não podemos olharde lugar nenhum.

… e, além disso, elas sãoapaixonadas pelo que aconteceucom elas, porque não se trata só daguerra, mas também de suajuventude. Do primeiro amor.

Escuto quando elas falam…Escuto quando estão caladas…Tanto as palavras quanto o silênciosão texto para mim.

“Isso não é para pôr no livro, é

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para você. Os mais velhos… Elesficavam sentados no trem,pensativos… Tristes. Lembro queum major começou a falar comigouma noite, quando todos estavamdormindo, sobre Stálin. Ele bebeutodas, criou coragem e confessouque seu pai já estava havia dezanos num campo de trabalho, semdireito a correspondência. Seestava vivo ou não, ninguém sabia.Esse major soltou umas palavrasterríveis: ‘Quero defender a pátria,mas não quero defender essetraidor da revolução: Stálin’. Eununca tinha escutado essaspalavras… Me assustei.

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Felizmente, de manhã eledesapareceu. Deve ter idoembora…”

“Te digo em segredo… Fizamizade com Oksána, ela era daUcrânia. Ouvi dela pela primeiravez a respeito da terrível fome naUcrânia. Holodomor. Já nãoencontravam nem sapos, nemratos: tinham comido tudo.Metade das pessoas do povoadodela tinha morrido. Morreramtodos: os irmãos mais novos, o paie a mãe, e ela se salvou porque ànoite roubava estrume de cavalodo estábulo do colcoz e comia.Ninguém conseguia comer, mas ela

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comia: ‘Quente não entra na boca,mas quando está frio a genteconsegue. Melhor congelado, temcheiro de feno’. Eu dizia: ‘Oksána,o camarada Stálin está batalhando.Ele está acabando com ossabotadores, mas são muitos’.‘Não’, ela respondia, ‘você é boba.Meu pai era professor de história eme falava: ‘Um dia o camaradaStálin vai responder por seuscrimes…’

“À noite, deitada, fiqueipensando: será que Oksána é umainimiga? Uma espiã? O que fazer?Dois dias depois ela morreu emuma batalha. Não sobrou nenhum

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parente dela, não havia ninguémpara mandar a notificação deóbito…”

Tocam nesse tema raramente ecom cuidado. Até hoje estãoparalisadas não só pela hipnose epelo medo de Stálin, mas tambémpor sua fé anterior. Ainda nãoconseguem deixar de amar aquiloque amavam. A coragem na guerrae a coragem de pensamento sãoduas coragens diferentes. E euachava que era a mesma coisa.

O manuscrito está na gaveta hámuito tempo…

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Já faz dois anos que receborecusas das editoras. Silêncio dasrevistas. A sentença é sempre amesma: é uma guerra terríveldemais. Muito horror.Naturalismo. Não há menção àliderança e à orientação do PartidoComunista. Em outras palavras,não é a guerra certa… E qual seria?Com generais e o sábiogeneralíssimo? Sem sangue e sempiolhos? Com heróis e façanhas?Mas me lembro da infância: euandava com minha avó ao longode um grande campo, e ela iacontando: “Depois da guerra, pormuito tempo não nascia nada

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nesse campo. Os alemães já tinhamse retirado… E aqui houvera umcombate, se confrontaram por doisdias… Os mortos jaziam um aolado do outro, como pilhas. Comodormentes nos trilhos da estaçãode trem. Os alemães e os nossos.Depois da chuva, todos ficaramcom cara de choro. Toda a aldeiapassou um mês inteiro enterrando-os…”

Como posso me esquecer dessecampo?

Não fico só anotando. Eu coleto,sigo as pistas do espírito humano,ali onde o sofrimento faz dealguém pequeno uma pessoa

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grandiosa. Onde a pessoa cresce. Eentão, para mim, ela já deixa de serum proletariado mudo einsignificante da história. Sua almatransparece. Mas em que consistemeu conflito com o poder? Entendique uma grande ideia precisa depessoas pequenas, e não de alguémgrande. Para ela, o grande ésupérfluo e incômodo. Dá trabalhopara moldar. E é por ele queprocuro. Procuro pelo pequenogrande ser humano. Humilhado,pisoteado, ofendido — ele passoupelos campos de trabalho stalinistase pela traição, e mesmo assimvenceu. Realizou um milagre.

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Mas a história da guerra foisubstituída pela história da Vitória.

Ele mesmo contará isso…

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DEZESSETE ANOS DEPOIS — 2002-4

Estou lendo meu velho diário…Tento me lembrar da pessoa que

eu era quando escrevi o livro.Aquela pessoa já não existe, assimcomo não existe o país em quevivíamos naquela época. O paísque defendíamos e em nome doqual morríamos entre 1941 e 1945.Do outro lado da janela tudo estádiferente: um novo milênio, novasguerras, novas ideias, novas armase um russo (mais precisamente,russo-soviético) que setransformou de maneira

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absolutamente inesperada.Começou a perestroika de

Gorbatchóv… Meu livro foipublicado e teve uma tiragemimpressionante — 2 milhões deexemplares. Era uma época em quehavia muitos acontecimentosextraordinários, de novo noslançamos furiosamente rumo aalguma coisa. Mais uma vez rumoao futuro. Ainda não sabíamos (ouhavíamos esquecido) que arevolução é sempre uma ilusão,especialmente na nossa história.Mas isso será depois; na ocasiãoestávamos todos embriagados peloar da liberdade. Comecei a receber

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dezenas de cartas todos os dias,minhas pastas iam engordando. Aspessoas queriam falar… Dizertudo… Ficaram mais livres e maissinceras. Não me restava dúvida deque eu estava condenada acompletar eternamente meu livro.Não reescrever, mas completar.Você põe o ponto final, e alimesmo ele se transforma emreticências…

Acho que hoje eu fariaperguntas diferentes e escutariahistórias diferentes. Eu teria escritooutro livro, não completamente

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diferente, mas mesmo assim outro.Os documentos (com que lido) sãotestemunhas vivas, eles não sesolidificam como argila quandoesfria. Não se calam. Eles semovimentam junto conosco. Sobreque assuntos eu perguntaria maisagora? O que gostaria deacrescentar? Eu acharia muitointeressante… estou procurando apalavra… o ser humano biológico,e não apenas aquele que é filho deuma época e de uma ideia. Eutentaria olhar mais profundamentepara a natureza humana, para aescuridão, para o subconsciente.Para o mistério da guerra.

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Escreveria sobre como fuiencontrar uma antiga partisan…Uma mulher corpulenta, masainda bonita — e ela me contouque seu grupo (ela, que era a maisvelha, e dois adolescentes) saiupara o reconhecimento de terrenoe, por acaso, acabou fazendoquatro prisioneiros alemães.Passaram muito tempo rodandocom eles pela floresta.Encontraram uma emboscada.Ficou claro que com os prisioneiroseles não iam passar, nãoescapariam, e ela tomou umadecisão: se desfazer deles. Osadolescentes não conseguiriam

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matar: havia já alguns dias que elesestavam andando pela florestajuntos, e, se você passa tantotempo com uma pessoa, mesmoque seja um estranho, acaba seacostumando com ela, seaproximando — já sabe comocome, como dorme, como são seusolhos, suas mãos. Não, osadolescentes não iam conseguir.Isso ela entendeu na hora. Ou seja,ela teria que matar. E então elacomeçou a se lembrar de como osmatara. Teve que enganar uns eoutros. Com um dos alemães elasaiu com o pretexto de pegar águae deu-lhe um tiro nas costas. Na

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nuca. O outro, ela mandou buscargalhos secos… Fiquei estupefatacom a tranquilidade com que elacontava isso.

Quem esteve na guerra semprerecorda que um civil se transformaem militar depois de três dias. Porque três dias são suficientes? Ou ésó um mito? É o mais provável. Ali,o ser humano é muito maisdesconhecido e incompreensível.

Li isso em todas as cartas: “Eunão contei tudo para você porqueeram outros tempos. Nosacostumamos a calar sobre muitascoisas…”. “Não lhe confiei tudo.Ainda há pouco tempo era

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proibido falar sobre isso. Ouvergonhoso.” “Recebi a sentençados médicos: meu diagnóstico éterrível. Quero contar toda averdade.”

E há pouco tempo chegou umacarta assim: “Para nós, velhos, édifícil de viver… Mas não estamossofrendo por culpa da nossaaposentadoria baixa e humilhante.O que mais nos fere é que fomosexpulsos de um passado grandiosopara um presenteinsuportavelmente mesquinho.Ninguém nos chama mais para iràs escolas, aos museus, já nãoprecisam de nós. Se você lê os

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jornais, os fascistas são cada vezmais nobres, e os soldados doExército Vermelho cada vez maisterríveis”.

O tempo também é umapátria… Mas amo essas mulherescomo antes. Não amo sua época,mas as amo.

* * *

Tudo pode se transformar emliteratura…

O que mais me despertouinteresse em meus arquivos foramos blocos de notas onde registrei osepisódios que a censura cortou. E

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minhas conversas com o censortambém. Ali, achei páginas que euprópria excluí. Minha autocensura,minha própria proibição. E minhaexplicação — por que as arranquei.Muitas dessas coisas já foramrestituídas ao livro, mas as páginasa seguir quero mostrar emseparado: elas são um documentoem si. São o meu caminho.

Do que a censura cortou

“Acordo de noite… Parece quealguém… está chorando por perto.Estou na guerra.

Estávamos em retirada… Depois

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de Smoliénsk, alguma mulher medeu seu vestido, e eu conseguitrocar de roupa. Estava andandosozinha… entre homens. Antesestava de calças, depois estava devestido de verão… De repente mevieram aquelas coisas… Coisas demulher… Veio antes do tempo,talvez pela preocupação. Pelaansiedade, pela mágoa. Onde iaencontrar o que precisava ali? Quevergonha! Que vergonha eu sentia!Dormíamos sob as moitas, nasvalas, na floresta de pinheiros.Éramos tantos que não havia lugarpara todos na floresta. Íamosandando perdidos, desenganados,

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já não acreditávamos emninguém… Onde estava nossaforça aérea, onde estavam nossostanques? Tudo o que voa, o queanda, que faz barulho é alemão.

Assim eu fui capturada. Noúltimo dia antes de me prenderemainda quebrei minhas duaspernas… Ficava deitada e meurinava. Não sei com que forçasme arrastei para a floresta de noite.Os partisans me encontraram poracaso…

Tenho pena de quem vai ler esselivro, e também de quem não vailer…”

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“Eu estava no turno da noite…Entrei na enfermaria de feridos emestado grave. Um capitão estavadeitado… Os médicos tinham meavisado antes do turno que elemorreria à noite. Não chegaria atéa manhã… Perguntei para ele: ‘Eentão? Em que posso ajudar?’.Nunca vou me esquecer… Ele derepente sorriu, um sorriso tãoluminoso em um rosto esgotado:‘Abra o seu avental… Me mostreseu seio… Há muito tempo nãovejo minha mulher…’. Fiqueidesnorteada, eu nunca tinha nemdado um beijo. Respondi algo paraele. Saí correndo e voltei uma hora

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depois.Ele estava morto. E ainda tinha

aquele sorriso no rosto…”

“Perto de Kertch… À noite,estávamos em uma barcaça sobfogo inimigo. Uma parte da proacomeçou a queimar. O fogo subiupelo convés. As muniçõesexplodiram… Foi uma explosãopotente! Foi tão forte que a barcaçatombou para o lado direito ecomeçou a afundar. A margem jáestava perto, sabíamos que estavaem algum lugar próximo, e ossoldados se jogaram na água. Da

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margem ressoaram metralhadoras.Gritos, gemidos, palavrões… Eunadava bem, queria salvar aomenos um. Ao menos um ferido…Aquilo era água, e não terra — umferido morreria na hora. Iria para ofundo… Escutei que alguém aomeu lado ora vinha à tona, orasumia debaixo d’água. Para cima epara baixo. Encontrei o momento eo peguei… Estava frio,escorregadio… Pensei que fosseum ferido e que sua roupa tivessesido arrancada na explosão. Eumesma estava sem roupa… Tinhaficado só com a roupa íntima…Escuridão. Não se via um palmo.

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Em volta eu só ouvia: ‘Eeeê! Ai aiai’. E palavrões… De alguma formaconsegui chegar à margem… Justonaquele momento irrompeu ummíssil no céu, e eu vi que arrastaracomigo para a margem um grandepeixe ferido. Um peixe grande, dotamanho de uma pessoa. Umabeluga. Estava morrendo… Caí aolado dela e soltei os piorespalavrões. Comecei a chorar deraiva. E porque todos estavamsofrendo…”

“Estávamos saindo do cerco…Não importa para onde fôssemos,havia alemães por todos os lados.Decidimos que de manhã

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entraríamos em combate. Se íamosmorrer de qualquer forma, melhorter uma morte digna. Em combate.Havia três moças. À noite, elassaíram com todos os quepuderam… Nem todosconseguiam, claro. Os nervos, vocêentende. É assim… Todos estavamse preparando para morrer.

De manhã, só se salvaramalguns… Poucos… Bem, umas setepessoas, e havia umas cinquenta, senão mais. Os alemães nosfustigavam com asmetralhadoras… Me lembrodaquelas meninas com gratidão.De manhã, nenhuma saiu viva.

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Nunca mais as encontrei…”

Da conversa com o censor

“Depois de livros como esse,quem vai lutar na guerra? Vocêestá humilhando a mulher com seunaturalismo primitivo. A mulherheroína. Destronando-a. Estátransformando-a em uma mulhercomum. Uma fêmea. E elas sãonossas santas.”

“Nosso heroísmo asséptico nãoquer contar nem com a fisiologia,nem com a biologia. Não há comoacreditar nele. E não apenas a almafoi posta à prova, mas também o

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corpo. O invólucro material.”“De onde você tirou essas

ideias? São ideias estrangeiras. Nãosoviéticas. Você está rindo dos queforam parar em valas comuns. LeuRemarque3 demais. Oremarquismo não tem lugar aqui.A mulher soviética não é umanimal…”

* * *

“Alguém nos entregou… Osalemães descobriram onde ficava oacampamento dos partisans.Cercaram a floresta e fecharam aspassagens por todos os lados. Nos

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escondemos em um matagalfechado, fomos salvos pelospântanos onde a tropa punitivanão entrava. Um lodaçal. Eleencobria muito bem tanto aspessoas quanto os equipamentos.Passamos alguns dias, semanas,com água na altura do pescoço.Havia conosco uma operadora derádio que tivera um filho haviapouco tempo. A criança estava comfome… Pedia o peito. Mas aprópria mãe estava passando fome,não tinha leite, e a criança chorava.Os soldados da tropa punitivaestavam por perto… Tinhamcachorros… Se os cachorros

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escutassem, todos nósmorreríamos. Todo o grupo, umastrinta pessoas. Entende?

O comandante tomou adecisão…

Ninguém se animava atransmitir a ordem para a mãe,mas ela mesma adivinhou. Foibaixando a criança enroladinhapara a água e segurou ali por umlongo tempo… A criança nãogritou mais… Nenhum som… Enós não conseguíamos levantar osolhos. Nem para a mãe, nem unspara os outros…”

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“Capturávamos prisioneiros elevávamos para o destacamento.Mas não fuzilávamos, era umamorte leve demais para eles: nós osesfaqueávamos como porcos, comas baionetas, cortávamos empedacinhos. Eu ia lá ver…Esperava por isso! Esperava muitotempo pelo momento em que osolhos deles começavam a saltar dedor… As pupilas…

O que você sabe a respeitodessas coisas?! Eles queimaramminha mãe e minhas irmãzinhasem uma fogueira no meio daaldeia…”

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“Não me lembro de gatos nemde cachorros na guerra, lembro dosratos. Grandes… Com olhos azuis-amarelados… Era uma infinidade.Quando melhorei da minha ferida,me mandaram de volta do hospitalpara minha unidade. A unidadeficava nas trincheiras perto deStalingrado. O comandanteordenou: ‘Levem-na para o abrigofeminino’. Fui para o abrigo, e aprimeira coisa que vi era que nãohavia nada lá. Camas vazias feitasde galhos de pinheiros, e só isso.Não me avisaram… Deixei minhamochila no abrigo e saí; quandovoltei meia hora depois, não achei

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a mochila. Nenhum vestígio dasminhas coisas, nem o pente, olápis. Descobri que os ratoscomiam tudo na hora…

De manhã, me mostraram osbraços roídos dos feridos emestado grave…

Nem no pior filme eu vimostrarem como os ratos saíam dacidade antes do fogo da artilharia.Isso não foi em Stalingrado… Foiainda perto de Viazma… Demanhã, bandos de ratos andavampela cidade em direção ao campo.Eles farejavam a morte. Erammilhares… Pretos, cinzentos… Aspessoas olhavam horrorizadas para

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esse espetáculo sinistro e seapertavam contra as casas. Eexatamente na hora em que osratos sumiram de nossa vistacomeçou o bombardeio. Os aviõesatacaram. No lugar das casas e dosporões só restou uma areia depedregosa…”

* * *

“Nos arredores de Stalingradohavia tantos mortos que os cavalosjá nem tinham medo deles.Normalmente, eles se assustam.Um cavalo nunca pisa em ummorto. Recolhemos nossos mortos,

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mas havia alemães jogados portoda parte. Congelados… Cobertosde gelo… Eu era motorista, levavacaixas com projéteis de artilharia eescutava os crânios estalandodebaixo das rodas… Os ossos… Eficava feliz…”

Da conversa com o censor

“Sim, a Vitória foi dura paranós, mas você deve procurarexemplos heroicos. Há centenas.No entanto, você nos mostra asujeira da guerra. A roupa íntima.Para você, nossa Vitória foiterrível… O que está tentando

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alcançar?”“A verdade.”“E você acha que a verdade é

aquilo que está na vida. O que estánas ruas. Sob os pés. Para você, elaé tão baixa. Tão terrena. Não, averdade é aquilo com quesonhamos. É como queremos ser!”

* * *

“Estávamos avançando… Osprimeiros povoados alemães…Éramos jovens. Fortes. Estávamoshavia quatro anos sem mulheres.Nas adegas havia vinho. Petiscos.Capturamos umas moças alemãs

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e… Dez homens estupravam uma.Não havia mulheres o suficiente, apopulação havia fugido do Exércitosoviético, pegamos as jovens.Meninas… Uns doze, treze anos…Se choravam, batíamos nelas,enfiávamos algo na sua boca. Elassentiam dor e achávamosengraçado. Agora não entendocomo pude… Um rapaz de famíliaintelectual… Mas fui eu…

A única coisa que temíamos eraque nossas meninas soubessem.Nossas enfermeiras. Na frentedelas tínhamos vergonha…”

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“Fomos cercados… Vagávamospelas florestas, pelos pântanos.Comíamos folhas, cascas de árvore.Algumas raízes. Éramos cinco; umainda bem menino, tinha acabadode entrar no Exército. À noite, oque estava ao meu lado cochichoupara mim: ‘O menino mal estávivo, vai morrer de qualquer jeito.Você entende…’. ‘Do que estáfalando?’ ‘Um zek4 me contou…Quando fugiam do campo detrabalho, eles levavam um jovempara isso… A carne humana écomestível… Era assim que sesalvavam…’

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Eu não tive forças para baternele. No dia seguinte, encontramosos partisans…”

“Um dia os partisans chegarama cavalo no povoado. Chamaram oestaroste e seu filho. Açoitaram osdois com varas de ferro na cabeçaaté eles caírem. E quando estavamno chão terminaram de matar. Euestava na janela. Vi tudo… Meuirmão mais velho estava entre ospartisans… Quando ele entrou nanossa casa e quis me abraçardizendo ‘Irmãzinha!’, comecei agritar: ‘Não chegue perto! Não

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chegue perto! Você é umassassino!’. E depois fiquei muda.Não falei com ele por um mês.

Meu irmão morreu… Mas o queteria acontecido se ele tivesse saídovivo? E voltasse para casa…”

* * *

“De manhã, as tropas punitivasqueimaram nossa aldeia… Sóquem correu para a floresta sesalvou. Saíram correndo sem nada,com as mãos vazias, nem pãolevaram. Nem ovos, banha. À noitea tia Nástia, nossa vizinha, batia nafilha porque ela ficava chorando o

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tempo todo. Tia Nástia estava comseus cinco filhos. A Iúlietchka,minha amiguinha, era bemfraquinha. Estava sempre doente…E os quatro meninos, todospequenos, também pediam paracomer. A tia Nástia ficou louca: ‘U-u-u… U-u-u…’. À noite, escutei…Iúlietchka estava pedindo:‘Mamãe, não me afogue. Nãovou… Não vou mais pedircomidinha para você. Não vou…’.

De manhã, ninguém mais viu aIúlietchka…

A tia Nástia… Voltamos para opovoado carbonizado. O povoadofora consumido pelo fogo. Logo a

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tia Nástia se enforcou na macieiranegra de seu jardim. Se enforcoubem baixinho. Os filhos estavam aolado dela, pedindo para comer…”

De uma conversa com o censor

“Isso é mentira! É uma calúniacontra nossos soldados,libertadores de meia Europa.Contra nossos partisans. Nossopovo herói. Não precisamos de suapequena história, precisamos dagrande história. A história daVitória. Você não ama nossosheróis! Não ama nossas grandesideias. As ideias de Marx e Lênin.”

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“Isso mesmo, não amo grandesideias. Amo o ser humanopequeno…”

Do que eu mesma joguei fora

“Era 1941. Estávamos rodeados.Estava conosco o instrutor políticoLúnin… Ele leu um decreto quedizia que os soldados soviéticosnão se rendiam ao inimigo. Comodisse o camarada Stálin, não temosprisioneiros, temos traidores. Osrapazes levaram a mão à pistola…O instrutor político ordenou: ‘Nãoprecisa. Fiquem vivos, meninos,vocês são jovens’. E ele mesmo se

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matou com um tiro…Isso já foi em 1943… O Exército

soviético estava avançando.Marchávamos pela Bielorrússia.Lembro de um menino pequeno.Ele saiu correndo de algum lugardebaixo da terra, de uma adega, nanossa direção, e gritava: ‘Matemminha mãe… Matem! Ela amavaum alemão’. Os olhos dele estavamarregalados de medo. Atrás deleveio correndo uma velha vestidade preto. Toda de preto. Corria efazia o sinal da cruz: ‘Não deemouvidos ao menino. O meninoperdeu o juízo…’.”

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“Fui chamada na escola…Quem conversou comigo foi umaprofessora que voltara daevacuação:

‘Quero transferir seu filho paraoutra turma. Na minha turma sóficam os melhores alunos.’

‘Mas meu filho só tira cinco.’5‘Isso não importa. O menino

viveu com os alemães.’‘Sim, foi duro para nós.’‘Não estou falando disso. Todos

os que viveram na ocupação…Estão sob suspeita…’

‘O quê? Não estou entendendo.’‘Ele conta às crianças coisas

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sobre os alemães. E gagueja.’‘Ele ficou assim por medo. Foi

espancado pelo oficial alemão quemorou conosco no apartamento. Ohomem não gostou de como meufilho limpou suas botas.’

‘Pois está vendo? Você mesmaadmite… Viveu ao lado doinimigo…’

‘E quem deixou esse inimigoavançar até Moscou? Quem nosdeixou aqui com nossos filhos?’

Tive uma crise nervosa.Passei dois dias com medo de

que a professora me denunciasse.Mas ela deixou meu filho naturma…”

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“De dia temíamos os alemães eos politsai,6 e de noite os partisans.Os partisans pegaram minhaúltima vaquinha, ficamos só comum gato. Os partisans estavam comfome, eram cruéis. Levaram minhavaquinha e fui atrás deles… Andeiuns dez quilômetros. Implorava:devolvam. Deixei três filhospassando fome junto ao fogão. ‘Váembora, tia!’, me ameaçaram.‘Senão lhe damos um tiro.’

Tente encontrar uma pessoa boana guerra…

Irmão briga com irmão. Osfilhos dos kulaks7 tinham voltado

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do desterro. Seus pais tinhammorrido, e eles serviram aosalemães. Estavam se vingando. Umdeles deu um tiro no velhoprofessor em sua casa. Era nossovizinho. Tinha denunciado seu pai,participado da expropriação. Eraum comunista fervoroso.

No começo os alemãesdesfizeram os colcozes, deram asterras para as pessoas. As pessoastiveram um respiro depois deStálin. Pagávamos o tributo…Pagávamos certinho… Depoiscomeçaram a nos queimar. Nós enossas casas. Roubavam o gado equeimavam as pessoas.

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Ah, minha filha, tenho medodas palavras. As palavras sãoterríveis… Eu me salvei pelo bem,não queria mal a ninguém.Lamentei por todos…”

* * *

“Fui com o Exército atéBerlim…

Voltei para meu vilarejo comduas Ordens da Glória e váriasmedalhas. Passei ali três dias, e noquarto dia minha mãe me tirou dacama cedinho, enquanto estavamtodos dormindo: ‘Filhinha, eu fizuma trouxa para você. Vá

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embora… Vá embora… Suas duasirmãs menores ainda estãocrescendo. Quem vai se casar comelas? Todo mundo sabe que vocêpassou quatro anos no front, comhomens…’.

Não mexa na minha alma.Escreva sobre minhascondecorações, como os outros…”

“Guerra é guerra. Não éteatro…

Mandaram o destacamento seposicionar em formação em umaclareira, fizemos um círculo. E nomeio estavam Micha K. e Kólia M.,

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nossos rapazes. Micha era umbatedor ousado, tocava sanfona.Ninguém cantava melhor do queKólia…

Passaram muito tempo lendo overedito: em um vilarejo tinhamexigido duas garrafas de samogón,8e à noite… estupraram duasmeninas da casa… E em outrovilarejo pegaram um sobretudo,uma máquina de costura de umcamponês, e trocaram por bebidacom os vizinhos…

Condenaram ao fuzilamento. Asentença era definitiva einapelável.

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Quem ia fuzilar? Odestacamento ficou em silêncio…Quem? Silêncio… O própriocomandante cumpriu asentença…”

* * *

“Eu era atiradora demetralhadora. Matei tanta gente…

Depois da guerra passei muitotempo com medo de engravidar.Engravidei quando me acalmei.Sete anos depois…

Mas até hoje não perdoei nada.E não vou perdoar… Ficava felizquando via os prisioneiros alemães.

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Feliz com a situação lamentável emque estavam: trapos enrolados nospés em vez de botas, trapos nacabeça… Atravessavam o vilarejo epediam: ‘Mãe, me dê pão. Umpouco de pão…’. Fiquei surpresade ver que os camponeses saíamdas cabanas e davam — umpedacinho de pão, umabatatinha… Os meninos corriamatrás da coluna e jogavam pedras…E as mulheres choravam…

Acho que vivi duas vidas: umacomo homem, outra comomulher…”

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“Depois da guerra… A vidahumana não valia nada. Vou darum exemplo… Depois do trabalhoestava no ônibus, quando derepente comecei a ouvir gritos:‘Pega ladrão! Pega ladrão! Minhabolsa…’. O ônibus parou… Namesma hora se juntou umfurdunço. Um jovem oficial levouo menino para a rua, colocou obraço dele sobre seu joelho e —pou! — quebrou em dois. Subiu devolta… E demos partida…Ninguém defendeu o menino, nãochamaram a polícia… Nãochamaram um médico. E o oficialtinha o peito cheio de medalhas…

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Fui descer no meu ponto, ele selevantou e me deu a mão: ‘Passe,moça’. Tão gentil…

Lembrei-me disso agora… Masna época todo mundo era militar,vivíamos segundo as regras dotempo de guerra. E elas sãohumanas, por acaso?”

“O Exército Vermelho voltou…Permitiram-nos desenterrar os

túmulos, procurar onde tinhamsidos fuzilados nossos parentes.Pelos costumes antigos, parachegar perto da morte era precisose vestir de branco — lenço branco,

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camisa branca. Vou me lembrardisso até o último minuto! Aspessoas andavam com toalhasbrancas bordadas… Vestidas todasde branco. Onde arrumavamaquilo?

Íamos cavando… Quem achavaalgo reconhecia e levava. Umcarregava um braço num carrinhode mão, outro uma cabeça nacarroça… Uma pessoa não passamuito tempo inteira na terra, elestodos se misturavam uns com osoutros. Com o barro, a areia.

Não achei minha irmã; memostraram um pedacinho dovestido que era dela, algo

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conhecido… Meu avô disse:‘Vamos levar, teremos algo paraenterrar’. Colocamos aquelepedacinho do vestido em umcaixãozinho e sepultamos…

Quanto ao meu pai, recebemosum pedacinho de papel escrito‘desaparecido sem vestígios’.Outros receberam algo por aquelesque morreram, mas assustaram amim e a minha mãe no sovieterural: ‘Vocês não têm direito anenhuma ajuda. Talvez ele estejapor aí levando uma boa vida comuma frau9 alemã. É um inimigo dopovo’.

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Comecei a procurar meu pai naépoca de Khruschóv. Quarentaanos se passaram. Na época deGorbatchóv, me responderam:‘Não consta das listas…’. Mas ocompanheiro de regimento deleme respondeu e disse que meu paimorreu de forma heroica. Nosarredores de Moguilióv, ele sejogou debaixo de um tanque comuma granada…

Pena que minha mãe nãochegou a ouvir essa notícia. Elamorreu com o estigma de mulherde um inimigo do povo. Umtraidor. E havia muitas como ela.Não viveram para ver a verdade.

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Fui para o túmulo da minha mãecom a carta. Li inteira…”

* * *

“Muitos de nós acreditavam…Achávamos que depois da

guerra tudo mudaria… Que Stálinacreditaria em seu povo. Mas aguerra ainda nem tinha terminado,e os trens já estavam indo paraMagadan.10 Trens com osvencedores… Prenderam quemhavia sido feito prisioneiro pelosalemães, quem vivera nos camposde concentração alemães, a quemos alemães haviam levado para

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trabalhar: todo mundo que vira aEuropa. Que podia dizer como aspessoas vivem lá. Sem comunistas.Como são as casas e como são asestradas. Que não havia colcozesem lugar nenhum…

Depois da Vitória, todos ficaramcalados. Calados e com medo,como antes da guerra.”

“Sou professora de história…Que eu me lembre, reescreveramos livros de história três vezes. Deiaulas para as crianças com trêslivros diferentes…

Pergunte-nos enquanto estamos

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vivas. Não reescrevam depois semnossa participação. Perguntem…

Sabe, como é difícil matar umapessoa. Estive na resistência porseis meses. Depois disso, recebiuma tarefa: arrumar um empregode garçonete no refeitório dosoficiais… Era jovem, bonita… Meaceitaram. Eu devia pôr veneno nocaldeirão de sopa e naquele diamesmo ir ao encontro dospartisans. Já estava acostumadacom eles, eram inimigos, mas vocêos vê todo dia, eles falam comvocê: ‘Danke schön… Dankeschön…’.11 É difícil. Matar é difícil.

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Matar é mais difícil do quemorrer…

Passei a vida inteira ensinandohistória… E nunca soube comofalar disso. Que palavras usar…”

Tive minha guerra… Percorrium longo caminho junto deminhas personagens. Como elas,por muito tempo não acreditei quenossa Vitória tivesse dois rostos —um maravilhoso, outro terrível,cheio de cicatrizes, insuportável deolhar. “No combate corpo a corpo,ao matar uma pessoa, a gente olhanos olhos. Não é a mesma coisa

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que jogar bombas ou atirar datrincheira”, me contavam.

Escutar uma pessoa contandocomo ela matou e morreu é amesma coisa — você olha nosolhos…

1 “Mãos ao alto”, “Para trás”, “Hitler jáera”, em alemão no original. [Esta e asdemais notas são do tradutor.]2 Nome usado na União Soviética parase referir à Segunda Guerra Mundial.3 Erich Maria Remarque (1898-1970),escritor alemão. Dedicou parte de suaobra a narrar os horrores da guerra.Autor de Nada de novo no front.4 Gíria derivada da abreviação z/k,

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usada para se referir aos prisioneirosdo gulag.5 Nota máxima no sistema de ensinorusso.6 Moradores locais que colaboravamcom a polícia nazista.7 Kulak: agricultor que empregavalavradores em suas terras. No governode Stálin o termo passou a significarqualquer proprietário um pouco maisabastado que era contra acoletivização. Foram perseguidos eexpropriados.8 Samogón: aguardente caseira,destilada a partir de diversosingredientes, entre eles beterraba,batata, rabanete e casca de carvalho.9 “Mulher”, em alemão no original.10 Cidade no norte da Sibéria que

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servia de base para vários gulags.11 “Obrigado... Obrigado...”, emalemão no original.

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“Não quero melembrar…”

Um velho edifício de trêsandares no subúrbio de Minsk, umdos que foram construídos àspressas logo depois da guerra e —era o que parecia na época — paradurar pouco; agora, há muito

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tempo foi rodeado por acolhedoresarbustos de jasmim crescido. Foinele que começou a busca queduraria sete anos, sete anossurpreendentes e torturantes, emque descobriria o mundo daguerra, um mundo cujo sentidoainda não foi totalmente decifradopor nós. Sentiria dor, ódio,tentação. Ternura eperplexidade… Tentaria entenderqual é a diferença entre morte eassassinato, e onde está a fronteiraentre o humano e o desumano.Como uma pessoa fica a sós comessa ideia absurda de que podematar outra? Inclusive, de que é

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obrigada a matar. E descobriria quena guerra, além da morte, há umainfinidade de outras coisas, hátudo aquilo que existe em nossavida cotidiana. A guerra é vidatambém. Me depararia com umaquantidade incontável de verdadeshumanas. Mistérios. Refletiria arespeito de perguntas de cujaexistência eu não teria suspeitadoantes. Por exemplo, por que nãonos espantamos com o mal; faltaem nós o espanto diante do mal?

O caminho e os caminhos…Dezenas de viagens por todo opaís, centenas de fitas cassetegravadas, milhares de metros de

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fita. Quinhentos encontros; depoisparei de contar, os rostosdesapareciam da memória, só asvozes ficavam. Um coro ressoa emminha memória. Um coro enorme,às vezes quase não se escutam asvozes, apenas o choro. Confesso:nem sempre acreditei que essecaminho estava ao alcance dasminhas forças, que conseguiriavencê-lo. Que chegaria ao fim.Houve minutos de dúvida e dor,em que quis parar ou me afastar,mas já não podia. Tornei-meprisioneira do mal, espiei noabismo para entender algumacoisa. Agora, penso que adquiri

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alguns conhecimentos, mas passeia ter mais perguntas e ainda menosrespostas.

Entretanto, na época, bem nocomeço do meu caminho, eu nãosuspeitava de nada disso…

O que me levou a esse edifíciofoi uma pequena nota no jornal dacidade dizendo que havia poucotempo, na fábrica de máquinas depavimentação Udárnik, estava seaposentando a contadora sêniorMaria Ivánovna Morôzova.Durante a guerra, dizia também anota, ela fora francoatiradora,recebera onze medalhas, e a suacontagem em combate era de 75

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mortos. Em minha consciência eradifícil unir a profissão militar dessamulher com sua ocupação civil.Com a foto corriqueira do jornal.Com todos aqueles sinais de vidacomum.

… Uma mulher pequena, comuma longa trança em torno dacabeça, como uma coroa de moça,estava sentada em sua poltrona,cobrindo o rosto com as mãos:

“Não, não vou. Voltar para lá?Não consigo… Até hoje não assistofilmes de guerra. Na época eu eramenina de tudo. Sonhava e crescia,

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crescia e sonhava. E de repenteveio a guerra. Tenho até pena devocê… Sei do que estou falando…Você quer mesmo saber disso?Pergunto como se fosse para minhafilha…”

Claro, se surpreendeu:“E por que veio falar comigo?

Devia ir falar com meu marido, eleadora recordar. Como sechamavam os comandantes,generais, o número das unidades.Ele lembra tudo. Mas eu, não. Eusó lembro o que aconteceu comigo.A minha guerra. Há muita genteao seu redor mas você está sempresozinha, porque uma pessoa está

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sempre só diante da morte. Melembro de uma solidão tenebrosa.”

Pediu que eu guardasse ogravador:

“Preciso dos seus olhos paracontar, e ele vai me atrapalhar.”

Mas depois de alguns minutosse esqueceu dele…

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MARIA IVÁNOVNA MORÔZOVA(IVÁNUCHKINA), CABO,FRANCOATIRADORA

“Vai ser um relato simples… Orelato de uma jovem russa comum,como havia muitas na época…

No lugar onde ficava o meupovoado natal, Diákovskoie, háagora o bairro Proletárski emMoscou. Quando a guerracomeçou eu ainda não tinhacompletado dezoito anos. Usavaumas tranças longas que só vendo,iam até o joelho… Ninguémacreditava que a guerra duraria

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muito, todos esperavam que logologo terminaria. Expulsaríamos oinimigo. Fui para o colcoz, depoisterminei o curso de contabilidade ecomecei a trabalhar. A guerraestava durando… Minhasamigas… As meninas diziam: ‘Temque ir para o front’. Isso já estavapairando no ar. Todas nosalistamos no curso do centro dealistamento. Talvez alguma tenhase alistado para ir com o grupotambém, não sei. Lá, nosensinavam a atirar commetralhadora de guerra e a jogargranadas. A primeira vez…Admito que eu tinha medo de

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segurar uma metralhadora, eradesagradável. Não conseguiaimaginar que iria matar alguém, sóqueria ir para o front e pronto. Nonosso grupo treinavam quarentapessoas. Do nosso povoado eramquatro meninas; todas éramosamigas; do vilarejo vizinho eramcinco — em suma, tinha alguém decada vilarejo. E só garotas. Oshomens já tinham ido todos para aguerra, todos os que podiam. Àsvezes o ordenança chegava nomeio da noite, dava-lhes duashoras para recolher as coisas e oslevava embora. Às vezes iambuscar até no campo. (Silêncio.)

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Agora não me lembro se tínhamosbailes, mas, se tínhamos, dançavamenina com menina, não sobrounenhum rapaz. Nossas vilasficaram quietas…

Logo veio o recrutamento doComitê Central do Komsomol1 daJuventude, pois os alemães jáestavam nos arredores de Moscou,e todos tinham que sair em defesada pátria. Como é que Hitler iatomar Moscou? Não vamos deixar!Não era só eu… Todas as meninasmanifestaram o desejo de ir para ofront. Meu pai já estavacombatendo. Pensávamos que

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seríamos as únicas… Que éramosespeciais. Mas, quando chegamosao centro de alistamento, havia ummonte de garotas. Levei um susto!Meu coração pegou fogo, foi forte.E a seleção era muito severa.Primeiro, claro, era preciso ter boasaúde. Eu tinha medo de que nãome escolhessem, porque quandoera criança sempre ficava doente, emeus ossinhos, como dizia minhamãe, eram fracos. As outrascrianças zombavam de mim porisso. Depois, se na casa, além damoça que ia para o front, nãohouvesse mais nenhum filho,também recusavam, porque não

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podiam deixar a mãe sozinha. Ah,nossas mãezinhas! As lágrimasdelas não secavam… Elas nosxingavam, imploravam… Mas euainda tinha duas irmãs e doisirmãos; mesmo que todos fossembem mais novos do que eu, aindaassim eles eram contados. E haviamais uma coisa: todos tinham idoembora do colcoz, não havianinguém para trabalhar no campo,e o presidente não queria nosdeixar ir. Conclusão, fomosrecusadas. Fomos ao Comitê Localdo Komsomol, e lá tambémrecusaram. Então, formamos umadelegação do nosso bairro e fomos

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ao Comitê Regional do Komsomol.Todas tinham um grande ímpeto,o coração em chamas. Nosmandaram para casa mais uma vez.E então decidimos que, já queestávamos em Moscou, iríamos atéo Comitê Central do Komsomol,até o topo, falar com o primeirosecretário. Lutar até o fim… Quemia fazer o relato, qual de nós era amais ousada? Tínhamos certeza deque seríamos só nós, mas lá nemtinha como se enfiar no corredor,muito menos chegar ao secretário.Havia jovens de todo o país ali,muitos deles tinham vivido aocupação, ansiavam por vingar a

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morte de pessoas próximas. Detoda a União Soviética. Sim, sim…Enfim, ficamos até meiodesnorteadas por algum tempo…

À noite, apesar de tudo,conseguimos chegar ao secretário.Perguntaram-nos: ‘Mas como vocêsvão para o front se não sabematirar?’. Então todas respondemosao mesmo tempo que já tínhamosaprendido… ‘Onde? Como? Efazer curativos, sabem?’ E, sabe,um médico tinha ensinado a fazercurativos naquele mesmo curso docentro de alistamento. Então elesficaram calados, e já olharam paranós com mais seriedade. E nós

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ainda tínhamos um trunfo namanga, de que não estávamos sós,éramos umas quarenta pessoas, etodas sabiam atirar e prestarprimeiros socorros. Disseram:‘Voltem e esperem. O caso devocês receberá uma respostapositiva’. Como voltamos felizes!Não me esqueço… É, pois é…

E literalmente um par de diasdepois estávamos com a notificaçãoem mãos…

Fomos ao centro de alistamento,ali mesmo já nos levaram por umaporta, saímos por outra — eu tinhafeito uma trança tão bonita, já saíde lá sem ela… Sem a trança.

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Cortaram meu cabelo como o dossoldados… E tomaram meuvestido. Não tive tempo deentregar nem o vestido nem atrança para minha mãe. Ela pediumuito para que algo de mim,alguma coisa minha, ficasse comela. Ali mesmo nos vestiram comuma guimnastiorka,2 boina, deramuma sacola e nos colocaram em umtrem de mercadoria — no feno.Mas era feno fresco, ainda tinha ocheiro do campo.

Subimos no trem com alegria.Com audácia. Com brincadeiras.Lembro que rimos muito.

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Para onde estávamos indo? Nãosabíamos. No fim das contas, issonão era tão importante quanto oque nos tornaríamos. Qualquercoisa, desde que chegássemos aofront. Todos estavam lutando, enós também. Chegamos na estaçãoSchólkovo, perto dali havia umaescola feminina defrancoatiradoras. Descobrimos queestavam nos levando para lá. Paraas francoatiradoras. Todas ficamosfelizes. Agora era de verdade.Iríamos atirar.

Começamos a estudar.Aprendemos os regulamentos —do serviço de guarnição, o

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disciplinar, o da camuflagem nolocal e o de defesa química. Todasas meninas se esforçaram muito.Aprendemos a montar edesmontar o fuzil com precisão, adefinir a velocidade do vento, omovimento do alvo, a distância atéo alvo, a cavar uma caixinha, arastejar — já sabíamos tudo isso. Sóqueríamos chegar o mais rápidopossível no front. Ir para o fogo. É,pois é. No fim do curso tirei cincoem preparação de tiro e preparaçãode formação. O mais difícil, eu melembro, era me levantar com oalarme e me aprontar em cincominutos. Pegávamos as botas um

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ou dois números maiores, para nãoperder tempo, para nosaprontarmos rápido. Em cincominutos era preciso se vestir, secalçar e entrar em formação. Haviacasos em que corríamos para aformação com as botas sobre os pésnus. Uma moça quase teve o pécongelado. O superior percebeu,deu uma advertência, depois nosensinou a enrolar as portianki.3Ficou em cima de nós, trovejando:‘Mocinha, como vou transformarvocês em soldados, e não em alvopara os fritz?’. Mocinhas,mocinhas… Todos nos amavam e

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o tempo todo tinham pena de nós.E nós ficávamos ofendidas quetivessem pena. Por acaso nãoéramos soldados como todos osoutros?

Bem, então chegamos ao front.Nos arredores de Orcha… Na 62a

Divisão de Caçadores… Ocomandante, me lembro como sefosse agora, era o coronelBoródkin, ele nos viu e ficouirritado: me impuseram umasmocinhas. Que ciranda feminina éessa? É um corpo de baile! Issoaqui é guerra, não é um bailezinho.Uma guerra terrível… Mas depois

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nos convidou para sua casa, serviuo almoço. E o escutamos perguntarpara seu ajudante: ‘Será que nãotemos algo doce para o chá?’. Claroque nos ofendemos: quem eleachava que éramos? Tínhamosvindo para combater. E ele não nosvia como soldados, e sim comomocinhas. Pela idade, podíamosser filhas dele. ‘O que vou fazercom vocês, minhas queridas? Ondefoi que arrumaram vocês?’ Eraassim que nos tratava, assim quenos recebeu. E nós já nosimaginávamos como guerreiras. É,pois é… Na guerra.

No dia seguinte nos mandou

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mostrar se sabíamos atirar ecamuflar-nos. Na parte dos tirosfomos bem, inclusive melhor queos francoatiradores homens queforam chamados da linha de frentepara um curso de dois dias e que sesurpreenderam muito por fazermoso trabalho deles. Deviam estarvendo mulheres francoatiradoraspela primeira vez na vida. Depoisda sessão de tiro, camuflagem… Ocoronel veio, inspecionou aclareira, depois parou sobre ummontinho: não se via nada. E aí, o‘montinho’ embaixo dele começoua implorar: ‘Ai, camarada coronel,não aguento mais, está pesado’.

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Ah, morremos de rir! Ele nãoconseguia acreditar que dava parase camuflar tão bem. ‘Agora,quanto a vocês serem mocinhas’,falou, ‘retiro o que disse.’ Masmesmo assim não se conformava…Não conseguia se acostumarconosco…

Pela primeira vez, saímos para a‘caça’ (é assim que se chama entreos francoatiradores); minhacompanheira era Macha Kozlova.Nos camuflamos, deitamos: eufazia a cobertura, e Macha estavacom a metralhadora. De repenteela me disse:

‘Atire, atire! Está vendo? Um

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alemão.’Eu respondi:‘Estou fazendo a cobertura.

Atire você!’‘Enquanto a gente ficar

discutindo isso, ele vai embora’, elafalou.

Mas eu continuava:‘Primeiro preciso estabelecer o

mapa de tiro, assinalar o ponto dereferência: onde há um galpão,uma bétula…’

‘Você vai fazer toda umapapelada, como na escola? Eu nãovim para ficar preenchendo papel,vim para atirar!’

Vi que Macha já estava brava

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comigo.‘Ora, então atire, qual é o

problema?’Ficamos brigando assim. E nesse

tempo, realmente, o oficial alemãodava as ordens aos soldados. Umacarroça se aproximou, e unssoldados em fila começaram apassar a carga. Esse oficial ficou ali,deu alguma ordem e depois sumiu.E nós brigando. Vi que ele já tinhaaparecido duas vezes, e sebobeássemos de novo, acabou.Perderíamos o alemão. E quandoele apareceu pela terceira vez —era realmente só por um instante:uma hora aparecia, na outra sumia

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—, resolvi atirar. Decidi, e derepente cruzou pela minha cabeçaum pensamento: mas é umapessoa; mesmo sendo inimigo, éuma pessoa, e minhas mãoscomeçaram a tremer um pouco,um arrepio passou por todo ocorpo, um calafrio. Um medo…Até hoje às vezes essa sensaçãovolta no sono… Depois dos alvosde compensado, era difícil atirarem uma pessoa viva. Ainda estavaolhando pelo visor ótico, via bem.Ele parecia próximo… E, dentro demim, algo resistia… Algo nãodeixava, eu não conseguia medecidir. Mas retomei o controle e

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apertei o gatilho… Ele acenou comas mãos e caiu. Se estava morto ounão, não sei. Mas depois dissocomecei a tremer ainda mais,surgiu um medo: eu matei umapessoa?! Era preciso me acostumara essa ideia. Sim… Numa palavra,um horror! Não dá paraesquecer…

Quando chegamos, começamosa contar no pelotão o que tinhaacontecido comigo, fizemos umareunião. Nossa chefe doKomsomol era Klava Ivánova, elame convencia: ‘Não é para ter penadeles, é para ter ódio’. Os fascistastinham matado o pai dela. Às vezes

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cantávamos, e ela pedia: ‘Meninas,parem; quando vencermos essesdesgraçados, cantamos’.

E não foi de uma vez… Não foide uma vez que conseguimos. Issonão era coisa de mulher: odiar ematar. Não era nosso… Era precisose convencer. Se persuadir…”

Alguns dias depois, MariaIvánovna me ligou e me convidoupara falar com sua amiga do front,Klávdia Grigórievna Krókhina. Ede novo escutei…

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KLÁVDIA GRIGÓRIEVNAKRÓKHINA, PRIMEIRO-SARGENTO, FRANCOATIRADORA

“Na primeira vez dá medo…Muito medo…

Nos deitamos e fiqueiobservando. E então reparei: umalemão se levantou das trincheiras.Eu engatilhei, apertei o gatilho, eele caiu. E aí, sabe, eu tremiainteira, escutava meus ossosbatendo. Comecei a chorar.Quando atirava no alvo, não tinhaproblema, mas aí: eu matei! Eu!Matei uma pessoa que não

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conheço. Não sei nada sobre ele,mas o matei.

Depois isso passou. E foi assimque… Que aconteceu… Jáestávamos avançando, estávamospassando na frente de um pequenopovoado. Acho que na Ucrânia. Eali, perto da estrada, vimos umbarracão ou uma casa, já eraimpossível distinguir, tudo estavaqueimando, já tinha queimado, sósobraram pedras pretas. Asfundações… Muitas meninas nãose aproximaram, mas parecia quealgo me puxava… Nesse carvãoencontramos ossos humanos, entreeles estrelinhas queimadas; tinham

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queimado nossos feridos ouprisioneiros. Depois disso, nãoimporta o quanto eu matasse, jánão ficava com pena. Depois de tervisto as estrelinhas pretas…

Voltei da guerra com cabelosbrancos. Vinte e um anos, e minhacabeça toda branquinha. Tive umferimento grave, uma lesão,escutava mal de um ouvido. Minhamãe me recebeu com as palavras:‘Eu acreditei que você voltaria.Rezei por você dia e noite’. Meuirmão morreu no front.

Minha mãe chorava:‘Agora dá no mesmo ter

meninos ou meninas. Mas ele,

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apesar de tudo, era homem, eraobrigado a defender a pátria; vocêé uma garota. Só pedia uma coisa aDeus: se você fosse mutilada, eramelhor que a matassem. Ia semprena estação. Esperar os trens. Umavez, vi uma moça militar com orosto queimado… Estremeci: seriavocê?! Depois, passei a rezar porela também.’

Perto da nossa casa — eu sou dodistrito de Tcheliábinsk — haviaexploração de minério. Assim queas explosões começavam, e poralgum motivo elas aconteciamsempre à noite, na mesma hora eusaltava da cama, e a primeira coisa

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que fazia era agarrar o capotemilitar e correr — precisava correrrápido para algum lugar. Minhamãe me agarrava, me apertavacontra si e me convencia: ‘Acorde,acorde. A guerra acabou. Você estáem casa’. Eu voltava à consciênciacom as palavras dela: ‘É a mamãe.A mamãe…’. Ela falava baixinho.Baixinho… Voz alta me assustava.”

No quarto está quente, masKlávdia Grigórievna se enrola comuma pesada manta de lã: está comfrio. Ela continua:

“Em pouco tempo nos tornamossoldados… Sabe, não havia tempopara pensar muito. Para remoer os

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sentimentos…Nossos batedores capturaram

um oficial alemão, e ele estavamuito surpreso porque em suatropa tinham sido abatidos muitossoldados, sempre atingidos nacabeça. Praticamente no mesmolugar. Um atirador comum nãoseria capaz de acertar tantas vezesna cabeça, repetia. Com tamanhaprecisão. ‘Mostrem-me esseatirador que matou tantos dosmeus soldados’, pediu ele. ‘Eurecebia bons reforços, e todo diatinha até dez baixas.’ Ocomandante do regimentorespondeu: ‘Infelizmente não posso

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apresentá-la. Era uma moçafrancoatiradora, mas ela morreu’.Era Sacha Chliákhova. Morreu emum duelo de francoatiradores. Efoi seu cachecol vermelho quecausou sua desgraça. Ela adoravaesse cachecol. Mas um cachecolvermelho na neve salta à vista,atrapalha a camuflagem. Quando ooficial alemão escutou que era umajovem, ficou pasmo, não sabiacomo reagir. Passou muito tempocalado. No último interrogatórioantes de mandá-lo para Moscou(acabamos descobrindo que eraum peixe grande!), reconheceu:‘Nunca tinha combatido contra

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mulheres. Vocês todas são tãobonitas… E nossa propaganda dizque não são mulheres que lutamno Exército Vermelho, mashermafroditas…’. Esse não tinhaentendido nada. É… Não dá paraesquecer…

Íamos em dupla, para uma só édifícil aguentar do amanhecer até anoite, a vista cansa, os olhoslacrimejam, você não sente mais asmãos, todo o corpo fica dormentepela tensão. É mais difícil ainda naprimavera. A neve derrete sob oseu corpo, e você passa o diainteiro na água. Quando já estavaquase boiando, às vezes acontecia

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de ficar congelada na terra.Saíamos assim que raiava o dia, evoltávamos da linha de frentequando ia caindo a noite.Passávamos doze horas, às vezesaté mais, deitadas na neve, ou nosempoleirávamos no alto de umaárvore, no teto de um galpão, emuma casa destruída, e ali noscamuflávamos para que ninguémnotasse onde estávamos, de ondefazíamos a cobertura. Tentávamosencontrar a posição mais próximapossível: setecentos, oitocentos, àsvezes quinhentos metros era adistância até a trincheira dosalemães. De manhã cedo até os

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escutávamos falando. Suas risadas.Não sei por que não tínhamos

medo… Agora não entendo…Estávamos avançando, e muito

rápido… Nos sentíamos esgotadas,o carregamento de provisões tinhaficado para trás: acabaram asmunições e os víveres; até acozinha fora destruída por umprojétil. No terceiro dia à base depão seco, nossa língua estava tãoesfolada que não conseguíamosmexê-la. Tinham matado minhacompanheira, e eu estava indo paraa linha de frente com uma ‘novata’.De repente vimos um potrinho na‘faixa neutra’. Tão bonito, tinha

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um rabo bem peludo. Estavapasseando tranquilamente, comose não houvesse guerra nenhuma,nada. Escutamos o barulho dosalemães, já tinham visto ele.Nossos soldados também estavamtrocando umas palavras:

‘Ele vai embora. Daria umasopinha daquelas…’

‘Com um fuzil automático vocênão alcança a essa distância.’

Nos viram:‘As francoatiradoras estão

chegando. Elas acabam com elenum instante. Vamos, meninas!’

Nem tive tempo de pensar, porhábito mirei e atirei. As pernas do

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potrinho arriaram, ele tombou delado. Me pareceu, talvez isso jáfosse alucinação, mas me pareceuque ele relinchou bem de leve.

Depois eu me toquei: para quetinha feito aquilo? Era tão bonito, eeu o matei, e eu o coloquei nasopa! Atrás de mim escutei quealguém soluçava. Olhei para trás,era a novata.

‘O que você tem?’, perguntei.‘Estou com pena do potrinho’,

ela estava com os olhos cheios delágrimas.

‘Ah, que natureza delicada!Estamos todos passando fome hátrês dias. Você tem pena porque

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ainda não enterrou ninguém.Experimente andar trintaquilômetros em um dia, comequipamento completo e aindacom fome. Primeiro, precisamosexpulsar os fritz, depois nospreocupamos. Aí vamos ter pena.Depois… Entendeu? Depois…’

Olhei para os soldados: elestinham acabado de meparabenizar, de gritar. Tinham mepedido. Tinham acabado de fazerisso… Poucos minutos antes…Agora ninguém olhava para mim,como se não reparassem em mim,cada um concentrado em seusafazeres. Estavam fumando,

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cavando… Um estava afiando algo.Me deixaram ao deus-dará. Queriasentar e chorar. Aos prantos!Como se eu fosse algumaabatedora, como se não mecustasse nada matar alguém. E eu,desde criança, amava tudo o que évivo. Em casa — eu até já ia àescola nessa época — a vaca ficoudoente e a abateram. Chorei pordois dias. Sem parar. E ali — pou!—, eu atirei em um potrinhoindefeso. E olha que… Era aprimeira vez que via um potrinhoem dois anos…

À noite, trouxeram o jantar. Oscozinheiros disseram: ‘Ah, muito

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bem, francoatiradora! Hoje temcarne no caldeirão’. Serviram oscaldeirõezinhos e foram embora.Minhas meninas estavam sentadase não tocavam no jantar. Entendido que se tratava — saí correndodo abrigo, chorando… As meninasvieram atrás de mim, ficaram meconsolando todas ao mesmotempo. Logo, agarraram seuspratos e tomaram a sopa…

Pois é, foi assim… Pois é… Nãodá para esquecer…

À noite, claro, conversávamos.Sobre que falávamos? Claro, sobrenossas casas, cada uma falava desua mãe, do pai ou dos irmãos que

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combatiam. E sobre o que seríamosdepois da guerra. Como casaríamose se nosso marido nos amaria. Ocomandante ria:

‘Ê, meninas! Vocês são todasbonitas, mas depois da guerra oshomens vão ter medo de casar comvocês. Com essa pontaria, vocêsatiram um prato na testa domarido e acabam matando.’

Conheci meu marido na guerra,servíamos no mesmo regimento.Tinha dois ferimentos, uma lesão.Pegou a guerra do início ao fim, edepois foi militar a vida toda. Paraele eu não precisava explicar o queera a guerra. De onde eu viera.

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Como era. Se levanto a voz paraele, ou não repara, ou não diznada. Mas eu o perdoo. Tambémaprendi. Criamos dois filhos,terminaram a faculdade. Um filhoe uma filha.

Vou contar mais uma coisa…Bem, me deram baixa, fui paraMoscou. De lá até minha casa erapreciso percorrer algunsquilômetros a pé. Agora tem metrôlá, mas na época havia velhosjardins de cerejeiras e barrancosprofundos. Havia um barrancomuito grande, e eu precisavaatravessá-lo. Já havia escurecidoquando cheguei lá. Claro, eu tinha

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medo de atravessá-lo. Fiqueiparada sem saber como fazer: se euvoltava e esperava amanhecer, ouse juntava coragem e me arriscava.É tão engraçado lembrar dissoagora: estava vindo do front, tinhavisto de tudo, cadáveres e outrascoisas, mas estava com medo deatravessar um barranco. Até hojeme lembro do cheiro dos cadáveresmisturado ao cheiro do tabaco.Mas continuei uma menina. Novagão, quando estávamos indo…Já estávamos voltando daAlemanha para casa… Um ratopulou de dentro da mochila dealguém, e todas nós, meninas,

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demos um salto, as que estavamnas camas mais altas desceram aostrancos, dando gritinhos. Umcapitão que estava conosco sesurpreendeu: ‘Todas commedalhas, e vocês têm medo deum rato’.

Felizmente, apareceu umcaminhão. Pensei: vou pedircarona.

Ele parou.‘Vou para Diákovskoie’, gritei.‘Também vou para Diákovskoie’,

um rapaz jovem abriu a porta.Entrei na cabine, ele pôs minha

mala na caçamba, e saímos. Viuque eu estava de farda, com

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medalhas. Perguntou:‘Quantos alemães você matou?’Respondi:‘Setenta e cinco.’Ele riu um pouco:‘Mentira, acho que você não viu

nenhum.’Então eu o reconheci:‘Kolka Tchijóv? É você mesmo?

Lembra que eu dava o nó no seulenço vermelho?’

Durante um tempo, antes daguerra, trabalhei na minha escolacomo monitora dos pioneiros.4

‘Maruska, é você?’‘Sou eu…’

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‘Verdade?’, ele freou ocaminhão.

‘Me leve para casa, por que estáfreando no meio da estrada?’ Meusolhos estavam cheios de lágrimas.Vi que os dele também. Queencontro!

Chegamos em casa, ele foicorrendo com a mala encontrarminha mãe: ficou dançando naentrada com a mala.

‘Rápido, eu lhe trouxe sua filha!’Não dá para esquecer. Pois é…

Como ia me esquecer disso?Tinha voltado, e precisava

começar tudo de novo. Reaprendia andar de sapatos: no front, passei

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três anos usando botas. Estavaacostumada aos cintos sempreapertados, e agora achava quetodas as roupas pareciam um saco,me sentia incomodada. Olhavacom horror para uma saia… Paraum vestido… No front, estávamoso tempo todo de calça; à noite alavávamos, depois a estendíamossob o corpo, deitávamos, e pareciaque estava passada. Na verdade,não secava por completo no frio, eficava coberta por uma crosta.Como aprender a usar saia?Parecia que as pernas seconfundiam. A gente estava devestido, sapatos, e, quando

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encontrava um oficial, sem quererestendia o braço para batercontinência. Estávamosacostumadas às rações, a receberdo governo; depois, quando você iaà padaria, pegava o pão, o queprecisava, e esquecia de pagar. Avendedora já a conhecia, entendiao que estava acontecendo e tinhavergonha de lembrar, e você iaembora sem pagar. Depoispercebia, pedia desculpas no diaseguinte, pegava algo mais epagava tudo na hora. Era precisoaprender de novo tudo o que erahabitual. Lembrar a vida cotidiana.O normal! Com quem dividir?

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Você corria para falar com avizinha… Com sua mãe…

Eu ainda penso em uma coisa…Escute só. Quanto tempo durou aguerra? Quatro anos. É muitotempo… Não me lembro nem dospássaros, nem das cores. Claro, issotudo existia, mas não me lembro.É, pois é. Estranho, não? Será quehavia filmes em cores na guerra?Nela, é tudo negro. Só o sanguetem outra cor, só o sangue évermelho…

Há bem pouco tempo, uns oitoanos, encontramos nossaMáchenka Alkhímova. Ocomandante da divisão de

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artilharia foi ferido, e ela rastejoupara salvá-lo. Um projétil explodiuna frente… Bem na frente dela…O comandante morreu, ela nãoconseguiu se arrastar até ele, e suasduas pernas foram destruídas,tanto que as enfaixamos comdificuldade. Passamos por mausbocados. Tentamos de um jeito, deoutro. Levamos na maca para obatalhão médico, e ela pedia:‘Meninas, me deem um tiro… Nãoquero viver assim…’. Era assim quepedia, implorava. Assim! Foimandada para o hospital, eseguimos adiante com a ofensiva.Quando fomos procurar… O rastro

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dela já havia se perdido. Nãosabíamos onde estava, o que tinhaacontecido com ela. Por muitosanos… Escrevíamos para todocanto, ninguém dava uma respostapositiva. Quem nos ajudou foramos seguidores de pistas da escola 73de Moscou. Aqueles meninos,aquelas meninas… Eles aencontraram trinta anos depois daguerra, em uma casa de inválidosem algum lugar de Altai. Muitolonge. Ela passou todos esses anosvagando por internatos parainválidos, hospitais, foi operadadezenas de vezes. Nem para a mãeconfessou que estava viva…

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Escondeu-se de todos… Nós atrouxemos para o nosso encontro.

Todas nos acabamos dechorar… Em seguida, trouxemossua mãe. Depois de trinta anos,elas se encontraram… A mãequase ficou fora de si: ‘Quefelicidade que meu coração nãotenha se partido de amarguraantes. Que felicidade!’. EMáchenka repetia: ‘Agora nãotenho medo de encontrar. Já estouvelha’. Sim… Enfim… Guerra éisso…

Lembro que estava deitada ànoite no abrigo de terra. Nãoconseguia dormir. Em algum lugar,

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a artilharia estava em operação. Onosso lado atirava às vezes… E eunão tinha vontade de morrer… Fizum juramento, um juramento deguerra: se fosse preciso, dariaminha vida, mas não queriamorrer. Mesmo que voltasse vivade lá, a alma iria sentir dor. Agora,acho que seria melhor ter sidoferida nas pernas ou nos braços,que doesse o corpo. Porque aalma… Dói muito. Fomos para ofront muito jovenzinhas. Umasmeninas. Eu até cresci durante aguerra. Minha mãe mediu… Crescidez centímetros…”

Ao se despedir, ela

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desajeitadamente estendeu asmãos quentes e me deu um abraço:“Perdão…”.

1 Juventude do Partido Comunista daUnião Soviética.2 Guimnastiorka: túnica militar russa.3 Portianka: pedaço de tecido com oqual se enrolava os pés. Usada combotas pelos soldados, depois foisubstituída pela meia.4 A Organização dos Pioneiros daUnião Soviética agrupava criançasentre dez e quinze anos e, além depromover atividades semelhantes àsdos escoteiros, difundia os princípiosideológicos do comunismo.

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“Cresçam meninas…Vocês ainda estãoverdes…”

Vozes… Dezenas de vozes…Elas desabaram sobre mim,revelando uma verdade insólita, eela, essa verdade, já não cabianaquela estreita fórmula que eu

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conhecia desde a infância: nósvencemos. Uma reação químicainstantânea aconteceu: a retórica sediluiu no tecido vivo dos destinoshumanos; ela se revelou asubstância com menor tempo devida. Destino é quando há algomais por trás das palavras.

O que quero ouvir dezenas deanos depois? Como foi nosarredores de Moscou ou emStalingrado, uma descrição dasoperações de guerra, o nomeesquecido dos morros e dos altosprédios tomados do inimigo?Preciso de relatos sobre omovimento das seções e das linhas

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de frente, da retirada e ofensiva,da quantidade de trens explodidose incursões de partisans — todosesses temas já abordados emmilhares de volumes? Não, buscooutra coisa. Estou reunindo algoque chamaria de conhecimento doespírito. Sigo as pistas da vidainterior, faço anotações da alma. Ocaminho da alma é maisimportante para mim que o próprioacontecimento, não tão importanteou não igualmente importante:“como aconteceu” não fica emprimeiro lugar, o que preocupa eassusta é outra coisa — o queaconteceu com o ser humano ali?

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O que ele viu e entendeu? Arespeito da vida e da morte comoum todo. E, por fim, a respeito desi mesmo. Estou escrevendo umahistória dos sentimentos… Umahistória da alma… Não é a históriada guerra ou do Estado, e não é ahagiografia dos heróis, mas ahistória do pequeno ser humanoarrancado da vida comum e jogadona profundeza épica de umacontecimento enorme. Na grandeHistória.

As meninas de 1941… Aprimeira coisa que queroperguntar: por que são assim? Porque são tantas? Como ousaram

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pegar em armas em igualdade comos homens? Atirar, colocar minas,explodir, bombardear — matar?

Púchkin se fez essa mesmapergunta ainda no século XIX, aopublicar na revista OContemporâneo um fragmento dasmemórias da cavaleira NadiéjdaDúrova, que participou da guerracontra Napoleão: “Que razõesobrigaram uma jovem de uma boafamília nobre a deixar a casa dopai, renegar seu sexo, assumirtarefas e obrigações que assustamaté os homens e se apresentar nocampo de batalha — e quebatalhas! As da guerra

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napoleônica. O que a impeliu?Desgostos secretos do coração?Uma imaginação inflamada? Umapropensão inata e indomável?Amor?”.

Então, o que será? Mais de cemanos depois, a pergunta continua amesma…

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SOBRE JURAMENTOS E PRECES

“Quero falar… Falar! Desabafar!Finalmente querem nos escutartambém. Passamos tanto tempocaladas, até em casa. Por dezenasde anos. No primeiro ano depoisque voltei da guerra eu falava semparar. Ninguém escutava. Entãome calei… Que bom que você veio.Passei o tempo todo esperando,sabia que alguém viria. Tinha quevir. Eu era jovem na época.Absolutamente jovem. Que pena.Sabe por quê? Não fui capaz deguardar na memória…

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Alguns dias antes da guerra, eue uma amiga conversamos sobre oassunto; tínhamos certeza de quenão haveria guerra nenhuma. Fuicom ela ao cinema, antes do filmepassaram as notícias: Ribbentrop eMólotov estavam apertando asmãos. Ficaram gravadas na minhaconsciência as palavras do locutor,de que a Alemanha era amiga fielda União Soviética.

Não passou nem um mês, e astropas alemãs já estavam nosarredores de Moscou…

Éramos oito filhos na família, asprimeiras quatro todas meninas; eeu era a mais velha. Um dia, papai

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chegou do trabalho chorando:‘Antes, eu ficava feliz que minhasmais velhas eram meninas. Seriamnoivas. Mas agora todos têmalguém para mandar ao front, enós não temos ninguém. Eu estouvelho, não vão me aceitar, vocêssão garotas, e os meninos sãopequenos’. Na nossa família, issoacabou sendo uma preocupação.

Organizaram o curso deenfermeiras, e meu pai levou eu eminha irmã para lá. Eu tinhaquinze anos, minha irmã catorze.Ele dizia: ‘É tudo o que posso darpara a Vitória. Minhas meninas…’.Na época não se pensava em outra

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coisa.Um ano depois, fui parar no

front…”

Natália IvánovnaSerguêieva, soldado,

auxiliar de enfermagem

“Nos primeiros dias… A cidadeestava uma confusão. Um caos.Pavor e gelo. Todos capturavamum espião. Exortavam uns aosoutros: ‘Não devemos ceder àsprovocações’. Nem em pensamentoaceitávamos que nosso Exércitoenfrentaria uma catástrofe, que oderrotariam em poucas semanas.

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Haviam nos ensinado quecombateríamos em territórioestrangeiro. ‘Não entregaremosnem um palmo de nossa terra…’ Eaí começou a retirada…

Antes da guerra circulavamboatos de que Hitler estava sepreparando para atacar a UniãoSoviética, mas essas conversas eramreprimidas severamente. Pelosórgãos competentes… Vocêentende que órgãos eram esses? ANKVD… Os tchekistas…1 Se aspessoas sussurravam, era em casa,na cozinha; e nas komunalkas,2apenas no seu próprio quarto, a

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portas fechadas, ou no banheiro,com a torneira aberta. Mas quandoStálin falou… Ele se dirigiu a nós:‘Irmãos e irmãs…’. Aí, todosesqueceram as mágoas… Nosso tioestava preso no campo de trabalho,o irmão da minha mãe: eraferroviário, um velho comunista.Foi preso no trabalho… Vocêentende por quem? Pela NKVD…Nosso tio querido, e nós sabíamosque ele não tinha culpa de nada.Acreditávamos nisso. Ele tinhamedalhas ainda da guerra civil…Mas, depois do discurso de Stálin,minha mãe falou: ‘Vamos defendera pátria, depois veremos’. Todos

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amavam a pátria.Corri na hora para o centro de

alistamento. Corri com a gargantainflamada, ainda não tinha mecurado de vez de uma febre. Masnão podia esperar…”

Elena AntónovnaKúdina, soldado,

motorista

“Nossa mãe não tinha filhoshomens… Teve cinco meninas.Anunciaram: ‘Guerra!’. Eu tinhaum ótimo ouvido para música.Sonhava em entrar para oconservatório. Decidi que meu

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ouvido me serviria para algo nofront, eu entraria para acomunicação.

Nos evacuaram paraStalingrado. Quando Stalingradofoi sitiada, fomos voluntariamentepara o front. Todos juntos. Toda afamília: minha mãe e as cincofilhas. Meu pai já estavacombatendo nessa época…”

AntoninaMaksímovna Kniázeva,

terceiro-sargento,comunicações

“Todas tínhamos o mesmo

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desejo: ir para o front… Medo?Claro, dava medo… Mas nãoimportava… Fomos para o centrode alistamento e nos disseram:‘Cresçam, meninas… Vocês aindaestão verdes…’. Tínhamos unsdezesseis, dezessete anos. Mas eudei um jeito, me aceitaram. Eu euma amiga queríamos ir para aescola de francoatiradores, porémnos disseram: ‘Vocês vão sercontroladoras de tráfego. Nãotemos tempo de treiná-las’.

Iam nos levar, e minha mãepassou vários dias montandoguarda na estação de trem.Quando viu a gente, já estávamos

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para entrar no trem: ela me deuuma torta, uma dezena de ovos edesmaiou…”

Tatiana IefimovnaSemiónova, sargento,

controladora de tráfego

“O mundo mudou de uma horapara outra… Eu me lembro dosprimeiros dias… Minha mãe ficavaao lado da janela à noite,rezando… Eu não sabia que minhamãe acreditava em Deus. Ela nãoparava de olhar para o céu…

Fui convocada, eu era médica.Fui por sentimento de dever. E

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meu pai estava feliz por ter umafilha no front. Por eu estardefendendo a pátria. Ele foi para ocentro de alistamento de manhãcedo. Ia receber meu certificado efoi de manhã cedo de propósito,para que todos na vila vissem quetinha uma filha no front…”

Efrossínia GrigórievnaBreus, capitã, médica

“Era verão… Último dia depaz… À noite fomos dançar.Tínhamos dezesseis anos. Íamosjuntos, primeiro levávamos umpara casa, depois outro. Não

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acontecia de nos separarmos empares. Íamos, vamos supor, seismeninos e seis meninas.

E então, já duas semanas depois,esses jovens, alunos de uma escolapreparatória de tanquistas, que nosacompanhavam para casa depoisdo baile, eram trazidos de voltamutilados, enfaixados. Era umhorror! Um horror! Se eu ouvia arisada de alguém, não conseguiaperdoar. Como era possível ficarfeliz quando havia uma guerracomo essa acontecendo?

Logo meu pai entrou para atropa civil. Só eu e meus irmãospequenos ficamos em casa. Meus

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irmãos tinham nascido em 1934 eem 1938. E eu disse à minha mãeque ia para o front. Ela chorou, eumesma também chorei a noiteinteira. Mas fugi de casa… Escrevipara minha mãe quando estava naunidade. De lá, ela já nãoconseguiria me fazer voltar de jeitonenhum…”

Lília MikháilovnaButkó, enfermeira

cirúrgica

“Ordem: em formação… Nosalinhamos por tamanho, e eu era amenor. O comandante veio

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passando e olhando. Se aproximoude mim:

‘Que Pequeno Polegar é essa? Oque você vai fazer aqui? Talvez sejamelhor voltar para a mamãe ecrescer um pouco mais.’

Mas eu já não tinha mãe…Mamãe tinha morrido em umbombardeio…

O que mais me marcou… Paratoda a vida… Isso foi no primeiroano, estávamos em retirada… Eu vi— nos escondemos atrás de unsarbustos — como um de nossossoldados correu com umaespingarda para cima de umtanque alemão e começou a bater

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com a coronha na lataria. Ficoubatendo, gritando e chorando atécair. Até os fuzileiros alemãesatirarem nele. No primeiro ano,lutávamos com espingardas contratanques e ‘messers’…”3

Polina SemiónovnaNozdratchiova,

enfermeira-instrutora

“Eu pedia para a minha mãe…Implorava para ela: por favor, nãochore… Não foi de noite, masestava escuro, e se ouvia um uivoincessante. Elas, as nossas mães, aoacompanhar as filhas, não

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choravam, elas uivavam. Mamãeficava ali parada feito pedra. Elaestava se segurando, tinha medode que eu caísse no choro. Eu era afilhinha da mamãe, me mimavamem casa. E depois cortaram meucabelo como de menino, sódeixaram um topetinho. Ela e meupai não me deixavam ir, mas eu sópensava em uma coisa: ir para ofront, para o front! Para o front!Esses cartazes que agora estão nomuseu: ‘A pátria mãe chama!’, ‘Oque você fez pelo front?’, sobremim, por exemplo, tiveram muitainfluência. Estavam o tempo tododiante dos meus olhos. E as

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músicas? ‘Levante, país enorme…Levante para o combate mortal…’

Quando estávamos viajando,ficamos espantados com os mortoslogo nas estações de trem. Já era aguerra… Mas nossa juventudeprevalecia, e cantávamos. Atémesmo algo alegre. Umas cantigas.

No fim da guerra, toda a nossafamília estava lutando. Meu pai,minha mãe, minha irmã — todostrabalhavam nas estradas de ferro.Eles avançavam logo atrás do fronte consertavam a estrada. Todosrecebemos a Medalha da Vitória:meu pai, minha mãe, minha irmã eeu…”

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Ievguênia SerguêievnaSaprónova, sargento da

guarda, mecânica deaviação

“Antes da guerra eu trabalhavano Exército como telefonista…Nossa unidade ficava na cidade deBoríssov, e a guerra chegounaqueles lados já nas primeirassemanas. O chefe de comunicaçõesmandou todas nós entrarmos emfila. Não servíamos como soldados,éramos contratadas.

Ele nos disse:‘A guerra começou encarniçada.

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Vai ser muito difícil para vocês,meninas. E enquanto não é tarde,se alguém quiser, ainda pode voltarpara casa. Quem quiser ficar nofront, um passo à frente…

Todas as meninas, de uma sóvez, deram um passo à frente.Éramos umas vinte. Todas estavamprontas para defender a pátria. Eantes da guerra eu não gostavanem de livros de guerra, gostava deler sobre amor. Mas ali?!

Ficávamos nos aparelhos pordias, dias inteiros. Os soldados nostraziam os caldeirõezinhos,comíamos, cochilávamos ali mesmoao lado dos aparelhos e

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colocávamos o fone de ouvido denovo. Não tinha tempo de lavar ocabelo, então pedi: ‘Meninas,cortem minhas tranças…’.”

Galina DmítrievnaZapólskaia, telefonista

“Íamos sempre ao centro dealistamento…

E quando estávamos indo denovo, pela enésima vez, ocomandante quase nos põe parafora: ‘Se vocês tivessem algumaprofissão… Se fossem enfermeirasou motoristas… Mas o que sabemfazer? O que vão fazer na guerra?’.

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E nós não entendíamos. Essapergunta não tinha se colocadopara nós: o que vamos fazer?Queríamos lutar e pronto. Nãotínhamos entendido que lutar ésaber fazer alguma coisa. Algoconcreto. Ele nos deixou aturdidascom essa pergunta.

Eu e mais algumas meninasfomos para o curso de enfermaria.Lá, nos disseram que era precisoestudar por seis meses. Decidimosque não, era muito tempo, nãoservia para nós. Havia outroscursos que duravam três meses.Mas, na verdade, tambémconsiderávamos que três meses era

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muito. Só que esses cursos estavamterminando. Pedimos que nosdeixassem fazer as provas. Aindatinha um mês de aula. À noiteíamos para a prática no hospitalmilitar e de dia estudávamos.Acabou que estudamos por ummês e pouco…

Não nos mandaram para ofront, e sim para um hospital. Foino fim de agosto de 1941… Asescolas, os hospitais e os clubesestavam lotados de feridos. Masem fevereiro eu saí do hospital,posso dizer que fugi, desertei, nãotem outro nome para isso. Fugi notrem médico sem documentos, sem

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nada. Escrevi um bilhetinho: ‘Nãovou para o meu turno. Estou indopara o front’. E pronto…”

Elena PávlovnaIákovleva, subtenente,

enfermeira

“Naquele dia eu tinha umencontro… Fui para láflutuando… Achava que ele ia sedeclarar: ‘Eu te amo’, mas elechegou triste: ‘Vera, começou aguerra! Vão nos mandar das aulasdireto para o front’. Ele estudavano colégio militar. Bom, eutambém, claro, comecei logo a me

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imaginar no papel de Joana d’Arc.Na linha de frente, com um fuzilnas mãos. Precisávamos ficarjuntos. Só ficar juntos! Corri para ocentro de alistamento, mas lá mecortaram severamente: ‘Porenquanto só precisamos de equipemédica. E é preciso estudar seismeses’. Seis meses, era deenlouquecer! Eu tinha um amor…

Me convenceram de que eutinha que estudar. Certo, vouestudar, mas não paraenfermeira… Queria atirar! Atirarcomo ele. De alguma forma eu jáestava preparada para isso. Emnossa escola sempre havia

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apresentações de heróis da guerracivil e de gente que lutara naEspanha. As meninas se sentiamem igualdade com os meninos, nãonos separavam. Pelo contrário,desde a infância escutávamos naescola: ‘Meninas, para o volante dotrator!’, ‘Meninas, para o manchedo avião!’. E ainda tinha o amor!Eu até imaginava como íamosmorrer juntos. Na mesmabatalha…

Estudava no instituto de teatro.Sonhava em ser atriz. Meu ídoloera Larissa Reisner.4 Umacomissária mulher com jaqueta de

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couro. Gostava do fato de ela serbonita…”

Vera Danilovtseva,sargento,

francoatiradora

“Os meus amigos, todos maisvelhos, foram mandados para ofront… Chorei horrores por terficado sozinha, não me aceitaram.Me disseram: ‘Tem que estudar,menina’.

Mas acabamos estudandopouco. O nosso decano logo veiofalar:

‘Quando a guerra acabar,

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meninas, vocês completam osestudos. Precisamos defender apátria.’

Os chefes da fábrica foram sedespedir de nós na estação. Eraverão. Lembro que todos os vagõesestavam cheios de verde, de flores.Davam-nos presentes. Fiquei comuns biscoitos caseiros muitogostosos e um casaquinho bonito.Com que animação dancei o gopakucraniano na plataforma!

Andamos de trem por muitosdias… Eu e as meninas descemosnuma estação com baldes parapegar água. Olhamos em volta enos surpreendemos: vinha um

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vagão atrás do outro, e só garotas.Estavam cantando. Acenavam paranós: umas com o lenço, outras coma boina. Então ficou claro: faltavamhomens, eles tinham caído emcombate… Ou foram feitosprisioneiros. Agora, éramos nós nolugar deles.

Minha mãe me escreveu umaprece. Eu a coloquei no medalhão,talvez tenha ajudado: voltei paracasa. Antes do combate, eu semprebeijava o medalhão…”

Anna NikoláievnaKhrolóvitch, enfermeira

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“Eu era piloto…Quando ainda estava no sétimo

ano, um avião chegou à nossacidade. Isso naqueles anos,imagine, em 1936. Na época erauma coisa rara. E então veio umchamado: ‘Meninas e meninos,entrem no avião!’. Eu, como erakomsomolka, estava nas primeirasfilas, claro. Na mesma hora meinscrevi no aeroclube. Só que meupai era categoricamente contra. Atéentão, todos em nossa família erammetalúrgicos, várias gerações demetalúrgicos e operadores de altos-fornos. E meu pai achava quemetalurgia era um trabalho de

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mulher, mas piloto não. O chefedo aeroclube ficou sabendo disso eme autorizou a dar uma volta deavião com meu pai. Fiz isso. Eu emeu pai decolamos, e desde aqueledia ele parou de falar nisso.Gostou. Terminei o aeroclube comas melhores notas, saltava bem deparaquedas. Antes da guerra aindative tempo de me casar e ter umafilha.

Desde os primeiros dias daguerra, começaram a reestruturarnosso aeroclube: os homens foramenviados para combater; no lugardeles ficamos nós, as mulheres.Ensinávamos os alunos. Havia

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muito trabalho, da manhã à noite.Meu marido foi um dos primeirosa ir para o front. Só me restou umafotografia: eu e ele de pé ao ladode um avião, com capacete deaviador… Agora vivia junto comminha filha, passamos quase otempo todo em acampamentos. Ecomo vivíamos? Eu a trancava,deixava mingau para ela, e àsquatro da manhã já estávamosvoando. Voltava de tarde, e se elacomia eu não sei, mas estavasempre coberta daquele mingau. Jánem chorava, só olhava para mim.Os olhos dela são grandes como osdo meu marido…

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No fim de 1941 me mandaramuma notificação de óbito: meumarido tinha morrido perto deMoscou. Era comandante de voo.Eu amava minha filha, mas amandei para ficar com os parentesdele. E comecei a pedir para ir parao front…

Na última noite… Passei a noiteinteira de joelhos ao lado doberço…”

Antonina GrigórievnaBondareva, tenente da

guarda, piloto

“Completei dezoito anos…

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Estava tão feliz, um dia de festa.Mas todos ao meu redor estavamgritando: ‘Guerra!’. Lembro comoas pessoas choravam. Alguns atérezavam. Era insólito… As pessoasrezavam e faziam o sinal da cruz narua. Tinham nos ensinado naescola que Deus não existe. Ondeestavam nossos tanques e nossosbelos aviões? Sempre os víamos nasparadas militares. Ficávamosorgulhosos! Onde estavam nossoschefes militares? Budiônni…Claro, foi um momento deconfusão. Mas depois começamos apensar em outra coisa: comovencer?

