a guerra do chaco: as tensÕes geopolÍticas na disputa de …

37
A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE PODER REGIONAL NA AMÉRICA DO SUL (1932-1938) MARCIO SOUSA DE PINHO 1 1 INTRODUÇÃO A América do Sul já completara o centenário da independência de suas nações integrantes, os Estados Unidos empreenderam a política externa para deter intervenções europeias no continente americano, o mundo passara pelas mazelas da 1ª Guerra Mundial e os países ocidentais encontravam-se afetados pela crise econômica, motivada pela quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque. Portanto, este era o panorama em que a América do Sul presenciaria a iminência de um novo conflito: A Guerra do Chaco. Torna-se relevante observar e avaliar os aspectos que viabilizaram a guerra entre os dois países, Bolívia e Paraguai, além de verificar a influência de países da América do Sul. Compreender o processo de definição de fronteiras territoriais das nações sul-americanas é imprescindível para avaliar prováveis contendas existentes entre as nações. Helder Gordim da Silveira (2009:650) afirma que o Chaco Boreal é uma das regiões do grande “território do Chaco, no centro da América do Sul, com cerca de 170.000 Km 2 , limitado a leste pelo rio Paraguai, a oeste pelo Pilcomayo e, ao norte, pelas encostas da serra de Santa Cruz, no centro da América do Sul”. A guerra do Chaco foi um conflito travado entre Bolívia e Paraguai durante os anos de 1932 e 1935 motivado pela frágil definição das fronteiras herdada pelo colonialismo espanhol. (ELTZ, 2015:23). Segundo o relatório organizado pelo General Waldomiro Castilho de Lima (BRASIL, 1934:3), os direitos baseados no princípio de ‘uti-possidetis 2 ’ sobre o Chaco Boreal deixou ao Paraguai e à Bolívia a semente da discórdia e das lutas. Para Silveira: A primeira disputa diplomática relevante em torno do território do Chaco data de 1853. O tratado de fronteira [...] entre a Argentina e o Paraguai, reconhecia como pertencente ao território deste país o rio de mesmo nome... a Bolívia 1 Aluno do Curso de Pós-Graduação (Mestrado) da Universidade Salgado Oliveira (UNIVERSO), em Niterói RJ. Contato: [email protected] 2 Princípio de direito internacional segundo o qual os que de fato ocupam um território possuem direito sobre o mesmo.

Upload: others

Post on 04-Nov-2021

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE

PODER REGIONAL NA AMÉRICA DO SUL (1932-1938)

MARCIO SOUSA DE PINHO1

1 INTRODUÇÃO

A América do Sul já completara o centenário da independência de suas nações

integrantes, os Estados Unidos empreenderam a política externa para deter intervenções

europeias no continente americano, o mundo passara pelas mazelas da 1ª Guerra Mundial e os

países ocidentais encontravam-se afetados pela crise econômica, motivada pela quebra da Bolsa

de Valores de Nova Iorque. Portanto, este era o panorama em que a América do Sul presenciaria

a iminência de um novo conflito: A Guerra do Chaco.

Torna-se relevante observar e avaliar os aspectos que viabilizaram a guerra entre os dois

países, Bolívia e Paraguai, além de verificar a influência de países da América do Sul.

Compreender o processo de definição de fronteiras territoriais das nações sul-americanas é

imprescindível para avaliar prováveis contendas existentes entre as nações.

Helder Gordim da Silveira (2009:650) afirma que o Chaco Boreal é uma das regiões do

grande “território do Chaco, no centro da América do Sul, com cerca de 170.000 Km2, limitado

a leste pelo rio Paraguai, a oeste pelo Pilcomayo e, ao norte, pelas encostas da serra de Santa

Cruz, no centro da América do Sul”.

A guerra do Chaco foi um conflito travado entre Bolívia e Paraguai durante os anos de

1932 e 1935 motivado pela frágil definição das fronteiras herdada pelo colonialismo espanhol.