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Estava no segundo ano deenfermagem e obstetrícia na cidadede Sverdlóvsk. Logo pensei: ‘Se éguerra, quer dizer que preciso irpara o front’. Meu pai era umcomunista com muito tempo deserviço, havia sido preso político naépoca do tsar. Desde a infância nosensinara que a pátria é tudo e queé preciso defendê-la. Então, nãohesitei: se eu não for, quem vai?Devo ir…”

Serafima IvánovnaPanássenko, segundo-tenente, enfermeira dobatalhão de infantaria

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motorizada

“Minha mãe correu até o trem…Ela era rígida. Nunca nos beijava,não elogiava. Se a gente fizesse algobom, ela só nos lançava um olharcarinhoso e pronto. Mas naquelahora ela veio correndo, segurouminha cabeça e me beijou, beijou.E então me olhou nos olhos…Ficou olhando… Por muitotempo… Entendi que nunca maisveria minha mãe. Senti isso… Deuvontade de largar tudo, entregarminha sacola e voltar para casa.Fiquei com pena de todos… Da

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minha avó… Dos meusirmãozinhos…

E então começou a tocar amúsica… Veio a ordem: ‘Dis-persar! Em-barcar! Aaaaosvagões!’.

Passei muito tempo acenandocom as mãos…”

Tamara UliánovaLadínina, soldado de

infantaria

“Incluíram-me em um batalhãode comunicação… Eu nunca iriapara a comunicação, não aceitaria,porque eu não entendia que isso

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também era combater. Ocomandante da divisão veio aténós, todas formaram fila. Estavaconosco Máchenka Sungúrova. Eentão essa Máchenka saiu da fila:

‘Camarada general, peçopermissão para falar.’

Ele disse:‘Certo, fale, fale, soldado

Sungúrova!’‘Soldado Sungúrova pede

permissão para ser liberada doserviço de comunicação e enviadapara o lugar onde se atira.’

Você entende, estávamos todascom essa disposição. Tínhamos aimpressão de que o que estávamos

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fazendo — comunicação — eramuito pouco, era quase umahumilhação; era preciso ir para alinha de frente.

O sorriso do general sumiu nahora:

‘Minhas meninas!’ — E se vocêvisse como estávamos: sem comer,sem dormir; em suma, ele falouconosco como um pai, não comoum comandante. — ‘Acho quevocês não entendem seu papel nofront. Vocês são nossos olhos enossos ouvidos: um exército semcomunicação é como uma pessoasem sangue.’

Máchenka Sungúrova foi a

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primeira que não se conteve:‘Camarada general! Soldado

Sungúrova, como uma baioneta,está pronta para cumprir qualqueruma de suas tarefas!’

Passamos a chamá-la de‘Baioneta’ até o fim da guerra.

… Em junho de 1943, nabatalha de Kursk, confiaram a nóso estandarte do regimento, e onosso, o 129o Regimento Especialde Comunicações do 65o Exército,era composto em 80% pormulheres. E é isso o que eu querofalar, para que você imagine…Para que entenda… O que se criou

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em nossa alma, o tipo de pessoaque éramos na época, nunca maisvai existir. Nunca! Tão inocentesde tão sinceras. Com tamanha fé!Quando nosso comandanterecebeu o estandarte e deu aordem: ‘Regimento, sob oestandarte! De joelhos!’, todos nossentimos felizes. Pareceu-nos umaprova de confiança, agora éramosum regimento como todos osoutros: de tanques, de artilharia.Ficamos ali chorando, todostínhamos lágrimas nos olhos. Vocênão vai acreditar agora, mas todomeu organismo fica tenso deemoção; minha doença — eu

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estava com cegueira noturna porsubnutrição, por esgotamentonervoso —, pois então, minhacegueira noturna desapareceu.Entende? No dia seguinte euestava curada, eu me curei, tantafoi a comoção da minha alma…”

Maria SemiónovnaKaliberdá, primeiro-

sargento, comunicações

* * *

“Tinha acabado de viraradulta… Em 9 de junho de 1941completei dezoito anos e virei

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maior de idade. Duas semanasdepois começou aquela malditaguerra, acho que uns doze diasdepois. Fomos enviados para aconstrução da ferrovia Gagra-Sukhumi. Só reuniram jovens. Eume lembro de como era o pão quecomíamos. Quase não haviafarinha, tinha um pouco de tudo,mas principalmente água. Vocêcolocava o pão na mesa, e em voltadele se formava uma poça, quelambíamos.

Em 1942… Me alistei comovoluntária no hospital deevacuação e triagem no 3201. Eraum grande hospital da linha de

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frente, que integrava os fronts daTranscaucásia e do Cáucaso doNorte, e o Exército costeiroespecial. As batalhas eram cruéis,havia muitos feridos. Fui posta naala de alimentação, num cargo 24horas: de manhã já precisávamosentregar o café da manhã, e aindaestávamos distribuindo o jantar.Depois de alguns meses, feri aperna esquerda — ia saltando nadireita, mas continuavatrabalhando. Depois ainda meincumbiram do posto deadministradora, e também era umcargo 24 horas. Eu vivia notrabalho.

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No dia 30 de maio de 1943… Àuma em ponto houve um ataqueaéreo massivo em Krasnodar. Saícorrendo do edifício para ver comoíamos tirar os feridos da estação detrem. Caíram duas bombas nogalpão onde armazenavammunição. Diante dos meus olhos,as caixas voavam mais alto que umedifício de seis andares eexplodiam. Um turbilhão me jogoucontra uma parede de tijolos. Perdia consciência… Quando acordei, jáera noite. Levantei a cabeça etentei fechar os dedos: se mexiamum pouco, mal e mal abri o olhoesquerdo e fui para o hospital,

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sangrando inteira. No corredorencontrei a chefe da enfermaria,ela não me reconheceu eperguntou: ‘Quem é você? Deonde vem?’. Chegou mais perto,soltou uma exclamação e disse:‘Onde estava por tanto tempo,Ksênia? Os feridos estão com fome,e nada de você aqui’. Rapidamenteenfaixaram minha cabeça, o braçoesquerdo acima do cotovelo, e fuidar o jantar. Minha vista escurecia,eu suava em bicas. Comecei adistribuir o jantar e caí. Recupereia consciência, e só escutava: ‘Maisdepressa! Mais rápido!’. E de novo:‘Mais depressa! Mais rápido!’.

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Alguns dias depois ainda metiraram sangue para doar aosferidos graves. As pessoas estavammorrendo…

… Mudei tanto na guerra que,quando fui para casa, minha mãenão me reconheceu. Meapontaram onde ela morava, eume aproximei da porta e bati.Responderam:

‘Pois não?’Entrei, cumprimentei e disse:‘Deixe-me passar a noite aqui.’Minha mãe estava acendendo o

fogão, e meus dois irmãos maisnovos estavam sentados no chãosobre um monte de palha, nus; não

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havia nada para vestir. Minha mãenão me reconheceu e respondeu:

‘Cidadã, não está vendo comovivemos? Siga em frente enquantoainda não escureceu.’

Cheguei mais perto, ela disse denovo:

‘Cidadã, siga em frenteenquanto ainda não escureceu.’

Inclinei-me na direção dela, deium abraço e proferi:

‘Mamãe, mãezinha!’Depois todos pularam em cima

de mim… Caíram no choro…Agora moro na Crimeia…

Estamos cobertos de flores, mastodo dia olho para o mar pela

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janela e morro de dor, até hoje nãotenho um rosto de mulher. Chorocom frequência, passo os dias entregemidos. Entre minhaslembranças…”

Ksênia SerguêievnaOssadtcheva, soldado,

administradora

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SOBRE O CHEIRO DO MEDO EUMA MALA DE DOCES

“Estava partindo para o front…Fazia um dia lindo. O ar límpido euma chuvinha bem fina. Tãobonito! Saí de manhã, parei: seráque eu não volto mais para cá?Não ia ver nosso jardim… Nossarua… Minha mãe chorava, mesegurava e não me deixava ir. Eu jáestava indo, ela me alcançava, meabraçava e não soltava…”

Olga MitrofánovnaRujnítskaia, enfermeira

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“Morrer… Eu não tinha medode morrer. Por minha juventude,talvez, ou algo assim… Estávamosrodeados pela morte, a morteestava sempre por perto, porém eunão pensava nela. Não falávamos arespeito. Ela nos rodeava e cercavabem de perto, mas eu semprepassava batido. Uma noite, umacompanhia inteira veio fazerreconhecimento de combate naárea do nosso regimento. Quandoestava amanhecendo ela se retirou,e começamos a escutar gemidosvindos da faixa neutra. Um feridotinha ficado ali. ‘Não vá, vão matarvocê’, os soldados não me

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deixavam ir, ‘não vê que já estáclareando?’

Não dei ouvidos e rastejei paralá. Achei o ferido e arrastei-o poroito horas, usando um cinto queamarrei na mão. Trouxe-o comvida. O comandante ficou sabendoe, de cabeça quente, me deu cincodias de prisão pela ausência semautorização. Mas o comandantesubstituto do regimento reagiu deoutra forma: ‘Merece umamedalha’.

Aos dezenove anos recebi aMedalha por Bravura. Aosdezenove anos meus cabelosficaram brancos. Aos dezenove

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anos, na última batalha, um tiropegou meus dois pulmões, asegunda bala passou no meio deduas vértebras. Minhas pernasficaram paralisadas… E fui dadacomo morta…

Aos dezenove anos… Minhaneta tem essa idade agora. Olhopara ela e não acredito. É umacriança!

Cheguei do front em casa,minha irmã me mostrou anotificação de óbito… Tinham meenterrado…”

Nadiéjda VassílievnaAníssimova, enfermeira-

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instrutora do batalhãode metralhadoras

“Não me lembro da minhamãe… Na minha memória sóficaram umas sombras vagas… Oscontornos… Às vezes o rosto dela,às vezes a silhueta quando ela seinclinava sobre mim. Ficavapróxima de mim. Foi a impressãoque tive depois. Quando mamãe sefoi, eu tinha três anos. Meu paiestava servindo no ExtremoOriente, era militar de carreira. Eleme ensinou a andar a cavalo. Éminha impressão mais forte da

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infância. Meu pai não queria queeu crescesse como uma donzelamelindrosa. Em Leningrado — melembro de estar lá desde os cincoanos — eu morava com minha tia.E ela tinha sido irmã de caridadena Guerra Russo-Japonesa. Eu aamava como a uma mãe…

Como eu era na infância? Poruma aposta, pulei do segundoandar da escola. Adorava futebol,sempre era a goleira dos meninos.Começou a guerra da Finlândia,sempre tentava ir correndo para aguerra. Em 1941 terminei o sétimoano e me matriculei no técnico.Minha tia dizia, chorando:

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‘Guerra’, mas eu fiquei feliz porqueiria para o front, iria lutar. Como iasaber o que era sangue?

A Primeira Divisão de Guardada tropa civil foi formada, e nós,algumas meninas, fomos aceitas nobatalhão médico.

Liguei para minha tia:‘Estou indo para o front.’Do outro lado da linha me

responderam:‘Já para casa! O almoço está

esfriando.’Desliguei o telefone. Depois

fiquei com pena dela, uma penaterrível. Começou o cerco dacidade, o terrível cerco de

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Leningrado, quando metade dacidade morreu, e ela estava só. Eravelhinha.

Lembro que uma vez me deramdispensa. Antes de ir ver minha tia,passei em uma loja. Antes daguerra eu adorava bombons. Falei:

‘Me dê uns bombons.’A vendedora olhava para mim

como se eu estivesse louca. Eu nãoestava entendendo o que eram oscupons de comida, o que era ocerco. Todas as pessoas na fila seviraram para me olhar, e eu estavacom um fuzil maior do que eu.Quando me entregaram a arma,olhei e pensei: ‘Quando vou

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crescer o bastante para ficar dotamanho desse fuzil?’. E de repentetodos começaram a pedir, toda afila:

‘Dê os bombons para ela, peguenossos cupons.’

E me deram.Na rua, estavam recebendo

ajuda para o front. Sobre mesas, napraça, havia grandes bandejas, aspessoas passavam e deixavam: umtirava um anel de ouro, outro umbrinco. Colocavam relógios,dinheiro… Ninguém anotavanada, ninguém assinava. Asmulheres tiravam a aliança…

Essas cenas ficaram na minha

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memória…E houve a famosa ordem

número 227 de Stálin: ‘Nem umpasso para trás!’. Se você recuasse,era fuzilado. Fuzilado ali mesmo.Ou ia a julgamento, e depois paraos batalhões punitivos criadosespecialmente para isso. Os queiam parar nesses batalhões eramchamados de ‘condenados àmorte’. E quem escapava do cercoe fugia do encarceramento ia paraos campos de filtragem… Atrás denós iam os destacamentos debloqueio… Os nossos atiravam nosnossos…

Essas cenas ficaram na minha

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memória…Uma clareira comum…

Molhada e suja depois da chuva.Nela, um jovem soldado dejoelhos. Por algum motivo seusóculos ficavam caindo, e o soldadoos punha de volta. Depois dachuva… Era um menino deLeningrado, culto. Já tinham tiradoo fuzil dele. Dispuseram-nos todosem fila. Havia poças por todo lado.Nós… Escutávamos como elesuplicava… Jurava… Imploravaque não o fuzilassem, tinha a mãesozinha em casa. Começou achorar. E aí levou, bem na testa.De revólver. Era um fuzilamento

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exemplar: aconteceria o mesmocom quem hesitasse. Ainda quepor um minuto! Um minuto…

Essa ordem imediatamente fezde mim uma pessoa adulta. Sobreisso, era proibido… Por muitotempo não nos lembramos… Sim,ganhamos, mas a que preço? A quepreço terrível!?

Passávamos dias sem dormir,tantos eram os feridos. Uma vez,todos nós ficamos três dias semdormir. Fui mandada para ohospital em um veículo cheio deferidos. Deixei os feridos, e navolta o veículo estava vazio, pudedormir. Voltei fresca como um

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pepininho, e os outros não seaguentavam em pé.

Encontrei o comissário:‘Camarada comissário, estou

envergonhada.’‘O que foi?’‘Eu dormi.’‘Onde?’Contei a ele que tinha levado os

feridos, na volta o carro estavavazio e eu caí no sono.

‘E daí? Muito bem! Ao menostemos uma pessoa bem, senãoseriam todos dormindo em pé.’

Mas eu estava envergonhada.Era com essa consciência quevivíamos por toda a guerra.

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Gostavam de mim no batalhãomédico, mas eu queria serbatedora. Disse que ia fugir para alinha de frente se não medeixassem ir. Iam me expulsar doKomsomol por não me subordinarao regimento de guerra. Mas eume mandei mesmo assim.

A primeira Medalha porBravura…

O combate começou. Fogoaberto. Os soldados se agacharam.Deram a ordem: ‘Em frente! Pelapátria!’, e eles abaixados. Deram aordem de novo, e eles abaixados.Tirei o gorro, para que vissem queuma menina tinha se levantado…

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Então todos se levantaram e fomospara o combate…

Concederam-me a medalha e nomesmo dia fomos cumprir umatarefa. Pela primeira vez na vidame aconteceu… A nossa… Essacoisa das mulheres… Vi meusangue e soltei um grito:

‘Fui ferida!’Junto conosco, os batedores,

havia um enfermeiro, um homemjá mais velho. Ele me disse:

‘Onde te feriram?’‘Onde não sei… Mas estou

sangrando…’E ele me explicou, como um

pai…

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Depois da guerra, continueisendo batedora por mais unsquinze anos. Toda noite. Meussonhos eram assim: que meu fuzilfalhava, que nos cercavam. Euacordava rangendo os dentes.Lembrava: ‘Onde você está? Aquiou lá?’. Quando a guerra acabou,eu tinha três desejos: primeiro,finalmente parar de me rastejar, eandar de trólebus; segundo,comprar uma bisnaga de pãobranco e comer inteira; terceiro,dormir até me fartar em uma camae ouvir os lençóis brancosfarfalhando. Lençóis brancos…”

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Albina AleksándrovnaGantimúrova, primeiro-

sargento, batedora

“Estava esperando meu segundofilho… Tinha um menino de doisanos e estava grávida. E aí, veio aguerra. E meu marido no front. Fuipara a casa dos meus pais e fiz… É,entende? Um aborto. Apesar de naépoca estar proibido… Como iadar à luz? Num mar de lágrimas…Na guerra! Como dar à luz emmeio à morte?

Me formei num curso decriptografia e fui mandada para o

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front. Queria me vingar por minhafilhinha, me vingar por não tertido. Minha menina. Ia ser umamenina…

Pedi para ir para a linha defrente. Me deixaram no estado-maior…”

Liubov ArkádievnaTchárnaia, segundo-

tenente, criptógrafa

“Fomos embora da cidade…Todos foram embora… Ao meio-dia de 28 de junho de 1941, nós,alunos do Instituto de Pedagogiade Smoliénsk, também nos

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juntamos no pátio da tipografia. Areunião foi curta. Saímos da cidadepela velha estrada de Smoliénsk nadireção da cidade de Krásnoe.Com cuidado, avançávamos emgrupos separados. No fim do dia, ocalor baixou, ficou mais fácil deandar, começamos a caminharmais rápido, sem olhar para trás.Dava medo de olhar para trás…Fizemos uma parada e só entãoolhamos para o leste. Um clarãorubro se estendia por todo ohorizonte, a uns quarentaquilômetros de distância, e pareciatomar o céu inteiro. Ficou claroque não eram dez nem cem casas

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que estavam queimando. EraSmoliénsk inteira que estava emchamas…

Eu tinha um vestido novo, umvestido vaporoso com babadinhos.Vera, minha amiga, gostava dele.Já tinha provado várias vezes.Prometi dá-lo a ela para seucasamento. Ela estava sepreparando para casar. Onamorado era um bom rapaz.

E de repente veio a guerra.Fomos para as trincheiras.Entregamos nossas coisas aoadministrador do alojamentoestudantil. E o vestido? ‘Tome,Vera’, falei quando saímos da

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cidade.Ela não pegou. Disse que eu

tinha prometido dar de presentede casamento. O vestido queimounaquele clarão.

Andávamos olhando para trás otempo todo. Parecia que nossascostas estavam cozinhando. Nãoparamos a noite inteira, e aoamanhecer nos pusemos atrabalhar: cavar fossos contra ostanques. Uma parede vertical desete metros, com 3,5 metros deprofundidade. Ia cavando, e a páqueimava como fogo, a areiaparecia vermelha. Diante dos meusolhos tinha nossa casa com flores e

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lilases… Lilases brancos…Vivemos em cabanas em um

campo inundado entre dois rios.Calor e umidade. Uma infinidadede mosquitos. Antes de dormir osexpulsávamos da cabana comfumaça, mas mesmo assim demanhã eles se infiltravam, nãodava para dormir tranquilamente.

Levaram-me de lá para o serviçomédico. Ali, ficávamosamontoados no chão, muitos denós adoeceram. Tive febre alta.Calafrios. Deitada, ficavachorando. Abriu-se a porta daenfermaria, uma médica falou dasoleira (a partir dali já não dava

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para andar, os colchões estavamtodos encostados uns nos outros):‘Ivánova, plasmódio no sangue’.Estava falando de mim. Ela nãosabia que, para mim, não havianada mais assustador do que esseplasmódio, desde que eu lera arespeito dele no sexto ano. E nessahora o alto-falante começou atocar: ‘Levante, país enorme…’. Foia primeira vez que ouvi essacanção. ‘Pois vou me curar’, pensei,‘e depois vou para o front.’

Levaram-me para Kozlóvka —perto de Róslavl, me puseram emum banco, sentei, me segurei comtoda a força para não cair e escutei,

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como se estivesse sonhando:‘Essa?’‘Sim’, disse o enfermeiro.‘Leve para o refeitório. Dê de

comer a ela primeiro.’E lá estava eu na cama. Você

pode entender o que é isso, estarnão no chão junto de umafogueira, não em uma tenda delona, mas em um hospital,aquecida? Sob lençóis. Passei setedias sem acordar. Disseram-meque as irmãs me despertavam e medavam comida, mas não melembro. Quando acordei sozinhadepois de sete dias, veio o médico,me examinou e disse:

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‘Seu organismo é forte, você vaise recuperar.’

E eu caí no sono mais uma vez.… No front, eu e minha

unidade fomos cercadasimediatamente. A cota dealimentação era duas torradas pordia. O tempo não era suficientepara enterrar os mortos, só oscobríamos com areia. Cobriam orosto com o gorro… ‘Sesobrevivermos’, disse ocomandante, ‘mando você para aretaguarda. Antes eu achava que asmulheres não aguentariam doisdias aqui. Só de imaginar minhaesposa…’ Chorei de tão ofendida;

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aquilo, passar tanto tempo naretaguarda, era para mim pior doque a morte. Eu aguentava com amente e com o coração, mas nãofisicamente. As tarefas físicas…Lembro como arrastávamos osprojéteis, arrastávamos os canhõespela sujeira, especialmente naUcrânia, que tem aquela terrapesada depois da chuva ou naprimavera, parece uma massa. Atécavar uma vala comum e enterraros camaradas, quando estávamoshavia três dias sem dormir… atéisso era difícil. Já não chorávamos,para chorar também era preciso terforça; dava era vontade de dormir.

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Dormir e dormir.Quando estava de guarda, eu ia

para a frente e para trás sem parare recitava versos em voz alta.Outras jovens cantavam para nãocair e dormir…”

Valentina PávlovnaMaksimtchuk, operadora

de artilharia antiaérea

“Estávamos levando os feridospara fora de Minsk… Eu usavasalto alto, tinha vergonha de serbaixinha. Um salto quebrou, eentão gritaram: ‘Desembarque!’. Eeu corri descalça, de sapatos na

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mão; fiquei com pena, eramsapatos muito bonitos.

Quando nos cercaram e vimosque não íamos conseguir, então eue a auxiliar de enfermagem Dachanos levantamos da vala, já sem nosescondermos, e ficamos em pé:melhor levar uma bala na cabeçaque ser feita prisioneira, noshumilharem. Os feridos, quemconseguia levantar, levantoutambém…

Quando vi o primeiro soldadofascista, não consegui soltar umapalavra, fiquei sem fala. Eles eramjovens, alegres, sorridentes. Ondequer que parassem, onde quer que

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avistassem uma bica ou um poço,começavam a se lavar. Estavamsempre de mangas arregaçadas. Selavando, se lavando… Em voltadeles sangue, gritos, e eles selavando, se lavando… Ficava comtanto ódio… Quando cheguei emcasa, troquei de blusa duas vezes.Todos protestavam contra apresença deles. Eu não conseguiadormir de noite. Coooomo? Enossa vizinha, a tia Klava, ficouparalisada quando viu que elesestavam em nossas terras. Na casadela… Logo morreu porque nãoconseguia aguentar isso.”

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Maria VassílievnaJloba, membro de uma

organização clandestina

“Os alemães entraram na nossaaldeia… Em grandes motocicletaspretas… Fiquei olhando para elescom olhos arregalados: eramjovens, alegres. Riam o tempotodo. Eles gargalhavam! Meucoração parava quando via queestavam ali, na nossa terra, e aindapor cima rindo.

Eu só sonhava em me vingar.Imaginava que ia morrer eescreveriam um livro sobre mim.

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Meu nome ficaria. Eram esses osmeus sonhos.

Em 1943, dei à luz minhafilha… Eu e meu marido jáhavíamos ido para a floresta comos partisans. Dei à luz em umpântano, sobre um monte de feno.Secava as fraldas no meu corpo,colocava por baixo da roupa,esquentava e botava no bebê denovo. Ao meu redor estava tudoem chamas, queimavam as pessoasjunto com as aldeias. Botavam aspessoas nas escolas, nas igrejas…Jogavam querosene em cima…Minha sobrinha de cinco anos —ela escutava nossas conversas —

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perguntou: ‘Tia Mánia, o que vaisobrar de mim quando euqueimar? Só as botinhas…’. Eraesse tipo de coisa que nossascrianças perguntavam…

Eu mesma recolhia os restosqueimados… Recolhi a família daminha amiga… Cinzas de ossos, ese restava um pedacinho de roupa,mesmo que fosse uma pontinha,reconhecíamos de quem era. Cadaum procurava os seus. Levantei umpedacinho, minha amiga disse: ‘Ablusa da minha mãe…’. E desabou.Uns recolhiam os ossinhos numlençol, outros numa fronha. Noque tinham trazido. Eu e minha

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amiga colocamos numa bolsa, enão enchemos nem a metade.Depositamos tudo na vala comum.Tudo preto, só os ossinhos erambrancos. E as cinzas dos ossos… Eujá as reconhecia… Eram bembranquinhas…

Depois disso, eu já não tinhamedo, podiam me mandar paraqualquer lugar. Minha filhinha erapequena, com três meses eu já alevava nas missões. O comissáriome mandava ir, e ele mesmochorava…Eu trazia remédios dacidade, curativos, soro… Botavaentre os bracinhos e as perninhasda minha filha, punha a fralda e

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levava. Os feridos estavammorrendo na floresta. Precisava ir.Precisava! Ninguém maisconseguia passar, se infiltrar, haviapostos e policiais alemães por todosos lados, eu era a única quepassava. Com meu bebezinho. Defraldas…

Agora é terrível admitir… Ah, édifícil! Eu esfregava sal no bebêpara dar febre, para que elachorasse. Então ela ficava todavermelha, cheia de bolhas, gritava,se esgoelava. Me paravam noposto: ‘Tifo, pan… Tifo…’. Memandavam ir embora o quanto

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antes: ‘Weg! Weg!’.5 Esfregava sal,botava alho… Minha filha erapequena, ainda mamava no peito.

Quando passávamos o posto, euentrava na floresta e chorava,chorava. Gritava! Tinha tanta penada minha filha. Mas uns dois diasdepois ia de novo…”

Maria TimofêievnaSavítskaia-Radiukevitch,

mensageira partisan

* * *

“Conheci o ódio… Pela primeiravez conheci esse sentimento…Como eles podiam andar por nossa

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terra? Quem eram eles? Tive febrequando vi essa cena. Por queestavam aqui?

A coluna de prisioneiros passavae deixava centenas de cadáveres naestrada… Centenas… Os quecaíam sem forças levavam um tiroali mesmo. Eram conduzidos comogado. Já não chorávamos osmortos. Não dava tempo deenterrar, de tantos que eram.Passavam muito tempo largados nochão… Os vivos junto com osmortos.

Encontrei minha meia-irmã. Aaldeia dela tinha sido queimada.

Ela tinha três filhos, todos já

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tinham partido. Queimaram a casa,queimaram as crianças. Ela estavasentada no chão e se balançava deum lado para o outro, embalavasua desgraça. Se levantava e nãosabia para onde ir. Para quem?

Fomos todos embora para afloresta: meu pai, meu irmão e eu.Ninguém fez propaganda para nósnem nos obrigou — fomos porconta própria. Só ficou minha mãecom a vaca…”

Elena FiódorovnaKovaliévskaia, partisan

“Nem fiquei muito tempo

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pensando no assunto… Minhaprofissão era necessária no front.Não vacilei, não refleti nem porum segundo. No geral, conhecipoucas pessoas que queriamesperar sentadas até que passasse.Ficar esperando. Lembro deuma… Uma jovem, nossavizinha… Ela admitiu para mim,sinceramente: ‘Eu amo a vida.Quero passar pó de arroz, mepintar, não quero morrer’. Nãoconheci mais ninguém. Talvezessas pessoas ficassem caladas,guardassem segredo. Não sei comolhe responder…

Lembro que peguei as flores do

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meu quarto, pus para fora e pedipara a vizinha:

‘Por favor, você pode regar? Euvolto logo.’

Voltei quatro anos depois…As meninas que ficaram em casa

nos invejavam, as mulhereschoravam. Uma das meninas queviajou comigo não chorava, todoschoravam mas ela não. Depois, elafoi lá e molhou os olhos com água.Uma vez, outra vez. Com olencinho de nariz. Senão não ficabem, dizia; estão todos chorando.Por acaso nós entendíamos o que éa guerra? Éramos jovens… Agoraeu acordo de noite com medo

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quando sonho que estou naguerra… Um avião está voando,meu avião, ganha altura e… cai…Então entendo que estou caindo.Nos últimos minutos… Dá tantomedo enquanto não acordo,enquanto o sonho não se evapora.Os velhos têm medo da morte, jáos jovens riem dela. São imortais!Eu não acreditava que podiamorrer…”

Anna SemiónovnaDubróvna-Tchekunova,

primeiro-tenente daguarda, piloto

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“Me formei na EscolaPreparatória de Medicina… Fuipara casa, e meu pai ficou doente.E então veio a guerra. Eu melembro que era de manhã… Fiqueisabendo dessa notícia terrível demanhã… O orvalho nas folhas dasárvores ainda não tinha secado, ejá estavam falando em guerra! Eesse orvalho que vi de repente nagrama e nas folhas, que vi tãoclaramente, eu lembrava delemesmo no front. A naturezacontrastava com o que estavaacontecendo com as pessoas. O solbrilhava intensamente… Acamomila, minha preferida, estava

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florescendo, e havia umainfinidade delas nos campos…

Lembro que estávamos nosescondendo em algum campo detrigo, era um dia ensolarado. Asmetralhadoras alemãs faziam tá-tá-tá-tá, depois silêncio. Só seescutava o farfalhar do trigo. E denovo as metralhadoras alemãs tá-tá-tá-tá… E você ficava pensando:será que vai voltar a ouvir ofarfalhar do trigo algum dia?Aquele ruído…”

Maria AfanássievnaGaratchuk, enfermeira

militar

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“Na evacuação, mandaram eu eminha mãe para a retaguarda…Para Sarátov… Lá, em três mesesaprendi a ser torneira. Ficávamosdezenove horas por dia no torno.Passávamos fome. Só pensava emuma coisa: ir para o front. Apesarde tudo, lá havia comida. Haveriatorradas e chá com açúcar. Nosdariam manteiga. Onde tínhamosescutado isso, não me lembro.Talvez dos feridos na estação?Fugíamos da fome e, claro, éramosdo Komsomol. Eu e uma amigafomos ao centro de alistamento,mas lá não contamos quetrabalhávamos na fábrica. Senão

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não nos aceitariam. E então fomosinscritas.

Mandaram-nos para a escola deinfantaria de Riazan. Saímos de lácomo comandantes da seção demetralhadoras. Uma metralhadoraé pesada, carregávamos nósmesmas. Como um cavalo. Demadrugada. Montávamos guarda ecaptávamos cada ruído. Comolinces. Estávamos atentas a cadasussurro… É como se diz: naguerra você é metade humano,metade animal… É assim. Deoutra forma não se sobrevive. Sevocê for só humano, não sai vivo.Queima a cachola! Na guerra é

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preciso lembrar de algo a respeitode si. Algo… Lembrar de algo dostempos em que o ser humanoainda não era completamentehumano… Não sou uma grandeerudita, sou uma simplescontadora, mas disso eu sei.

Fui até Varsóvia… E tudo a pé;é o que dizem, a infantaria é oproletariado da guerra. Íamos nosarrastando… Não me perguntemais… Não gosto de livros sobre aguerra… Sobre os heróis…Andávamos doentes, tossindo, semdormir, sujos, malvestidos. Váriasvezes passávamos fome… Masvencemos!”

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Liubov IvánovnaLiúbtchik, comandantedo pelotão de fuzileiros

“Tinham matado meu pai, eusabia… Meu irmão faleceu. Eentão, morrer ou não morrer jánão tinha sentido para mim. Eu sósentia pena de nossa mãe. Ela eralinda, mas em um instante setransformou em uma velha muitoressentida com o destino; nãoconseguia viver sem meu pai.

‘Para que você vai para aguerra?’, ela perguntou.

‘Para vingar o papai.’

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‘Seu pai não aguentaria ver vocêcom uma metralhadora.’

Meu pai fazia trancinhas emmim quando eu era pequena. Fazialaços. Ele mesmo gostava mais deroupas bonitas do que minha mãe.

Fui telefonista na unidade. Doque eu mais me lembro é de comoo comandante gritava no fone:‘Reforços! Peço reforços! Exijoreforços!’. Todo dia era isso…”

Uliana ÓssipovnaNémzer, sargento,

telefonista

“Não sou heroína… Eu era uma

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menina bonita, me mimavamquando era criança…

Veio a guerra… Eu não tinhavontade de morrer. Tinha medo deatirar, nunca achei que fossetentar. Veja só que coisa! Eu tinhamedo do escuro, de estar numafloresta fechada. Claro, tinha medode animais… Ah… Não imaginavao que faria se encontrasse um loboou um javali selvagem. Até decachorro eu tinha medo desde ainfância; quando era pequena, umpastor grande me mordeu, e eufiquei com medo deles… Veja sóque coisa! Eu sou assim… Eaprendi tudo com os partisans…

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Aprendi a atirar — de espingarda,pistola e metralhadora. Até agora,se precisar, posso mostrar. Eu melembraria. Até nos ensinaramcomo agir se não tivéssemosnenhuma outra arma além de umafaca ou uma pá. Perdi o medo doescuro. E dos animais… Mas evitocobras, não me acostumei comelas. Na floresta, à noite, eracomum as lobas uivarem. Masficávamos em nossos abrigos deterra, e tudo bem. Os lobos eramferozes, estavam famintos.Tínhamos uns abrigos de terra tãopequenos, pareciam uns buracos. Afloresta era nossa casa. A casa dos

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partisans. Veja só que coisa! Volteia ter medo da floresta depois daguerra… Agora, nunca vou àfloresta.

Mas pensava que podia terpassado toda a guerra em casa,junto da minha mãe. Minha lindamãe, mamãe era muito bonita.Veja só que coisa! Eu não teriatomado essa decisão. Eu mesmanão. Não teria decidido… Mas…Nos disseram… Que os alemãestomaram a cidade, e eu descobrique sou judia. Antes da guerra,todos vivíamos de forma amigável:russos, tártaros, alemães, judeus…Éramos iguais. Veja só que coisa!

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Nunca tinha sequer escutado apalavra jid6 porque vivia com meupai, minha mãe e meus livros.Viramos uns leprosos, nosexpulsavam de todos os lugares.Tinham medo de nós. Alguns denossos conhecidos até pararam denos cumprimentar. Os filhos delesnão nos cumprimentavam. E osvizinhos nos diziam: ‘Larguem suascoisas aí, vocês não vão precisarmais delas mesmo’. Antes daguerra éramos amigos deles. TioVolódia, tia Ánia… Que coisa!

Mataram minha mãe com umtiro… Aconteceu um pouco antes

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do dia em que devíamos sermandados para o gueto. Haviacartazes com ordens por toda acidade: judeus estavam proibidosde andar na calçada, de ir aocabeleireiro, de comprar qualquercoisa na loja… Não podia rir, nãopodia cantar… Veja só que coisa!Minha mãe ainda não tinha seacostumado com isso, ela semprefoi distraída. Talvez nãoacreditasse. Será que entrou numaloja? Ou lhe disseram algogrosseiro e ela começou a rir?Como uma mulher bonita… Antesda guerra ela cantava nafilarmônica, todos a adoravam.

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Veja só que coisa! Eu ficopensando…. Se ela não fosse tãobonita… Nossa mãe… Se estivessecomigo ou com meu pai… Semprepenso nisso… Uns desconhecidos atrouxeram à noite, estava morta. Jásem o sobretudo e as botas. Foi umpesadelo. Que noite horrível!Horrível! Alguém tirou osobretudo e as botas. Tiraram aaliança de ouro. Presente do meupai…

No gueto não tínhamos casa,nos arrumaram um sótão na casade outras pessoas. Meu pai tinhalevado o violino, nosso objeto maiscaro antes da guerra, e queria

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vendê-lo. Tive uma angina forte.Estava deitada… Estava deitadacom febre alta e não conseguiafalar. Meu pai queria compraralguns alimentos, tinha medo deque eu morresse. De que, semminha mãe, eu morresse… Sem aspalavras de minha mãe, sem asmãos de minha mãe. Eu era tãomimada… Tão amada… Espereitrês dias por ele, até queconhecidos vieram me dizer quetinham matado meu pai…Disseram que foi pelo violino…Não sei se ele era caro, mas meupai, ao sair, disse: ‘Se me deremum vidro de mel e um pouco de

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manteiga já está bom’. Veja só quecoisa! Fiquei sem mãe… Sem pai…

Fui procurar meu pai… Queriaencontrá-lo, nem que fosse morto,para que estivéssemos juntos. Euera clara, não morena, e tinha oscabelos e as sobrancelhas claras,então ninguém mexeu comigo nacidade. Fui para uma feira… Láencontrei um amigo de meu pai,ele já havia se mudado para umaaldeia, para a casa dos pais.Também era músico, como meupai. Tio Volódia. Contei-lhetudo… Ele me pôs na telega e mecobriu com uma peliça. Na telegahavia porquinhos chorando,

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galinhas cacarejando, e andamospor muito tempo. Veja só quecoisa! Viajamos até de noite. Eudormia, acordava…

E assim entrei para ospartisans…”

Anna IóssifovnaStrumílina, partisan

* * *

“Era uma parada militar…Nossos destacamentos de partisansse juntaram às unidades doExército Vermelho, e, depois daparada, nos disseram para entregar

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as armas e ir ajudar a recuperar acidade. Mas isso não entrava nanossa cabeça: como assim? Aindahá uma guerra em curso, só aBielorrússia fora libertada, eprecisávamos entregar as armas.Todas nós queríamos ir em frente econtinuar combatendo. Fomos aocentro de alistamento, todas asmeninas… Eu disse que eraenfermeira e queria que memandassem para o front. Meprometeram: ‘Certo, vamosregistrá-la e, se precisarmos,chamamos você. Agora vátrabalhar’.

Fiquei esperando. Não me

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chamavam. Fui de novo ao centrode alistamento… Várias vezes…Enfim me disseram abertamenteque não havia necessidade, que játinham enfermeiras suficientes.Agora, era preciso arrumar ostijolos de Minsk… A cidade estavaem ruínas… Você pergunta comoéramos nós, as meninas? Tinha aTchernova que, já grávida,transportou uma mina junto aoquadril, sendo que ali pertinhobatia o coração de seu futuro bebê.Daí você vai entendendo quepessoas eram essas. Nós nãoprecisamos entender, éramosassim. Nos ensinaram que nós e a

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pátria somos a mesma coisa. Oucomo outra amiga minha. Essaandava pela cidade com a filha e,debaixo do vestidinho, o corpo damenina estava todo coberto depanfletos; ela levantava osbracinhos e reclamava: ‘Mamãe,estou com calor. Mamãe, estoucom calor’. E a rua estava cheia dealemães. Os politsai. Os alemãesainda dava para enganar, mas umpolitsai era difícil. Era um dosnossos, conhecia sua vida, suasentranhas. Seu pensamento.

E até as crianças… Nós aslevamos ao destacamento, maseram crianças. Como salvá-las?

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Decidimos mandá-las para fora dalinha de frente, mas elas fugiamdos orfanatos e corriam para ofront. Eram apanhadas nos trens,nas estradas. Escapavam de novo, ede novo iam para o front.

A história ainda vai passarcentenas de anos tentandoentender: o que foi aquilo? Quegente era aquela? De onde veio?Imagine: uma grávida que andavacom uma mina… Ela estavaesperando um filho… Amava,queria viver. E, claro, tinha medo.Mas ia… Não ia por Stálin, ia porseus filhos. Pela vida futura deles.Ela não queria viver de joelhos.

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Submeter-se ao inimigo… Talvezfôssemos cegos, nem vou negarisso, nós na época não sabíamos enão entendíamos muita coisa, maséramos cegos e puros ao mesmotempo. Éramos feitos de duaspartes, de duas vidas. Você precisaentender isso…”

Vera SerguêievnaRomanovskaia,

enfermeira partisan

“Começou o verão… Me formeina escola de medicina. Recebi meudiploma. Começou a guerra! Nahora fui chamada para o centro de

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alistamento, e veio a ordem: ‘Vocêtem duas horas. Arrume suascoisas. Vamos mandá-la para ofront’. Pus tudo em uma malinhapequena.

‘O que você levou para aguerra?’

‘Bombons.’‘Como?’‘Uma mala inteira de bombons.

Na aldeia para a qual fui designadadepois da escola me deram umabono de transferência. Tinha umdinheiro, e usei tudo para compraruma mala inteira de bombons dechocolate. Eu sabia que na guerranão ia precisar de dinheiro. E em

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cima dos bombons pus umafotografia do curso, que tinhatodas as minhas amigas. Fui para ocentro de alistamento. O chefe meperguntou: ‘Para onde mandovocê?’. E eu disse: ‘Minha amigaestá indo para onde?’. Eu e elatínhamos ido juntas para a regiãode Leningrado, e ela trabalhava naaldeia vizinha, a quinzequilômetros. Ele riu: ‘Elaperguntou exatamente a mesmacoisa’. Pegou minha maleta parapôr no caminhão que nos levaria àestação: ‘O que você pôs aqui detão pesado?’. ‘Bombons. A malainteira.’ Ele ficou calado. Parou de

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rir. Eu via que não estava àvontade, estava até um poucoenvergonhado. Era um homemmais velho… Sabia para ondeestavam me levando…”

Maria VassílievnaTikhomírova, enfermeira

“Meu destino foi decididoimediatamente…

Puseram um anúncio no centrode alistamento: ‘Precisa-se demotorista’. Tinha terminado ocurso de motorista… Seis meses…Nem notaram que eu eraprofessora (antes da guerra eu

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tinha estudado na escola técnica depedagogia). Quem precisa deprofessores na guerra? Precisam desoldados. Havia várias meninas,um batalhão inteiro motorizado.

Uma vez, num exercício… Poralgum motivo não consigo melembrar disso sem chorar… Eraprimavera. Tínhamos terminadode atirar e estávamos andando devolta. Colhi umas violetas. Umbuquezinho pequeno. Colhi eamarrei na baioneta. E estavaandando assim.

Voltamos para o campo. Ocomandante colocou todas emformação e me chamou. Saí… E

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esqueci que estava com as violetasno fuzil de assalto. Ele começou ame dar uma bronca: ‘Um soldadotem que ser um soldado, e nãoalguém que fica colhendo flores’.Ele não entendia como era possívelpensar em flores numa situaçãocomo aquela. Para um homem eraincompreensível… Mas não jogueifora as violetas. Tirei quietinha epus no bolso. Por causa dessasvioletas me deram mais trêsserviços extras…

“Outra vez, eu estava montandoguarda. Às duas da madrugadavieram assumir meu posto, masrecusei. Mandei a pessoa que ia me

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substituir ir dormir: ‘Você montaguarda de dia, e eu fico agora’. Euconcordava em ficar a noite toda,só para escutar os pássaros. Só ànoite havia algo que nos lembravada vida anterior. A paz.

Quando fomos para o front, aspessoas formaram uma parede:mulheres, velhos e crianças. Etodos choravam: ‘As meninas estãoindo para o front’. Nosso batalhãoera todo de garotas…

Eu ficava ao volante… Depoisda batalha recolhia os mortos, elesficavam espalhados pelo chão.Todos jovens. Meninos. E derepente havia uma moça. Uma

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moça morta… Então, todos secalavam…”

Tamara IllariônovnaDavidovitch, sargento,

motorista

“Quando eu estava meaprontando para ir para o front…Você não vai acreditar… Euachava que não duraria muito.Logo derrotaríamos o inimigo!Levei uma saia, aliás, minhapreferida, dois pares de meias e umpar de sapatos. Estávamosevacuando Vorônej, mas melembro que passamos correndo em

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uma loja e comprei para mim maisum par de sapatos de salto. É o queme lembro, estávamos em retirada,tudo escuro, esfumaçado (mas aloja estava aberta — que milagre!),e por algum motivo me deuvontade de comprar os sapatos.Lembrando agora, eram unssapatos tão elegantes… Tambémcomprei um perfume…

É difícil renunciarimediatamente à vida como era atéentão. Não é só o coração; todo oorganismo opõe resistência. Eu melembro que saí da loja correndofeliz com aqueles sapatinhos.Entusiasmada. E por todo lado

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havia fumaça… Estrondos… Eu jáestava na guerra, mas ainda nãoqueria pensar na guerra. Nãoacreditava.

E ao meu redor só ouviaestrondos…”

Vera IóssifovnaKhóreva, cirurgiã militar

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SOBRE O COTIDIANO E AEXISTÊNCIA

“Sonhávamos… Queríamoslutar na guerra…

Nos acomodaram em um vagãoe começaram os treinos. Nada eracomo tínhamos imaginado emcasa. Era preciso acordar cedo epassar o dia inteiro correndo. Avida anterior ainda vivia dentro denós. Ficamos indignadas quando ocomandante da seção, o terceiro-sargento Guliáiev, que só tinha atéo quarto ano, estava nos ensinandoo regulamento e pronunciou

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errado algumas palavras. Ficamospensando: o que ele pode nosensinar? Mas ele nos ensinou comonão morrer…

Depois da quarentena, antes dojuramento, o subtenente trouxe asfardas: capotes, boinas,guimnastiorki, saias — em vez decombinações, duas camisas demanga costuradas no estilomasculino, de morim; em vez debotas de pano, meiões e pesadoscoturnos americanos com ponteirae taco de metal. Verificou-se que,por minha altura e minhacompleição, eu era a menor dacompanhia, media 1,53 metro,

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calçava 35, e naturalmente aindústria militar não produziatamanhos tão minúsculos, muitomenos nos Estados Unidos, quenos fornecera as fardas.Arrumaram uns coturnos número42 para mim; eu os tirava e calçavasem desamarrar o cadarço, e eleseram tão grandes que eu andavaarrastando os pés na terra dia enoite. Saíam faíscas da ponte depedra por causa da minha marchamilitar, e meu andar pareciaqualquer coisa, menos umamarcha. É horrível lembrar opesadelo que foi a primeiramarcha. Estava preparada para

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realizar grandes feitos, mas nãopara usar coturnos tamanho 42 emvez de 35. Eram tão pesados e tãofeios! Tão feios!

O comandante viu como euestava andando e me mandou sairda formação:

‘Smirnova, é assim que vocêmarcha em formação? O que foi,não lhe ensinaram? Por que nãolevanta os pés? Vou te dar trêsserviços extras…’

Respondi:‘Entendido, camarada primeiro-

tenente, três serviços extras’, dei avolta para sair e caí. Caí e fiqueisem os coturnos… Meus pés

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estavam em carne viva,sangrando…

Então ficou claro que eu já nãoconseguia andar. Ordenaram aPárchin, o sapateiro da companhia,que, usando a lona de uma tendavelha, fizesse para mim botastamanho 35…”

NonnaAleksándrovna

Smirnova, soldado,operadora de artilharia

antiaérea

“Como era engraçado…Disciplina, regulamentos, sinais

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de distinção — toda essa sabedoriamilitar não era assimiladarapidamente. Estávamos postadas,vigiando uns aviões. E noregulamento diziam que, sepassava alguém, era preciso deter apessoa e perguntar: ‘Alto, quemé?’. Minha amiga viu ocomandante do regimento e gritou:‘Alto, quem é? O senhor medesculpe, mas vou atirar!’. Imaginesó. Ela gritou: ‘O senhor medesculpe, mas vou atirar!’. ‘Osenhor me desculpe’… Hahaha…”

Antonina GrigórievnaBondareva, tenente da

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guarda, piloto

“As meninas vinham para aescola com tranças longas… Compenteados… Eu também usavauma trança em volta da cabeça…Mas como ia lavar? Onde secar?Você tinha acabado de lavar evinha um alarme, precisava saircorrendo. Nossa comandante,Marina Raskova, mandou todascortarem as tranças. As meninascortavam e choravam. E LíliaLitviak, que depois se tornou umapiloto famosa, não queria sedesfazer da trança de jeito

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nenhum.Fui falar com Raskova:‘Camarada comandante, sua

ordem foi cumprida, só Litviak serecusou.’

Marina Raskova, apesar de suadoçura feminina, podia ser umacomandante muito severa. Ela meenviou mais uma vez:

‘Que funcionária do partido évocê, se não consegue garantir ocumprimento de uma ordem?Meia-volta volver!’

Vestidos, sapatos de salto… Noslastimávamos tanto por eles que osescondíamos em um saquinho. Dedia usávamos botas, e de noite,

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nem que fosse um pouquinho,calçávamos os sapatos na frente doespelho. Raskova viu, e uns diasdepois veio a ordem: devíamosmandar toda a roupa femininapara casa nas remessas. Pois bem!Porém aprendemos a operar umavião novo em seis meses, e nãoem dois anos, como se faz emtempos de paz.

Nos primeiros dias detreinamento morreram duastripulações. Enterraram quatrocaixões. Todos os três regimentos,todas nós nos acabamos de chorar.

Veio Raskova:‘Amigas, enxuguem as lágrimas.

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Essas foram nossas primeirasperdas. Serão muitas. Apertem ocoração no punho…’

Depois, na guerra, enterrávamossem uma lágrima sequer. Paramosde chorar.

Voávamos em caças. A própriaaltura era um peso terrível paratodo o organismo feminino, àsvezes o estômago se apertava diretocontra a coluna vertebral. E nós,garotas, voávamos e derrubávamosases da aviação, e que ases! Issomesmo! Sabe, quando andávamospor aí os homens nos olhavam comassombro: as pilotos estãopassando. Se encantavam

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conosco…”

Klávdia IvánovnaTérekhova, capitã da

força aérea

“No outono, me chamaram nocentro de alistamento… O diretordo centro de me recebeu eperguntou: ‘Você sabe saltar deparaquedas?’. Confessei que tinhamedo. Ele passou um bom tempofazendo propaganda da tropa dedesembarque: uma farda bonita,chocolate todo dia. Mas desdecriança eu tinha medo de altura.‘Quer ir para a artilharia

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antiaérea?’ E eu lá sei o que é essaartilharia antiaérea? Então elepropôs: ‘Que tal mandar você paraum destacamento partisan?’. ‘Ecomo vou escrever de lá paraminha mãe em Moscou?’ Elepegou e escreveu com um lápisvermelho no meuencaminhamento: ‘Linha de frenteda estepe’.

No trem, um jovem capitão seapaixonou por mim. Passou toda anoite em pé no nosso vagão. Ele jáestava marcado pela guerra, foraferido algumas vezes. Olhava,olhava para mim e dizia:‘Vérotchka, só não fique para

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baixo, não se transforme numapessoa triste. Você é tão terna… Eujá vi de tudo!’. E depois disse algono sentido de que é difícil sair puroda guerra. Do inferno.

Eu e minha amiga levamos ummês para chegar ao QuartoExército de Guarda do SegundoFront Ucraniano. Por fim,chegamos. O cirurgião-chefe saiudepois de alguns minutos, olhoupara nós e nos chamou para a salade operações: ‘Aqui está a mesa deoperações de vocês…’. Os veículosmédicos chegavam um atrás dooutro, uns veículos grandes,Studebakers, os feridos ficavam

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deitados no chão ou em macas.Fizemos apenas uma pergunta:‘Quem pegamos primeiro?’. ‘Osque estiverem calados.’ Uma horadepois eu já estava na minha mesa,operando. E assim foi… A gentepassava 24 horas operando, depoiscochilava um pouco, esfregava osolhos rapidinho, se lavava e ia denovo para a mesa. E, de cada trêspessoas, uma morria. Nãoconseguíamos ajudar a todos. Umterço morria…

Na estação de Jmérinka houveum bombardeio terrível. O tremparou, e nós saímos correndo.Nosso comissário político tinha

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entrado na faca por causa de umaapendicite no dia anterior e jáestava correndo. Passamos a noitetoda na floresta, e nosso trem ficoudespedaçado. De manhã, aviõesalemães começaram a passar umpente-fino na floresta com voosrasantes. Onde íamos nos meter?Não dava para entrar na terracomo uma toupeira. Me agarreinuma bétula, de pé: ‘Ai, mãe,mamãezinha! Será que voumorrer? Se sobreviver, vou ser apessoa mais feliz do mundo’. Nãoimporta para quem contasse depoiscomo me segurei numa bétula,todos riam. Algo ia cair em mim?

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Estava ali de pé, a bétula branca…Que piada!

Estava em Viena no Dia daVitória. Fomos para o zoológico, euqueria muito ir. Podia ter ido ver ocampo de concentração. Levavam atodos, mostravam. Não fui…Agora me surpreendo: por que nãofui? Porque queria algo alegre.Engraçado. Ver uma outra vida…”

Vera VladímirovnaCheváldicheva, primeiro-

tenente, cirurgiã

“Éramos três… Minha mãe,meu pai e eu… O primeiro a ir

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para o front foi meu pai. Minhamãe queria ir junto, ela éenfermeira, mas o mandaram paraum lado e ela para outro. Eu tinhasó dezesseis anos… Não queriamme aceitar. Fui várias vezes aocentro de alistamento, e depois deum ano me aceitaram.

Viajamos de trem por muitotempo. Junto conosco, soldadosvoltavam do hospital, haviatambém rapazes jovens. Eles noscontavam como era o front eficávamos escutando, de bocaaberta. Diziam que nosbombardeariam, e nós ficávamossentadas, esperando: quando

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começa o bombardeio?Pensávamos que, ao chegar, jápoderíamos dizer que tínhamospassado por um bombardeio.

Chegamos. Mas não nos derammetralhadoras, e sim caldeirões etinas. As meninas todas tinham aminha idade; até então nossos paisnos amavam, nos mimavam. Euera a única criança da família. E láestávamos puxando lenha,acendendo o fogão. Depoispegávamos as cinzas e usávamos natina, no lugar do sabão, porque osabão tinha acabado e trariam maisdepois. A roupa estava suja, tinhapiolhos. E sangue… No inverno

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ficava pesada de tanto sangue…”

Svetlana VassílievnaKatíkhina, soldado do

destacamento de banhose lavanderia

“Até hoje me lembro do meuprimeiro ferido… Lembro dorosto… Tinha uma fratura expostada diáfise femoral. Imagine, o ossoà mostra, ferido por estilhaço, tudorevirado. Aquele osso… Eu sabia oque fazer em teoria, mas quandome aproximei dele me arrastando evi aquilo, fiquei mal, tive náuseas.E de repente escutei: ‘Irmãzinha,

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beba um pouco de água’. Foi oferido que me disse isso. Ficou compena. Vejo aquele quadro como sefosse agora. Quando ele disseaquilo, voltei a mim: ‘Ah’, pensei,‘para o diabo com isso, não souuma senhorita de Turguêniev! Ohomem morrendo, e ela, umacriatura delicada, tendo náuseas,mas veja só’. Desembrulhei o kit deprimeiros socorros e cobri a feridadele: assim ficou mais fácil, e haviaprestado ajuda como era preciso.

Agora assisto filmes sobre aguerra: uma enfermeira na linhade frente anda arrumadinha,limpinha, não usa calças de

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algodão e sim uma saia, a boina emcima do topetinho. Ah, não éverdade! Por acaso íamosconseguir arrastar os feridos seandássemos assim? Não fica muitobem se arrastar de sainha quandotodos a sua volta são homens. E,para falar a verdade, só nos deramsaia no fim da guerra, como fardade gala. E só aí recebemos tambémcalcinhas em vez de roupa de baixomasculina. Não sabíamos onde nosmeter de tanta felicidade.Abríamos a guimnastiorka paraque ficasse à vista…”

Sófia Konstantínovna

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Dubiniakova, primeiro-sargento, enfermeira-

instrutora

* * *

“Bombardeio… Bombardeavame bombardeavam, bombardeavame bombardeavam ebombardeavam. Todos correrampara se esconder em algum lugar…Eu também corri. Então escuteialguém gemendo: ‘Socorro…Socorro…’. Mas continueicorrendo. Alguns minutos depoisalgo ainda chegava até mim, e sentia bolsa de auxiliar de enfermagem

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pesar no ombro. E me deuvergonha. Onde o medo foi parar?Corri de volta: era um soldadoferido que estava gemendo. Meapressei em fazer os curativos nele.Depois mais um, o terceiro…

O combate terminou à noite. Ede manhã caiu uma neve fresca.Sob ela, os mortos… Muitostraziam as mãos erguidas para oalto… Para o céu… Pergunte paramim: o que é a felicidade? Euresponderei… Talvez sejaencontrar, entre os mortos, umapessoa viva…”

Anna Ivánovna

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Beliai, enfermeira

“Vi o primeiro morto… Fiqueichorando em pé diante dele…Lamentando… Então um feridome chamou: ‘Faça um curativo naminha perna!’. A perna dele estavapendurada na calça, tinha sidoarrancada. Cortei a calça: ‘Ponha aperna para mim! Ponha aqui aolado’. Eu pus. Se estivessemconscientes, eles não permitiamdeixar para trás nem seus braços,nem suas pernas. Levavam consigo.E, se morriam, pediam paraenterrar junto.

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Na guerra eu pensava: nuncavou me esquecer de nada disso.Mas a gente esquece…

Era um jovem, um rapaz bonito.E jazia morto. Eu imaginava queenterravam todos os mortos comhonras militares, mas só oarrastaram até a aveleira. Cavaramuma sepultura… Enterraram semcaixão, sem nada, só cobriramdiretamente com terra. O solbrilhava forte, inclusive sobre ele…

Um dia quente de verão… Masnão havia nem lona, nada, opuseram ali vestindo guimnastiorkae culote, como estava, e tudo aindaera novo, pelo visto ele chegara

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havia pouco tempo. Só odepositaram e enterraram. A covaera rasa, apenas o suficiente para ocorpo. A ferida não era grande,mas mortal — na têmpora. Comotinha pouco sangue, ele pareciaestar vivo, apesar de muito pálido.

Depois da salva de tiros,começou o bombardeio.Destruíram o lugar. Não sei seficou algo…

E como enterrávamos os mortosdurante o cerco? Ali mesmo, aolado, perto da trincheira ondeestávamos: enterrávamos e pronto.Ficava só um montinho. Claro, seos alemães avançassem ou viessem

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tanques, passavam por cima. Ficavasó terra normal, sem nenhumrastro. Frequentementeenterravam na floresta, sob asárvores… Debaixo daquelescarvalhos, daquelas bétulas…

Até hoje não consigo andar nafloresta. Especialmente onde hávelhos carvalhos ou bétulas… Nãoconsigo ficar ali…”

Olga Vassílievna Korj,enfermeira-instrutora do

esquadrão de cavalaria

“Perdi a voz no front… Umabela voz…

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Minha voz voltou quando euestava indo para casa. À noite, osparentes se juntaram e brindamos:‘Ah, Verka, cante’. E eu cantei…

Fui para o front umamaterialista. Ateia. Fui como umaboa aluna soviética, tinhaaprendido bem. Mas lá… Lácomecei a rezar… Sempre rezavaantes das batalhas, fazia minhaspreces. Eram palavras simples…Minhas palavras… A ideia era amesma, que eu voltasse paraminha mãe e para meu pai. E nãosabia as rezas de verdade, nãotinha lido a Bíblia. Ninguém mevia rezar. Fazia escondido. Rezava

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furtivamente. Com cuidado.Porque… Na época éramosdiferentes, na época as pessoaseram diferentes. Você entende?Pensávamos de outra forma,entendíamos… Porque… Voucontar algo que aconteceu… Umavez, entre os recém-chegados veioalguém que era religioso, e ossoldados riam quando ele rezava:‘Em que seu Deus lhe ajuda? Se eleexiste, por que permite tudo isso?’.Eles não acreditavam; ao veraquele homem que gritava aos pésdo Cristo crucificado diziam: se Elete ama, por que não te salva?Depois da guerra eu li a Bíblia…

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Por toda a vida, ainda leio… Eaquele soldado já era um homemmais velho, não queria atirar. Serecusava: ‘Não posso! Não voumatar!’. Todos concordavam emmatar, e ele não. E os tempos? Quetempos… Tempos terríveis…Porque… Entregaram-no parajulgamento e dois dias depois ofuzilaram… Pou, pou!

Eram outros tempos… Aspessoas eram diferentes… Comoexplicar? Como…

Felizmente eu… Eu não vi aspessoas que matei… Mas…Mesmo assim… Agora entendoque matei. Penso nisso… Porque…

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Porque fiquei velha. Rezo porminha alma. Dei uma ordem paraminha filha: depois que eu morrer,ela deve mandar todas as minhascondecorações e medalhas nãopara um museu, mas para umaigreja. Entregar para o paizinho…Eles vêm para mim nos sonhos…Os mortos… Meus mortos…Mesmo que eu não os tenha visto,eles vêm e olham para mim. Euprocuro, procuro com os olhos,talvez tenha algum ferido, mesmograve, mas que ainda é possívelsalvar. Não sei como dizer… Masestão todos mortos…”

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Vera BoríssovnaSapguir, sargento,

operadora de artilhariaantiaérea

“O mais difícil de aguentar, paramim, eram as amputações… Váriasvezes faziam umas amputações tãoaltas que cortavam a perna, e eumal conseguia segurá-la, malconseguia levá-la para pôr na bacia.Lembro que eram muito pesadas.Você pega quietinha, para que oferido não escute, e leva como sefosse uma criança… Uma criançapequena… Especialmente se a

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amputação é alta, longe do joelho.Eu não conseguia me acostumar.Os feridos sedados gemiam oudiziam palavrões. Palavrõescabeludos. Eu estava semprecoberta de sangue… Cor decereja… Escuro…

Não escrevia sobre nada dissopara a minha mãe. Escrevia queestava tudo bem, que estava bemagasalhada, bem calçada. Ela tinhamandado três para o front, eradifícil para ela…”

Maria SeliviôrstovnaBojok, enfermeira

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“Eu nasci e cresci na Crimeia…Perto de Odessa. Em 1941 meformei na escola Slobodskaia daregião de Kordimski. Quandocomeçou a guerra, escutava rádionos primeiros dias. Entendi queestávamos recuando… Corri para ocentro de alistamento, memandaram para casa. Fui maisduas vezes lá, nas duas recebi umanegativa. Em 28 de julho, umaunidade em retirada passou pornossa Slobodka, e fui com eles parao front sem nenhuma notificação.

Quando vi um ferido pelaprimeira vez, desmaiei. Depoispassou. Quando me arrastei sob

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balas pela primeira vez para chegara um soldado, gritei tanto queparecia que superava o barulho dabatalha. Depois me acostumei. Dezdias mais tarde, fui ferida, e eumesma retirei o estilhaço e fiz meucurativo…

Em 25 de dezembro de 1942…A nossa 333a Divisão, do 56o

Exército, ocupou uma elevação noacesso a Stalingrado. Nossosoponentes decidiram retomá-la,custasse o que custasse. Começou ocombate. Os tanques avançaramsobre nós, mas a artilharia osdeteve. Os alemães retrocederam,

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na terra de ninguém ficou umtenente ferido, o soldado deartilharia Kóstia Khúdov. Osauxiliares de enfermagem quetentaram tirá-lo de lá forammortos. Dois cães tentaram ir, mastambém foram mortos. E então eutirei minha uchanka,7 fiquei de pé,e cantei, primeiro baixinho, depoismais alto, nossa canção preferidaantes da guerra: ‘Me despedi devocê na partida para um atoheroico’. Tudo ficou quieto dosdois lados: do nosso e dos alemães.Me aproximei de Kóstia, meabaixei, coloquei-o no trenó e o

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trouxe para o nosso terreno. Eu iaandando e pensando: ‘Que não mepegue nas costas; se eu levar umtiro, que seja na cabeça’. É agora…É agora… Os últimos minutos daminha vida… Agora! Interessante:vou ou não vou sentir dor? Quemedo, mãe do céu! Mas não seescutou um tiro sequer…

Não tínhamos farda emquantidade suficiente: davam-nosuma novinha, mas uns dois diasdepois ela já estava todaensanguentada. Meu primeiroferido foi o primeiro-tenenteBielóv — meu último ferido foiSerguei Pietróvitch Trofímov,

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sargento do pelotão de morteiros.Nos anos 1970 ele veio me visitar,e eu mostrei para minha filha suacabeça ferida, que ficou com umagrande cicatriz. Salvei 481 feridosque estavam debaixo de fogocerrado. Algum jornalista contou:um batalhão inteiro…Carregávamos homens que tinhamduas, três vezes nosso peso. E osferidos são ainda mais pesados.Tem que carregar o ferido com aarma, e ele ainda está de capote ebotas. Você levanta esses oitentaquilos e carrega. Deixa lá… Vaipegar o próximo, e de novo sãosetenta, oitenta quilos… E a cada

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ataque eram cinco ou seis. E eumesma pesava 48 quilos — peso debailarina. Agora não dá paraacreditar… Eu mesma nãoacredito…”

Maria PietróvnaSmirnova

(Kukhárskaia),enfermeira-instrutora

“Em 1942… Saímos para umamissão. Cruzamos a linha de frentee paramos junto a um cemitério.Sabíamos que os alemães seencontravam a cinco quilômetros.Era de noite, eles lançavam

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foguetes de iluminação o tempotodo. De paraquedas. Essesfoguetes passam muito tempoardendo e iluminam longe, toda aregião. O comandante do pelotãome levou até a borda do cemitério,mostrou de onde estavamlançando os foguetes e onde estavao arbusto do qual podiam vir osalemães. Eu não tinha medo dosmortos, desde criança não meassustava com cemitérios, mas,com 22 anos, era a primeira vezque montava guarda… Essas duashoras me deixaram grisalha… Namanhã seguinte, descobri meusprimeiros cabelos brancos, uma

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mecha inteira. Fiquei postada,olhando para o arbusto; elefarfalhava, se movia; eu achava quedali viriam os alemães… E maisalguém… Uns monstros… Euestava sozinha…

E isso lá é tarefa para mulher:montar guarda em cemitério? Oshomens lidam com tudo de formamais simples, eles já estavamprontos para a ideia de que épreciso montar guarda, de que épreciso atirar… Para nós isso erainesperado. Ou fazer um percursode trinta quilômetros a pé. Comequipamento militar. No calor. Oscavalos caíam…”

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Vera SafrónovnaDavídova, soldado de

infantaria

“Você me pergunta: o que eramais terrível na guerra? E esperade mim… Eu sei o que vocêespera… Está pensando que vouresponder: o mais terrível naguerra era a morte. Morrer.

É isso mesmo? Conheço vocês,então… Esses truquezinhos dejornalistas… Ha-ha-ha-ha… Porque não está rindo? Hein?

Pois eu vou dizer outra coisa…O mais terrível na guerra, para

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mim, era usar cueca. Isso sim eraum horror. E para mim era umpouco… Como me expressar…?Bem, em primeiro lugar é muitofeio… Você está na guerra, sepreparando para morrer pela pátriae usando cueca. Quer dizer, comuma aparência ridícula. Absurda.Naquela época se usavam cuecascompridas. Largas. Feitas de cetim.Havia dez garotas na nossatrincheira, todas de cueca. Ah,meu Deus! No inverno e no verão.Durante quatro anos.

Cruzamos a fronteira soviética…Como disse nosso comissário nasaulas de política, estávamos

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terminando de matar a fera em suaprópria toca. Perto da primeiraaldeia polonesa nos mandaramtrocar de roupa, entregaram nossanova farda, e… E?! E?! E?! Pelaprimeira vez mandaram calcinhas esutiãs. Pela primeira vez em toda aguerra. Ha-ha-ha… Bem, dá paraentender… Vimos roupas de baixofemininas normais…

Por que você não está rindo?Está chorando… Mas por quê?

Lola Akhmétova,soldado, fuzileira

“Não me aceitavam no front…

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Eu tinha só dezesseis anos, aindafaltava muito para os dezessete.Mas chamaram a nossa enfermeira,entregaram-lhe uma notificação.Ela chorava muito, tinha ummenino pequeno em casa. Fui atéo centro de alistamento: ‘Deixem-me ir no lugar dela’. Minha mãenão deixava: ‘Nina, quantos anosvocê tem? Talvez a guerra acabelogo’. Mãe é mãe.

Os soldados me davam umatorrada, um pedacinho de açúcar.Me protegiam. Eu não sabia quetínhamos uma ‘katiucha’,8 ficavaescondida atrás de nós, na

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cobertura. Ela começou a atirar.Ela atirava, escutávamos umestrondo a nossa volta, tudo ardia.E aquilo me impressionou tanto,me assustei tanto com aqueleestrondo, o fogo, o barulho, quecaí numa poça e perdi a boina. Ossoldados gargalhavam: ‘O que foi,Nínotchka? O que foi, querida?’.

Os ataques corpo a corpo… Doque me lembro? Lembro de umruído seco… Estava começando oataque corpo a corpo: e na mesmahora vinha aquele ruído seco —cartilagens se quebrando, ossoshumanos estalando. Gritosanimalescos… Quando havia um

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ataque, eu ia com os soldados, masum pouquinho atrás, imagine dolado. Acontecia tudo diante dosmeus olhos… Homens cravando abaioneta uns nos outros.Terminando de matar, terminandode quebrar… Cravando a baionetana boca, nos olhos… No coração,na barriga… E isso… Comodescrever? Não sou boa para isso…Não sou boa para descrever… Emsuma, as mulheres não conhecemos homens assim, não veem oshomens desse jeito em casa. Nemmulheres, nem crianças. A coisatoda se torna um horror.

Depois da guerra voltei para

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casa, em Tula. Sempre gritava demadrugada. Minha mãe e minhairmã ficavam comigo à noite… Euacordava com meus própriosgritos…”

Nina VladímirovnaKovelénova, primeiro-

sargento superior,enfermeira-instrutora do

batalhão de fuzileiros

“Fomos para Stalingrado… Lá asbatalhas eram mortais. O lugarmais mortífero… A água e a terratinham ficado vermelhas… Eprecisávamos ir de uma margem

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do Volga para a outra. Ninguémqueria nos escutar: ‘O quê?Meninas? Para que diabosprecisamos de vocês? Precisamosde fuzileiros e operadores demetralhadora, e não de gente dacomunicação’. Éramos muitas,umas oitenta. À noite, aceitaram asmeninas mais altas, mas a mim e auma outra menina não levaram.Éramos baixinhas. Não tínhamoscrescido. Queriam nos deixar nareserva, mas eu abri um berreirodaqueles…

No primeiro combate os oficiaisme empurravam para baixo noparapeito, mas eu botava a cabeça

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para fora e tentava ver tudo eumesma. Havia certa curiosidade,uma curiosidade infantil…Ingênua! O comandante gritava:‘Soldado Semiónova! SoldadoSemiónova, ficou louca? Minhasanta mãe… Vão matar você!’. Issoeu não conseguia entender: comopodiam me matar se eu tinhaacabado de chegar no front? Euainda não sabia quão habitual epouco seletiva é a morte. Nãoprecisa pedir por ela, convencer…

Traziam tropas civis emcaminhões velhos. Gente velha ejovem. Davam umas duas granadaspara cada um e mandavam para o

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combate sem metralhadora; erapreciso arrumar uma metralhadorana batalha. Depois, não havianinguém em quem fazercurativos… Todos mortos…”

Nina AlekséievnaSemiónova, soldado,

comunicações

“Vi a guerra do começo aofim…

Quando carreguei o primeiroferido, minhas pernas fraquejaram.Ia carregando e sussurrando:‘Tomara que não morra… Tomaraque não morra…’. Estava fazendo

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os curativos nele, chorando,dizendo algo carinhoso. Ocomandante passou. E ficougritando comigo, dizendopalavrões inclusive…

‘Por que ele gritou com você?’‘Não era para ficar com pena e

chorando daquele jeito. Ia ficarsem forças, e havia muitos feridos.’

Fazíamos os deslocamentos evíamos os mortos, as cabeçasraspadas estavam verdes comobatatas ao sol. Estavam espalhadascomo batatas… Caíam durante acorrida e assim ficavam ali, no chãoarado… Como batatas…”

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Ekaterina MikhálovnaRabtcháieva, soldado,enfermeira-instrutora

“Não sei dizer onde foi… Emalgum lugar… Uma vez havia unsduzentos feridos em um galpão, eeu sozinha. Traziam os feridosdireto do campo de batalha, erammuitos. Bem, não me lembro,passaram-se tantos anos… Lembroque durante quatro dias nãodormi, não me sentei, todosgritavam: ‘Irmã! Irmãzinha! Meajude, querida!’. Eu corria de umpara outro: uma vez tropecei, caí e

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ali mesmo peguei no sono. Acordeicom gritos. Um comandante, umtenente jovenzinho, tambémferido, se levantou um pouco egritou: ‘Silêncio! Silêncio, estoumandando!’. Ele entendeu que euestava sem forças, mas todos mechamavam, sentiam dor: ‘Irmã!Irmãzinha!’. Dei um salto, saícorrendo de um jeito — não seipara onde nem para quê. E então,pela primeira vez desde que tinhachegado ao front, comecei achorar.

E então… A gente nunca sabe oque se passa no nosso coração. Noinverno, conduziram prisioneiros

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alemães diante da nossa unidade.Eles andavam congelados, comcobertores rasgados sobre a cabeça,capotes esburacados. Fazia tantofrio que os pássaros caíam no meiodo voo. Congelavam. Naquelacoluna havia um soldado… Ummenino… Tinha lágrimascongeladas no rosto… E eu estavalevando pão em um carrinho demão para o refeitório. Ele nãoconseguia tirar os olhos docarrinho, não me via, só via ocarrinho. O pão… O pão… Euseparei um pedaço de uma bisnagae dei para ele. Ele pegou… Pegou enão acreditava. Não acreditava…

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Não acreditava!Fiquei feliz… Feliz por não

poder odiar. Na época, eu mesmafiquei surpresa…”

Natália IvánovnaSerguêieva, soldado,

auxiliar de enfermagem

1 NKVD: Naródni KomissariatVnútrennikh Diel, Comissariado doPovo para Assuntos Internos, espéciede Ministério do Interior da UniãoSoviética, responsável pelas questõespoliciais e de segurança. Era associadoao serviço secreto. Tcheka: políciasecreta da União Soviética.

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2 Komunalka: apartamentocomunitário, no qual viviam duas oumais famílias. Foi uma das principaisformas de moradia na União Soviética.3 Caça alemão.4 Larissa Mikháilovna Reisner (1895-1926): escritora russa comprometidacom a causa bolchevique. Lutou naGuerra Civil e foi comissária políticano Exército Vermelho.5 “Ande! Ande!”, em alemão nooriginal.6 Forma pejorativa de se referir aosjudeus.7 Uchanka: chapéu típico da Rússia.Feito de pele de animais, possui abaspara proteger as orelhas.8 Caminhão militar equipado com umlançador de projéteis. Desenvolvido e

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utilizado pelo Exército Vermelho naSegunda Guerra.

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“Fui a única a voltar paraminha mãe”

Estou indo para Moscou… Porenquanto, o que sei sobre NinaIákovlevna Vichniévskaia ocupa,ao todo, algumas folhinhas do meubloco de notas: foi para o front aosdezessete anos, lutou como

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enfermeira-instrutora no PrimeiroBatalhão da 32a Brigada deTanques do Quinto Exército.Participou do famoso embate detanques de Prókhorovka, no qualse enfrentaram 1200 tanques ecanhões de assalto de ambos oslados — soviético e alemão. Umadas maiores batalhas de tanques dahistória mundial.

Quem me passou o endereçodela foram os seguidores de pistasde uma escola de Boríssov, quereuniram uma grande quantidadede material para seu museu sobre a32a Brigada de Tanques,

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libertadora da cidade. Em geral,nas unidades de tanques osenfermeiros-instrutores eramhomens, mas nesse caso tinha sidouma moça. Na mesma hora meaprontei para pegar a estrada…

Já começo pensativa: comoescolher entre dezenas deendereços? Num primeiromomento eu gravava todas as queencontrava. Me indicavam outroscontatos em corrente, ligavam umapara a outra. Me convidavam paraos encontros, ou entãosimplesmente para ir à casa dealguém para uma torta com chá.Comecei a receber cartas do país

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inteiro, também trocavam meuendereço nas cartas das veteranas.Escreviam: “Você já é uma dasnossas, já é uma garota do front”.Logo ficou claro que não seriapossível gravar entrevistas comtodas, era preciso estabeleceralgum critério de seleção e busca.Mas qual? Depois de classificar osendereços que tinha, formuleiassim: tentar entrevistar mulheresde diferentes profissões militares.Cada um de nós vê a vida segundosua atividade, segundo seu lugarna vida ou nos acontecimentos deque participa. Podemos pressuporque a enfermeira viu uma guerra, a

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padeira viu outra, a paraquedistauma terceira, a piloto viu umaquarta, a comandante de umpelotão de atiradores de fuzil umaquinta… Cada uma delas esteve naguerra que existia em seu raio devisão: a de uma era a mesa decirurgia: “Vi tantos braços e pernasamputados… Já nem acreditavaque em algum lugar havia umhomem inteiro. Parecia que todosestavam feridos ou mortos…” (A.Diémtchenko, primeiro-sargento,enfermeira); de outra, os caldeirõesda cozinha de campanha: “Depoisde um combate às vezes nãosobrava ninguém… Você

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cozinhava caldeirões de mingau,caldeirões de sopa, e não haviapara quem dar…” (I. Zínina,soldado, cozinheira); a da terceiraera a cabine de piloto: “Nossoacampamento ficava na floresta.Cheguei do voo e decidi entrar nafloresta; já estávamos no meio doverão, os morangos estavam noponto. Passava por uma trilhaquando vi um alemão no chão…Ele já estava escuro… Me deumedo. Até aquele momento aindanão tinha visto mortos, e jácombatia na guerra havia um ano.Lá no alto era diferente… Quandovocê está voando, só pensa em

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uma coisa: encontrar o alvo,bombardear e voltar. Nãochegávamos a ver os mortos. Nãotínhamos esse medo…” (A.Bóndarieva, tenente da guarda,piloto). E a guerra das partisans atéhoje está associada ao cheiro dafogueira acesa: “Fazíamos tudo nafogueira — assávamos o pão,cozinhávamos a comida; no carvãoque sobrava colocávamos ascamisas e as botas de feltro parasecar. À noite, nos aquecíamos…”(E. Vissótskaia).

Mas não consigo ficar muitotempo a sós com meuspensamentos. A zeladora do vagão

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traz chá. Logo todos da cabine seapresentam de forma alegre ebarulhenta. Aparecem na mesa atradicional garrafa deMoskóvskaia,* petiscos caseiros, e,como é de praxe em nossa terra,tem início uma conversa cordial.Sobre segredos de família epolítica, amor e ódio, líderes evizinhos.

Há muito tempo entendi quesomos gente de estrada e deconversa…

Também conto para onde estouviajando e por quê. Dois dos meuscompanheiros de viagem tinhamlutado — um foi até Berlim como

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comandante de um batalhão desapadores, o segundo foi partisannas florestas da Bielorrússia portrês anos. Logo começamos a falarsobre a guerra.

Depois anotei nossa conversa damaneira como me ficou namemória:

“Somos uma tribo em extinção.Mamutes! Somos de uma geraçãoque acreditava que há coisasmaiores do que a vida humana. Apátria e a Grande Ideia. Bom, eStálin também. Para que mentir? Écomo dizem por aí, não dá paraseparar a letra da música.”

“Isso mesmo, claro… No nosso

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batalhão havia uma meninacorajosa… Andava na estrada deferro. Com explosivos. Antes daguerra, toda a família foi presa pelarepressão: pai, mãe e dois irmãosmais velhos. Ela morava com umatia, irmã da mãe. Procurou ospartisans nos primeiros dias daguerra. No destacamento a gentevia que ela estava procurandosarna para se coçar… Queriaprovar. Condecoraram todos, masela, não. Não recebeu nenhumamedalha porque os pais eraminimigos do povo. Logo antes dachegada do nosso exército, elaperdeu uma perna. Fui visitá-la no

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hospital… Ela chorava… ‘Masagora todos vão acreditar em mim’,dizia. Era uma moça bonita…”

“Uma vez duas meninas,comandantes de um pelotão desapadores, se apresentaram; algumidiota do departamento pessoal asenviou, e eu as mandei de volta nahora. Ficaram muito chateadas.Queriam ir para a linha de frente efazer as passagens de mina.”

“Por que o senhor as mandoude volta?”

“Por uma série de motivos.Primeiro, eu já tinha um númerosuficiente de bons sargentos quepodiam cumprir a função para a

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qual elas tinham sido enviadas;segundo, eu achava inútil termulheres na linha de frente. Noinferno. Bastávamos nós, homens.Além disso, eu sabia que seriapreciso construir um abrigoseparado para elas, organizar ummonte de coisas de meninas paraas atividades da equipe delas.Muita atrapalhação.”

“Quer dizer que, na sua opinião,lugar de mulher não é na guerra?”

“Se formos lembrar a história,em todos os tempos as mulheresrussas não se limitaram a sedespedir dos maridos, irmãos efilhos, sofrer e esperar por eles. Até

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a princesa Iaroslávna subia nosmuros da fortaleza e jogavaalcatrão quente sobre a cabeça dosinimigos. Mas nós, os homens,tínhamos um sentimento de culpaquando as mulheres combatiam, efiquei com isso. Lembro uma vez,estávamos recuando. Era outono,havia tempos chovia sem parar, diae noite. Tinha uma moça morta aolado da estrada… Com uma trançalonga, e estava ali na lama…”

“Isso mesmo, claro. Quandoescutei que nossas enfermeiras,encurraladas, se defendiam a tirospara proteger os soldados feridos,porque os feridos são indefesos

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feito criança, isso eu entendia.Agora esta cena: duas mulheres searrastando pela faixa neutra paramatar alguém com um fuzil deprecisão. Pois é… Não consigo melivrar da sensação de que isso, semdúvida, é uma ‘caça’, apesar detudo. Eu mesmo atirava… Mas eusou homem…”

“Mas elas estavam defendendosua terra natal, não? Estavamsalvando a pátria…”

“Isso mesmo, claro… Eu iriacom uma mulher dessas numamissão de batedor, mas não mecasaria com ela. Pois é… Estamosacostumados a pensar nas

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mulheres como mãe e noiva. Abela dama, enfim. Meu irmão maisnovo me contou que, quandoestavam conduzindo prisioneirosde guerra alemães pela nossacidade, eles, os meninos, ficaramatirando nos prisioneiros comestilingue. Minha mãe viu e deu-lhe um tabefe. E eram unspirralhos, daqueles que Hitlerconvocou por último. Meu irmãotinha sete anos, mas se lembra decomo nossa mãe olhava para essesalemães e chorava: ‘Suas mãesdevem ter ficado cegas para deixarmeninos como vocês irem para aguerra!’. Guerra é coisa de homem.