(ELTZ, 2015:23). Segundo o relatório organizado pelo General Waldomiro Castilho de Lima

(BRASIL, 1934:3), os direitos baseados no princípio de ‘uti-possidetis2’ sobre o Chaco Boreal

deixou ao Paraguai e à Bolívia a semente da discórdia e das lutas. Para Silveira:

A primeira disputa diplomática relevante em torno do território do Chaco data

de 1853. O tratado de fronteira [...] entre a Argentina e o Paraguai, reconhecia

como pertencente ao território deste país o rio de mesmo nome... a Bolívia

1 Aluno do Curso de Pós-Graduação (Mestrado) da Universidade Salgado Oliveira (UNIVERSO), em Niterói –

RJ. Contato: [email protected] 2 Princípio de direito internacional segundo o qual os que de fato ocupam um território possuem direito sobre o

mesmo.

Page 2: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

protestou [...] contra os termos do tratado, alegando direitos à área ao longo

do rio Paraguai, entre os paralelos 20, 21 e 22” (SILVEIRA, 2009:651).

O estudo da Guerra do Chaco é pouco explorado por pesquisadores acadêmicos. No

Brasil, o Prof. Dr. Fernando da Silva Rodrigues é um dos principais pesquisadores sobre a

temática. A realização de uma pesquisa, nesta direção, contribui para o preenchimento de

lacunas existentes, corroborando para a continuidade do trabalho que tem sido desenvolvido

pelo referido professor e pesquisador. Os documentos tratados neste estudo apresenta, pelo seu

ineditismo, contribuição para a renovação da produção historiográfica do período republicano

brasileiro e sul-americano.

De acordo com a concepção das dimensões do Campo Histórico, defendida por José

D’Assunção Barros, este artigo enquadra-se na dimensão da História Política, enfatizando o

estudo do poder dos Estados (BARROS, 2005:96). A intenção é de se trabalhar o contexto desta

dimensão voltada para a História Militar, com o cerne na guerra.

Sobre política, na obra Dicionário de Política, Norberto Bobbio afirma que nenhum

termo da linguagem política é ideologicamente neutro e cada um deles pode ser usado como

base na orientação política do usuário (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1998:7).

O conceito de guerra é entendido como contato violento mediante a força armada

(BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1998:571).

Se considerarmos por enquanto o puro conceito de guerra, teremos que dizer

que o propósito político da guerra não possui qualquer ligação com a guerra

propriamente dita, pois se a guerra é um ato de violência destinado a obrigar

o inimigo a fazer a nossa vontade, o seu propósito teria que ser sempre e

somente derrotar o inimigo e desarmá-lo. Este propósito é extraído do conceito

teórico de guerra, mas como muitas guerras chegaram realmente muito perto

de atingi-lo, examinemos antes de mais nada este tipo de guerra

(CLAUSEWITZ, 1979:94).

A História Política engloba a valorização da guerra em seu contexto, além de estudos

sobre o Estado, a formação territorial, o controle das fronteiras, e as relações diplomáticas

(RODRIGUES; SILVA, 2019:14).

A História Militar armazena a memória das instituições militares, como observou

Samuel Huntington, em O Soldado e o Estado, acerca da ética conservadora que enfatiza a

imutabilidade, a irracionalidade, a fraqueza e a maldade da natureza humana que proclama a

Page 3: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

supremacia da sociedade sobre o indivíduo e a importância da ordem, da hierarquia e da divisão

de funções (HUNTINGTON, 1996:96).

Na visão de Fernando Velôzo Gomes Pedrosa, militar pesquisador, em A História

Militar Tradicional e a “Nova História Militar”, depois da Segunda Guerra Mundial, o

conceito de História Militar foi ampliado, passando de uma história das guerras para a história

das instituições militares e sua relação com a sociedade. Refere-se às atividades militares, ou

seja, às guerras, campanhas e batalhas (PEDROSA, 2011:2-4). John Keegan observa que “não

é pelo que os exércitos são, mas pelo que os exércitos fazem que as vidas das nações e dos

indivíduos se modificam” (KEEGAN, 2000:31).

O estudo da História Militar, do ponto de vista militar, é importante para o aprendizado

dos conceitos militares teóricos nos níveis estratégico, operacional e tático. Clausewitz

(1979:191) diz que os “exemplos históricos esclarecem tudo; possuem, além disso, um poder

demonstrativo de primeira categoria. Isto verifica-se na arte da guerra mais do que em qualquer

outro campo”.

Pedrosa afirma que a pouca atenção do meio acadêmico brasileiro aos temas ligados à

atividade bélica é evidente para os próprios historiadores mais ligados à História Militar no país

(PEDROSA, 2011:12).

A Nova História Militar corresponde a uma corrente historiográfica surgida após a

Segunda Guerra Mundial, nos Estados Unidos da América (EUA). Cabe salientar que o mundo

vivenciava o confronto ideológico da guerra fria e que os EUA, em especial, sofrera óbices por

conta da guerra do Vietnã. No Brasil, a Nova História Militar teve início na década de 1990,

após o fim da guerra fria e dos governos militares (PEDROSA, 2011:11).

Enquanto os historiadores militares possuem a ação bélica como tema central, a “Nova

História” pretende ser uma “História Total”, rejeitando a divisão em histórias parciais. Todavia,

a História Militar tradicional e a Nova História Militar são complementares (PEDROSA,

2011:14).

A História Militar tradicional tem sido o campo de “militares historiadores”.

Em geral, tem pouca acuidade metodológica, pois não resulta do trabalho de

historiadores profissionais, mas de aficionados. Tende, portanto, à

grandiloquência e à adjetivação excessiva. É basicamente uma história

descritiva e busca o ideal de apresentar “os fatos como aconteceram”. Em

função dessas características, ficou conhecida depreciativamente nos Estados

Page 4: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

Unidos como “História-Batalha” ou História de “tambores e clarins”

(PEDROSA, 2011:8).

Para a compreensão do interesse político do Brasil na Guerra do Chaco, torna-se

imprescindível analisar o pensamento de Mário Travassos, modelado durante sua carreira

militar e registrado em suas obras. Em Projeção Continental do Brasil, de 1935, trata a política

interna do Brasil interligada à política continental. Rodrigues e Silva (2019, p. 8) ressaltam que

“o pensamento geopolítico de Travassos influenciou diretamente na geração de militares do pós

segunda guerra mundial, aqueles que produziram e renovaram conhecimento teórico sobre

geopolítica no Brasil”.

A teoria do heartland, desenvolvida pelo geógrafo inglês Mackinder (1904),

corresponde à tese defendida por ele que o coração da terra estava situado na zona territorial

que abrange os continentes europeu e asiático. Aplicando a teoria de Mackinder, no contexto

sul-americano, Mário Travassos utilizou o conceito de heartland para a necessidade vital

brasileira de domínio dos altiplanos bolivianos, sistematizando os interesses de poder do Estado

Brasileiro, nos anos 1930 e 1940, e as relações do Brasil com a Argentina.

A respeito da Bolívia, como centro geográfico da América do Sul, Travassos avalia a

importância estratégica do país ao dizer que o “chamado triângulo econômico Cochabamba -

Santa Cruz de la Sierra – Sucre, verdadeiro signo da riqueza boliviana” (TRAVASSOS,

1938:25). Portanto, ter o controle deste ponto estratégico seria vital para a disputa do poder sul-

americano.

Outro conceito fundamental para ser apreciado é o de fronteiras. Entender como as

fronteiras do Brasil e a dos países envolvidos direta ou indiretamente na Guerra do Chaco foram

sendo demarcadas possibilita a compreensão de prováveis causas para a eclosão do conflito,

bem como a diplomacia efetuada. Na obra História das Fronteiras do Brasil, Hélio Viana

procura assinalar “os vários tipos de fronteiras que possuímos, assim como suas principais

características” (VIANA, 1948:7).

Por sua, vez, Sérgio Buarque de Holanda publicou o livro O Extremo Oeste,

contribuindo para a compreensão acerca das construções e reconstruções das fronteiras na

América do Sul. Deste modo, afirma Holanda (1986:25), em relação aos tempos de colonização

do Brasil que “as áreas povoadas, tomadas ao índio e ao mato, não passam, em geral, de

estabelecimentos dispersos sobre o vasto litoral e ainda mal plantados na terra.”