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O que foi, por acaso tem poucohomem sobre quem escrever noseu livro?”

“N-não… Sou testemunha. Não!Vamos lembrar da catástrofe queforam os primeiros meses daguerra: toda a aviação foi abatida,nossos tanques queimados feitocaixinhas de fósforo. Os fuzis eramvelhos. Milhões de soldados eoficiais feitos prisioneiros. Algunsmilhões! Um mês e meio depois,Hitler já estava nos arredores deMoscou… Professoresuniversitários se incorporando àsmilícias populares. Professoresidosos! E as meninas partiram para

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o front voluntariamente; enquantoisso um covarde, por si próprio,não ia lutar na guerra. Erammulheres corajosas,extraordinárias. Há uma estatística:as baixas entre a equipe médica dalinha de frente ocupavam osegundo lugar depois das baixasnos batalhões de fuzileiros. Nainfantaria. Por exemplo, você sabeo que é arrastar um ferido parafora do campo de batalha? Vou lheexplicar…

“Partimos para o ataque eestávamos sendo dizimados pelasmetralhadoras. O batalhão já nãoexistia. Todos no chão. Nem todos

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foram mortos, havia muitosferidos. Os alemães continuavamatirando, não paravam. Para aabsoluta surpresa de todos, salta datrincheira uma menina, depoisoutra, a terceira… Elas começam afazer curativos e a arrastar osferidos; até os alemães ficaram sempalavras por um tempo, de tãosurpresos. Por volta das dez danoite todas as meninas estavamgravemente feridas, mas cada umatinha salvado duas ou três pessoas.E foram econômicos na hora decondecorá-las, no começo daguerra não se distribuíam muitasmedalhas. Para carregar um ferido

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tinham que levar a arma deletambém. A primeira pergunta nobatalhão médico era: cadê a arma?No começo da guerra as armas nãoeram suficientes. Fuzis, fuzisautomáticos, metralhadoras —também precisavam carregar tudoisso. Em 1941 foi emitida a ordemno 281 que recomendava acondecoração pelo salvamento davida dos soldados: por tirar quinzeferidos em estado grave do campode batalha, junto com suas armaspessoais — a Medalha de MéritoMilitar; por salvar 25 pessoas — aOrdem da Estrela Vermelha; pelosalvamento de quarenta — a

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Ordem do Estandarte Vermelho;pelo salvamento de oitenta — aOrdem de Lênin. E eu descrevi oque significava salvar pelo menosuma pessoa na batalha… Debaixode balas…”

“É isso mesmo, claro… Eutambém me lembro… É, foi…Mandei nossos batedores para aaldeia onde estava uma guarniçãoalemã. Foram dois… Em seguidamais um… Ninguém voltou. Ocomandante chamou uma denossas meninas: ‘Liússia, vá você’.Vestimos a moça de pastora e alevamos para a estrada… O quefazer? Que saída? Matariam um

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homem, mas uma mulher podiapassar. Isso, sim… Mas ver umamulher com um fuzil nas mãos…”

“A moça voltou?”“Esqueci o sobrenome dela…

Me lembro do nome: Liússia. Elamorreu… os camponeses noscontaram depois.”

Todos ficam calados por umlongo tempo. Depois, fazem umbrinde à memória dos mortos. Otema da conversa muda para outradireção: fala-se de Stálin, de comoantes da guerra ele exterminou osmelhores quadros de comando, aelite militar. Sobre a cruelcoletivização e sobre 1937. Os

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campos de trabalho e os degredos.E que, sem 1937, talvez não tivesseacontecido o que aconteceu em1941. Não teríamos recuado atéMoscou. Mas depois da guerra issofoi esquecido. A Vitória ofuscoutudo.

“E amor na guerra, existia?”,pergunto.

“Encontrei muitas moças bonitasno front, mas não as via comomulheres. Na minha opinião,porém, eram moças maravilhosas.Porém eram nossas amigas, quenos arrastavam para fora do campode batalha. Nos salvavam,cuidavam de nós. Duas vezes me

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arrastaram, ferido, para fora docampo. Como posso ter uma visãonegativa delas? Mas você se casariacom um irmão? Nós aschamávamos de irmãzinhas.”

“E depois da guerra?”“Quando a guerra acabou, elas

ficaram terrivelmente indefesas.Minha esposa, por exemplo, é umamulher inteligente, mas tem umavisão negativa de mulheresmilitares. Acha que elas iam para aguerra procurar noivo, que todastinham casos por lá. E apesar disso,na verdade, se a gente pode falarfrancamente, elas eram, em suamaioria, mulheres direitas. Puras.

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Mas depois da guerra… Depois dasujeira, depois dos piolhos, depoisdas mortes… A gente queria algobonito. Claro. Mulheres bonitas…Eu tinha um amigo; no front, umamoça maravilhosa, pelo que melembro, se apaixonou por ele. Umaenfermeira. Mas ele não casou comela: deu baixa e encontrou para siuma outra, mais bonitinha. E éinfeliz com a esposa. Agora ficalembrando da outra, do seu amorde guerra, essa sim, seria umaamiga. Depois do front ele adeixou porque tinha passadoquatro anos vendo a moça combotas gastas e casaco acolchoado

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masculino. Tentávamos esquecer aguerra. E também esquecíamosnossas meninas…”

“Isso mesmo, claro… Todoseram jovens. Queriam viver avida…”

Ninguém dormiu naquela noite.Ficamos falando até amanhecer.

… Saindo do metrô,imediatamente vou parar em umpatiozinho sossegado de Moscou.Com parquinho de areia e balançopara as crianças. Vou andando elembrando da voz surpresa aotelefone: “Chegou? E já vem diretofalar comigo? Não vai esclareceralguma dúvida no Conselho de

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Veteranos antes? Eles têm todos osdados a meu respeito, podemcorrigir”. Até fiquei desconcertada.Antes, achava que sobreviver aosofrimento deixava uma pessoamais livre, que ela pertencia entãoapenas a si mesma. Que suaprópria memória a defendia.Naquele momento, estavadescobrindo que não, nem sempre.Muitas vezes esse conhecimento, eaté um conhecimento superior(que não acontece na vidacostumeira), existe separadamente,como uma reserva intangível oucomo poeira de ouro em uma minade várias camadas. É preciso passar

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muito tempo limpando uma rochavazia, revirar juntos o vazio docotidiano, para enfim alguma coisabrilhar! Oferecer-nos um presente!

Então, o que somos de fato: deque somos moldados, de qualmaterial? Quero entender qual ésua resistência. Foi para isso quevim até aqui…

Uma mulher baixinha erechonchuda abre a porta. Umbraço se estende para mim numcumprimento masculino, o outrosegura um neto pequeno. Pelaimpassibilidade e curiosidadefamiliar que aparenta a criança,entendo que essa casa recebe

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muitas visitas. Aqui, se espera porelas.

O cômodo grande é espaçoso,quase não tem móveis. Naprateleira feita em casa há algunslivros, a maior parte memórias deguerra; muitas ampliações defotografias do front; um capacetede tanquista pendurado em umchifre de alce; sobre uma mesinhaenvernizada, uma fileira depequenos tanques comdedicatórias: “Dos soldados daunidade de N…”, “Dos alunos daEscola de Tanques”… Ao meulado, no sofá, estão “sentadas” trêsbonecas de farda militar. Até as

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cortinas e o papel de parede da salatêm cores militares.

Entendo que aqui a guerra nãoacabou e nunca vai acabar.

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NINA IÁKOVLEVNAVICHNIÉVSKAIA, SUBTENENTE,ENFERMEIRA-INSTRUTORA DE UMBATALHÃO DE TANQUES

“Por onde começar? Eu atépreparei um texto para você…Bom, certo, vou falar do fundo daalma. Foi assim… Vou contarcomo para uma amiga…

Vou começar com o fato de quea contragosto aceitavam mulheresnas tropas de tanques. Posso atédizer que não nos aceitavam.Como entrei? Morávamos nacidade de Konakovo, no distrito de

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Kalínin. Eu tinha acabado depassar nas provas do oitavo ano eestava indo para o nono. Naquelaépoca, nenhum de nós tinhaentendido o que era uma guerra,achávamos que era algum tipo dejogo, algo livresco. Tínhamos sidoeducados com fé no romantismoda revolução, nos ideais.Acreditávamos nos jornais: aguerra em breve terminaria com anossa vitória. Mas logo, logo…

Nossa família vivia em umgrande apartamento comunitário;havia muitas famílias ali, e todo diaalguém ia embora para lutar naguerra: tio Piétia, tio Vássia…

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Íamos com eles até a estação, emais do que qualquer coisa eracuriosidade o que isso despertavaem nós, crianças. Íamos atrás delesaté o trem… Uma música ressoava,as mulheres choravam, mas nadadisso nos assustava, muito pelocontrário: nos divertia. A fanfarrasempre tocava a marcha ‘O adeusde Slaviánka’. Dava vontade desubir no trem e ir também. Ao somdaquela música. A guerra, daforma como se apresentava paranós, estava distante. Eu, porexemplo, gostava dos botões dasfardas, de como brilhavam. Játinha feito um curso de enfermeira

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paramilitar, mas encarava tudo issode uma forma infantil. Como umjogo. Depois, fecharam a escola,fomos convocados para aconstrução de edifícios de defesa.Acomodaram-nos em galpões,num campo aberto. Até nosorgulhávamos de estar em algumaatividade relacionada à guerra.Formávamos o batalhão dos fracos.Trabalhávamos das oito da manhãàs oito da noite, doze horas pordia. Cavávamos fossos para conteros tanques. E éramos todosmeninas e meninos de quinze,dezesseis anos… Uma vez, na horado trabalho, escutamos algumas

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vozes: uma gritava ‘Avião!’, a outragritava ‘Alemães!’. Os adultoscorreram para se esconder, masestávamos interessados em saber oque era um avião alemão, o queeram os alemães? Eles passarampor nós voando, não conseguimosver nada. Ficamos desapontados,inclusive. Algum tempo depois,voltaram voando mais baixo.Todos viram as cruzes negras. Nãotínhamos medo nenhum, maisuma vez somente curiosidade. E,de repente, eles abriram fogo,começaram a nos metralhar, e ali,bem diante dos nossos olhos,começaram a cair alguns dos

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nossos, gente que tinha estudado etrabalhado conosco. Entramos emuma espécie de letargia, nãoconseguíamos de forma algumaentender o que era aquilo. Ficamosparados, olhando… Aliplantados… E os adultos vinhamcorrendo e nos jogavam no chão,mas mesmo assim não sentíamosmedo…

Logo, os alemães chegaram bemperto da cidade: estavam a uns dezquilômetros, dava para ouvir adescarga dos canhões. Eu e asmeninas corremos para o centro dealistamento: também precisávamosir defender, juntas. Sem nenhuma

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dúvida. Mas não estavamaceitando todas, só as meninasresistentes, fortes, e,principalmente, as que já tinhamcompletado dezoito anos. As boasintegrantes do Komsomol. Algumcapitão estava selecionando umasmeninas para a unidade detanques. A mim não quis nemescutar, claro, porque tinhadezessete anos e media 1,60 metro.

‘Se um soldado de infantaria éferido’, me explicou, ‘ele cai nochão. Dá para se arrastar até ele efazer os curativos no local, ouarrastá-lo para o abrigo. Mas comum tanquista não é assim… Se ele

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for ferido dentro do tanque, vocêtem que arrastá-lo para fora pelaescotilha. Você consegue puxar umrapaz desses? Sabe como são fortesos tanquistas? Quando você temque entrar no tanque, está sob fogoinimigo, voam balas, estilhaços.Você sabe como é um tanquequando pega fogo?’

‘Por acaso não sou umakomsomolka como todas asoutras?’, comecei a chorar.

‘Claro, você também é umakomsomolka. Mas é muitopequena.’

E minhas amigas, com quem eutinha estudado no curso de

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enfermeira paramilitar e na escola— meninas altas, fortes —, foramaceitas. Eu ficava magoada emsaber que elas partiriam e eu teriaque ficar.

Não falei nada para os meuspais, claro. Fui me despedir delas,e elas ficaram com pena de mim:me esconderam debaixo da lona,na carroceria do caminhão.Viajamos na carroceria aberta,todas com lenços diferentes: o deuma era preto, de outra azul,vermelho… Eu estava usando umablusinha da minha mãe em vez dolenço. Como se não estivéssemosindo para a guerra, mas para um

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concerto amador. Para umespetáculo! Ou um filme… Agoranão me lembro disso sem sorrir…Chura Kisseliova até levou oviolão. Estávamos a caminho, astrincheiras já começavam aaparecer, os soldados nos viram egritaram: ‘Chegaram as artistas!Chegaram as artistas!’.

Chegamos perto do estado-maior, e o capitão deu o comandopara entrar em formação. Saíramtodas, e fiquei por último. Asmeninas todas com suas coisas, eeu ali. Foi tudo tão inesperado queeu não tinha levado nada comigo.Chura me deu o violão: ‘Ah, para

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você não ficar sem nada’.Saiu o chefe do estado-maior, o

capitão comunicou:‘Camarada coronel! Doze moças

estão às ordens para ingressar noserviço.’

Ele olhou:‘Mas aqui não tem doze, tem

treze.’O capitão por sua vez:‘Não, são doze, camarada

coronel’, tão convencido ele estavade que eram doze. Quando sevoltou para nós, olhou eimediatamente falou para mim: ‘Evocê, de onde saiu?’.

Respondi:

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‘Vim lutar, camarada capitão.’‘Então venha cá!’‘Vim com minha amiga…’‘Com a amiga é bom ir dançar.

Isso aqui é uma guerra. Venha cá,mais perto.’

Do jeito que estava, com a blusada minha mãe na cabeça, fui paraperto dele. Mostrei o certificado docurso de enfermeira paramilitar.Comecei a implorar:

‘Senhores, não tenham dúvida,sou forte. Trabalhei comoenfermeira… Doei sangue… Porfavor…’

Olharam todos os meusdocumentos, e o coronel ordenou:

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‘Mandem-na para casa! Noprimeiro veículo possível!’

Enquanto o veículo nãochegava, me nomearamtemporariamente para o batalhãomédico. Sentei e fiquei fazendotampões de gaze. Assim que vi umveículo se aproximando do estado-maior, corri para a floresta. Fiqueilá uma ou duas horas, o veículo foiembora e eu voltei. Foi assim portrês dias, enquanto o batalhão nãoentrou em combate. O PrimeiroBatalhão da 32a Brigada deTanques. Todos foram para ocombate, e eu fiquei preparando

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abrigos para os feridos. Não tinhapassado nem meia hora ecomeçaram a trazer os feridos… Emortos… Naquele combatetambém morreu uma das nossasmeninas. Bem, todos seesqueceram que deviam memandar para casa. Seacostumaram. A chefia já nemlembrava…

E agora? Agora precisava deuma farda. Recebemos umassacolas para guardar nossas coisas.Sacolas novinhas. Cortei a alça,descosturei o fundo e vesti.Consegui uma saia militar.Encontrei em algum lugar uma

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guimnastiorka não muito rasgada,amarrei com um cinto e fui megabar para as meninas. Mas logoque dei umas voltas diante delas, osubtenente passou por nosso abrigode terra, e atrás dele o comandanteda unidade.

O subtenente disse:‘Se-entido!’O tenente-coronel apareceu, e o

subtenente disse para ele:‘Camarada coronel, permita-me

informar! Uma ocorrênciaextraordinária com as moças. Dei aelas sacolas para as coisas, mas elasse meteram dentro.’

E então o comandante da

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unidade me reconheceu:‘Ah, então é você, “lebre”!

Então, como é, subtenente? Temque fardar as meninas.’

O que recebemos? As calças delona dos tanquistas, e ainda porcima com remendos no joelho;também nos deram uns macacõesfinos, pareciam feitos de chita. Aterra estava misturada comestilhaços metálicos, toda reviradacom pedras — de novo estávamosandando em farrapos, porque nãoficávamos sentadas nos veículos,nós nos arrastávamos nessa terra.Era muito comum os tanquespegarem fogo. O tanquista, se

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estivesse vivo, ficava todoqueimado. Nós também ficávamoschamuscadas, porque para tiraruma pessoa em chamas é precisoentrar no fogo. É verdade… Émuito difícil arrastar uma pessoapara fora da escotilha,principalmente um atirador detorre. E uma pessoa morta pesamais que uma viva. Muito mais. Eulogo descobri isso.

Não tínhamos preparo parachamar as pessoas pela patente —não entendíamos —, e osubtenente nos ensinava o tempotodo que agora éramos soldados deverdade, devíamos saudar todos os

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nossos superiores com a patente,andar aprumadas, de capoteafivelado.

E os soldados, vendo queéramos moças tão jovens,adoravam brincar conosco. Umavez me mandaram buscar chá nobatalhão médico. Fui falar com ocozinheiro. Ele olhou para mim:

‘Para que você veio?’Falei:‘Para pegar chá…’‘Ainda não está pronto.’‘ Por quê?’‘Os cozinheiros estão tomando

banho nos caldeirões. Primeirovamos nos lavar, depois fazemos o

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chá.’Eu acreditei. Levei

absolutamente a sério. Peguei meubalde e voltei. Encontrei o médico.

‘Por que veio de mãos vazias?Cadê o chá?’

Respondi:‘Os cozinheiros estão tomando

banho nos caldeirões. O chá aindanão está pronto.’

Ele pôs as mãos na cabeça:‘Como assim, os cozinheiros

estão tomando banho noscaldeirões?’

Me mandou de volta, deu umabela bronca naquele cozinheiro eme deram dois baldes de chá.

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Estava levando o chá, e o chefe daseção política e o comandante dabrigada vieram ao meu encontro.Na mesma hora me lembrei o quetinham nos ensinado: era parasaudar a todos, porque éramossoldados rasos. E ali vinham osdois. Como eu ia saudar aquelesdois? Fui andando e refletindo.Alcancei-os, deixei os baldes nochão, levei as duas mãos à testa eme curvei para um e para outro.Eles nem tinham reparado emmim, mas estacaram pela surpresa.

‘Quem te ensinou a batercontinência?’

‘Foi o subtenente; ele disse que

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preciso saudar a todos. E vocêsestavam passando, os doisjuntos…’

Para nós, meninas, tudo noExército era complicado.Achávamos muito difícil entenderos sinais de distinção. Quandochegamos ainda existiamlosanguinhos, cubinhos, tracinhos,e tinha que deduzir qual era apatente. Diziam: ‘Leve esse pacotepara o capitão’. Como eu iadiferenciar? Enquanto você estavaandando, até a palavra ‘capitão’ lhefugia da cabeça. Eu chegava edizia:

‘Moço, ô moço, o outro moço

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me mandou dar isso para você…’‘Que moço?’‘Aquele que sempre usa

guimnastiorka. Sem a túnica.’Não gravávamos quem era

tenente, quem era capitão,gravávamos outras coisas: se erabonito ou feio, ruivo ou alto. ‘Ah,aquele, o alto!’ — e noslembrávamos.

Claro, quando vi os macacõesqueimados, os braços queimados, orosto queimado… Eu… Foisurpreendente… Perdi aslágrimas… O dom das lágrimas,um dom feminino… Os tanquistassaltavam dos veículos pegando

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fogo, eles mesmos cobertos dechamas. Soltando fumaça. Váriasvezes com os braços ou as pernasdestroçados. Feridos em estadogravíssimo. Deitados, pediam: ‘Seeu morrer, escreva para minhamãe, escreva para minhamulher’… Eu não conseguia. Nãosabia como comunicar uma mortea alguém…

Quando os tanquistas meencontraram com as pernasmutiladas e me levaram para umaaldeia ucraniana, emKirovográdtchin, a dona da casaonde ficava o batalhão médico selamentou:

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‘Ah, que menino jovenzinho!’Os tanquistas riram:‘Não é um rapazinho, minha

senhora, é uma mocinha!’Ela se sentou ao meu lado e

ficou olhando:‘Ah, é, uma mocinha? É uma

mocinha? Não, é um rapazjovenzinho…’

Estava com o cabelo curtinho,de macacão, com o capacete detanquista — era um rapazinho. Elaabriu espaço para mim nos leitosde tábua e até matou umleitãozinho para que eu merecuperasse mais rápido. E semprese lamentando:

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‘O que foi? Estava faltandohomem para pegarem umascrianças dessas? Menininhas…’

Pelas palavras dela, pelaslágrimas… Por algum tempo toda acoragem me abandonou, fiqueicom tanta pena de mim, tantapena da minha mãe. O que euestava fazendo no meio doshomens? Eu era uma moça. E sevoltava sem uma perna? Penseimuita coisa… Sim, pensei… Nãovou esconder…

Aos dezoito anos, na batalha deKursk, me concederam umaMedalha de Mérito Militar e aOrdem da Estrela Vermelha; aos

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dezenove recebi a Ordem daGuerra Patriótica de segundo grau.Quando chegava um novo reforço,os rapazes eram todos jovens e,claro, ficavam surpresos. Elestambém tinham dezoito, dezenoveanos, e me perguntavam emzombaria: ‘Você recebeu essamedalha por quê?’ ou ‘Mas você jáesteve em algum combate?’.Faziam piadinhas: ‘As balasatravessam lataria do tanque?’.

Depois fiz os curativos de umdesses no campo de batalha, sobfogo aberto, até lembro osobrenome dele: Schegolievátikh.Teve uma perna mutilada.

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Enquanto eu punha uma tala nele,ele ficava me pedindo perdão:

‘Irmãzinha, perdão pelas ofensasdaquele dia. Eu gostei de você,para ser sincero.’

O que sabíamos sobre o amornaquela época? Se tivesseacontecido algo, era um amor deescola, e amor de escola ainda éinfantil. Eu me lembro de uma vezem que estávamos sitiados…Cavamos a terra com as mãos, nãotínhamos mais nada. Nem pás. Játínhamos decidido: essa noite, ourompemos o cerco, ou morremos.Eu achava que certamentemorreríamos… Não sei, conto isso

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ou não conto? Não sei…Nos camuflamos. Estávamos

sentados esperando a noite cairpara de qualquer forma fazer umatentativa de romper o cerco. E otenente Micha T. — o comandantede batalhão estava ferido, e eleestava ocupando o posto, tinha unsvinte anos — começou a se lembrarde como adorava dançar e tocarviolão. Depois perguntou:

‘Você já provou?’‘O quê? Provei o quê?’, estava

morrendo de fome.‘Não o quê, mas quem… Moça!’Antes da guerra havia uns doces

com esse nome.

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‘Na-a-ão…’‘Eu também ainda não provei.

Veja, você vai morrer sem saber oque é o amor… Vão nos matar estanoite…’

‘Vá se danar, idiota!’, nessa horaentendi do que ele estava falando.

Íamos morrer pela vida, e euainda não sabia o que era a vida.Só tínhamos lido em livros arespeito de tudo. Eu adorava filmesde amor…

As enfermeiras-instrutoras dasunidades de tanques morriamrápido. Não havia lugar previstopara nós nos tanques, a gente tinhaque se segurar na lataria, e só

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pensávamos em uma coisa: que opé não prendesse na esteira. Erapreciso ficar de olho se algumtanque começava a queimar…Saltar e correr para lá, se arrastar…Éramos cinco meninas no front:Liuba Iassínskaia, ChuraKisseliova, Tónia Bobkova, ZinaLatich e eu. Os tanquistas noschamavam de ‘as meninas deKonakovo’. E todas elas morreram.

Antes da batalha em que LiubaIassínskaia morreu, eu e ela nosabraçamos de noite. Ficamosconversando. Foi em 1943… Nossadivisão tinha chegado ao Dniepr.De repente, ela me falou: ‘Sabe,

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vou morrer nessa batalha. Estoucom um pressentimento. Fui falarcom o subtenente, pedi para medar uma roupa de baixo nova, e elelamentou, disse ‘Você recebeu umahá pouco tempo’. “Venha comigode manhã, vamos pedir juntas.’ Eua tranquilizei: ‘Eu e você já estamoslutando na guerra há dois anos,agora são as balas que têm medode nós’. Mas mesmo assim demanhã ela me convenceu a ir falarcom o subtenente, e imploramospara ele por um novo par deroupas de baixo. Ela estava comuma camisa de baixo nova. Brancacomo a neve, com uns

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cordõezinhos… Encharcada desangue… E essa combinação debranco e vermelho, com o sangueescarlate, ficou até hoje na minhamemória. Ela tinha imaginadoassim mesmo…

Nós quatro a levamos em umalona, ela ficou tão pesada. Naquelecombate morreram muitos dosnossos. Cavaram uma grande valacomum. Puseram todos ali,puseram todos sem caixão, comosempre, e Liuba em cima. Eu nãoconseguia entender que ela tinhapartido, que eu não a veria mais.Eu pensava: vou pegar algumobjeto dela como lembrança. Ela

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usava um anelzinho, se era de ouroou se era simples, não sei. Eupeguei. Apesar de o pessoal tertentado me impedir: ‘Nem ouse’,diziam, ‘dá azar’. E quando já erahora de se despedir, cada um denós jogou um punhado de terra;eu também joguei, e o anelzinhovoou do meu dedo para lá, parabaixo… Para Liuba… Na horalembrei que ela adorava esseanelzinho… Na família deles, o paipassou a guerra inteira lutando evoltou vivo. O irmão também foipara a guerra. Os homensvoltaram… E Liuba morreu…

Chura Kisseliova… Ela era a

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mais bonita do grupo. Parecia umaatriz. Morreu queimada. Estavaescondendo os gravemente feridosem montes de palha quandocomeçou um bombardeio e a palhapegou fogo. Chura podia ter sesalvado, mas para isso precisavalargar os feridos… Ela queimoujunto com eles…

Há pouco tempo fiquei sabendodos detalhes da morte de TóniaBobkova. Ela protegeu o homemque amava de estilhaços de mina.Os estilhaços voavam emmilésimos de segundos… Comoela conseguiu? Salvou o tenentePiétia Boitchévski, ela o amava. E

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ele sobreviveu.Trinta anos depois, Piétia

Boitchévski veio de Krasnodar. Meencontrou. E me contou tudo isso.Fui com ele a Boríssov eprocuramos o campo em que Tóniatinha morrido. Ele pegou umpouco de terra do túmulo dela…Segurava e beijava…

Éramos cinco, as meninas deKonakovo… Fui a única a voltarpara minha mãe…”

Inesperadamente, ela se pôs arecitar um poema:

Uma moça ousada subiu nablindagem

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Estava defendendo sua pátria.Não se importava com balas, ou comestilhaçosArdia o coração daquela moça.Lembre-se, amigo, de sua belezamodesta,Quando ela for carregada sobre umpedaço de lona…

Ela admitiu que compôs essesversos no front. Já sei que muitasdelas escreviam versos. Hojecopiam-nos com cuidado, guardamnos arquivos familiares — eles sãodesajeitados e comoventes. Seusálbuns de fotos do front — e emtodas as casas me mostram umdesses — sempre me fazem

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lembrar de álbuns de amor democinhas. Só que nesses se fala deamor, e naqueles de morte.

“Minha família é muito unida.Uma boa família. Filhos, netos…Mas vivo na guerra, estou lá otempo todo… Dez anos atrás,procurei meu amigo VâniaPozdniakov. Pensávamos que eletinha morrido, e descobrimos quenão, que ele estava vivo. O tanquedele — era o comandante —destruiu dois tanques alemães emPrókhorovka, queimou os dois. Ossoldados morreram, só ficou Vânia— sem olhos, todo queimado. Foimandado para o hospital, mas não

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achávamos que ele ia sobreviver.Não tinha sobrado nem umpedacinho intacto. Toda a pele…Toda… Caía aos pedaços… Comouma membrana… Achei oendereço dele trinta anos depois…A metade de uma vida… Lembroque estávamos subindo as escadas,as pernas fraquejavam: é ele? Nãoé ele? Ele mesmo abriu a porta eme tocou com as mãos,reconhecendo: ‘Ninka, é você?Ninka, é você?’. Ele me reconheceudepois de tanto tempo…

A mãe dele era uma velhinha —ele morava com ela; estava sentadaconosco, e chorava. Fiquei

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surpresa:‘Por que está chorando? Devia

se alegrar por ele ter encontradouma companheira de regimento.’

Ela me respondeu:‘Três filhos meus foram para a

guerra. Dois morreram, mas Vâniavoltou vivo para casa.’

Vânia tinha perdido os doisolhos. Ela o levou pela mão a vidatoda.

Perguntei para ele:‘Vânia, a última coisa que você

viu foi o chão de Prókhorovka, abatalha de tanques… O que vocêlembra daquele dia?’

E sabe o que ele me respondeu?

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‘Só lamento uma coisa: ter dadoo comando de abandonar o veículoem chamas cedo demais. Osrapazes morreram de qualquerforma. Poderíamos ter destruídomais um tanque alemão.’

É isso o que ele lamenta… Atéhoje…

Eu e eles fomos felizes naguerra… Não trocamos maisnenhuma palavra. Nada. Mas eume lembro…

Por que fiquei viva? Para quê?Eu acho… Eu entendo que foi paracontar isso…”

Meu encontro com NinaIákovlevna continuou, mas de

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forma escrita. Depois detranscrever o relato da fita cassete eescolher o que mais mesurpreendera e impressionara, eu,como prometido, mandei umacópia para ela. Algumas semanasdepois chegou de Moscou umpesado pacote de encomendaregistrada. Abri: eram recortes dejornal, artigos, informes oficiaissobre o trabalho militar-patrióticoconduzido nas escolas de Moscoupela veterana de guerra NinaIákovlevna Vichniévskaia.Também devolvia o material queeu mandara, mas pouco sobrara —estava todo riscado: as linhas

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alegres sobre os cozinheiros quetomavam banho nos caldeirõesforam suprimidas, e até oinofensivo “Moço, ô moço, o outromoço me mandou dar isso paravocê…”. Nas páginas da históriasobre o tenente Micha T. haviaperturbadores sinais deinterrogação e anotações nasmargens: “Para meu filho sou umaheroína. Uma divindade! O queele vai pensar de mim depoisdisso?”.

Depois, mais de uma vez medeparei com essas duas verdadesconvivendo em uma mesmapessoa: a verdade pessoal, relegada

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à clandestinidade, e a verdadegeral, impregnada do espírito dotempo. Do cheiro dos jornais. Aprimeira raramente consegue ficarde pé diante da pressão dasegunda. Por exemplo, se noapartamento, além da narradora,estivesse presente também algumoutro parente ou conhecido,vizinho (especialmente homem),ela seria menos sincera econfidente do que se estivéssemossó as duas. Já se tornava umaconversa pública. Para oespectador. Extrair suas impressõespessoais se tornava uma tarefaimpossível, e eu imediatamente

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verificava uma rigorosa defesainterna. Um autocontrole. Acorreção se tornava habitual. E atépude identificar um padrão:quanto mais ouvintes presentes,mais desapaixonado e estéril era orelato. Mais cauteloso em relaçãoao que manda o figurino. O queera terrível já se tornava grandioso,e o incompreensível e obscuro noser humano era instantaneamenteexplicável. Eu ia parar no desertodo passado, onde só haviamonumentos. Façanhas.Orgulhosas e impenetráveis. ComNina Iákovlevna aconteceu omesmo: uma guerra ela

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rememorava só para mim, “como auma filha, para que você entendapelo que nós, meninas de tudo,tivemos que passar”; outradestinava-se ao grande auditório:“Como contam os outros e comoescrevem nos jornais: sobre heróise façanhas, para educar os jovenscom exemplos elevados”. Todas asvezes eu ficava estupefata com essafalta de confiança no que é simplese humano, com esse desejo desubstituir a vida por um ideal. Oque é habitualmente cálido poruma auréola fria.

Eu não conseguia esquecercomo havíamos bebido chá

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daquele jeito caseiro, na cozinha.As duas chorando.

* Tradicional marca de vodca.

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“Em nossa casa vivemduas guerras…”

Um edifício cinza de concretoarmado na rua Kakhóvskaia, emMinsk; aqui, metade da cidade foiconstruída com esses edifíciosimpessoais de vários andares, que acada ano se tornam mais soturnos.

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Mas esse edifício é, ainda assim,especial. “No nosso apartamentovivem duas guerras” — escutoquando abrem a porta. A suboficialde primeira classe Olga VassílievnaPodvíchenskaia combateu numaunidade da Marinha no Báltico.Seu marido, Saul Guénrikhovitch,serviu na Infantaria.

Tudo se repete… Mais uma vezolho longamente os álbuns defotos, compostos com minúcia ecarinho, sempre posicionados emum lugar visível para osconvidados. E para eles própriostambém. Cada um desses álbunstem um título: “Nossa família”,

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“Guerra”, “Casamento”, “Filhos”,“Netos”. Gosto desse respeito pelavida pessoal, um amordocumentado pelo que passou e foivivido. Pelos rostos queridos. Ébem raro encontrar essesentimento de casa, através do qualas pessoas olham bem para sualinhagem, para sua família; e issoapesar de ter visitado centenas deapartamentos, ter estado comdiversas famílias, intelectuais ousimples. Urbanas e rurais. Talvez asconstantes guerras e revoluçõestenham nos desacostumado amanter as ligações com o passado,a tecer cuidadosamente a teia de

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aranha da família. A sentirorgulho. Nos apressamos emesquecer, em apagar os rastros,porque os testemunhospreservados podiam se transformarem provas, e várias vezes noscustavam a vida. Ninguém conhecea própria história para além dasavós e dos avôs, e não se procuramas raízes. Estávamos fazendohistória, mas vivíamos o dia.Tínhamos memória curta.

Ali era diferente…“Será que sou eu mesma?”, ri

Olga Vassílievna, sentada ao meulado no sofá, segurando uma fotoem que aparecia com uniforme de

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marinheira e condecorações deguerra. “Quanto mais olho paraessas fotografias, mais mesurpreendo. Saul mostrou paranossa neta de seis anos e elaperguntou: ‘Vovó, antes você eramenino, né?’.”

“Olga Vassílievna, você foiimediatamente para o front?”

“Minha guerra começou com aevacuação… Deixei para trásminha casa, minha juventude.Percorremos a estrada inteiradebaixo de tiros, bombas, aviõesvoando bem baixo. Lembro quedesceu do vagão um grupo demeninos de uma escola de ofícios,

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todos de capotes pretos. Era umbelo de um alvo! Metralharamtodos, os aviões passavam logoacima do chão. A sensação era deque atiravam e contavam… Vocêimagina?

Trabalhávamos em uma fábrica;nos davam comida lá, a situaçãonão era das piores. Mas o coraçãoestava em chamas. Eu escreviacartas para o centro de alistamento.Uma, duas, três… Em junho de1942, recebi uma notificação.Cruzamos o lago Ládoga embarcaças abertas, sob fogo inimigo,para chegar ao cerco deLeningrado. Do primeiro dia em

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Leningrado me lembro das noitesbrancas e de um destacamento demarinheiros passando de preto.Dava para sentir que a situaçãoestava tensa, não havia nenhumtranseunte, só os holofotesfuncionavam, e os marinheirosandavam com cintos de balas.Você imagina? Coisas de cinema…

A cidade estava absolutamentesitiada. O front estava bempróximo. Com o bonde número 3era possível chegar até a fábricaKírov, onde começava a linha defrente. Quando o tempo estavabom havia tiroteio da artilharia. E,ainda por cima, abriam fogo sobre

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o alvo. Atacavam, atacavam,atacavam… Havia navios grandesno cais; claro, eles tinham sidocamuflados, mas mesmo assim nãose descartava a possibilidade desofrerem algum dano. Fomosencarregadas de fazer cortinas defumaça. Foi montado umDestacamento Especial de Cortinade Fumaça, dirigido pelo antigocomandante da Divisão deTorpedeiros, o tenente-capitãoAleksandr Bogdánov. As meninas,em geral, tinham formação técnicaou haviam terminado os primeiroscursos do ensino superior. Nossatarefa era proteger os navios e

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cobri-los de fumaça. Quandocomeçava o bombardeio, osmarinheiros já estavam esperando:‘Tomara que as meninas tragam afumaça rápido. Com ela fica maistranquilo’. Saíamos em veículoscom uma mistura especial, eenquanto isso todos se escondiamnos abrigos antibomba. Como sediz, atraíamos o fogo para nósmesmas. Os alemãesbombardeavam aquela cortina defumaça…

Nossa alimentação era a possívelem uma cidade sitiada, você sabecomo é, mas a gente segurava aspontas. Bem, em primeiro lugar,

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nós éramos jovens, isso éimportante; e, em segundo lugar,ficávamos espantados com ospróprios habitantes de Leningrado.Pelo menos alguma coisa nósrecebíamos, tínhamos um rangoqualquer, mesmo que mínimo, mastinha gente que estava andando ecaía de fome. Morria andando.Vinham umas crianças, a gentedava para elas um pouco da nossaração minguada. Não eramcrianças, pareciam uns velhinhospequenos. Umas múmias. Elascontavam qual era o menu docerco, se é que dá para dizer isso:sopa de cinto de couro ou de botas

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de couro novas, galantina de colade carpinteiro, panquecas demostarda. Tinham comido todos oscães e gatos da cidade. Os pardais eas pegas desapareceram. Até osratos e camundongos pegaram paracomer… Assavam com algo…Depois as crianças pararam de vir,esperamos por muito tempo…Provavelmente morreram. Eu achoque sim. No inverno, quandoLeningrado ficou sem combustível,nos mandaram derrubar as casasde um bairro da cidade onde aindaexistiam construções de madeira.Era o momento mais difícil, a horade se aproximar de uma casa…

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Uma casa boa, as pessoas tinhammorrido ali ou ido embora, mas omais frequente é que tivessemmorrido. A gente sentia pela mesaposta, pelos objetos. Às vezesficávamos meia hora até alguémlevantar o pé de cabra. Vocêimagina? Nós todos ficávamos aliplantados, esperando alguma coisa.Só quando o comandante seaproximava e cravava o pé de cabraé que começávamos a derrubar.

Fazíamos a preparação damadeira e carregávamos as caixascom munição. Lembro que umavez estava carregando uma caixa eme estabaquei, a caixa era mais

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pesada que eu. Isso era uma coisa.A segunda, como era difícil aquilopara nós, mulheres. Depois metornei comandante de umdestacamento. Todo odestacamento era composto porrapazes jovens. Passávamos o diainteiro em uma lancha. Era umalancha pequena, não tinha latrina.Os rapazes faziam as necessidadesna borda do barco e pronto. Mas, eeu? Umas duas vezes aguentei atéum ponto, depois pulei para fora ecomecei a nadar. Eles gritaram:‘Suboficial ao mar!’. Me puxavampara fora. Um detalhe tão básico…Mas pode ser um detalhe? Depois

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tive que fazer um tratamento…Você imagina? E o próprio pesodas armas? Também é pesado paraas mulheres. No começo nosderam fuzis, mas eles eram maioresdo que nós mesmas. As meninascaminhavam com as baionetasmeio metro acima delas.

Para os homens era mais fácil seadaptar a tudo. Àquele cotidianode asceta… Àquelas relações. Nóssentíamos saudade, muitasaudade, de nossas mães, doaconchego. Tinha uma menina deMoscou conosco, Natachka Jílina,ela foi condecorada com umaMedalha por Bravura e, como

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incentivo, foi mandada para casapor alguns dias. Quando voltou,nós a farejávamos. Literalmente,formávamos uma fila echeirávamos, dizíamos que elaestava com cheiro de casa.Tamanha era a saudade quetínhamos… Que alegria era ver umenvelope com uma carta… Acaligrafia do meu pai… Setínhamos um minuto de descanso,bordávamos algo, um lenço. Nosdavam tecido para servir deportianka, mas nós criávamoscachecóis com eles, decorávamoscom bordados. Queríamos fazertarefas femininas. Sentíamos falta

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de coisas femininas, a situação todaera insuportável. A genteprocurava qualquer pretexto parapegar a agulha e bordar algo, nemque fosse para passar um tempoem nossa forma natural. Claro,também ríamos e nos divertíamos,mas nada era como antes daguerra… Era um estadoparticular…”

O gravador registra as palavras,conserva a entonação… As pausas.O choro e o embaraço. Entendoque quando uma pessoa estáfalando acontece algo maior doque o que fica no papel depois.Lamento o tempo todo por não

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poder “gravar” os olhos, as mãos. Avida delas na época da conversa, avida pessoal. Separada. Seus“textos”.

“Nós temos duas guerras… Issoé um fato…” Saul Guénrikhovitchentra na conversa. “Começamos anos lembrar e eu sinto que ela estálembrando da guerra dela, e eu daminha. Eu também tive coisasassim, como isso que ela contou dacasa ou como elas fizeram fila paracheirar a menina que tinha voltadode casa. Mas não me lembrodisso… Passou batido… Na épocaisso parecia bobagem. Ninharia. Eela ainda não contou dos quepes

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de marinheiros. Ólia, como vocêesqueceu isso?”

“Não esqueci. É dos mais…Sempre tenho medo de puxar essahistória pela memória… Todavez… Foi assim: um dia, nossaslanchas saíram para o mar aoamanhecer. Várias dezenas delanchas… Logo escutamos quecomeçou um combate.Esperamos… Apuramos oouvido…. O combate duroumuitas horas, e houve ummomento em que se aproximou dacidade. Mas, em algum lugar porperto, parou. Fui para a margemantes do pôr do sol: uns quepes de

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marinheiro flutuavam pelo canalMorskoi. Um atrás do outro. Osquepes e grandes manchasvermelhas sobre as ondas… Eumas lascas… Tinham jogadonossos rapazes na água. Enquantoestive ali passaram quepes boiando.No começo tentei contar, depoisparei. Nem conseguia ir embora,nem conseguia olhar. O canalMorskoi virou uma vala comum.

Saul, onde está meu lenço?Estava na minha mão agora hápouco… Ué, onde está?”

“Eu mesmo decorei várias dashistórias dela e, como se diz hojeem dia, ‘bato papo’ com os netos.

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Várias vezes conto para eles aguerra dela, e não a minha. Eles seinteressam mais por ela, járeparei”, Saul Guénrikhovitchprossegue com sua linha deraciocínio. “Eu tenho umconhecimento mais concreto daguerra, mas ela tem o sentimento.E o sentimento é sempre maisbrilhante, sempre mais forte doque os fatos. Nós tambémtínhamos meninas na infantaria.Era só uma delas aparecer no meiode nós que íamos nos aprumar.Você não imagina… Nãoimagina!” E então: “Essaexpressãozinha eu também peguei

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dela. Você não imagina como ébonito o riso de uma mulher naguerra. A voz de uma mulher.

“Se havia amor na guerra?Havia! E as mulheres queencontramos lá são esposasmaravilhosas. Amigas fiéis. Aspessoas que se casaram na guerrasão as mais felizes, os casais maisfelizes. Nós também nosapaixonamos no front. Em meio afogo e morte. É um vínculo sólido.Não vou negar que também teveoutras coisas, porque foi umaguerra longa, muitos de nósestivemos na guerra. Mas melembro mais do que é luminoso.

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Nobre.Me tornei alguém melhor na

guerra… Sem dúvida! Me torneiuma pessoa melhor lá porque haviamuito sofrimento. Vi muitosofrimento, e eu mesmo sofrimuito. Lá, logo se descarta o que ésecundário na vida, o que ésupérfluo. Você entende isso…Mas a guerra se vingou de nós.Mas… Nós mesmos temos medode reconhecer isso… Ela nosperseguiu. Nem todas as nossasfilhas se ajeitaram em seu destino.E vou lhe dizer por quê: as mãesdelas, mulheres do front, aseducaram da mesma forma que

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tinham sido educadas no front. Eos pais também. Segundo aquelamoral. E no front, como já falei, nahora você já via tudo na pessoa:como ela era, o que valia. Lá nãotem como esconder. Essas meninasnão tinham noção de que a vidapodia ser diferente de como era emcasa. Ninguém as tinha avisadodesse lado oculto e cruel domundo. Essas moças, quando secasaram, caíram facilmente nasmãos de patifes que as enganaram,porque não era difícil enganá-las.Isso aconteceu com muitos filhosde nossos amigos do front. E comnossa filha também…”

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“Por algum motivo, não falamossobre a guerra com nossos filhos.Talvez tivéssemos medo,sentíssemos pena deles. Estávamoscertos?”, reflete Olga Vassílievna.“Eu não usava nem ascondecorações. Em uma ocasião astirei e não pus mais. Depois daguerra eu trabalhava como diretorade uma fábrica de pão. Fui a umareunião, e a diretora de umconglomerado, também mulher,viu minhas medalhas e falou nafrente de todos: ‘Por que estáusando isso, como se fosse umhomem?’. Ela mesma usava umamedalha de trabalho, trazia sempre

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na jaqueta, mas minhascondecorações de guerra não aagradavam por algum motivo.Quando ficamos a sós na sala,contei tudo sobre a Marinha, elaficou incomodada; mas aí perdi avontade de usar as medalhas. Eagora não as uso mais. Mas tenhoorgulho.

Levou dezenas de anos para quea famosa jornalista VeraTkatchenko escrevesse sobre nósno jornal central Pravda, sobre ofato de que também estivemos naguerra. E sobre haver mulherescombatentes que ficaram sozinhas,que não reconstruíram a vida e até

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hoje não têm um apartamento.Tínhamos uma dívida com essassantas mulheres. Então, passaram aprestar um pouquinho de atençãoàs mulheres que lutaram no front.Elas tinham por volta de quarenta,cinquenta anos, moravam emalojamentos. Finalmentecomeçaram a oferecerapartamentos para elas. Minhaamiga… Não vou dizer osobrenome, vai que ela seofende… Era enfermeira militar…Ferida três vezes… A guerraacabou e ela ingressou nafaculdade de medicina. Não achounenhum dos parentes, morreram

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todos. Vivia numa pobreza terrível,à noite fazia faxina em prédios parater o que comer. Não confessava aninguém que era uma ferida deguerra e que tinha direito àpensão; rasgou todos osdocumentos. Perguntei: ‘Por quevocê rasgou?’. Ela disse, chorando:‘E quem ia casar comigo?’. ‘Bem,neste caso’, falei, ‘você fez certo.’Ela chorou ainda mais alto:‘Aqueles papéis viriam em boahora agora. Estou muito doente’.Você imagina? Chorando.

Na comemoração de trinta anosda Vitória estive pela primeira vezem Sevastópol, cidade da glória da

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Marinha russa. Convidaram cemmarinheiros, veteranos na GrandeGuerra Patriótica, de todas asfrotas, e, dentre eles, trêsmulheres. Duas delas éramos eu euma amiga. O almirante da frotafez uma reverência para cada umade nós, fez um agradecimento empúblico e beijou nossas mãos.Como esquecer?!”

“Dá vontade de esquecer aguerra?”

“Esquecer? Esquecer…”, OlgaVassílievna repete a pergunta.

“Não somos capaz de esquecer.Não está em nosso poder”, SaulGuénrikhovitch interrompe a

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demorada pausa. —“No Dia daVitória, você lembra, Ólia, comoencontramos uma mãe, bemvelhinha, com um cartazigualmente velho pendurado nopescoço: ‘Procuro TómasVladímirovitch Kúlnev,desaparecido em 1942 no cerco aLeningrado’. Pelo rosto víamos queela não estava longe dos oitenta.Há quantos anos estavaprocurando? E vai procurar até suaúltima hora. Nós somos assim.”

“Já eu gostaria de esquecer. Euqueria…”, proferiu OlgaVassílievna devagar, quase numsussurro. “Eu queria viver ao

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menos um dia sem a guerra. Semnossa memória dela… Nem quefosse um dia só.”

Os dois ficaram juntos na minhamemória, como estavam nas fotosdo front — deram-me uma delasde presente. Ali estavam jovens,muito mais jovens do que eu.Tudo imediatamente adquire umoutro sentido. Se aproxima. Olhopara essas fotos dos jovens e escutode outra forma o que acabei deescutar e gravar. O tempo entrenós desaparece.

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“O gancho do telefonenão atira”

As pessoas me recebem enarram de formas diferentes…

Umas começam a contarimediatamente, já pelo telefone:“Eu me lembro… Guardo tudinhona memória, como se fosse

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ontem…”. Outras postergam oencontro e a conversa por muitotempo: “Preciso me preparar…Não quero cair naquele inferno denovo…”. Valentina PávlovnaTchudáieva é uma dessas quepassou muito tempo com medo, acontragosto me deixou entrar emseu mundo inquieto; eu ligava paraela de vez em quando, ao longo demeses, mas uma vez conversamosduas horas por telefone e, enfim,decidimos nos encontrar. Logomais, já no dia seguinte.

E aqui estou, vim vê-la…“Vamos comer umas tortas.

Estou preparando desde de

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manhã”, minha anfitriã me abraçaalegremente na soleira. “Vamos tertempo para conversar. Ainda vouchorar até dizer chega… Há muitotempo vivo com minha tristeza…Mas primeiro, as tortas. De cereja.Como fazemos na Sibéria. Venha,entre.

Desculpe que já fui techamando direto de ‘você’. Issovem do front: ‘E então, meninas!Vamos lá, meninas!’. Somos todasassim, você já sabe. Já escutou…Não ganhei muitos cristais, comoestá vendo. Tudo o que eu e meumarido acumulamos está guardadoem uma caixa de bombons feita de

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lata: duas condecorações emedalhas. Estão na cristaleira,depois eu mostro.” Ela me conduzaté o quarto. “A mobília tambémestá velha, como você está vendo.Dá pena trocar. Quando os objetospassam muito tempo em casa,adquirem uma alma. Eu acreditonisso.”

Ela me apresenta sua amigaAleksandra FiódorovnaZéntchenko, que trabalhou noKomsomol durante o cerco deLeningrado.

Sento-me diante da mesa posta:então tudo bem, se são tortas, quesejam tortas, ainda mais siberianas,

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de cereja, que nunca provei.Três mulheres. Tortas quentes.

E a conversa já vai logo para aguerra.

“Não a interrompa comperguntas”, avisa AleksandraFiódorovna. “Se ela parar, vaicomeçar a chorar. E depois daslágrimas fica em silêncio… Não ainterrompa…”

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VALENTINA PÁVLOVNATCHUDÁIEVA, SARGENTO,COMANDANTE DE CANHÃOANTIAÉREO

“Sou da Sibéria… O que melevou a ir para o front, eu, umamoça da distante Sibéria? Do fimdo mundo, como dizem. Umjornalista francês fez essa perguntasobre o fim do mundo para mimem um encontro. Foi em ummuseu, ele estava me observandofixamente, até comecei a ficaracanhada. O que queria? Por queolhava para mim daquele jeito? No

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fim, se aproximou e, com a ajudade um tradutor, perguntou se asra. Tchudáieva não daria umaentrevista. Claro, fiquei agitada.Pensei: mas o que ele quer? Ele meescutou aqui no museu? Porém,pelo visto, não estava interessadonisso. A primeira coisa que ouvi foium elogio: ‘A senhora parece tãojovem hoje em dia… Como podeter ido para a guerra?’. Respondi:‘Isso é prova de que, como osenhor entende, fomos para o frontmuito jovens’. Mas ele estavapreocupado com outra coisa: comoeu tinha saído da Sibéria e idoparar no front — é o fim do

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mundo! ‘Não’, adivinhei, ‘pelovisto o senhor está preocupado emsaber se houve convocaçãocompleta entre nós, e por que fuiparar no front em idade escolar.’Então ele balançou a cabeça,dizendo que sim. ‘Certo’, falei, ‘vouresponder a essa pergunta.’ Conteia ele toda a minha vida, comoestou contando para você agora.Ele chorou… O francês chorou…No fim, admitiu: ‘Sra. Tchudáieva,não se ofenda. Para nós, franceses,a Primeira Guerra Mundial foi umabalo mais forte do que a SegundaGuerra. Nós nos lembramos: hátúmulos e monumentos em todo

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lugar. Mas sabemos pouco arespeito de vocês. Hoje em dia,muitos acham que os EstadosUnidos derrotaram Hitlersozinhos, especialmente os jovens.Do preço que os soviéticospagaram pela vitória — 20 milhõesde vidas humanas em quatro anos— não se sabe muito. Dosofrimento de seu país. Édesmedido. Obrigado, a senhoracomoveu meu coração’.

… Não me lembro da minhamãe. Morreu cedo. Meu pai eraum delegado estatal do Comitê daProvíncia de Novossibirsk; em1925 ele foi mandado para a aldeia

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de sua família, para buscar trigo. Opaís estava passando por grandenecessidade, e os kulaks estavamescondendo trigo, deixandoapodrecer. Na época eu tinha novemeses. Minha mãe queria ir para aterra natal junto com meu pai, eele a levou. Ela carregou a mim e aminha irmãzinha, não tinha comquem nos deixar. Meu pai tinhasido lavrador em outros tempos,trabalhado para o mesmo kulak aquem ele ameaçou na reunião ànoite: sabemos onde está o trigo; sevocês mesmos não entregarem,vamos encontrar e levar à força.Vamos levar em nome da

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revolução.A reunião acabou, todos os

parentes se reuniram, e meu paitinha cinco irmãos — nenhumdeles voltou depois da GrandeGuerra Patriótica, assim como meupai. Bem, sentaram-se à mesa paracomer os tradicionais pelmênisiberianos.1 Os bancos ficavam aolongo das janelas… Minha mãeficou no meio, com um ombrovirado para uma janela e o outropara o meu pai, e ele ficou ondenão tinha janela. Era o mês deabril… Na Sibéria, nessa época,ainda acontecem geadas. Minha

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mãe ficou com frio, pelo visto.Entendi isso depois, já adulta. Elase levantou, vestiu a peliça do meupai e começou a me dar de mamar.Nessa hora ouviram-se uns tiros deespingarda. Queriam atirar no meupai, miraram na peliça… Minhamãe só conseguiu dizer ‘pa…’ e medeixou cair em cima dos pelmêniquentes… Tinha 24 anos…

Na mesma aldeia, depois, meuavô foi presidente do soviete rural.Deram estricnina a ele, puseram naágua. Guardo uma fotografia doenterro. Sobre o caixão, colocaramum pano onde se lia: ‘Morto pelasmãos de um inimigo da classe’.

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Meu pai era um herói da guerracivil, comandante do tremblindado que atuou contra arebelião do corpo do Exércitotchecoslovaco. Em 1931, ele foicondecorado com a Ordem daEstrela Vermelha. Naquela épocaeram poucos os que tinham essaordem, especialmente entre nós,na Sibéria. Era uma grande honra,uma grande consideração. Meu paitinha dezenove feridas no corpo,não sobrou um lugar inteiro.Minha mãe contava — não paramim, claro, para os parentes — queos tchecos brancos condenarammeu pai a vinte anos nas galés. Ela

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pediu para fazer uma visita a ele,naquela época estava no últimomês da gravidez da Tássia, minhairmã mais velha. Lá, na prisão,tinha um corredor comprido, e nãopermitiram que ela fosse andandoaté o meu pai; disseram a ela: ‘Suacanalha bolchevique! Vá searrastando…’. E ela, a poucos diasdo parto, se arrastou por aquelelongo corredor de cimento. Veja sócomo lhe concederam uma visita.Ela não reconheceu meu pai, oscabelos dele tinham ficadocompletamente brancos. Um velhogrisalho. Mas ele tinha trinta anos.

E eu por acaso ia conseguir ficar

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sentada, indiferente, quando oinimigo invadiu de novo minhaterra, se eu cresci numa famíliadessas, com um pai desses? Tenhoo sangue dele… Ele teve queaguentar muita coisa… Foidenunciado em 1937, queriamcaluniá-lo. Fazer dele um inimigodo povo. Ah, aquele terrívelexpurgo de Stálin… AIejovschina2… Como disse ocamarada Stálin, quando sederruba uma árvore sempre voamalgumas lascas. Foi declarada umanova guerra de classes, para que opaís não parasse de viver com

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medo. Submisso. Mas meu paiconseguiu uma audiência comKalínin,3 e seu bom nome foirestabelecido. Todos conheciammeu pai.

Mas os parentes me contaram arespeito disso só depois…

E então chegou 1941… Meuúltimo dia na escola. Todastínhamos nossos planos, nossossonhos, éramos meninas. Depoisdo exame final, à noite, fomos auma ilha no rio Ob. Estávamos tãoalegres, felizes… Ainda nãotínhamos beijado ninguém, comose diz, eu nem namorado tinha.

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Voltamos depois de ver oamanhecer na ilha… A cidadeestava toda agitada, as pessoaschorando. A nossa voltaescutávamos: ‘Guerra! Guerra!’. Orádio ligado por todos os lados.Para nós, não tinha chegado nada.Que guerra? Estávamos tão felizes,tínhamos tantos planos grandiosos:quem iria estudar, onde, no quetrabalharíamos. E, de repente, aguerra! Os adultos choravam, masnós não nos assustamos,assegurávamos uns aos outros quenão passaria nem um mês e‘mostraríamos uma lição aosfascistas’. Cantávamos canções de

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antes da guerra. Claro, nossoExército ia destruir o inimigo emseu próprio território. Sem sombrade dúvida… Nem uma migalha…

Todos começaram a entenderquando as notificações de morteforam chegando em casa. Eu fiqueidoente: ‘Como é? Então era tudomentira?’. Os alemães já estavamse preparando para fazer umdesfile sobre a Praça Vermelha…

Não aceitaram meu pai no front.Ele teimava em ir ao centro dealistamento. Depois, conseguiu. Eisso com sua saúde, seus cabelosbrancos, seus pulmões: ele tinhauma tuberculose crônica. Mal

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curada. E a idade? Mas ele foi. Sealistou na Divisão de Aço, ou,como a chamavam, Divisão deStálin;4 tinha muitos siberianos ali.Também achávamos que sem nós aguerra não era guerra, quedevíamos lutar. Vamos, agoramesmo, às armas! Todos os meuscolegas correram para o centro dealistamento. E no dia 10 defevereiro fui para o front. Minhamadrasta chorou muito: ‘Vália, nãová. O que você está fazendo? Vocêé tão fraca, tão magra, como vai serum soldado?’. Eu fui raquítica pormuito, muito tempo. Foi depois

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que mataram minha mãe. Até oscinco anos eu não andava… Sabe-se lá de onde tirei forças!

Passamos dois meses num vagãode carga adaptado. Duas milmeninas, um trem inteiro. O tremda Sibéria. O que vimos quandochegamos perto da linha de frente?Eu me lembro de um momento…Nunca vou me esquecer: umaestação de trem destruída, e naplataforma uns marinheirossaltavam com as mãos. Não tinhampernas nem muletas. Eles andavamcom as mãos. Uma plataformacheia. E ainda estavam fumando…Quando nos viram, sorriram.

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Brincaram. O coração batia: tum-tum… Tum-tum… Para ondeestávamos indo? Estávamos acaminho? De onde? Para juntarcoragem, cantávamos, cantávamosmuito.

Havia alguns comandantesconosco, eles nos ensinavam. Nosapoiavam. Estudamos para atuarnas comunicações. Chegamos naUcrânia, e lá nos bombardearampela primeira vez. Nessa hora,estávamos no centro dedesinfecção, nos banhos. Íamosnos lavar, mas lá havia um moçoque era zelador e cuidava dali.Tínhamos vergonha dele; bem,

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éramos meninas bem jovenzinhas.Quando começaram abombardear, todas corremos juntaspara o tal moço, para nos salvar.Nos vestimos de qualquer jeito, euenrolei uma toalha na cabeça — eutinha uma toalha vermelha —, esaímos correndo. O primeiro-tenente, também um rapazinho,gritou:

‘Moça, vá para o abrigoantibombas! Tire a toalha! Estáatrapalhando nossa camuflagem...’

Mas eu corri para longe dele:‘Não estou atrapalhando nada!

Minha mãe mandou não andarcom o cabelo molhado por aí.’

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Depois do bombardeio, ele meencontrou:

‘Por que não me obedeceu? Souseu comandante.’

Não acreditei nele:‘Era só o que me faltava: você,

meu comandante…’Briguei com ele, como faria com

um rapaz. Alguém da minhaidade.

Deram-nos capotes grandes,gordos, parecíamos uns gravetosdentro deles; não andávamos,rolávamos. No começo nãofabricaram nem botas para nós.Havia botas, mas os tamanhoseram todos masculinos. Depois

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trocaram nossas botas, deramoutras que tinham a pontavermelha e o cano de courosintético preto. A gente se achava omáximo com elas! Éramos todasmagras, as guimnastiorkimasculinas ficavam dançando nagente. Quem sabia costurarajustava um pouco. Masprecisávamos de outra coisa.Éramos moças, afinal! Bem, osubtenente começou a fazer amedição. Era para rir e para chorar.O comandante do batalhão vinha:‘E aí, o subtenente já entregoutodas as coisas de mulher paravocês?’. E o subtenente dizia: ‘Já

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tomei as medidas. Em breve’.Entrei para a seção de

comunicações de uma unidadeantiaérea. Servi no ponto decontrole, e talvez tivesse sidotelefonista até o fim da guerra senão tivesse recebido a notificaçãoda morte do meu pai. Não tinhanada no mundo mais importantepara mim do que meu amado pai.Era a pessoa mais próxima de mim.A única. Comecei a pedir: ‘Querome vingar. Quero acertar as contaspela morte do meu pai’. Queriamatar… Queria atirar… Apesar deterem me mostrado que, naartilharia, o telefone era muito

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importante. Mas o gancho dotelefone não atira… Escrevi umrelatório para o comandante doregimento. Ele recusou. Então, sempensar muito, eu me dirigi aocomandante da divisão. O coronelKrasnikh veio nos visitar, mandoutodas formarem uma fila eperguntou: ‘Cadê aquela moça quequer virar comandante deartilharia?’. Saí da formação: meupescoço era magro, fino, mas neleestava pendurada umametralhadora automática, pesada,com 71 cartuchos. E, pelo visto, eudevia ser uma visão tão lamentávelque ele até sorriu. Fez a segunda

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pergunta: ‘Pois bem, o que vocêquer?’. Disse a ele: ‘Quero atirar’.Não sei o que ele pensou. Passoumuito tempo calado. Não disseuma palavra. Depois virou-sesubitamente e foi embora. Pensei:‘Pronto, vai recusar’. Ocomandante veio correndo: ‘Ocoronel deu permissão’.

Você entende? Dá paraentender agora? Queria que vocêentendesse meus sentimentos…Ninguém vai atirar sem ódio. Éuma guerra, não uma caçada. Eume lembro que nas aulas deeducação política leram para nós oartigo de Iliá Ehrenburg, ‘Mate-o!’.

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Todas as vezes que encontrar umalemão, mate-o. É um artigofamoso, na época todos liam,sabiam de cor. Ele me provocouuma impressão profunda, levei esseartigo e a notificação de morte domeu pai na bolsa durante toda aguerra… Atirar! Atirar! Precisavame vingar…

Me formei num curso breve,muito breve: estudei três meses.Aprendi a atirar. E então eracomandante de artilharia. E memandaram para o 1357o

Regimento de Artilharia. Nocomeço sangrava pelo nariz e pelas

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orelhas, tive um desarranjointestinal completo… Ficava com agarganta seca a ponto de vomitar.À noite, não sentia tanto medo,mas de dia sentia muito. Pareciaque o avião ia voar direto em você,bem no seu canhão. Ia se chocarcontra você! Em um instante… Aliele ia te reduzir a nada. Pronto, erao fim! Isso não era para umamoça… Nem para os ouvidos, nempara os olhos… No começo,tínhamos os 85 milímetros; eleseram bons para os arredores deMoscou, mas depois, para lutarcontra os tanques, nos deram os 37milímetros. Isso foi na direção de

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Rjev… Lá tinha combates assim…Uma vez, na primavera, o gelocomeçou a se deslocar peloVolga… E o que víamos? Víamosum bloco de gelo vermelho e negroflutuando, e em cima dele dois outrês alemães e um soldado russo.Morriam assim, segurando uns aosoutros. Congelaram naquele bloco,e ele ficou coberto de sangue.Todo o rio Volga, nossa mãezinha,estava cheio de sangue…”

E de repente ela se deteve:“Preciso recuperar o fôlego…Senão começo a chorar, vouestragar nosso encontro”. Virou-separa a janela, para recuperar o

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controle. Um minuto depois, jáestava sorrindo: “Para ser sincera,não gosto de chorar. Desde ainfância aprendi a não chorar…”.

“Escutando Vália, eu melembrei do cerco de Leningrado”,Aleksandra FiódorovnaZéntchenko, calada até então,entrou na conversa.“Especialmente de um caso quecomoveu a todos nós. Noscontaram que uma certa senhoraidosa todo dia abria a janela e, comuma conchinha, derramava águana rua; e a água cada vez chegavamais longe. No começo pensamos:bom, talvez seja louca, víamos de

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tudo um pouco no cerco — efomos ter com ela, elucidar aquestão. Escutem o que ela nosdisse: ‘Se os fascistas entrarem emLeningrado, se pisarem na minharua, vou escaldá-los com águafervendo. Sou velha, não sou capazde mais nada, então vou escaldá-los com água quente’. E então elaestava treinando… Todo dia… Ocerco tinha acabado de começar,ainda tinha água quente… Erauma mulher muito culta. Até melembro do rosto dela.

Ela escolheu uma forma de lutarcompatível com as forças quetinha. É preciso imaginar aquele

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momento… O inimigo já estavajunto da cidade, os combatesaconteciam ao lado do Arco doTriunfo de Narva. Bombardeavama oficina da fábrica Kírov… Cadaum pensava no que podia fazerpara defender a cidade. Morrer erafácil demais, a gente tinha quefazer alguma outra coisa. Algumaação. Milhares de pessoaspensavam assim…”

“Quero encontrar as palavras…Como posso me expressar?”,pergunta Valentina Pávlovna, paranós ou para si mesma. “Voltei daguerra mutilada. Fui ferida nascostas por estilhaços. A ferida não

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foi grande, mas me jogou longe,sobre um monte de neve. Estavahavia dias sem secar minhas botasde feltro: uma hora não tinhalenha, na outra não chegava minhavez de secar na fila da noite, oaquecedor era pequeno, nóséramos muitos em volta dele. E,até me acharem, meus pés ficaramabsolutamente congelados. Pareceque fiquei coberta pela neve, masestava respirando, e isso formouum buraco… Como se fosse umtubo… Os cães da enfermaria meencontraram. Cavaram a neve elevaram de volta minha uchanka.Dentro dela estava meu passaporte

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de morte, todo mundo tinha umdesses: ali dizia quem eram osparentes, onde informar. Medesenterraram, me colocaram emuma lona, a peliça curta estavatoda ensanguentada… Masninguém prestou atenção aos meuspés…

Passei seis meses no hospital.Queriam amputar meu pé,amputar acima do joelho porque játinha começado a gangrenar. E eume acovardei um pouco, nãoqueria viver aleijada. Para que iaviver? Quem precisava de mim?Não tinha nem pai nem mãe. Seriaum fardo na vida. Quem ia

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precisar de mim, um coto! Quis meenforcar… E pedi à auxiliar deenfermagem que me desse umatoalha grande, em vez dapequena… No hospital, todos meprovocavam: ‘Aqui tem umavovó… Uma vovó velhinha estáali’. Porque, quando o diretor dohospital me viu pela primeira vez,perguntou: ‘Mas quantos anos vocêtem?’. E eu retruquei rapidinho:‘Dezenove. Logo vou completardezenove’. Ele começou a rir: ‘Ah!Mas é uma velha, uma velha, já éuma mulher de idade’. A auxiliarde enfermagem, tia Macha, meprovocava assim. Ela me disse:

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‘Vou lhe dar uma toalha porqueestão preparando sua operação.Mas vou ficar de olho em você.Tem alguma coisa no seu olhar,menina, não estou gostando disso.Não andou inventando de fazeruma besteira?’. Fiquei calada…Mas vi que era verdade: estavampreparando a operação. E, apesarde não saber o que era a operação— nunca tinha sido cortada navida, agora tenho um mapageográfico no corpo —, euadivinhava. Escondi a toalhagrande debaixo do travesseiro efiquei esperando o resto ficar emsilêncio. Dormir. As camas eram

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de ferro, e eu pensei: vou amarrara toalha na cama e me sufocar.Espero que tenha forças… Mas atia Macha não saiu de perto demim a noite toda. Protegia a mim ea minha juventude. Não dormiu…Protegeu aquela boba…

O médico da minha ala, umjovem tenente, ficava atrás dodiretor do hospital pedindo: ‘Medeixe tentar. Me deixe tentar…’. Eele respondia: ‘Vai tentar o quê?Ela já está com um dedo preto. Amenina tem dezenove anos. Vaimorrer por nossa causa’. Descobrique o médico da ala era contra aoperação e propôs outra técnica,

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nova naqueles tempos. Usavamuma agulha especial para injetaroxigênio debaixo da pele. Ooxigênio alimenta… Ah, não seidizer exatamente como é, não soumédica… E ele, esse jovemtenente, convenceu o diretor dohospital. Não operaram minhaperna. Começaram a me tratar comessa técnica. E dois meses depoiseu já estava começando a andar.De muletas, claro, os pés estavamem frangalhos, não tinham suportenenhum. Eu não sentia meus pés,só via. Depois, aprendi a andarsem as muletas. Todos me davamos parabéns: eu tinha nascido de

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novo. Depois do hospital recebiuma licença. Mas que licença? Paraonde eu iria? Encontrar quem? Fuipara minha unidade, para meucanhão. Lá, entrei para o Partido.Com dezenove anos.

No Dia da Vitória, eu estava naPrússia Oriental. Já estava tudomais calmo havia uns dois dias,ninguém atirava, e no meio danoite, de repente, soou o sinal:‘Ataque aéreo!’. Todos saltamos. Eentão gritaram: ‘Vitória!Capitulação!’. A ‘capitulação’ nãopegamos, mas ‘vitória’, isso noschegou: ‘A guerra acabou! Aguerra acabou!’. Todos começaram

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a atirar, cada um com o que tinha:fuzil automático, pistola…Atiravam de canhão… Umenxugava as lágrimas, outrodançava: ‘Estou vivo! Estou vivo!’.Um terceiro caiu na terra eabraçava, abraçava a areia, aspedras. De alegria… Eu estava ali,e o que me veio foi: se a guerraacabou, meu pai já não vai voltarpara casa nunca mais. A guerratinha acabado… O comandantedepois nos ameaçou: ‘Ora essa, nãovai ter dispensa enquanto vocêsnão pagarem esses projéteis. O quevocês desperdiçaram? Quantosprojéteis dispararam?’. Parecia que

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na Terra ia ter paz para sempre,que ninguém nunca mais ia quererentrar em guerra, que todos osprojéteis deviam ser destruídos.Para que serviriam? Estávamoscansados de odiar. Cansados deatirar.

Que vontade de ir para casa!Mesmo que meu pai não estivesseali, nem minha mãe. Casa é algomaior do que as pessoas quemoram ali dentro, é maior que aprópria casa. É uma coisa… Umapessoa precisa de uma casa… Tiroo chapéu para minha madrasta,que me recebeu como uma mãe.Depois, comecei a chamá-la de

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mãe. Ela me esperou muito, meesperou muito. Apesar de o diretordo hospital ter escrito queamputariam meu pé, que memandariam de volta inválida. Paraque ela fosse se preparando. Eleprometia que eu só passaria umtempo vivendo com ela, e quedepois me levariam… Mas elaqueria que eu voltasse para casa…

Ela me esperou… Eu era muitoparecida com meu pai…

Fomos para o front com dezoito,vinte anos, e voltamos com vinte,24. No começo era muita alegria,depois o medo: o que vamos fazerna vida civil? Um medo diante da

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vida em tempos de paz… Asamigas da universidade já tinhamse formado, e nós? Não estávamosadaptadas a nada, não tínhamosnenhuma formação profissional. Sóconhecíamos a guerra, só o quesabíamos fazer era a guerra.Queríamos nos afastar da guerra oquanto antes. Rapidinho usei ocapote para costurar um casaco,troquei os botões. Vendi oscoturnos em uma feira e compreisapatos. Na primeira vez que useium vestido, me afoguei emlágrimas. Eu mesma não mereconhecia no espelho, estavahavia quatro anos usando calças.

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Para quem eu ia dizer que estavaferida, lesionada? Vocêexperimenta dizer, depois quemvai lhe dar um emprego, quem vaicasar com você? Ficávamos caladasfeito peixes. Não confessávamospara ninguém que tínhamos lutadono front. Mantivemos a ligaçãoentre nós, trocávamos cartas.Depois de trinta anos começaram anos homenagear… Convidavampara encontros… No começo nosescondíamos, não usávamos nemas medalhas. Os homens usavam,as mulheres não. Os homens eramvencedores, heróis, noivos, aguerra era deles; já para nós,

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olhavam com outros olhos. Eracompletamente diferente… Voulhe dizer, tomaram a vitória denós. Na surdina, trocaram pelafelicidade feminina comum. Nãodividiram a vitória conosco. Issoera ofensivo… Incompreensível…Porque, no front, os homenstinham uma relação maravilhosaconosco, sempre nos protegiam; navida de paz, nunca vi nos tratarembem assim. Na retirada, às vezesnos deitávamos para descansar naterra nua, e eles próprios ficavamde guimnastiorka e nos davam seuscapotes: ‘Meninas… Tem quecobrir as meninas…’. Se

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encontravam um pedacinho dealgodão, de curativo: ‘Tome, podeservir para algo…’. Dividiam aúltima torrada. Não vimos nadaalém de bondade e afeto naguerra. Não conhecemos outracoisa. E depois da guerra? Fiqueicalada… Calada… O que nosimpedia de lembrar? Umaintolerância à lembrança…

Eu e meu marido nos mudamospara Minsk. Não tínhamos nada:nem um lençol, uma caneca, umgarfo… Dois capotes e duasguimnastiorki. Encontramos ummapa, era bom, de algodão, e odeixamos de molho… Um mapa

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grande… Virou um lençol dealgodão — nosso primeiro lençol.Depois, quando minha filhanasceu, o usei como fralda. Essemapa… Pelo que me lembro eraum mapa-múndi político… Minhafilha dormia numa mala… A malade compensado que meu maridotrouxe do front serviu de berço.Além de amor, não tinha nada nacasa. É o que digo… Uma vez, meumarido veio e disse: ‘Venha, vi umsofá velho que jogaram fora…’.Fomos buscar o sofá. À noite, paraque ninguém visse. Como ficamosfelizes com ele!

Mesmo assim fomos felizes. Fiz

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tantas amigas! Os tempos eramdifíceis, mas não perdíamos oânimo. Trocávamos nossos cartõesde comida e ligávamos umas paraas outras: ‘Venha para cá, recebiaçúcar. Vamos beber chá’. Nãotínhamos nada sobre nós, nadaembaixo, ainda não tínhamostapetes, cristais… Nada… Eéramos felizes. Felizes porqueestávamos vivas. Falávamos,ríamos. Andávamos pela rua…Estávamos o tempo todocontemplando apesar de não ter oque contemplar — à nossa volta sóhavia pedras destruídas, até asárvores estavam estropiadas. Mas o

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sentimento do amor nos aquecia.Uma pessoa precisava das outras,todos sentíamos a necessidade decontar uns com os outros. Depoisnos dispersamos, cada uma foicuidar da vida, da casa, da família,mas naquela época aindaestávamos juntas. Ombro a ombro,como nas trincheiras do front…

Agora sempre recebo convitespara encontros no museu militar…Me pedem que guie excursões.Agora, sim. Quarenta anos depois!Quarenta! Há pouco tempo meapresentei para uns jovensitalianos. Eles passaram muitotempo fazendo perguntas: que

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médico tinha me tratado? Qual eraminha doença? Por algum motivoqueriam saber se eu não tinha idoa um psiquiatra. Que sonhos eutinha? Sonhava com a guerra?Uma russa que lutou com armaspara eles era um enigma. Quemulher é essa que não só salvava,fazia curativos, mas ela própriaatirava e bombardeava? Matavahomens… Estavam interessadosem saber se eu tinha me casado.Tinham certeza de que não. Deque era solteira. E eu ria: ‘Todostrouxeram troféus da guerra, eutrouxe um marido. Tenho umafilha. Agora já estou nos netos’.

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Não contei para você sobre oamor… Não consigo mais, meucoração não aguenta. Uma outravez… Teve um amor! Sim! E umapessoa por acaso consegue viversem amor? Consegue sobreviver?Nosso comandante de batalhão seapaixonou por mim no front… Meprotegeu a guerra inteira, nãodeixou ninguém se aproximar, equando deu baixa veio me buscarno hospital. E aí se declarou…Bem, depois falamos de amor.Volte, volte sem falta. Será comouma segunda filha. Claro que eusonhava em ter muitos filhos, amocrianças. Mas só tive uma filha…

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Minha filhinha… Não tive saúde,não tive forças. Não conseguia nemestudar: estava sempre doente.Minhas pernas, tudo era minhaspernas… Elas falham… Até meaposentar, trabalhei como auxiliarde laboratório no InstitutoPolitécnico, todos me adoravam.Os professores e os alunos. Porqueeu mesma tenho muito amor,muita felicidade. Era assim que euentendia a vida, era assim que euqueria viver depois da guerra.Deus não criou o ser humano paraatirar, criou o ser humano paraamar. O que você acha?

Dois anos atrás veio me visitar

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nosso chefe do estado-maior, IvanMikháilovitch Grinkó. Faz tempoque se aposentou. Se sentou nessamesma mesa. Também assei umastortas. Ele e meu maridoconversaram, se lembraram…Começaram a falar sobre nossasmeninas… E aí eu desandei achorar: ‘Vocês falam de honra, deglória. Mas essas meninas estãoquase todas sós. Solteiras.Morando em apartamentoscomunitários. Quem teve penadelas? Quem as defendeu? Ondevocês foram parar depois daguerra? Traidores!’. Enfim,estraguei o clima de festa deles.

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O chefe do estado-maior estavasentado no seu lugar. ‘Mostrequem ofendeu você’, e bateu como punho na mesa. ‘Só me mostre!’E me pedia perdão: ‘Vália, nãotenho o que falar para você, sóposso chorar’. Mas não precisa terpena de nós. Temos orgulho. Quereescrevam a história dez vezes.Com Stálin ou sem Stálin. Mas issovai ficar: nós vencemos! E o nossosofrimento também. Tudo o queaguentamos. Não são trastes ecinzas. É nossa vida.

“E nenhuma palavra mais…”Antes de ir, me entregam um

pacote com tortas: “São siberianas.

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Especiais. Você não acha tortasdessas nas lojas…”. Recebo aindauma longa lista com endereços etelefones: “Todas ficarão felizes emfalar com você. Estão esperando.Vou explicar: é terrível lembrar,mas é mais terrível ainda nãolembrar”.

Agora entendo por que todasquerem falar, apesar de tudo.

1 Pelmêni: massa russa recheada decarne.2 Nome com que ficou conhecida aépoca dos expurgos de Stálin, emreferência a Nikolai Iejov (1895-1940),

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chefe da NKVD.3 Mikhail Kalínin (1875-1942): umdos fundadores da União Soviética epresidente do Soviete Supremo entre1937 e 1946.4 Trocadilho entre aço, stal em russo,e Stálin.

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“Nos condecoravam comumas medalhaspequenas…”

De manhã, abro minha caixa decorreio…

Minha correspondência pessoallembra cada vez mais a de umcentro de alistamento ou de um

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museu: “Um alô das pilotos doregimento Marina Raskova daAeronáutica”, “Escrevo da partedas partisans da BrigadaJelesniak”, “As mulheres do grupoclandestino de Minskparabenizam… Desejamos sucessono trabalho em curso…”, “Nós,soldados de campanha, entramosem contato…”. Em todo o períodode busca, houve algumas recusasdesesperadas: “Não, é como umpesadelo… Não consigo! Nãovou!”. Ou “Não quero me lembrar!Não quero! Passei muito tempoesquecendo…”.

Lembrei ainda de uma carta,

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sem remetente:“Meu marido, cavaleiro com

uma Ordem da Glória, foicondenado a ficar dez anos em umcampo de prisioneiros depois daguerra… Foi assim que a pátriarecebeu seus heróis. Osvencedores! Ele escreveu numacarta para um camarada dauniversidade que tinha dificuldadede se orgulhar da nossa vitória,pois tanto a nossa terra quanto aestrangeira estavam repletas decadáveres russos. Cheias desangue. Foi preso imediatamente…Tiraram suas dragonas.

Ele voltou do Cazaquistão

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depois da morte de Stálin…Doente. Não temos filhos. Nãopreciso me lembrar da guerra,passei a vida lutando…”

Nem todos se decidem aescrever suas memórias, e nemtodos conseguem confiar ao papelseus sentimentos e reflexões. “Aslágrimas atrapalham…” (A.Burakova, sargento, operadora derádio). A correspondência, aocontrário da minha expectativa, sóme fornece mais endereços enomes.

“Não me falta metal… Tenho

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estilhaços de um ferimento deVitebsk no pulmão, a trêscentímetros do coração. O segundoestilhaço está no pulmão direito.Tenho outros dois, na região dabarriga.

Aqui está meu endereço. Venhame visitar. Não consigo escrevermais, não estou vendo nada porcausa das lágrimas…”

V. Grómova,enfermeira-instrutora

“Não tenho grandescondecorações, só medalhas. Nãosei se você vai se interessar pela

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minha vida, mas queria contá-lapara alguém…”

V. Voronova,telefonista

“Eu e meu marido morávamosno extremo norte, em Magadan.Meu marido era motorista, e eufiscal. Assim que começou aguerra, nós dois pedimos para irpara o front. Responderam:continuem trabalhando ondeprecisam de vocês. Na época,mandamos um telegrama para ocamarada Stálin, dizendo queestávamos contribuindo com 50

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mil rublos (naquela época eramuito dinheiro, era tudo o quetínhamos) para a construção de umtanque e que desejávamos ir para ofront. Recebemos umagradecimento do governo. E em1943 eu e meu marido fomosmandados para a Escola Técnica deTanques de Tcheliábinsk, onde nosformamos como alunos externos.

Lá, recebemos um tanque. Nósdois éramos condutores-chefes,mas no tanque só pode haver umcondutor. Os comandantesdecidiram me designarcomandante de um tanque IS-122,e meu marido condutor. E assim

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chegamos à Alemanha. Nós doisfomos feridos. Temoscondecorações.