Page 5: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

O professor José D’Assunção Barros, em O Campo Histórico, diz que o tipo de história

correspondente a maior parte da prática historiográfica baseia-se em registros, enfatizando os

textos ou fontes escritas (BARROS, 2002:133).

O professor Durval Muniz de Albuquerque Júnior, no capítulo A dimensão retórica da

historiografia, do livro O historiador e suas fontes, emprega o conceito de História do Discurso,

chamando a atenção quanto a necessidade de interrogar os discursos produzidos como

construções narrativas, em especial, no campo da História Política, carecendo de uma análise

ideológica (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2009:233-234).

O presente estudo recorre à História Textual ou História do Discurso, privilegiando a

análise de fontes escritas. Deste modo, utiliza documentos impressos e manuscritos (registros

escritos) da série Ministério da Guerra e Estado Maior do Exército (EME), durante o período

de 1932 a 1935, além do Acervo Pessoal do General Waldomiro Castilho de Lima, que se

encontra no Arquivo Histórico do Exército, situado no Palácio Duque de Caxias, atual sede do

Comando Militar do Leste, Organização Militar do Exército Brasileiro localizada na cidade do

Rio de Janeiro.

Estes registros escritos tornam-se objeto de estudo, deixando pistas a serem entendidas

através da análise. A pretensão da investigação traduz-se na apreciação dos documentos escritos

produzidos pelo Exército brasileiro e, mais especificamente, do estudo sigiloso feito sob a

direção do General Waldomiro Castilho de Lima, da Inspetoria do 1º Grupo de Regiões

Militares sobre A Questão do Chaco Boreal, de 1934 (BRASIL, 1934); e do Relatório Secreto

Synthese das informações colhidas sobre a guerra boliviano-paraguaya, no Chaco Boreal, e

seus antecedentes, produzido pela 2ª Seção do Estado Maior do Exército, de 1935 (BRASIL,

1935).

A inserção de imagens são meramente ilustrativas para apoiar a discussão. Não foi

objetivo da pesquisa trabalhar analiticamente com as imagens, todavia foram produzidas a partir

da bibliografia e das fontes citadas.

2 A FORMAÇÃO DAS FRONTEIRAS ENTRE ARGENTINA, BRASIL, BOLÍVIA E

PARAGUAI

O estudo das fronteiras é de fundamental importância para a compreensão de todo o

processo iniciado desde a partilha da América do Sul entre as principais potências europeias

colonizadoras da América na época: Espanha e Portugal, até a Guerra do Chaco.

Page 6: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

No Brasil, a Divisão de Fronteiras do Ministério das Relações Exteriores coordena as

atividades atinentes à demarcação de limites. Em especial, a Segunda Comissão Brasileira

Demarcadora de Limites, sediada no Rio de Janeiro, é responsável pelas fronteiras do Brasil

com Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai (VARGAS, 2017:76). Isso representa que,

passados séculos desde a colonização da América por nações europeias, atualmente os Estados

foram sendo criados e seus limites e fronteiras foram sendo estabelecidas.

A definição de fronteira, segundo Hélio Viana na obra História das fronteiras do Brasil,

“paira num ambiente mais elevado: político, étnico, econômico, certamente ligado às condições

climáticas e geográficas” (VIANA, 1948:12). Hélio Viana define que a concepção de limite

ocorre no domínio físico e geográfico (VIANA, 1948:12). Com isso, pode-se inferir que

fronteira é um conceito distinto e mais complexo do que limite.

Hildebrando Accioly, Geraldo Eulálio do Nascimento Silva e Paulo Borba Casella

afirmam que “é muito comum a confusão entre as palavras limite e fronteira, e, na verdade, na

linguagem usual elas não se distinguem. Limite é uma linha, ao passo que a fronteira é uma

zona” (ACCIOLY; SILVA; CASELLA, 2009:549).

Na visão de Fábio Aristimunho Vargas, fronteira designa “os limites territoriais de um

Estado. Existe, porém, certa distinção entre fronteira e limite” (VARGAS, 2017:36). A fronteira

como lugar corresponde a um espaço de convívio entre pessoas distintas, um espaço de

socialização, havendo certo grau de coesão à comunidade fronteiriça e propiciando o

desenvolvimento de múltiplas identidades (VARGAS, 2017:50).

Dois outros conceitos são relevantes para serem destacados. Delimitação é o

procedimento formal por meio do qual se fazem atos solenes de determinação dos traçados de

fronteira entre os Estados envolvidos, estabelecendo-se direitos e obrigações mútuos. Já

demarcação refere-se ao momento em que são colocados, por comissões de limites, marcos em

um dado território a ser dividido (VARGAS, 2017:75).

Para Carlos de Meira Mattos, pensador geopolítico brasileiro da segunda metade do

século XX, na obra Geopolítica e teoria das fronteiras, a fronteira é sempre uma área sensível,

havendo o choque de interesses soberanos diferentes, dirigidos por polos de poderes diversos,

o que provocam um jogo de pressão capaz de levar à desarmonia e ao conflito entre Estados

(MATTOS, 1990:5).

Os contornos de cada uma das linhas de fronteiras que estes países da América do Sul

conformam entre si, na atualidade, são o resultado de um processo histórico decorrente de

Page 7: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

fatores econômicos, sociais, políticos e diplomáticos que trabalharam na legitimação da posse

territorial e na formalização das fronteiras (VARGAS, 2017: 29). Entender o processo de

formação das fronteiras entre esses países, que possuem em comum proximidade com a região

do Chaco Boreal, é imprescindível para analisar a diplomacia e a política externa realizadas por

cada um destes Estados, bem como levantar prováveis causas para a eclosão da Guerra do

Chaco.

As fronteiras entre os Estados são delimitadas por acordos bilaterais entre os países e os

critérios para o seu estabelecimento dependem do entendimento dos envolvidos. Já a

formalização das fronteiras é realizada pelo processo contínuo de reconhecimento mútuo de

dois ou mais países, de delimitação e de demarcação de limites (RODRIGUES, 2020:51).

A partir de 1928, por iniciativa do chanceler brasileiro Octávio Mangabeira, os trabalhos

de demarcação no Brasil tornaram-se sistemáticos, a cargo de três Comissões: a do Norte

(abrangendo as fronteiras com as Guiana e a Venezuela), a do Oeste (Colômbia, Peru e Bolívia)

e a do Sul (Paraguai, Argentina e Uruguai). Por decreto de 1934, ficou estabelecido que as

Comissões Brasileiras Demarcadoras de Limites tivessem organização militar, o que acontecia

desde o Império, e que o serviço prestado em demarcação de fronteiras teria preferência, em

tempo de paz, em relação a qualquer outra comissão (RODRIGUES, 2020:142).

Em 1939, as Comissões Brasileiras Demarcadoras de Limites foram reduzidas a apenas

duas, com as denominações de Primeira Divisão (a do Norte, abrangendo as fronteiras com as

Guianas, Venezuela, Colômbia e Peru) e Segunda Divisão (a do Sul, englobando as fronteiras

com a Bolívia, Paraguai, Argentina e Uruguai). Em definitivo, a nomenclatura atualmente

utilizada foi implementada em 1973, determinando que a Primeira Comissão Brasileira

Demarcadora de Limites (PCDL) atuasse no Norte e que a Segunda Comissão Demarcadora de

Limites (SCDL) atuasse no Sul.

2.1 FRONTEIRA DO BRASIL COM O PARAGUAI

A primeira linha de fronteiras entre o Brasil e o território hoje pertencente à República

do Paraguai foi fixada, ainda, no período colonial, no Tratado de Madrid, de 1750. Em 1777,

através do Tratado de Santo Idelfonso, a fronteira entre ambos os países foi restabelecida pelo

rio Igureí (VIANA, 1948:174-175).