Não eram poucas as mulherestanquistas em tanques médios, masem um tanque pesado eu era aúnica. Às vezes penso em pedirque algum escritor registre minhavida. Eu mesma não consigo fazerisso do jeito certo…”

A. Boikó, segundo-tenente, tanquista

“Em 1942… Fui designadocomandante da divisão. Ocomissário do regimento avisou:

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‘Estude, capitão: você não vaireceber uma divisão comum, e simuma de meninas. A metade doefetivo é de moças, e isso exigeuma atitude especial, atenção ecuidados especiais’. Claro, eu sabiaque havia moças servindo oExército, mas não imaginava muitobem o que era. Nós, oficiais decarreira, observávamos um poucoressabiados como o ‘sexo frágil’dominaria a atividade militar,considerada desde temposimemoriais uma ocupaçãomasculina. Digamos que comenfermeiras estávamosacostumados. Elas já tinham

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demonstrado suas qualidades naPrimeira Guerra Mundial, e depoisna Guerra Civil. Mas o que iamfazer aquelas meninas na artilhariaantiaérea, onde era precisolevantar projéteis pesados? Comoia colocá-las na bateria, onde sóhavia um abrigo na terra, e oefetivo das guarnições também eracomposto por homens? Elasprecisariam passar horas nosaparelhos, e eles são de metal, oassento dos canhões também erade metal, elas são moças, nãopodem. E, por fim, onde iriamlavar e secar os cabelos? Apareceuuma série de questões, tão

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incomum era o caso.Comecei a visitar as baterias,

observar. Confesso que estava umpouco incomodado: uma garota deguarda com um fuzil, uma garotana torre, de binóculos — eu vierada linha de vanguarda, do front. Eelas eram tão diferentes:acanhadas, medrosas, manhosas,mas decididas, ardentes. Nemtodos conseguem se submeter àdisciplina militar, e a naturezafeminina é oposta à ordem doExército. Ora ela se esquecia doque fora ordenado, ora recebiauma carta de casa e passava amanhã inteira chorando. Você

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punia, mas depois cancelava apunição: dava pena. Eu pensava:‘Estou perdido com essas daí!’. Maslogo tive de renunciar a todas asminhas dúvidas. As meninas setransformaram em verdadeirossoldados. Percorremos umcaminho difícil. Venha me ver.Podemos passar muito tempoconversando…”

I. A. Levítski, ex-comandante da Quinta

Divisão do 784o

Regimento da ArtilhariaAntiaérea

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Os endereços são os maisvariados: Moscou, Kíev, a cidadeApcheronsk, na região deKrasnodar, Vítebsk, Volgogrado,Ialútorvsk, Súzdal, Gálitch,Smoliénsk… Como abarcar tudoisso? O país é enorme. Um acasovem em minha ajuda. Uma dicainesperada. Um dia, o correiotrouxe um convite dos veteranosdo 65o Exército do general P. I.Bátov: “Geralmente nos reunimosnos dias 16 e 17 de maio emMoscou, na Praça Vermelha. Éuma tradição e um ritual. Todomundo que tem forças vai vir. Vem

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gente de Múrmansk e Karagandá,de Almati e Omsk. De todo lado.De toda nossa inabarcável pátria…Enfim, contamos com suapresença…”.

… Hotel Moscou. Mês de maio— mês da Vitória. Em todo lugaras pessoas se abraçam, choram,tiram fotos. Não consigo distinguiro que são flores pregadas na lapelae o que são condecorações emedalhas. Entro nesse fluxo, eleme ergue e me leva, me puxairresistivelmente atrás de si, e logome descubro em um mundo quasedesconhecido. Em uma ilhadesconhecida. Entre pessoas que

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reconhecerei ou não; mas sei deuma coisa — eu as adoro.Normalmente elas estãoabandonadas no meio de nós,passam despercebidas, porque jáestão indo embora; há cada vezmenos delas e mais de nós, masuma vez por ano elas se juntampara, ainda que por um instante,voltar ao seu tempo. E seu temposão suas lembranças.

No sétimo andar, no quarto 52,se reuniu o hospital 5257. Quemcomanda a mesa é AleksandraIvánovna Záitseva, médica militar,capitã. Ficou feliz em me ver e comgosto me apresentou a todos, como

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se já nos conhecêssemos haviamuito tempo. Vim bater nessaporta por absoluto acaso. Estava aesmo.

Registro: Galina IvánovnaSazónova, cirurgiã; ElizavietaMikháilovna Aizenchtein, médica;Valentina Vassílievna Lukiná,enfermeira cirúrgica; AnnaIgnátievna Gorélik, enfermeira-chefe de operações; e asenfermeiras Nadiéjda FiódorovnaPotujnaia, Klávdia PrókhorovnaBorodúlina, Elena PávlovnaIákovleva, Anguelina NikoláievnaTimofêieva, Sófia KamaldínovnaMotrenko, Tamara Dmítrievna

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Morózova, Sófia FilimónovnaSemeniuk, Larissa TíkhonovnaDeikun.

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SOBRE BONECAS E FUZIS

“Eh-he, meninas, que infame foiessa guerra… Se olharmos para elacom nossos olhos… Olhos demulher… A mais terrível entre asterríveis. Por isso não perguntampara a gente…”

“Lembram, garotas? Estávamosviajando em um vagão de cargaadaptado… E os soldados riam decomo segurávamos os fuzis. Nãosegurávamos como se empunhauma arma, mas assim… Agora nãoconsigo nem mostrar… Comoquem segura uma boneca…”

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“As pessoas estavam chorando,gritando… Escutei a palavra:‘Guerra!’. E pensei: ‘Como assim,guerra? Nós temos prova nafaculdade amanhã. É uma provatão importante. Como podemosestar em guerra?’.

Uma semana depois começaramos bombardeios, e nós já estávamossalvando gente. Três anos defaculdade de medicina já é muitonuma época assim. Mas nosprimeiros dias vi tanto sangue quecomecei a ter medo. Você está lá,quase uma médica, as melhoresnotas nas aulas práticas. As pessoasse comportavam de um jeito

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extraordinário. E isso nos inspirava.Meninas, contei para vocês…

Acabara um bombardeio, e vi quea terra na minha frente estava semexendo. Corri para lá e comecei acavar. Com as mãos tateei umrosto, cabelos… Era uma mulher.Desenterrei e comecei a chorar.Mas, quando ela abriu os olhos,não perguntou o que tinhaacontecido, só ficou preocupada:

‘Onde está minha bolsa?’‘Para que quer a bolsa agora?

Depois você encontra.’‘Os meus documentos estão lá.’Ela não pensava em como

estava, se estava inteira, mas onde

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estavam a carteirinha do Partido eo documento militar. Comecei aprocurar a bolsa dela na hora.Achei. Ela pôs em cima do peito efechou os olhos. Logo aambulância se aproximou, elevamos a mulher para dentro.Conferi ainda mais uma vez se elaestava com a bolsa.

De noite fui para casa, conteiessa história para minha mãe edisse que tinha decidido ir para ofront.”

“O nosso lado estava emretirada… Todos fomos para a

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estrada… Passou por nós um velhosoldado, parou ao lado da nossacabana e se curvou aos pés daminha mãe: ‘Perdão, mãe… Salve amenina! Ah, salve a menina!’. Naépoca eu tinha dezesseis anos, umatrança grande… E, veja só, cíliosnegros…”

“Lembro que estávamos indopara o front… Um veículo cheio degarotas, um grande veículo comcapota. Era de noite, estava escuro,os galhos batiam na lona, e atensão era tão grande quepareciam balas sendo atiradas

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sobre nós… Com a guerra, aspalavras e os sons mudaram…Guerra… Isso estava sempre porperto. Se você dizia ‘mamãe’, já erauma palavra totalmente diferente,se dizia ‘casa’, era uma palavratotalmente diferente. Algo foiacrescentado a elas. As palavrascarregavam mais amor, mais medo.Algo mais…

Mas desde o primeiro dia eutinha certeza de que eles não nosvenceriam. Tão grande é o nossopaís. Infinito…”

“Eu era uma filhinha da

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mamãe… Nunca tinha saído daminha cidade, não passava a noitena casa dos outros, e fui ser médicaauxiliar em uma bateria demorteiros. O que não aconteceucomigo? Os morteiros começarama atirar, e na mesma hora fiqueisurda. Parecia que todo o meucorpo estava queimando. Eu mesentava e sussurrava: ‘Mãe,mamãezinha… Mãe…’. Estávamosna floresta; saíamos de manhã efazia tanto silêncio, as plantas comorvalho. Será mesmo que isso éuma guerra? Num momento tãobonito, tão agradável…

Nos mandaram vestir roupas

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militares, mas eu tenho um metroe meio de altura. Enfiei as calças, eas meninas a amarraram por cimapara mim. Eu andava com meuvestido, mas me escondia dossuperiores. Bem, me mandarampara a prisão por quebra dedisciplina militar.”

“Nunca imaginei… Eu não sabiaque conseguia dormircaminhando. Você vai andando nafila e dorme, tropeça em quem estána sua frente, acorda por umsegundo, dorme de novo. Ossoldados têm um sonho doce. Uma

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vez, na escuridão, não fui para afrente, mas cambaleei para o lado,e andei pelo campo, estavaandando e dormindo. Até que caíem alguma vala, só aí acordei — ecorri para alcançar meuscompanheiros.

Os soldados, na hora dodescanso, dividiam um cigarroimprovisado para três. Enquanto oprimeiro fumava, o segundo e oterceiro dormiam. Até roncavamum pouco…”

“Não vou me esquecer:trouxeram um ferido, tiraram da

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maca… Alguém pegou a mão dele:‘Não, está morto’. Nos afastamos. Eentão o ferido suspirou. Nessahora, fiquei de joelhos diante dele.Comecei a chorar e gritar: ‘Omédico! O médico!’. Foramacordar o médico, sacudiam e elecaía de novo, tão pesado era osono. Nem com amoníacoconseguiram acordar. Antes disso,fazia três dias que ele não dormia.

E como são pesados os feridosno inverno… As guimnastiorkificavam duras de sangue e águacongelada, os coturnos cheios desangue e gelo, não tinha comocortar. Todos ficavam frios feito

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cadáveres.A gente olhava pela janela, e a

beleza do inverno era indescritível.Pinheiros brancos encantadores.Por um segundo eu me esqueciade tudo… E de novo…”

* * *

“Era um batalhão deesquiadores… Só alunos dodécimo ano… Forammetralhados… Trouxeram umdeles, estava chorando. Éramos daidade deles, mas já nos sentíamosmais velhas. Eu o abraçava:‘Menino querido’. E ele dizia: ‘Se

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você estivesse lá, não me chamariade menino’. Estava morrendo,gritava a noite toda: ‘Mamãe!Mamãe!’. Lá havia dois rapazes deKursk, nós os chamávamos de‘rouxinóis de Kursk’. Você iaacordá-los, e eles tinham babado.Eram muito pequenininhos…”

“Passávamos dias inteiros namesa de operação… Você ficava depé, mas os braços caíam. Aconteciade cair de cabeça em cima dooperado. Dormir! Dormir! Dormir!As pernas inchavam, não entravamnas botas. Os olhos cansavam tanto

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que era difícil fechar…Minha guerra tem três cheiros:

sangue, clorofórmio e iodo…”

“Ah! As feridas… Largas,profundas, rasgadas… Era de ficarlouca… Estilhaços de bala,granada, projéteis na cabeça, nosintestinos, em todo o corpo —junto com metal tirávamos docorpo dos soldados: botões,pedaços de capote, guimnastiorki,cintos de couro. Um soldado veiocom o peito todo destroçado, ocoração visível… Ainda batia, masele estava morrendo… Fiz o último

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curativo, mal segurava o choro.Logo isso acaba, pensei, e posso meesconder em um canto e me acabarde chorar. Ele me disse: ‘Obrigado,irmãzinha…’, e estendeu a mãocom algo pequeno, metálico. Olheirapidamente: era um sabre e umaespingarda cruzados. ‘Para que estáme dando isso?’, perguntei. ‘Minhamãe me disse que esse talismã mesalvaria. Mas agora não precisomais dele. Talvez você seja maisfeliz do que eu’, falou isso e sevirou para a parede.

À noite, tínhamos sangue nocabelo; atravessava o avental echegava no corpo, grudava no

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gorro e na máscara. Um sanguenegro, viscoso, misturado comtudo o que existe dentro do serhumano. Com urina, fezes…

Outras vezes alguém mechamava: ‘Irmãzinha, minha pernaestá doendo’. E a pessoa não tinhaa perna… O que me dava maismedo, ao carregar os mortos, eraquando uma brisa levantava olenço e ele estava olhando paravocê. Não conseguia carregar se eleestava de olhos abertos; eu ia lá efechava…”

“Trouxeram um ferido… Estava

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deitado na maca, todo enfaixado,tinha um ferimento na cabeça, maldava para ver. Só um pouquinho.Mas, pelo visto, eu o fiz lembrar dealguém; ele falou para mim:‘Larissa… Larissa… Lórotchka…’.Ao que tudo indica, era a garotaque ele amava. Esse é o meu nome,mas eu sabia que nunca tinha vistoaquele homem antes, e ele estavame chamando. Me aproximei, sementender nada, observando tudo.‘Você veio? Você veio?’ Segurei amão dele, me inclinei… ‘Eu sabiaque você viria…’ Ele sussurravaalgo, mas eu não entendia o queera. Mesmo agora não consigo

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contar essa históriatranquilamente: sempre quelembro desse caso, meus olhosficam marejados. ‘Quando fui parao front’, ele disse, ‘não tive tempode beijar você. Me dê um beijo…’

Me inclinei sobre ele e o beijei.Uma lágrima surgiu, escorreu paradentro da faixa e se escondeu. E foiisso. Ele morreu…”

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SOBRE A MORTE E O ESPANTODIANTE DA MORTE

“As pessoas não queriammorrer… Acorríamos a cadasuspiro, a cada grito. Tive umferido que, quando sentiu queestava morrendo, agarrou meuombro, me abraçou e não soltava.Achava que se houvesse alguém aolado dele, se houvesse umaenfermeira, a vida não oabandonaria. Ele pedia: ‘Se euconseguisse viver mais cincominutos. Ou mais doisminutinhos…’. Uns morriam sem

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um som, quietinhos, outrosgritavam: ‘Não quero morrer!’.Praguejavam: ‘Filho de uma…’.Teve um que de repente começoua cantar… Cantava uma cançãomoldava… A pessoa estámorrendo, e mesmo assim nãoacha, não acredita que estejamorrendo. E você vê que, debaixodo cabelo, passa uma luz bemamarelada, como uma sombra queno começo atravessa o rosto,depois vai por baixo da roupa… Omorto está ali, deitado, e no rostodele vemos certo espanto: como,vou morrer? É possível que eutenha morrido?

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Enquanto ele escutava… Até oúltimo minuto eu dizia que não,como iria morrer? Beijava,abraçava: o que foi, o que foi? Elejá estava morto, olhos no teto, e euainda estava sussurrando algo…Tranquilizando… Os sobrenomesjá se apagaram da minha memória,mas os rostos ficaram gravados…”

“Traziam os feridos…Chorando… Não choravam dedor, mas de impotência. Era oprimeiro dia deles no front, algunsnão tinham nem atirado. Nãohaviam entregado fuzis para eles

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porque nos primeiros anos essasarmas valiam ouro. E os alemãestinham tanques, morteiros, aviões.Quando um dos nossos caía, oscamaradas recolhiam os fuzis. Asgranadas. Iam para o combate demãos vazias… Como quem vaipara uma briga…

E já batiam de frente contra umtanque…”

“Quando eles morriam… Comoolhavam… Como…”

“Meu primeiro ferido… A bala oatingiu na garganta, ele ainda

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viveu por alguns dias, mas nãofalava nada…

Quando amputavam uma mãoou um pé, não tinha sangue… Acarne estava branca e limpa, osangue vinha depois. Até hoje nãoconsigo destrinchar uma galinha sea carne estiver branca e limpa.Minha boca fica salgada…”

“Os alemães não faziamprisioneiras de guerra… Se fosseuma mulher, fuzilavam na hora.Conduziam as mulheres diante dasfileiras de soldados e mostravam:vejam, não são mulheres, são

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monstros. Sempre deixávamos doiscartuchos para nós mesmas: doispara o caso de a arma falhar.

Uma das nossas enfermeiras foicapturada… Um dia depois,tomamos uma aldeia, e por todolado havia cavalos mortos, motos,veículos blindados. Ela foiencontrada: haviam arrancado seusolhos, cortado seu peito… Foraempalada… Fazia frio, e ela eramuito branca, com os cabelosbrancos. Tinha dezenove anos.

Na mochila encontramos umacarta de casa e um passarinhoverde de borracha. Um brinquedode criança…”

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“Estávamos recuando… Debaixode bombas. No primeiro anorecuávamos e recuávamos. Osaviões fascistas voavam bempertinho, perseguiam um por um.Sempre parecia que estavam atrásde você. Eu corria… Via e escutavao avião vindo na minha direção,via o piloto, o rosto, e ele via que setratava de uma garota… Comboiomédico. Metralhava o nosso carroe ria. Estava se divertindo… Umsorriso terrível, descarado… E umrosto bonito…

Eu não aguentei… Comecei agritar… Corri para uma plantaçãode milho, ele vinha, corri para a

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floresta, ele me espremia contra aterra. Já tinha alguns arbustos…Saltei para dentro da floresta, paraum lugar com folhas caídas. Saíasangue do meu nariz de tantomedo; não sabia: estava viva ounão? Sim, estava viva… Desde essaépoca morro de medo de avião. Eleainda está em algum lugar, e eu jáestou com medo, já não pensomais em nada, só que ele estávindo, onde posso me esconder,onde me enfio para não ver e nãoescutar. E até hoje não aguentosom de avião. Não voo…”

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“Ê, meninas…”

“Antes da guerra eu estava mepreparando para casar… Com meuprofessor de música. É umahistória louca… Me apaixoneiperdidamente… Ele também…Mas minha mãe não permitiu:‘Você ainda é muito nova!’.

Logo começou a guerra. Pedipara ir ao front. Queria sair decasa, ser adulta. Em casa,choravam ao me aprontar para aestrada. Meias quentes, roupa debaixo…

Vi o primeiro morto no primeiro

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dia… Por acaso, um estilhaço vooupara o pátio da escola onde forainstalado o hospital e feriumortalmente nosso enfermeiro.Pensei: para casar minha mãedecide que sou muito nova, maspara lutar na guerra, não… Minhamãe querida…”

“Tínhamos acabado de parar…Montamos a enfermaria,trouxeram os feridos, e então veioa ordem: evacuar. Pusemos algunsferidos nas ambulâncias, outrosnão. Não tinha veículos para todos.Nos apressavam: ‘Deixem eles aí.

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Saiam’. Você estava saindo, e elesolhavam para você. Seguiam comos olhos. Naqueles olhares tinha detudo: resignação, ressentimento…Pediam: ‘Irmãos! Irmãs! Não nosdeixem para os alemães. Deem-nosum tiro antes’. Que tristeza! Quetristeza! Quem conseguia selevantar vinha conosco. Quem nãopodia, ficava deitado. E você, jásem poder ajudar nenhum deles,tinha medo de erguer os olhos…Eu era jovem, chorava e chorava…

Quando já estávamosavançando, não deixávamosnenhum ferido para trás. Atéferidos alemães recolhíamos. Uma

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vez trabalhei com eles. Meacostumei, fazia curativos nelescomo se não fosse nada. Masquando lembrava de 1941, decomo deixamos nossos feridos, eeles os… Como eles os… Nósvimos… Sentia que eu não iachegar perto de mais nenhumdeles… Mas no dia seguinte ia lá efazia o curativo…”

“Salvávamos as pessoas… Masmuitos se lamentavam por ser daequipe médica e só poder fazercurativos, em vez de empunharuma arma. Por não atirar. Eu

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lembro… Lembro dessa sensação.Lembro que, na neve, o cheiro dosangue é especialmente forte… Osmortos… Estavam nos campos. Ospássaros arrancavam os olhos,bicavam o rosto, as mãos. Ai, quevida impossível…”

“No fim da guerra… Eu tinhamedo de escrever para casa. Nãovou escrever, pensava, se derepente me matam, minha mãe vaichorar porque a guerra acabou eeu morri logo antes da Vitória.Ninguém falava, mas todospensavam nisso. Já sentíamos que

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em breve venceríamos. Aprimavera já tinha começado.

E de repente eu vi que o céuestava mais azul…”

“De que me lembro… O queficou gravado na memória…Aquele silêncio, um silêncioextraordinário das enfermarias dosferidos em estado grave… Os maisgraves… Eles não conversavam.Não chamavam ninguém. Muitosestavam inconscientes. Mas o maishabitual era que ficassem deitados,em silêncio. Pensando. Às vezesolhavam para o lado e pensavam.

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Chamávamos, eles não escutavam.Em que será que pensavam?”

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SOBRE CAVALOS E PASSARINHOS

“Nosso trem andava e andava…Na estação havia dois trens, lado

a lado… Um com feridos e o outrocom cavalos. Começou umbombardeio. Os trens pegaramfogo… Saímos abrindo as portaspara salvar os feridos, para que elessaíssem, mas todos eles correrampara salvar os cavalos que estavamno fogo. Quando os feridos gritamé terrível, mas não há nada maisterrível do que os relinchos doscavalos feridos. Eles não tinhamculpa de nada, estavam pagando

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pelos assuntos humanos. Eninguém correu para a floresta,todos se apressaram em salvar oscavalos. Todos os que podiam.Todos!

Que falar… Quero falar que osaviões dos fascistas voavam juntodo chão. Bem baixinho. Depois eupensei: os pilotos alemães viamtudo, será que não tinhamvergonha? Em que pensavam…?”

“Lembro de um caso…Chegamos a uma vilazinha, e juntoda floresta tinha alguns partisansmortos. Como tinham sido

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humilhados, não consigo nemreproduzir, meu coração nãoaguenta. Foram cortados empedacinhos… Destripados, comoporcos… Estavam ali… Não muitolonge, cavalos pastavam… Via-seque eram os cavalos dos partisans,estavam até selados… Ou eles sesafaram dos alemães, ou nãoconseguiram capturá-los — nãodava para saber. Não foram paralonge. Tinha muito capim. E eutambém pensei: como fizeram issona frente dos cavalos? Diante deanimais. Os cavalos ficaramolhando para eles…”

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* * *

“Ardiam os campos e asflorestas… Os prados soltavamfumaça… Vi vacas e cachorrosqueimados… É um cheiro insólito.Desconhecido. Eu vi… Barris detomate e de repolho queimados.Os pássaros ardiam. Cavalos…Muitos… Tinha várias coisasnegras largadas nas estradas. Agente tinha que se acostumar comesse cheiro também…

Na época, entendi que tudopode pegar fogo. Até sangue pegafogo…”

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“Durante um bombardeio, umacabra se aproximou de nós. Deitouconosco. Simplesmente deitou aonosso lado e ficou balindo.Quando pararam de bombardear,ela veio andando conosco, nãoparava de se achegar às pessoas;bem, é um ser vivo, também estavacom medo. Chegamos a algumvilarejo e dissemos a uma mulher:‘Fique com ela, estamos com pena’.Queríamos salvá-la…”

“Na minha enfermaria haviadois homens… Estavam de cama— um alemão e nosso tanquista,

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que tinha sofrido queimaduras. Fuifalar com ele:

‘Como está se sentindo?’‘Eu estou bem’, respondeu o

tanquista. ‘Mas aquele ali está mal.’‘É um fascista…’‘Não, comigo está tudo bem,

mas ele está mal.’Já não eram inimigos, e sim

pessoas, só dois feridos deitadoslado a lado. Entre eles surgiu algohumano. Mais de uma vez observeicom que rapidez isso acontecia…”

* * *

“É que… Como é mesmo…

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Vocês se lembram? Os pássarosestavam voando no outonotardio… Bandos muito grandes…Nossa artilharia atirando, a dosalemães também, e eles voando…Como íamos gritar para eles?Como avisar: ‘Não vão para lá!Estão atirando!’. Como? Ospássaros caíam, caíam no chão.”

“Trouxeram uns integrantes daSS para fazermos curativos…Oficiais da SS. Uma enfermeira seaproximou de mim e perguntou:

‘Como vamos fazer os curativos?Arrancamos ou fazemos

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normalmente?’‘Normalmente. São feridos…’E fizemos os curativos

normalmente. Depois, os doisfugiram. Foram capturados, e, paraque não fugissem de novo,arranquei os botões da cerouladeles…”

“Quando me disseram… estaspalavras: ‘A guerra acabou!…’. Eufui e me sentei na mesa deesterilização. Eu e o médicotínhamos combinado que, quandoanunciassem: ‘A guerra acabou’,nos sentaríamos na mesa de

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esterilização. Íamos fazer algumacoisa improvável. Eu não deixavaninguém chegar perto da mesa,nem à distância de um tiro decanhão. Tinha luvas, máscara,avental esterilizado, e eu mesmaentregava tudo de que precisavam:tampões, instrumentos… Mas aífui lá e sentei na mesa…

Com o que sonhávamos? Emprimeiro lugar, claro, com vencer,em segundo, ficar viva. Uma dizia:‘Quando acabar a guerra, vou terum monte de filhos’; outra dizia:‘Eu vou entrar para auniversidade’, e alguém respondia:‘Já eu não saio mais do

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cabeleireiro, vou cuidar de mim’.Ou: ‘Vou comprar um bomperfume. Vou comprar umcachecolzinho e um broche’.

E então chegou esse dia. Derepente, todas nos acalmamos…”

“Tomamos uma vila…Estávamos procurando onde pegarágua. Entramos em um pátio ondepercebemos que havia um poço.Um poço de madeira entalhada…O dono da casa estava no chão dopátio, fuzilado… Sua cadela estavaao lado dele. Quando viu a gente,começou a ganir. Não entendemos

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imediatamente, mas ela estavachamando. Nos levou para acabana… Fomos atrás dela. Noterraço vimos o corpo da esposa ede três filhos.

A cadela sentou ao lado deles ecomeçou a chorar. Chorar deverdade. Feito um ser humano…”

“Entrávamos em nossospovoados… De pé, restaram osaquecedores, e só isso. Só osaquecedores! Na Ucrânia,libertamos lugares onde não tinhasobrado nada, só cresciammelancias, as pessoas só comiam

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essas melancias e não tinham maisnada. Iam nos receber commelancias… Em vez de flores…

Voltei para casa. Em um abrigona terra viviam minha mãe e ostrês filhos, nosso cachorrinhocomia espinafre da montanhacozido. Cozinhavam o espinafre,eles mesmos comiam e davam parao cachorrinho. E ele comia… Antesda guerra, havia tantos rouxinóisna nossa terra, mas depoispassamos dois anos sem ouvir ocanto deles; toda a terra estavarevirada, tinha vindo à tona, comose diz, o esterco dos nossos avós.Foi preciso arar de novo. Os

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rouxinóis só apareceram noterceiro ano. Onde estavam?Ninguém sabe. Só voltaram para olugar de sempre depois de trêsanos.

As pessoas construíram casas, eaí os rouxinóis chegaram…”

* * *

“Quando vejo flores do campo,me lembro da guerra. Na épocanão colhíamos flores. Se fazíamosum buquê, era só quandoenterrávamos alguém… Quandonos despedíamos…”

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“Ê-ê, meninas, que infame éela… Essa guerra… Vamosrelembrar nossas amigas…”

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“Não era eu”

O que fica gravado na memória,mais do que tudo?

Lembro de uma voz humanabaixa, muitas vezes atônita. Umapessoa que experimenta o espantodiante de si mesma, diante do queaconteceu com ela. O passadodesapareceu, foi ofuscado por um

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turbilhão quente e se escondeu,mas a pessoa ficou. Ficou em meioà vida cotidiana. Tudo ao seuredor é costumeiro, menos amemória. Eu também metransformo em testemunha.Testemunha daquilo que aspessoas se lembram, e de como selembram, do que querem falar, edo que tentam esquecer ou afastarpara o canto mais distante damemória. Fechar a cortina. Decomo elas se desesperam na buscapelas palavras, e mesmo assimquerem reconstituir o quedesapareceu, na esperança de quea distância permita captar o sentido

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completo do passado. Ver eentender o que não viram e o quenão entenderam na época. Lá.Examinam a si mesmas, sereencontram de novo. Muitasvezes já são duas pessoas — aquelae essa, uma jovem e uma velha. Apessoa durante a guerra e a pessoadepois da guerra. Bem depois daguerra. Sou o tempo todo tomadapela sensação de que estouescutando duas vozes ao mesmotempo…

Lá mesmo, em Moscou, no Diada Vitória, me encontrei com OlgaIákovlevna Oméltchenko. Todas asmulheres usavam vestidos de

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primavera, lenços claros, e elaestava de farda militar e boina. Eraalta, forte. Não falou e não chorou.Passou o tempo todo calada, masera um tipo de silêncio especial:suspeitava de que falava mais como silêncio do que com palavras.Parecia falar consigo mesma otempo todo. Já não precisava demais ninguém.

Nos conhecemos, depois fui aoseu encontro em Pólotsk.

Diante de mim se descortinoumais uma página da guerra capazde fazer qualquer fantasia secalar…

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OLGA IÁKOVLEVNAOMÉLTCHENKO, ENFERMEIRA-INSTRUTORA DE UMACOMPANHIA DE FUZILEIROS

“Eu era o talismã da mamãe…Minha mãe queria que euevacuasse com ela; sabia que euqueria ir para o front e meamarrou à carroça que estavalevando nossas coisas. Mas eu medesamarrei na surdina e fui: fiqueicom um pedacinho da corda nobraço…

Todos estavam viajando…Correndo… Onde iam se meter? E

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como chegar ao front? Encontreium grupo de meninas na estrada.Uma delas disse: ‘Minha mãe moraaqui perto, vamos para minhacasa’. Chegamos de noite, batemosna porta. A mãe abriu, olhou paranós — estávamos sujas,esfarrapadas — e ordenou:‘Fiquem paradas’. Nós ficamos. Elatrouxe grandes panelas de ferro enos mandou tirar a roupa.Lavamos a cabeça com cinzas (jánão tinha mais sabão), subimos naestufa e caí num sono profundo.De manhã, a mãe dessa meninacozinhou schi* e assou pão defarelo com batata. Como aquele

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pão nos pareceu gostoso, como oschi pareceu doce! E assimpassamos quatro dias ali, enquantoela nos alimentava. Dava a comidade pouco em pouco, tinha medode que morrêssemos por comerdemais. No quinto dia, nos disse:‘Vão embora’. Antes disso tinhavindo uma vizinha, nós estávamosno fogão. A mãe nos fez um sinalcom o dedo para que a genteficasse calada. Nem para osvizinhos ela confessou que a filhaestava em casa, todos sabiam que amenina estava no front. Ela era suaúnica filha, e a mãe não teve pena,não conseguia perdoar a vergonha

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do retorno. Pela filha não estarcombatendo.

Ela nos acordou de noite e deuuma trouxa com comida. Abraçoucada uma e disse: ‘Vão embora’…”

“Ela nem tentou deter a filha?”“Não, beijou a menina e disse:

‘Seu pai está lutando, vá lutar vocêtambém’.

Já na estrada essa menina mecontou que era enfermeira e tinhasido cercada…

Por muito tempo a vida mejogou por vários lugares, e no fimfui parar na cidade de Tambov,arrumei emprego num hospital. Avida ali não era má, me recuperei

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dos tempos de fome, até fiqueirechonchudinha. Uma vez,quando completei dezesseis anos,me disseram que, como todas asenfermeiras, eu poderia doarsangue. Comecei a doar sanguetodo mês. No hospital sempreestavam precisando de centenas delitros, nunca tinha o suficiente.Doava quinhentos centímetroscúbicos por vez, meio litro desangue, duas vezes por mês.Recebia a ração de doador: umquilo de açúcar, um quilo desêmola e um quilo de embutidospara recuperar as forças. Fizamizade com a auxiliar, a tia

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Niura: ela tinha sete filhos, e omarido tinha morrido no começoda guerra. O filho mais velho, deonze anos, fora comprar a comidae perdeu o cartãozinho, então eudava a eles minha ração dedoadora. Uma vez, um médico medisse: ‘Vamos escrever seuendereço, vai que aparece alguémque recebeu seu sangue’.Escrevemos o endereço eprendemos o papelzinho no frasco.

E eis que, um tempo depois,passados uns dois meses, não maisque isso, eu terminei meu turno eestava indo dormir quando alguémme sacudiu:

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‘Levante! Levante, seu irmãochegou.’

‘Que irmão? Não tenho irmãos.’Nosso alojamento ficava no

último andar, e eu desci, olhei: eraum jovem tenente, bonito.Perguntei:

‘Quem chamou porOméltchenko?’

Ele respondeu:‘Fui eu’, e me mostrou o

bilhetinho que eu e o médicotínhamos escrito. ‘Veja… Sou seuirmão de sangue…’

Tinha trazido para mim duasmaçãs e um saquinho de bombons— na época a gente não tinha

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como comprar bombons em lugarnenhum. Meu Deus! Como eramgostosos aqueles bombons! Fuifalar com o diretor do hospital:‘Meu irmão veio me ver!’. Mederam folga. Ele me convidou:‘Vamos ao teatro’. Eu nunca tinhaido ao teatro na vida e estava indocom um rapaz, ainda por cima. Umrapaz bonito. Um oficial!

Ele foi embora alguns dias maistarde, enviado para o front deVorônej. Quando veio se despedir,abri a janela e acenei para ele. Nãome deram folga: tínhamos recebidomuitos feridos.

Eu não recebia cartas de

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ninguém, inclusive nem imaginavao que era isso: receber uma carta. Ede repente me entregavam umtriângulo; abri, e lá estava escrito:‘Seu amigo, o comandante dopelotão de metralhadoras…faleceu com valentia…’. Era ele,meu irmão de sangue. Tinhacrescido num orfanato e, pelovisto, o único endereço que tinhaera o meu. Meu endereço…Quando foi embora, ele pediumuito que eu continuasse naquelehospital, seria mais fácil meencontrar depois da guerra. ‘É fácilse perder na guerra’, temia. Ummês depois recebi essa carta,

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dizendo que tinha morrido. Fiqueimuito mal. Foi um golpe nocoração… Decidi com todas asminhas forças ir para o front evingar meu sangue: eu sabia que,em algum lugar, meu sangue tinhasido derramado…

Mas não era tão fácil ir para ofront. Escrevi três requerimentospara o chefe do hospital, e naquarta vez fui falar com ele:

‘Se o senhor não me deixar irpara o front, vou fugir.’

‘Está bem. Eu te dou oencaminhamento, se você está tãoobstinada.’

O mais terrível, claro, é o

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primeiro combate. Porque vocêainda não sabe de nada… O céuestrondeia, a terra estrondeia,parece que o coração vai explodir,que sua pele vai rasgar a qualquermomento. Eu não sabia que a terrapodia estalar. Tudo estalava, tudorugia. Tudo balançava… A terrainteira… Eu não conseguia…Como ia sobreviver a tudoaquilo… Achava que não iaaguentar… Fiquei com tanto medoque decidi: para não me acovardar,peguei minha carteirinha doKomsomol, molhei no sangue deum ferido, pus no bolso, ao ladodo coração, e abotoei. E jurei para

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mim mesma que iria aguentar, queo mais importante era não meacovardar, porque se eu meacovardasse no primeiro combate,não daria mais um passo. Iam metirar da linha de frente e memandar para o batalhão médico. Eeu só queria ficar na vanguarda,queria alguma vez ver um fascistacara a cara… Pessoalmente…Avançamos, caminhamos por umcapim crescido até a altura docinto. Havia vários anos que nãosemeavam ali. Era muito difícilandar. Isso foi na batalha deKursk…

Depois do combate, o chefe do

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estado-maior mandou me chamar.Estava em uma isbazinhadestruída, sem nada dentro. Tinhasó uma cadeira, e ele estava de pé.Me mandou sentar:

‘Olho para você e penso: o quete fez vir para esse inferno? Vão tematar como uma mosca. Isso aquié a guerra! É um moedor de carne!Deixe-me transferir você, nem queseja para o batalhão médico. Se tematam tudo bem, mas e se ficarsem olhos, sem braços? Pensounisso?’

Respondi:‘Camarada coronel, pensei. Mas

só peço uma coisa: não me tire da

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companhia.’‘Certo, vá!’, gritou comigo, até

me assustei. E se voltou para ajanela…

Os combates eram duros. Estiveem confrontos corpo a corpo… Éum horror… Não é para um serhumano… Batem, enfiam abaioneta, enforcam-se uns aosoutros. Os ossos se quebram.Urros, gritos. Gemidos. E aqueleestalo… Aquele estalo! Não dápara esquecer. O estalo dos ossos…A gente escuta o crânio estalando.Rachando… Até para a guerra issoé um pesadelo, não tem nada dehumano aí. Não acredito em

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ninguém que diga que não sentiumedo na guerra. Os alemães selevantavam e andavam, semprecom as mangas arregaçadas até ocotovelo, e cinco ou dez minutosdepois começava o ataque. Eutremia. Tinha calafrios. Mas isso sóaté o primeiro tiro… Depois…Quando escutava o comando, jánão me lembrava de mais nada,me levantava e corria junto com osoutros. E já não pensava em medo.No dia seguinte não dormia, omedo vinha. Lembrava de tudo, detodos os detalhes, vinha aconsciência de que podiam ter mematado, e dava um medo enorme.

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Logo depois de um ataque, eramelhor não olhar para o rosto deninguém: parecia outro, não era orosto habitual das pessoas. Nãoconseguíamos erguer os olhos unspara os outros. Nem para asárvores olhávamos. Você ia falarcom alguém, e a pessoa dizia: ‘Saiadaqui!’. Não consigo expressar oque era. Parecia que estavam todosanormais de alguma forma, e atéparecia alguma coisa animalesca.Era melhor não ver. Até hoje nãoacredito que saí disso viva. Viva…Ferida, com lesões, mas inteira;não acredito…

Quando fecho os olhos, vejo

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tudo diante de mim novamente.Um projétil caiu no depósito de

munições, que se incendiou nahora. O soldado que estava aolado, de vigia, começou a pegarfogo. Já era um pedaço de carnepreta… Ele só pulava… Ficavasaltando no mesmo lugar… Etodos olhavam das trincheiras, masninguém se mexeu, ficaram todosperdidos. Eu peguei um lençol, fuiaté ele correndo, cobri o soldado ena mesma hora deitei em cimadele. Apertei-o contra o chão. Aterra estava fria… Foi assim… Elese debateu enquanto o coração nãoestourava, depois ficou quieto…

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Estava coberta de sangue…Algum dos soldados mais velhos seaproximou, me abraçou, e o escuteidizendo: ‘Quando a guerra acabar,mesmo se essa menina ficar viva,não tem como se tornar umapessoa normal, está acabada’. Se euestava no meio de tanto horror, eledisse, como ia sobreviver, aindamais tão jovem?! Eu tremia comose estivesse tendo um ataque, melevaram debaixo do braço para oabrigo de terra. Minhas pernas nãose aguentavam… Tremiam comose eu tivesse recebido uma correnteelétrica… É uma sensaçãoindescritível…

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E então o combate começou denovo… Em Sievsk, os alemães nosatacavam umas sete, oito vezes pordia. Naquele dia continuei tirandoos feridos e as armas do campo debatalha. Me arrastei até o último,ele estava com o braço destroçado.Pendurado por uns pedacinhos…Pelas veias… Coberto de sangue…Precisava amputar o braço comurgência para fazer o curativo. Nãohavia outra maneira. Mas eu nãotinha nem faca, nem tesoura. Abolsa chacoalhava tanto que elastinham caído. O que fazer? Corteiaquela carne com os dentes. Corteie enfaixei… Estava enfaixando, e o

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ferido dizia: ‘Mais rápido, irmã.Vou lutar mais’. Estavadelirando…

Alguns dias depois, quando ostanques vieram para cima de nós,dois soldados se acovardaram.Saíram correndo… Isso deixoutoda a fila desnorteada… Muitosde nossos camaradas morreram.Alguns feridos que tinham sidoarrastados por mim para umacratera de explosão foramcapturados. Um veículo devia estarvindo buscá-los… Mas, quandoaqueles dois se acovardaram, umpânico se instalou. Largaram até osferidos. Depois fomos ao lugar

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onde eles jaziam: uns com os olhosarrancados, outros com a barrigarasgada… Eu, quando vi isso,mudei do dia para a noite. Eu quehavia reunido todos no mesmolugar… Eu… Fiquei com tantomedo…

De manhã, posicionaram todo obatalhão em formação, trouxeramaqueles dois covardes e puseramna nossa frente. Alguém leu aordem de fuzilamento. Precisavamde sete pessoas para executar asentença. Três pessoas seapresentaram, o resto ficou parado.Peguei o fuzil e me apresentei.Quando me apresentei… Uma

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garota… Todos vieram atrás demim… Não podíamos perdoá-los.Era por causa deles que aquelaspessoas tinham morrido!

Executamos a sentença… Baixeio fuzil e me deu um medo… Meaproximei deles… Estavam nochão… Um deles tinha um sorrisovivo no rosto…

Não sei se os perdoaria agora.Não sei dizer… Não vou mentir.Às vezes quero chorar. Nãoconsigo…

Na guerra, me esqueci de tudo.Da minha vida anterior. De tudo…Até do amor…

O comandante da companhia de

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batedores se apaixonou por mim.Mandava os soldados entregarembilhetinhos. Fui a um encontrocom ele. ‘Não’, falei. ‘Amo umhomem que há tempo já não estáentre os vivos.’ Ele chegou bemperto de mim, me olhou direto nosolhos, deu a volta e foi embora.Estavam atirando, e ele caminhavasem nem se abaixar… Depois —isso já foi na Ucrânia —, nóslibertamos um grande povoado.Pensei: ‘Vou andar por aí, olhar’. Otempo estava bom, as cabaninhaseram brancas. E atrás do povoadohavia algumas tumbas, a terraestava fresca… Quem tinha

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morrido na batalha por aquelepovoado estava enterrado ali. Eunão sabia, mas alguma coisa mepuxava para lá. Nas plaquinhashavia uma fotografia e osobrenome. Uma em cadatúmulo… De repente, vi um rostoconhecido… Era o comandante dacompanhia de batedores que tinhadeclarado amor por mim. E osobrenome dele… Fiquei aturdida.Um medo com uma forçatamanha… Como se ele estivesseme vendo, como se estivesse vivo…Naquela hora, os rapazes dele, desua companhia, estavam vindopara o túmulo. Todos me

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conheciam, eram eles que metraziam os bilhetinhos. Nenhumolhou para mim, como se eu nãoexistisse. Eu era invisível. Depois,quando me encontrava com eles,parecia que… É o que eu acho…Que eles queriam que eu tivessemorrido. Achavam difícil ver queeu estava… viva… Era o que eusentia… Como se para eles eu fosseculpada… E para ele também…

Voltei da guerra e fiqueibastante doente. Passei muitotempo indo de um hospital aoutro, até que fui parar nas mãosde um velho professor. Ele passoua cuidar do meu tratamento…

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Tratou de mim mais com palavrasdo que com remédios, me explicouqual era minha doença. Disse que,se eu tivesse ido para o front comdezoito, dezenove anos, meuorganismo já estaria fortalecido,mas como fui parar lá comdezesseis — é muito cedo —, fiqueifortemente traumatizada. ‘Claro,uma coisa é tomar remédios’, eleexplicou, ‘isso pode curar você, masse quiser recuperar a saúde, sequiser viver, meu único conselho é:case e tenha muitos filhos. Só issopode te salvar. A cada filho oorganismo vai se restabelecendo.’”

“Quantos anos você tinha?”

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“Quando a guerra acabou euestava com dezenove. Claro, nempensava em casar.”

“Por quê?”“Eu me sentia muito cansada,

muito mais velha do que as pessoasda minha idade, uma senhora,mesmo. Minhas amigas dançavam,se alegravam, e eu não conseguia,olhava para vida com olhos develha. A partir de outro mundo…Uma velha! Uns rapazes vinhamflertar comigo. Uns pirralhos. Maseles não viam minha alma, o quese passava dentro de mim. Eu lhecontei um dia… O da batalha deSievsk. Só um dia… Depois dele, à

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noite, meus ouvidos jorravamsangue. De manhã acordei como setivesse passado por uma doençagrave. O travesseiro estava cheio desangue.

E no hospital? Atrás do biomboficava uma grande bacia deoperação, onde colocávamos osbraços e as pernas cortados… Umcapitão veio trazer um camaradaferido da linha de frente. Não seicomo foi parar lá, mas quando viuessa bacia… desmaiou.

Posso passar muito tempolembrando. Sem parar… Mas oque é o mais importante?

Eu me lembro dos sons da

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guerra. Ao seu redor tudo troveja,retine e treme por causa do fogo…A alma de uma pessoa envelhecedurante a guerra. Depois daguerra, nunca mais fui jovem…Isso é o mais importante. É o queeu acho…”

“Você se casou?”“Sim, casei. Tive e criei cinco

filhos. Cinco meninos. Meninas,Deus não me deu. O que mais mesurpreende é que, depois de tantomedo e horror, eu tenhaconseguido ter filhos tão bonitos.Terminei sendo uma boa mãe,uma boa avó.

Agora, me lembro de tudo e

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parece que não era eu, e simalguma outra garota…”

Estava voltando para casa comquatro fitas cassete (dois dias deconversa) sobre “mais umaguerra”, e uma variedade desensações: comoção e medo,perplexidade e admiração.Curiosidade e confusão, ternura.Em casa, relatei alguns dessesepisódios para amigos. Para minhasurpresa, todos reagiram da mesmaforma: “É terrível demais. Comoela aguentou? Não enlouqueceu?”.Ou: “Estamos acostumados a lersobre outra guerra, uma guerracom uma fronteira muito precisa:

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eles-nós, bem-mal. E aqui?”. Masnotei que todos ficaram com osolhos marejados, todos ficarampensativos. Com certeza refletiamsobre o mesmo que eu. Jáaconteceram milhares de guerrasno planeta (recentemente, li que seestimavam mais de 3 mil, entregrandes e pequenas), mas talvez aguerra fosse um dos principaismistérios da humanidade, econtinua sendo. Nada mudou.Tento reduzir a grande história auma escala humana para entenderalguma coisa. Encontrar aspalavras. Mas parece que, nesseterritório pequeno e cômodo para

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o olhar — o espaço de uma almahumana —, tudo é ainda maisincompreensível, menos previsíveldo que na história. Tenho diantede mim lágrimas vivas, sentimentosvivos. Uma face viva, humana, pelaqual passam sombras de dor emedo durante a conversa. Às vezesaté se insinua a ideia subversiva deuma quase imperceptível beleza dosofrimento humano. E então meassusto comigo mesma…

O caminho é um só: amar o serhumano. Compreendê-lo peloamor.

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* Schi: sopa de repolho.

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“Até agora me lembrodaqueles olhos…”

Prossigo com minha busca…Mas dessa vez não preciso irlonge…

A rua onde vivo em Minsk levao nome de um herói da UniãoSoviética, Vassíli Zakhárovitch Korj

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— combatente da Guerra Civil,soldado na Espanha, comandantede uma brigada de partisans naGuerra Patriótica. Todo bielorrussoleu algum livro sobre ele, ao menosna escola, ou assistiu a algumfilme. É uma lenda bielorrussa.Apesar de escrever seu nomecentenas de vezes em envelopes eformulários de telegramas, nuncapensei nele como uma pessoa real.Há muito tempo o mito tomou olugar da pessoa viva. Tornou-seseu duplo. Mas dessa vez estouandando por essa rua conhecidacom um sentimento novo: daqui ameia hora de trólebus até o outro

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lado da cidade, vou ver suas filhas— as duas lutaram no front — esua mulher. Diante dos meusolhos, a lenda vai renascer e setransformar em uma vida humana,vai descer até o chão. O grande setornará pequeno. Mesmo que eugoste de olhar para o céu e para omar, o que mais me fascina é ver ogrão de areia pelo microscópio. Omundo em uma gota. Essa vidagrande e improvável que estoudescobrindo ali. Como chamar opequeno de pequeno, e o grandede grande, quando um e outro sãoigualmente infinitos? Já faz tempoque não os diferencio. Para mim,

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uma pessoa já é tanto. Dentro delahá de tudo — é possível se perderali.

Encontro o endereço certo, denovo um prédio de vários andares,maciço e desajeitado. Na terceiraentrada, aperto o botão do sétimoandar no elevador.

Quem abre a porta é a maisnova das irmãs: ZinaídaVassílievna. Tem as mesmassobrancelhas largas e o olharteimoso e franco que se vê nasfotografias do pai.

“Nos reunimos todas. Demanhã, minha irmã Ólia chegoude Moscou. Mora lá. É professora

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na universidade Patrice Lumumba.Nossa mãe também está aqui. Viu,graças a você nos encontramos.”

As irmãs Olga Vassílievna eZinaída Vassílievna Korj foramenfermeiras-instrutoras nosesquadrões de cavalaria. Sentam-selado a lado e olham para a mãe,Fiodóssia Alekséievna.

Ela começou:“Estava tudo em chamas…

Disseram-nos para evacuar…Passamos muito tempo viajando.Chegamos à região de Stalingrado.As mulheres e as crianças se

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deslocavam para a retaguarda, e oshomens vinham de lá. Motoristasde ceifadeira, de trator, todosestavam indo. Caminhões lotados.Lembro de um que se levantou egritou: ‘Mães, irmãzinhas! Vãopara a retaguarda colher trigo, paraque a gente possa vencer oinimigo!’. E então todos tiraram ogorro e olharam para nós. De nossaparte, tudo o que conseguimoslevar foram nossos filhos. E oscarregávamos. Uns no colo, outrospela mão. E ele pedindo: ‘Mães,irmãzinhas! Vão para a retaguarda,colher trigo…’.”

Depois, durante toda a nossa

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conversa ela não proferiu maisnenhuma palavra. As filhas àsvezes faziam carinho nas mãos delaem silêncio, tranquilizando-a.

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ZINAÍDA VASSÍLIEVNA

“Morávamos em Pinsk… Eutinha catorze anos e meio, Óliatinha dezesseis, e nosso irmãoLiônia, treze. Exatamente naqueledia mandamos Ólia para umacolônia de férias, e nosso pai querianos levar para a aldeia. Para ver osparentes do lado dele… Masnaquela noite ele não dormiu emcasa. Trabalhava no ComitêRegional do Partido e recebeu umchamado à noite; só voltou paracasa de manhã. Correu para acozinha, comeu alguma coisa e

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disse:‘Crianças, a guerra começou. É

melhor vocês não irem a lugarnenhum. Esperem por mim.’

Naquela noite fomos embora.Uma das lembranças da Espanhamais queridas do meu pai era umaespingarda de caça, um objetoprecioso, com cartucheira. Era umprêmio pela coragem. Ele jogou aespingarda para o meu irmão:

‘Agora você é o mais velho, éum homem, precisa cuidar da suamãe, das maninhas…’

Guardamos essa espingarda portoda a guerra. Tudo o quetínhamos de valioso foi vendido ou

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trocado por pão, mas a espingardanós guardamos. Não conseguíamosnos separar dela. Era umalembrança do nosso pai. Eletambém jogou para nós no carrouma peliça grande, sua roupa maisquente.

Na estação, pegamos o trem,mas antes de chegar a Gômel nosvimos debaixo de bombardeiopesado. Deram o comando: ‘Saiamdos vagões, deitem-se entre osarbustos!’. Quando terminou obombardeio… No começo pairouum silêncio, depois vieram osgritos… Todos correndo… Minhamãe e meu irmão conseguiram

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subir num vagão, mas eu fiquei.Estava muito assustada… Muito!Nunca tinha estado sozinha. Eestava ali, só. Acho que até perdi afala por um tempo… Fiqueimuda… Me perguntavam algumacoisa, e eu ficava em silêncio…Depois, grudei em alguma mulher,fiquei ajudando a fazer curativosnos feridos: ela era médica.Chamavam-na de ‘camaradacapitã’. Viajei com ela até umaunidade médica. Cuidavam demim, me davam comida, mas logoperceberam:

‘Quantos anos você tem?’Entendi que, se dissesse a

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verdade, me mandariam paraalgum orfanato. Isso eucompreendi no caminho. Bem, eujá não queria me separar daquelaspessoas fortes. Queria lutar comoelas. O tempo todo nos metiam nacabeça, meu pai também dizia isso,que íamos lutar em territórioestrangeiro, que tudo isso eratemporário, a guerra logoterminaria em vitória. Como isso iaacontecer sem mim? Eram esses osmeus pensamentos infantis. Disseque tinha dezesseis anos, e medeixaram ficar. Logo memandaram para um curso. Passeiuns quatro meses estudando.

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Cuidava dos feridos e estudava aomesmo tempo. Me acostumei àguerra… Claro, tinha que meacostumar. Não estudei na escola,mas ali mesmo, no batalhãomédico. Estávamos recuando elevávamos os feridos conosco.

Não íamos pelas estradas:podiam bombardear ou abrir fogo.Íamos por pântanos e pela margemdas estradas. Caminhávamos deum jeito desordenado. Váriasunidades. Se nos concentrávamosem algum lugar, então ali havia umcombate. E andávamos,andávamos e andávamos.Caminhávamos pelos campos. Mas

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que colheita que nada! A gente iapisoteando o centeio. E a colheitanaquele ano foi algo inédito, otrigo crescia alto. Grama verde, osol ali, e os mortos no chão,sangue. Pessoas e animais mortos.Árvores negras… Estações de tremdestruídas… Pessoas queimadaspenduradas em vagões negros…Assim chegamos a Rostóv. Lá, fuiferida em um bombardeio.Recuperei a consciência no trem eescutei um soldado ucraniano, jáidoso, latindo para um jovem: ‘Masnem sua esposa no parto choroucomo você está chorando agora’.Quando viu que eu tinha aberto os

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olhos, disse: ‘Grite, querida, grite.Fica mais fácil. Você pode’.Lembrei da minha mãe e comeceia chorar…

Depois do hospital me deramumas férias e tentei procurarminha mãe. Ela estava mebuscando, e minha irmã Óliatambém procurava por nós. Ah, foium milagre! Nos encontramosatravés de uns conhecidos deMoscou. Todas escrevemos para oendereço dele, e assim nosachamos. Um milagre! Minha mãeestava morando perto deStalingrado, em um colcoz. Fuipara lá.

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Isso foi no final de 1941…Como eles viviam? Meu irmão

trabalhava no trator, ainda erauma criança, tinha treze anos. Nocomeço, fora rebocador, masquando levaram todos ostratoristas para o front ele assumiuum trator. Trabalhava dia e noite.Minha mãe ia atrás do trator ou sesentava ao lado dele; tinha medode que ele dormisse ou caísse.

Os dois dormiam no chão dacasa de alguém… Nunca tiravam aroupa porque não tinham com quese cobrir. Assim era a vida deles…Logo chegou Ólia e recebeu ocargo de contadora. Mas ela

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sempre escrevia para o centro dealistamento pedindo para ir para ofront, e a resposta era semprenegativa. Então decidimos — eu jáera uma guerreira — que iríamosas duas para Stalingrado e lá íamosencontrar alguma unidade.Tranquilizamos nossa mãe,mentimos para ela dizendo queiríamos para Kuban, para unslugares de gente rica — nosso paitinha conhecidos por lá…

Eu tinha meu capote velho, aguimnastiorka, dois pares de calças.Dei um para Ólia, ela não tinhanada. Mesmo as botas, só tínhamosum par para as duas. Mamãe

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tricotou para nós uns sapatos de lãde ovelha, não eram meias,pareciam umas pantufas: eramquentes. Andamos sessentaquilômetros a pé até Stalingrado:uma calçava as botas, a outra iacom as pantufas da mamãe, depoistrocávamos. Caminhávamos emum frio terrível, era fevereiro,congelamos e passamos fome. Oque mamãe tinha cozinhado para aviagem? Preparou umas galantinascom ossos e umas panquecas.Passávamos muita fome… Sedormíamos, sonhávamos comcomida. Eu sonhava com bisnagasde pão voando acima de mim.

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Chegamos a Stalingrado, masnão era para nós. Ninguém querianos escutar. Então decidimos viajarpara Kuban, como mamãe tinhamandado, para a casa dos amigosdo meu pai. Subimos num tremmercante: eu vestia o capote eficava sentada, Ólia ia debaixo dobanco. Depois trocávamos deroupa e eu ia para debaixo dobanco, Ólia ficava sentada. Osmilitares não criaram caso. Nãotínhamos dinheiro nenhum.

Chegamos a Kuban… Por algummilagre… Achamos os conhecidos.Lá, ficamos sabendo que um corpovoluntário de cossacos estava

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sendo formado. Era o QuartoCorpo da Cavalaria Cossaca, quedepois se tornou um corpo daguarda. Era composto apenas devoluntários. Tinha gente de todasas idades: cossacos que em outrostempos tinham lutado comBudiônni e Vorochílov, e gentejovem. Fomos aceitas. Até hoje nãosei por quê. Talvez porque pedimosmuito. Não tinham para onde nosmandar. Fomos alistadas nomesmo esquadrão. Deram umafarda e um cavalo para cada uma.Era preciso dar de comer e debeber ao cavalo, cuidar dele, fazerde tudo. Ainda bem que tivéramos

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um cavalo na infância, eu estavaacostumada ao animal, tinhapegado gosto. Quando me deramum cavalo, montei e não tivemedo. Não deu tudo certoimediatamente, mas eu não tinhamedo. Era um cavalinho pequeno,com rabo até o chão, mas veloz eobediente, e eu aprendi a montarrápido. Até me exibia… Depois jácavalgava cavalos húngaros eromenos. Me afeiçoei tanto aoscavalos, aprendi tanto que atéagora não consigo passar na frentede um cavalo com indiferença.Dou um abraço nele. Dormíamosembaixo das patas dos cavalos, e

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ele mexia devagarzinho, semesbarrar na pessoa. Um cavalonunca pisa num cadáver, e se apessoa está viva, mas só ferida, elenunca vai embora nem abandona.É um animal muito inteligente.Para um soldado da cavalaria, ocavalo é um amigo. Um amigo fiel.

Meu batismo de guerra… Foiquando nosso corpo participou daresistência a um ataque detanques, perto da aldeia deKuchôvskaia. Depois dessecombate de Kuchôvskaia —tornou-se um ataque famoso doscossacos de Kuban — o corporecebeu a denominação de Corpo

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de Guarda. O combate foiterrível… Para mim e para Ólia foio mais assustador, porque aindatínhamos muito medo. Apesar dena época considerar que já tinhacombatido e sabia o que era, eu…Pois bem… Quando os soldadosda cavalaria atacaram, foi comouma avalanche: as tcherkéski1ondulando, os sabres erguidos, oscavalos bufando; e um cavalo,quando corre, tem tamanhaforça… Pois essa avalanche todafoi de encontro aos tanques, contraa artilharia, parecia um sonho devida após a morte. Era irreal…

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Tinha muitos fascistas, estavam emsuperioridade numérica, vinhamcom os fuzis automáticos em riste,ao lado dos tanques — e eles nãoconseguiram conter essa avalanche,entende?, não conseguiram conter.Largavam os fuzis… Largavam asarmas e saíam correndo… Imagineessa cena…”

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OLGA VASSÍLIEVNA SOBRE AMESMA BATALHA

“Eu estava tratando os feridos.Ao meu lado tinha um fascista,pensei que estava morto e nãoprestei atenção nele, mas só estavaferido… E ele quis me matar…Quando senti alguém meempurrando, me virei para ele.Consegui dar um chute. Não omatei, mas também não fiznenhum curativo, fui embora.Tinha uma ferida na barriga…”

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ZINAÍDA VASSÍLIEVNACONTINUA

“Eu estava acompanhando umferido e de repente vi dois alemãessaindo de detrás de um tanquete.O tanquete tinha sido destruído,mas, pelo visto, eles tinhamconseguido saltar para fora. Foi umsegundo! Se eu não tivesse dadouma rajada a tempo, eles teriamme fuzilado, e ao ferido também.Foi tudo muito inesperado. Depoisdo embate me aproximei deles,estavam deitados com os olhosabertos. Até hoje me lembro

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daqueles olhos… Um deles era tãobonito, um alemão jovem… Davapena, mesmo que fosse fascista,não importa… Esse sentimentonão me abandonou por muitotempo: não queria matar, entende?Tive tanto ódio na minha alma:para que eles vieram para nossaterra? Matar alguém, você mesma,é terrível. Não há outra palavra…É muito terrível. Quando é você…

A batalha terminou. As sótnias2

cossacas começaram a se deslocar,mas não encontrava Ólia. Euestava atrás de todos, indo porúltimo, observando. Já era noite. E

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nada de achar Ólia… Soube queeles — ela e mais algumas outraspessoas — tinham ficado para tráspara recolher os feridos. Eu nãopodia fazer nada, fiquei esperando.Ficava para trás em relação àminha sótnia, esperava, depoisalcançava de novo. Ia chorando:será que minha irmã caiu naprimeira batalha? Onde está? Oque houve com ela? Talvez estejamorrendo em algum lugar, mechamando…

“Ólia… Ólia também estava emprantos… Me encontrou demadrugada… Todos os cossacoschoraram quando viram nosso

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reencontro. Nos penduramos umana outra, não conseguíamos nosseparar. E aí ficou claro que nãoconseguiríamos, que não íamosaguentar ficar juntas. Era melhorse separar. O coração não iaaguentar se uma morresse nafrente da outra. Tomamos essadecisão, eu devia pedir para sertransferida para outro esquadrão.Mas como a gente ia se separar…?Como?

Dali em diante, combatemosseparadas, no começo emesquadrões diferentes, depois atéem divisões diferentes. Só dizíamos‘oi’; se a oportunidade aparecesse,

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confirmávamos que a outra estavaviva… A morte espreitava a cadapasso. Esperava… Lembro comofoi no Ararat… Estávamos naareia. O Ararat fora tomado pelosalemães. Era Natal, eles estavamcomemorando. Entre os nossos,selecionaram um esquadrão e umabateria de quarenta milímetros.Avançamos por volta das cincohoras, caminhamos por toda amadrugada. Ao amanhecerencontramos nossos batedores, quetinham saído antes.

Mais abaixo havia umpovoado… Como um cálice… Osalemães nunca imaginariam que

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conseguiríamos atravessar aquelaareia, por isso tinham erguidopoucas defesas. Atravessamos aretaguarda deles de forma bastantesilenciosa. Corremos para amontanha, imediatamenterendemos os guardas e entramosno povoado como um raio. Osalemães saíram nus, só com osfuzis automáticos nas mãos.Tinham árvores de Natal…Estavam todos bêbados… Em cadapátio havia no mínimo dois ou trêstanques. Tanquetes, veículosblindados… Tudo quanto étecnologia. Nós os abatemos alimesmo, e foi um tiroteio, uma

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barulheira, um pânico… Todoscorrendo… As condições eram taisque todos tinham medo de cair.Estava tudo em chamas… Inclusiveas árvores de Natal…

Eu cuidava de oito feridos…Levei-os para cima, para amontanha… Mas, pelo visto, nóscometemos um erro: não cortamosas conexões. A artilharia alemãabriu fogo sobre nós: de morteirose armas de longo alcance. Logo pusmeus feridos em uma carroçamédica, e eles foram embora…Então, diante dos meus olhos, caiuum projétil nessa charrete e tudovoou pelos ares. Quando vi, só

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tinha sobrado uma pessoa viva. Eos alemães já estavam subindo amontanha… O ferido pedia: ‘Medeixe aqui, irmã… Me deixe aqui,irmã… Eu já estou morrendo…’.Estava com a barriga destruída…As vísceras… Tudo isso… Elemesmo as estava recolhendo eempurrando para dentro…

Pensei que meu cavalo estavabanhado em sangue por causadesse ferido, mas vi que eletambém estava ferido na anca.Gastei um kit de primeiros socorrosinteiro com ele. Eu tinhaconseguido um pouco de açúcar,dei a ele. Já estavam atirando de

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todos os lados, não dava paraentender onde estavam os alemãese onde estavam os nossos. A cadadez metros eu encontrava umferido. Pensei: ‘Tenho que acharuma carroça e recolher todos’.Segui em frente, vi uma ladeira e,embaixo, três estradas: uma paraum lado, uma para outro e umaque ia reto. Fiquei desnorteada…Para onde ir? Segurava a rédeacom firmeza. O cavalo iria para olado que eu determinasse. Mas,não sei, algum tipo de instinto mesoprou isso, em algum lugar eutinha ouvido falar que o cavalofareja a estrada, então, antes de

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chegar a essa bifurcação, soltei arédea, e o cavalo foi numa direçãototalmente diferente da que eumesma teria ido. Andou, andou eandou.

Eu já estava sem forças, paramim dava no mesmo a direção queele tomaria. O que será será. Eleandou e andou, depois ficou maiscontente, ia abanando a cabeça, eaí eu levantei as rédeas, segurei.Inclinei-me e segurei sua feridacom a mão. Ele estava alegre,depois: riririri, relinchou, deve terescutado alguém. Tive receio: e sefosse um alemão? Decidi deixar ocavalo ir antes, mas eu mesma vi

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uns rastros recentes: uma trilhaaberta por pisadas de cavalos epelas rodas de uma tatchanka;3por ali tinham passado no mínimocinquenta pessoas. A uns duzentos,trezentos metros o cavalo deu decara com uma carroça. Dentro delahavia alguns feridos, e nessa horavi o resto do nosso esquadrão.

Mas em nosso socorro jáestavam vindo charretes etatchankas… A ordem era recolhera todos. Recolhíamos gentedebaixo de balas, de bombardeios,recolhemos todos, até o último:tanto feridos quanto mortos. Eu

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também fui na tatchanka. Estavamtodos lá, inclusive aquele ferido nabarriga, levei todos. Só ficaram oscavalos metralhados. O dia já tinhaamanhecido, nós andávamos evíamos uma manada inteira nochão. Cavalos tão bonitos, fortes…O vento agitava suas crinas…”

Toda a parede do cômodogrande em que nos encontramosestá ocupada por ampliações defotografias das irmãs antes daguerra e no front. Em uma aindaestavam na escola, de chapeuzinhoe segurando flores. A foto foratirada duas semanas antes docomeço da guerra. Rostos infantis

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comuns, risonhos, um poucocontrolados pela importância domomento e pelo desejo deparecerem adultas. Em outra jáestão de tcherkéski cossacos, comuma capa de feltro da cavalaria.Fotografadas em 1942. Umadiferença de dois anos, mas o rostojá é diferente, são pessoasdiferentes. Quando estava nofront, Zinaída Ivánovna mandouessa foto para a mãe: naguimnastiorka aparece a primeiraMedalha por Bravura. Em umaoutra, vemos as duas no Dia daVitória… Gravo na memória omovimento do rosto: de traços

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suaves e infantis para um olharfeminino seguro, até um poucorígido, severo. É difícil de acreditarque essa transformação aconteceuem uns poucos meses, anos. Otempo corriqueiro executa essetrabalho de forma mais lenta eimperceptível. O rosto de umapessoa demora para ser moldado.Lentamente a alma vai sedesenhando nele.

Mas a guerra criava rapidamentesua imagem nas pessoas.Desenhava seu retrato.

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OLGA VASSÍLIEVNA

“Ocupamos uma grande aldeia.Tinha umas trinta casas. Haviammontado um hospital alemão ali.No prédio do hospital local. Aprimeira coisa que vi foi quetinham cavado uma grande covaem um pátio, e uma parte dosferidos estava ali, fuzilada — antesde sair, os próprios alemãesfuzilaram seus feridos. Pelo visto,eles pensaram que faríamos isso.Que nos comportaríamos comoeles em relação aos nossos. Sósobrou uma enfermaria, não

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tinham conseguido chegar a ela,talvez tivesse faltado tempo, outalvez a tenham abandonadoporque todos tinham perdido aperna.

Quando entramos naenfermaria, eles nos olhavam comódio: pelo visto, achavam quetínhamos ido para matá-los. Otradutor disse que não matávamosferidos, e sim tratávamos. Entãoum começou a pedir: disse queestavam sem comer fazia três dias eque havia três dias não trocavam oscurativos. Olhei e, de fato, estavaum horror. Fazia tempo que ummédico não os examinava. As

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feridas tinham supurado, oscurativos tinham se encravado nocorpo.”

“Você teve pena deles?”“Não posso chamar o que sentia

na época de pena — pena é algumaforma de compaixão. Isso eu nãosentia. Era diferente… Tivemosum caso… Um soldado tinhabatido em um prisioneiro… Euachava isso inaceitável e intercedi,apesar de entender… Era um gritoda alma… Ele me conhecia, eramais velho que eu e, claro,praguejou. Mas não bateu mais. Sóque me cobriu de palavrões: ‘Vocêesqueceu, filha da p…? Esqueceu

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como eles são, filha da p…?’. Eunão tinha esquecido nada, melembrava daquelas botas… Dequando os alemães puseram diantedas trincheiras uma fileira de botascom pernas cortadas. Era inverno,elas ficaram de pé, feito estacas…Aquelas botas… Era só isso quevíamos de nossos camaradas… Oque sobrara…

Lembro de como os marinheirosvieram ajudar… Muitos delesmorreram nas explosões de minas,tínhamos chegado a um grandecampo minado. Esses marinheirospassaram muito tempo no chão.Expostos ao sol… Os cadáveres

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incharam, pareciam melancias comas camisas listradas de marinheiro.Melancias grandes em um campogrande. Gigantescas.

Não tinha esquecido, não tinhaesquecido de nada. Mas não podiabater em um prisioneiro, nomínimo porque ele estava indefeso.Cada um decidia por si, e isso era oimportante.”

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ZINAÍDA VASSÍLIEVNA

“Numa batalha perto deBudapeste. Era inverno… Euestava arrastando um sargentoferido, comandante de umaguarnição de metralhadoras. Euestava vestida de calça e blusão eusava uma uchanka. Estavaarrastando e vi uma neve preta…Carbonizada… Entendi que erauma cratera profunda causada poralguma explosão, exatamente doque precisava. Desci no buraco eali havia alguém vivo — senti queestava vivo e ouvi uma espécie de

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rangido metálico… Me voltei e vium oficial alemão ferido, estavaferido nas pernas, deitado, eapontando o fuzil para mim.Escapara um pouco de cabelo domeu gorro, eu levava uma bolsa deenfermeira no ombro e nela tinhauma cruz vermelha. Quando mevoltei, e ele viu meu rosto,entendeu que era uma garota e fez:‘Rá!’. Quer dizer, descansoudaquela tensão e largou o fuzil.Ficou indiferente…

E ficamos nós três naqueleburaco — nosso ferido, eu e oalemão. A cratera era pequena,nossos pés ficavam juntos. Eu

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estava coberta do sangue deles,nosso sangue estava se misturando.O alemão tinha uns olhos enormese ficava olhando para mim comesses olhos: o que eu ia fazer?Fascista maldito! Tinha largado ofuzil na hora, entende? Aquelacena… Nosso ferido não entendiao que estava acontecendo, estavaprocurando a pistola… Se esticava,queria enforcar o alemão… E eleme olhando… Até hoje me lembrodaqueles olhos… Estava fazendo ocurativo no nosso, e o outrodeitado em cima do sangue, seesvaindo em sangue; uma de suaspernas estava totalmente destruída.

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Mais um pouco e ele morreria. Euentendia isso muito bem. E, antesde terminar o curativo no nossoferido, rasguei a roupa do outro,do alemão, fiz um curativo e pusum torniquete. Depois voltei parao nosso. O alemão disse: “Gut.Gut”.4 Só repetia essa palavra.Nosso ferido, até perder aconsciência, ficou gritandocomigo… Me ameaçando… Eufazia carinho nele, acalmava.Chegou o veículo médico, euarrastei os dois para fora… E pusno carro. O alemão também.Entende?”

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OLGA VASSÍLIEVNA

“Quando os homens viam umamulher na linha de frente, o rostodeles parecia outro; até com o somde uma voz feminina eles setransformavam. Uma noite, senteiao lado do abrigo e comecei acantar baixinho. Pensava queestavam todos dormindo e queninguém estava escutando, mas demanhã o comandante disse: ‘Nósnão dormimos. Estávamos comtanta saudade de uma voz demulher…’.

Estava fazendo curativos em um

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tanquista… Foi durante umabatalha, com todo aquele estrondo.Ele me perguntou: ‘Moça, comovocê chama?’. Até me fez umelogio. Foi tão estranho, no meiodaquelas explosões, daquelehorror, pronunciar meu nome:Ólia. Sempre tentei andar bemcuidada, severa. E muitas vezes mediziam: ‘Meu Deus, ela esteve naguerra mesmo? É tão limpinha’.Tinha muito medo de, se mematassem, ficar feia. Via muitasmoças mortas… Na lama, naágua… Bem… Desse jeito… Eunão queria morrer assim… Àsvezes eu me escondia de um

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bombardeio e não pensava tantoem não ser morta, e sim emesconder o rosto. Os braços. Achoque todas as nossas meninaspensavam nisso. Os homens riamde nós, achavam isso divertido.Diziam que não estávamospensando na morte, e sim o diabosabe em quê, em alguma coisaidiota. Em bobagens de mulher.”

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ZINAÍDA VASSÍLIEVNA

“Não se pode domar a morte…Não… Acostumar-se a ela…Fomos para as montanhas, paranos afastar dos alemães. Esobraram cinco pacientes comferimentos abdominais graves.Todos estavam feridos na barriga,essas feridas são fatais — um dia,dois, e eles morreriam. Nãoconseguiríamos levá-los, não tinhacomo. Deixaram a mim e a umaoutra enfermeira-instrutora,Oksánotchka, com eles em umgalpão e prometeram: ‘Voltamos

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daqui a dois dias para levar vocês’.Vieram nos buscar três dias depois.Passamos três dias com aquelesferidos. Estavam plenamenteconscientes, eram homens fortes.Não queriam morrer… Nós sótínhamos uns pós, nada mais…Pediam para beber alguma coisa otempo todo, mas eles não podiambeber nada. Uns entendiam,outros praguejavam. Era umpalavrão atrás do outro. Um jogoua caneca, outro jogou a bota…Foram os três piores dias da minhavida. Morreram diante dos nossosolhos, um atrás do outro, e nós sóficamos olhando…

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A primeira condecoração… Meconcederam a Medalha porBravura. Mas não fui recebê-la.Estava ofendida. Que engraçado,juro! Entende por quê? À minhaamiga concederam uma Medalhade Mérito Militar, e para mim umaMedalha por Bravura. Mas ela sótinha estado em uma batalha, e eujá tinha participado da batalha deKuschôvskaia e de outrasoperações. Fiquei ofendida: porum combate ela já recebia pelos“méritos militares”, vários méritos,e eu, só “por bravura”, como se sótivesse dado as caras uma vez. Ocomandante veio e caiu na risada

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quando soube do que se tratava.Me explicou que a Medalha porBravura era a mais importante, eraquase uma ordem.

Perto de Makêievka, em Donets,fui ferida no quadril. Entrou umpequeno estilhaço, como umapedrinha, e ficou ali. Senti osangue, fiz um curativo com o kitde primeiros socorros. Depoiscontinuei correndo, fazendocurativos. Estava com vergonha dedizer a alguém que era umamenina ferida, e justo onde? Nanádega. Na bunda… Aos dezesseisanos dá vergonha dizer isso paraalguém. É incômodo admitir. Bem,

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e aí fiquei correndo, tratando dosferidos, até cair inconsciente porperda de sangue. Enchi as botasinteiras…

Os nossos olharam e, pelo visto,concluíram que eu estava morta.Os auxiliares de enfermagemviriam e recolheriam o corpo. Ocombate seguiu acontecendo. Maisum pouco, e eu teria morrido. Masuns tanquistas estavam fazendo oreconhecimento e notaram quetinha uma moça no campo debatalha. Eu estava sem meu gorro,ele tinha caído. Viram sangueescorrendo por baixo de mim, issosignificava que eu estava viva.

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Levaram-me para o batalhãomédico. De lá, fui levada para ohospital, primeiro para um, depoispara outro. Aaaa… Acabou minhaguerra… Seis meses depois, deibaixa do serviço por motivos desaúde. Estava com dezoito anos…E, saúde, já não tinha nenhuma:três feridas, uma lesão grave. Maseu era uma moça e, claro, escondiaisso: falava das feridas, masescondia a lesão. E ela apareceu denovo. De novo me puseram nohospital. Recebi invalidez… Ah, eeu? Eu rasguei aquelesdocumentos e joguei fora, nem odinheiro quis receber. Precisava

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passar por uma comissão, refazeros testes. Falar de mim: quando foia lesão, quando fui ferida. Paraquê?

O comandante do esquadrão e osubtenente vieram me visitar nohospital. Eu gostava muito docomandante na época da guerra,mas lá ele não reparava em mim.Era um homem bonito, ficavamuito bem de farda. Todo homemfica bem de farda. Já as mulherespareciam o quê? De calças, não nospermitiam fazer tranças, e todasusavam um corte de cabelomasculino. Já no fim da guerra, àsvezes nos deixavam fazer um

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penteado, não cortar o cabelo. Nohospital, meu cabelo cresceu denovo, eu já conseguia fazer umatrança longa, recuperei a saúde, eele… Foi engraçado, juro porDeus! Os dois se apaixonaram pormim… Na hora! Passamos toda aguerra juntos, nunca houve nadado tipo, e ali os dois, o comandantedo esquadrão e o subtenente, mepediram em casamento. Amor!Amor… Como todos queríamosamor! Felicidade!

Isso foi no fim de 1945…Depois da guerra, a vontade era

de esquecer o mais rápido possível.Eu e minha irmã tivemos ajuda do

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nosso pai. Meu pai era um homemsábio. Pegou nossas medalhas,ordens, agradecimentos docomandante, escondeu e disse:

‘A guerra aconteceu, vocêscombateram. Agora esqueçam. Aguerra já foi, agora começa outravida. Calcem sapatos. Vocês sãomoças bonitas. Precisam estudar,precisam se casar.’

Ólia de alguma maneira nãoconseguiu se acostumar logo comessa outra vida, ela era orgulhosa.Não queria tirar o capote desoldado. Lembro de como meu paifalava com minha mãe: ‘É porculpa minha que as meninas foram

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para a guerra tão novas. Esperoque ela não as tenha quebrado…Senão, vão passar a vida todacombatendo’.

Por minhas ordens e medalhas,recebi uns cupons especiais para irao centro de mercadorias militarese comprar algo. Comprei umasbotinhas de borracha, que eram aúltima moda na época, umsobretudo, um vestido, sapatos.Resolvi vender o capote. Fui para afeira… Cheguei com um vestidoclaro de verão… Com uma presilhano cabelo. E o que vi por lá?Rapazes jovens sem braço, semperna… Todos o que lutaram…

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Com ordens, com medalhas… Umdeles tinha as mãos inteiras, vendiacolheres artesanais. Sutiãs,calcinhas. Outro… Sem braços esem pernas… Estava sentado,banhado em lágrimas. Pedia unstrocados… Não tinham nenhumtipo de cadeira de rodas, andavamsobre tábuas feitas por elesmesmos, empurrando com asmãos, os que tinham mãos.Bêbados. Cantavam ‘Esquecido,largado’.5 Esse tipo de cena… Fuiembora, não vendi meu capote.Enquanto morei em Moscou, unscinco anos talvez, não consegui ir à

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feira. Tinha medo de que algumdaqueles mutilados mereconhecesse e gritasse: ‘Por quevocê me carregou para fora dabatalha aquela vez? Para que mesalvou?’. Eu me lembrava de umjovem tenente… As pernas dele…Uma havia sido cortada pelosestilhaços, outra ainda estavapendurada por algo… Estavafazendo curativos nele… Sobbombas… E ele gritava para mim:‘Não prolongue! Termine de mematar! Termine de me matar!Estou ordenando…’. Entende? Eusempre tinha medo de encontraresse tenente…

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Quando eu estava de cama nohospital, tinha um rapaz jovem ebonito a quem todos conheciam. Otanquista Micha… Ninguém sabiao sobrenome dele, todos só sabiamo nome… Teve as duas pernas e obraço direito amputados, só ficoucom o braço esquerdo. Aamputação tinha sido alta, aspernas foram cortadas naarticulação do ilíaco, então nãopodia usar prótese. Era levado emuma cadeira de rodas. Fizeramuma cadeira de rodas altaespecialmente para ele, e todos osque podiam o empurravam. Apopulação civil vinha em peso ao

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hospital, ajudava a cuidar dospacientes, especialmente dos casosgraves como o de Micha.Mulheres, estudantes. Atécrianças. Carregavam Micha nosbraços. Ele não perdia o ânimo.Tinha tanta vontade de viver!Acabara de fazer dezenove anos,ainda não tinha vivido nada. Nãolembro se tinha algum parente,mas ele sabia que não o deixariamna pobreza, acreditava que não oesqueceriam. Embora a guerrativesse passado por nossa terra etudo estivesse em ruínas. Quandolibertávamos as vilas, estavamtodas queimadas. As pessoas só

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tinham a terra. Só a terra.Eu e minha irmã não nos

tornamos médicas, apesar determos sonhado com isso antes daguerra. Podíamos entrar nafaculdade de medicina sem examenenhum, tínhamos direito a issopor sermos ex-combatentes. Masficamos tão saturadas de ver gentesofrendo, morrendo, que nãoconseguíamos mais ver isso. Nemimaginar. Inclusive trinta anosmais tarde eu dissuadi minha filhade fazer medicina, apesar de elaquerer muito. Dezenas de anosdepois. É que fecho os olhos evejo… Era primavera… Estávamos

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andando por algum campo, umpouco depois de um combate,procurando feridos. O campoestava pisoteado. Dei de encontrocom dois mortos: um jovemsoldado nosso e um jovem alemão.Estavam deitados sobre o trigojovem e olhavam para o céu…Nem se notava a morte neles. Sóolhavam para o céu. Até hoje melembro daqueles olhos…”

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OLGA VASSÍLIEVNA

“Vou contar o que me ficou namemória dos últimos dias deguerra. Estávamos viajando e, derepente, escutamos uma músicaque vinha não se sabe de onde.Um violino… Para mim, a guerraacabou nesse dia… Era ummilagre: de repente, uma música.Outros sons… Eu sentia que estavaacordando… Todos nósachávamos que, depois da guerra,depois daquele mar de lágrimas, avida seria maravilhosa. Linda.Depois da Vitória… Depois

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daquele dia… Achávamos quetodas as pessoas seriam boas, queiriam simplesmente amar umas àsoutras. Todos se tornariam irmãose irmãs. Como esperávamos poresse dia…”

1 Tcherkeska: casaco circassiano.2 Sótnia: unidade militar cossaca.3 Carruagem com metralhadora.4 “Bom. Bom”, em alemão no original.5 Canção russa de domínio público,extremamente popular nos anos pós-guerra civil.

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“Não atirávamos”

Havia muita gente na guerra. Emuitas tarefas na guerra…

Muito do trabalho não gira sóem torno da morte, mas tambémda vida. As pessoas não só atiram efuzilam, ativam e desativam minas,bombardeiam e explodem, selançam em combates corpo a corpo

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— lá, elas também lavam roupa,cozinham mingau, assam pão,limpam caldeirões, cuidam doscavalos, consertam carros,aplainam e fecham caixões,distribuem cartas, forram botas,trazem tabaco. Mesmo na guerramais da metade da vida écomposta de afazeres banais. E debobagens também. É insólitopensar assim, não? “Havia pilhasdo nosso trabalho normal demulher”, recorda a auxiliar deenfermagem Aleksandra IóssifovnaMichútina. O exército ia na frente,e atrás dele ia o “segundo front”:lavadeiras, cozinheiras, mecânicas,

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carteiras…Alguma delas escreveu para

mim: “Não éramos heroínas,estávamos nos bastidores”. E o quehavia lá, nos bastidores?