Sob o Primeiro Reinado, estabelecidas as relações diplomáticas entre o Brasil e o

Paraguai, a questão de fronteiras veio à tona por conta das incursões indígenas paraguaias em

Page 8: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

relação com os habitantes brasileiros de Coimbra e Albuquerque (VIANA, 1948:176). O

contato do índio com os brasileiros, atraídos a um lugar aparentemente promissor, revelava a

estes que o nativo indígena possuía resistência à fome, a sede, ao cansaço, familiaridade com

seus produtos comestíveis ou medicinais de uma natureza agreste que exigia abnegação e

desconforto de qualquer indivíduo (HOLANDA, 1986:29-30). A respeito das tensões entre os

índios e brasileiros, Sérgio Buarque de Holanda em O Extremo Oeste, revela que a região do

atual Centro-Oeste do Brasil, em especial o Estado atual do Mato Grosso do Sul possui como

prolongamento natural o Paraguai, fato esse que explica o intenso contato, desde o período

colonial, entre os indígenas nativos e os colonos hispânicos e portugueses, num primeiro

momento, e entre indígenas e brasileiros, após da independência do Brasil (HOLANDA,

1986:152). Tal característica indigenista paraguaia na região do Chaco Boreal e do Pantanal se

deveu a sua ligação histórica com a então Província de Assunção, evitando, inclusive, sua

inclusão na esfera de influência de Buenos Aires e, consequentemente, da Argentina.

O Paraguai, uma parte do Vice-Reinado da Prata, a partir da independência em 1811,

procurou isolar-se dos outros Estados do Rio da Prata, mediante a prática econômica autárquica

de forte cunho agrarista e sistema de governo federalista, fatores que dificultaram a distinção

de fronteiras (PRADO, 1994:39). O poder passou para as mãos de uma junta, da qual fazia parte

Gaspar Rodríguez de Francia, que tomou partido contrário às pretensões dominadoras de

Buenos Aires, tornando-se ditador que governou o Paraguai de 1814 até 1840, ano de sua morte

(PRADO, 1994:53).

No projeto apresentado ao governo imperial, a fronteira seguiria o rio Paraná, a serra de

Amambaí e a de Maracaju, até as vertentes do rio Branco e, deste rio até sua confluência na

margem esquerda do rio Paraguai (VIANA, 1948:176).

Em 6 de abril de 1856, foi assinado um Tratado de Limites no Rio de Janeiro, ratificado

em Assunção em 13 de junho do mesmo ano, entre os ministros José Maria da Silva Paranhos

e José Berges, mantendo a reciprocidade do respeito ao uti possidetis (VIANA, 1948:178).

Em acordo com o Tratado da Tríplice Aliança, assinado em Buenos Aires em 1º de maio

de 1865, os limites com o Paraguai, do lado do rio Paraná, seria o primeiro rio abaixo do Salto

das Sete Quedas; do lado da margem esquerda do rio Paraguai, pelo rio Apa. No interior, os

limites seriam delimitados pelos cumes da serra de Maracaju, tendo a leste o Brasil e a oeste o

Paraguai, em direção às nascentes do Apa e do Igureí (VIANA, 1948:179-180). O Brasil tinha

problemas de fronteiras com o Paraguai, considerava a livre navegação dos rios Paraná e

Page 9: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

Paraguai uma questão vital para o Império e imprescindível para atingir Mato Grosso e toda a

região central do país. Entretanto, as tensões entre os dois países mantiveram-se constantes e a

entrada do Brasil na guerra do Paraguai correspondia ao seu desejo de ter hegemonia sobre a

bacia desses rios (PRADO, 1994:55).

Em desacordo com um artigo do Tratado da Tríplice Aliança que beneficiaria a

Argentina, o Brasil estava disposto a ceder ao Paraguai a faixa de terra entre o Igureí e as Sete

Quedas, desde que o governo de Buenos Aires não se apropriasse do trecho do Chaco. Diante

do desentendimento dos aliados, o Brasil negociou separadamente com o Paraguai os Tratados

de Paz e Amizade Perpétua e de Limites, em 9 de janeiro de 1872 (PRADO, 1994:180). Pelo

Tratado de 1872, o Brasil garantiu a posse do território reivindicado entre os rios Apa e Branco,

atual parte do Mato Grosso do Sul (GARCIA, 2005:92).