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SOBRE BOTINAS E UM MALDITOPEDAÇO DE MADEIRA

“Estávamos caminhando pelalama, os cavalos afundavam oucaíam mortos. Os caminhõesparavam… Os soldados arrastavamos canhões. Puxavam os carros compão e roupa. Caixas de tabaco. Viuma caixa de tabaco cair na lama e,atrás dela, os palavrões russos maiscabeludos… Protegiam osprojéteis, protegiam o tabaco…

Meu marido me dizia isso,sempre repetia: ‘Olhe bem! Isso éépico! Épico!’.”

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Tatiana ArkádievnaSmeliánskaia,

correspondente de guerra

“Eu vivia feliz antes da guerra…Com meu pai, minha mãe. Meupai foi para a guerra contra aFinlândia. Voltou sem um dedo namão direita, e eu perguntava a ele:‘Papai, para que serve a guerra?’.

Logo começou a guerra, mas euainda não tinha crescido osuficiente. Fomos evacuados deMinsk. Nos levaram para Sarátov.Lá, trabalhei num colcoz. Opresidente do soviete rural

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mandou me chamar:‘Penso o tempo todo em você,

menina.’Fiquei surpresa:‘E o que você pensa, moço?’‘Se não fosse esse maldito

pedaço de madeira. Tudo porcausa desse maldito pedaço demadeira…’

Fiquei parada, sem entendernada. Ele disse:

‘Recebi um papel, precisamos deduas pessoas para ir para o front, eeu não tenho quem mandar. Eumesmo iria, mas tem esse malditopedaço de madeira. Você não podeir, é uma evacuada. Mas que tal ir?

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Tenho duas meninas aqui: você eMaria Útkina.’

Maria era alta assim, a moçaapropriada para isso; eu, nãomuito. Eu era mais ou menos.

‘Você vai?’‘Vão me dar botas?’Andávamos em farrapos: o que

tínhamos conseguido levar!‘Você é tão bonitinha, lhe darão

umas botinas.’Concordei.… Nos mandaram descer do

trem, um moço saudável,bigodudo, veio nos buscar, masninguém foi com ele. Não sei porquê, não perguntei; eu não era

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uma agitadora, nunca tomava adianteira. Não gostamos daquelemoço. Depois veio um oficialbonito. Uma graça! Ele nosconvenceu, e fomos. Chegamos àunidade, e lá estava o bigodudo;ele riu de nós: ‘O que foi,narizinhos arrebitados, nãoqueriam vir comigo?’

O major nos chamou uma poruma e perguntou: ‘O que você sabefazer?’.

Uma respondia: ‘Ordenharvaca’. A outra: ‘Cozinhava batataem casa, ajudava minha mãe’.

Me chamou:‘E você?’

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‘Sei lavar roupa.’‘Estou vendo que é uma boa

menina. Se soubesse cozinhar…’‘Sei sim.’Passava o dia inteiro

cozinhando, e quando chegava denoite tinha que lavar a roupa dossoldados. E montar guarda.Gritavam para mim: ‘Guarda!Guarda!’, e eu não conseguiaresponder, não tinha forças. Nãotinha forças nem para usar avoz…”

Irina NikoláievnaZínina, soldado,

cozinheira

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“Estava no trem médico…Lembro que passei a primeirasemana chorando: primeiro, estavasem minha mãe; segundo, mepuseram para dormir na terceiracama do beliche, onde hoje secolocam as bagagens. Esse era omeu ‘quarto’.”

“Com que idade você foi para ofront?”

“Estava no oitavo ano, mas nãocheguei ao fim. Fugi para o front.Todas as meninas no trem médicotinham a minha idade.”

“E o que vocês faziam lá?”“Cuidávamos dos feridos,

dávamos comida, bebida, dávamos

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a comadre: era esse o nossotrabalho. Uma moça mais velhafazia o turno comigo, no começoela cuidava de mim: ‘Se alguémpedir a comadre, me chame’. Eramferidos em estado grave: uns nãotinham braço, outros não tinhamperna. No primeiro dia eu achamei, depois — ela não podiaficar comigo o dia inteiro e a noiteinteira — fiquei sozinha. Umferido me chamou: ‘Enfermeira, acomadre!’.

Estendi a comadre para ele e vique ele não pegava. Olhei: ele nãotinha mãos. Em algum lugar domeu cérebro passou como um raio

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o que eu tinha que fazer, dealguma forma eu entendi, maspassei alguns minutos parada semsaber. Você entende? Eu precisavaajudar… Mas eu não sabia o queera, nunca tinha visto. Nem nocurso tinham nos ensinado isso…”

Svetlana NikoláievnaLiúbitch, enfermeira

paramilitar

“Eu não atirava… Cozinhavamingau para os soldados. Ganheiuma medalha por isso. Eu nem melembro dela: e eu lutei, por acaso?Cozinhava mingau, a sopa dos

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soldados. Pegava as panelas, astinas. Eram pesadas, pesadas…Lembro que o comandante ficoubravo: ‘Eu queria dar um tironessas tinas. Como você vai terfilhos depois da guerra?’. Uma vezele pegou e atirou em todas astinas. Fomos em algum povoadoprocurar tinas menores.

Os soldados vinham das linhasde frente, ganhavam um descanso.Pobrezinhos, vinham todos sujos,esgotados, as mãos e os pésqueimados de frio. Quem tinhamais medo do frio eram osuzbeques e tadjiques. Na terradeles sempre faz sol e calor, e aqui

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trinta, quarenta graus negativos.Eu não conseguia aquecê-los,alimentá-los. Eles mesmos nãolevavam a colher à boca…”

AleksandraSemiónovna

Massakóvskaia, soldado,cozinheira

* * *

“Eu lavava roupa… Passei toda aguerra com uma bacia. Lavávamosna mão. Os blusões, asguimnastiorki… Traziam a roupa,estava gasta, cheia de piolhos. Os

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aventais brancos, de camuflagem,esses tinham sangue de ponta aponta; não eram mais brancos, esim vermelhos. Ou pretos pelosangue velho. Não dava para lavarno primeiro enxágue — a água saíavermelha ou preta… Eraguimnastiorka sem manga, comum buraco no peito todo, calçassem uma perna. Lavávamos comlágrimas e enxaguávamos comlágrimas.

Montanhas e montanhas deguimnastiorki… Casacosacolchoados… Como me lembro,até hoje me doem as mãos. Noinverno os casacos eram pesados, o

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sangue neles congelava. Váriasvezes ainda sonho com essescasacos … Uma montanhapreta…”

Maria StiepánovnaDetkó, soldado,

lavadeira

“Na guerra havia tantosmilagres… Vou lhe contar…

Ánia Kabúrova estava deitadana grama… Cuidava da nossacomunicação. Ela estava morrendo— tinha levado um tiro no coração.Nessa hora, um bando de grouspassou voando sobre nós. Todas

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ergueram a cabeça para o céu, e elaabriu os olhos. Olhou: ‘Que pena,meninas’. Depois ficou calada esorriu para nós: ‘Meninas, será quevou morrer?’. Nessa hora nossacarteira chegou correndo, nossaKlava, e ela gritava: ‘Não morra!Não morra! Tenho uma carta dasua família para você’… Ánia nãofechava os olhos, estavaesperando…

Nossa Klava sentou ao lado delae abriu o envelope. Era uma cartada mãe: ‘Minha querida, minhafilhinha amada…’. Havia ummédico ao meu lado, ele dizia: ‘Éum milagre. Um milagre! Ela

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continua viva contra todas as leisda medicina…’. Terminaram de lera carta… E só então Ánia fechouos olhos…”

Maria NikoláievnaVassiliévskaia, sargento,

comunicações

“Minha especialidade… Minhaespecialidade eram cortesmasculinos…

Chegou uma garota… Eu nãosabia como cortar o cabelo dela.Tinha uns cabelos exuberantes,ondulados. O comandante passouno abrigo:

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‘Faça um corte de homem.’‘Mas ela é uma mulher.’‘Não, ela é um soldado. Vai

voltar a ser mulher depois daguerra.’

Mesmo assim… Mesmo assim,era só o cabelo crescer umpouquinho que eu ia fazer cachosnos cabelos das meninas. Em vezde bobes, usávamos pinhas…Pinhas secas, de pinheiro… Nemque fosse só um topetinho…”

Vassilissa Iújina,soldado, cabeleireira

“Li poucos livros… Não sei

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contar de um jeito bonito… Nósvestíamos os soldados, lavávamostoda a roupa, passávamos, esse foio nosso heroísmo. A gente ia acavalo, poucas vezes pegamos otrem, os cavalos estavamextenuados, dá para dizer quechegamos a pé até Berlim. Se forpara lembrar, fazíamos tudo o queprecisava: ajudávamos a carregar osferidos, carregamos projéteis emDniepr, porque não dava paralevar por transporte, levamos nosbraços por vários quilômetros.Cavávamos abrigos,pavimentávamos pontes…

Caímos em um cerco, e eu corri,

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atirei, como todo mundo. Se mateiou não matei não sei. Corri e atirei,como todos.

Acho que lembro muito pouco.Mas passei por tanta coisa! Vou melembrar… Venha outra vez…”

Anna ZakhárovnaGorlatch, soldado,

lavadeira

“Minha história é curta…O subtenente perguntou:‘Menina, quantos anos você

tem?’‘Dezesseis, por quê?’‘Porque’, disse, ‘não precisamos

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de menores de idade.’‘Eu faço o que vocês quiserem.

Nem que seja assar pão.’E me aceitaram…

NatáliaMukhametdinovna,

soldado, padeira

“Eu estava inscrita comoescrivã… Me convenceram a irpara o estado-maior assim… Medisseram: sabemos que antes daguerra você trabalhava comofotógrafa, então aqui também vocêserá nossa fotógrafa.

O que lembro bem é que eu não

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queria fotografar a morte. Mortos.Tirava fotos quando os soldadosestavam descansando — fumando,rindo, quando recebiam umarecompensa. Pena que na época eunão tinha filme em cores, apenaspreto e branco. Quandocarregavam a bandeira doregimento… Eu podia ter tiradoumas fotos bonitas daquilo…

Hoje em dia… Os jornalistasvêm me perguntar: ‘Vocêfotografava mortos? Campo debatalha…’. Comecei a procurar…tenho poucas fotografias demorte… Se alguém morria, opessoal pedia: ‘Tem alguma foto

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dele vivo?’. Procurávamos por elevivo… E sorrindo…”

Elena Vilenskaia,sargento, escrivã

“Construíamos… Construíamosferrovias, pontes flutuantes,abrigos. O front estava perto.Cavávamos de noite, para que nãonos notassem.

Derrubávamos árvores. Minhaseção era basicamente de garotas,todas jovenzinhas. Havia algunshomens, que não eram daconstrução. Como carregávamos asárvores? Todas levantávamos e

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carregávamos. Uma seção inteirapara um tronco. As mãos ficavamcom calos de sangue. Os ombrostambém…”

Zoia LukiánovnaVerjbítskaia,

comandante de umaseção do batalhão de

construtores

“Terminei o magistério…Quando recebi o diploma, a guerrajá tinha começado. Por causa daguerra, não nos encaminharampara um trabalho, nos mandarampara casa. Cheguei em casa, e

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alguns dias depois me chamaramdo centro de alistamento. Minhamãe não me deixou ir, claro, euainda era jovem, tinha só dezoitoanos: ‘Vou mandar você para acasa do meu irmão, digo que nãoestá aqui’. Eu disse: ‘Mas eu sou doKomsomol’. Nos reuniram nocentro de alistamento, isso eaquilo, disseram que precisavam demulheres para as padarias do front.

Era um trabalho muito duro.Tínhamos oito fornos de ferro.Chegávamos em um povoado oucidade destruída e os montávamos.Fornos prontos, precisávamos delenha, uns vinte ou trinta baldes de

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água, cinco sacos de farinha.Éramos meninas de dezoito anos ecarregávamos sacos de farinha desetenta quilos. Agarrávamos ossacos em duas e levávamos. Oucolocávamos quarenta bisnagas depão na bandeja. Eu, por exemplo,não conseguia levantar. Dia e noitenos fornos, dia e noite. Amassavauma bacia de massa e jáprecisavam de outras. No meio dobombardeio, continuávamosassando pão…”

Maria SemiónovnaKulakova, soldado,

padeira

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“Passei os quatro anos da guerrasobre rodas… Deslocava-mesegundo as indicações:‘Administração de Schúkin’,‘Administração de Kojuro’. Nabase recebíamos tabaco, cigarros,pederneiras — tudo que não podefaltar para um soldado na linha defrente — e pegávamos a estrada.Para alguns lugares ia de carro,para outros de carroça, e comfrequência ia a pé com um ou doissoldados. Íamos levando as coisasnas costas. Não havia como chegarna trincheira de carroça, osalemães escutavam os rangidos. Iatudo com a gente. No nosso

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próprio lombo, querida…”

Elena NikíforovnaIévskaia, soldado,

abastecedora

“No começo da guerra… Eutinha vinte anos… Morava nacidade de Múrom, na região deVladímir. Em outubro de 1941,nós, membros do Komsomol,fomos mandados para a construçãoda rodovia Múrom-Górki-Kulebaki. Quando voltamos dafrente de trabalho, fomosconvocados.

Fui mandada para a escola de

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comunicações em Górki, para umcurso de funcionária dos correios.Quando terminei o curso, fui parao Exército em operação, para aSexagésima Divisão de Fuzileiros.Servi como oficial do correiomilitar. Vi com meus olhos comoas pessoas choravam e beijavam oenvelope ao receber uma carta nalinha de frente. Muitos tinhamparentes que morreram ou quemoravam em territórios ocupadospelo inimigo. Esses não podiamescrever. Então escrevíamos cartasda Desconhecida: ‘Queridosoldado, quem está lhe escrevendoé uma Moça Desconhecida. Como

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está combatendo o inimigo?Quando você volta com a Vitória?’.Passávamos noites escrevendo…Na guerra, escrevi centenas decartas como essa…”

Maria AlekséievnaRemniova, segundo-

subtenente, funcionáriado correio

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SOBRE O SABÃO ESPECIAL K EUMA CELA DE PRISÃO

“Casei no dia 1o de maio… Em22 de junho, a guerra começou. Osprimeiros aviões alemãescomeçaram a atacar. Eu trabalhavaem um orfanato de criançasespanholas que tinham sidotrazidas para Kíev. Isso em 1937…Guerra Civil na Espanha… Nãosabíamos o que fazer, e as criançasespanholas começaram a cavartrincheiras no pátio. Elas já sabiamde tudo… As crianças forammandadas para a retaguarda, e eu

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fui para a região de Penza. Recebiuma tarefa: organizar um curso deenfermeiras. No fim de 1941 eumesma dava as provas do curso,porque todos os médicos tinhamido para o front. Entreguei osdocumentos e também pedi para irao front. Fomos mandados paraperto de Stalingrado, para umhospital de campanha do Exército.Era a mais velha entre as meninas.Minha colega Sônia Udrúgova —somos amigas até hoje — tinhadezesseis anos na época, só tinhacompletado o nono ano, e depoisfoi para o curso de enfermeira.Estávamos havia três dias no front,

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e vejo Sônia na floresta, chorando.Me aproximei:

‘Sônietchka, por que estáchorando?’

‘Como você não entende? Faztrês dias que não vejo a mamãe.’

Agora eu a lembro dessahistória, e ela morre de rir.

Na batalha de Kursk fuitransferida do hospital para odestacamento de lavanderia decampanha, como comissáriapolítica. As lavadeiras eramcontratadas. Viajávamos emcarroças cheias de bacias, tinas,samovares para esquentar a água;em cima da carroça iam sentadas

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as meninas com saias vermelhas,verdes, azuis, cinza. Todos riam:‘Lá vai a tropa das lavadeiras!’. Euera chamada de ‘comissária delavanderia’. Depois minhasmeninas começaram a se vestir deuma forma mais ajeitada, como sediz, arrumaram umas roupasmelhores.

Fazíamos um trabalho pesado.Não havia nem sombra demáquina de lavar. Era na mão…Tudo feito por mãos demulheres… Chegávamos, nosdavam alguma cabana ou umabrigo na terra. Ali, lavávamos aroupa e, antes de pôr para secar,

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encharcávamos com o sabãoespecial K, para matar os piolhos.Havia também DDT, mas esse nãoadiantava; usávamos o sabão K,muito fedido, tinha um cheirohorrível. Ali, no mesmo recinto emque lavávamos, tambémcolocávamos a roupa para secar edormíamos. Recebíamos vinte, 25gramas de sabão para lavar a roupade um soldado. E ela estava pretacomo terra. Por causa das lavagens,do peso e do esforço, muitasmeninas tiveram hérnias, e o sabãoK provocava eczemas nas mãos: asunhas caíam, achávamos que elasnunca mais cresceriam de novo.

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Mesmo assim, descansávamos unsdois dias, e era preciso lavar denovo.

As meninas me obedeciam…Uma vez, chegamos em um

lugar onde estavam vários pilotos,uma unidade inteira. Imagine, elesnos viram, com roupas sujas,puídas, e disseram com desprezo:‘Quem diria, lavadeiras…’. Minhasmeninas quase choraram:

‘Comissária, veja isso…’‘Deixe para lá, vamos nos

vingar.’E combinamos o que fazer. À

noite, minhas meninas vestiram oque tinham de melhor e foram

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para o gramado. Uma das nossastocava sanfona, e o resto dançava.O acordo era não dançar comnenhum piloto. Eles seaproximavam, mas elas não iamcom nenhum. Passaram a noitetoda dançando umas com asoutras. Por fim, eles imploraram:‘Um idiota falou aquilo, agoravocês estão ofendidas com todos’.

Em geral não se devia punircontratados com a prisão militar,mas o que você faz quando temcem meninas juntas? Às onze haviao toque de recolher, e não tinhaconversa. Elas tentavam escapulir— meninas são assim mesmo. Eu

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as mandava para a cela. Uma vez,vieram uns superiores, de umaunidade vizinha, e eu estava comduas presas.

‘Mas como pode? A senhoramandou contratadas para a cela?’,me perguntaram.

Respondi tranquilamente:‘Camarada coronel, pode

escrever um relatório para oscomandantes. É o senhor quemsabe. Mas eu preciso impordisciplina. E tenho aqui umaordem exemplar.’

Depois disso eles foram embora.A disciplina era rigorosa. Uma

vez encontrei um capitão que

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estava de passagem em frente àminha casa, enquanto eu saía. Eleaté parou:

‘Meu Deus! Está saindo daí,sabe quem mora nessa casa?’

‘Sei.’‘Quem mora aqui é a comissária

política. Sabe como ela é brava?’Disse que nunca tinha ouvido

falar disso.‘Meu Deus! Ela nunca sorri, está

sempre zangada.’‘E você não quer conhecê-la?’‘Meu Deus! Não!’Bem, aí eu confessei:‘Então muito prazer, eu sou a

comissária política!’

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‘Não, não pode ser! Mecontaram a respeito dela…’

Eu protegia minhas meninas.Tínhamos a Vália, tão bonita. Umavez, fui chamada para o estado-maior por dez dias. Quando voltei,me disseram que Vália tinhachegado tarde todos os dias, estavacom algum capitão. Estivera, mas játinha passado, caso encerrado.Dois meses depois, fiquei sabendoque Vália estava grávida. Chamei-a: ‘Vália, como isso pôdeacontecer? Para onde você vai? Suamadrasta (ela não tinha mãe, tinhamadrasta) mora em um abrigo’. Elachorava: ‘A culpa é sua; se a

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senhora não tivesse saído, nadadisso teria acontecido’. Elas metratavam como uma mãe, umairmã mais velha.

Ela tinha um sobretudo leve, ecomo já estava fazendo frio, dei aela o meu capote. E minha queridaVália foi embora…

Era 8 de março de 1945.Organizamos uma festa. Um chá.Arranjamos alguns bombons.Minhas meninas foram para fora ede repente viram dois alemãesvindo da floresta. Estavamarrastando os fuzis atrás de si…Feridos… Minhas meninas osrodearam. Bem, eu, como

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comissária política, claro, escrevium relatório informando queaquele dia, 8 de março, aslavadeiras tinham feito prisioneirosdois alemães.

No dia seguinte tivemos reuniãode comandantes, e a primeiradeclaração do chefe da seçãopolítica foi:

‘Bem, camaradas, vou deixá-losalegres: a guerra termina em breve.Ontem, as lavadeiras do 21o

Destacamento de Lavanderia deCampanha fizeram doisprisioneiros alemães.’

Todos aplaudiram.

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Enquanto a guerra estava emcurso não nos condecoravam, masquando terminou me disseram:‘Você vai condecorar duas pessoas’.Fiquei indignada. Pedi a palavra efiz uma apresentação dizendo queera comissária política dodestacamento de lavanderia, faleisobre como era difícil o trabalhodas lavadeiras, que muitas delastinham hérnias, eczemas nas mãose assim por diante, que erammoças jovens e trabalhavam maisdo que máquinas, feito umrebocador. Perguntaram-me: ‘Podepreparar um material paraamanhã? Vamos condecorar mais

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meninas’. Eu e o comandante dodestacamento preparamos a lista ànoite. Muitas meninas receberammedalhas por Bravura, de MéritoMilitar, e uma lavadeira foicondecorada com a Ordem daEstrela Vermelha. Era a melhorlavadeira, não descansava nem saíade perto da tina: às vezes jáestavam todas sem forças, caindo, eela continuava lavando. Era umamulher idosa, toda a família tinhamorrido.

Quando tive que mandar asmeninas para casa, quis dar algo aelas. Eram todas da Bielorrússia eda Ucrânia, e lá estava tudo

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destruído, arruinado. Como deixarque fossem embora de mãosvazias? Estávamos em uma aldeiaalemã, e nela havia uma oficina decostura. Fui olhar: as máquinasestavam inteiras, para minhafelicidade. E então, para cadamenina que ia embora, demos umpresente. Fiquei tão contente, tãofeliz. Era tudo o que eu podia fazerpelas minhas meninas.

Todas queriam ir para casa, mastinham medo de voltar. Ninguémsabia quem estava nosesperando…”

Valentina

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KuzmínitchnaBrátchikova-

Borchévskaia, tenente,comissária política do

destacamento delavanderia de campanha

“Meu pai… Meu querido pai eracomunista, um santo homem.Nunca na vida encontrei umapessoa melhor do que ele. Ele meeducava: ‘Quem seria eu se nãofosse o poder soviético? Umpobretão. Trabalharia comolavrador para um kulak. O podersoviético me deu tudo, me deu

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uma formação. Me torneiengenheiro, construo pontes. Devotudo isso ao poder da nossa terra’.

Eu amava o poder soviético.Amava Stálin. E Vorochílov.Amava todos os nossos guias. Foi oque meu pai me ensinou.

A guerra ia acontecendo, e eu iacrescendo. À noite, eu e meu paicantávamos A Internacional e AGuerra Sagrada. Meu paiacompanhava no acordeão.Quando completei dezoito anos,ele foi comigo ao centro dealistamento…

Do Exército, escrevi para casacontando que estava construindo e

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vigiando pontes. Que felicidade foiisso para nossa família! Meu paitinha nos ensinado a adorarpontes, desde a infância. Quandoeu via uma ponte destruída —bombardeada ou explodida —,sentia por ela como se fosse um servivo, e não um artefato estratégico.Eu chorava… No caminho,encontrava centenas de pontesdestruídas, grandes e pequenas,era a primeira coisa que destruíamna guerra. Era o alvo número um.Quando passávamos na frente deuma ruína, eu sempre pensava:‘Quantos anos serão necessáriospara reconstruir tudo isso?’ A

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guerra mata o tempo, o preciosotempo humano. Eu me lembrobem que meu pai passava váriosanos construindo cada ponte.Passava noites fazendo plantas, aténos fins de semana. O que eu maislamentava na guerra era o tempo.O tempo do meu pai…

Meu pai se foi há muito tempo,mas continuo a amá-lo. Nãoacredito quando falam que pessoascomo ele eram burras e cegas poracreditar em Stálin. Por temerStálin. Por acreditar nos ideais deLênin. Elas pensavam da mesmaforma que eles. Acredite em mim,eram pessoas boas e honestas; elas

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não acreditavam em Lênin ou emStálin, mas no ideal comunista. Nosocialismo com um rosto humano,como depois chamariam. Nafelicidade para todos. Para cadaum. Sonhadores e idealistas, sim —mas cegos não. Nunca vouconcordar. De forma alguma! Nametade da guerra apareceram poraqui ótimos tanques e aviões, boasarmas, mas mesmo assim, sem fénunca teríamos derrotado uminimigo tão terrível como oExército de Hitler — poderoso,disciplinado, um Exército quesubjugou toda a Europa. Nãoteríamos quebrado sua espinha

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dorsal. Nossa arma principal era afé, e não o medo, dou minhapalavra de comunista (durante aguerra eu entrei para o Partido eaté hoje sou comunista). Nãotenho vergonha da minhacarteirinha do Partido e não arenego. Minha fé não mudoudesde 1941…”

Tamara LukiánovnaTórop, soldado,engenheira civil

“As tropas alemãs pararam pertode Vorônej… Levaram muitotempo para tomar a cidade.

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Bombardeavam e bombardeavam.Os aviões cruzavam o céu da nossaaldeia, Moscovita. Eu ainda nãotinha visto o inimigo, só os aviões.Mas logo fiquei sabendo o que eraa guerra…

Comunicaram no nosso hospitalque um trem tinha sidobombardeado bem perto deVorônej; corremos para o local evimos… O que vimos? Só carnemoída. Não consigo pronunciar…Ai ai ai! O primeiro que se refez dosusto foi nosso médico-chefe. Davagritos sonoros: ‘Macas!’. Eu era amais nova, tinha acabado decompletar dezesseis anos, e todos

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cuidavam para que eu nãodesmaiasse. Andávamos pelostrilhos, nos metíamos nos vagões.Não havia a quem levar nas macas:os vagões estavam em chamas, enão se escutavam nem gemidos,nem gritos. Não tinha ninguéminteiro. Eu apertava meu coração,meus olhos se fechavam de tantomedo. Quando voltamos para ohospital, cada um caiu em umlugar: um pôs a cabeça sobre amesa, outro numa cadeira, e todosdormiram.

Terminei meu turno e fui paracasa. Cheguei toda chorosa, deiteina cama e, logo que fechei os

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olhos, vi tudo de novo… Minhamãe voltou do trabalho, e o tioMítia veio nos visitar. Escutei a vozda minha mãe:

‘Não sei o que vai ser da Lena.Veja só como ficou o rosto deladesde que foi trabalhar no hospital.Não parece mais a mesma, ficacalada, não conversa com ninguéme grita enquanto dorme. Ondeforam parar o sorriso e as risadas?Você mesmo sabe como ela eraalegre. Agora, nunca fazbrincadeiras.’

Escutava minha mãe, eescorriam lágrimas.

Quando, em 1943, Vorônej foi

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libertada, fui para a guardaparamilitar. Lá só havia mulheres.Todas tinham entre dezessete evinte anos. Jovens, bonitas, nuncavi tantas garotas bonitas juntas. Aprimeira que conheci foi MarússiaPrókhorova, era amiga de TâniaFiódorova. Eram do mesmovilarejo. Tânia era séria, gostava delimpeza, ordem, e Marússiaadorava cantar, dançar. Cantavacanções travessas. Mas, acima detudo, gostava de se enfeitar,sentava diante do espelho e ficavahoras. Tânia brigava com ela:‘Beleza não vai levar a nada, émelhor passar sua farda e fazer a

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cama’. Também tinha PachaLitárvina, uma garota muitoousada. Era amiga de ChuraBatíscheva. Esta era tímida emodesta, a mais tranquila de todasnós. E Liússia Likhatchiovaadorava fazer cachos, depois iadireto pegar o violão. Ela ia dormircom o violão e acordava com oviolão. A mais velha de todas eraPolina Nevérova, o marido tinhamorrido no front, e ela estavasempre triste.

Andávamos todas de fardamilitar. Quando minha mãe meviu de farda pela primeira vez,ficou pálida:

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‘Você decidiu entrar para oExército?’

Tranquilizei-a:‘Não, mãe. Já disse que estou

vigiando pontes.’Ela começou a chorar:‘Logo logo a guerra acaba. E

você vai tirar esse capoteimediatamente.’

Eu também achava isso.Dois dias depois da notícia de

que a guerra tinha terminado,tivemos uma reunião no KrásniUgolok.1 Nela, o chefe desegurança, camarada Naúmov, sepronunciou.

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‘Meus caros soldados’, disse, ‘aguerra acabou. Mas ontem recebiuma ordem: precisa-se de soldadosna estrada ocidental para cuidar dasegurança militarizada.’

Alguém entre nós gritou:‘Mas lá estão os partidários de

Bandera!’2Naúmov ficou em silêncio,

depois disse:‘Sim, meninas, os partidários de

Bandera estão lá. Estão lutandocontra o Exército Vermelho. Masordens são ordens, têm que sercumpridas. Quem quiser ir, peçoque mande um requerimento ao

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chefe da guarda. Os voluntáriosirão.’

Voltamos para a caserna, e cadauma ficou deitada na sua tarimba.Fez-se um silêncio completo.Ninguém queria ir para longe danossa terra natal. E ninguémqueria morrer depois da guerra.No dia seguinte, fomos chamadasde novo para uma reunião. Mesentei atrás da mesa da chefia,estava coberta por uma toalhavermelha. Fiquei pensando que eraa última vez que sentava àquelamesa.

O chefe da guarda proferiu umdiscurso:

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‘Bábina, sabia que você seria aprimeira a ir. E todas vocês,meninas, parabéns, não tiverammedo. A guerra acabou, podiamvoltar para casa, mas vão defendera pátria.’

Fomos embora dois dias depois.Deram-nos um trem mercante;havia feno no chão, e cheirava acapim.

Eu nunca tinha ouvido falar deuma cidade chamada Stri, agoraera onde servíamos. Não gostei dacidade, era pequena, horrível, tododia tocava uma música e aconteciaum enterro: ora um policial, oraum comunista, ora um membro do

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Komsomol. De novo estávamosvendo a morte. Fiz amizade comGália Koróbkina. Ela morreu lá. Ecom mais uma menina… Tambémlevou uma facada à noite. E ali euparei por completo de fazerbrincadeiras e sorrir…”

Elena IvánovnaBábina, soldado da

segurança militarizada

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SOBRE ROLAMENTOS FUNDIDOS EPALAVRÕES RUSSOS

“Puxei tudo do meu pai… Soufilha dele…

Meu pai, Miron Lenkov,percorreu o caminho de rapazinhoanalfabeto a comandante depelotão da guerra civil. Era umverdadeiro comunista. Quandomorreu, eu e minha mãe ficamosem Leningrado, devo tudo o quetenho de melhor àquela cidade.Minha paixão eram os livros.Soluçava lendo os romances deLídia Tchárskaia, adorava ler

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Turguêniev. Amava poesia…No verão de 1941… No fim de

junho fomos para a casa da minhaavó, perto do rio Don. A guerranos surpreendeu na estrada.Imediatamente mensageiros acavalo começaram a correr pelasestepes — a um passo ligeiro —com notificações de convocação.As mulheres cossacas cantavam,bebiam e choravamdesconsoladamente quando sedespediam dos cossacos que iampara a guerra. Fui para o centro dealistamento local da stanitsa3 deBokóvskaia. Foram curtos e

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grossos:‘Não mandamos crianças para o

front. Você é do Komsomol?Maravilha. Ajude o colcoz.’

Revolvíamos o trigo com a pápara que ele não apodrecesse nossilos. Depois, colhíamos asverduras. Os calos da minha mãoficaram duros, os lábios rachados,o rosto queimado pelo sol daestepe. A única diferença quehavia entre mim e as meninas docampo era que eu sabia umainfinidade de versos e podia recitá-los de cor por todo o longocaminho do campo para casa.

A guerra estava se aproximando.

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No dia 17 de outubro, os fascistasocuparam Taganrog. As pessoasiam embora na evacuação. Minhaavó ficou, mandou que eu e minhairmã fôssemos: ‘Vocês são jovens.Salvem-se’. Até a estaçãoOblívskaia eram cinco dias decaminhada. Terminamos jogandoas sandálias fora, chegamosdescalças à stanitsa. O chefe daestação avisou a todos: ‘Nãoesperem por vagões fechados,subam nas plataformas abertas.Forneceremos uma locomotiva avapor e enviaremos vocês paraStalingrado’. Tivemos sorte:pegamos uma plataforma com

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aveia. Mergulhamos os pésdescalços nos grãos, nos cobrimoscom o lenço… Nos apertamos umacontra a outra e cochilamos…Nosso pão tinha acabado haviamuito tempo, o mel também. Nosúltimos dias, as cossacas nos davamcomida. Ficávamos com vergonhade pegar, não tínhamos com o quepagar, mas elas insistiam: ‘Comam,coitadinhas. A coisa está feia paratodo mundo, um tem que ajudar ooutro’. Eu jurava para mim mesmaque nunca esqueceria aquelabondade das pessoas. Nunca! Pornada! E não esqueci.

De Stalingrado pegamos um

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barco a vapor, depois de novo umtrem, e às duas da madrugadachegamos à estação Medvêditskoe.Uma onda humana nos jogou paraa estação. Nós mesmas tínhamosnos transformado em dois bastõesde gelo, não conseguíamos nosmover, ficávamos de pé, nosapoiando uma na outra para nãocair. Para não se partir empedacinhos, como uma vez, diantedos meus olhos, vi acontecer comum sapo tirado de um frasco deoxigênio líquido e jogado no chão.Felizmente alguém que estavaviajando conosco se lembrou de

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nós. Chegou uma brítchka4 cheiade gente, nos amarraram na partede trás. Nos vestiram com casacosacolchoados. Disseram: ‘Andem,senão vão congelar. E não vão seaquecer. Não podemos levar vocêsna carroça’. No começo caíamos,mas continuávamos andando,depois até corríamos. Foi assim pordezesseis quilômetros…

Povoado de Frank, colcozPrimeiro de Maio. O presidente docolcoz ficou muito feliz quandosoube que eu era de Leningrado etinha terminado o nono ano:

‘Muito bem. Você vai me ajudar

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aqui. Vai ser contadora.’Por um momento até me

alegrei. Mas então vi um cartazpendurado atrás do presidente quedizia: ‘Meninas, ao volante!’.

‘Não vou ficar sentada em umescritório’, respondi ao presidente.‘Se me ensinarem, posso dirigir umtrator.’

Os tratores estavam cobertos deneve. Nós os desenterrávamos edesmontávamos, queimando asmãos no metal, deixando nelepedacinhos de pele. Os parafusos,enferrujados e apertados com todaa força, pareciam estar soldados.Quando não conseguíamos movê-

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los no sentido anti-horário,tentávamos girar no sentidohorário. Mas que azar… Justonesse momento… Como se tivessebrotado da terra, surgia o chefe debrigada Ivan Ivánovitch Nikítin, oúnico tratorista de verdade e nossoinstrutor. Ele arrancava os cabelose não conseguia segurar ospalavrões. Ah, sua…! Filha deuma… Praguejava como quemsolta um gemido. Mesmo assim,um dia comecei a chorar…

No campo, uma vez saí demarcha a ré: na caixa de câmbio domeu STZ, a maioria dasengrenagens estava “desdentada”.

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A conta era simples: depois devinte quilômetros, algum tratorficaria inutilizado, e entãoinstalariam a caixa de câmbio deleno meu. Foi o que aconteceu. SaraGozenbuk, tratorista como eu, nãopercebeu que estava saindo águado radiador, estragou o motor. Ah,sua...! Filha de uma…

Antes da guerra não tinhaaprendido nem a andar debicicleta, e estava ali, num trator.Passávamos muito tempoaquecendo os motores com fogoaberto — contra todas as regras.Aprendi até o que era um reajuste.E como ligar o trator depois desse

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procedimento: não pode girar, nãopode ir de lado… Os materiais delubrificação e combustível eramdados em quantidade de temposde guerra. Por cada gota você pagacom a cabeça, e também por cadarolamento fundido. Ah, sua...!Filha de uma…

Naquele dia… Antes de sairpara o campo eu abri a torneirinhado cárter para conferir o óleo. Saiuuma espécie de soro. Gritei para ochefe de brigada que precisávamospôr óleo novo; ele se aproximou,pôs uma gota na mão, friccionou,cheirou por algum motivo e disse:‘Não tenha medo! Ainda dá para

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trabalhar um dia’. Eu briguei: ‘Nãodá, o senhor mesmo disse…’. Elesubiu nas tamancas: ‘Maldita horaem que falei — agora vocês não medeixam em paz. Bonequinhas dacidade! Estudo demais. Ah, sua...!Filha de uma… Vá lá, sua v…’. Eufui. Um calor, o trator soltavafumaça e não dava para respirar,mas tudo isso era bobagem: comoestavam os rolamentos? Achei quehavia algo batendo. Parava, eparecia que não. Aumentava acarga e ouvia bater! E, de repente,logo abaixo do assento, escutei:tuc, tuc, tuc!

Desliguei o motor, corri para ver

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a janelinha: dois rolamentos debiela estavam completamentefundidos! Me deixei cair no chão,abracei a roda e, pela segunda vezna guerra, comecei a chorar. Aculpa era minha: eu tinha vistocomo estava o óleo! Me assusteicom os palavrões. Era melhor terpraguejado de volta, mas não, essaporcaria de educação.

Escutei algum barulho e mevoltei. E veja só! O presidente docolcoz, o diretor da MTS,5 o chefedo departamento político e, claro,nosso chefe de brigada. Tudo porcausa dele!

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Ele estacou e não conseguiu semexer. Entendeu tudo. Ficoucalado. Ah, sua...! Filha de uma…

O diretor da MTS tambémentendeu tudo:

‘Quantos?’‘Dois, respondi.’Segundo as leis de tempos de

guerra, eu deveria ir a julgamento.Artigo: negligência e sabotagem.

O chefe do departamentopolítico se voltou para o chefe debrigada:

‘Você não cuida das suasmeninas? Como vou mandar essacriança para julgamento?’

De alguma forma se resolveu.

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Com conversa. Mas o chefe debrigada parou de falar palavrõesdiante de mim. Eu, por outro lado,aprendi. Ah, sua...! Filha deuma… Fazia um escândalodaqueles…

Depois, aconteceu uma coisaboa: encontramos nossa mãe. Elaveio, e voltamos a ser uma família.Um dia, ela disse de repente:

‘Acho que você precisa ir para aescola.’

Não entendi imediatamente:‘Para onde?’‘Quem vai terminar o décimo

ano por você?’Depois de tudo o que eu vivera,

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era estranho me ver de novo emuma carteira de escola, resolverproblemas, escrever redações equeimar as pestanas para decorarverbos alemães em vez decombater os fascistas! E issoquando o inimigo estava entrandorumo ao Volga!

Eu precisava esperar só mais umpouco: em quatro meses fariadezessete anos. Não era dezoito,mas era dezessete. E aí ninguémme mandaria para casa! Ninguém!No comitê regional correu tudotranquilamente, mas no centro dealistamento precisei lutar. Porcausa da minha idade e da minha

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visão. Mas a primeira ajudou aresolver a segunda… Quando aquestão era a idade, xinguei ofuncionário do centro dealistamento de burocrata… Eanunciei que estava entrando emgreve de fome… Me sentei ao ladodele e passei dois dias sem sair dolugar, afastando o pedaço de pão ea água quente que ele me dava.Ameacei, disse que ia morrer defome, mas que antes escreveria emum bilhete quem era o culpadopela minha morte. Não acho quetenha se assustado e acreditado,mas mesmo assim me mandoupara a comissão médica. Tudo isso

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se passou na mesma sala. Bem aolado. E quando a médica, depoisde verificar minha visão, afirmouque não havia o que fazer, ele riu edisse que eu tinha passado fome àtoa. Ficou com pena de mim. Masrespondi que não estava vendonada por causa da fome. Fui até ajanela, cheguei mais perto daquelecartaz de visão infeliz e caí nochoro. Chorei até que… Choreipor muito tempo… Até decorar aslinhas de baixo. Depois enxugueias lágrimas e disse que estavapronta para passar pela comissãode novo. E passei.

Em 10 de novembro de 1942,

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segundo as ordens, nosabastecemos de produtos para dezdias, subimos (éramos umas 25meninas) na caçamba de umcaminhão velho e cantamos‘Ordem dada’,6 trocando aspalavras ‘para a guerra civil’ por‘defender nosso país’. DeKamíchin, onde fizemos ojuramento, fomos marchando pelamargem esquerda do Volga atéKapústin Iar. Ali estava instalado oregimento de reserva. E ali, nomeio de milhares de homens, aténos perdemos. Vinham os‘compradores’ de diferentes

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unidades e escolhiam os reforços.Faziam questão de não reparar emnós. Sempre passavam reto.

No caminho, fiz amizade comÁnnuchka Rakchenko e ÁssiaBássina. Nenhuma das duas tinhaqualquer especialidade, e euconsiderava que a minha não eramilitar. E por isso, não importavapara que chamassem, nós trêsdávamos três passos para a frente,supondo que ao chegar no localassimilaríamos rápido qualquerespecialidade. Mas nos evitavam.

Quando porém saímos à frenteem resposta ao comando:‘Motoristas, tratoristas, mecânicos

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— três passos à frente!’, o‘comprador’, um jovem primeiro-tenente, não conseguiu passar reto.Eu não dei três passos, mas cinco, eele parou:

‘Por que só escolhem homens?Eu também sou tratorista!’

Ele se surpreendeu:‘Não pode ser. Certo: qual a

ordem de trabalho do trator?’‘Um, três, quatro, dois.’‘Já fundiu os rolamentos?’Admiti honestamente que tinha

fundido por completo duas bielas.‘Certo, vou levar. Pela

honestidade.’ Acenou com acabeça e seguiu em frente.

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Minhas amigas vieram comigo,ao meu lado. O primeiro-tenenteaparentou estar de acordo. Ah,sua...! Filha de uma…

O comandante da unidade,quando recebeu os reforços,perguntou ao primeiro-tenente:

‘Para que você trouxe essasmeninas?’

Ele ficou desconcertado erespondeu que tinha ficado compena: sabe-se lá onde iríamosparar, nos matariam comoperdizes.

O comandante suspirou:‘Certo. Uma para a cozinha,

outra para o depósito, a que tiver

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mais tempo de escola para oestado-maior, como escrivã.’Calou-se um pouco, depois disse:‘Que pena, são bonitas’.

A que tinha ‘mais tempo deescola’ era eu, mas trabalhar comoescrivã? E o que nossa beleza tinhaa ver com isso? Esqueci dadisciplina militar e me exaltei alimesmo:

‘Somos voluntárias! Viemosdefender a pátria! Só vamos se forpara as subdivisões militares…’

Por algum motivo o coronelcedeu imediatamente:

‘Se é para ser militares, vão sermilitares. Duas para a brigada

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móvel, nas máquinas, e essa línguasolta vai para a montagem demotores.’

Assim, comecei a servir na 44a

Oficina de Campanha de VeículosBlindados. Éramos uma fábricasobre rodas. Sobre os veículos,chamados de brigadas móveis,ficavam as máquinas: fresadoras,alesadoras, polidores, tornos; acentral elétrica, o preenchimento, avulcanização. Duas pessoastrabalhavam nas máquinas. Cadauma ficava doze horas, sem umúnico minuto de descanso. Noalmoço, no jantar e no café da

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manhã, o companheiro substituía.Se chegava a vez de alguém sair empatrulha, o outro trabalhava 24horas. Trabalhávamos na neve, nalama. Sob bombardeio. E ninguémmais dizia que éramos bonitas. Mastinham pena das garotas bonitas naguerra, tinham muita pena. Isso éverdade. Tinham pena ao enterrá-las… Dava pena escrever umanotificação de morte para a mãe…Ê, sua...! Filha de uma…

Agora, sonho sempre… Sei quetenho sonhos, mas raramente melembro. Só que fica uma sensaçãode que eu estive em algum lugar…E voltei… Num sonho, em um

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segundo cabem coisas que exigemanos na vida real. Às vezesconfundo o que é sonho e o que érealidade. Acho que isso aconteceuem Zimóvniki: logo que me deiteipara dormir umas duas horas,começou um bombardeio. Ê, sua...!Filha de uma… Preferia que mematassem a estragar uma alegriadessas, duas horas de sono. Emalgum lugar por perto senti umaforte explosão. A casa balançou.Mas eu adormeci mesmo assim…

Eu sentia uma ausência demedo, esse sentimento não existia.Dou minha palavra. Só depois dosataques mais furiosos um dente

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cariado me incomodava. E porpouco tempo. Eu me considerariamuito corajosa até hoje, se nãotivesse ido a especialistas algunsanos depois da guerra por causa deumas dores constantes,insuportáveis e absolutamenteincompreensíveis nos pontos maisvariados do meu corpo. Umneuropatologista experiente, depoisde perguntar quantos anos eutinha, ficou admirado:

‘Aos 24 anos seu sistemanervoso vegetativo estácompletamente destruído! Comovai viver?’

Respondi que ia viver bem. Em

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primeiro lugar, estava viva! Comoeu sonhava em sobreviver! Sim,fiquei viva, mas alguns mesesdepois da vida pós-guerra minhasjuntas incharam, perdi osmovimentos do braço direito, quedoía terrivelmente, minha visãopiorou ainda mais, descobri quetinha um rim e o fígado deslocadose, como logo se revelou, meusistema nervoso vegetativo estavacompletamente destruído. Passeitoda a guerra sonhando com o queestudaria. E a universidade setornou para mim um segundoStalingrado. Terminei um anoantes, porque não tinha forças.

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Passei quatro anos com o mesmocapote — inverno, primavera,outono — e a mesmaguimnastiorka, desbotada até ficarbranca… Ê, sua...! Filha deuma…”

Antonina MirônovnaLenkova, mecânica de

uma oficina decampanha de veículos

blindados

1 Literalmente, “cantinho vermelho”.Seção de atividade de conscientizaçãopolítica nas repartições públicas daUnião Soviética.

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2 Stepan Bandera (1909-59), líder domovimento nacionalista ucraniano,lutava contra a União Soviética pelaindependência.3 Povoado cossaco.4 Brítchka: carruagem comprida, dequatro rodas, muito usada porviajantes, pois em seu interior cabiammesas, camas e outros móveis.5 Sigla para Machinno-TráktornaiaStantsia [Estação de Máquinas eTratores], empresa estatal soviéticaencarregada das máquinas agrícolasdos colcozes.6 Canção dos irmãos Dmitri e DaniilPokrass, com letra de MikhailIssakóvski, também conhecida como“Proschanie” [Despedida].

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“Eram necessáriossoldados… Mas tambémqueríamos ser bonitas…”

Passados alguns anos, já anoteicentenas de relatos… Nasprateleiras de livros tenhoseparadas centenas de fitas cassetee milhares de páginas impressas.

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Escuto e leio com atenção…Cada vez mais, o mundo da

guerra revela para mim um ladoinesperado. Antes, eu não me faziaessas perguntas: como era possível,por exemplo, passar anosdormindo em trincheirasinacabadas, ou ao lado de umafogueira na terra nua, usar botas ecapote e, por fim, não rir, nãodançar? Não usar vestidos deverão? Esquecer dos sapatos e dasflores… E elas tinham dezoito,vinte anos! Estava acostumada apensar que não há lugar para avida feminina na guerra. Ali, ela éimpossível, quase proibida. Mas eu

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estava enganada… Bem depressa,já na época dos primeirosencontros, notei: não importa deque as mulheres falassem, atémesmo de morte, sempre selembravam (sim!) da beleza, queaparecia como uma parteindestrutível de sua existência: “Elaestava tão bonita no caixão…Parecia uma noiva…” (A.Strótseva, soldado de infantaria),ou: “Iriam me entregar umamedalha, e minha guimnastiorkaestava velha. Costurei para mimuma pequena gola de gaze. Erabranca, de qualquer forma… Meachei tão bonita naquele momento.

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Não tínhamos espelho, eu nãoconseguia me ver. Bombardearamtudo o que tínhamos…” (N.Iermakova, comunicações).Contavam alegremente e comgosto seus ingênuos truques demeninas, seus pequenos segredos,sinais invisíveis, como se, nocotidiano “masculino” da guerra enos assuntos “masculinos” daguerra, quisessem ainda assimcontinuar sendo elas mesmas. Semtrair sua natureza. A memóriadelas surpreendentemente (játinham se passado quarenta anos)guardava uma grande quantidadede coisas banais do cotidiano na

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guerra. Detalhes, nuances, cores esons. No mundo delas, cotidiano eexistência se uniam, e o fluxo daexistência era valioso em si mesmo,elas se lembravam da guerra comouma época da vida. Não tanto dasações, mas da vida, e mais de umavez observei como nas conversasdelas o pequeno vencia o grande eaté a história. “Pena que só fuibonita na guerra… Queimei nelameus melhores anos. Passaram.Depois eu envelheci muitorápido…” (Anna Galai, atiradorade fuzil).

Depois de muitos anos dedistanciamento, alguns fatos de

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repente se ampliavam, outrosdiminuíam. Ampliava-se também oque era humano, íntimo, e issopassou a ser, para mim, o maiscurioso: até para elas mesmas era omais interessante e próximo. Ohumano vencia o desumano,simplesmente porque era humano.“Não tenha medo de minhaslágrimas. Não fique com pena.Mesmo que me seja doloroso, sougrata a você por ter me lembradoda minha juventude…” (K. S.Tikhonóvitch, sargento, operadorade artilharia antiaérea).

Eu também não conhecia essaguerra. Nem suspeitava de sua

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existência…

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SOBRE BOTAS MASCULINAS ECHAPÉUS FEMININOS

“Vivíamos dentro da terra…Como toupeiras… Masguardávamos alguns bibelôs.Trazíamos um galho na primaverae botávamos ali. Nos alegrava. E nodia seguinte podíamos não estarmais aqui — era nisso quepensávamos sozinhas. Egravávamos, gravávamos namemória… Uma menina recebeude casa um vestidinho de lã.Ficamos com inveja, mesmo quenão fosse permitido usar nossos

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próprios vestidos. E o subtenente,um homem, resmungava: ‘Melhorseria ter mandado um lençol. Seriamais útil’. Não tínhamos lençóisnem travesseiro. Dormíamos sobregalhos e palhas amontoados. Maseu tinha uns brincos escondidos; ànoite eu os colocava e dormia comeles…

Quando sofri minha primeiralesão, parei de escutar e de falar.Disse para mim mesma: se nãorecuperar a voz, me jogo debaixode um trem. Eu cantava tão bem, ede repente estava sem voz. Mas avoz voltou.

Fiquei feliz, pus os brincos. Fui

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para meu turno gritando dealegria:

‘Camarada primeiro-tenente,guarda às ordens…’

‘O que é isso?’‘Como, o quê?’‘Fora daqui!’‘O que foi?’‘Tire esses brincos

imediatamente! Que soldado éesse?’

O primeiro-tenente era muitobonito. Todas as nossas meninaseram um pouco apaixonadas porele. Dizia para nós que durante aguerra precisavam de soldados, eapenas soldados. Eram necessários

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soldados… Mas tambémqueríamos ser bonitas… Durantetoda a guerra tive medo de quemutilassem minha perna. Eu tinhapernas bonitas. Para um homem, edaí? Não é tão terrível, mesmoperder uma perna. Ele será umherói do mesmo jeito. Um noivo!Mas se uma mulher é mutilada,seu destino está decidido. Destinode mulher…”

Maria NikoláievnaSchiólokova, sargento,

comandante dodepartamento de

comunicação

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* * *

“Passei a guerra toda sorrindo…Achava que devia sorrir o máximopossível, porque uma mulher deveiluminar. Antes de ser mandadapara o front, um velho professornos ensinava: ‘Vocês devem dizer acada paciente que o ama. O seuremédio mais potente é o amor. Oamor preserva, dá forças parasobreviver’. O ferido estavachorando de tanta dor, e você diziapara ele: ‘Ah, meu queridinho. Ah,meu benzinho…’. ‘Você me ama,irmãzinha?’ (Eles chamavam todasnós, jovens, de irmãzinhas.) ‘Claro,

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amo. Só se recupere logo.’ Elespodiam se ofender, xingar, masnós, nunca. Por uma palavragrosseira éramos punidas até com aprisão.

Era difícil… Claro, era difícil…Até subir no veículo de saiaquando só havia homens em volta.Os caminhões eram altos, unsveículos médicos especiais. Vá seenfiar lá no alto! Tente…”

Vera VladímirovnaCheváldicheva, primeiro-

tenente, cirurgiã

“Deram-nos vagões… De

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mercadoria… Éramos dozemeninas, o resto eram todoshomens. Andávamos uns dez ouquinze quilômetros, e o tremparava. Uns dez ou quinzequilômetros, e de novo parávamosno desvio. Sem água e sembanheiro… Entende?

Numa parada os homensfizeram uma fogueira e estavamsacudindo as roupas para tirar ospiolhos, secavam-se. E nós, o quefaríamos? Corremos para algumlugar escondido, lá tiramos aroupa. Eu tinha um suéter de tricô,que estava com piolho em cadamilímetro, em cada ponto. Dava

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enjoo só de olhar. Há piolhos detodos os tipos, de cabelo, de roupa,de pelos pubianos… Tive todos…Mas eu não ia fazer isso junto comos homens. Não ia queimar ospiolhos junto com eles. Tinhavergonha. Joguei o suéter fora efiquei só de vestido. Em algumaestação, uma mulher desconhecidame deu um casaquinho e unssapatos velhos.

Viajamos por muito tempo, edepois ainda passamos um bomperíodo andando a pé. Fazia umfrio terrível. Enquanto andava, eusegurava um espelhinho o tempotodo e conferia: será que congelei?

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À noite, vi que minhas bochechastinham congelado. Era tão boba…Tinha escutado que, quando asbochechas congelam, ficambrancas. E as minhas estavamvermelhas, vermelhas. Pensei:‘Então que elas fiquem congeladaspara sempre’. Mas no dia seguinteficaram pretas…”

Nadiéjda VassílievnaAlekséieva, soldado,

telegrafista

“Tínhamos muitas meninasbonitas… Fomos a uma casa debanhos, e ali trabalhava uma

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cabeleireira. Olhamos umas para asoutras, e todas tingimos assobrancelhas. O comandante foiduro conosco: ‘Vocês vieram paracombater ou para ir a um baile?’.Passamos a noite toda chorando eesfregando as sobrancelhas paratentar tirar a tinta. De manhã, eleandava e repetia a cada uma:‘Preciso de soldados, não dedamas. Damas não sobrevivem àguerra’. Era um comandante muitosevero. Antes da guerra, eraprofessor de matemática…”

Anastassia PietróvnaChéleg, terceiro-sargento,

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operadora de aeróstato

“Sinto que vivi duas vidas: umade homem e outra de mulher…

Quando fui para a Escola deGuerra, imediatamente me vi sobdisciplina militar: nos exercícios,nas filas, no quartel, tudo seguia oregulamento. Não existia nenhumacondescendência por sermosgarotas. Sempre escutávamos:‘Quietas!’, ‘Olha a conversa!’. Ànoite, tínhamos vontade de sentar,bordar um pouco… Lembrar decoisas de mulher… Não permitiamde jeito nenhum. Mas tínhamos

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ficado sem casa, sem os afazeresdomésticos, e parecia que nãoéramos nós mesmas. Só tínhamosuma hora de descanso: ficávamosno quarto de Lênin,* escrevíamoscartas, podíamos ficar à vontade,conversar. Mas sem risos nemgritos altos: isso não erapermitido.”

“Podiam cantar canções?”“Não, era proibido.”“Por que era proibido?”“Não permitiam. Em formação,

você cantava se recebesse ocomando. Se ordenavam: ‘Cante’.”

“De outra forma era proibido?”“Era. Ia contra o regulamento.”

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“Foi difícil se acostumar?”“Acho que a isso eu nunca me

acostumei. Mal tinha tempo deadormecer e de repente ouvia:‘Acordar!’. Era como se o vento nostirasse da cama. Eu começava a mevestir, mas as mulheres têm maisroupas do que os homens, e orauma coisa voava da mão, ora outra.Finalmente, com o cinto na mão,corríamos para o vestiário. Semparar, agarrava o capote e voavapara a sala de armas. Lá, enfiava acapa na pá, passava pelo cinto,enfiava a cartucheira por ele,abotoava de qualquer jeito.Agarrava o fuzil, fechava a trava

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enquanto andava e literalmenterolávamos do quarto andar parabaixo pela escada. Na fila nosarrumávamos. E, para tudo isso,davam uns poucos minutos.

E depois, no front… Usavaumas botas três números maior,elas viravam, entrava pó. A donada casa uma vez trouxe dois ovos:‘Leve para a viagem, está tãomagrinha, logo logo você sequebra’. E eu, bem quietinha paraque ela não visse, quebrei os doisovos — eram pequenos — e limpeiminha bota. Claro, queria comer,mas meu lado feminino venceu:queria ficar bonita. Você não sabe

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como o capote rala, como tudo issoé pesado, como tudo isso émasculino, o cinto, tudo. Eudetestava em particular como ocapote ralava no pescoço, e aindapor cima aquelas botas. Mudavamo passo, mudavam tudo…

Lembro que ficávamos tristes.Passávamos o tempo inteirotristes…”

Stanislava PietróvnaVólkova, segundo-

subtenente, comandantedo pelotão de sapadores

“Não era tão fácil nos

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transformar em soldados… Nãoera tão simples…

Recebemos as fardas. Osubtenente nos pôs em formação:

‘Alinhem as botas.’Nos alinhávamos. Os bicos dos

sapatos estavam alinhados, masnós mesmas ficávamos para trásporque as botas eram número 40,41. Ele dizia:

‘Os bicos, os bicos!’E depois:‘Cadetes, alinhar o peito da

quarta pessoa!’Claro que isso não dava certo

conosco, e ele gritava a plenospulmões:

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‘O que vocês puseram no bolsoda guimnastiorka?’

Ríamos.‘Parem de rir’, gritava o

subtenente.Para aprendermos de forma

clara e correta a saudação, nosobrigava a fazê-la para tudo: decadeiras a cartazes pendurados.Ah, ele passou por uns mausbocados conosco.

Em uma cidade, nos levaram emformação para uma casa debanhos. Os homens foram para aseção masculina, e nós para afeminina. As mulheres queestavam lá gritaram, alguém se

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cobriu: ‘Estão vindo uns soldados!’.Não dava para distinguir se éramosmeninas ou meninos: usávamoscabelo curto, uniforme militar.Outra vez, entramos em umbanheiro, e as mulheres chamaramum policial. Dissemos para ele:

‘E aonde devíamos ir?’Ele então gritou para as

mulheres:‘Mas são meninas!’‘Que meninas que nada, são

soldados…’”

Maria NikoláievnaStepánova, major, chefe

de comunicações no

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batalhão do corpo defuzileiros

“Só me lembro da estrada. Aestrada… Uma hora íamos para afrente, na outra íamos para trás…

Quando chegamos à SegundaFrente bielorrussa, queriam deixar-nos no estado-maior da divisão;diziam: ‘Vocês são mulheres, o quevão fazer na linha de frente?’. Enós: ‘Não, somos francoatiradoras,mandem-nos para onde forpreciso’. Então eles nos disseram:‘Vamos mandá-las para o mesmopelotão. O coronel ali é um bom

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homem, cuida das mulheres’. Oscomandantes podiam ser muitodiferentes. Foi o que nos disseram.

Esse coronel nos recebeu com asseguintes palavras: ‘Vejam,meninas, vocês vieram lutar,lutem, não façam outra coisa. Estãoentre homens, não há mulheres.Vai saber como diabos vou explicaro que é isso aqui. É a guerra,garotas…’. Ele entendia que aindaéramos pirralhas. Na primeira vez,fomos atacados por aviões. Eu meagachei e cobri a cabeça com osbraços, depois também senti penapelos meus braços. Ainda nãoestava pronta para morrer.

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Lembro que na Alemanha…Ah, foi engraçado! Em umpovoado alemão nos alojaram poruma noite em um casteloresidencial. Cheio de quartos queeram uns salões. E que salões! Osarmários estavam repletos deroupas bonitas. Cada meninaescolheu um vestido. Eu gostei deum amarelinho e de um roupão:não tenho palavras para dizercomo era bonito esse roupão:longo, leve… Uma pluma! Já erahora de dormir, estávamosterrivelmente cansadas. Vestimosessas roupas e fomos deitar.Pusemos o que nos agradava e

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pegamos no sono ali mesmo. Eudormi com o vestido e o roupãopor cima…

Outra vez, em uma chapelariaabandonada, cada uma escolheuum chapéu e, para ficar com elesao menos um pouco, dormimossentadas a noite toda. Levantamosde manhã… Olhamos mais umavez no espelho… Tiramos oschapéus, vestimos de novo nossasguimnastiorki e calças. Nãolevávamos nada conosco. Naestrada, até uma agulha pesa. Vocêenfia uma colher no cano da bota epronto…”

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Bella IssáakovnaEpstein, sargento,

francoatiradora

“Os homens… Eles são assim…Nem sempre nos entendiam…

Mas adorávamos o nossocoronel, Ptítsin. Nós ochamávamos de ‘pai’. Ele não eracomo os outros, entendia nossaalma feminina. Perto de Moscou, eisso quando estávamos recuando,na época mais difícil, ele nos disse:

‘Meninas, estamos próximos deMoscou. Vou trazer umcabeleireiro para vocês. Tinjam as

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sobrancelhas, os cílios, façamcachos. Mesmo que não sejapermitido, quero que vocês fiquembonitas. A guerra é longa… Nãovai acabar tão cedo…’

E trouxe uma cabeleireira paranós. Fizemos cachos, tingimos.Ficamos tão felizes…”

Zinaída ProkófievnaGomariova, telegrafista

“Corremos sobre o lago Ládogacongelado… Era um ataque. Alimesmo nos vimos sob um fortebombardeio. Estávamos cercadaspor água; uma pessoa era ferida e

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já ia direto para o fundo do lago.Eu estava me arrastando, fazendocurativos, me aproximei de umsoldado; ele estava com as pernasdestruídas, perdendo aconsciência, mas me empurrou ecomeçou a procurar algo na sacola.Estava procurando a ração deemergência. Queria pelo menoscomer algo antes de morrer…Tínhamos recebido provisõesquando partimos para o gelo. Euqueria cuidar dele, mas o rapazficava procurando algo na sacola enão tinha jeito: os homens têmmuita dificuldade de passar fome.A fome, para eles, é pior do que a

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morte…Sobre mim mesma, veja o que

me ficou na memória… Nocomeço eu tinha medo da morte…O espanto e a curiosidadeconviviam dentro de mim. Depois,nem um nem outra: só cansaço.Estava o tempo todo no limite dasminhas forças. Além do limite. Atéo fim, só um medo restou: ficarfeia depois da morte. Um medo demulher… Só não queria que umprojétil me fizesse em pedaços…Eu sei como é isso… Eu mesmarecolhi…”

Sófia Konstantínovna

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Dubniakova,enfermeira-instrutora

“Chovia e chovia… Corríamospela lama, as pessoas caíam nessalama. Feridos, mortos. Ninguémquer morrer nesse pântano. Numpântano negro. Como uma moçajovem ia ficar jogada ali… Emoutra ocasião, isso já foi naBielorrússia… Nos bosques deOrcha, havia ali uns arbustosmiúdos de cereja. Campainhasazuis. Todo o campo estava cheiode flores azuis. Podia morrernaquelas flores! Deitar ali… Eu era

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bobinha, tinha dezessete anos…Era assim que imaginava a morte…

Achava que morrer era comovoar para algum lugar. Uma noitefalamos sobre a morte, mas foi sóuma vez. Tínhamos medo deproferir essa palavra…”

Liubov IvánovnaOsmolóvskaia, soldado,

batedora

* * *

“Nosso regimento era formadoapenas por mulheres… Fomos parao front em maio de 1942…

Deram-nos um avião Po-2. Era

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pequeno, de baixa velocidade.Voava sempre com pouca altura,várias vezes em voos rasantes. Logoacima do chão! Antes da guerra,era neles que os jovens aprendiama voar nos aeroclubes, masninguém podia imaginar que seriausado para fins bélicos. Era umavião com estrutura de madeira,todo feito de compensado,revestido de percal. Na verdade, degaze. Bastava uma queda para elepegar fogo: e se reduzia a cinzasainda no ar, antes de atingir ochão. Como um fósforo. A únicapeça de metal sólido era o própriomotor M-11. Bem depois, pouco

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antes do fim da guerra, nosentregaram paraquedas einstalaram uma metralhadora nacabine do navegador, mas antesdisso não havia nenhuma arma:eram quatro compartimentos debomba sob as asas inferiores epronto. Agora nos chamariam decamicases, talvez fôssemos mesmo.Sim! Éramos! Mas dávamos maisvalor à vitória do que às nossasvidas. Vitória!

Você me pergunta comoaguentávamos? Vou responder…

Antes de me aposentar, fiqueidoente de tanto pensar nisso: comovou parar de trabalhar? Para que

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me formei numa segundafaculdade depois dos cinquentaanos? Me tornei historiadora.Tinha sido geóloga a vida toda.Mas um bom geólogo está sempreem campo, e eu já não tinha forças.Veio um médico, fez umcardiograma e me perguntou:

‘Quando a senhora sofreu uminfarto?’

‘Que infarto?’‘Seu coração está cheio de

cicatrizes.’Tudo indica que essas cicatrizes

eram da época da guerra. Você seposicionava sobre o alvo e tremiainteira. Todo o corpo era tomado

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por um tremor, porque embaixohavia fogo: os caças atiravam, oscanhões antiaéreos disparavam…Algumas moças precisaram sair doregimento, não aguentavam.Voávamos basicamente à noite.Por um tempo tentaram nosmandar para as missões diurnas,mas logo desistiram. Podiamalcançar nossos Po-2 com tiros defuzil…

Fazíamos doze voos por noite.Vi o famoso ás da aviaçãoPokríchin quando estava voltandode um combate aéreo. Era umhomem robusto, não tinha vintenem 23 anos, como nós: enquanto

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abasteciam o avião, o técnico tinhatempo de tirar a camisa dele etorcer. Saiu tanta água que eracomo se ele tivesse tomado chuva.Agora fica fácil você imaginar oque acontecia conosco.Aterrissávamos e nãoconseguíamos nem sair da cabine,tinham que nos puxar de lá. Nãoconseguíamos nem carregar oporta-mapas, íamos arrastandopelo chão.

Mas o trabalho de nossasmeninas armeiras! Precisavamcarregar na mão quatro bombas —são quatrocentos quilos — para amáquina. E era assim a noite toda

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— um avião decolava, outropousava. O organismo sereorganiza a tal ponto que, portoda a guerra, não éramosmulheres. Não tínhamos coisas demulher… Menstruação… Bem,você entende… E depois da guerranem todas conseguiram ter filhos.

Todas nós fumávamos. Eutambém fumava, dava a sensaçãode que você se acalmava umpouco. A gente voltava com ocorpo tremendo, e quando fumavase acalmava. Usávamos jaquetas decouro, calças, guimnastiorki, e, noinverno, mais uma jaqueta depeles. A contragosto, até no andar

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e nos movimentos apareceu algode masculino. Quando a guerraacabou, costuraram vestidos cáquipara nós. De repente, sentimos queéramos garotas…”

AleksandraSemiónovna Popova,

tenente da guarda,navegadora

* * *

“Há pouco tempo recebi umamedalha… Da Cruz Vermelha… AMedalha de Ouro InternacionalFlorence Nightingale. Todos meparabenizavam e se admiravam:

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‘Como você conseguiu levar 147feridos? Nas fotos de guerra pareceuma menina tão pequena’. Sim,talvez tenha carregado duzentos,quem ia contar? Isso nem mepassava pela cabeça, nãoentendíamos isso. A batalha estavaacontecendo, gente se esvaindo emsangue, e eu lá ia sentar e anotar?Nunca esperava acabar o ataque,eu me arrastava na hora da batalhae recolhia os feridos. Se houvessealguém ferido por fragmento, e eufosse até ele umas duas horasdepois, já não haveria o que fazer,a pessoa teria perdido todo osangue.

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Fui ferida três vezes e tive trêslesões. Na guerra, cada umsonhava com uma coisa: um comvoltar para casa, outro com chegara Berlim, e eu só pensava em viveraté o dia do meu aniversário, emcompletar dezoito anos. Por algummotivo eu tinha medo de morrerantes, de não viver nem até osdezoito. Usava boina, calças,sempre esfarrapadas porque vocêestava sempre de joelhos, e aindapor cima sob o peso dos feridos.Não conseguia acreditar que emalgum momento seria possível melevantar e andar por aí, em vez deme arrastar. Era um sonho! Veio

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algum comandante de divisão, meviu e perguntou: ‘E esseadolescente aqui? Por que vocês oseguram aqui? Tinham quemandá-lo para a escola’.

Lembro que faltavambandagens… Havia umas feridasde metralhadora tão terríveis queusávamos um pacote inteiro emuma só. Uma vez rasguei toda aminha roupa de baixo e pedi aopessoal: ‘Tirem as cuecas, ascamisetas de baixo, tenho gentemorrendo’. Eles tiraram e rasgaramem pedaços. Eu não tinhavergonha deles, eram como irmãos,eu vivia entre eles como um dos

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rapazes. Quando estávamoscaminhando, um grupo de trêsdava as mãos, e o do meio dormiauma ou duas horas. Depoistrocávamos.

Cheguei a Berlim. Escrevi noReichstag: ‘Eu, Sófia Kuntsiévitch,vim aqui para matar a guerra’.

Quando vejo uma vala comum,fico de joelhos na frente dela. Nafrente de cada vala comum… Sóde joelhos…”

Sófia AdámovnaKuntsiévitch,

subtenente, enfermeira-instrutora de uma

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companhia de fuzileiros

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SOBRE A SOPRANO FEMININA E ASSUPERSTIÇÕES DE MARUJO

“Eu escutava… Palavras…Veneno… Palavras são comopedras… Dizem que esse era umdesejo masculino: ir lutar. Poracaso uma mulher é capaz dematar?! São umas anormais, nãosão mulheres verdadeiras…

Não! Mil vezes não! Não, eraum desejo humano. A guerraestava acontecendo, e eu levavauma vida normal. Vida degarota… Mas minha vizinharecebeu uma carta dizendo que o

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marido tinha sido ferido, estava nohospital. Eu pensava: ‘Ele estáferido, quem vai no lugar dele?’.Chegou um sem braço, quem iriano lugar dele? O outro voltou semperna, quem iria no lugar dele? Euescrevia, pedia, implorava para seraceita no Exército. Éramoseducadas assim, não deviaacontecer nada no nosso país semque participássemos. Fomosensinadas a amá-lo. A admirá-lo.Se a guerra tinha começado, eranossa obrigação ir ajudar. Seprecisavam de enfermeiras, iríamoscomo enfermeiras. Se precisavamde soldados da artilharia antiaérea,

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teríamos que ir como soldados daartilharia antiaérea.

Se queríamos parecer homensno front? No começo queríamosmuito: cortávamos o cabelo rente,mudávamos até o jeito decaminhar. Mas depois não, quenada! Depois queríamos tanto nosmaquiar, nem comíamos o açúcar:guardávamos para fixar o topete.Ficávamos felizes quandoconseguíamos uma panela de águapara lavar o cabelo. Se passávamosmuito tempo andando,procurávamos umas ervas suaves.Cortávamos, e os pés… Ah, vocêentende, lavávamos com as ervas…

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Nós, garotas, temos nossasparticularidades… O Exército nãotinha pensado nisso… Nossos pésficavam verdes… Certo, se osubtenente era um homem maisvelho, entendia tudo, não tiravados sacos a roupa de baixo extra,mas se era jovem, certeza absolutade que descartaria o que sobrasse.Mas será que algo podia sobrarpara meninas que às vezesprecisavam trocar de roupa duasvezes por dia? Arrancávamos asmangas da camisa de baixo, maseram só duas. Tínhamos apenasquatro mangas…”

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Klara SemiónovnaTikhonóvitch, primeiro-sargento, operadora de

artilharia antiaérea

“Antes da guerra eu adoravatudo que era militar…Masculino… Consultei a Escola deAviação, pedi que me enviassem asregras de admissão. Eu ficava bemde farda militar. Amava a ordem, aprecisão, as palavras marteladasnas ordens de comando. Meresponderam da escola: ‘Primeiro,termine o décimo ano’.

Claro, quando a guerra

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começou, eu, com essa disposição,não podia ficar em casa. Mas nãome aceitaram no front. De formaalguma, porque eu tinha dezesseisanos. O comandante do centro dealistamento dizia: ‘O que o inimigovai pensar de nós se, mal começadaa guerra, aceitamos umas criançasdessas no front, meninas menoresde idade?’.

‘É preciso combater o inimigo.’‘Vão destruir o inimigo sem

você.’Eu tentava convencê-lo de que

era alta, de que ninguém me dariadezesseis anos, de que com certezaachariam que eu tinha mais. Me

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postava no gabinete e saía: ‘Escrevaque tenho dezoito, e nãodezesseis’. ‘Isso você diz agora,quero ver lembrar depois.’

Depois da guerra eu já nãoqueria, na verdade já nãoconseguia ter nenhumaespecialização militar. Queria tiraro quanto antes toda roupa decamuflagem… E até hoje tenhoaversão a calças, não as visto nemquando vou para a floresta colhercogumelos, frutas silvestres. Querovestir roupa comum, feminina…”

Klara VassílievnaGontcharova, soldado,

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operadora de artilhariaantiaérea

“Sentimos a guerraimediatamente… Terminamos aescola preparatória e no mesmo diaapareceram os ‘compradores’, queera como chamavam quem vinhadas unidades, durante areorganização, para buscar gentenova. Eram sempre homens, davapara sentir claramente que tinhampena de nós. Nós os encarávamosde um jeito, eles de outro: saíamosà frente nas filas, ansiosas para quenos aceitassem, para que nos

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notassem, ansiosas para que nospusessem à prova, e eles estavamcansados, nos olhavam e sabiampara onde estavam nos mandando.Entendiam tudo.

… Nosso regimento eramasculino, tinha ao todo 22mulheres. Era o 870o Regimentode Bombardeio de Longo Alcance.Levamos de casa duas ou trêsmudas de roupa de baixo, nãopodíamos juntar muita coisa.Fomos bombardeados, ficamos sócom a roupa do corpo, com o queconseguimos levar. Os homensforam para o posto de trânsito e lá

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receberam roupa nova. E para nós,nada. Deram-nos uns trapos,fizemos calcinhas com eles,costuramos sutiãs. O comandanteficou sabendo e nos deu umabronca.

Passaram seis meses… E, porcausa da sobrecarga, deixamos deser mulheres… Se transformou, anossa… Perdemos nosso ciclobiológico… Dá para entender? Foiterrível. Era terrível pensar quevocê nunca mais vai ser mulher…”

Maria NésterovnaKuzmenko, primeiro-

sargento, armeira

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* * *

“Buscávamos… Não queríamosque dissessem de nós: ‘Ah, essasmulheres!’. E nos esforçávamosmais do que os homens, aindaprecisávamos demonstrar que nãoéramos piores do que os homens. Epor muito tempo tiveram umaatitude arrogante, condescendenteconosco: ‘Esse bando de mulher vailutar muito…’.

E como ser homem? Éimpossível ser homem. Nossospensamentos são uma coisa, masnossa natureza é outra. Nossabiologia…

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Estávamos andando… Umasduzentas meninas, e atrás de nósuns duzentos homens. Fazia muitocalor. Marcha em acelerado: trintaquilômetros. Trinta! Estávamosandando e, atrás de nós,começaram a aparecer manchasvermelhas na areia… Um rastrovermelho… Bem, era a… Nossa…Como você vai esconder isso? Ossoldados vinham atrás e fingiamque não estavam notando nada…Não olhavam para os pés… Ascalças secavam no corpo e ficavamfeito vidro. Cortavam. Faziamferidas, o tempo todo se sentiacheiro de sangue. Não nos davam

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nada… Ficávamos de guarda paraver quando os soldadospenduravam as camisas nosarbustos. Surrupiávamos umasduas. Depois eles já adivinhavam,riam: ‘Subtenente, dê-nos outracamisa de baixo. As meninaspegaram as nossas’. Não haviaalgodão e ataduras suficientes paraos feridos… Para outros usos,então… Roupa de baixo femininasó apareceu uns dois anos depois,talvez. Usávamos cuecas ecamisetas masculinas. Bem,estávamos andando… De botas!Os pés também estavam fritos.Estávamos andando. Seguimos até

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uma passagem, e lá as balsasestavam nos esperando. Chegamosà passagem e começaram a nosbombardear. Um bombardeioterrível; os homens correram parase esconder, cada um num lugar.Nos chamavam… Mas nós nãoescutávamos as bombas, nãoestávamos nem aí para as bombas,fomos rápido para o rio. Para aágua… Água! Água! Sentamos láaté lavar tudo… Debaixo deestilhaços… Veja como era… Avergonha dava mais medo do quea morte. E algumas garotasmorreram na água…

Talvez tenha sido a primeira vez

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que desejei ser homem… Aprimeira vez…

E então veio a Vitória. Nocomeço estava andando pela rua enão acreditava que estava vendo aVitória. Sentava à mesa e nãoacreditava que estava vendo aVitória. Vitória! Nossa Vitória…”

Maria SemiónovnaKaliberdá, sargento,

comunicações

“Já estávamos libertando aLetônia… Estávamos perto deDaugavpils. Era noite, e eu tinhaacabado de me ajeitar para dormir.

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Escutei o guarda exclamando paraalguém: ‘Alto! Quem vem?’.Literalmente dez minutos depois ocomandante mandou me chamar.Entrei no abrigo dele e lá estavamsentados nossos camaradas e umhomem de roupas civis. Eu melembro bem desse homem. Tantosanos vendo homens de fardamilitar, capote, e aquele estava desobretudo preto com gola de pele.

‘Preciso da sua ajuda’, o homemme disse. ‘A dois quilômetrosdaqui, minha mulher está dando àluz. Ela está sozinha, não há maisninguém em casa.’

O comandante retrucou:

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‘É na faixa neutra. Você sabe,não é seguro.’

‘Uma mulher está parindo.Tenho que ir ajudá-la.’

Deram-me cinco atiradores defuzil. Preparei uma bolsa commaterial para curativos; haviapouco tinha recebido uns panos deflanela e também os levei comigo.Saímos. Trocavam tiros o tempotodo — ora tiros curtos, ora peloalto. A floresta estava tão escuraque nem se via a Lua. Finalmenteapareceu a silhueta de algumaconstrução. Revelou-se ser umsítio. Quando entramos na casa, via mulher. Estava deitada no chão,

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em uns trapos velhos. O marido namesma hora começou a fechar ascortinas. Dois atiradores ficaramno pátio, dois ao lado da porta, eum me iluminava com a lanterna.A mulher mal continha osgemidos, estava com muita dor.

Eu pedia a ela o tempo todo:‘Segure, querida. Não pode

gritar. Segure.’Ali era a faixa neutra. Se o

oponente notasse algo, lançariaprojéteis em cima de nós. Mas,quando os soldados escutaram quea criança tinha nascido… ‘Viva!Viva!’ Assim baixinho, quase numsussurro. Nasceu uma criança na

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linha de frente!Trouxeram água. Não tinha

onde ferver, limpei a criança comágua fria. Envolvi-a com meuspanos. Não encontrei nada na casa,só os trapos velhos onde a mãeestava deitada.

E assim consegui, comdificuldade, ir até aquele sítioalgumas noites. Fui uma última vezantes do ataque e me despedi:

‘Não vou mais poder vir. Estouindo embora.’

A mulher perguntou algo emletão ao marido. Ele traduziu paramim:

‘Minha esposa está perguntando

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como você se chama.’‘Anna.’A mulher disse algo de novo. E

o marido traduziu mais uma vez:‘Ela está dizendo que é um

nome muito bonito. E, em suahomenagem, vamos chamar nossafilha de Anna.’

A mulher se soergueu — elaainda não conseguia ficar de pé —e estendeu para mim uma belacaixa de pó de arroz nacarada. Pelovisto, era seu objeto mais valioso.Abri a caixa, e aquele cheiro ànoite, quando trocavam tiros ànossa volta, lançavam bombas…Era algo… Até agora me dá

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vontade de chorar… O cheiro depó de arroz, aquela tampanacarada… Um bebê pequeno…Uma menina… Era algo tãocaseiro, de uma verdadeira vida demulher…”

Anna NikoláievnaKhrolóvitch, tenente da

guarda, enfermeira

* * *

“Uma mulher na Marinha… Eraalgo proibido, até antinatural.Consideravam que trazia azar parao navio. Eu sou da região deFastov; na nossa vila as mulheres

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provocavam minha mãe até amorte: mas o que você teve, umamenina ou um rapaz? Eu escrevipara o próprio Vorochílov, pedindoque me aceitassem na EscolaTécnica de Artilharia deLeningrado. E foi apenas por suainiciativa pessoal que fui admitidalá. A única garota.

Terminei a escola, e mesmoassim queriam me deixar em terrafirme. Então parei de admitir queera mulher. Meu sobrenomeucraniano, Rudenko, me salvou.Mesmo assim uma vez eu meentreguei. Estava esfregando oconvés, de repente escutei um

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barulho e me voltei: ummarinheiro estava perseguindo umgato. Não sei como ele foi parar nonavio, onde — certamente umasuperstição que se mantém desdeos primeiros navegadores —acredita-se que gatos e mulherestrazem infelicidade no mar. O gatonão queria abandonar o navio eexecutava cada drible que dariainveja a um jogador de futebolinternacional. Todos riam nonavio. Mas num certo momentoele quase caiu na água; eu meassustei e gritei. E, pelo visto, solteiuma voz tão soprano, tão feminina,que as risadas masculinas cessaram

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na mesma hora. Fez-se silêncio.Escutei a voz do comandante:‘Imediato, uma mulher subiu no

navio?’‘De jeito nenhum, camarada

comandante.’E começou um pânico: havia

uma mulher no navio.… Fui a primeira mulher a

ocupar um posto de oficial decarreira na Marinha de Guerra. Naguerra equipei navios, fuzileirosnavais. Na época até saiu naimprensa inglesa que algumacriatura incompreensível — nemhomem, nem mulher — estavacombatendo na Marinha dos

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russos. E diziam que essa ‘lady comadaga’ não se casaria comninguém. Eu não me casaria? Não,aí é que se engana, casei com umbom senhor, o oficial maisbonito…

Fui uma esposa feliz e sou umamãe e avó feliz. Não tenho culpa semeu marido morreu na guerra. Euamava a Marinha, e amei por todaa vida…”

Taíssia PietróvnaRudenko-Cheveliova,

capitã, comandante deuma companhia da

tripulação de Moscou,

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atualmente coronel dareserva

“Eu trabalhava em umafábrica… Na fábrica de correntesda nossa aldeia, Mikháltchikovo,na região de Kstóvski, distrito deGorkóvskaia. Assim quecomeçaram a convocar homens emandar para o front, me puserampara operar o torno, executandoum trabalho masculino. De lá fuitransferida para a oficina quente,onde forjavam correntes de navio,como marteladora.

Pedi para ir para o front, mas a

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diretoria da fábrica me mantinha lácom diversos pretextos. Entãoescrevi para o Comitê Regional doKomsomol e em março de 1942recebi a convocação. Estava indocom mais algumas meninas, toda aaldeia veio se despedir de nós.Andamos trinta quilômetros a péaté Górki, e lá nos distribuíram pordiferentes unidades. Fui mandadapara o 784o Regimento deArtilharia Antiaérea de CalibreMédio.

Logo fui nomeada primeiraapontadora. Mas eu achava pouco,queria ser carregadora. Só que esse

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trabalho era consideradoexclusivamente masculino: erapreciso erguer projéteis dedezesseis quilos e manter um fogointenso a uma velocidade dedescarga de cinco segundos. Maseu não tinha trabalhado comomarteladora à toa. Um ano depoisme concederam a patente deterceiro-sargento e me nomearamcomandante de segundo canhão,no qual serviam duas garotas equatro homens. O cano do canhãoficava incandescente por causa dofogo intenso, e era perigoso atirar,precisávamos, contra todas asregras, esfriá-lo com cobertores

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molhados. Os canhões nãoaguentavam, mas as pessoasaguentavam. Sou uma mulherresistente, forte, mas sei que minhacapacidade na guerra era maior doque na vida de paz. Atéfisicamente. Sei lá de onde, massurgiam forças inexplicáveis…

Depois de escutar o anúncio daVitória no rádio, chamei aguarnição pelo alarme e dei meuúltimo comando:

‘Azimute: quinze, zero, zero.Ângulo de elevação: dez, zero.Detonador cento e vinte, ritmodez!’

Eu mesma me aproximei do

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castelo e comecei a saudar comquatro projéteis em honra da nossaVitória, depois de quatro anos deguerra.

Ao ouvir os tiros, saíramcorrendo todos os que estavam emposição de bateria, assim como ocomandante de batalhão Slatvínski.Diante de todos, mandou meprender por insubordinação, masdepois anulou a decisão. E nóstodos saudamos juntos a Vitória,dessa vez já com nossas armaspessoais, nos abraçamos e nosbeijamos. Bebemos vodca,cantamos canções. Depoischoramos a noite toda e o dia

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todo…”

Klávdia VassílievnaKonoválova, terceiro-

sargento, comandante decanhão antiaéreo

“Eu levava nos ombros umametralhadora manual… Nuncaconfessava que ela era pesada.Quem então me colocaria como onúmero dois? Diriam que era umsoldado inferior, que precisava sersubstituído. Me mandariam para acozinha. Seria uma vergonha. Deusme livre passar a guerra inteira nacozinha. Eu ficaria chorando…”

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“As mulheres eram mandadaspara as missões em igualdade comos homens?”

“Tentavam nos proteger. Erapreciso pedir uma missão militar,ou merecer. Dar provas. Erapreciso ter coragem e ousadia parauma coisa dessas. E nem todas asgarotas eram capazes disso. Nanossa cozinha, trabalhava a Vália.Era tão doce, tímida, ninguém aimaginava com um fuzil. Em umcaso extremo ela atiraria, claro,mas ela não tinha desejo de sairem uma missão. Eu? Eu tinha. Eusonhava com isso!

E na escola era uma menina

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quieta… Apagada…”

Galina IaroslávovnaDubovik, partisan da12a Brigada Stálin de

Cavalaria Partisan

“A ordem: chegar ao lugar em24 horas… Encaminhamento: irpara o hospital itinerante decampanha no 713.

Lembro que me apresentei nohospital, de vestido de marquisetepreto e sandálias, e usando porcima uma capa do meu marido.Imediatamente me deram umafarda militar, mas eu me recusei a

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receber: tudo era três, quatronúmeros maior que o meutamanho. Informaram ao diretordo hospital que eu não queria mesubmeter à disciplina militar. Elenão tomou nenhuma medida:‘Vamos esperar, daqui a uns diasela mesma vai trocar de roupa’.

Alguns dias depois mudamospara outro lugar, e fomos muitobombardeados. Nos escondemosem um campo de batatas, masantes disso tinha chovido. Vocêconsegue imaginar no que setransformou meu vestido demarquisete e como ficaram assandálias? No dia seguinte eu já

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estava vestida como soldado. Fardacompleta.

Assim começou meu percursomilitar… Que terminou naAlemanha…

Em 1942, nos primeiros dias dejaneiro, entramos no povoado deAfônevka, na região de Kursk.Fazia um frio terrível. Doisedifícios da escola estavamabarrotados de feridos: deitadosnas macas, no chão, sobre a palha.Não havia carros nem gasolinasuficientes para levar todos para aretaguarda. O chefe do hospitaldecidiu organizar um comboio decavalos partindo de Afônevka e

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povoados vizinhos. O comboiochegou de manhã. Os cavalos eramconduzidos apenas por mulheres.Nos trenós tinham postocobertores feitos em casa, peliças,travesseiros, alguns tinhaminclusive colchões de penas. Atéhoje não consigo me lembrar dissosem chorar. Essa cena… Cadamulher escolhia seu ferido,começava a prepará-lo para ocaminho e a lamentar baixinho:‘Meu filhinho querido!’, ‘Ah,queridinho’, ‘Ah, meuamorzinho!’. Cada uma traziaconsigo um pouco de comidacaseira, tinha até batata ainda

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quentinha. Elas agasalhavam osferidos com o que tinham trazidode casa e os colocavamcuidadosamente nos trenós. Atéhoje trago nos ouvidos essa prece,essa cantilena silenciosa de mulher:‘Ah, queridinho’, ‘Ah, meuamorzinho…’. É uma pena, tenhoaté dor na consciência de não terperguntado o sobrenome dessasmulheres na época.

Também ficou na minhamemória como avançávamos pelaBielorrússia liberta e nãoencontrávamos nenhum homemnas aldeias. Só encontrávamosmulheres. Só sobraram

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mulheres…”

Elena IvánovnaVariúkina, enfermeira

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SOBRE O SILÊNCIO DO HORROR EA BELEZA DA CRIAÇÃO

“Será que encontro as palavras?Sobre como eu atirava eu possocontar. Sobre como chorava, não.Isso continuará não dito. Sei deuma coisa: na guerra, o serhumano se torna terrível einconcebível. Como entendê-lo?

Você é escritora. Invente algovocê mesma. Algo bonito. Sempiolhos nem sujeira, sem vômito…Sem cheiro de vodca e sangue…Que não seja tão terrível quanto avida…”

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Anastassia IvánovnaMedvédkina, soldado,

atiradora demetralhadora

* * *

“Não sei… Não, eu entendo oque você está perguntando, masminha língua não é suficiente…Minha língua… Como descrever?Preciso… Que… Um espasmosufoque, como acontece comigo: ànoite fico deitada em silêncio e derepente me lembro. Perco o ar.Sinto um calafrio. É assim…

Em algum lugar essas palavras

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existem… É preciso um poeta…Como Dante…”

Anna PietróvnaKaliáguina, sargento,enfermeira-instrutora

“Às vezes escuto uma música…Ou uma canção… Uma vozfeminina… E ali encontro o que eusentia na época. Algo parecido…

Mas vejo um filme sobre guerrae penso: ‘mentira’, leio um livro:‘mentira’. Não é… Não é assim…Eu mesma começo a falar, etambém não é bem isso. Não é tãoterrível, nem tão bonito. Sabe

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como é bonita a manhã na guerra?Antes da batalha… Você olha esabe: pode ser a sua última. A terraé tão bonita… E o ar… O sol…”

Olga NikítitchnaZabélina, cirurgiã

militar

“No gueto vivíamos atrás dearame farpado… Até me lembroque isso aconteceu em uma terça-feira, por algum motivo depoisprestei atenção no fato de que eraterça. Terça-feira… O dia e mês eunão me lembro. Mas era terça. Poracaso me aproximei da janela. No

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banco em frente à nossa casa haviaum menino e uma menina sebeijando. Cercados pelo pogrom,por tiros. E eles se beijando! Fiqueicomovida com essa cena pacífica…

Na outra ponta da rua — nossarua era curta —, apareceu umapatrulha alemã. Eles também viramtodos, tinham uma ótima visãopanorâmica. Não tive tempo deentender nada… Claro que nãotive tempo… Um grito. Umestrondo. Tiros… Eu… Nenhumpensamento… O primeirosentimento foi medo. Só vi que omenino e a menina se levantarame já foram caindo. Caíram juntos.

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Depois… Passou um dia, osegundo… O terceiro… E eu sópensava nisso. Precisava entender:eles não estavam se beijando emcasa, e sim na rua. Por quê?Queriam morrer assim… Sabiamque iam morrer no gueto dequalquer jeito e queriam morrer deoutra forma. Claro, isso é o amor.E o que mais seria? O que maispoderia ser…? Só amor.

O que eu contei para você…Isso, é verdade, acabou ficandobonito. Mas, e a vida? Na vida euexperimentei o terror… Sim… Oque mais? Vou pensar… Elesestavam resistindo… Queriam uma

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morte bonita. Estou certa de queessa foi a escolha deles…”

Liubov EduárdovnaKréssova, membro da

resistência

“Eu? Eu não quero falar…Apesar de que… Enfim… Não épossível falar sobre isso…”

Irina MoissêievnaLipítskaia, soldado,

fuzileira

“Tinha uma mulher louca quevagava pela cidade… Ela não se

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lavava nunca, não se penteava.Tinham matado seus cinco filhos.Todos. E matado de formasdiferentes. Um, com um tiro nacabeça; outro, no ouvido…

Ela se aproximava de umapessoa na rua… Qualquer uma…E dizia: ‘Vou lhe contar comomataram meus filhos. Com qualcomeço? Com o Vássienka…Deram um tiro no ouvido dele. E aTolika foi na cabeça… Então, comqual?’

Todos corriam dela. Era louca,por isso conseguia contar…”

Antonina Albértovna

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Vijutóvitch, enfermeirapartisan

“Só me lembro de uma coisa:estavam gritando ‘vitória’! O gritoressoou por todo o dia… Vitória!Vitória! Irmãos! No começo eu nãoacreditava, estávamos tãoacostumados à guerra — era comose a vida fosse aquilo. Vitória!Vencemos… Estávamos felizes!Felizes!”

Anna MikháilovnaPerepiolka, sargento,

enfermeira

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* Espaço onde os soldados podiam sededicar a atividades de descansoorganizado.

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“Senhoritas! Vocêssabem que umcomandante de pelotãode sapadores só vive doismeses…”

Falo da mesma coisa o tempotodo… De uma forma ou de outra

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volto a isso…Em geral, falo mais sobre a

morte. Sobre a relação dessasmulheres com a morte — elaestava sempre circulando porperto. Tão perto e habitual quantoa vida. Tento entender: como erapossível sair sã e salva em meioàquela infinita experiência demorte? Vê-la dia após dia. Pensar.Involuntariamente experimentá-la.

Será possível falar sobre isso? Oque transmitem nossas palavras esentimentos? E o que é indizível?Tenho cada vez mais perguntas ecada vez menos respostas.

Às vezes, volto para casa depois

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de uma entrevista com a ideia deque o sofrimento é solidão. Umisolamento surdo. Outras vezes,acho que o sofrimento é umaforma particular de conhecimento.Há algo na vida humana que éimpossível transmitir e guardar poroutros caminhos, especialmenteem nossa terra. Assim estáestruturado nosso mundo, assimnós estamos estruturados.

Encontrei-me com uma dasprotagonistas deste capítulo numasala da Universidade EstatalBielorrussa. Os alunos juntavamseus cadernos depois da aula,alegres e ruidosos. “Como éramos

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na época?”, ela respondeu comuma pergunta à minha primeirapergunta. “Assim, que nem eles,meus alunos. Só que a roupa eradiferente e os enfeites das meninaseram mais simples. Aneizinhos deferro, colares de contas de vidro.Chinelos impermeabilizados. Nãohavia esses jeans, essesgravadores…”

Eu seguia com os olhos osestudantes apressados, e o relato jáhavia começado…

“Antes da guerra eu e umaamiga nos formamos na

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universidade, e durante a guerrafomos para a escola de sapadores.Fomos para o front já comooficiais… Segundos-tenentes…Fomos recebidas assim: ‘Muitobem, meninas! Que bom quevieram, meninas. Não vamosmandá-las para lugar nenhum.Vocês ficam conosco no estado-maior’. Foi assim que nosreceberam no estado-maior dosengenheiros do Exército. Demosmeia-volta e fomos procurar ocomandante do front, Málinski.Quando estávamos indo, seespalhou pela vila que duas moçasestavam procurando pelo

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comandante. Um oficial seaproximou de nós e disse:

‘Mostrem seus documentos.’Ele olhou.‘Por que estão procurando o

comandante, vocês precisam irpara o estado-maior dosengenheiros do Exército.’

Respondemos a ele:‘Fomos mandadas como

comandantes do pelotão desapadores, e querem nos deixar noestado-maior. Mas vamos brigarpara ser apenas comandantes dopelotão de sapadores e atuarapenas na linha de frente.’

Então aquele oficial novamente

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nos levou para o estado-maior dosengenheiros do Exército. E elestodos passaram muito tempofalando, juntou-se uma casa inteirade gente; cada um aconselhava,alguns também riam. Mas nósinsistíamos, nos defendíamos,dizíamos que tínhamos umencaminhamento e deveríamos serapenas comandantes do pelotão desapadores. Então, aquele oficialque nos levou ficou irritado:

‘Senhoritas! Vocês sabemquanto vive um comandante depelotão de sapadores? Umcomandante de pelotão desapadores só vive dois meses…’

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‘Sabemos, e por isso queremos irpara a linha de frente.’

Ele não teve o que fazer, assinouo encaminhamento:

‘Certo, vamos mandá-las para oQuinto Exército de Choque. Vocêssabem o que é um exército dechoque, o próprio nome indica.Está permanentemente na linha defrente.’

Quantos histórias de apavorarnão nos contavam. Mas estávamoscontentes:

‘Concordamos!’Chegamos ao estado-maior do

Quinto Exército de Choque, e láhavia um capitão intelectual, que

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nos recebeu muito bem. Masquando escutou que estávamosdeterminadas a ser apenascomandantes do pelotão desapadores, arrancou os cabelos.

‘Não, não! Imaginem! Vamosencontrar trabalho para vocês aqui,no estado-maior. O que foi, estãobrincando? Lá só tem homens, ede repente o comandante é umamulher — isso é maluquice. Estãoachando o quê?’

Passaram dois dias insistindo.Falando diretamente… Nosconvencendo. Mas não cedemos:só aceitaríamos ser comandantesdo batalhão de sapadores. Não

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arredamos um passo. Só que nãoparou por aí. Por fim… Por fim,recebemos a nomeação. Melevaram para o meu pelotão… Ossoldados me olhavam: uns comzombaria, outros até com raiva, ealguns se denunciavam pelomovimento dos ombros. Entenditudo imediatamente. Quando ocomandante do batalhão meapresentou, disse, vejam, essa é anova comandante do pelotão,todos começaram a vaiar na hora:‘Uuuuuu…’. Teve um que atécuspiu.

Um ano depois, quando meentregaram a Ordem da Estrela

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Vermelha, esses mesmos rapazes,os que ainda estavam vivos, melevaram nos braços para meuabrigo. Estavam orgulhosos demim.

Se você perguntar qual é a corda guerra, direi: cor de terra. Parauma sapadora… Preto, amarelo e acor de barro da terra…

Estávamos indo a algum lugar…Pernoitávamos na floresta.Fazíamos uma fogueira e,enquanto ela ardia, todos sesentavam em silêncio ao redordela, alguns até caíam no sono. Euadormecia olhando para o fogo,dormia de olhos abertos: umas

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borboletas, umas moscas voavampara o fogo, voavam a noite toda,sem som, sem nenhum sussurro,em silêncio sumiam naquelagrande fogueira. Outros vinhamem seguida… Na verdade… Nóstambém éramos assim. Andávamose andávamos. Seguíamos o fluxo.

Não morri dois meses depois,mas fui ferida. A primeira vez foiuma ferida leve. E parei de pensarna morte…”

Stanislava PietróvnaVólkova, segundo-

subtenente, comandantede um pelotão de

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sapadores

“Na infância… Vou começarpela minha infância… Na guerra, oque eu mais tinha medo era de melembrar da infância. Justamente dainfância. Não se deve lembrar dascoisas mais ternas durante aguerra. Coisas ternas estãoproibidas. É um tabu.

Pois bem… Na infância, meupai raspava meus cabelos bemrente, com máquina zero. Lembreidisso quando cortaram nossoscabelos e nos transformamos demoças em jovens soldados.

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Algumas meninas ficaramassustadas… Mas para mim foifácil me acostumar. Estava no meuambiente. Não era em vão quemeu pai suspirava: ‘Estamoscriando um rapazinho, não umamenina’. A culpada de tudo erauma paixão minha, foi por ela quelevei bronca mais de uma vez. Noinverno, eu saltava de um barrancoescarpado para o rio Ob coberto deneve. Depois da aula eu pegavaumas velhas calças de algodão domeu pai, vestia e amarrava sobre asbotas de feltro. Punha uma jaquetaacolchoada e enfiava as barras pordentro da calça, depois apertava

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bem o cinto. Na cabeça usava umauchanka, amarrada embaixo doqueixo. Com essa aparência iabamboleando como um urso, umpé atrás do outro, até o rio. Corriacom toda a minha força e pulavado barranco para baixo…

Ah! Que sensação vocêexperimenta ao voar do precipícioe esconder a cabeça sob a neve. Terouba o fôlego! Outras meninastentavam ir comigo, mas com elasnão dava certo: uma torceu o pé, aoutra quebrou o nariz na nevedura, e com a terceira aconteceualguma outra coisa. Mas eu eramais hábil que os meninos.

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Lembrei da minha infância…Porque não estava com vontade defalar logo de sangue… Mas euentendo, é importante, claro, éimportante. Gosto de livros.Entendo…

Chegamos a Moscou emsetembro de 1942… Nos levarampelo anel ferroviário durante umasemana inteira. Parávamos nasestações: Kúntsevo, Perovo,Otchákovo, e em todo lugardesciam meninas do trem. Vinhamos ‘compradores’, como se dizia,comandantes de diferentesunidades e tipos de tropas, efaziam propaganda para que

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fôssemos francoatiradoras,enfermeiras-instrutoras,operadoras de rádio… Nadadaquilo me seduzia. Por fim, detodo o trem sobraram trezepessoas. Alojaram todas em umvagão de carga adaptado. Sósobraram dois vagões no desviomorto: o nosso e o do estado-maior. Passamos dois dias eninguém veio nos ver. Ríamos ecantávamos a canção ‘Esquecido,largado’. No segundo dia, no fimda tarde, vimos que três oficiaisestavam se dirigindo para o nossovagão, junto com o chefe do trem.

Eram ‘compradores’! Eles eram

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altos, esbeltos, os cinturões bemapertados. Capotes novos em folha,botas bem engraxadas, brilhantes,com esporas. Uma beleza! Aindanão tínhamos visto ninguém comoeles. Entraram no vagão do estado-maior e nos colamos à parede paraescutar o que estavam falando. Ochefe mostrava nossas listas e diziaas características resumidamente:quem era cada uma, de ondevinha, formação. Por fim,escutamos: ‘Todas são adequadas’.

Então o chefe saiu do vagão eordenou que entrássemos emformação. Formamos fila. ‘Queremaprender a arte da guerra?’ Como

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não íamos querer? Claro quequeríamos. Muito, inclusive!Sonhávamos com isso! Nenhumade nós nem perguntou ondeestudaríamos e para quê. Veio aordem: ‘Primeiro-tenenteMitropólski, leve as meninas para aAcademia Militar’. Cada uma pôssua mochila no ombro, nospostamos de duas em duas, e ooficial nos levou pelas ruas deMoscou. Amada Moscou… Nossacapital… Até naqueles temposdifíceis era bonita… Querida… Ooficial andava rápido, a passoslargos, não conseguíamos ir atrásdele. Só no aniversário de trinta

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anos da Vitória, quando nosencontramos em Moscou, SergueiFiódorovitch Mitropólski admitiupara nós, ex-cadetes da Escola deEngenharia Militar de Moscou,que estava com vergonha de nosconduzir pela cidade. Ele tentavase afastar ao máximo de nós, paraque ninguém prestasse atençãonele. Naquela manada demeninas… Não sabíamos disso e oseguíamos praticamente correndo.Acho que não estávamos muitobem!

Pois bem… Já nos primeiros diasde aula me deram duas patrulhasextras: uma hora achei a sala de

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aula muito fria, e depois algumaoutra coisa. Sabe, hábitos de escola.Bem, eu mereci: uma patrulhaextra, a segunda… Depois outra emais uma. Na divisão na rua, oscadetes reparavam em mim ecomeçavam a rir: já era aplantonista titular. Eles, claro,achavam engraçado, mas eu não iaà aula, de noite não dormia.Passava o dia inteiro ao lado daporta, no posto, e à noite esfregavao chão da caserna com cera. Comose fazia na época? Vou explicar…Em detalhes… Não é como se fazagora, agora tem várias escovas,enceradeiras e coisas do tipo. Mas

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na época… Depois do toque derecolher, você tirava as botas, paranão sujar de cera, enrolava os pésem pedaços de um capote velho,fazia uma espécie de chineloamarrado com barbantes.Espalhava a cera pelo chão,esfregava com a escova, e não erauma escova de náilon, era de pelo,soltava uns fiapos, e depoiscomeçava a mexer os pésfreneticamente. Tinha que esfregaraté ficar com um brilho espelhado.Você se acabava de dançar! Aspernas fraquejavam e ficavamdormentes, as costas tortas, o suorinundava os olhos. De manhã, não

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tinha forças nem para gritar para acompanhia: ‘Vamos lá!’. E de diatambém não conseguia sentar; parafazer o plantão eu precisava ficar otempo todo de pé no posto. Umavez aconteceu um caso curiosocomigo… Engraçado… Estava noposto, tinha acabado de terminar alimpeza da caserna. Estava comtanta vontade de dormir quesentia: vou cair agora. Encostei ocotovelo no posto e cochilei. Derepente, escutei alguém abrir aporta do local, saltei e vi que,diante de mim, estava o oficialencarregado do batalhão. Levanteia mão e informei: ‘Camarada

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primeiro-tenente, a companhiaestá em descanso’. Ele olhou paramim com olhos arregalados e nãoconseguia segurar o riso. Então eupercebi que, como sou canhota, napressa levei a mão esquerda àboina. Tentei mudar rapidamentepara a direita, mas já era tarde.Mais um erro.

Levei muito tempo paraentender que aquilo não era umjogo, não era a escola, mas umaescola militar. Treinamento para aguerra. A ordem do comandante élei para o subordinado.

Do exame final, ficou na minhamemória a última pergunta:

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‘Quantas vezes na vida umsapador se engana?’

‘O sapador se engana uma vezna vida.’

‘Isso mesmo, menina…’E depois o habitual:‘Está dispensada, cadete

Bairak…’E veio a guerra. A guerra de

verdade…Fui levada para o meu pelotão.

Dei o comando: ‘Pelotão, sentido!’,mas o pelotão nem pensava emlevantar. Uns estavam deitados,outros sentados fumando, umestalando os ossos: ‘Ê!’. Quer dizer,fingiram que não me notaram. Se

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sentiam ofendidos em saber queeles, batedores, homens, tinhamque se subordinar a uma garota devinte e poucos anos. Entendi issomuito bem e precisei dar ocomando: ‘Descansar!’.

Então, começou umbombardeio… Saltei na vala, ocapote novinho, e, em vez de medeitar embaixo, na lama, me deiteide lado, na neve não derretida.Bom, os jovens têm dessas coisas:um capote pode ser mais valioso doque a vida. Era uma menina boba!Meus soldados riram.

Pois bem… O que era oreconhecimento terrestre que nós

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fazíamos? À noite os soldadoscavavam uma pequena trincheirapara duas pessoas na faixa neutra.Antes de amanhecer, eu e um doscomandantes da seção nosarrastávamos até essa trincheirinhae os soldados nos camuflavam. Eentão passávamos o dia inteirodeitados ali, tínhamos medo defazer o menor movimento. Uma ouduas horas depois, as mãos e os pésjá estavam congelados, apesar devestirmos botas de feltro e peliçascurtas. Quatro horas depois,éramos um bloco de gelo.Nevava… Eu me transformavanum boneco de neve… Isso no

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inverno… No verão precisávamosdeitar no calor ou debaixo dechuva. Passávamos o dia inteiroobservando atentamente todos ospassos do inimigo e compúnhamosum mapa de observação da linhade frente: marcávamos em quelugares aparecera alguma mudançana superfície terrestre. Seachávamos um montinho ou umabola de terra, neve suja, gramapisada ou orvalho batido na grama,era disso que precisávamos… Era onosso objetivo… Ficava claro: ali,sapadores alemães tinham feito umcampo minado. Se eles tivessemfeito uma barreira de arame,

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precisávamos determinar a largurae a longitude. Que minas foramusadas: antipessoal, antitanque ouminas surpresa? Marcávamos alocalização do ponto de fogo dooponente.

Antes do ataque, nossas tropastrabalhavam à noite. Sondavam olocal, centímetro por centímetro.Faziam corredores nos camposminados… O tempo todorastelando a terra… Se arrastandode barriga… E eu ficava como umalançadeira, ia e vinha de uma seçãopara outra. As ‘minhas’ minas eramsempre maiores.

Eu tenho vários casos… O

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suficiente para um filme… Umasérie de filmes.

Os oficiais me chamaram para ocafé da manhã. Eu aceitei, ossapadores nem sempre têm comidaquente, nós vivíamos basicamentede ração. Quando todos seacomodaram na mesa da cozinha,o fogão russo me chamou aatenção: estava com a tampafechada. Cheguei perto e comecei aexaminar a tampa. Os oficiais riamde mim, diziam: ‘Essa mulherprocura mina até nas panelas’. Eurespondia com brincadeiras, masreparei que, bem embaixo, no ladoesquerdo da tampa, havia um

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buraquinho. Examinei comatenção e vi um fio muito fino queia até o fogão. Rapidamente mevoltei para as pessoas à mesa: ‘Acasa está minada, peço queabandonem o local’. Os oficiaisficaram em silêncio e fixaram osolhos em mim, incrédulos;ninguém tinha vontade de selevantar da mesa. A carne cheiravabem, havia batatas fritas… Repeti:‘Saiam rápido do local!’. Eu e osoutros sapadores nos pusemos atrabalhar. Para começar, tiramos atampa. Cortaram com tesouras ofio… Bem, e aí… E aí… Aí… Nofogão havia algumas canecas

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esmaltadas de um litro amarradascom um barbante. O sonho dossoldados! Melhor que umapanelinha. Mas no fundo do fogão,envoltos em papel preto, havia doispacotes grandes. Uns vinte quilosde explosivos. Aí estavam, com aspanelas.

Estávamos andando pelaUcrânia, isso já foi em Stanislav,atualmente região de Ivano-Frankovsk. O pelotão recebeu umamissão: desativar com urgênciaminas em uma fábrica de açúcar.Cada minuto era precioso: nãosabíamos como haviam minado afábrica, e, se fora ativado o

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mecanismo-relógio, podíamosesperar por uma explosão aqualquer minuto. Saímos emmarcha acelerada para a missão. Oclima estava ameno, levávamospouca coisa. Quando estávamospassando pela posição dosartilheiros-condutores, de repenteum deles saltou das trincheiras egritou: ‘Alerta! Avião!’. Levantei acabeça e fiquei procurando o‘avião’ no céu. Não vi nada. Aomeu redor estava tudo silencioso,não se ouvia um som. Onde estavao tal ‘avião’? Então, um dos meussapadores pediu permissão parasair da formação. Quando vi, ele

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foi até o soldado de artilharia edeu-lhe um tabefe. Não tive tempode entender nada, e o soldado daartilharia começou a gritar:‘Rapazes, estão batendo nosnossos!’. Saltaram das trincheirasoutros artilheiros e rodearam nossosapador. O meu pelotão, semhesitar, soltou as sondas, osdetectores de minas, os sacos ecorreu em socorro dele. Começouuma briga. Eu não conseguiaentender o que tinha acontecido.Por que o pelotão se meteu numabriga? Estávamos contando cadaminuto, e agora aquele tumulto?Dei o comando: ‘Pelotão, entrar

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em formação!’. Ninguém prestouatenção em mim. Então pegueiminha pistola e dei um tiro para oalto. Os oficiais saíram do abrigo.Até todos se acalmarem, passouum tempo considerável. O capitãose aproximou do meu pelotão eperguntou: ‘Quem é o superioraqui?’. Eu me apresentei. Elearregalou os olhos, até ficoudesnorteado. Depois perguntou: ‘Oque aconteceu aqui?’. Eu não sabiaresponder, porque na verdade nãosabia os motivos. Então meuajudante saiu à frente e contou oque havia se passado. E aí eu soubeque ‘avião’ era uma palavra

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ofensiva para uma mulher. Eraalgo como vadia. Um xingamentodo front…

Mas, sabe… Estamos aqui numaconversa sincera… Na guerra, eutentava não pensar nem em amor,nem na infância. E na mortetambém. Hmmm… Estamos aquinuma conversa sincera… Poisbem… Eu já disse: tive que meproibir muitas coisas para podersobreviver. Em especial, me proibitudo o que era carinhoso e terno.Até pensar nisso. Recordar.Lembro que pela primeira vez nalibertação de Lvov nos deramalgumas noites livres. Era a

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primeira vez em toda a guerra… Obatalhão foi para o cinemamunicipal ver um filme. Nocomeço não estávamosacostumados a sentar em poltronasmacias, ver um ambiente bonito,conforto e silêncio. Antes docomeço da sessão, tocava umaorquestra, se apresentavam artistas.Organizaram danças no foyer.Dançaram polca, cracoviana, pasd’espagne, e terminamos com aindefectível ‘Russa’. A música tinhaum efeito especial sobre mim…Nem dava para acreditar que emalgum lugar estavam atirando e embreve nos mandariam para a linha

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de frente de novo. Que a morteestava em algum lugar por perto.

Mas já um dia depois, meupelotão foi mandado para umaoperação pente-fino em umalocalidade acidentada, que ia deum vilarejo até a ferrovia. Algunscarros tinham explodido por lá.Minas… Os batedores comdetectores de minas foramandando ao longo da rodovia.Chuviscava, uma chuvinha fria.Estava tudo molhado, até o últimofio. Minhas botas incharam,ficaram pesadas, como se a solafosse de ferro. Pus a aba do capotepor dentro do cinto para não

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enrolar nas pernas. Adiante, minhacadela Nelka ia na coleira. Seencontrava um projétil ou umamina, sentava ao lado e esperavaaté desativarem. Minha amigafiel… E então a Nelka se sentou…Ficou esperando e ganindo…Nessa hora me passaram umaordem: ‘Tenente, apresentar-se aogeneral’. Olhei em volta: na estradade terra havia um Willys. Saltei avala, no caminho ajeitei a aba docapote, endireitei o cinto e a boina.Mas ainda assim eu estava com umaspecto lamentável.

Correndo, me aproximei docarro, abri a porta e comecei a me

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apresentar:‘Camarada general, segundo sua

ordem…’Escutei:‘Retire-se…’Me endireitei na posição de

‘sentido’. O general nem se viroupara mim, estava olhando para aestrada pelo vidro do carro. Seirritava e olhava com frequênciapara o relógio. Eu continueipostada. Ele se voltou para oordenança:

‘Onde é que está essecomandante dos sapadores?’

Tentei me apresentar de novo:‘Camarada general, às ordens…’

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Ele por fim se virou para mim edisse com raiva:

‘Para que diabos vou precisar devocê?’

Entendi tudo e quase comecei agargalhar. O ordenança adivinhouprimeiro:

‘Camarada general, talvez elaseja a comandante dos sapadores.’

O general se espantou comigo:‘Quem é você?’‘Comandante do pelotão de

sapadores, camarada general.’‘Você, comandante do pelotão?’,

ele ficou indignado.‘Exato, camarada general!’‘São os seus sapadores que estão

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trabalhando?’‘Exato, camarada general!’‘Mas não para de repetir:

general, general…’Ele desceu do carro, deu alguns

passos para a frente, depois sevoltou para mim. Parou, me mediucom os olhos. Disse para oordenança:

‘Viu?’E me perguntou:‘Quantos anos você tem,

tenente?’‘Vinte, camarada general.’‘De onde você é?’‘Da Sibéria.’Ele ainda passou muito tempo

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me fazendo perguntas, propôs metransferir para sua unidade detanques. Estava indignado que euestivesse com aquela aparêncialamentável: ele jamais teriapermitido. Precisavam muito desapadores. Depois, me levou para olado e me mostrou um bosque:

‘Ali estão minhas caixinhas.Quero passá-las por essa ferrovia.Os trilhos e dormentes já foramretirados, mas a estrada talvezesteja minada. Dê uma mão paraos tanquistas, verifique a estrada.Aqui é mais cômodo e maispróximo para avançar até a linhade frente. Sabe o que é um ataque

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surpresa?’‘Sei, camarada general.’‘Bem, boa sorte, tenente. Veja se

fica viva até a vitória, ela já estápróxima. Entende?’

Verificou-se que a ferrovia defato estava minada. Nósconferimos.

Todos queriam viver até avitória…

Em outubro de 1944, nossobatalhão, integrante do 210o

Destacamento Especial deDesativação de Minas, junto comas tropas da Quarta FrenteUcraniana, entrou no território da

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Tchecoslováquia. Fomos recebidoscom alegria por todos os lados.Jogavam flores, frutas, pacotes decigarros… Estendiam tapetes nascalçadas… Que uma moçacomandasse um pelotão dehomens, e que ainda fosse umasapadora, tornou-se uma sensação.Eu usava um corte de cabelomasculino, usava calças e túnicas,meu jeito era masculino, em suma,parecia um adolescente. Às vezeseu entrava numa aldeia a cavalo, eera muito difícil definir qual era osexo do cavaleiro, mas as mulheresadivinhavam com o faro e meexaminavam. Intuição feminina…

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Era engraçado… Bacana! Euchegava ao apartamento ondedevia ficar, e os donos da casasabiam que o inquilino era umoficial, mas não um homem.Muitos ficavam com a boca abertade surpresa… Cinema mudo! Masisso me… Hmmm… Eu atégostava. Gostava de surpreenderdesse jeito. Na Polônia foi igual.Lembro que, em uma aldeiazinha,uma velhinha alisou minha cabeça.Eu adivinhei: ‘O que foi, senhora,está procurando meus chifres?’. Elaficou desconcertada e disse quenão, só estava com pena de mim,‘uma senhorita tão nova’.

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Havia minas a cada passo. Erammuitas minas. Uma vez, entramosem uma casa, alguém na hora viuumas botas de couro de bezerro aolado do armário. Já ia estendendoa mão para pegá-las. Gritei: ‘Nãoouse tocar!’. Quando me aproximeie comecei a examinar, verifiqueique estavam minadas.Encontrávamos minas empoltronas, cômodas, aparadores,bonecas, lustres… Os camponesespediam para desativar minas emcanteiros de tomates, batata,repolho. Em uma aldeia, paraprovar os varêniki,* o pelotão teveque desativar minas no campo de

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trigo, e até do mangual dedebulhar…

Pois então… Passei porTchecoslováquia, Polônia,Hungria, Romênia, Alemanha…Na minha memória sobrarampoucas impressões, lembrobasicamente de fotografias visuaisdo relevo do lugar. Umas rochas…Capim alto… Talvez ele fosserealmente alto, ou talvez nosparecesse assim porque eraincrivelmente difícil atravessá-lo etrabalhar com sondas e detectoresde minas. Um capim velho…Bardanas mais altas do que osarbustos… Lembro ainda de uma

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infinidade de riachinhos ebarrancos. Floresta cerrada,barreiras de arame com estacasapodrecidas, um campo minadocoberto por mato crescido.Canteiros de flores abandonados.Sempre havia minas neles, osalemães adoravam canteiros. Umavez, no campo vizinho, estavamcolhendo batatas com a pá, e nósao lado cavávamos minas…

Na Romênia, na cidade de Dej,fiquei na casa de uma jovemromena que falava russo bem.Soube que a avó dela era russa. Amulher tinha três filhos. O maridomorrera no front, estivera em uma

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divisão romena de voluntários.Mas ela adorava rir, se divertir.Uma vez, me chamou para ir comela a um baile. Me ofereceu suaroupa. A tentação era grande. Euestava de calças, guimnastiorka,botas de bezerro, e, por cima detudo, uma roupa tradicionalromena: uma camisa bordadalonga, de linho, e uma saia xadrezjusta, de lã, presa na cintura comuma faixa preta. Cobri a cabeçacom um lenço colorido de bolasgrandes. Tendo em conta que noverão eu tinha me bronzeadomuito rastejando pelas montanhas,tirando as mechas brancas nas

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têmporas e o nariz descascado, eujá não tinha nenhuma diferença deuma romena de verdade. Umamoça romena.

Eles não tinham um clube, osjovens se reuniam na casa dealguém. Quando chegamos, játocava música, estavam dançando.Vi quase todos os oficiais do meubatalhão. No começo fiquei commedo de que me reconhecessem edesmascarassem, por isso passeium tempo me escondendo, nocanto, sem atrair a atenção paramim, quase me cobrindo com olenço. Ia só olhar e pronto… Bem,olharia de longe… Mas depois,

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quando vi que um dos nossosoficiais me chamou para dançaralgumas vezes e não mereconheceu com os lábios esobrancelhas pintadas, comecei aachar engraçado e divertido. Mediverti de coração… Gostavaquando diziam que eu era bonita.Escutava os elogios… Dançava edançava…

A guerra acabou, e nós aindapassamos um ano inteirodesativando minas em campos,lagos e rios. Na guerra, tudo eradespejado na água, o maisimportante era avançar, chegar aodestino a tempo. Mas agora era

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preciso pensar em outras coisas…Na vida… Para os sapadores, aguerra acabou alguns anos depoisda guerra, combatemos por maistempo que o resto. E o que eraesperar uma explosão depois daVitória? Esperar aquele instante…Não, não! A morte depois daVitória era a morte mais terrível.Uma morte dupla.

Pois bem… Como presente deAno-Novo, em 1946 ganhei dezmetros de cetim vermelho. Eu ri:‘Para que vai me servir? Só sedepois da baixa eu costurar umvestido vermelho para mim. Ovestido da Vitória’. Parecia que eu

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tinha previsto… Logo veio a ordemda minha baixa… Como é depraxe, meu batalhão organizouuma despedida solene. À noite, osoficiais me levaram de presente umlenço azul-escuro, grande, de umamalha fina. Para ganhá-lo, euprecisava cantar a música do lençoazul. Cantei a noite inteira paraeles.

Tive febre no trem. Meu rostoinchou, a boca não abria. Estavamnascendo os dentes do siso… Euestava voltando da guerra…”

Appolina NíkonovnaLitskévitch-Bairak,

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segundo-subtenente,comandante do pelotão

de sapadores

* Varêniki: massa cozida recheada. Deorigem turca, é muito popular naRússia e na Ucrânia.

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“Só olhar uma vez…”

E agora, uma história de amor…O amor é o único acontecimento

pessoal na guerra. Todo o resto écoletivo — até a morte.

O que terminou sendoinesperado para mim? Que, sobreo amor, elas falassem de formamenos franca do que sobre a

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morte. O tempo todo eu sentia queelas não contavam a históriacompleta, sempre paravam emalgum ponto. Protegiam issovigilantemente. Existia entre elasum acordo não dito: daqui para afrente é proibido. Baixa-se acortina. Eu entendia do que elas sedefendiam: das ofensas e calúniasdo pós-guerra. Tinham levado aculpa! Depois da guerra, tiveramainda uma outra guerra, nãomenos terrível do que aquela daqual voltavam. Se alguém decidiaser sincera até o fim, se deixavaescapar uma confissãodesesperada, invariavelmente

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vinha o pedido no fim: “Mudemeu sobrenome”, ou “Na nossaépoca não era permitido falar dissoem voz alta… era indecente…”.Escutei mais sobre o romântico e otrágico.

Claro, não é nem toda a vida,nem toda a verdade. Mas é averdade delas. Como reconheceusinceramente um escritor dageração da guerra: “Maldita seja aguerra, nosso momento triunfal!”.Essa era a senha, a epígrafe comumda vida deles.

E ainda assim: como era ele, oamor? Ao lado da morte…

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SOBRE A MULHER DOS DEMÔNIOSE AS ROSAS DE MAIO

“A guerra tirou o meu amor demim… Meu único amor…

Estavam bombardeando acidade; minha irmã Nina veiocorrendo falar comigo, nosdespedimos. Já pensávamos quenão íamos mais nos ver. Ela medisse: ‘Vou me juntar aosenfermeiros paramilitares, sópreciso encontrá-los’. E então euentendi: olhei para ela, era verão,ela estava usando um vestido leve,e vi que ela tinha um sinal de

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nascença no ombro esquerdo, ali,perto do pescoço. Era minha irmã,mas eu notei isso. Olhava epensava: ‘Vou reconhecê-la emqualquer lugar’.

E um sentimento tãopungente… Um amor desses… Meparte o coração…

Todos estavam indo embora deMinsk. As estradas estavam sendobombardeadas, íamos pela floresta.Em algum lugar, uma meninagritava: ‘Mamãe, a guerra’. Nossaunidade estava recuando. Íamosandando por um campo largo, ocenteio espigando, e perto daestrada havia uma isbá camponesa

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baixa. Já estávamos no distrito deSmoliénsk… Uma mulher estavapostada ao lado da estrada, pareciamaior que a casinha, toda vestidade linho bordado com um desenhotradicional russo. Ela cruzava asmãos no peito e fazia reverênciasprofundas; os soldados passavam,ela fazia uma reverência para eles edizia: ‘Que o Senhor lhe permitavoltar para casa’. Sabe? Ela seinclinava para cada um e falavaisso. Todos ficaram com lágrimasnos olhos…

Me lembrei dela por toda aguerra… E ainda tem outra coisa,isso foi na Alemanha, quando

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estávamos perseguindo os alemães.Em algum povoado… Vi duasalemãs sentadas no pátio, com suastouquinhas, bebendo café. Comose não estivesse acontecendoguerra nenhuma… E pensei: ‘MeuDeus, do nosso lado está tudo emruínas, nossa gente está vivendodebaixo da terra, comendo grama,e vocês sentadas, tomando café’.Nossos veículos, nossos soldadospassando ao lado… E elas bebendocafé…

Depois viajei por nossa terra…O que vi? No lugar de uma vila,sobrou só um fogão. Um velhoestava sentado, e atrás dele três

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netos; pelo visto, tinha perdido ofilho e a nora. A velha estavarecolhendo tições para acender ofogão. Tinha uma peliçapendurada, ou seja, tinham vindoda floresta. Não cozinhavam nadano fogão.

Um sentimento tão pungente…Um amor desses…

… Nosso trem parou. Nãolembro o que aconteceu —estavam fazendo um conserto nostrilhos, ou iam mudar alocomotiva. Eu estava sentada comuma enfermeira, e ao lado doissoldados nossos estavamcozinhando mingau. Saídos não sei

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de onde, dois prisioneiros alemãesse aproximaram de nós ecomeçaram a pedir para comer.Tínhamos pão. Pegamos umabisnaga, partimos e demos paraeles. Escutei a discussão dossoldados que estavam cozinhandomingau:

‘Veja quanto pão as médicasderam para o nosso inimigo!’, edepois algo como: será que elassabem o que é a guerra deverdade, ficam só nos hospitais, deonde vieram…

Um tempo depois outros presosse aproximaram desses soldadosque estavam cozinhando o mingau.

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E o mesmo soldado que haviapouco nos repreendera disse a umalemão:

‘O que foi, quer rangar?’E ele ficou lá… Esperando. O

outro soldado deu uma bisnagapara o camarada.

‘Certo, corte um pouco para ele.’Ele cortou um pedaço para cada.

Os alemães pegaram o pão econtinuaram parados — olhando omingau no fogo.

‘Ah, está bem’, disse umsoldado, ‘dê mingau para eles.’

‘Mas ainda não está pronto.’Entende?E os alemães, como se também

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entendessem a língua, ficaramparados. Esperando. Os soldadostemperaram o mingau com sal ederam para eles em latas deconserva.

Esta é a alma do soldado russo.Nos julgaram, mas eles própriosderam pão, e ainda deram mingau,mas só depois de temperar com sal.É isso o que eu me lembro.

E um sentimento tãopungente… Tão forte…

A guerra tinha terminado haviamuito tempo… Eu estava mepreparando para ir a umbalneário… Foi exatamente naépoca da Crise dos Mísseis de

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Cuba. O mundo estava intranquilode novo. Tudo se agitando. Estavafazendo a mala, pondo vestidos,casaquinhos. Parecia que eu estavame esquecendo de algo. Peguei abolsa com os documentos e tirei delá minha carteirinha militar.Pensei: ‘Se acontece alguma coisa,vou na hora ao centro dealistamento’.

Já estava na praia, descansando,e contei para alguém norestaurante que viera com minhacarteirinha militar. Falei assim, semnenhuma intenção ou desejo deembelezar a história. Um homemque estava na nossa mesa ficou

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alvoroçado:‘Não, só uma mulher russa,

quando vai para um balneário, levaa carteirinha militar e pensa que, seacontece algo, já vai direto para ocentro de alistamento.’

Eu me lembro do estado deêxtase em que ele ficou. Daadmiração. Meu marido me olhavaassim. Com esse olhar…

Desculpe por essa longaintrodução… Não sou capaz decontar na ordem. Meuspensamentos sempre saltam, ossentimentos irrompem…

Eu e meu marido fomos juntospara o front. Os dois.

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Esqueci muita coisa. No entanto,todo dia me lembro de algo.

A batalha terminou… Nãopodia acreditar naquele silêncio.Ele afagava a grama com as mãos, agrama suave… E olhava para mim.Olhava… Com uns olhos…

Tinham saído em grupo para aprospecção. Esperamos dois dias…Eu não dormi por dois dias…Então cochilei. Acordei com elesentado ao meu lado, olhando paramim. ‘Durma.’ ‘Fico com pena dedormir.’

Um sentimento tão pungente…Um amor desses… Me parte ocoração.

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Esqueci muita coisa, esqueciquase tudo. Achava que não iaesquecer. Que não esqueceria pornada.

Estávamos atravessando aPrússia Oriental, todos já estavamfalando da Vitória. Ele morreu…Morreu instantaneamente… Pelosestilhaços… Morte instantânea.Em um segundo. Me informaramque o corpo tinha sido trazido,corri para lá… Eu o abracei e nãodeixei que o levassem. Paraenterrar. Na guerra, faziam osenterros logo em seguida: no diada morte, se a batalha era rápida,juntavam todos na hora, traziam

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de todos os lugares e cavavam umagrande fossa. Cobriam. Às vezes, sócom areia seca. E se você olhassemuito tempo para essa areia,parecia que ela se mexia. Tremia.A areia sacudia. Porque lá… Paramim, ainda havia gente viva,estavam vivos havia pouco. Eu osvia, falava com eles… Nãoacreditava… Todos nós andávamospor ali e não acreditávamos queeles tinham ido para lá… Lá onde?

Não permiti que ele fosseenterrado ali. Queria que aindativéssemos mais uma noite. Deitarao lado dele. Olhar… Afagar…

De manhã… Decidi que o

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levaria para casa. Para aBielorrússia. E isso ficava amilhares de quilômetros. Estradasde guerra… Uma confusão…Todos achavam que eu tinhaficado louca de tanta dor. ‘Vocêprecisa se acalmar. Tem quedormir.’ Não! Não! Eu ia de umgeneral a outro, e assim cheguei aocomandante do front, Rokossóvski.No começo ele recusou… Estavalouca! Quantos já estavamenterrados em valas comuns, emterras estrangeiras…

Tentei mais uma audiência comele:

‘Quer que eu fique de joelhos?’

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‘Eu entendo… Mas ele já estámorto…’

‘Não tive filhos com ele. Nossacasa foi reduzida a cinzas. Até asfotografias foram perdidas. Nãoficou nada. Se eu o levar para anossa terra, restará ao menos otúmulo. E vou poder voltar para ládepois da guerra.’

Ele ficou calado. Andava pelogabinete. Andava.

‘O senhor já amou alguma vez,camarada marechal? Eu não estouenterrando meu marido, estouenterrando meu amor.’

Silêncio.‘Senão, também quero morrer

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aqui. Para que vou viver sem ele?’Ele passou muito tempo calado.

Depois, se aproximou e beijouminha mão.

Deram-me um avião especialpor uma noite. Entrei no avião…Abracei o caixão… E perdi aconsciência…”

Efrossínia GrigórevnaBreus, capitã, médica

“A guerra nos separou… Meumarido foi para o front. Naevacuação, primeiro fui paraKhárkov, depois para a Tartária.Arrumei um trabalho por lá. E

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então uma vez me procuraram,meu sobrenome de solteira éLissóvskaia. Estavam todos mechamando: ‘Sóvskaia! Sóvskaia!’.Respondi: ‘Sou eu!’. Me disseram:‘Vá para a NKVD, pegue umaautorização, depois siga paraMoscou’. Por quê? Ninguém meexplicou nada, e eu não sabia.Tempos de guerra… Durante aviagem, pensava que meu maridotalvez estivesse ferido, talvezestivessem me chamando para ficarcom ele. Já tinha quatro meses queeu não sabia nada do paradeirodele, nenhuma notícia. Estavadeterminada: se o encontrasse sem

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braços, sem pernas, inválido, eu opegaria e levaria para casaimediatamente. Viveríamos dealguma forma.

Cheguei a Moscou, fui até oendereço. Estava escrito: TSK KPB,*ou seja, nosso governo bielorrusso,e lá havia muita gente na mesmasituação. Queríamos saber: ‘O quê?Por quê? Para que nos reuniram?’.Disseram: ‘Logo vão saber’.Reuniram todos em uma salagrande: lá estavam nosso secretáriodo Comitê Central da Bielorrússia,camarada Ponomarenko, e outrosdirigentes. Perguntaram para mim:‘Quer ir para o lugar de onde você

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veio?’. Bem, eu vim daBielorrússia. Claro que quero. Mecolocaram em uma escola especial.Começaram a me preparar, depoisme mandariam para a retaguardado inimigo.

Num dia terminamos otreinamento, já no dia seguinte nospuseram em veículos e nos levaramaté a linha de frente. Depois fomosa pé. Eu não sabia o que era o fronte como era a faixa neutra.Comando: ‘Preparar! Prontidão…’.‘Bum!’ — atiraram o míssil. Vi aneve, branca, branca, e ali haviauma faixa de gente: éramos nós,deitados um após o outro. Havia

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muitos de nós. O míssil se apagou,não houve tiros. Mais umcomando: ‘Correr!’, e saímoscorrendo. Passamos assim…

No destacamento da resistênciapor algum milagre me chegou umacarta do meu marido. Foi algo tãoalegre, tão inesperado, fazia doisanos que eu não sabia nada dele. Eentão um avião jogou comida,munição… E o correio… E nessecorreio, nesse saco de lona haviauma carta para mim. Então fiz umrequerimento escrito para o comitêcentral. Escrevi que faria qualquercoisa para que eu e meu maridoficássemos juntos de novo. E dei a

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carta para o piloto, escondida donosso comandante. Logo soube asnotícias: pelo serviço decomunicação, informaram que,depois do cumprimento da missão,estavam esperando nosso grupo emMoscou. Todo nosso grupo. Nosmandariam para outro lugar…Todos deviam pegar o avião, eFedossenko principalmente.

Esperávamos o avião, era denoite, estava escuro como breu. Eum avião voava em círculos, depoiscomeçou a nos bombardear. Eraum Messerschmitt, os alemãeslocalizaram nosso acampamento;ele deu mais uma volta. Nessa

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hora, o nosso avião, um U-2,desceu bem debaixo de umpinheiro, ao meu lado. O pilotomal aterrissou e já ia subir maisuma vez porque viu que o alemãoestava fazendo a volta e atiraria denovo. Eu me agarrei na asa e gritei:‘Vou para Moscou! Tenhopermissão!’. Ele até soltou unspalavrões: ‘Suba!’. E assim voamosos dois. Nem feridos havia…Ninguém.

No mês de maio, em Moscou,eu andava de botas de feltro. Ia aoteatro usando botas de feltro. E eramaravilhoso. Escrevia ao meumarido: quando nos encontramos?

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Por enquanto estou na reserva…Mas me prometem… Eu pedia portodos os lados: mandem-me paraonde está meu marido, deem-menem que seja dois dias, quero sóolhar para ele uma vez, depoisvolto e vocês me mandam paraonde quiserem. Todos davam deombros. Mas mesmo assim eusabia, pelo número do correio,onde meu marido estavacombatendo, e viajei paraencontrá-lo. Primeiro fui para oComitê Regional do Partido,mostrei o endereço do meu maridoe os documentos para provar queéramos casados e disse que queria

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me encontrar com ele. Meresponderam que isso eraimpossível, ele estava bem na linhade frente, me mandaram voltar, eeu estava tão abatida, tão faminta,como ia voltar? Fui falar com ocomandante do centro dealistamento. Ele olhou para mim eordenou que me dessem algumacoisa para vestir. Deram-me umaguimnastiorka e um cinto. Elecomeçou a me dissuadir:

‘Está louca? O lugar onde estáseu marido é muito perigoso…’

Fiquei sentada, chorando, eentão ele se compadeceu e me deuuma autorização.

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‘Vá para a estrada’, disse, ‘lá háum controlador de tráfego; ele vailhe mostrar como ir.’

Encontrei aquela estrada, aquelecontrolador de tráfego, ele me pôsnum carro e eu fui. Cheguei naunidade, lá todos sesurpreenderam, todos à minhavolta eram militares. ‘Quem évocê?’, perguntaram. Eu não podiadizer ‘esposa’. Bem, como ia falarassim quando havia tanta bombaexplodindo ao meu redor?Respondi que era irmã dele. Nemsei por que disse isso: irmã.‘Espere’, me disseram, ‘você aindaprecisa andar seis quilômetros para

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chegar lá.’ Como eu ia esperar, sejá chegara tão longe? Justo de láchegou um carro para pegar oalmoço, e nele estava umsubtenente assim arruivado,sardento. Ele disse:

‘Ah, eu conheço Fedossenko.Mas ele está bem na trincheira.’

Eu o convenci. Me mandarampara lá; quando estava indo, não sevia nada nem ninguém…Floresta… Uma estrada pelafloresta… Para mim, era umanovidade: estava na linha defrente, e lá não havia ninguém. Devez em quando alguém atirava emalgum lugar. Chegamos. O

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subtenente perguntou:‘Onde está Fedossenko?’Responderam:‘Ontem eles saíram para um

reconhecimento, acabouamanhecendo e eles tiveram queesperar lá.’

Mas tinham como se comunicar.Avisaram a ele que sua irmã viera.Que irmã? Disseram: ‘A ruiva’.Mas a irmã dele era morena. Bem,se é ruiva, na hora ele adivinhouque irmã era. Não sei como eleescapou, mas Fedossenko logoapareceu, e então nosreencontramos. Foi umafelicidade…

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Fiquei com ele um dia, outro, edecidi:

‘Vá para o estado-maior einforme a eles: vou ficar aqui comvocê.’

Ele foi até a chefia, e eu nemrespirava: e se dissessem que eutinha que dar o fora em 24 horas?Estávamos no front, eu entendia.De repente, vi que a chefia estavavindo para o abrigo de terra: omajor, o coronel. Cumprimenteitodos. Depois, claro, nos sentamosno abrigo, bebemos, e cada umdeu sua declaração: que a esposaencontrou seu marido natrincheira, que é esposa legítima,

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tem documentos. E que mulher!Queremos ver que mulher é essa!Eles falaram isso, todos choraram.Vou me lembrar daquela noitepelo resto da vida… O que merestou?

Me alistaram como auxiliar deenfermagem. Eu ia com ele nasmissões de reconhecimento. Ummorteiro atirava, eu via que eletinha caído. Pensava: está mortoou ferido? Corria para lá, omorteiro atirava e o comandantegritava:

‘Para onde está indo, mulherdos demônios?’ Eu me arrastavaaté ele: estava vivo… Vivo!

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Perto do rio Dniepr, em umanoite de lua, me entregaram aOrdem do Estandarte Vermelho.No dia seguinte meu marido foiferido gravemente. Corríamosjuntos, andávamos juntos pelopântano, nos arrastávamos juntos.As metralhadoras atiravam,atiravam, e nós nos arrastávamos,nos arrastávamos, e ele foi feridono quadril. Ferido por uma balaexplosiva; vá tentar fazer umcurativo aí, era bem na nádega.Estava tudo estourado, entravasujeira, terra, tudo. Estávamossaindo do cerco. Não havia paraonde levar os feridos, eu também

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não tinha remédios. A únicaesperança era que rompêssemos ocerco. Quando conseguimos,acompanhei meu marido até ohospital. Enquanto eu o levava,começou uma septicemia. Era noitede Ano-Novo… Estávamosentrando em 1944… Ele estavamorrendo. Eu entendia que eleestava morrendo… Ele foicondecorado várias vezes, eu reunitodas as ordens e pus ao seu lado.Vieram vê-lo, ele estava dormindo.O médico se aproximou:

‘Você precisa ir embora daqui.Ele já está morto.’

Respondi:

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‘Quieto, ele ainda está vivo.’Meu marido abriu os olhos e

disse:‘O teto ficou azul.’Olhei:‘Não, ele não está azul. O teto é

branco, Vássia.’ Mas ele achavaque estava azul.

O vizinho de cama disse:‘Fedossenko, se você sobreviver,

deve carregar sua mulher nosbraços.’

‘Vou carregar’, concordou.Não sei, talvez ele sentisse que

estava morrendo, porque pegouminha mão, se inclinou e beijou.Como se beija pela última vez:

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‘Liúbotchka, que pena, estãotodos comemorando o Ano-Novo,e nós aqui… Não fique triste,ainda vamos ter de tudo…’

E quando restavam algumashoras de vida… Aconteceu umainfelicidade com ele, e precisamostrocar a roupa de cama… Euestendi um lençol novo, refiz oscurativos da perna, tinha quepuxá-lo para o travesseiro, mas eraum homem pesado, eu puxava, meinclinava profundamente, e sentiaque já tinha acabado, que aqualquer minuto ele já não estariaentre nós… Era de noite. Dezhoras e quinze minutos… Me

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lembro até os minutos… Eu queriamorrer… Mas sob o coraçãocarregava nosso filho, e só isso mefez aguentar, sobreviver àquelesdias. Enterrei-o no dia 1o dejaneiro, e 38 dias depois nasceumeu filho: ele é de 1944, já temfilhos também. Meu marido sechamava Vassíli, meu filho éVassíli Vassílievitch, e meu neto éVássia… Vassiliok…”

Liubov FomínitchnaFedossenko, soldado,

auxiliar de enfermagem

* * *

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“Eu via… Todo dia… Mas nãoconseguia me conformar. Umhomem bonito, jovem,morrendo… Queria ter tempo,bem… dar um beijo nele. Fazeralgo feminino por ele, se nãopudesse ajudar como médica. Nemque fosse dar um sorriso. Afagar.Pegar a mão…

Muitos anos depois da guerra,um homem me confessou que selembrava do meu sorriso quandojovem. Para mim era um feridocomum, eu nem lembrava dele.Disse que esse sorriso o trouxe devolta à vida, do outro mundo,como dizem… Um sorriso de

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mulher…”

Vera VladímirovnaCheváldicheva, primeiro-

tenente, cirurgiã

“Chegamos na Primeira FrenteBielorrussa… Vinte e sete garotas.Os homens nos olhavam comadmiração: ‘Nem lavadeiras, nemtelefonistas, são francoatiradoras. Éa primeira vez que vemos moçasassim. Que garotas!’. O subtenenteescreveu versos em nossahomenagem. O sentido geral eraque as meninas fossem comoventescomo rosas de maio, que a guerra

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não mutilasse suas almas.Ao ir para o front, cada uma de

nós fez um juramento: nãoteríamos nenhum romance. Se nosmantivéssemos sãs e salvas, tudoaconteceria depois da guerra. Eantes não tínhamos tido temponem de dar um beijo. Encarávamosessas coisas com mais severidadedo que os jovens de hoje. Beijaralguém, para nós, era se apaixonarpor toda a vida. O amor no frontera proibido; se os comandantesficassem sabendo, via de regra, umdos apaixonados era transferidopara outra unidade, simplesmenteseparavam os dois. Nós o

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protegíamos, guardávamos. Nãomantivemos nossos juramentosinfantis… Nos apaixonávamos…

Acho que se eu não tivesse meapaixonado na guerra, não teriasobrevivido. O amor me salvou. Eleme salvou…”

Sófia Kríguel,primeiro-sargento,

francoatiradora

“Você me pergunta sobre oamor? Não tenho medo de dizer averdade… Eu era ECC, decifrando,‘esposa de campo e campanha’.Esposa de guerra. A segunda.

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Ilegítima.Era o primeiro comandante do

batalhão…Eu não o amava. Era uma boa

pessoa, mas eu não o amava. Fuipara o abrigo de terra com ele unsmeses depois. Onde ia me meter?Só havia homens à minha volta,melhor viver com um do que termedo de todos. Nas batalhas nãoera tão terrível quanto depois,principalmente nos momentos dedescanso, quando recuávamos paraa reorganização. Quando estavamatirando, fogo aberto, eles techamavam: ‘Irmãzinha!Irmãzinha!’, mas depois da batalha

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todos ficavam espreitando… Ànoite, não tinha como sair doabrigo… Outras meninas falaramdisso, ou não admitiram? Achoque ficaram com vergonha…Ficaram caladas… Que orgulhosas!Tinha de tudo, porque a gente nãoqueria morrer. É uma pena morrerquando você é jovem… E para oshomens é difícil passar quatro anossem uma mulher… No nossoExército não havia bordéis etambém não davam pílulas. Talvezem outros lugares cuidassem disso.Conosco, não. Quatro anos… Só oscomandantes podiam se permitiralgo, mas um soldado simples, não.

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Disciplina. Mas não se fala disso…Não é bem-aceito. Não… Eu, porexemplo, era a única mulher dobatalhão, vivia no abrigo de terracomum. Junto com os homens.Separaram um lugar para mim,mas que separação podia ter? Oabrigo todo tinha seis metros. Denoite, acordava agitando os braços,batia na cara de um, nos braços deoutro. Me feriram, fui para ohospital e lá ficava agitando asmãos. A enfermeira me despertavade noite: ‘O que você tem?’. Paraquem eu ia contar?

O primeiro comandante foimorto por estilhaços de mina.

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O segundo comandante dobatalhão…

Eu o amava. Ia com ele para abatalha, queria estar por perto. Euo amava, mas ele tinha umamulher que amava, dois filhos. Memostrava fotos deles. E eu sabiaque, depois da guerra, se ele saíssevivo, voltaria para eles. ParaKaluga. Mas, e daí? Tivemosmomentos tão felizes! Vivemostanta felicidade! Tínhamosvoltado… Uma batalha terrível… Eestávamos vivos. Ele não vai viverisso de novo com mais ninguém.Não vai conseguir! Eu sabia… Eusabia que ele não seria feliz sem

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mim. Não ia conseguir ser felizcomo fomos na guerra com maisninguém. Não vai conseguir…Nunca!

No fim da guerra eu engravidei.Queria tanto… Mas criei nossafilha sozinha, ele não ajudou. Nãomexeu um dedo. Nem umpresente, uma carta… umpostalzinho. Acabou a guerra,acabou o amor. Como umacanção… Ele foi para a esposalegítima, para os filhos. Deixouuma foto de lembrança. E eu nãoqueria que a guerra acabasse… Dámedo dizer isso… Abrir meucoração… Eu era louca. Estava

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apaixonada! Sabia que o amoracabaria junto com a guerra. Oamor dele… Mas mesmo assim souagradecida por esse sentimentoque ele me deu, que conheci comele. Eu o amei por toda a vida,carreguei esse sentimento por anos.Não tenho para que mentir. Jáestou velha. Sim, por toda a vida! Enão me arrependo.

Minha filha me repreendia:‘Mamãe, por que você o ama?’.Mas eu amo… Há pouco temposoube que ele morreu. Choreimuito. Eu e minha filha atébrigamos por isso: ‘Por que estáchorando? Ele já morreu há muito

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tempo para você’. Até agora eu oamo. Lembro da guerra como amelhor época da minha vida, euera feliz…

Só lhe peço que não ponha meusobrenome. Por minha filha…”

Sófia K-vitch,enfermeira-instrutora

* * *

“Na época da guerra…Me levaram para a unidade…

Para a linha de frente. Ocomandante me recebeu com estaspalavras: ‘Tire o gorro, por favor’.Fiquei surpresa… Tirei… No

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centro de alistamento tinhamcortado o nosso cabelo como demenino, mas enquanto estávamosnos campos militares, antes dechegarmos ao front, o cabelo tinhacrescido um pouco. Começava aformar cachos, meu cabelo éencaracolado. Parecia umcarneirinho miúdo… Agora vocênão imaginaria isso… Fiqueivelha… E ele ali, me olhava, meolhava: ‘Estou há dois anos sem veruma mulher. Queria olhar’.

Depois da guerra…Eu morava em uma

kommunalka. Todas as minhascompanheiras de apartamento

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tinham marido, me ofendiam.Humilhavam: ‘Ha-ha-a… Contecomo você f… com os homens lá’.Jogavam vinagre na minha panelade batata. Botavam uma colher desal… Ha-ha-a…

Meu comandante deu baixa. Eleveio me encontrar e nos casamos.Registramos no cartório e pronto.Sem casamento. Um ano depois elefoi embora com outra mulher, achefe do refeitório da nossafábrica: ‘Ela cheira a perfume, vocêfede a botas e trapos’.

Agora, vivo sozinha. Não tenhoninguém em todo o mundo.Obrigada por ter vindo…”

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Ekaterina NikítitchnaSánnikova, sargento,

fuzileira

“O meu marido… Ainda bemque não está aqui, está no trabalho.Ele me proibiu expressamente…Sabe que eu adoro contar do nossoamor… Falar de como costureimeu vestido de noiva a partir deataduras, em uma noite. Eumesma. Eu e as meninas passamosum mês juntando ataduras. Eramtroféus… Eu tive um verdadeirovestido de noiva! Guardei umafotografia: eu, usando aquele

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vestido e botas; não dá para ver asbotas, mas disso eu me lembro,estava de botas. Improvisei umcinto com uma boina velha…Ficou um ótimo cinto. Mas por queé que estou… Falando do meu…Meu marido mandou não dizeruma palavra sobre amor, nadinha,é para falar de guerra. Ele é rígidocomigo. Me ensinou no mapa…Passou dois dias me ensinandoonde estava cada front… Ondeestava nossa unidade… Vou pegar,anotei o que ele disse. Vou ler…

Por que você está rindo? Ah,que risada boa. Eu também ria…Que bela historiadora me saí!

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Melhor eu pegar a foto em queestou com o vestido de ataduras,vou lhe mostrar.

Gosto tanto de como estounela… De vestido branco…”

AnastassiaLeonídovna Jardétskaia,

cabo, enfermeira-instrutora

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SOBRE UM SILÊNCIO ESTRANHODIANTE DO CÉU E UMANELZINHO PERDIDO

“Quando fui embora de Kazanpara o front, era uma menina dedezenove anos…

Seis meses depois, escrevi paraminha mãe que me davam 25, 27anos. Passava cada dia com medo,apavorada. Voava um estilhaço,parecia que ia tirar sua pele fora. Eas pessoas morriam. Morriam tododia, toda hora, tinha a sensação deque a cada minuto. Não havialençóis suficientes para cobrir.

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Deixávamos os corpos em roupasde baixo. Um silêncio estranhopairava nas enfermarias. Não melembro de um silêncio desses emnenhum outro lugar. Quando umapessoa morre, ela sempre olha paracima, nunca para o lado ou paravocê, quando você está por perto.Só para cima… Para o teto…Parece que está olhando para océu…

Eu dizia para mim que nãoconseguiria escutar uma só palavrasobre amor naquele inferno. Nãoconseguiria acreditar. Dos anos daguerra, não consigo me lembrarnem das canções. Nem da famosa

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‘Zemlianka’** eu me lembro. Deuma sequer… Lembro apenas que,quando saí de casa rumo ao front,as cerejeiras do nosso jardimestavam florescendo. Ia andando eolhando ao meu redor… Depois,certamente vi jardins nas estradas,eles também floresciam na guerra.Mas eu não me lembro… Naescola eu era tão risonha, e ali eunão sorria nunca. Se via quealguma das meninas estavafazendo a sobrancelha ou pintandoos lábios, ficava desconcertada. Issoeu repudiava categoricamente:como era possível, como ela queriaagradar a alguém em tempos como

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esses?Rodeada de feridos, rodeada de

gemidos… Os mortos têm uma coramarelo-esverdeada no rosto.Como alguém pode pensar emalegria? Na própria felicidade? Eunão queria juntar amor comaquilo. Com aquilo… Me pareciaque ali, naquelas circunstâncias, oamor morreria em um instante.Sem triunfo, sem beleza, comopode haver amor? Quando aguerra acabasse, a vida seria bela. Eo amor também. Mas ali… Ali,não. E se eu de repente morro,aquele que me ama vai sofrer. Eme dava tanta pena. Era essa

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minha sensação.Meu marido, ele flertava comigo

lá, nos conhecemos no front. Eunão queria nem escutar: ‘Não, não,quando a guerra acabar, só entãopodemos falar disso’. Nunca vouesquecer como ele voltou de umabatalha uma vez e pediu: ‘Vocênão tem um casaquinho? Vista, porfavor. Quero ver como você fica decasaco’. Mas eu não tinha nadaalém da guimnastiorka.

Eu até falei para uma amiga, elase casou no front: ‘Ele não lhe deuflores. Não flertou com você. E, derepente, vocês se casam. Por acasoisso é amor?’. Eu não

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compartilhava os sentimentos dela.A guerra acabou… Olhávamos

um para o outro e nãoacreditávamos que a guerra tinhaacabado e nós estávamos vivos. Eagora iríamos viver… Iríamosamar… E nós já tínhamosesquecido tudo isso, não sabíamoscomo fazer. Cheguei em casa, fuicom minha mãe encomendar umvestido para mim. Meu primeirovestido depois da guerra.

Chegou minha vez, e meperguntaram:

‘Que corte quer?’‘Não sei.’‘Como a senhora vem a um

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ateliê e não sabe que vestido quer?’‘Não sei…’Havia cinco anos eu não via um

vestido sequer. Até tinhaesquecido como se costurava umvestido. Que precisava de algunsajustes, de alguns cortes… Cinturabaixa, cintura alta… Eraincompreensível para mim.Comprei sapatos de salto, andeipelo quarto e tirei. Deixei-os nocanto e pensei: ‘Nunca vouaprender a andar nisso…’.”

Maria SeliviôrstovnaBojok, enfermeira

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“Quero me lembrar… Querofalar que trouxe um sentimentoextraordinariamente belo daguerra. Ah, mas não tem palavraspara descrever com que êxtase eadmiração os homens serelacionavam conosco. Eu viviacom eles no mesmo abrigo deterra, dormia nas mesmas tábuas,ia para as mesmas missões, e,quando eu estava congelando,quando sentia meu baçocongelando, a língua congelandona boca, a ponto de perder aconsciência, pedia: ‘Micha,desabotoe seu casaco de peles, meaqueça’. Ele me aquecia: ‘E então,

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está melhor?’. ‘Estou.’Nunca mais encontrei isso na

vida. Mas era proibido pensar emalgo pessoal quando a pátria corriaperigo.”

“Mas o amor acontecia?”“Sim, acontecia. Eu via… E você

me desculpe, pode ser que euesteja errada e isso não seja muitonatural, mas no fundo eu julgavaaquelas pessoas. Considerava quenão era hora de fazer amor.Estávamos cercados pelo mal. Peloódio. Acho que muitos pensavamassim…”

“E como você era antes daguerra?”

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“Eu gostava de cantar. Gostavade rir. Queria ser piloto. E eu lá iapensar em amor? Isso não eraimportante na minha vida. O maisimportante era a pátria. Agoraacho que éramos ingênuos…”

Elena VíktorovnaKlenóvskaia, partisan

“No hospital… Estavam todosfelizes. Estavam felizes porque, nofim, estavam vivos. Tinha umtenente de vinte anos preocupadopor ter perdido uma perna. Mas naépoca, em meio àquela dorgeneralizada, isso parecia uma

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sorte: ele estava vivo, e daí que nãotinha uma perna? O maisimportante é que estava vivo. Teriaamor, se casaria, tudo. Agora,perder uma perna é um horror,mas na época todos pulavam comuma perna só, fumavam, riam.Eram heróis, afinal! Como não?”

“Você se apaixonou lá?”“Claro, éramos tão jovens. Era

só os feridos chegarem que nosapaixonávamos por alguém, semfalta. Uma amiga minha seapaixonou por um tenente, eleestava todo coberto de feridas. Elame mostrou: é ele. Mas eu, claro,decidi me apaixonar por ele

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também. Quando o levaram, eleme pediu uma foto. Eu tinha uma,tinham me fotografado em algumaestação de trem. Peguei-a, masdepois pensei: vou dar minha fotode presente para ele? E se isso nãofor amor? Ele já estava sendolevado, meu braço estavaestendido para ele, a foto na minhamão, mas eu não me atrevi a soltá-la. E foi assim que terminou esseamor…

Depois teve Pávlik, tambémtenente. Ele sentia muita dor, porisso pus um chocolate embaixo doseu travesseiro. E quando nosencontramos, isso já depois da

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guerra, vinte anos mais tarde, elecomeçou a agradecer à minhaamiga Lília Drozdova pelochocolate. Ela disse: ‘Quechocolate?’. Então confessei quetinha sido eu… E ele me deu umbeijo… Vinte anos depois, me deuum beijo…”

Svetlana NikoláievnaLiúbitch, enfermeira

paramilitar

“Uma vez, depois de umconcerto… Em um grande hospitalda evacuação… O médico-chefe seaproximou de mim e pediu:

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‘Temos aqui, numa enfermariaindividual, um tanquistagravemente ferido. Ele não reage aquase nada, mas talvez sua cançãoo ajude’. Fui até a enfermaria. Portoda a minha vida, nunca vouesquecer aquele homem que, porum milagre, conseguiu sair de umtanque em chamas e tevequeimaduras da cabeça aos pés.Estava imóvel, estendido na cama,com o rosto negro, sem olhos. Sentium nó na garganta e levei algunsminutos para retomar o controle.Depois, comecei a cantarbaixinho… Vi que o rosto doferido se mexeu um pouco.

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Sussurrou algo. Eu me inclinei eescutei: ‘Cante mais…’. Canteimais e mais, apresentei todo o meurepertório, até que o médico-chefedisse: ‘Acho que ele dormiu…’”

LíliaAleksándrovskaia,

artista

“O nosso comandante debatalhão e uma enfermeira, LiubaSílina… Eles se amavam! Todosviam isso… Ele ia para umabatalha, e ela… Dizia que não seperdoaria se ele morresse longe dosolhos dela, se ela não o visse em

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seu último minuto. ‘Que nosmatem juntos’, dizia ela ‘que nosacertem com o mesmo projétil.’Estavam se preparando paramorrer juntos ou viver juntos.Nosso amor não se dividia entrehoje e amanhã, era só hoje. Todossabiam que você amava agora, masum minuto depois ou você ou aoutra pessoa podiam já não estarentre nós. Na guerra, tudoacontecia mais rápido: tanto a vidaquanto a morte. Em alguns anos lá,vivemos uma vida inteira. Nuncaconsegui explicar isso paraninguém. Era um outro tempo.

Em uma batalha, o comandante

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do batalhão foi gravemente ferido,e Liuba teve um ferimento leve,um arranhão no ombro. Ele foimandado para a retaguarda, elaficou. Já estava grávida, ele deuuma carta a ela: ‘Vá para a casa dosmeus pais. Aconteça o queacontecer comigo, você é minhaesposa. Teremos nosso filho oufilha’.

Depois, Liuba me escreveu: ospais dele não a aceitaram e nãoreconheceram a criança. Ocomandante morreu.

Passei muitos anos pensandoque… Queria fazer uma visita aela, mas não deu. Éramos amigas

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tão próximas. Mas ela estava longe,em Altai. Há pouco tempo mechegou uma carta dizendo que elamorreu. Agora, o filho dela estáme chamando para ir visitar otúmulo…

Quero ir…”

Nina LeonídovnaMikhai, primeiro-

sargento, enfermeira

“O Dia da Vitória…Estávamos nos aprontando para

ir ao nosso tradicional encontro.Saí do hotel e as meninas medisseram:

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‘Onde você estava, Lília?Choramos até dizer chega.’

Soube que um homem tinha seaproximado delas, um cazaque, eperguntado:

‘Meninas, de onde vocês eram?De que hospital?’

‘Quem você está procurando?’‘Todo ano venho aqui e procuro

uma enfermeira. Ela salvou minhavida. Eu me apaixonei por ela.Quero encontrá-la.’

Minhas amigas riram:‘Mas que enfermeirinha você

está procurando? Já vai ser umaavó.’

‘Não…’

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‘Você tem esposa? Filhos?’‘Tenho netos, tenho filhos,

tenho esposa. Mas perdi minhaalma… Não tenho alma…’

As meninas me contaram isso, ejuntas lembramos: não seria o meucazaque?

… Trouxeram um rapazcazaque. Um rapazinho de tudo.Fizemos a operação nele. Tinhasete ou oito rupturas no intestino,foi considerado sem esperanças.Estava deitado, tão apático quereparei nele imediatamente.Sempre que tinha um minutosobrando, corria até ele: ‘E aí, estátudo bem?’. Eu mesma dava a

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injeção, media a temperatura, ecom dificuldade ele foimelhorando. Entrou emrecuperação. Nós não ficávamoscom os doentes por muito tempo,estávamos na linha mais avançada.Prestávamos o socorro maisurgente, arrancávamos da morte emandávamos adiante. E precisaramlevá-lo no grupo seguinte.

Ele estava na maca, me disseramque estava me chamando.

‘Irmãzinha, chegue mais perto.’‘O que foi? O que quer? Está

tudo bem com você. Vão mandá-lopara a retaguarda. Vai ficar tudocerto. Pense que você vai viver.’

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Ele pediu:‘Eu peço encarecidamente, sou

filho único. Você me salvou.’ E medeu um presente: um anelzinho,um anel pequenininho.

Eu não usava anel, por algummotivo não gostava. E recusei:

‘Não posso. Não posso.’Ele pedia. Os outros feridos o

ajudavam.‘Pegue, ele está dando de

coração.’‘É o meu dever, entendem?’Me convenceram. Na verdade,

perdi esse anel depois. Ficavagrande em mim, e uma vezadormeci, o carro deu um

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solavanco e ele caiu. Lamenteimuito.”

“Vocês encontraram essehomem?”

“Não encontramos. Não sei, eraele? Eu e as meninas passamos odia inteiro procurando por ele.

… Em 1946, voltei para casa.Me perguntaram: ‘Você vai defarda militar ou roupa civil?’.Claro, farda militar. Nem pensavaem tirar. À noite, fomos para umbaile da Casa dos Oficiais. E vocêvai ver como eles tratavam asgarotas militares.

Eu estava de sapatos e vestido,deixei o capote e as botas na

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chapelaria.Um militar se aproximou de

mim e me tirou para dançar.‘Você não é daqui, com certeza’,

disse. ‘É muito intelectual.’E passou a noite toda comigo.

Não me deixou sair de perto.Depois das danças, ele me disse:

‘Me dê sua ficha da chapelaria.’E foi na frente. Na chapelaria,

deram a ele as botas e o capote.‘Esse não é meu…’Eu me aproximei:‘Não, é meu.’‘Mas você não me disse que

esteve no front.’‘E você perguntou?’

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Ele ficou envergonhado. Nãoconseguia me encarar. E elemesmo tinha voltado da guerra…

‘Por que está tão surpreso?’‘Nunca teria imaginado que

você esteve no Exército. Umagarota do front, entende…’

‘Quer dizer que está surpresoporque estou só? Sem marido nemgrávida? Não uso casacoacolchoado, não dou baforadas nocigarro Kazbek e não falopalavrões?’

Não deixei que ele meacompanhasse.

Sempre tive orgulho de terestado no front. Defendi a

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pátria…”

Lília MikháilovnaButkó, enfermeira

cirúrgica

“Meu primeiro beijo…O segundo-subtenente Nikolai

Belokhvóstik… Ah, veja só, fiqueitoda vermelha, e olha que já souavó. Eram os anos de juventude.De mocidade. Eu achava… Tinhacerteza… Que… Não admiti paraninguém, nem para minha amiga,que estava apaixonada.Perdidamente. Meu primeiroamor… Talvez o único? Quem

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sabe… Eu achava: ninguém nacompanhia suspeita. Nunca tinhagostado tanto de alguém! Quandogostava, não era muito. Mas ele…Eu pensava nele o tempo todo, acada minuto. Que… Era um amorverdadeiro. Eu sentia. Todos ossinais… Ai, veja, fiquei corada…

Fizemos o enterro… Ele estavasobre um pedaço de lona, tinhaacabado de ser assassinado. Osalemães estavam atirando. Erapreciso enterrar rápido… Naquelahora… Encontramos umas bétulasantigas, escolhemos aquela queestava depois de um velhocarvalho. A mais alta. Ao lado

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dela… Tentei gravar na memóriapara voltar depois e encontraraquele lugar. Aqui termina a vila,aqui há uma bifurcação… Mascomo ia gravar? Como ia gravar seuma das bétulas já estavaqueimando diante dos nossosolhos? Como? Começamos a nosdespedir dele… Me disseram:‘Você é a primeira!’. Meu coraçãosaltou, eu entendi… Que… Todos,via-se, sabiam do meu amor.Todos sabiam… Me veio umaideia: talvez ele soubesse? Ali…Deitado… Já iam baixá-lo para aterra… Enterrar. Cobrir comareia… Mas eu fiquei morrendo de

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felicidade com essa ideia, de quetalvez ele também soubesse. E seele gostasse de mim? Como se eleestivesse vivo e fosse respondernaquela hora… Lembrei que, noAno-Novo, ele me deu umchocolate alemão. Levei um mêspara comer, guardava no bolso.

Vou me lembrar disso por todaa vida… Desse momento…Voavam bombas… Ele… Estavadeitado na lona… Aquelemomento… E eu estava feliz… Ali,rindo para mim mesma. Umalouca. Estava feliz porque ele talvezsoubesse do meu amor…

Me aproximei e dei um beijo

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nele… Antes disso, nunca tinhabeijado um homem… Foi oprimeiro…”

Liubov MikháilovnaGrozd, enfermeira-

instrutora

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SOBRE A SOLIDÃO DE UMA BALA EDE UMA PESSOA

“Minha história é particular…As orações me consolam. Rezo porminha filha…

Lembro de um provérbio daminha mãe. Mamãe costumavadizer: ‘A bala é dura, o destino écruel’. Ela usava esse provérbiopara qualquer desgraça. A bala éuma só, o ser humano é um só, abala voa para onde quiser, odestino manipula uma pessoacomo quiser. Para lá e para cá, paralá e para cá. Uma pessoa é uma

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pluma, uma pluma de pardal.Nunca saberá o seu futuro. Nãonos é dado… Não nos é permitidopenetrar no mistério. Uma ciganapreviu meu futuro quandoestávamos vindo da guerra. Seaproximou na estação de trem, mechamou para um lado… Prometeuum grande amor… Eu tinha umrelógio alemão, tirei e dei a ela poresse grande amor. Acreditei.

Agora não consigo parar dechorar por esse amor…

Eu me aprontei para ir à guerraalegremente. Como umaintegrante do Komsomol. Juntocom todos. Viajávamos em vagões

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de mercadorias; neles havia umainscrição com mazute negro:‘Quarenta pessoas — oito cavalos’.Éramos umas cem pessoas.

Me tornei francoatiradora.Podia ficar nas comunicações, erauma profissão útil, tanto na guerraquanto em tempos de paz. Umaprofissão feminina. Mas disseramque era preciso atirar, eu atirava.Atirava bem. Recebi duas Ordensda Glória, quatro medalhas. Portrês anos de guerra.

Gritaram para nós: Vitória!Anunciaram: Vitória! Lembro domeu primeiro sentimento, alegria.E na mesma hora, no mesmo

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minuto, medo! Pânico! Como iacontinuar a vida? Papai tinhamorrido perto de Stalingrado.Meus dois irmãos mais velhosforam dados como desaparecidosno começo da guerra. Sobramosmamãe e eu. Duas mulheres.Como íamos viver? Todas nós,meninas, ficávamos pensandonisso… Nos reunimos à noite noabrigo de terra… Em nossasconversas, dizíamos que a vidaestava só começando. Alegria emedo. Antes tínhamos medo damorte, agora, da vida… Eraigualmente assustador. Verdade!Falávamos, falávamos, depois

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ficávamos sentadas em silêncio.Casaríamos ou não casaríamos?

Por amor ou sem amor?Adivinhávamos nas margaridas…Jogávamos guirlandas no rio,queimávamos velas… Lembro queem uma aldeia nos mostraram umlugar onde morava uma feiticeira.Todos correram para lá, até algunsoficiais. As meninas, todas. Elaprevia o futuro na água. Lia a mão.Outra vez, um tocador de realejoestendeu uns papeizinhos para nós.Uns bilhetinhos. Acabei pegandopapeizinhos felizes… E onde estáela, minha felicidade?

Como a pátria nos recebeu? Não

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consigo contar sem soluços…Quarenta anos se passaram, e atéhoje meu rosto queima. Oshomens se calavam, mas asmulheres… Elas gritavam para nós:‘Sabemos o que vocês faziam lá!Com as b… jovens seduziamnossos homens. P… do front.Cadelas militares…’. Nos ofendiamde várias maneiras… Ovocabulário russo é rico…

Às vezes, um rapaz meacompanhava do baile para casa e,de repente, eu me sentia mal, mal,o coração palpitava. Andava,andava e sentava em um monte deneve. ‘O que você tem?’ ‘Nada.

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Dancei demais.’ Mas eram minhasduas feridas. Era a guerra… Eprecisava aprender a ser carinhosa.Ser fraca e frágil, e os meus pés sealargaram de tanto usar botas —calçava quarenta. Não tinha ocostume de ser abraçada. Estavaacostumada a responder por mimmesma. Esperava por palavrasternas, mas não as entendia. Paramim, pareciam infantis. No front,entre os homens, falávamospalavrões pesados. Estavaacostumada. Uma amiga mesugeriu, ela trabalhava nabiblioteca: ‘Leia poemas. LeiaIessiênin’.

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Me casei rapidamente. Um anodepois. Com um engenheiro danossa fábrica. Eu sonhava com oamor. Queria uma casa e umafamília. Que a casa cheirasse acrianças pequenas. As primeirasfraldas eu cheirei, cheirei, não mecansava nunca. Cheiro defelicidade. Felicidade de mulher.Na guerra, não há cheirosfemininos, são todos masculinos. Aguerra tem cheiro de homem.

Tenho dois filhos… Um meninoe uma menina. O primeiro foi omenino. É um rapaz bom,inteligente. Se formou nauniversidade. É arquiteto. Mas a

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menina… Minha menina… Elacomeçou a andar com cinco anos,falou a primeira palavra, ‘mamãe’,com sete. Até hoje não sai‘mamãe’, mas ‘muma’, nem ‘papai’,mas ‘pupa’. Ela… Agora acho quenão é verdade. É um engano. Elavive em um manicômio… Está láhá quarenta anos. Desde que meaposentei, vou vê-la todo dia. Meupecado…

Já há muitos anos, a cada 1o desetembro compro uma novacartilha para ela. Lemos juntas pordias inteiros. Às vezes volto davisita achando que desaprendi a ler

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e escrever. A falar. E não precisode nada disso. Para quê?

Fui punida… Por quê? Talvezpor ter matado? Às vezes pensoisso também… Na velhice, tenhomuito tempo… Penso e penso…De manhã fico de joelhos, olhopela janela. Peço a Deus… Rezopor todos… Não guardo mágoasdo meu marido, há muito tempo operdoei. Dei à luz minha filha…Ele olhou para nós… Ficou umpouco e foi embora. Saiu dandobronca: ‘E uma mulher normal vaipara a guerra, por acaso? Aprendea atirar? Por isso você não é capazde ter um filho normal’. Rezo por

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ele…Será que ele está certo? Às vezes

penso isso também… Meupecado…

Eu amava a pátria mais do quetudo no mundo. Amava… A quemposso contar agora? Para minhafilha… Só para ela… Eu me lembroda guerra, e ela pensa que estoucontando contos de fadas.Historinhas de criança. Contosterríveis para criança…

Não escreva meu sobrenome.Melhor não…”

Klávdia S-va,francoatiradora

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* Sigla para Comitê Central do PartidoComunista da Bielorrússia.** Canção soviética composta porAleksei Surkóv e Konstantin Listovdurante a Segunda Guerra.

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“Sobre a batatamiudinha…”

Teve ainda uma outra guerra…Nessa guerra, ninguém

ressaltava no mapa onde passava afaixa neutra e onde começava alinha de frente. Ninguémconseguia calcular todos os

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soldados que havia ali. Asunidades armadas. Atiravam comequipamento antiaéreo,metralhadoras, armas de caça.Com velhas espingardas Berdan.Não havia pausa para respirar nemataques generalizados, muitoslutavam a sós. Morriam a sós.Quem combatia não era umexército — divisões, batalhões,companhias —, mas partisans egrupos clandestinos: homens,velhos, mulheres, crianças. Tolstóichamava esse impulsomultifacetado de “sarrafo daguerra popular” e “calor latente dopatriotismo”; e Hitler, depois de

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Napoleão, reclamava com seusgenerais que “a Rússia não segue asregras de combate”.

Morrer nessa guerra não era oque dava mais medo. Havia outracoisa mais assustadora.Imaginemos um soldado no front,cercado por sua família: filhos,mulher, pais idosos. A cada minutoera preciso estar pronto parasacrificá-los também. Entregá-lospara a imolação. A coragem, assimcomo a traição, geralmente nãotinha testemunhas.

Nas nossas aldeias, no Dia daVitória, as pessoas não ficamfelizes, mas choram. Choram

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muito. Têm saudades. “Foi tãoterrível… Enterrei todos os meusparentes, enterrei minha alma naguerra” (V. G. Andróssik, membroda resistência).

Começam a contar baixinho,mas, no fim, quase todos estãogritando.

“Sou testemunha…Vou contar do comandante do

nosso destacamento deresistência… Melhor não dizer osobrenome dele, porque osparentes ainda estão vivos. Seriadoloroso para eles ler isso.

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Os mensageiros comunicaramno destacamento: a Gestapo tinhalevado a família do comandante: amulher, as duas filhas pequenas e amãe idosa. Penduraram anúnciospor todos os lados, distribuíramfolhetos na feira: se o comandantenão se entregasse, enforcariam afamília. O prazo para pensar era dedois dias. Os politsai andavam pelaaldeia agitando as pessoas: oscomissários vermelhos não tinhampena nem dos filhos. São monstros.Não existe nada sagrado para eles.De um avião, jogavam folhinhassobre a floresta… O comandantequeria se entregar, queria se matar

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com um tiro. Não o deixamossozinho por todo esse tempo.Ficávamos de olho nele. Podia sematar…

Entramos em contato comMoscou. Informamos a situação.Recebemos a instrução… Naqueledia mesmo, fizemos uma reuniãodo Partido no destacamento. Nela,foi tomada a decisão: não ceder àprovocação alemã. Como um bomcomunista, ele se submeteu àdisciplina do Partido…

Dois dias depois, mandamosbatedores para a cidade. Elestrouxeram a notícia terrível: toda afamília tinha sido enforcada. Na

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primeira batalha, o comandantemorreu… Uma morte meioincompreensível. Casual. Acho queele queria morrer…

Tenho lágrimas em vez depalavras… Como vou meconvencer de que é preciso falardisso? Como vou acreditar… Aspessoas querem levar uma vidatranquila, agradável, e não meescutar e sofrer…”

V. Korotáieva,partisan

Eu também vou meconvencendo de que é preciso ir

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em frente…

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SOBRE UMA CESTA COM UMAMINA E UM BRINQUEDO DEPELÚCIA

“Cumpri uma missão… E aí, jánão podia ficar no povoado, fuipara as brigadas. Uns dias depois, aGestapo prendeu a minha mãe.Meu irmão conseguiu fugir, maslevaram minha mãe. Foi torturadae interrogada: onde está sua filha?Ficou dois anos lá. Por dois anos,os fascistas mandavam minha mãee outras mulheres na frentequando saíam para as operações…Tinham medo das minas dos

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partisans e sempre mandavam oshabitantes locais na frente: sehouvesse minas, essas pessoasexplodiriam e os soldados alemãesficariam inteiros. Eram escudoshumanos… Com minha mãetambém fizeram isso por dois anos.

Aconteceu mais de uma vez:estávamos esperando em umaemboscada e de repente víamosumas mulheres andando e, atrásdelas, os alemães. Você chegavaperto e via que sua mãe estava ali.O mais assustador era esperar omomento em que o comandantedava a ordem de atirar. Todosesperavam essa ordem com medo,

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porque um sussurrava: ‘Lá vaiminha mãe’, o outro: ‘Lá vai minhairmãzinha’, alguém via o filho…Minha mãe sempre usava umlencinho branco. Ela era alta, erasempre a primeira que distinguiam.Eu mesma não conseguia notar, eme repassavam: ‘Sua mãe estáali’… Davam o comando de atirar,a gente atirava. E você mesma nãosabia para onde estava atirando, sótinha uma coisa na cabeça: nãoperder de vista o lencinho branco— ela estava viva ou tinha caído?O lencinho branco… Todos saíamcorrendo, caíam, e você não sabiase sua mãe tinha sido assassinada

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ou não. Depois, durante dois diasou mais eu sentia que não era eumesma, até que os mensageirosvoltassem do povoado e dissessemque ela estava viva. Aí euconseguia viver de novo. E assimia, até a próxima vez. Acho queagora eu não aguentaria. Mas eu osodiava… O ódio me ajudava… Atéhoje tenho nos ouvidos o grito deuma criança quando foi atiradadentro de um poço. Já escutou essegrito alguma vez? A criança cai egrita, grita como se viesse de algumlugar debaixo da terra, do outromundo. Não era um grito infantil,nem humano… Ver um rapaz

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jovem ser esquartejado com umaserra… Um partisan dos nossos…Depois disso, quando você sai parauma missão, o coração só pedeuma coisa: matá-los, matar o maiornúmero possível, exterminar dojeito mais cruel. Quando eu via osfascistas prisioneiros, tinha vontadede pegar qualquer um. Estrangular.Estrangular com as mãos, mordercom os dentes. Eu não mataria,seria uma morte leve demais paraeles. Não com uma arma, com umfuzil…

Antes de bater em retirada, issojá em 1943, os fascistas fuzilaramminha mãe… Minha mãe era

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assim, ela mesma nos deu abênção:

‘Vão, meus filhos, vocêsprecisam viver. Em vez de morrerpor nada, é melhor morrer, masnão por nada.’

Mamãe não usava palavrasgrandes, ela encontrava essaspalavras simples de mulher. Queriaque a gente vivesse e estudasse, emparticular que estudasse.

As mulheres que estiveram nacela com ela contavam que, cadavez que era levada, ela pedia:

‘Ah, amigas, só choro por umacoisa: se eu morrer, ajudem meusfilhos!’

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Depois da guerra, uma dessasmulheres me adotou, apesar de terdois filhos pequenos. Os fascistasqueimaram nossa casa, meu irmãomais novo morreu na resistência,fuzilaram mamãe, meu pai estavano front. Voltou do front ferido,doente. Viveu mais um pouco,depois morreu. E aí de toda afamília só fiquei eu. Essa mulherera pobre, tinha seus dois filhos,decidi partir, ir embora para algumlugar. Ela chorava e não queria medeixar ir.

Quando fiquei sabendo quefuzilaram minha mãe, perdi arazão. Não encontrava meu lugar,

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não tinha paz. Precisava…Precisava achá-la… Depois dofuzilamento, tinham aplainado aterra com umas máquinaspesadas… Estavam em uma grandevala antitanque… Me mostrarammais ou menos onde ela estava, eeu corri, cavei ali, revolvi oscadáveres com as mãos. Reconheciminha mãe por um anel… Quandovi esse anel, soltei um grito e já nãome lembro de mais nada. Não melembro de nada… Algumasmulheres a levaram, lavaram comuma lata de conserva e enterraram.Até hoje guardo essa latinha.

À noite, eu às vezes fico deitada,

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pensando: minha mãe morreu porminha culpa… Se eu tivesse tidomedo pelas pessoas próximas amim, não teria ido lutar; mastambém se uma terceira, umaquarta pessoa tivessem feito issonão existiria o que há agora. Masdizer para mim mesma…Esquecer… Quando minha mãepassava… O comando soava… Eeu atirava para o lado de onde elaestava vindo… O lencinhobranco… Você nunca vai sabercomo é difícil viver com isso.Quanto mais longe chego, maisdifícil é. Às vezes, à noite, derepente escuto um riso ou uma voz

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jovem vir pela janela e tremo, derepente parece que é um choro decriança, um grito de criança. Eacordo de repente, sinto que nãoconsigo respirar. Estou sufocandocom o cheiro de queimado… Vocênão sabe como é o cheiro de umcorpo humano queimado,especialmente no verão. Algoinquietante e doce. Agora trabalhono Comitê Executivo Regional e, seacontece um incêndio em algumlugar, tenho que ir para lá, fazerum documento. Mas se me dizemque um sítio queimou em algumlugar, que morreram animais, eununca vou, não sou capaz… Me

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faz lembrar disso… Desse cheiro…Quando as pessoas ardiam… E ànoite eu acordo, corro para pegarum perfume e parece que operfume também tem essecheiro… Está em todo lugar.

Por muito tempo tive medo deme casar. Tinha medo de ter filhos.De repente podia começar umaguerra e eu iria para o front. Comoficariam as crianças? Agora estouadorando ler livros sobre a vidaapós a morte. O que tem lá? Comquem vou me encontrar? Tenhovontade e medo de encontrarmamãe. Quando era jovem nãotinha, mas agora que fiquei

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velha…”

AntoninaAliekséievna

Kondrachova, batedorada brigada de partisans

Bitóchskaia

“Minha primeira impressão…Quando avistei um alemão… Eracomo se tivessem batido em mim,todo meu corpo doía, cada célula— como é que eles estão aqui? Oódio, ele era mais forte do que omedo pelas pessoas próximas,amadas, do que o medo da própriamorte. Claro, pensávamos em

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nossos parentes, mas não tínhamosescolha. O inimigo chegou comraiva na nossa terra… A ferro efogo…

Por exemplo, quando soube quedeviam me prender, fugi para afloresta. Para me juntar àresistência. Saí, deixando em casaminha mãe de 75 anos, e ainda porcima sozinha. Combinamos que elafingiria ser cega e surda, e aíninguém tocaria nela. Claro, eudizia isso para me tranquilizar.

No dia seguinte à minha saída,os fascistas entraram na casa.Minha mãe fingiu que era cega,que não escutava bem, como

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combinamos. Eles lhe deram umasurra terrível, torturaram, queriamsaber onde estava a filha. Minhamãe passou muito tempo comdor…”

Iadviga MikháilovnaSavítskaia, membro da

resistência

“Vou continuar a mesma até ofim… Do mesmo jeito que éramosnaquela época. Sim, ingênua, sim,romântica. Até ficar com os cabelosbrancos… Mas sou eu!

Minha amiga Kátia Simakovaera mensageira dos partisans.

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Tinha duas filhas. As duaspequenas, quantos anos elastinham? Uns seis, sete anos. Elapegava essas meninas pela mão eandava pela cidade gravando namemória onde ficava cadaequipamento que os alemãesusavam e quais eram. Se umguarda gritava, ela abria a boca efingia ser boba. Foi assim poralguns anos… A mãe sacrificava asfilhas…

Tinha também a Zajárskaia, elatinha uma filha: Valéria. Umamenina de uns sete anos. Erapreciso explodir um restaurante.Decidimos colocar a mina em um

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fogão, mas ela tinha que levar. Amãe disse que a filha levaria amina. Pôs dentro de uma cesta, epor cima umas duas roupinhas decriança, um boneco de pelúcia,duas dezenas de ovos e óleo. Eassim a menina levou a mina paradentro do restaurante. Dizem queo instinto materno é mais forte doque tudo. Não, uma ideia é maisforte! E a fé também é mais forte!Eu acho… Até estou convencidade que, se não existisse essa mãe,essa menina, e se elas não tivessemlevado essa mina, não teríamosvencido. Sim, a vida é uma coisaboa. Maravilhosa! Mas há coisas

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mais preciosas…”

Aleksandra IvánovnaKhrámova, secretária do

Comitê do PartidoRegional Clandestino

Antopolski

“No nosso destacamento tinhaos irmãos Tchimuk… Eles caíramnuma emboscada na sua aldeia,trocaram tiros até chegar a umgalpão que logo foi incendiado.Enquanto não acabaram oscartuchos, eles ficaram atirando…Depois saíram chamuscados…Foram levados em uma telega, e os

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alemães iam mostrando para ver sealguém reconhecia. Se alguém osentregava…

Toda a aldeia estava ali. O pai ea mãe deles também, mas ninguémproferiu um som. Que coração essamãe precisou ter para não gritar.Não demonstrar. Mas ela sabiaque, se chorasse, queimariam todaa aldeia. Não matariam somenteela… Ela sabia… De todas asmedalhas, nenhuma é suficiente, eaté a mais alta Estrela do Herói épouco para essa mãe… Pelosilêncio…”

Polina Kasperóvitch,

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partisan

“Fomos as duas para ospartisans, eu e minha mãe… Elalavava a roupa de todos, cozinhava.Se fosse preciso, montava guardatambém. Uma vez, saí para umamissão e informaram a ela que eutinha sido enforcada. Quandovoltei, alguns dias depois, minhamãe me viu e ficou paralisada,perdeu a fala por algumas horas.Tínhamos que sobreviver a tudoisso…

Recolhemos uma mulher naestrada, estava sem consciência. Ela

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não conseguia andar, se arrastava eachava que já estava morta. Sentiao sangue escorrendo, mas tinhadecidido que estava sentindo issono outro mundo, e não neste.Quando a sacudimos, recobrou umpouco da consciência eescutamos… Ela contou como elestinham sido fuzilados, comoconduziram para o fuzilamento elae os cinco filhos. Enquanto eramlevados para um galpão, mataramas crianças. Atiravam e achavamdivertido… Sobrou o último, umbebê de peito. O fascista sinalizava:jogue para cima, vou atirar. A mãejogou a criança de forma que ela

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mesma a matasse… Seu filho…Para que o alemão não tivessetempo de atirar… Ela dizia quenão queria viver, não podia vivernesse mundo depois disso, só nooutro mundo… Não queria…

Eu não queria matar, não nascipara matar. Queria ser professorade escola. Mas vi como queimavama vila… Não podia gritar, nãopodia chorar alto: tínhamos sidomandados para o reconhecimentoe passamos perto justo daquelaaldeia. A única coisa que eu podiafazer era morder minha mão,tenho cicatrizes ainda hoje, mordiaté sair sangue. Até a carne.

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Lembro como as pessoasgritavam… As vacas gritavam… Asgalinhas gritavam… Eu achava quetodos gritavam com voz de gente.Tudo o que era vivo. Queimava egritava.

Não sou eu que falo isso, é aminha dor que está falando…”

ValentinaMikháilovna Ilkévitch,

mensageira partisan

“Nós sabíamos… Todossabíamos que precisávamosvencer…

Depois as pessoas ficaram

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achando que tínhamos deixadomeu pai, que ele tinha uma missãodo Comitê Regional do Partido.Ninguém o deixou, e ele tambémnão tinha nenhuma missão. Nósmesmos resolvemos ir lutar. Nãolembro de ter tido pânico na nossafamília. Houve muita dor, isso sim,mas pânico não, todos acreditavamque a vitória seria nossa. Noprimeiro dia em que os alemãesentraram na nossa vila, meu paitocou a Internacional no violino.Queria fazer alguma coisa. Algumprotesto…

Dois meses se passaram, outrês… E…

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Tinha um menino judeu… Umalemão o amarrou na bicicleta, e omenino corria atrás dele, feito umcachorrinho: ‘Schnell! Schnell!’.* Eleandava e ria. Um alemão jovem…Logo cansou, desceu da bicicleta efez sinais para o menino: dejoelhos… De quatro… Se arrastefeito um cachorrinho… Pule…‘Hund! Hund!’** Jogou umpauzinho: traga! O meninolevantou, correu e trouxe opauzinho de volta nas mãos. Oalemão ficou irado… Começou abater nele. Xingar. Mostrava: pulede quatro e traga com os dentes. Omenino trouxe entre os dentes…

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O alemão passou umas duashoras brincando com aquelemenino. Depois, o amarrou maisuma vez na bicicleta, e elespartiram de volta. O menino corriafeito um cachorrinho… Para o ladodo gueto.

E você pergunta: por quecomeçamos a lutar? Aprendemos aatirar…”

Valentina PávlovnaKojemiákina, partisan

“Como ia esquecer…? Osferidos se alimentavam decolheradas de sal… Quando

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estavam em formação, chamavamo sobrenome do soldado, ele davaum passo à frente e caía junto coma metralhadora, de fraqueza. Defome.

O povo nos ajudava. Se nãotivesse ajudado, o movimentopartisan não teria existido. O povolutava junto conosco. Às vezesentre lágrimas, mas ainda assimnos davam comida.

‘Filhinha, vamos sofrer juntos. Eesperar pela vitória.’

Despejavam a última batatamiudinha, davam pão. Mandavamsacos para nós na floresta. Umdizia: ‘Eu dou tanto’, o outro: ‘E

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eu, tanto’. ‘E você, Ivan?’ ‘E você,Maria?’ ‘O mesmo que todos, maseu tenho filhos.’

O que seria de nós sem apopulação? Éramos um exércitointeiro na floresta, mas sem elesteríamos morrido: eles semeavam,lavravam a terra, cuidavam de nóse dos nossos filhos, vestiam todos.Aravam a terra à noite, quandonão havia tiros. Lembro que umavez chegamos a uma aldeia eestavam enterrando um velho.Tinha sido assassinado à noite.Estava semeando cevada. Estavaapertando os grãos nas mãos deuma forma que não conseguiram

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abrir os dedos. Foi enterrado coma cevada…

Tínhamos armas, podíamos nosdefender. Mas, e eles? Dar pão aum partisan era punido com ofuzilamento, eu pernoitava e saía,mas, se alguém denunciasse que eutinha passado a noite naquela casa,fuzilariam a todos. E lá tinha umamulher sozinha, sem o marido, ecom três crianças pequenas. Elanão nos mandava embora quandoaparecíamos, acendia o fogão,lavava nossa roupa. Dava o últimoque tinha: ‘Comam, rapazinhos’. Abatata na primavera era miudinha,miudinha, feito uma ervilha.

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Comíamos; e as crianças ficavamsentadas no fogão, chorando. Eramas últimas ervilhas…”

AleksandraNikíforovna Zakhárova,

comissária partisan do225o Regimento da

Região de Gômel

“Na minha primeira missão…Me trouxeram uns folhetos. Eu pusdentro do travesseiro e costurei.Minha mãe foi fazer a cama edescobriu. Descosturou otravesseiro e viu os folhetos.Começou a chorar. ‘Você vai nos

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matar.’ Mas depois me ajudou.Os mensageiros dos partisans

sempre vinham à nossa casa.Desatrelavam o cavalo e entravam.O que você acha, que os vizinhosnão viam? Viam e adivinhavam.Eu dizia que era da parte do meuirmão, da aldeia. Mas todos sabiammuito bem que eu não tinhanenhum irmão na aldeia. Souagradecida a eles, tenho que fazeruma reverência a todos na nossarua. Bastaria uma palavra eteríamos todos morrido, toda anossa família. Era só apontar umdedo para o nosso lado. Masninguém… Uma pessoa sequer…

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Na guerra, fiquei tão apaixonadapelas pessoas que nunca vou deixarde amá-las.

Depois da libertação… Estavaandando pela rua e olhava ao meuredor: já não conseguia não termedo, não conseguia andar pelarua tranquilamente. Andava econtava os carros, os trens naestação… Levei muito tempo paradesacostumar…”

Vera GrigórievnaSedova, membro da

resistência

* * *

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“Já estou chorando…Derramando lágrimas…

Entramos em uma casa e nãotinha ninguém lá, só dois bancosnus de madeira cortada e umamesa. Nem canecas parecia haverali para beber água. As pessoastinham levado tudo. Só um íconeno canto e uma toalha bordadapendurada nele.

Estavam sentados um velho e amulher. Um de nossos partisanstirou as botas, as portianki estavamtão rasgadas que ele já nãoconseguia enrolar. Chuva, lama,botas rasgadas. E então a velha seaproximou do ícone, pegou a

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toalha bordada e deu para ele:‘Filho, senão como vai andar?’.

E não tinha mais nada naquelacasa.”

Vera SafrônovnaDavídova, partisan

“Nos primeiros dias… Recolhidois feridos em uma aldeia… Umtinha um ferimento na cabeça, ooutro soldado tinha um estilhaçona perna… Eu mesma tirei esseestilhaço e pus querosene naferida, não achei mais nada. E eujá sabia… Sobre o querosene, queele desinfeta…

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Cuidei deles, pus os dois de pé.Primeiro um foi embora para afloresta, depois outro. Quando oúltimo foi, se jogou aos meus pés.Queria beijá-los:

‘Querida irmãzinha! Vocêsalvou minha vida.’

Não tinha nome, nada. Era sóirmã e irmão.

As mulheres se reuniam naminha casa à noite:

‘Os alemães estão dizendo quetomaram Moscou.’

‘Nunca!’Com essas mesmas mulheres

levantamos o colcoz depois dalibertação, me botaram de

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presidente. Ainda tínhamos quatrovelhos e cinco moleques entre deze treze anos. Eram meuslavradores. Tínhamos vintecavalos, eles estavam mal,precisávamos curá-los. E era isso,toda a nossa chácara. Não tinhanem roda, nem canga. Asmulheres levantavam a terra com apá, aravam com as vacas e os bois,arrancávamos o rabo dos bois, elesdeitavam e não tinha quemlevantasse. Os moleques passavamo dia arando; quandodesamarravam as trouxas de noite,todos tinham a mesma comida:prasnaki. Você nem sabe o que é

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isso. Com semente de azedinha,oborôtnitchek… Não sabe? É umaerva que tem. A gente desfolhava otrevo. Batia tudo isso no pilão.Depois assava esses prasnaki. Éfeito um pão. Amargo, amargo…

No outono, chegou uma ordem:pôr abaixo 580 metros cúbicos demadeira. Com quem? Peguei meumenino de doze anos e minhamenina de dez. Outras mulherestambém. Entregamos aquelamadeira…”

Vera MitrofánovaTolkatchiova,

mensageira partisan

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Contam Ióssif GueórguievitchIassiukévitch e sua filha Maria;durante a guerra, foram doDestacamento de MensageirosPartisans Petrakov, da BrigadaRokossóvski:

Ióssif Gueórguievitch

“Dei tudo pela Vitória… O queme era mais querido. Meus filhoslutaram no front. Dois sobrinhosforam fuzilados por ter ligação comos partisans. Minha irmã, mãedeles, foi queimada pelos fascistas.Na casa deles… As pessoasrelatavam que, enquanto a fumaça

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não cobriu tudo, ela ficou retinhacomo uma vela, segurando o ícone.Depois da guerra, o sol se põe e eusempre acho que tem alguma coisaqueimando…”

Maria

“Eu era menina, tinha trezeanos. Sabia que meu pai ajudava aresistência. Entendia. Vinhamumas pessoas à noite. Deixavamumas coisas, levavam outras. Meupai sempre me levava com ele, mesentava na carroça: ‘Sente aqui enão saia do lugar’. Quandochegávamos aonde precisávamos,

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ele pegava armas ou panfletos.Depois, começou a me mandar

para a estação de trem. Meensinou o que tinha que lembrar.Eu me esgueirava em silêncio atéos arbustos e ficava ali até a noite,contando quantos trens tinhampassado. Lembrava o que estavamlevando, dava para ver: armas,tanques ou soldados. Duas ou trêsvezes por dia os alemães atiravamcontra os arbustos.”

“E você não ficava com medo?”“Eu era pequena, sempre

escolhia o caminho de um jeitoque passasse despercebida. Enaquele dia… Eu me lembro

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bem… Meu pai tentou duas vezessair do sítio onde a gente morava.Os partisans estavam esperandopor ele perto da floresta. Duasvezes ele ia saindo e duas vezes apatrulha o fez voltar. Começou aescurecer. Ele me chamou:‘Mariíka…’. E a minha mãe gritou:‘Não vou deixar a menina sair!’.Me puxava para longe do meupai…

Mas eu atravessei a florestacorrendo, como ele mandou. Eusabia todas as trilhas de cor, apesarde ter medo do escuro. Achei ospartisans, eles estavam esperando,comuniquei tudo o que meu pai

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falara. Mas, quando estavavoltando, o dia começou a clarear.Como ia evitar a patrulha alemã?Dei voltas pela floresta, váriasvoltas, e caí no lago, com a jaquetado meu pai, as botas, afundei comtudo. Consegui sair por um buracono gelo… Corri pela nevedescalça… Fiquei doente, caí decama de um jeito que não levanteimais. Minhas pernas ficaramparalisadas. Na época não haviamédicos nem remédios. Minhamãe me tratava com infusões deervas. Aplicava argila…

Depois da guerra, me levaramaos médicos. Mas já era tarde.

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Fiquei deitada… Posso me sentar,mas pouco, fico deitada olhandopela janela… Recordando aguerra…”

Ióssif Gueórguievitch

“Eu a carrego nos braços. Háquarenta anos. Que nem umacriança pequena… Minha mulhermorreu há dois anos. Ela me disseque perdoou tudo. Os pecados dajuventude… Tudo… Mas o queaconteceu com Mariíka ela nãoperdoou. Vi nos olhos dela. Tenhomedo de morrer, Mariíka vai ficarsozinha. Quem vai carregá-la nos

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braços? Quem vai abençoá-la ànoite? Pedir a Deus…”

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SOBRE MAMÃES E PAPAIS

A vila de Ratintsi na região deVolójinski, distrito de Minsk, fica auma hora de viagem da capital. Éuma aldeia bielorrussa comum,com casas de madeira, jardinzinhosfloridos, galos e gansos nas ruas.Crianças na areia. Mulheres velhasnos bancos. Vim ver uma delas,mas se juntou toda a rua. Meatordoavam de tanto falar.Lamentam em uma só voz.

Cada uma fala de si, e juntasfalam da mesma coisa. Contamcomo lavravam a terra, semeavam,

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assavam pães para os partisans,como cuidavam das crianças, comoiam para adivinhas e ciganas,interpretavam sonhos e pediam aDeus que intercedesse. Esperavamos maridos voltarem da guerra.

Anotei os primeiros trêssobrenomes: Elena AdámovnaVelítchko, Iustina LukiánovnaGrigoróvitch, Maria FiódorovnaMazuro. O resto já não conseguientender por causa do choro…

* * *

“Ah, minha filha! Querida, nãogosto do Dia da Vitória. Choro! Ai,

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choro! Fico pensativa, volta tudo.A felicidade fica para lá damontanha, a desgraça fica aquicom a gente… Os alemães nosqueimaram, levaram tudo. Ficamossó nós com umas pedras cinzentas.Voltamos da floresta, não tinhaninguém. Só sobraram os gatos. Oque a gente comia? No verão eu iacolher frutas silvestres, cogumelos.Tinha a casa cheia de filhos.

A guerra acabou, fomos para ocolcoz. Lá eu ceifava, colhia,debulhava. Em vez de cavalos, nósmesmas arrastávamos o arado. Nãohavia cavalos, tinham sido mortos.Atiraram nos cachorros. Minha

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mãe falava assim: quando eumorrer, não sei o que vai ser daminha alma, mas as mãos vãodescansar. Minha filha tinha unsdez anos, ela ceifava comigo. Ochefe de brigada vinha ver comoela, tão pequena, matava a cotaantes do anoitecer. A gente ceifavae ceifava, o sol ia se pondo atrás dafloresta, e a gente queria que elesubisse mais. O dia era pouco paranós. Tínhamos uma cota dupla.Pagar, não pagavam nada, sómarcavam com um visto o dia detrabalho. No verão você ia para ocampo, no outono não recebia umsaco de farinha. Criávamos os

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filhos com uma batatinha…”

“Aí a guerra acabou. E eu fiqueisozinha. Eu era a vaca, o boi, amulher, o mujique. Ai ai ai.”

“A guerra é uma desgraça… Naminha casa só tinha criança. Nemum banco, uma arca. Deixaram acasa nua. A gente comia bolotas,ervas da primavera… Minhamenina foi para a escola, só aícomprei o primeiro par de botaspara ela. Ia dormir com elas, nãoqueria tirar. Era assim que a gentevivia! A vida termina e não há o

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que recordar. Só a guerra…”

“Circulou um boato de quetinham levado nossos prisioneiros aum vilarejo, quem reconhecesse osseus podia levar. Nós, mulheres,nos levantamos e fomos. À noite,umas trouxeram os seus, outrastrouxeram desconhecidos, econtavam coisas que não dava paraacreditar: que as pessoas estavamapodrecendo em vida, morrendode fome, tinham comido todas asfolhas das árvores… Comiamcapim… Cavavam raízes da terra…Corri para lá no dia seguinte, não

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encontrei nenhum dos meus,pensei que podia salvar o filho dealguém. Simpatizei com um rapazmoreno, chamava Sachkó, comomeu neto agora. Tinha dezoitoanos… Dei um pouco de banhapara o alemão, ovos, jurei: ‘É meuirmão’. Fiz o sinal da cruz. Fomospara minha casa, ele não comeunem um ovo, tão fraco que estava.Não passou um mês conosco, eapareceu um canalha. Vivia comotodos, era casado, tinha doisfilhos… Ele foi para a sede daguarnição e declarou queestávamos abrigando forasteiros.No dia seguinte chegaram os

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alemães em motos. Pedimos dejoelhos, mas eles nos enganaram,dizendo que levariam essas pessoaspara mais perto de casa. Eu dei osobretudo do meu avô paraSachkó… Achava que ele iaviver…

Mas os levaram para fora daaldeia… E os apagaram com ofuzil… Todos… Até o último…Eram tão jovenzinhos, tão bonitos!E nós, que os tínhamos abrigadoem casa — ao todo nove pessoas—, decidimos enterrá-los. Cinco ostiravam das valas, e as outrasquatro olhavam em volta paraevitar um ataque dos alemães. Não

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podíamos tirar com as mãos, estavaum calor terrível, então elesficaram ali mais quatro dias…Tínhamos medo de cortar com aspás… Colocávamos em cima docavalete e puxávamos. Trazíamoságua, tampávamos o nariz. Demodo que nós mesmas nãocaíssemos… Cavamos um túmulona floresta e os colocamos ali,enfileirados… Cobrimos as cabeçascom lençóis… Os pés…

Durante um ano nãosossegamos, choramos por eles. Ecada uma pensava: onde está meumarido ou meu filho? Estarãovivos? Porque da guerra você deixa

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de esperar, da terra, nunca… Ai aiai…”

“Meu marido foi enterrado, eraum bom homem. Eu e ele sóconseguimos viver juntos por umano e meio. Quando ele foiembora, nossa filha já estava nabarriga. Mas ele não esperou pelafilhinha, eu dei à luz sem ele. Foiembora no verão, ela nasceu nooutono.

Ela ainda mamava no peito, nãotinha nem um ano. Eu estavasentada na cama, dando demamar… Ouvi uma batida na

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janela: ‘Lena, trouxeram umpapelzinho… Sobre o seumarido…’ . (Não deixaram ocarteiro entregar, vieram elasmesmas contar.) Eu estava de pé,segurando a menina, e daquelejeito o leite começou a escorrerdireto para o chão… A meninacomeçou a gritar, se assustou. Nãopegou mais meu peito. Medisseram isso no sábado, um diaantes do Domingo de Ramos. Emabril… Já brilhava um solzinho…Li no papelzinho que meu Ivantinha morrido na Polônia. Otúmulo está perto da cidade deGdansk. Morreu em 17 de março

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de 1945… Um papelzinho tãopequeno, fininho… Já estávamosesperando pela Vitória, já, jáapareceriam nossos maridos. Osjardins estavam florescendo…

Depois do susto, minha filhapassou muito tempo doente, até irpara a escola. Se alguém batia fortena porta ou gritava, ela ficavadoente. Passava noites chorando.Penei com ela muito tempo, achoque passei sete anos sem ver o sol,para mim ele não brilhava. Eu viatudo preto.

Falaram: Vitória! Os mujiquescomeçaram a voltar para suascasas. Mas voltaram em menor

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número do que tínhamosmandado. Menos da metade. Meuirmão Iuzik foi o primeiro a chegar.Só que voltou mutilado. Ele tinhauma menina como a minha.Quatro aninhos, depois cinco…Minha menina ia brincar com ela,e uma vez voltou correndo echorando: ‘Não vou mais na casadeles’. ‘Por que está chorando?’ ‘Opapai da Ólienka (a menina delesse chamava Ólienka) põe ela nocolo, mima. E eu não tenho papai.Tenho só mamãe.’ Nosabraçamos…

E foi assim por dois, três anos.Vinha correndo da rua e me dizia:

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‘Posso brincar em casa? Senão opapai vai chegar, eu vou estar comoutras crianças na rua e ele não vaime reconhecer. É que ele nuncame viu’. Não conseguia mandar amenina para fora da casa, parabrincar com as crianças na rua.Ficava em casa dias inteiros.Esperando o papai. E nosso papainão voltou…”

“O meu, quando saiu para aguerra, chorava tanto por deixar osfilhos pequenos. Se lamentava. E ascrianças eram tão pequenas queainda não entendiam que tinham

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pai. E o principal: eram todosmeninos. O menorzinho ainda eracriança de colo. Ele o segurava deum jeito, apertava assim. Fuicorrendo atrás dele, já estavamgritando. ‘Todos para a coluna!’ Elenão conseguia soltar o menino,entrava na coluna com ele… Omilitar gritava para cima dele, e ohomem dando um banho delágrimas no nosso filho. Afraldinha ficou toda molhada. Eu eas crianças corremos atrás dele atéfora da vila, corremos ainda unscinco quilômetros. Tinha outrasmulheres com a gente. Meus filhosjá estavam caindo, e eu quase não

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conseguia carregar o pequeno. EVolódia, é o meu mujique, virava acabeça para olhar, e eu correndo,correndo. Fui a última que ficou…Larguei as crianças no meio daestrada. Fui tentando alcançar sócom o pequenininho.

Um ano depois chegou umpapelzinho: seu marido VladímirGrigoróvitch morreu na Alemanha,já bem perto de Berlim. Não vi otúmulo dele. Um vizinho voltou,com a saúde perfeita, outro voltousem uma perna. Me deu umatristeza: queria que o meu tivessevoltado, mesmo que fosse sem asduas pernas, mas vivo. Eu o

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carregaria nos braços…”

“Fiquei com três filhinhos…Carregava os feixes eu mesma,trazia lenha da floresta, cuidava dabatatinha e do feno. Tudosozinha… Atrelava o arado emmim, no meu lombo, aravatambém. Fazer o quê?! A cadauma ou duas casas, era uma viúva,outra mulher de soldado. Ficamossem os mujiques. Sem cavalos.Também tinham levado os cavalosna guerra. E eu… Eu ainda eratrabalhadora exemplar. Ganheidois diplomas de honra, e uma vez

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me deram dez metros de chita.Que alegria foi aquilo! Costureicamisas para os meus meninos,para todos os três.”

“Depois da guerra… Os filhosdos que morreram mal tinhamacabado de crescer. De ficargrandes. Uns moleques de treze,catorze anos, e já achavam queeram adultos. Queriam casar. Nãotinha mais homem, e as mulhereseram todas jovens…

Mas olhe, se dissessem: entreguesua vaquinha e não vai ter guerra.Eu daria! Para que meus filhos não

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soubessem o que aconteceucomigo. Dia e noite escuto minhadesgraça…”

“Olho para a janela, e pareceque ele está sentado ali… Às vezes,algo surge no começo da noite…Eu já sou velha, mas sempre o vejojovem. Do jeito que era quando omandei. Quando sonho com ele,também está jovem. Assim comoeu, nos sonhos…

Mandaram notificações de óbitopara todas as mulheres, mas nomeu papelzinho veio ‘desaparecidoem combate’. Está escrito com tinta

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azul. Nos primeiros dez anos euesperava todo dia. Até hoje espero.Enquanto a gente vive, semprepode ter esperança…”

“Como uma mulher vai viversozinha? As pessoas vêm, umas meajudam, outras não. É a mesmadesgraça. Cada um joga umapalavra… As pessoas falaram atécansar, os cachorros latiram atécansar… Mas queria que meu Ivanpudesse ver os cinco netos. Àsvezes fico ao lado do retrato dele emostro as fotos dos meninos. Falocom ele…”

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“Ai ai ai… Meu nosso Senhor…Misericordioso…”

“Logo depois da guerra eu tiveum sonho: estava saindo para opátio, e meu marido estavaandando ali… De farda militar… Eme chamava tanto, não parava.Saltei de debaixo do cobertor, abria janela… Fazia um silênciodanado. Nem os pássaros euescutava. Estavam dormindo. Ovento passava pelas folhas…Assobiava…

De manhã peguei uma dezenade ovos e fui na cigana. ‘Ele já se

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foi’, ela pôs as cartas. ‘Não fiqueesperando à toa. É a alma dele queestá andando perto da casa.’ Eu eele nos juntamos por amor. Por umgrande amor…”

“Uma vez, uma cigana meensinou: ‘Depois que todosdormirem, vista um lenço preto ese sente na frente de um grandeespelho. É de lá que ele vaiaparecer. Não pode tocá-lo, nemele nem a roupa. Só converse comele…’. Passei a noite inteirasentada… Um pouco antes deamanhecer ele veio… Não dizia

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nada, ficava em silêncio, aslágrimas caindo. Apareceu assimumas três vezes. Eu chamava, elevinha. Chorava. E eu parei dechamar. Tinha pena…”

“Estou esperando pelo encontrocom o meu… Vou falar com eledia e noite. Não preciso de nadadele, só quero que me escute. Eletambém já deve ter envelhecidopor lá. Que nem eu.”

“Minha terrinha… Vou cavandobatata, beterraba… Ele está emalgum lugar por lá, eu logo vou me

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encontrar com ele… Minha irmãdisse: ‘Não olhe para a terra, olhepara o céu. Para cima. É lá que elesestão’. Veja minha casinha… Éperto… Fique conosco. Se passar anoite, vai saber mais. O sangue nãoé água, dá pena derramar, mas elesderramam… Vejo na televisão…Todo dia...

Também pode não escreversobre nós… É melhor lembrar…Veja, eu e você conversamos.Choramos. Quando for se despedirde nós, vire e olhe para nós e paranossas casas. Não vire só uma vez,como uma estranha, mas duas.Como uma de nós. E não precisa

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de mais nada. Só vire…”

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SOBRE UMA VIDA PEQUENA EUMA GRANDE IDEIA

“Sempre acreditei… Sempreacreditei em Stálin… Acreditei noscomunistas… Eu mesma eracomunista. Acreditava nocomunismo… Vivia por ele, tinhasobrevivido por ele. Depois dodiscurso de Khruschóv no XXCongresso, em que ele contou oserros de Stálin, adoeci, caí decama. Não conseguia acreditar queera verdade. Na guerra eu tambémgritava: ‘Pela pátria! Por Stálin!’.Ninguém me obrigava… Eu

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acreditava… Era minha vida.Esta é minha vida…Lutei dois anos na resistência…

Na última batalha fui ferida naperna, perdi a consciência, faziaum frio horroroso; quando acordei,senti que minhas mãos tinhamcongelado. Agora estão vivas, sãoboas mãos, mas na época ficarampretas… E as pernas tambémestavam congeladas, claro. Se nãofosse pelo frio, talvez tivesseconseguido salvar as pernas, maselas estavam perdendo sangue,passei muito tempo deitada lá.Quando me encontraram, mepuseram junto com os outros

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feridos, nos levaram para um lugar,muitos de nós, e ali os alemães noscercaram de novo. O destacamentoestava saindo… Estavaconseguindo abrir caminho… Nosjogaram em um trenó, como sefôssemos lenha. Não havia tempode olhar, reclamar, tinham quelevar todos para o fundo dafloresta. Esconder-nos. Noslevaram, levaram, só depoiscomunicaram a Moscou que euestava ferida. E eu era deputada doSoviete Supremo. Era uma pessoaimportante, tinham orgulho demim. Vim lá de baixo, era umacamponesa simples. De família

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camponesa. Entrei cedo noPartido…

Perdi as pernas. Cortaramminhas pernas. Fui salva alimesmo, na floresta… A operaçãofoi feita nas condições maisprimitivas. Me puseram na mesade operações e não tinha nemiodo, serraram minhas pernas comuma serra simples, as duaspernas… Me puseram na mesa,não tinha iodo. Foram buscar iodoem outro destacamento, a seisquilômetros, e eu fiquei deitada namesa. Sem anestesia. Sem… Emvez de anestesia, me deram umagarrafa de samogón. Não tinha

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nada, só uma serra comum… Demarceneiro…

Fizeram contato com Moscou epediram para mandar um avião. Oavião tentou pousar três vezes, deuvoltas e voltas, mas não conseguiadescer. Estavam atirando em torno.Pousou na quarta vez, mas minhasduas pernas já tinham sidoamputadas. Depois, em Ivánov, emTachkent, fizeram mais quatroamputações, e quatro vezes agangrena começou de novo. Cadavez cortavam mais um pedaço, eacabou ficando uma amputaçãomuito alta. Na primeira vez euchorei. Solucei… Imaginava que ia

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me arrastar pelo chão, não iaandar, ia me arrastar. Eu mesmanão sei o que me ajudou, o que meimpediu… Como convenci a mimmesma… Claro, encontrei pessoasbondosas. Muitas pessoas boas.Tínhamos um cirurgião, ele mesmosem as pernas, que falava de mim,outros médicos me contaram: ‘Eutiro o chapéu para ela. De todos oshomens que operei, nunca vi algoassim. Não dá um grito’. Eu mesegurava… Estava acostumada aser forte na frente das pessoas…

Depois voltei para Disna. Minhacidadezinha. Voltei com muletas.

Agora ando mal porque estou

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velha, mas houve uma época emque eu corria pela cidade e ia paratodo lado a pé. Corria compróteses. Até aos colcozes eu ia.Fui nomeada para o cargo de vice-presidente do Comitê ExecutivoRegional. Era um trabalhoimportante. Eu não ficava nogabinete. Ia para todas as aldeias,para os campos. Até me ofendia sesentia alguma condescendência.Tinha poucos presidentes decolcozes competentes na época; sehavia alguma campanha decisiva,mandavam um representante daregião para o lugar. E então todasegunda nos chamavam para o

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Comitê Regional e distribuíamtarefas, quem ia para onde. Umamanhã, estava sentada, olhandopela janela: estavam todos indopara o Comitê Regional, e ninguémme chamou. Foi tão dolorido, medeu vontade de ser como todos.

E por fim veio a ligação, oprimeiro secretário me chamou:‘Fiokla Fiódorovna, passe aqui’.Como fiquei feliz, mesmo quandoera muito, muito difícil viajar pelasaldeias; me mandavam andarvinte, trinta quilômetros, tinhalugar que você chegava de carro,em outros tinha que ir a pé. Iaandando por algum lugar na

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floresta, caía e não conseguia melevantar. Colocava a bolsa de lado,me apoiava ou me enganchava emuma árvore, levantava e seguia emfrente. Recebia minha pensão,podia viver para mim, só para mim.Mas eu queria viver para os outros.Sou comunista…

Não tenho nada meu. Sóminhas ordens, medalhas ediplomas de honra ao mérito. Ogoverno construiu minha casa. Éuma casa grande, porque não hácrianças ali, por isso ela parece tãogrande… E os tetos são tão altos…Morávamos ali as duas, eu e minhairmã. Ela é minha irmã, minha

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mãe e minha babá. Agora estouvelha… Não consigo levantarsozinha de manhã.

Vivemos as duas, vivemos dopassado. Temos um belo passado.Foi uma vida dura, mas bonita ehonesta; não guardo mágoa pormim. Por minha vida… Vivi umavida honesta…”

Fiokla FiódorovnaStrui, partisan

“O tempo nos tornou o quesomos. Nos revelamos. Não vaihaver outro tempo como esse. Issonão vai se repetir. Na época, nossas

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ideias eram jovens, e nós tambéméramos jovens. Lênin tinhamorrido havia pouco tempo. Stálinestava vivo… Com que orgulho euusava o lenço de pioneira. A marcado Komsomol…

E então veio a guerra. E nóséramos assim… Claro, em Jitomir,onde morávamos, logo apareceuum movimento de resistência.Entrei para ele imediatamente,nem discuti se devia participar ounão, se tinha medo ou não. Nãotinha discussão…

Alguns meses depois,conseguiram uma pista para onosso grupo clandestino. Alguém

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nos traiu. A Gestapo me pegou…Claro, estava com medo… Paramim isso dava até mais medo doque morrer. Tinha medo dastorturas. As torturas me davammedo… E se eu não aguentar?Cada um de nós pensava nisso… Asós… Eu, por exemplo, desde ainfância tinha dificuldade deaguentar qualquer dor. Mas aindanão nos conhecíamos, nãosabíamos como éramos fortes…

No último interrogatório, depoisde ser incluída na lista defuzilamento pela terceira vez, veioo terceiro investigador, que, dizia,era historiador por formação…

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Aquele fascista queria entenderpor que éramos daquele jeito, porque nossas ideias eram tãoimportantes para nós. ‘A vida estáacima das ideias’, dizia ele. Eu,claro, não concordava, e elegritava, batia em mim. ‘O quê? Oque obriga vocês a serem assim? Aaceitar a morte tranquilamente?Por que os comunistas acham queo comunismo deve vencer em todoo mundo?’, perguntava. Ele falavaum russo excelente. E eu decidifalar tudo para ele, já sabia queiam me matar mesmo, pois quenão fosse em vão, que ele soubesseque somos fortes. Ao longo de

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quatro horas ele perguntava, e eurespondia como sabia, o que tinhaestudado até então de marxismo-leninismo na escola e nauniversidade. Ah, o que aconteceucom ele! Segurava a cabeça, corriapelo quarto, parava de repente, eolhava, olhava para mim, mas pelaprimeira vez parou de bater…

Eu ficava de pé diante dele…Metade do meu cabelo tinha sidoarrancado, e antes disso eu usavaduas tranças grossas. Passavafome… No começo sonhava:queria um pedacinhopequenininho de pão, em seguidauma casquinha que fosse, depois

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ao menos umas migalhas… Estavaassim diante dele… Meus olhosqueimando… Ele passou muitotempo me escutando. Escutava enão batia… Não, ainda não estavacom medo, era só 1943. Mas jásentia algo… algum perigo. Queriasaber, qual? Eu respondi para ele.Mas quando saí, me pôs da lista defuzilamento.

Na noite anterior aofuzilamento, fiquei lembrando daminha vida, da minha curta vida…

O dia mais feliz da minha vidafoi quando meu pai e minha mãe,depois de percorrer algumasdezenas de quilômetros sob

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bombardeio para se afastar de casa,resolveram voltar. Não ir embora.Ficar em casa. Eu sabia que íamoscombater. Achávamos que a vitóriachegaria logo. Sem dúvida! Aprimeira coisa que fizemos foiencontrar e salvar feridos. Tinhaferidos no campo, na grama, nasvalas, alguns tinham se arrastadopara o estábulo. Uma vez, saí demanhã para colher batatas e acheium na nossa horta. Ele estavamorrendo… Era um jovem oficial,não teve forças nem para me dizerseu nome. Sussurrou algumaspalavras… Não entendi… Lembrodo meu desespero. Mas me parecia

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que eu nunca tinha sido tão felizcomo naqueles dias… Encontreimeus pais pela segunda vez. Antesdisso eu achava que meu pai nãose interessava por política, ele eraum bolchevique sem partido.Minha mãe era uma camponesacom pouco estudo, ela acreditavaem Deus. Passou toda a guerrarezando. Mas sabe como? Ficavade joelhos na frente do ícone:‘Salve o nosso povo! Salve Stálin!Salve o Partido Comunista dessecarrasco que é Hitler’. Nosinterrogatórios da Gestapo, tododia eu esperava que a porta seabrisse e entrassem meus parentes.

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Mamãe e papai… Eu sabia ondetinha ido parar, e estava felizporque não traíra ninguém. Maisdo que morrer, tínhamos medo detrair. Quando me prenderam,entendi que começava ali otormento. Sabia que meu espíritoera forte, mas e meu corpo?

Não me lembro do primeirointerrogatório… Não perdi aconsciência… Só perdi aconsciência uma vez, quandotorceram meu braço com um tipode roda. Acho que não gritei,ainda que antes tivessem memostrado como os outros gritavam.Nos interrogatórios seguintes eu já

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tinha perdido a sensação de dor,meu corpo endurecia. Parecia umcorpo de madeira. Só tinha umpensamento: não! Na frente deleseu não morro. Não! Só quandotudo acabava e me arrastavam paraa cela é que eu começava a sentirdor, e aparecia a ferida. Eu viravauma grande ferida. O corpointeiro… Mas tinha que aguentar.Aguentar! Para que minha mãesoubesse que eu estava morrendocomo um ser humano, que nãotinha traído ninguém. Mamãe!

Batiam em mim, mependuravam. Semprecompletamente nua. Tiravam

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fotos. Eu só conseguia esconder osseios com as mãos… Via as pessoasenlouquecendo… Vi o pequenoKólienka, que tinha menos de umano — nós o estávamos ensinandoa falar ‘mamãe’ —, como ele,quando o tiraram da mãe,entendeu de alguma formasobrenatural que a estavaperdendo para sempre e gritoupela primeira vez na vida:‘Mamãe!’. Não era uma palavra, ounão só uma palavra… Eu queriacontar para você… Contar tudo…Ah, que pessoas encontrei ali! Elasestavam morrendo nos porões daGestapo, e só as paredes sabiam da

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coragem que tinham. Mesmoagora, passados quarenta anos, eume ajoelho diante delas empensamento. ‘Morrer é o maisfácil’, elas diziam. Mas, e viver…Como queríamos viver!Acreditávamos que a Vitóriachegaria, só tínhamos uma dúvida:sobreviveríamos para ver essegrande dia?

Na nossa cela havia umajanelinha com grades; eranecessário ter a ajuda de alguémpara subir, e aí você podia olharpor ela: não se via nem um pedaçode céu, mas um pedaço de telhado.Estávamos tão fracos que não

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conseguíamos nos ajudar. Estavaconosco uma paraquedista, a Ánia.Ela foi presa quando saltou doavião na retaguarda, e seu grupocaiu em uma emboscada. Uma vezestava ali, toda ensanguentada,espancada, e de repente pediu: ‘Meempurrem, vou olhar o mundolivre. Quero subir ali!’.

Quero e pronto. Juntas alevantamos, e ela soltou um grito:‘Meninas, tem uma florzinha ali!’.E então todas começaram a pedir:‘Eu também quero…’, ‘Eutambém…’. Não sei de ondetiramos forças para nos ajudarmosumas às outras. Era um dente-de- -

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leão; como ele subiu naquele teto,como se segurou ali, não me entrana cabeça. Cada uma fez umpedido para aquela flor. Agoraacho que todas pediram para sairvivas daquele inferno.

Eu gostava tanto da primavera…Amava ver as cerejeirasflorescendo e os arbustos de lilasescomeçando a exalar seu cheiro…Não se espante com meu estilo, euescrevia poesia. Agora não gosto daprimavera. Essa guerra se interpôsentre nós duas, entre mim e anatureza. Quando as cerejeirasestavam florescendo, vi os fascistasna minha Jitomir natal…

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Saí viva por um milagre… Fuisalva por pessoas que queriamagradecer ao meu pai. Ele eramédico, naquela época isso eraimportante. Me empurraram parafora da fila, me empurraram para aescuridão quando estávamos sendolevados para o fuzilamento. E eunão me lembro de nada, de tantador que sentia, andava como seestivesse em um sonho… Ia paraonde me levassem. Depois mepegaram… Me levaram para casa,eu estava toda ferida, logo tiveuma infecção nervosa. Nãoconseguia nem ouvir uma vozhumana. Escutava e

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imediatamente sentia dor. Minhamãe e meu pai falavamsussurrando. Eu gritava o tempotodo, só ficava calada quandoentrava na água quente. Nãodeixava mamãe sair de perto nempor um segundo, ela pedia:‘Filhinha, preciso ir para o fogão.Para a horta…’. E eu a segurava…Assim que eu soltava a mão dela,vinha tudo para cima de mim denovo. Tudo o que tinha acontecidocomigo. Para me distrair, metraziam flores. Minhas preferidas,campânulas… Folhas decastanheira… Os cheiros medistraíam… Minha mãe guardou o

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vestido que usei na Gestapo. E,quando ela morreu, ele estavadebaixo do travesseiro dela. Até aúltima hora…

Me levantei pela primeira vezquando vi nossos soldados. Derepente eu, que estava deitadahavia mais de um ano, saltei dacama e corri para a rua: ‘Meusqueridos! Meus amores… Vocêsvoltaram…’. Os soldados melevaram de volta para a nossa casanos braços. No entusiasmo, nosegundo e no terceiro dia eu corripara o centro de alistamento: ‘Medeem algum trabalho!’. Disserampara o meu pai, e ele veio me

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buscar: ‘Menina, como você veio?Quem ajudou você?’. Duroualguns dias… E as dorescomeçaram de novo… Ostormentos… Eu gritava por diasinteiros. As pessoas passavam nafrente da nossa casa e pediam:‘Senhor, leve a alma dela ou ajudepara que não sofra tanto’.

As lamas medicinais deTskhaltubo me salvaram. A minhavontade de viver me salvou. Viver,viver e mais nada. Eu vivi mais umpouco. Vivi como todos… Vivi…Passei catorze anos trabalhandonuma biblioteca. Foram anosfelizes. Os mais felizes. Agora, a

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vida se transformou em uma lutaconstante com as doenças. Avelhice é uma coisa desagradável,não importa o que digam. E aindatem a solidão, fiquei totalmente só.Mamãe e papai já se foram hámuito tempo. Tenho longas noitessem sono… Já se passaram tantosanos e tenho o pior sonho detodos, acordo suando frio. Não melembro do sobrenome de Ánia.Não me lembro se ela era deBriansk ou de Smoliénsk. Lembrode como ela não queria morrer!Colocava os braços brancos egorduchos atrás da cabeça e gritavapela janela, através das grades:

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‘Quero viver!’.Não encontrei os parentes

dela… Não sei a quem contarisso…”

Sófia MirônovnaVereschak, membro da

resistência

“Depois da guerra, ficamossabendo de Auschwitz, deDachau… Como ia dar à luzdepois disso? E eu já estavagrávida…

Então me mandaram para umaaldeia para tomar empréstimos. Ogoverno precisava de dinheiro,

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precisava reerguer as fábricas, asindústrias.

Cheguei e não tinha mais aldeia,estava tudo no chão. Viviam emabrigos na terra… Saiu umamulher, estava com umas roupas,era terrível de olhar. Entrei noabrigo, havia três crianças, todascom fome. Ela estava batendo algoem um pilão para eles, algumaerva.

Ela me perguntou:‘Veio para coletar algo para o

empréstimo?’Eu disse:‘Sim.’Ela:

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‘Não tenho dinheiro, mas tenhouma galinha. Vou perguntar para avizinha, ontem ela me pediu, se elacomprar eu lhe dou.’

Mesmo contando agora aindame vem um nó na garganta. Quegente era aquela! Que gente! Omarido dela fora morto no front,ela ficara com as três crianças; nãotinha nada, só essa galinha, e avendeu para dar dinheiro paramim. Na época estávamoscoletando dinheiro em espécie. Elaestava disposta a entregar tudo, sópara que houvesse paz, para queseus filhos continuassem vivos.Lembro do rosto dela. E de todos

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os filhos…Como eles cresceram? Gostaria

de saber… Gostaria de achá-los e irencontrá-los…”

Klara VassílievnaGontcharova, operadora

de artilharia antiaérea

* “Rápido! Rápido!”, em alemão nooriginal.** “Cachorro! Cachorro!”, em alemãono original.

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“Mamãe, o que é papai?”

Não vejo fim para essa estrada.O mal me parece infinito. Já nãoconsigo me relacionar com eleapenas como uma história. Quemme responderia: com o que estoulidando, com os tempos ou com oser humano? Os tempos mudam,mas e o ser humano? Penso na

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estúpida repetição da vida.Elas narravam como soldados.

Como mulheres. Muitas delaseram mães.

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SOBRE O BANHO DA CRIANÇA E AMÃE QUE PARECE UM PAI

“Eu estava correndo… Éramosvárias pessoas correndo. Fugindo…Estavam nos perseguindo.Atirando em nós. Minha mãe jáestava sob os tiros dos fuzis. Masela via como corríamos… Eutambém escutava sua voz, elaestava gritando. Depois mecontaram como ela gritava.Gritava: ‘Que bom que você estáde vestido branco… Filhinha… Jánão vai ter ninguém para vestirvocê…’. Ela tinha certeza de que

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me matariam, e se sentia felizporque eu estava de branco…Antes disso, estávamos nosaprontando para ir visitar a vilavizinha. Era Páscoa… Íamos vernossos parentes…

Fez-se um silêncio… Pararamde atirar. Só a minha mãe aindagritava… Ou será que estavamatirando? Eu não escutava…

Na guerra, toda a nossa famíliamorreu. A guerra acabou, e eu nãotinha ninguém para esperar…”

Liubov ÍgorevnaRudkóvskaia, partisan

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“Começaram a bombardearMinsk…

Saí correndo até o jardim deinfância para buscar meu filho,minha filha estava nos arredoresda cidade. Ela tinha acabado decompletar dois aninhos, estava nacreche, e eles tinham viajado parafora da cidade. Decidi pegar o meufilho e levar para casa, depoiscorrer para buscá-la. Queria juntartodos o quanto antes.

Estava me aproximando dojardim de infância, e os aviõesvoavam sobre a cidade,bombardeavam algum lugar. Atrásda cerca, escutei a voz do meu

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filhinho, ele ainda não tinhachegado aos quatro anos:

‘Não tenham medo, mamãefalou que vão acabar com osalemães.’

Dei uma espiada pela cancela:eram muitos, e meu filho estavaassim, tranquilizando os outros.Mas quando me viu, começou atremer, chorar, e percebi que eleestava morrendo de medo.

Levei-o para casa, pedi à minhasogra para cuidar dele e fui buscarminha filha. Correndo! No lugaronde devia estar a creche não acheinada. Umas mulheres da vilacontaram que tinham levado as

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crianças para algum lugar. Paraonde? Quem? Para a cidade,talvez, disseram. Havia duaseducadoras com elas, em ummomento pararam de esperar pelocarro e foram a pé. A cidade ficavaa dez quilômetros… Mas eramcrianças bem pequenas, de umaninho ou dois. Minha querida,passei duas semanas procurandopor eles… Por várias aldeias…Quando entrei em uma casa e medisseram que era justo aquelacreche, aquelas crianças, eu nãoacreditei. Estavam deitadas,desculpe, sobre os excrementos,com febre. Como se estivessem

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mortas. A diretora da creche erauma mulher muito jovem, tinhaficado com os cabelos brancos.Acabou que ela percorreu todo ocaminho até a cidade a pé, tinhamse perdido na estrada, algumascrianças morreram.

‘Não se desespere, procure. Eladeve estar aqui. Eu me lembrodela.’

Achei minha Éllotchka porcausa de uma botinha… Senão,nunca a teria reconhecido…

Depois, nossa casa queimou porcompleto… Ficamos na rua, com aroupa do corpo. As unidadesalemãs já tinham entrado na

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cidade. Não tínhamos para onde ir,passei alguns dias na rua com ascrianças. Encontrei TamaraSerguêievna Sinitsa, antes daguerra nos conhecíamosvagamente. Ela me escutou e disse:

‘Venha para minha casa.’‘Meus filhos estão com

coqueluche. Como vou para suacasa?’

Ela também tinha filhospequenos, eles podiam secontagiar. E bem naquela época…Não havia remédios, os hospitais jánão estavam funcionando.

‘Não importa, vamos.’Minha querida, como vou me

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esquecer disso? Elescompartilharam cascas de batataconosco. Peguei minha saia velha ecosturei umas calças pequenas parameu filho, para dar algo deaniversário para ele.

Mas sonhávamos com lutar…Nos angustiava não fazer nada…Que felicidade foi quandoapareceu a chance de entrar para otrabalho clandestino, em vez deficar sentada com os braçoscruzados. Esperando. Meu filho,ele era maior, era o mais velho, epor via das dúvidas o mandei paraficar com minha sogra. Ela meimpôs uma condição: ‘Fico com

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meu neto desde que você nãoapareça mais na minha casa. Porsua culpa vão matar todos nós’.Passei três anos sem ver meu filho,tinha medo de ir para a casa dela.Minha filha, quando começaram ame seguir, quando acharam meusrastros, eu a peguei e fugi com elapara juntar-me à resistência.Carreguei-a nos braços porcinquenta quilômetros. Cinquentaquilômetros… Passamos duassemanas andando.

Ela passou mais de um ano lácomigo… Sempre penso: como eue ela sobrevivemos àquilo? Se vocême perguntar não sei dizer. Minha

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querida, é impossível aguentaraquilo. Até hoje meus dentesbatem quando escuto as palavras‘cerco partisan’.

Em maio de 1943… Memandaram levar uma máquina deescrever para a zona partisanvizinha. Para Boríssovskaia. Elestinham uma máquina das nossas,com nosso alfabeto, masprecisavam de uma com letrasalemãs, e essa só nós tínhamos. Erauma máquina que eu trouxera daocupação de Minsk numa missãodo comitê clandestino. Cheguei lá,no lago Pálik, e alguns dias depoiscomeçou o cerco. Veja onde fui

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parar…Não fui só, fui com minha filha.

Quando saía para uma operação deum dia ou dois, eu a deixava comoutras pessoas, mas não havia ondedeixá-la por mais tempo. E aí,claro, levei a criança comigo. Eassim fomos parar em um cerco, eue ela… Os alemães cercaram azona partisan… Bombardeavamdo céu, atiravam do chão…Enquanto os homens só levavam ofuzil, eu levava o fuzil, a máquinade escrever e Éllotchka. Íamosandando, eu tropeçava, ela passavapor mim e caía no pântano.Continuávamos indo, e ela voava

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novamente… E assim foi por doismeses! Jurei para mim mesma que,se sobrevivesse, nunca mais iria aum pântano, eu já não consigonem ver.

‘Eu sei por que você não se deitaquando atiram. Você quer que nosmatem juntas.’ Minha filha medisse isso, tinha quatro aninhos. Eunão tinha forças para deitar, se eudeitasse não me levantava nuncamais.

Os partisans às vezes ficavamcom pena:

‘Chega. Deixe que levamos suafilha.’

Mas eu não a confiava a

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ninguém. E se começasse umtiroteio? E se a matassem sem mim,e eu não escutasse? E se ela seperdesse…?

Encontrei o comandante debrigada Lopátin.

‘Mas que mulher!’, ele ficouestupefato. ‘Numa situação dessas,levando uma criança, e não soltoua máquina. Nem todos os homensconseguiriam fazer isso.’

Ele pegou Éllotchka nos braços,abraçou, beijou. Revirou todos osbolsos e conseguiu umasmigalhinhas de pão. Ela comeu etomou água do pântano. Seguindoseu exemplo, outros partisans

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reviraram os bolsos e acharammigalhas para ela.

Quando saímos do cerco, euestava muito doente. Coberta defurúnculos, a pele caindo. E acriança nos braços… Estávamosesperando um avião vir docontinente,* e me disseram que, seele viesse, mandariam os feridosem estado mais grave e minhaÉllotchka podia ir junto. E eu melembro do exato minuto em que amandei. Os feridos estendiam osbraços para ela: ‘Éllotchka, aquicomigo’. ‘Venha comigo. Aqui temlugar…’ Todos a conheciam, nohospital ela cantava para eles: ‘Ê,

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como seria bom chegar viva atémeu casamento’.

O piloto perguntou:‘Você está aqui com quem,

menina?’‘Com mamãe. Ela ficou atrás da

cabine…’‘Chame a mamãe para voar com

você.’‘Não, mamãe não pode voar. Ela

tem que lutar com os fascistas.’Veja como eram nossas crianças.

Eu olhava para o rostinho dela esentia uns espasmos — será que averia de novo alguma vez?

Vou contar para você como meencontrei com meu filho… Isso já

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foi depois da libertação. Estavaindo para a casa onde vivia minhasogra, e minhas pernasfraquejavam. As mulheres dodestacamento, que eram maisvelhas, me avisaram:

‘Se encontrar o menino, nãochegue logo dizendo que é a mãedele, de jeito nenhum. Vocêimagina o que ele sofreu semvocê?’

A menina da vizinha veiocorrendo:

‘Ei! Mamãe do Liônia. O Liôniaestá vivo…’

Minhas pernas não conseguiamseguir em frente. Meu filho estava

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vivo. Ela contou que minha sogratinha morrido de tifo, mas avizinha ficara cuidando dele.

Entrei no pátio. O que estavavestindo? Uma guimnastiorkaalemã, um casaco acolchoadoremendado, calças velhas. Avizinha me reconheceu na hora,mas ficou calada. E meu filhoestava sentado, descalço,esfarrapado.

‘Como se chama, menino?’,perguntei.

‘Liônia…’‘Com quem você mora?’‘Antes morava com a vovó.

Quando a vovó morreu, eu a

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enterrei. Todo dia eu ia falar comela e pedia para ela me levar para otúmulo. Tinha medo de dormirsozinho…’

‘E onde estão seu pai e suamãe?’

‘Papai está vivo, está no front.Mas a mamãe, os fascistasmataram. Foi a que vovó disse.’

Tinha dois partisans comigo,tinham enterrado seuscompanheiros. Eles escutavam asrespostas do meu filho e choravam.

Então eu não aguentei:‘Por que é que você não

reconhece sua mãe?’Ele se jogou em cima de mim:

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‘Papai!’, eu estava vestindoroupas masculinas, usando umgorro. Depois me abraçou com umgrito: ‘Mamãe!!!’.

Que grito foi esse. Um ataquehistérico… Durante um mês elenão me largava quando eu iatrabalhar. Eu o levava comigo. Nãobastava ver que eu estava porperto, ele precisava segurar emmim. Quando nos sentávamos paraalmoçar, com uma mão elesegurava em mim, com a outracomia. Só me chamava de‘mamãezinha’. Até hoje me chamaassim… Mamãezinha…Mãezinha…

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Quando eu e meu marido nosencontramos, as semanas nãoforam suficientes para contarmostudo. Eu passava dia e noitefalando…”

Raíssa GrigórievnaKhosseniévitch, partisan

“Na guerra tem enterro o tempotodo… Enterros de partisansaconteciam sempre. Ora um grupocaía numa emboscada, ora alguémmorria em combate. Vou contarum enterro…

Houve uma batalha muitoencarniçada. Perdemos muita

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gente; eu também fui ferida nessabatalha. Depois do combate,fizeram os enterros. Em geral,diante do túmulo faziam umdiscurso curto. Primeiro falavam oscomandantes, depois os amigos.Entre os mortos havia um rapaz daregião, e a mãe dele veio aoenterro. Ela começou a chorar:‘Meu filhinho! E nós queestávamos fazendo uma casinhapara você! Me jurou que ia trazersua noiva! E em vez disso, está secasando com a terra…’.

A fila estava em silêncio, todoscalados, ninguém tocava nela.Depois ela levantou a cabeça e viu

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que não era só o filho dela quetinha morrido, havia muitos jovensali, e ela começou a chorar pelosfilhos dos outros: ‘Meus filhinhosqueridos! Suas mãezinhas nãoviram vocês, não sabem que estãodebaixo da terra! E a terra é tãofria. É um inverno gelado. Entãovou chorar no lugar delas, voulamentar por todos vocês. Meusqueridinhos… Adorados…’.

Foi só ela dizer: ‘Vou lamentarpor todos vocês’ e ‘Meusqueridinhos’ que todos os homenscomeçaram a chorar alto. Ninguémconseguiu se segurar, não tivemosforças. A fila ficou soluçando.

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Então, o comandante gritou: ‘Umasalva!’. E a salva abafou o som detodos.

Isso me deixou estupefata, e atéagora penso nisso, na grandeza docoração dessa mãe. Em ummomento de dor tão imensa,quando estavam enterrando seufilho, ela ainda teve coração parachorar pelos filhos dos outros…Chorar como se fossem seus…”

Larissa LeôntievnaKorótkaia, partisan

“Voltei para minha vila…Umas crianças estavam

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brincando ao lado de casa. Euolhava e pensava: ‘Qual é aminha?’. Eram todas iguais. Eestavam com os cabelos cortadoscomo antes se tosquiavam asovelhas — dos lados. Nãoreconheci minha filha, pergunteiqual delas era a Liússia. Vi que umdos meninos com camisa longasaiu correndo e foi para dentro decasa. Era difícil distinguir quem eramenina e quem era menino, pelojeito como estavam vestidos.Perguntei mais uma vez:

‘Então, qual de vocês é aLiússia?’

Eles indicaram com o dedo,

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disseram que era a que tinha saídocorrendo. E eu entendi que eraminha filha.

Um minuto depois minha avó atrouxe pela mão, era a mãe daminha mãe. Ela a trouxe ao meuencontro:

‘Vamos, vamos. Agora vamosdar uma lição nessa mãe por terlargado a gente.’

Eu estava vestindo uma roupamilitar masculina, estava debarrete, viera a cavalo, e minhafilha, claro, imaginava a mãe comosua avó, como as outras mulheres.Tinha chegado ali um soldado. Elalevou muito tempo para vir nos

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meus braços, tinha medo. Eu podiame ofender, mas não tinha criadoa menina, ela tinha crescido com asavós.

De presente eu tinha levadosabão. Naquela época era umpresente chique, e, quando fui darbanho, ela mordia o sabão. Queriaprovar e comer. Era assim que elasviviam. Eu lembrava da minha mãecomo uma mulher jovem, e elaveio me receber uma velhinha.Disseram para ela que sua filhatinha chegado, ela deu um salto dahorta para a rua. Me viu, esticou osbraços e veio correndo. Eu areconheci e corri para ela. Quando

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ainda estava a uns passos de mim,caiu sem forças. E eu caí ao ladodela. Beijava minha mãe. Beijava aterra. Tinha tanto amor nocoração, e tanto ódio.

Eu me lembro de um alemãoferido que estava deitado eagarrava a terra com a mão, sentiador; nosso soldado se aproximoudele e disse: ‘Não mexa nisso, é aminha terra. A sua ficou lá nolugar de onde você veio…’.”

Maria VassílievnaPávlovets, médica

partisan

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“Fui para a guerra depois domeu marido…

Deixei minha filha com minhasogra, mas logo ela morreu. Meumarido tinha uma irmã, e elaabrigou a menina. Depois daguerra, quando recebi baixa, elanão queria devolver minhamenina. Dizia algo como você nãopode ter filhas, já que abandonouessa tão pequena e foi combater.Como uma mãe larga sua filhapequena, e ainda por cima tãodesamparada? Voltei da guerra,minha filha já tinha sete anos, eu adeixei quando tinha três. Veio meencontrar uma menina crescida.

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Quando era pequena não havia oque comer, ela dormia pouco;tinha um hospital por perto, ela iapara lá, se apresentava, dançava elhe davam pão. Depois ela mecontou… No começo, esperava amamãe e o papai, depois — só amamãe. Papai morreu… Elaentendia.

Eu sempre me lembrava daminha filha no front, não meesquecia dela por um minuto,sonhava com ela. Sentia muitafalta. Chorava por não ler históriaspara ela à noite, porque iria dormire acordar sem mim… Outra pessoafaria as trancinhas dela… Não

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guardava mágoas da minhacunhada. Eu entendia… Ela amavamuito o irmão, ele era forte,bonito, não dava para acreditarque podiam matar alguém assim. Emorreu logo, nos primeiros mesesda guerra… Os aviõesbombardearam eles de manhã, emterra. Nos primeiros meses — e até,talvez, em todo o primeiro ano daguerra — os pilotos alemães eramos senhores dos ares. E ele morreu.Ela não queria entregar o que tinhasobrado dele. A última coisa. E erauma dessas mulheres para quem afamília, os filhos, são o que há demais importante na vida.

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Bombardeios, fogo inimigo, e elasó pensava em uma coisa: comonão deram banho nessa criançahoje? Não posso julgá-la…

Ela dizia que eu era cruel… Quenão tinha alma feminina… Masnós sofríamos muito na guerra.Sem família, sem casa, sem filhos…Muitos deixaram os filhos em casa,não fui só eu. Ficávamos sentadossob um paraquedas, esperando amissão. Os homens fumavam,jogavam dominó, e nós, enquantonão havia mísseis para o voo,ficávamos sentadas, bordandolenços. Continuávamos sendomulheres. Sabe, minha

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navegadora. Ela queria mandaruma fotografia para casa, então nós— alguém conseguiu um lenço —,nós amarramos esse lenço nelapara que as dragonas nãoaparecessem e escondemos aguimnastiorka com o cobertor.Parecia que ela estava de vestido…Assim tiramos a foto. Era afotografia preferida dela…

Eu e minha filha fizemosamizade… Ficamos amigas portoda a vida…”

Antonina GrigórievnaBóndarieva, tenente da

guarda, piloto

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SOBRE A CHAPEUZINHOVERMELHO E A ALEGRIA DEENCONTRAR UM GATO NAGUERRA

“Levei muito tempo para meacostumar com a guerra…

Saímos para o ataque. E quandovi que de um ferido estava saindosangue arterial — antes eu nuncatinha visto algo assim, jorravacomo uma fonte —, saí correndopara chamar o médico. E o próprioferido gritou: ‘Para onde? Paraonde está indo? Amarre com ocinto’. E só então eu me refiz.

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O que me dá pena? Ummenino… Um garotinho de seteanos que ficou sem mãe. Matarama mãe dele. O menino estavasentado na estrada ao lado da mãemorta. Ele não entendia que elanão estava mais entre nós, estavaesperando ela acordar e pedia paracomer…

Nosso comandante não deixou omenino se afastar, levou-o consigo:‘Você não tem mãe, filhinho, masvai ter muitos pais’. E ele foicrescendo conosco. Como um filhodo regimento. Desde os sete anos.Colocava os cartuchos no tamborda metralhadora PPSh.

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Quando você for embora, meumarido vai brigar comigo. Ele nãogosta dessas conversas. Não gostada guerra. Mas ele não esteve naguerra, era jovem, é mais jovem doque eu. Não temos filhos. Eusempre me lembro daquelemenino. Podia ser meu filho…

Depois da guerra, eu tinha penade todos… Das pessoas… Do galo,do cachorro… Até agora nãoaguento ver a dor dos outros. Eutrabalhava em um hospital, osdoentes me adoravam porque eracarinhosa. Temos um jardimgrande. Nunca vendi uma maçãsequer, uma frutinha silvestre.

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Sempre distribuía, distribuía entreas pessoas… Fiquei com isso depoisda guerra… Com esse coração…”

Liubov ZakhárovnaNóvik, enfermeira

* * *

“Na época eu não chorava…Eu só tinha medo de uma

coisa… Prendiam os camaradas evinham alguns dias de esperainsuportável: aguentariam ou não atortura? Se não aguentassem,começaria uma nova série deprisões. Depois de um tempoficávamos sabendo que eles seriam

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executados. Me davam umamissão: ver quem iriam enforcarnaquele dia. Você andava pela ruae via: já estavam aprontando acorda… Não podíamos chorar nemparar por um segundo que fosse,porque tinha agentes secretos portodo lado. E precisava ter muita —não é essa a palavra —hombridade, muita força espiritualpara ficar calado. E passar na frentesem chorar.

Na época eu não chorava…Eu sabia para onde estava indo,

mas só entendi, só senti tudoquando me prenderam. Quandome levaram para a prisão. Me

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chutavam com botas e meaçoitavam com chicotes. Aprendi oque era a ‘manicure’ dos fascistas.Colocavam sua mão sobre umamesa e uma espécie de máquinaespetava agulhas debaixo das suasunhas… Um pouco debaixo decada unha… É uma dor infernal!Você perde a consciência na hora.Nem me lembro, sei que era umador terrível, mas não me lembro.Me esticavam nos troncos. Talveznão seja bem isso, talvez não estejacerto. Mas o que me lembro é: temum tronco aqui e um tronco aqui,e botam você no meio deles…Então uma máquina começa a

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funcionar… E você escuta seusossos estalando e se deslocando…Se durava muito tempo? Tambémnão lembro… Me torturavam nacadeira elétrica… Isso foi quandocuspi na cara de um dos carrascos.Se era jovem, velho, não lembro denada. Eles tiraram toda a minharoupa e esse pegou no meu peito…Eu só consegui cuspir… Nãoconsegui fazer mais nada. Cuspi norosto dele. E aí me sentaram nacadeira elétrica.

Até hoje tenho aversão aeletricidade. Me lembro como elacomeça a te jogar… Até agora nãoconsigo nem passar roupa… Fiquei

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com isso para o resto da vida:começo a passar e sinto umacorrente por todo o corpo. Nãoposso fazer nada que esteja ligadoà eletricidade. Talvez devesse terfeito alguma terapia depois daguerra? Não sei. Mas já passeiminha vida assim…

Não sei por que hoje estouchorando tanto. Na época eu nãochorava…

Fui condenada à pena de mortepor enforcamento. Me puseram nacâmara dos condenados à morte.Havia outras duas mulheres lá.Sabe, não chorávamos, nãoentrávamos em pânico: ao entrar

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para a resistência já sabíamos o quenos aguardava, e por issomantínhamos a tranquilidade.Falávamos de poesia, lembrávamosdas nossas óperas preferidas…Falávamos muito de AnnaKariênina… De amor… Nemlembrávamos dos nossos filhos,tínhamos medo de lembrar. Atésorríamos, animávamos umas àsoutras. E assim passamos dois diase meio… Na manhã do terceiro diame chamaram. Nos despedimos enos beijamos sem lágrimas. Eu nãoestava com medo: pelo visto, estavatão acostumada com a ideia demorrer que o medo até

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desapareceu. E as lágrimastambém. Era uma espécie de vazio.Já não pensava em nada…

Andamos por muito tempo,nem lembro quanto, eu já tinhame despedido da vida… Mas oveículo parou, e nós — éramosumas vinte pessoas — nãoconseguimos descer, de tãotorturados que estávamos. Nosjogaram no chão como sacos, e ocomandante ordenou que nosarrastássemos até os barracões. Nosapressava com o chicote. Ao ladode um dos barracões estava umamulher dando de mamar a umbebê. E, sabe… Os cachorros, os

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seguranças, estavam todosestupefatos, de pé, sem tocá-la. Ocomandante viu essa cena… Deuum salto. Tirou a criança dosbraços da mãe… Então, sabe, tinhauma bica, uma bica de água, e eleficou batendo a criança contra oferro. O cérebro começou aescorrer… O leite… E eu vi que amãe caiu, e entendi, sou médica…Eu entendi que o coração dela separtiu…

… Estavam nos levando para otrabalho. Pela cidade, por ruasconhecidas. Assim que começamosa descer, em um lugar havia umagrande subida, e de repente escutei

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uma voz: ‘Mãe, mamãe!’. Vi minhatia Dacha e da calçada veiocorrendo minha filhinha. Estavampassando por aquela rua por acasoe me viram. Minha filha veiocorrendo, e na mesma hora seatirou no meu pescoço. E vocêimagina, os cachorros estavam ali,eram treinados especialmente paraavançar nas pessoas, mas nenhumcachorro se mexeu. Se alguém seaproximasse, eles despedaçavam,eram adestrados para isso, enenhum se moveu. Minha filha seatirou sobre mim, eu não chorei, sófalava: ‘Filhinha! Natáchenka, nãochore. Logo estarei em casa’. O

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segurança ficou parado, oscachorros também. Ninguém tocounela…

E na época eu não chorava…Aos cinco anos dizia preces, e

não versinhos. Tia Dacha aensinava a rezar. Ela rezava pormamãe e por papai, pedia quesaíssemos com vida.

Em 1945, no dia 13 de fevereiro,me mandaram para os trabalhosforçados dos fascistas… Fui pararno campo de concentraçãoCroisette, na margem do canal daMancha.

Na primavera… No dia daComuna de Paris, os franceses

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organizaram nossa fuga. Saí e mejuntei aos maquis.

Fui condecorada com a ordemfrancesa da Cruz de Guerra…

Depois da Vitória, estavavoltando para casa… Eu melembro… A primeira parada nanossa terra… Todos descemos dosvagões, beijamos a terra,abraçamos… Eu me lembro: estavacom um avental branco, caí naterra, beijava, botava punhados deterra para dentro da roupa.Pensava: será que algum dia voume separar dela de novo, da minhaterra querida?

Cheguei a Minsk e meu marido

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não estava em casa. Minha filhaestava com a tia Dacha. A NKVDtinha prendido meu marido, estavana prisão… No caminho para lá…O que escuto… Me diziam: ‘Seumarido é um traidor’. Eu tinhatrabalhado na resistência com meumarido. Nós dois. Era um homemcorajoso e honesto. Entendi quetinham feito uma denúncia contraele… Uma calúnia… ‘Não’, falei,‘meu marido não pode ser umtraidor. Eu acredito nele. É umverdadeiro comunista.’ Oinvestigador… Ele começou aberrar comigo: ‘Cale a boca,prostituta francesa! Cale a boca!’.

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As pessoas que viveram a ocupaçãoforam presas, foram levadas para aAlemanha, ficaram em um campode concentração fascista: todaseram suspeitas. Uma pergunta:como sobreviveu? Por que nãomorreu? Até os mortos eram vistoscomo suspeitos… Eles também…Não atentavam para o fato de quelutamos, de que todos nossacrificamos em nome da Vitória.Vencemos… O povo venceu! EStálin não confiava no povo dequalquer forma. Foi assim que apátria nos agradeceu. Por nossoamor, por nosso sangue…

Eu andava… Escrevia para todas

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as instâncias. Soltaram meu maridoseis meses depois. Quebraram umacostela dele, fizeram-no perder umrim… Os fascistas, quando ele foipara a prisão, tinham ferido suacabeça, tinham quebrado um deseus braços, e lá ele ficou com oscabelos brancos; em 1945, a NKVDfez dele um inválidodefinitivamente. Cuidei dele poranos, tratava quando estavadoente. Mas nunca pude falarcontra isso, ele não queriaescutar… ‘Foi um erro’, e só. Oprincipal é que vencemos, era oque ele achava. Pronto, pontofinal. E eu acreditava nele.

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Eu não chorava. Na época eunão chorava…”

LiudmilaMikháilovna

Káchetchkina, membroda resistência

“Como explicar para umacriança? Como explicar a mortepara ela? Estava andando com meufilho pela rua e havia mortos nochão — para um lado e para outro.Estava contando ChapeuzinhoVermelho para ele, e à nossa voltahavia mortos. Foi quando voltamosdo campo de refugiados.

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Chegamos à casa de minha mãe eele não estava bem: se metiaembaixo da cama e ficava lá pordias inteiros. Tinha cinco anos enão saía na rua…

Passei um ano quebrando acabeça com ele. Não conseguiaentender de jeito nenhum: qual éo problema? Morávamos em umporão e, quando alguém passavana rua, só se viam as botas. Entãouma vez ele saiu de debaixo dacama, viu as botas de alguém pelajanela e começou a gritar… Depoisme lembrei que ele tinha levadoum chute de um fascista usandobotas…

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Bom, de alguma forma issoestava passando. Ele brincava comas crianças no pátio, à noite vinhapara casa e perguntava:

‘Mamãe, o que é papai?’Eu explicava para ele:‘Ele é branquinho, bonito, está

lutando no Exército.’Quando estavam libertando

Minsk, os primeiros a entrarem nacidade foram os tanques. Meufilho entrou correndo em casa,chorando:

‘Meu pai não está lá! São todosnegros, não tem ninguémbranco…’

Era julho, os tanquistas eram

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todos jovens, estavam queimadosde sol.

Meu marido voltou da guerrainválido. Não voltou jovem, estavaenvelhecido, e tive um problema:meu filho estava acostumado apensar que o pai era branquinho,bonito, e veio um homem velho edoente. Ele passou muito temposem reconhecê-lo como pai. Nãosabia como chamá-lo. Tive queacostumá-los um ao outro.

Meu marido voltava tarde dotrabalho, eu o recebia:

‘Por que chegou tão tarde? ODima estava preocupado: “Cadêmeu papai?”.’

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Ele também, depois de seis anosde guerra (tinha estado antes naGuerra Russo-Japonesa), tinha sedesacostumado do filho. De casa.

Quando eu comprava algo, diziapara meu filho:

‘Foi o papai que comprou, elecuida de você…’

Logo eles fizeram amizade…”

Nadiéjda VikéntievnaKhátchenko, membro da

resistência

“Minha biografia…Eu trabalhava desde 1929 nas

ferrovias. Era ajudante de

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maquinista. Naquela época nãohavia mulheres maquinistas emnenhum lugar na União Soviética.E eu sonhava com isso. O chefe dodepósito de trens a vapor não sabiao que fazer: ‘Ah, essa menina,tinha que ter uma profissão dehomem’. Mas eu consegui. E em1931 me tornei a primeira… Euera a primeira mulher maquinista.Você não vai acreditar, masquando eu conduzia a locomotivaa vapor juntava gente nas estações:‘Tem uma menina conduzindo otrem’.

Nossa locomotiva foi para alimpeza, ou seja, para a reforma.

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Eu e meu marido nos revezávamos,porque já tínhamos um filho, entãoorganizamos assim: se ele ia, euficava com a criança, se eu ia, eleficava em casa. Exatamentenaquele dia meu marido voltou, eeu precisava ir. De manhã acordeie escutei: havia algo estranho narua, um barulho. Liguei o rádio:‘Guerra!’.

Disse para o meu marido:‘Liônia, levante! A guerra!

Levante, começou a guerra!’‘Guerra? Guerra? Você sabe o

que é uma guerra?’Onde ficaríamos? Onde

esconderíamos nosso filho?

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Na evacuação, eu e meu filhofomos mandados para Uliánovsk,para a retaguarda. Deram-nos umapartamento de dois quartos, umbom apartamento, hoje mesmonão tenho um desses. Arrumamosum jardim de infância para ele.Tudo bem. Todos me adoravam.Mas é claro! Uma mulhermaquinista, e ainda a primeira…Você não vai acreditar, morei lápor pouco tempo, menos de seismeses. Não aguentava mais: comoassim, todos defendendo a pátria eeu sentada em casa?

Veio meu marido:‘E então, Marússia, vai ficar na

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retaguarda?’‘Não’, falei, ‘vamos.’Naquela época estava sendo

organizada uma coluna especial dereserva para servir no front. Eu emeu marido pedimos para ir paralá. Ele era maquinista-chefe, e eumaquinista. Passamos quatro anosviajando em um vagão, e nossofilho vinha conosco. Ele passou aguerra inteira sem ver um gato.Quando pegou um gato perto deKíev, nosso trem sofreu umbombardeio terrível, um ataque decinco aviões, e ele o abraçava:‘Gatinho querido, como estou felizde ter visto você. Não vejo

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ninguém, fique aqui comigo. Deixeeu te dar um beijo’. Uma criança.Uma criança precisa que tudo sejainfantil… Ele dormia com aspalavras: ‘Mamãezinha, temos umgato. Agora temos uma casa deverdade’. Essas coisas a gente nãocria, não inventa… Não deixe issopassar… Escreva sem falta sobre ogato…

Sempre nos bombardeavam,atiravam com metralhadoras. Eatiravam na locomotiva, o principalpara eles era matar o maquinista,aniquilar a locomotiva. Os aviõesdesciam bem baixo, atiravam novagão e na locomotiva, e meu filho

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estava no vagão. Eu temia mais doque tudo por meu filho. Não seicomo descrever… Quandobombardeavam, eu o pegava novagão e trazia para a locomotiva.Agarrava o menino, apertavacontra o coração: ‘Que seja omesmo estilhaço’. Mas por acaso éassim que se mata? Pelo visto, épor isso que ficamos vivos. Anoteisso também…

A locomotiva é a minha vida,minha juventude, o que tenho demais bonito na vida. Mesmo agoraeu gostaria de conduzir trens, masnão me deixam: estou velha.

Como é terrível ter só um

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filho… Que bobagem que é…Agora nós moramos… Eu morocom a família do meu filho. Ele émédico, diretor de uma ala dehospital. Temos um apartamentopequeno. Mas eu nunca tiro férias,nunca faço uma viagenzinha. Nãosei descrever… Não quero meseparar do meu filho, dos meusnetos. Tenho medo de me separardeles por um dia. Meu filhotambém não sai de perto de mim.Logo vai fazer 25 anos que trabalhae nunca viajou, uma vez sequer.Todos se espantam no trabalho,mas ele não pediu para viajarnenhuma vez. ‘Mamãe, prefiro

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ficar com você’, é isso que ele fala.Minha nora também é assim. Nãosei descrever… Não temos datchaporque não podemos nos separarnem por alguns dias. Eu nãoconsigo viver nem um minuto semeles.

Quem esteve na guerra sabe oque é se separar por um dia. Só porum dia…”

Maria AleksándrovnaÁrestova, maquinista

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SOBRE O SILÊNCIO DAQUELESQUE JÁ PODEM FALAR

“Mesmo agora eu falosussurrando… Sobre… Isso…Sussurrando. Há quarenta epoucos anos…

Me esqueci da guerra. Porquedepois da guerra eu vivia commedo. Vivia no inferno.

Já tinha acontecido a Vitória, jáestávamos felizes… Já tínhamosjuntado os tijolos, o ferro,começado a limpar a cidade.Trabalhávamos de dia,trabalhávamos de noite, não me

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lembro quando dormíamos e o quecomíamos. Trabalhávamos etrabalhávamos.

Setembro… Fazia calor emsetembro, me lembro de muito sol.Lembro das frutas. Muitas frutas.Vendiam maçãs em baldes nafeira. E naquele dia… Estavapendurando roupa na varanda…Ficou tudo na minha memória, atéos detalhes, porque a partirdaquele dia tudo mudou na minhavida. Tudo ruiu. Virou de cabeçapara baixo. Eu estava estendendo aroupa… Roupa de cama branca, asminhas sempre foram brancas.Minha mãe me ensinou como lavar

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com areia em vez de sabão. Íamosbuscar areia no rio, eu sabia de umlugar. E então… A roupa… Avizinha me chamou de baixo,gritava com uma voz estranha:‘Vália! Vália!’. Desci o mais rápidopossível, meu primeiro pensamentofoi: onde está meu filho? Sabe, naépoca os meninos corriam no meiodas ruínas, brincavam de guerra eencontravam granadas de verdade,minas de verdade. Se explodiam.Ficavam sem braços, sem pernas…Lembro que não os deixávamossair de perto, mas eram meninos,tinham curiosidade. Você gritava:fique em casa, e cinco minutos

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depois ele não estava mais lá. Eramatraídos pelas armas…Principalmente depois da guerra.Fui para baixo o mais rápidopossível. Desci para o pátio, e láestava meu marido… Meu Ivan…Meu maridinho amado…Vânietchka! Tinha voltado…Voltado do front! Vivo! Eu obeijava, tocava. Fazia carinho naguimnastiorka, em seus braços…Tinha voltado… Minhas pernasfraquejavam… E ele… Estavaparado, feito pedra, é, feitocartolina, parado. Não sorria, nãome abraçava. Parecia congelado.Me assustei: talvez esteja ferido.

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Talvez esteja surdo. Mas tudo bem,o principal é que tinha voltado. Iriacuidar dele, tratar. Já tinhacansado de olhar como outrasmulheres viviam com maridosassim, e eu as invejava do mesmojeito. Tudo isso passou pela minhacabeça em um instante, em umsegundo. Minhas pernas estavamfraquejando de felicidade.Tremiam. Está vivo! Ah, minhaquerida, é o nosso fardo feminino.

Os vizinhos se reuniram alimesmo. Estavam todos felizes,todos se abraçavam. E ele feitopedra. Calado. Todos repararam.

Eu:

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‘Vânia… Vânienka…’‘Vamos para casa.’Certo, vamos. Me pendurei no

ombro dele… Estava feliz! Era todaalegria e felicidade. Estavaorgulhosa! Em casa, ele sentou nobanco, calado.

‘Vânia… Vânietchka…’‘Você entende…’, e não

conseguia falar. Começou a chorar.‘Vânia…’Tivemos uma noite. Só uma

noite.No dia seguinte vieram buscá-lo,

bateram na porta de manhã. Estavafumando, esperava, já sabia queeles vinham. Me contou pouco…

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Não teve tempo… Tinha passadopela Romênia, pelaTchecoslováquia, traziacondecorações, mas estavavoltando com medo. Já tinha sidointerrogado, já tinha passado porduas verificações do governo.Estava marcado: fora prisioneiro.Nas primeiras semanas da guerra…Foi capturado perto de Smoliénsk,e sua obrigação era ter se matadocom um tiro. Ele quis fazer isso, seique quis… Os cartuchos acabaramrápido, não tinha com o que lutar,com o que se matar. Teve umferimento na perna, foi capturadoferido. O comissário partiu a

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própria cabeça com uma pedradiante dos olhos dele… O últimocartucho tinha falhado… Diantedos olhos dele… Um oficialsoviético capturado não seentregava, não tínhamosprisioneiros, tínhamos traidores.Foi o que disse o camarada Stálin;ele renegou o próprio filho que foicapturado. Meu marido… Meu…Os investigadores gritavam paraele: ‘Por que está vivo? Por queficou vivo?’. Ele tinha fugido…Fugiu para a floresta, para aresistência ucraniana, e, quandolibertaram a Ucrânia, pediu para irpara o front. Estava na

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Tchecoslováquia no Dia da Vitória.Recebeu uma condecoração…

Tivemos uma noite… Se eusoubesse… Eu queria ter maisfilhos, queria uma menina…

De manhã o levaram…Tiraram-no da cama… Me sentei àmesa da cozinha, esperando nossofilho acordar. Nosso filho tinhaonze anos. Eu sabia que ele iaacordar e perguntar, a primeiracoisa que ia perguntar: ‘Onde estáo papai?’. O que eu ia responder?Como explicar para os vizinhos?Para minha mãe?

Meu marido voltou sete anosdepois… Eu e meu filho passamos

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quatro anos esperando que elevoltasse da guerra, e depois daVitória mais sete anos que elevoltasse de Kolimá. Do campo detrabalho. Esperamos onze anos.Meu filho cresceu…

Aprendi a me calar… Onde estáseu marido? Quem é seu pai? Emtodos os formulários aparecia apergunta: algum parente foiprisioneiro? Não me aceitaramcomo faxineira numa escolaquando escrevi, não confiavam emmim para limpar o chão. Me torneiuma inimiga do povo, mulher deum inimigo do povo. De umtraidor. Toda a minha vida para

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nada… Antes da guerra eu eraprofessora de escola, formada nomagistério, e depois da guerrapassei a carregar tijolos numaconstrução. Ah, minha vida…Desculpe, está incoerente, sai tudoatabalhoado. Estou me apressando.Às vezes, à noite… Quantas noitesnão passei deitada sozinha,contando minha vida para alguém,várias e várias vezes. Mas de diaficava calada.

Agora podemos falar de tudo.Eu quero… Perguntar: se nosprimeiros meses da guerra milhõesde soldados e oficiais foram feitosprisioneiros, de quem é a culpa? Eu

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quero saber… Quem decapitou oExército antes da guerra, quemfuzilou e caluniou os comandantesvermelhos: espião alemão, espiãojaponês? Eu quero… Quemconfiou na cavalaria de Budiônnienquanto Hitler estava se armandocom tanques e aviões? Quem nosgarantiu: ‘Nossas fronteiras estãotrancadas’? E já nos primeiros diaso Exército estava contandocartuchos…

Eu quero… Já possoperguntar… Onde está minhavida? Nossa vida? Mas eu ficocalada, meu marido também fica.Até hoje é terrível. Temos medo…

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E vamos morrer com medo. Éamargo e vergonhoso…”

ValentinaIevdokímovna M-va,mensageira partisan

* Nome que os partisans usavam paraas regiões não ocupadas da UniãoSoviética.

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“E ela botava a mão ali,onde fica o coração…”

E por fim — a Vitória.Se antes a vida para eles era

dividida entre guerra e paz, agoraera entre guerra e Vitória.

De novo dois mundosdiferentes, duas vidas diferentes.

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Depois de aprender a odiar, erapreciso aprender a amar de novo.Lembrar de sentimentosesquecidos. De palavrasesquecidas.

Uma pessoa da guerra precisavase transformar em uma pessoa danão guerra…

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SOBRE OS ÚLTIMOS DIAS DAGUERRA, QUANDO DAVA ASCOMATAR

“Estávamos felizes…Tínhamos cruzado a fronteira, a

pátria fora libertada. Nossa terra…Eu não reconhecia os soldados,pareciam outras pessoas. Todossorriam. Usavam camisas limpas.Traziam flores nas mãos, não sei deonde, nunca tinha conhecido umagente tão feliz. Antes eu não via.Achava que quando entrássemosna Alemanha eu não teria penadeles, não teria piedade de

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ninguém. Acumulava tanto ódiono peito! Tanta mágoa! Por que eudevia ter pena dos filhos deles? Porque eu devia ter pena da mãedeles? Por que eu não deviadestruir suas casas? Eles nãotinham tido pena… Eles tinhammatado… Queimado… E eu? Eu…eu… eu… Por quê? Por queeê?Tinha vontade de ver as esposasdeles, as mães que tinham paridofilhos como aqueles. Como elesiam olhar nos nossos olhos? Euqueria olhar nos olhos deles…

Eu pensava: o que vai acontecercomigo? Com nossos soldados?Nós todos nos lembrávamos…

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Como vamos suportar aquilo? Queforças serão necessárias parasuportar aquilo? Chegamos emuma vila, as crianças estavamcorrendo, famintas, miseráveis.Tinham medo de nós… Seescondiam… Eu, que tinha juradoque iria odiar todos eles… Juntavacom os nossos soldados tudo o queeles tinham, o que tinha sobradoda ração, qualquer pedacinho deaçúcar, e entregava para as criançasalemãs. É óbvio que eu não tinhaesquecido… Eu me lembrava detudo… Mas não conseguia ver oolhar de fome das criançastranquilamente. De manhã cedo já

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havia uma fila de crianças alemãsperto da nossa cozinha, dávamosprimeiro e segundo pratos. Cadacriança usava uma bolsa no ombropara pôr pão, uma vasilha no cintopara a sopa e para oacompanhamento — mingau,ervilha. Dávamos de comer a eles,curávamos. Até fazíamos carinho…Da primeira vez que fiz carinho emum deles… Me assustei… Eu…Eu! Fazendo carinho numa criançaalemã… Fiquei com a boca seca depreocupação. Mas logo meacostumei. Eles também seacostumaram…”

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Sófia AdámovnaKuntsiévitch,

enfermeira-instrutora

“Fui até a Alemanha… DesdeMoscou, andando…

Eu era enfermeira-chefe em umregimento de tanques. Tínhamosos T-34, eles pegavam fogo rápido.Dava muito medo. Antes daguerra, nunca tinha escutado nemtiros de espingarda. Uma vez,bombardearam algum lugar bemlonge, quando estávamos indo parao front, e me pareceu que toda aterra estava tremendo. Eu tinha

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dezessete anos, acabava determinar o técnico. E me aconteceude entrar num combate logo quecheguei.

Desci do tanque… Umincêndio… O céu estavaqueimando… A terra estavaqueimando… O ferro estavaqueimando… Aqui havia mortos,ali gritavam: ‘Socorro! Alguém meajude…’. O terror que me deu!Não sei como não saí correndo.Como não me mandei do campode batalha? Dava tanto medo quenão tenho palavras, sósentimentos. Antes eu nãoaguentava; agora assisto a filmes de

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guerra, mas mesmo assim choro.Cheguei à Alemanha…A primeira coisa que vi em

terras alemãs foi um cartaz caseirobem do lado da estrada: ‘Aí estáela, a maldita Alemanha!’.

Entramos em um povoado… Asjanelas estavam todas fechadas.Todos correram e fugiram nasbicicletas. Goebbels tinhaconvencido a todos que, quando osrussos chegassem, iriam cortar,trucidar, matar. Você abria a portade uma casa e não tinha ninguém,ou estavam todos mortos,envenenados. Crianças jaziammortas. Se matavam com um tiro,

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tomavam veneno… O quesentíamos? Alegria, porquetínhamos vencido e eles agoraestavam sentindo dor, comoacontecera conosco. Sentimento devingança. Mas das crianças nóstínhamos pena…

Encontramos uma velhinha.Eu disse a ela:‘Nós vencemos.’Ela começou a chorar:‘Dois filhos meus morreram na

Rússia.’‘E de quem é a culpa? Quantos

dos nossos morreram?!’Ela respondeu:‘De Hitler…’

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‘Hitler não decidia sozinho.Foram seus filhos, maridos…’

Então ela ficou quieta.Cheguei à Alemanha…Queria contar para minha

mãe… Mas ela morreu de fome naguerra, eles não tinham nem pão,nem sal, não tinham nada. Meuirmão estava no hospital,gravemente ferido. Uma irmãestava me esperando em casa. Elaescreveu que, quando nossastropas entraram em Oriol, elapegava todas as moças de capotemilitar. Tinha certeza de que euestaria lá. De que eu deviavoltar…”

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Nina PietróvnaSákova, tenente,

enfermeira

“Os caminhos da Vitória…Você não imagina os caminhos

da Vitória! Andavam os presosrecém-libertos, com carretas,trouxas, bandeiras nacionais.Russos, poloneses, franceses,tchecos… Todos se misturavam,cada um ia para o seu lado. Todosnos abraçavam. Beijavam.

Encontramos algumas jovensrussas. Comecei a falar com elas eme contaram… Uma delas estava

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grávida. A mais bonita. Tinha sidoestuprada pelo patrão do lugaronde trabalhavam. Obrigou-a aviver com ele. Ela andava echorava, batia na barriga: ‘Não voulevar um fritz para casa! Não vou!’.As outras tentavam convencê-la…Mas ela se enforcou… Junto com opequeno fritz…

Precisava ter nos escutadonaquela ocasião, escutado eanotado. Pena que na época nãopassou pela cabeça de ninguém nosescutar, todos repetiam a palavra‘Vitória’, e todo o resto parecia semimportância.

Uma vez, eu e uma amiga

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estávamos andando de bicicleta.Passou uma alemã, acho que tinhatrês filhos: dois no carrinho e umcom ela, segurava na sua saia.Estava tão extenuada. E aí,entende, ela passou na nossafrente, pôs-se de joelhos e seinclinou. Bem assim… Até ochão… Não entendíamos o que elaestava dizendo. E ela botava a mãoali, onde fica o coração, e apontavapara as crianças. De um modogeral, entendemos que ela estavachorando, se inclinando e nosagradecendo pelo fato de ascrianças estarem vivas…

Era a esposa de alguém. O

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marido deve ter combatido nofront oriental… Na Rússia…”

AnastassiaVassílievna Voropáieva,

cabo, operadora deprojetor

“Um dos nossos oficiais seapaixonou por uma garota alemã…

A notícia chegou aossuperiores… Ele foi degradado emandado para a retaguarda. Setivesse estuprado… É… Claro,acontecia… Em nossa terra seescreve pouco sobre isso, mas é alei da guerra. Os homens ficavam

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tantos anos sem mulheres e, claro,havia o ódio. Entrávamos em umacidadezinha ou vila: os primeirostrês dias eram saque e… Emsegredo, óbvio… Você entende…Mas passados os três dias já erapossível ir até para o tribunal. Numacesso de raiva. Mas por três diasbebiam e… Só que naquele casoera amor. O próprio oficial admitiuna seção especial: amor. Claro queisso era traição. Se apaixonar poruma alemã, pela filha ou esposa deum inimigo? Era… E… Bem,resumindo, tomaram as fotografias,o endereço dela. Claro…

Eu me lembro… Claro, lembro

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de uma alemã estuprada. Elaestava deitada nua, com umagranada enfiada no meio daspernas… Agora dá vergonha, masna época eu não sentia vergonha.Os sentimentos mudavam, claro.Sentíamos uma coisa nos primeirosdias e outra coisa depois… Ealguns meses depois… Para nós nobatalhão… Cinco jovens alemãsvieram falar com nossocomandante. Elas choravam. Oginecologista examinou: elastinham feridas lá. Feridas rasgadas.Todas as calcinhasensanguentadas… Tinham sidoestupradas por toda a noite. Os

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soldados faziam fila…Não grave… Desligue o

gravador… É verdade! É tudoverdade! Mandaram o batalhãoentrar em formação… Disserampara as garotas alemãs: vão lá eprocurem, se vocês reconheceremalguém, fuzilamos na hora. Nemolhamos para a patente. Temosvergonha! Mas elas sentaram echoraram. Não queriam… Nãoqueriam mais sangue. Foi o quedisseram… Então deram umabisnaga de pão para cada uma.Claro, tudo isso é a guerra…Claro…

Você acha que era fácil perdoar?

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Ver as casinhas com telhado,inteiras… brancas… Com rosas…Eu mesma queria que elessentissem dor. Claro… Queria veras lágrimas deles… Não ia ficar boade uma hora para outra… Corretae boa. Tão boa quanto você agora.Ter pena deles. Para isso, preciseique algumas décadas sepassassem…”

A. Rátkina, primeiro-sargento, telefonista

“A nossa terra natal foilibertada… Morrer passou a serabsolutamente insuportável,

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enterrar passou a serabsolutamente insuportável.Morriam pelas terras dos outros,enterravam nas terras dos outros.Nos explicaram que era precisoterminar de aniquilar o inimigo.Ele ainda era perigoso… Todosentendiam… Mas dava tanta penade morrer… A essa altura,ninguém queria…

Eu me lembro de muitoscartazes ao longo da estrada,pareciam cruzes: ‘Aí está ela, amaldita Alemanha!’. Se lembramdesse cartaz?

E todos esperavam por aquelemomento… Agora vamos

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entender… Vamos ver… De ondeeles vêm? Como é a terra deles,como são as casas? Será que sãopessoas normais? Eles levavamuma vida normal? No front eu nãome imaginava lendo de novo osversos de Heine. Do meu queridoGoethe. Eu já não conseguiriaescutar Wagner… Antes da guerra— cresci numa família de músicos—, eu amava música alemã: Bach,Beethoven. O grande Bach!Apaguei tudo isso do meu mundo.Depois vimos, nos mostraram oscrematórios… O campo deAuschwitz… As montanhas deroupa feminina, de sapatinhos

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infantis… As cinzas acinzentadas…Levaram-nas para o campo, paraservir de adubo para o repolho…Para a alface… Eu não conseguiamais escutar música alemã…Passou muito tempo até que euvoltasse para Bach. Passasse a tocarMozart.

Enfim estávamos na terradeles… A primeira coisa que nossurpreendeu foram as boasestradas. As casas dos camponeseseram grandes… Vasos com flores,cortinas elegantes nas janelas, aténos galpões. As casas tinhamtoalhas de mesa brancas. Louçacara. Porcelana. Lá eu vi uma

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máquina de lavar pela primeiravez… Não conseguíamos entender:para que foram lutar se eles viviamtão bem? Na nossa terra estão seapinhando em abrigos de terra, eeles com toalhas de mesa brancas.Café em xicrinhas… Eu só tinhavisto isso no museu. Essasxicrinhas… Esqueci de falar danossa estupefação, estávamosestupefatos… Fomos para oataque, e ali estavam as primeirastrincheiras alemãs quetomávamos… Saltamos ali dentro,e ainda havia café quente nasgarrafas térmicas. O cheiro decafé… Biscoitos. Lençóis brancos.

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Toalhas limpas. Papel higiênico…Não tínhamos nada disso. Quelençóis? Dormíamos sobre palha,sobre galhos. Às vezes, passávamosdois ou três dias sem comidaquente. E nossos soldadosfuzilaram aquelas garrafastérmicas… Aquele café…

Nas casas dos alemães vi jogosde café fuzilados. Vasos de flores.Travesseiros… Carrinhos debebê… Mas mesmo assim nãoéramos capazes de fazer com eles oque eles fizeram conosco. Fazê-lossofrer como nós sofremos.

Para nós, era difícil entender: deonde vinha o ódio deles? O nosso,

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entendíamos. Mas e o deles?Permitiram mandar pacotes para

casa. Sabão, açúcar… Teve genteque mandou sapatos, os alemãestinham sapatos resistentes,relógios, coisas de couro. Todosprocuravam por relógios. Eu nãoconseguia, me dava aversão. Eunão queria pegar nada deles,apesar de saber que minha mãe eminha irmã viviam na casa dosoutros. Tinham queimado a nossa.Quando voltei para casa, conteipara minha mãe, ela me abraçou:‘Eu também não conseguiria pegarnada deles. Eles mataram seu pai’.

Voltei a segurar um livrinho de

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Heine dezenas de anos depois daguerra. E a ouvir os discos doscompositores alemães que euamava antes da guerra…”

Aglaia BoríssovnaNesteruk, sargento,

comunicações

“Isso já foi em Berlim… Meaconteceu o seguinte caso: estavaandando pela rua e, ao meuencontro, veio saltando ummenino com um fuzil, umVolkssturm,* já no fim da guerra.Nos últimos dias. Eu estava comum fuzil nas mãos, preparado. Ele

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olhou para mim, piscou e começoua chorar. Eu também nãoacreditava em mim mesma: fiqueicom os olhos marejados. Tive tantapena, o guri ali com aquele fuzilidiota. Eu o empurrei na direçãode um edifício destruído, para aentrada, e disse: ‘Esconda-se’. Masele se assustou, achou que eu iadar um tiro: eu estava com umgorro, não dava para ver se erauma moça ou um rapaz. Segurouminha mão. Estava aos prantos! Fizum carinho na cabeça dele. Omenino emudeceu. Apesar detudo, era a guerra… Sim, eumesma fiquei muda! Eu os odiara

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por toda a guerra! Fosse justo ouinjusto, eu tinha asco de matar,especialmente nos últimos dias daguerra…”

Albina AleksándrovnaGantimurova, primeiro-

sargento, batedora

* * *

“Lamento uma coisa… Eu nãocumpri um pedido…

Levaram um ferido alemão parao nosso hospital. Acho que era umpiloto. Tinha fraturado o quadril eestava começando a gangrenar.Alguma pena tomou conta de

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mim. Ficava em silêncio.Eu entendia um pouco de

alemão. Perguntei a ele:‘Está com sede?’‘Não.’Os outros feridos sabiam que

havia um alemão ferido naenfermaria. Ele ficava separado.Quando eu passava, eles seindignavam:

‘Você está levando água para oinimigo?’

‘Ele está morrendo… Tenho queajudá-lo…’

A perna dele estava toda azul, jánão havia o que fazer. Acontaminação toma a pessoa num

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instante, ela morre em um dia.Dei-lhe água, mas ele ficou me

olhando e de repente disse:‘Hitler kaput!’Isso era 1942. Estávamos perto

de Khárkov, sob cerco.Perguntei:‘Por quê?’‘Hitler kaput!’Retruquei:‘Isso você pensa e fala agora,

porque está aqui. Mas lá vocêmatava…’

Ele:‘Eu não atirava, eu não matava.

Me obrigaram. Mas eu nãoatirava…’

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‘Todos se defendem assimquando caem presos.’

De repente ele pediu:‘Peço muito… muito… frau…’,

e me deu um pacote de fotografias.Mostrou, aquela era a mãe dele,ele, os irmãos, as irmãs… Umafotografia tão bonita. Escreveu oendereço no verso: ‘Vocês vãopassar por lá. Vão!’. E quem diziaisso era um alemão em 1942, pertode Khárkov. ‘Jogue isso na caixa decorreio, por favor.’

Ele escreveu o endereço em umafoto, mas havia um envelope cheiodelas. Levei-as comigo por muitotempo. Estava preocupada, perdi

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quando estava sob um bombardeiomuito intenso. O envelope caiuquando entramos na Alemanha…”

Lília MikháilovnaButkó, enfermeira

cirúrgica

“Lembro de um combate…Nesse combate fizemos muitos

prisioneiros alemães. Havia feridosentre eles. Enquanto estávamosfazendo curativo eles gemiam,como os nossos rapazes. E ocalor… Um calorão! Encontramosuma chaleira, demos água paraeles. Estávamos em um lugar

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aberto. Debaixo de fogo inimigo.Deram uma ordem: cavar umatrincheira com urgência e noscamuflar.

Começamos a cavar astrincheiras. Os alemães olhavam.Explicávamos a eles: dizíamos,ajudem a cavar, vamos, trabalhem.Quando entenderam o quequeríamos deles, olharam paratodos nós com horror: eles tinhamentendido que, depois de cavar asvalas, íamos mandá-los para lá efuzilá-los. Ficaram esperando…Precisava ver com que horror elescavavam… O rosto deles…

Quando viram que fizemos

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curativos neles, que demos umaaguinha e mandamos seesconderem na trincheira quetinham cavado, eles nãoconseguiram se controlar, ficaramaturdidos… Um alemão chorou…Era um homem mais velho,chorava e não escondia as lágrimasde ninguém.”

Nina VassílievnaIlínskaia, enfermeira

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SOBRE UMA REDAÇÃO COMERROS INFANTIS E FILMES DECOMÉDIA

“A guerra estava acabando…O comissário político me

chamou:‘Vera Ióssifovna, a senhora vai

ter que trabalhar com os feridosalemães.’

Naquela época eu já tinhaperdido dois irmãos.

‘Não vou.’‘Precisa ir, entenda.’‘Não sou capaz: perdi dois

irmãos, não consigo olhar para

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eles; estou pronta para cortá-los,mas não para curá-los. O senhor éque vai me entender.’

‘É uma ordem.’‘Se é uma ordem, eu acato. Sou

militar.’Tratava aqueles feridos, fazia

tudo o que fosse necessário, masera difícil para mim. Tocar neles,aliviar a dor. Nessa época acheimeus primeiros cabelos brancos.Justo nessa época. Eu fazia de tudopara eles: operava, dava comida,anestesiava — tudo como manda ofigurino. Só tinha uma coisa que eunão conseguia fazer: a visita datarde. De manhã trocávamos os

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curativos do ferido, escutávamos opulso, em suma, atuávamos comomédicos, mas na visita da tardetínhamos que conversar com ospacientes, perguntar como estavamse sentindo. Isso eu não conseguia.Fazer curativos, operar, euconseguia, mas falar com eles, não.Tinha avisado o comissáriopolítico:

‘Não vou fazer a visita datarde…’”

Vera IóssifovnaKhóreva, cirurgiã militar

“Na Alemanha… Nos nossos

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hospitais já tinham aparecidomuitos feridos alemães…

Lembro do meu primeiro feridoalemão. A perna tinha começado agangrenar e foi amputada… Eleestava na minha enfermaria…

À tarde, me disseram:‘Kátia, vá lá olhar o seu alemão.’Eu fui. Podia ter uma

hemorragia ou algo assim. Eleestava acordado, deitado. Semfebre, nada.

Ele olhou, olhou, depois puxouuma pistola pequena:

‘Tome…’Ele falava em alemão, não

lembro mais, mas entendi pelo que

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sabia das aulas na escola.‘Tome…’, disse, ‘queria matar

vocês, mas agora me mate você.’Queria dizer que seria salvo. Ele

nos matava, mas nós o salvaríamos.E eu não conseguia dizer a verdadepara ele, que estava morrendo…

Saí da enfermaria einesperadamente notei que tinhalágrimas nos olhos…”

Ekaterina PietróvnaChalíguina, enfermeira

“Eu podia ter um encontro…Tinha medo desse encontro…

Quando eu estava na escola,

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estudava em um lugar com umaorientação alemã, e estudantesalemães vinham nos visitar.Vinham para Moscou. Íamos comeles ao teatro, cantávamos juntos.Eu e um menino alemão… Elecantava tão bem. Nós ficamosamigos, eu até me apaixonei porele… E por toda a guerra pensei: ‘Ese eu o encontro e reconheço? Seráque ele também está no meiodesses?’. Sou muito emotiva, desdecriança sou absolutamenteimpressionável. Absolutamente!

Uma vez estava andando pelocampo de batalha, logo depois deum combate… Tínhamos

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recolhido nossos mortos, ficaramos alemães… Achei que ele estavaali no chão… Parecia tanto com orapaz… Na nossa terra… Passeimuito tempo olhando para ele…”

Maria AnatólievnaFleróvskaia,

trabalhadora política

“Quer saber a verdade? Eumesma me assusto…

Um dos nossos soldados…Como explicar? Todos na casa deletinham morrido… Ele… Osnervos… Estava bêbado, talvez?Quanto mais perto a vitória estava,

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mais bebiam. Nas casas e nosporões sempre se achava vinho.Schnaps. Bebiam e bebiam. Elepegou o fuzil e correu para umacasa alemã… Descarregou toda amunição… Ninguém teve tempode ir atrás dele. Corremos… Masdentro da casa já estavam todosmortos… As crianças… Pegamos ofuzil dele e o amarramos. Ele noscobria de palavrões: ‘Deixem queeu mesmo me dou um tiro’.

Foi preso e julgado: fuzilamento.Eu tinha pena dele, todostínhamos pena. Ele lutou a guerrainteira. Chegou até Berlim…

Pode escrever sobre isso agora?

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Antes era proibido…”

A. S-va, operadora deartilharia antiaérea

“A guerra estava esperando pormim…

Quando completei dezoitoanos… Trouxeram umanotificação: apresentar-se noComitê Regional, levar provisõespara três dias, duas mudas deroupa de baixo, uma caneca, umacolher. Isso se chamavamobilização para a frente detrabalho.

Levaram-nos para a cidade de

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Novotróitsk, na província deOrenburg. Começamos a trabalharnuma fábrica. O frio era tanto queo sobretudo congelava no quarto,você segurava e ele estava pesadofeito um tronco. Passamos quatroanos trabalhando sem férias, semfins de semana.

Esperávamos e esperávamos quea guerra chegasse ao fim. Ao pontofinal. Às três da manhã houve umbarulho no alojamento, vieram odiretor da fábrica e o resto dachefia: ‘Vitória!’. Eu não tinhaforças para sentar na tarimba, mesentavam e eu caía para trás. Nãoconseguiram me levantar o dia

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inteiro. Fiquei paralisada defelicidade, de tão forte que era osentimento. Só na manhã seguinteme levantei… Saí na rua, queriaabraçar e beijar todo mundo…”

Ksênia KlimentiévnaBelkó, soldado da frente

de trabalho

“Que palavra bonita: vitória…Eu pichei o Reichstag… Escrevi

com um carvão, era o que tinha àmão: ‘Uma garota russa de Sarátovvenceu vocês’. Todos estavamdeixando algo na parede, algumaspalavras. Confissões e maldições.

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Vitória! Minhas amigasperguntavam: ‘O que você vai ser?’.Passamos tanta fome na guerra…Era impossível… Queríamos nosfartar de comer, matar a fome nemque fosse por um dia. Eu tinha umsonho: receber o primeiropagamento depois da guerra ecomprar uma caixa de biscoitos. Oque eu ia ser depois da guerra?Claro, cozinheira. Até hojetrabalho em um alojamento.

Segunda pergunta: ‘Quando vaise casar?’. O mais rápido possível…Eu sonhava com dar beijos. Queriamuito beijar… Queria tambémcantar. Cantar! É isso…”

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Elena PávlovnaChálova, chefe do

Komsomol do batalhãode fuzileiros

“Aprendi a atirar, jogargranadas… Instalar minas. Prestarprimeiros socorros…

Mas por quatro anos… Durantea guerra esqueci todas as regras degramática. Todo o programaescolar. Podia desmontar um fuzilautomático com os olhos fechados,mas escrevi minha redação paraingressar na faculdade com várioserros infantis e quase sem vírgulas.

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O que me salvou foram minhascondecorações militares, e meaceitaram no instituto. Comecei aestudar. Lia os livros e nãoentendia, lia poemas e nãoentendia. Tinha esquecido aquelaspalavras…

À noite, eu era atormentada porpesadelos: soldados da SS, latidosde cachorros, os últimos gritos…Quando morre, em geral umapessoa sussurra algo, isso é maisassustador que um grito. Tudovoltava para mim… Uma pessoalevada para o fuzilamento… Omedo nos seus olhos… E dá paraver que ela não acredita, até o

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último minuto ela não acredita. Ecuriosidade, também temcuriosidade. Ela para diante dofuzil e no último minuto se cobrecom as mãos. Cobre o rosto… Demanhã, minha cabeça ficavainchada por causa dos gritos…

Na época da guerra eu nãorefletia muito, mas depois comeceia pensar. Remoer… Tudo serepetia e se repetia… Eu nãodormia… Os médicos meproibiram de estudar. Mas asmeninas — minhas companheirasde quarto no alojamento estudantil— me disseram para esquecer osmédicos e tomaram conta de mim.

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Toda noite, uma por vez mearrastava para o cinema para veruma comédia. ‘Você precisaaprender a rir. Rir muito.’Querendo ou não, elas mearrastavam. Havia poucascomédias, e eu vi cada uma cemvezes, no mínimo umas cem vezes.No começo eu ria como quemchora.

Mas os pesadelos foram embora.Consegui estudar…”

Tamara UstínovnaVorobêikova, membro

da resistência

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SOBRE A PÁTRIA, STÁLIN E ACHITA VERMELHA

“Era primavera…Rapazes jovens estavam

morrendo, estavam morrendo naprimavera… Em março, abril… Eume lembro que na primavera, naépoca em que os jardins estavamflorescendo e todos esperavam pelaVitória, enterrar as pessoas era acoisa mais difícil. Mesmo se já tedisseram isso, anote de novo. Éuma lembrança forte…

Passei dois anos e meio no front.Minhas mãos fizeram milhares de

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curativos, milhares de limpezas…Fazia mais e mais curativos… Umavez, fui trocar o lenço da cabeça,me apoiei na moldura da janela eesqueci de tudo. Depois merecobrei e me senti descansada.Um médico me encontrou ecomeçou a me dar bronca. Eu nãoestava entendendo nada… Elesaiu, mas antes disso me passoudois plantões extras, e minhacolega me explicou o que tinhaacontecido: eu passara mais deuma hora perdida empensamentos. No fim, eu tinhaadormecido.

Agora tenho pouca saúde, os

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nervos estão mal. Quando meperguntam ‘Quantascondecorações você tem?’, fico comvergonha de admitir que nãotenho nenhuma, não conseguiramme condecorar. E talvez nãotenham conseguido porque haviamuitos de nós na guerra e todosfaziam o que podiam… O queestava ao alcance de suas forças…Por acaso tinha como condecorar atodos? Mas temos o maior prêmiode todos: 9 de maio. Dia daVitória!

Lembro de uma morteincomum… Na época ninguémentendeu, não tínhamos cabeça

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para isso… Mas eu me lembro…Um dos nossos capitães morreu noprimeiro dia em que pisamos emsolo alemão. Toda a sua famíliatinha morrido na ocupação, nóssabíamos. Era um homem corajoso,ele esperou tanto por aquilo…Tinha medo de morrer antes. Denão sobreviver até o dia em queveria a terra deles, a infelicidadedeles, a dor deles. Comochoravam, como sofriam… Verpedras destruídas no lugar da casadeles… Morreu sem mais nemmenos, não estava ferido nemnada. Chegou, olhou e morreu.

Até hoje eu às vezes me lembro:

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por que ele morreu?”

Tamara IvánovnaKuráieva, enfermeira

* * *

“Pedi para ir para a linha defrente direto do trem… Na mesmahora… Uma unidade estavasaindo, fui com ela. Na época euachava isso, que se fosse para alinha de frente, nem que fosse porum dia, voltaria para casa maiscedo do que se ficasse naretaguarda. Tinha deixado minhamãe em casa. Nossas meninas selembram até hoje: ‘Ela não queria

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ficar no batalhão médico’. Éverdade, ia para o batalhãomédico, me lavava, pegava umaroupa e voltava para a minhatrincheira. Para as posições devanguarda. Não pensava em mim.Me arrastava, corria… Só queaquele cheiro de sangue… Nãoconseguia me acostumar ao cheirode sangue…

Depois da guerra, arrumei umemprego de parteira numa ala damaternidade, mas durou pouco.Pouco… Foi curto… Eu tinhaalergia ao cheiro de sangue, meuorganismo simplesmente nãoaceitava. Foi tanto desse sangue

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que vi na guerra, não aguentavamais. Meu organismo não aceitava.Saí da ala da maternidade numaambulância. Tinha urticária, faltade ar.

Costurei uma blusa com umtecido vermelho, e meus braçosficaram até o outro dia comalguma mancha. Bolhas. Nemchita vermelha, nem floresvermelhas — rosas ou cravos —meu organismo aceitava. Nadavermelho, nada da cor desangue… Mesmo agora não tenhonada vermelho na minha casa.Você não vai encontrar. O sanguehumano tem uma cor muito viva,

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nunca tinha visto essa cor nem nanatureza, nem em quadros. O sucode romã parece um pouco, masnão é exatamente igual. Romãmadura…”

Maria IákovlevnaIejova, tenente da

guarda, comandante deum batalhão médico

“Oh-oh-oh… Ah-ah-ah…Todos diziam ‘oh’ e ’ ‘ah’, como eusou colorida. Enfeitada. Mesmo naguerra eu era assim. Não militar.Usava vários penduricalhos…Ainda bem que nosso comandante

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era, como se diria hoje, umdemocrata. Não vinha da caserna,mas da universidade. Imagine, umprofessor. Com boas maneiras.Naquela época… Era uma averara… Uma ave rara voou parajunto de nós…

Eu adoro anéis, mesmo baratos,mas que sejam muitos, nas duasmãos. Adoro perfumes bons. Damoda. Tudo quanto é bugiganga.Muitas e variadas. Na minhafamília sempre riam: ‘O que vamosdar para a nossa doida da Lenkade aniversário? Claro, umanelzinho’. Depois da guerra, meuirmão fez um anel serrando uma

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lata de conserva. E de uma garrafade vidro ele torneou um pingente,um pedaço verde. E fez ainda umoutro, castanho- -claro.

Sou que nem uma pega, uso detudo, e sempre brilhante. Ninguémacredita que estive na guerra. Eumesma já não acredito. Nesseminuto que estamos aqui sentadas,conversando, eu não acredito. Mastenho no porta-joias uma Ordemda Estrela Vermelha… A ordemmais enfeitada… Não acha bonita?Deram para mim de propósito.Hahaha. Mas sério… É para ahistória, sim? Esse negócio estágravando, não é?… Então é para a

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história… Vou dizer o seguinte:sem ser mulher não dá parasobreviver na guerra. Nunca tiveinveja dos homens. Nem nainfância, nem na juventude. Nemna guerra. Sempre fui feliz por sermulher. Dizem que as armas —fuzil, revólver — são bonitas, quehá muito pensamento humanodepositado nelas, muita paixão,mas para mim elas nunca forambonitas. Eu via com que admiraçãoos homens olhavam para um bomrevólver, isso para mim eraincompreensível. Eu sou mulher.

Por que fiquei sozinha? Tivenamorados. Não me faltava

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namorado… Mas veja, estousozinha… Eu mesma me alegro.Todas as minhas amigas sãojovens. Amo a juventude. Tenhomais medo da velhice do que daguerra. Você veio tarde… Agorapenso na velhice, e não na guerra.

Esse negócio está gravando, nãoé? É para a história, não é?”

Elena BoríssovnaZviáguintseva, soldado,

armeira

* * *

“Eu vim para casa… Estavamtodos vivos em casa… Minha mãe

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salvou a todos: meu avô e minhaavó, minha irmãzinha e meuirmão. E eu voltei…

Um ano depois chegou nossopai. Papai voltou comcondecorações importantes, eutrouxe uma ordem e duasmedalhas. Mas na nossa famíliaficou assim: a heroína principal eraminha mãe. Ela salvou a todos.Salvou a família, salvou a casa. Aguerra dela foi a mais terrível. Meupai nunca usava nem ordens, nemfitas, ele tinha vergonha de seexibir na frente da minha mãe.Ficava sem jeito. Minha mãe nãotinha condecorações.

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Nunca na vida amei tantoalguém como amei minha mãe…”

Rita MikháilovnaOkunévskaia, soldado,

sapadora-mineira

“Voltei outra pessoa… Pormuito tempo tive uma relaçãoanormal com a morte. Estranha, eudiria…

Puseram em funcionamento oprimeiro bonde de Minsk, euestava nesse bonde. E de repente obonde parou, todos começaram agritar, as mulheres chorando: ‘Umapessoa morreu! Uma pessoa

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morreu!’. Fiquei só eu no vagão,não conseguia entender por queestavam todos chorando. Eu nãotinha esse sentimento de que eraalgo terrível. Tinha visto tantosmortos no front… Nem reagia.Estava acostumada a viver entreeles. Sempre tinha mortos porperto… Nós fumávamos ao ladodeles, comíamos. Conversávamos.Eles não estavam em algum lugarpara lá, debaixo da terra, estavamsempre ali… Conosco.

Depois voltou esse sentimento,de novo passei a achar terrível verum morto. No caixão. Uns anosdepois esse sentimento voltou.

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Fiquei normal… Igual aosoutros…”

Bella IssáakovnaEpchtein, sargento,

francoatiradora

* * *

“Este caso é de antes daguerra…

Eu estava no teatro. Na hora dointervalo, quando a luz se acendeu,vi… Todos viram… Começou umasalva de palmas. Um estrondo! Nocamarote do governo estava Stálin.Meu pai estava preso, meu irmãodesaparecido nos campos de

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trabalho, e apesar disso eu sentium entusiasmo tão grande que mejorraram lágrimas dos olhos. Fiqueicongelada de felicidade! Toda asala… Toda a sala se levantou!Aplaudiram de pé por dezminutos.

E fui para a guerra assim. Paralutar. E na guerra escutava asconversas em voz baixa… À noite,os feridos fumavam no corredor.Uns dormiam, outros nãodormiam. Falavam deTukhatchévski, de Iakir…**Milhares desapareceram! Milhõesde pessoas! Para onde foram? Osucranianos contavam… Como

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foram mandados para o colcoz.Reprimidos… Como Stálinorganizou uma onda de fome, elesmesmos chamavam deHolodomor. Mães enlouquecidascomiam os próprios filhos… E aterra ali é tão rica que, se vocêespeta uma vareta, cresce umsalgueiro. Os prisioneiros alemãesenchiam um pacote e mandavampara casa. De tão gorda que eraessa terra. Um metro de terravegetal. De camada fértil. Asconversas eram em voz baixa… Ameia-voz… Nunca em grupo,sempre entre duas pessoas. Três édemais, o terceiro te denuncia…

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Vou contar uma piada… Voucontar para não chorar. Então, éassim… De noite. No barracão. Ospresos estão deitados,conversando. Perguntam um parao outro: ‘Por que você foi preso?’.Um diz: ‘Por dizer a verdade’, ooutro diz: ‘Por meu pai’… Oterceiro responde: ‘Por preguiça’.Como assim? Todos sesurpreendem. Ele conta: ‘Umanoite estávamos com uns amigos,contando piadas. Voltamos tardepara casa. Minha mulher meperguntou: ‘Vamos denunciaragora ou de manhã?’. ‘Vamos demanhã. Quero dormir.’ De manhã

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vieram nos prender….É engraçado. Mas não dá

vontade de rir. É de chorar. Dechorar.

Depois da guerra… Todosestavam esperando os parentesvoltarem da guerra, eu e minhamãe esperávamos os nossos devolta do campo de prisioneiros. DaSibéria… Como não? Vencemos,provamos nossa lealdade, nossoamor. Agora vão acreditar em nós.

Meu irmão voltou em 1947,meu pai nós não encontramos…Há pouco tempo fui visitar minhasamigas do front na Ucrânia…Moram em uma vila grande perto

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de Odessa. No meio da vila temdois obeliscos: metade da vilamorreu de fome, e todos oshomens faleceram na guerra. Mascomo vão calcular isso na Rússia?Ainda tem gente viva, vá epergunte. Para nossa história,minha menina, precisamos de maiscentenas iguais a você. Paradescrever nosso sofrimento. Nossaslágrimas incontáveis. Minhamenina querida…”

NatáliaAleksándrovnaKupriánovna,

enfermeira cirúrgica

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* Milícia alemã criada em outubro de1944 para conter o avanço do ExércitoVermelho. Recrutava homens entredezesseis e sessenta anos.** Mikhail Tukhatchévski (1893-1937)e Iona Iakir (1896-1937), militaressoviéticos presos e executados duranteos expurgos de Stálin, acusados deconspiração.

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“De repente me deu umavontade enorme deviver…”

O telefone toca sem parar.Anoto novos endereços, recebonovas cartas. E fica impossível,porque a cada vez é uma verdadeinsuportável.

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TAMARA STIEPÁNOVNAUMNIÁGUINA, TERCEIRO-SARGENTO DA GUARDA,ENFERMEIRA-INSTRUTORA

“Ah, meu bem…Passei a noite toda recordando,

puxando pela memória…Fui correndo para o centro de

alistamento: usava uma sainha detear e calçava uns chinelinhosemborrachados, pareciam unssapatinhos com fivela, era o últimogrito da moda na época. Pois fui lácom essa sainha, esses chinelinhos,pedi para ir para o front, me

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mandaram. Subi num carro.Chegamos à unidade, era umadivisão de caçadores, estava pertode Minsk, e me disseram: ‘Queserventia você tem aqui?’;disseram: ‘Os homens vão tervergonha se umas meninas dedezessete anos começarem acombater’. E era nesse espírito:logo íamos derrotar o inimigo,volte para a mamãe, menina. Eu,claro, fiquei frustrada por não meaceitarem na guerra. O que iafazer? Fui falar com o chefe doestado-maior, com ele estava ocoronel que tinha me recusado, eeu disse: ‘Camarada chefe mais

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superior ainda, permita nãoobedecer ao camarada coronel. Dequalquer jeito não vou voltar paracasa, vou recuar com vocês. Paraonde quer que eu vá agora, vaihaver alemães por perto’. Depoisdisso, todos me chamavam assim:‘Camarada chefe mais superiorainda’. Isso foi no sétimo dia deguerra. Começamos a recuar…

Logo começou o banho desangue. Tinha muitos feridos, maseles eram tão quietos, tãopacientes, queriam tanto viver.Todo mundo queria chegar vivo noDia da Vitória. Estavam esperando:já, já… Lembro que toda a roupa

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ficava impregnada de sangue —até, até, até… Meus chinelinhosrasgaram, eu já andava descalça. Oque vi? Estavam bombardeandouma estação de trem perto deMoguilióv. Lá, tinha um tremcheio de crianças. Começaram ajogar as crianças pelas janelas dosvagões, eram crianças pequenas:três, quatro aninhos. Tinha umafloresta ali perto, e elas iamcorrendo para a floresta. Aí vieramuns tanques alemães, e os tanquesforam passando por cima dascrianças. Não sobrou nada dascrianças… A gente enlouquececom uma cena dessas hoje em dia.

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Mas na guerra as pessoasaguentavam, só enlouqueceramdepois. Adoeceram depois daguerra. Na guerra, as úlceras deestômago cicatrizavam. Vocêdormia na neve, com umcapotezinho fino, e de manhã nãotinha nem um resfriado.

Depois nossa unidade foicercada. Eu tinha vários feridos, enenhum carro queria parar. Osalemães já estavam no nossocalcanhar, já, já iam fechar o cerco.Então um tenente ferido me deu orevólver dele: ‘Você sabe atirar?’.Como é que eu ia saber atirar? Eusó via os outros atirando. Mas

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peguei o revólver e fui com elepara a estrada, parar os carros. Foilá que falei palavrão pela primeiravez. Feito um homem. Uns bonspalavrões bem pesados… Todos oscarros passavam reto… Daprimeira vez atirei para o alto…Sabia que não podia levar osferidos nos braços. Não íamosconseguir carregar. Eles pediam:‘Pessoal, matem-nos de uma vez.Não nos deixem aqui assim’. Dei osegundo tiro. Pegou numacarroceria… ‘Idiota! Aprende aatirar antes.’ Mas frearam. Meajudaram a subir os feridos para ocarro.

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Só que o mais terrível aindaestava por vir, o mais terrível foiStalingrado. Que campo de guerraera aquele? Era uma cidade: ruas,casas, porões. Tente carregar umferido para fora! Meu corpo eraum grande hematoma. Até minhascalças estavam todasensanguentadas. Completamente.O subtenente dava bronca nagente: ‘Meninas, não tem maiscalças, não peçam’. Quando asnossas ficavam secas, endureciam,nem engomada uma calça fica tãodura quanto cheia de sangue, davapara se cortar. Não tinha umamanchinha limpa, na primavera

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não dava nem para devolver ouniforme. Tudo queimava, noVolga, por exemplo, até a águaqueimava. Nem no inverno o riocongelava, ele pegava fogo. Tudoqueimava… Em Stalingrado nãotinha um só grama de terra quenão estivesse encharcado desangue humano. Russo e alemão. Ede gasolina… De óleolubrificante… Ali, todosentendemos que já não tinha paraonde recuar, não podíamos recuar:ou morríamos todos — o país, opovo russo — ou vencíamos. Issoficou claro para todos, teve essemomento. Não falávamos em voz

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alta, mas todos entendiam. Tanto ogeneral quanto o soldadoentendiam…

Chegaram reforços. Eram tãojovens, uns rapazes bonitos. Antesdo combate você olhava para eles ejá sabia que seriam mortos. Eutinha medo de gente nova. Tinhamedo de lembrar deles, deconversar com eles. Porquechegavam e dali a pouco já nãoestavam entre nós. Dois, trêsdias… Eu ficava olhando, olhandopara eles antes do combate… Issofoi em 1942: o ano mais pesado, omomento mais difícil… Teve umcaso em que, de trezentas pessoas,

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no fim do dia só sobraram dez. Equando vimos que só nós tínhamossobrado, quando tudo se acalmou,começamos a nos beijar e chorarporque de repente estávamos vivos.Éramos todos uma família.Viramos parentes.

Uma pessoa está morrendodiante dos seus olhos… E vocêsabe, vê que não pode ajudar emnada, que ela só tem algunsminutos. Você beija, faz carinho,diz palavras afetuosas. Se despededela. Bom, não podia ajudar commais nada… Guardo aqueles rostosaté agora na minha memória. Vejotodos, todos os rapazes. Por algum

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motivo achei que ia esquecer dealgum, nem que fosse de um rosto.Pois não esqueci de ninguém,lembro de todos… Vejo todos…Queríamos fazer túmulos para elescom nossas próprias mãos, mastambém nem sempreconseguíamos. Íamos embora, eeles ficavam. Acontecia de enfaixartoda a cabeça, e o ferido morriadebaixo dos curativos. E eraenterrado com a cabeça enfaixada.Outro, se morria no campo debatalha, ao menos olhava para océu. Ou morria e pedia: ‘Feche osmeus olhos, irmãzinha, mas comcuidado’. A cidade destruída, as

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casas, isso é terrível, claro, masquando as pessoas caíam, homensjovens… Você não conseguiarespirar, saía correndo… Sesalvava… Parecia que já não tinhaforças para mais do que cincominutos, que elas tinham seesgotado… Mas você corria…Março, a primeira água debaixodos pés… Não podia usar botas defeltro, mas eu enfiei e saí. Mearrastei com elas o dia inteiro, ànoite estavam tão molhadas quenão consegui tirar. Tive que cortar.E não fiquei doente… Acredita,meu bem?

Quando acabaram os combates

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de Stalingrado, recebemos a missãode levar os doentes em estado maisgrave em navios a vapor e barcaçasaté Kazan e Górki. Já eraprimavera, ali entre março e abril.Mas ainda achávamos um montede feridos, estavam debaixo daterra: em trincheiras, abrigos deterra, porões… Eram tantos que eunão consigo expressar. Foi umhorror! Quando tirávamos umferido do campo de batalha,sempre achávamos que já nãotinha sobrado nenhum, quetínhamos mandado todos embora,que já não havia mais nenhum emStalingrado, mas quando tudo se

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acabou sobraram tantos que nãodava para acreditar… Não davapara imaginar… No vapor em queeu estava viajando reuniram quemtinha perdido braços, pernas ecentenas de pacientes detuberculose. Devíamos tratar deles,falar baixo, tranquilizar com umsorriso. Quando nos mandaram,prometeram que seria um descansodos combates, diziam que eraquase um ato de gratidão, umincentivo. Mas acabou que foiainda mais terrível que o infernode Stalingrado. Lá no campo debatalha você carregava uma pessoa,prestava socorro e entregava com

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uma certeza: agora está tudo bem,ele já foi levado. Você ia e searrastava até o próximo. Mas alieles estavam o tempo todo diantedos seus olhos… No combate, elesqueriam viver, ansiavam por viver:‘Mais rápido, irmãzinha! Maisrápido, querida!’. Já ali eles serecusavam a comer, queriammorrer. Se jogavam do barco. Nósos vigiávamos. Protegíamos. Euficava até de noite ao lado de umcapitão: ele não tinha os doisbraços e queria se matar. E umavez não avisei outra irmãzinha, saípor alguns minutos e ele sejogou….

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Nós os levamos até Ussólie, ficaperto de Perm. Lá já tinha umascasinhas novas, limpinhas, tudoespecialmente para eles. Como umacampamento de pioneiros… Nósos carregávamos nas macas, elesvomitavam com dentes de terra.Eu achava que aceitaria qualquerum como marido. Que o levarianos braços. Voltávamos no barco avapor vazio, podíamos descansar,mas não dormíamos. As meninasficavam deitadas, depoiscomeçavam a uivar. Todos os diassentávamos e escrevíamos cartaspara eles. Distribuíamos quem iaescrever para quem. Três, quatro

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cartas por dia.E um detalhe. Depois dessa

viagem comecei a esconder minhaspernas e meu rosto durante oscombates. Eu tinha pernas bonitas,me dava tanto medo de queficassem desfiguradas. Tambémtinha medo por meu rosto. Vejaesse pormenor…

Depois da guerra passei algunsanos sem conseguir me livrar docheiro de sangue, ele passou muitotempo me perseguindo. Começavaa lavar a roupa e sentia esse cheiro,ia cozinhar o almoço e sentia essecheiro de novo. Alguém me deuuma blusinha vermelha de

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presente, e na época isso era umararidade, faltava tecido, mas nãovesti porque era vermelha. Eu jánão era mais capaz de assimilaressa cor. Não conseguia ir aomercado. Na seção de carnes.Especialmente no verão… E vercarne de frango, você entende, émuito parecida… Tão brancaquanto a carne humana… Meumarido é que ia… No verão eu nãoconseguia ficar na cidade de jeitonenhum, tentava sair para algumlugar. Assim que vinha o verão, euachava que uma guerra ia começar.Quando o sol aquecia tudo —árvores, casas, asfalto —, tudo

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tinha aquele cheiro, para mim tudocheirava a sangue. Não importa oque eu comesse ou bebesse, nãoconseguia me livrar daquelecheiro! Até lençóis limpos, paramim, cheiravam a sangue…

… Nos dias de maio de 1945…Lembro que nos fotografávamosmuito. Estávamos muito felizes…No dia 9 de maio, todos gritavam:‘Vitória! Vitória!’. Os soldadosrolavam na grama: Vitória!Sapateávamos. Ai, sim, ai, ai.

Atiravam… Quem tinha como,atirava…

‘Parem de atirar agora!’,ordenava o comandante.

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‘Mas sobraram uns cartuchosmesmo. Para que vão servir?’, nósnão entendíamos.

Não importa o que dissessem,eu só escutava uma palavra:Vitória! E de repente me deu umavontade enorme de viver! Quevida bonita começaria ali! Pustodas as minhas condecorações epedi que tirassem minha foto. Poralgum motivo queria que fosseentre flores. Me fotografaram emalgum canteiro.

No dia 7 de junho, tive umaalegria, que foi meu casamento. Aunidade preparou uma grandefesta para nós. Eu e meu marido

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nos conhecíamos fazia tempo: eleera capitão, comandava acompanhia. Eu e ele juramos que,se saíssemos vivos, nos casaríamosdepois da guerra. Nos deram ummês de férias…

Fomos para Kínechma, nodistrito de Ivánov, ver os pais dele.Eu estava indo como uma heroína,nunca tinha pensado que podiamreceber uma garota do frontdaquele jeito. Já tínhamos passadopor tanto, salvado os filhos paraaquelas mães, os maridos paraaquelas mulheres. E de repente…Conheci o que são ofensas,escutava injúrias. Até então era só:

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‘irmãzinha do coração’, ‘irmãzinhaquerida’, não escutava nada alémdisso. E eu não era qualquer uma,era bonitinha. Tinha ganhado umafarda nova.

À noite nos sentamos paratomar chá, a mãe levou o filho paraa cozinha e chorou: ‘Com quemvocê casou? Uma do front… Vocêtem duas irmãs mais novas. Quemvai casar com elas?’. Mesmo agora,quando me lembro disso, dávontade de chorar. Imagine: eutinha levado um disquinho queadorava. Nele, tinha a seguinteletra: ‘e você tem o direito de usaros sapatos na última moda’…

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Falava de uma garota do front. Eupus o disco, veio a irmã mais velhae o quebrou na minha frente;disse: ‘vocês não têm direitonenhum’. Eles destruíram todas asminhas fotos do front… Ah, meubem, não há palavras para isso. Eunão tenho palavras…

Na época nos davam comidasegundo a letra, tínhamos unscartõezinhos. Eu e meu maridojuntamos os nossos e fomos nosabastecer. Chegamos, era umarmazém especial para isso, játinha fila, ficamos lá esperando.Quando chegou minha vez, derepente o homem que estava atrás

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do balcão deu um pulo por cimadele e veio para mim, me beijava,abraçava e gritava: ‘Rapazes!Rapazes! Achei! Encontrei! Queriatanto me encontrar com ela, queriatanto achá-la. Rapazes, foi ela queme salvou!’. E meu marido ali dolado. Mas esse ferido era um dosque eu tinha tirado do fogo. Dedebaixo do tiroteio. Ele selembrava de mim, e eu? Como ialembrar de todos? Eram muitos.Outra vez um inválido meencontrou numa estação de trem:‘Irmã!’, me reconheceu. E dissechorando: ‘Achava que quando teencontrasse ficaria de joelhos…’.

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Mas ele não tinha uma perna…Nós, as garotas do front, já

tínhamos aguentado o suficiente. Edepois da guerra ainda levamos,depois da guerra ainda tivemosmais uma guerra. Terrível também.Os homens de alguma forma noslargaram. Não nos protegeram. Nofront era diferente. Você estava searrastando, voava um estilhaço ouuma bala… Os rapazes cuidavamde nós: ‘Deite, irmãzinha!’.Alguém gritava, e ele mesmo caíaem cima de você, te cobria. E abala o… Ele morria ou ficavaferido. Me salvaram assim trêsvezes.

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De Kínechma voltamos de novopara a unidade. Chegamos eficamos sabendo que nossaunidade não tinha sido desfeita,íamos desativar minas nos campos.Precisávamos liberar terras para oscolcozes. A guerra tinha terminadopara todos, mas para os sapadorescontinuava. E as mães já sabiam daVitória… A grama estava bem alta,e em volta havia minas, bombas.Mas as pessoas precisavam daterra, e nos apressávamos. Tododia nossos camaradas morriam.Todo dia depois da guerra erapreciso enterrar… Deixamos tantagente lá, nos campos… Tanta

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gente… Já tínhamos liberado aterra para o colcoz, passava umtrator, tinha uma mina escondidaem algum lugar, podia ser umamina antitanque: o trator explodia,e o tratorista também. Não haviatantos tratores assim. E não haviasobrado tantos homens. Veraquelas lágrimas na vila já depoisda guerra… As mulheresberravam… As criançasberravam… Lembro que tínhamosum soldado… Foi perto de StáraiaRussa, me esqueci qual vila, elemesmo era de lá, foi no seu colcozdesativar as minas, no seu campo,e morreu. A vila fez o enterro. Ele

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tinha lutado durante toda a guerra,os quatro anos, e depois da guerramorreu no lugar de origem, na suaterra natal.

Assim que começo a contar vouficando doente. Conto, mas pordentro pareço uma geleia, tudotreme. Vejo tudo mais uma vez,imagino: os mortos deitados ali,com a boca aberta, alguém queestava gritando e não terminou ogrito, as vísceras reviradas. Vimenos madeira do que mortos…Como é terrível! Como é terrível ocombate corpo a corpo, em que osoldado vai com uma baioneta…Com a baioneta nua. Você começa

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a gaguejar, passa alguns dias semconseguir falar direito. Perde afala. Será que alguém que nãoesteve lá consegue entender? Ecomo contar? Com que rosto?Bom, me responda você: com querosto isso deve ser recordado?Outros conseguem, de algumjeito… São capazes. Mas eu, não.Eu choro. Porém é necessário paraque isso fique. Precisamostransmitir. Em algum lugar domundo nosso grito deve serguardado. Nosso berro…

Eu sempre espero por nossafesta do Dia da Vitória… Esperopor ela e tenho medo dela. Passo

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algumas semanas juntando roupaespecialmente para isso, para termuita roupa suja no dia, e depoispasso o dia inteiro lavando. Precisoficar ocupada com alguma coisa,me distrair com algo o dia inteiro.Quando nos encontramos, não temlenço que chegue: são assim nossosencontros do front. Um mar delágrimas… Eu não gosto debrinquedos de guerra, essesbrinquedos de guerra paracrianças. Tanques,metralhadoras… Quem inventouisso? Me revira a alma. Nuncacomprei nem dei brinquedos deguerra para as crianças. Nem para

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as minhas, nem para as dos outros.Uma vez, alguém trouxe paraminha casa um aviãozinho militare uma metralhadora de plástico.Joguei no lixo ali mesmo. Na hora!Porque a vida humana é umdom… Um grande dom! O próprioser humano não é senhor dessedom.

Sabe o que pensávamos naguerra? Sonhávamos: ‘Bom,rapazes, se sairmos vivos… Comoserão felizes as pessoas depois daguerra! Como será feliz, como serábonita a vida. Essas pessoas quetanto sofreram vão ter pena umasdas outras. Vão amar. Serão outras

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pessoas’. Não tínhamos dúvida.Nem um tiquinho.

Meu bem… As pessoas seodeiam tanto quanto antes. Matamde novo. Isso para mim é o maisincompreensível… E quem são?Nós… Somos nós…

Em Stalingrado… Estavaarrastando dois feridos. Levavaum, deixava, depois o outro. Eassim puxava um de cada vez,porque eram feridos muito graves,não podia largá-los, e os dois,como simplificar isso, estavam comas pernas destruídas desde o alto,estavam se esvaindo em sangue.Ali cada minuto era valioso, cada

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minuto. E de repente, quando meafastei mais do combate, haviamenos fumaça, de repente descobrique estava arrastando um dosnossos tanquistas e um alemão…Fiquei horrorizada: os nossosestavam morrendo ali, e eusalvando um alemão. Entrei empânico. Lá, na fumaça, nãodiferenciei… Vi que o homemestava morrendo, gritava… Aaa…Os dois estavam queimados,pretos. Iguais. E ali eu vi bem: ummedalhão estrangeiro, relógioestrangeiro, tudo estrangeiro.Aquela maldita farda. Mas eagora? Fui puxando o nosso e

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pensando: ‘Volto para pegar oalemão ou não?’. Eu entendia que,se o deixasse, ele morreria logo.Pela perda de sangue… E eu mearrastei até ele. Continueiarrastando os dois…

Isso foi em Stalingrado… Oscombates mais terríveis. Maisterríveis de todos. Meu bem… Nãopode existir um coração para odiare outro para amar. O ser humanosó tem um, e eu sempre pensavaem como salvar meu coração.

Depois da guerra, passei muitotempo com medo do céu, até delevantar a cabeça para o céu. Tinhamedo de ver terra arada. E as

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gralhas já estavam passando por elatranquilamente. Os pássaros logose esqueceram da guerra…”

1978-2004

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ZUMA PRESS/FOTOARENA

SVETLANA ALEKSIÉVITCHnasceu na Ucrânia em1948. Jornalista e escritora,refinou ao longo de suaobra uma escrita única,produzida a partir dapesquisa na realidade e

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ostentando as melhoresqualidades narrativas datradição da literatura emlíngua russa. Recebeu em2015 o Nobel de literatura.Dela, a Companhia dasLetras já publicou Vozes deTchernóbil.

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Copyright © 2013 by Svetlana Aleksiévitch

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográficoda Língua Portuguesa de 1990, que entrou emvigor no Brasil em 2009.

Título originalУ войны не женское лицо

CapaDaniel Trench

Imagem de capaSovfoto

PreparaçãoPaula Colonelli

RevisãoClara DiamentAna Maria Barbosa

ISBN 978-85-438-1512-1

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Todos os direitos desta edição reservados àEDITORA SCHWARCZ S.A.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 3204532-002 — São Paulo — SPTelefone: (11) 3707-3500Fax: (11) 3707-3501www.companhiadasletras.com.brwww.blogdacompanhia.com.brfacebook.com/companhiadasletrasinstagram.com/companhiadasletrastwitter.com/cialetras

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Vozes de TchernóbilAleksiévitch, Svetlana9788543805726384 páginas

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Para marcar os trinta anos dodesastre de Tchernóbil, chegaao Brasil o relato maisimpressionante do pioracidente nuclear da história. Em abril de 1986, uma

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explosão na usina nuclear deTchernóbil, na Ucrânia — entãoparte da finada União Soviética—, provocou uma catástrofesem precedentes: umaquantidade imensa departículas radioativas foilançada na atmosfera e acidade de Pripyat teve que serimediatamente evacuada. Tão grave quanto o acidente foia postura dos governantessoviéticos, que expunhamtrabalhadores, cientistas esoldados à morte durante osreparos na usina. Pessoascomuns, que mantinham a fé

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no grande império comunista,pereciam após poucos dias deserviço. Por meio das vozes dosenvolvidos na tragédia,Svetlana Aleksiévitch constróieste livro arrebatador, que tema força das melhoresreportagens jornalísticas e apotência dos maiores romancesliterários. Uma obra-prima donosso tempo.

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Era dos extremosHobsbawm, Eric9788543801124632 páginas

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Eric Hobsbawm, um dosmaiores historiadores daatualidade, dá seu testemunhosobre o século XX: "Meu tempode vida coincide com a maiorparte da época de que trata

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este livro", diz ele na abertura,"por isso até agora me abstivede falar sobre ele". Neste livrofascinante, porém, eleabandona seu silênciovoluntário para contar, emlinguagem simples eenvolvente, a história da "eradas ilusões perdidas".

"Um clássico erudito queescreve da mesma maneiraagradável sobre máfia, jazz,rebeldes africanos, política oueconomia. " - William Waack,

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Veja

"Era dos extremos, de EricHobsbawm, é sua obra-prima.Mais original, mais pessoal e,inevitavelmente, mais político." - Perry Anderson, TheGuardian

"Hobsbawm vê o séculomarcado por duas grandeseras, a da catástrofe (de 1914a 1948) e a de ouro (de 1949 a

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1973). Nele mataram-se maisseres humanos do que emqualquer outra época e nele sechegou a níveis de bem-estar ea transformações jamais vistasna experiência humana.Hobsbawm conta isso comelegante erudição. Tem amágica de Fred Astaire. " - ElioGaspari, O Estado de S. Paulo

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Diário de OaxacaSacks, Oliver9788580869026128 páginas

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Conhecido por seus relatosclínicos que desvendamgrandes mistérios do cérebrohumano, Oliver Sacks revelauma nova faceta em seu diáriode viagem para o estado de

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Oaxaca, no México. Durantedez dias, acompanhou umgrupo de botânicos e cientistasamadores interessados emconhecer o hábitat dassamambaias mais raras domundo. Entre descriçõesminuciosas da morfologia dasplantas e uma ou outradigressão acerca de pássaros etipos de solo, o texto concentratoda a sua força em desvendarum grande mistério da mentehumana: a curiosidadecientífica. Ao observar de pertoo comportamento de seuscolegas de excursão, Oliver

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Sacks revela que a ciência,longe de ser uma seara decálculos e experimentos, nascedo interesse genuíno eapaixonado de amadores, cujaerudição nem sempre supera avontade de aprender edescobrir fatos novos. Ospersonagens que compõem aexpedição são sui generis. Ogrupo é composto de tiposhumanos diversos: homens emulheres, americanos eingleses, cientistas e curiososcirculam com desenvoltura porselvas e grutas, masprotagonizam cenas de

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verdadeira comédia ao tentar,sem sucesso, se imiscuir nocotidiano das cidadesmexicanas por onde passam. Éo caso da visita coletiva feita aum alambique onde seprocessa o mescal, bebidaalcoólica extraída do agave,uma planta nativa que tambémdá origem à tequila. Levementealterados pela degustação aque se submetem no maior"interesse científico", osexpedicionários terminamsentados em uma pequenaplanície das redondezas,uivando para a lua e se

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"perguntando como será que oslobos e os outros animais sesentiram quando a lua, a sualua, lhes foi roubada".Composto de uma gamavariada de assuntos, Diário deOaxaca versa ainda sobre aintimidade de Oliver Sacks, cujomal-estar em relação aosmeios oficiais eultracompetitivos da ciênciacontemporânea fica evidentenas diversas passagens em queo autor externaliza suaadmiração pelos amadores -classe de cientistas à qual,aliás, o livro é dedicado.

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O enforcado de Saint-PholienSimenon, Georges9788580869934136 páginas

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Maigret inadvertidamentecausa o suicídio de um homem,mas seu remorso motiva adescoberta dos sórdidoseventos que levaram o homem

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desesperado a se matar. O queprimeiro vem à mente quandose fala em Georges Simenonsão os números: ele escreveumais de quatrocentos livros,que venderam mais de 500milhões de exemplares e foramtraduzidos para cinquentaidiomas. Para o cinema forammais de sessenta adaptações.Para a televisão, mais de 280.Simenon foi um dos maioresescritores do século XX. Entreseus admiradores, figuravamartistas do calibre de AndréGide, Charles Chaplin, HenryMiller e Federico Fellini. Em

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meio a suas histórias policiais,figuram 41 "romances duros"de alta densidade psicológica esituados entre as obras demaior consistência da literaturaeuropeia. Em O enforcado deSaint-Pholien, Maigret está emviagem para Bruxelas. Poracidente, o comissário precipitao suicídio de um homem, masseu remorso é ofuscado peladescoberta dos sórdidoseventos que levaram o homemà decisão extrema de se matar.

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Seara VermelhaAmado, Jorge9788563397508368 páginas

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Escrito em 1946, quando JorgeAmado era deputado federalpelo Partido Comunista, Searavermelha narra a luta dossertanejos do Nordeste contraa fome e pela dignidade

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humana. Na primeira parte oromance descreve a penosaretirada rumo ao sul de umafamília de lavradores pobres,expulsos da roça pelo novolatifundiário da região. Nacaminhada pela inóspitacaatinga, comandados pelopatriarca Jerônimo, vários vãoficando pelo caminho: unsmorrem de fome, outros dedoença; a irmã de Jerônimojunta-se aos seguidores de umprofeta do apocalipse, o jovemAgostinho e sua prima ficamnuma fazenda para trabalhar ecasar, outra se prostitui. Poucos

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concluem a longa jornada atéas terras míticas de São Paulo.Na segunda metade do livro,conta-se a história dos trêsfilhos de Jerônimo que saíramde casa antes mesmo dogrande êxodo: Jão vira soldadode polícia, José se torna otemido cangaceiro ZéTrevoada, e Juvêncio engaja-sena luta revolucionária. A açãose desloca do sertão nordestinoaos confins da selvaamazônica, do Mato Grosso aoRio de Janeiro e São Paulo.Acontecimentos cruciais dahistória do país, como a

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Revolução Constitucionalista de32 e sobretudo o LevanteComunista de 35, sem falar docangaço e das revoltasmísticas, são retratados demodo vivo e pulsante nesteromance de amplo fôlego, queé também uma narrativa deextrema e dolorosa atualidade.Este e-book não contém asimagens presentes na ediçãoimpressa.

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