O Tratado Complementar de Limites, assinado em 27 de maio de 1927, foi assinado no

Rio de Janeiro pelo ministro Otávio Mangabeira, titular das Relações Exteriores, e Rogélio

Ibarra, representante paraguaio, restabeleceu a linha fronteiriça entre a foz do rio Apa e a baía

Negra (VIANA, 1948:182). Pelo acordo, definiram-se os limites no trecho rio Apa-Baía Negra

e passou-se a empregar o talvegue para a execução da delimitação fluvial, englobando também

as ilhas nesse critério (VARGAS, 2017:284) (FIGURA 1).

Page 10: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

FIGURA 1 – Fronteira do Brasil com o Paraguai

FONTE: Brasil (2020).

2.2 FRONTEIRA DO BRASIL COM A BOLÍVIA

Um ano após a assinatura do Tratado de Madri, a capitania de Mato Grosso foi instalada,

cuja sede foi propositalmente levada para perto da fronteira, em 1752, quando se criou, à

margem direita do rio Guaporé, a Vila Bela da Santíssima Trindade, depois cidade de Mato

Grosso. Em 1753, foi colocado um marco no trecho fronteiriço do rio Paraguai, até a foz do

Jauru, não havendo continuidade das demarcações que deveriam ser feitas a partir deste marco

(VIANA, 1948:220).

Anulado o Tratado de Madri pelo do Pardo, em 1761, não se alterou a situação

fronteiriça de Mato Grosso, apesar da nova guerra espanhola-portuguesa. Nesta época, o

governador Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres fundou o presídio de Nova

Page 11: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

Coimbra, no rio Paraguai, em 1775; e o forte Príncipe da Beira, no Guaporé, em substituição

ao da Conceição, em 1776 (VIANA, 1948:220).

Com a constituição do novo país sul americano, a Bolívia, o Império iniciou relações

diplomáticas a partir de 1831. Pouco depois, em 1834, o general boliviano Mariano Armaza,

encarregado de negócios junto ao Império do Brasil, chefiou a primeira missão diplomática de

representação dos interesses da Bolívia em solo estrangeiro que tentou, sem êxito, fixar limites

com o Império (VIANA, 1948:220).

Na sequência, diplomatas brasileiros mantiveram uma postura em prol dos ajustes de

fronteira com a Bolívia, como ocorrido em 1851 e 1852, com o diplomata Duarte da Ponte

Ribeiro; em 1860, com o diplomata Antônio da Costa Rêgo Monteiro; e em 1863, através do

seu sucessor Antônio Pedro de Carvalho Borges, depois Barão de Carvalho Borges. Todos estes

diplomatas brasileiros falharam na tentativa de fixar os limites com a Bolívia (VIANA,

1948:220).

Em 1865, com a divulgação do texto secreto do Tratado da Tríplice Aliança contra o

governo do Paraguai, a Bolívia reclamou contra a errônea divisa argentina, que prejudicaria os

direitos bolivianos a uma parte do Chaco (VIANA, 1948:222).

O Tratado de La Paz, assinado em 1867 pelo deputado Filipe Lopes Neto, depois Barão

de Lopes Neto, com o ministro das Relações Exteriores Mariano Donato de Muñoz foi

ratificado no mesmo ano, submetido ao Congresso boliviano e por ele aprovado no ano seguinte

para a promulgação como lei da República. Este tratado tinha como pano de fundo a Guerra do

Paraguai e o interesse geopolítico brasileiro de estreitar os laços com a Bolívia (VIANA,

1948:222).

A partir de 1877, o Brasil tivera a questão do Acre em pauta para a resolução dos

desentendimentos dos exploradores brasileiros da borracha na região. Em 1901, o governo

boliviano decidiu arrendar a região conflagrada a um consórcio de capital anglo-americano,

com sede em Nova Iorque, o Bolivian Syndicate, que passaria a desfrutar de uma soberania

terceirizada (VARGAS, 2017:222).

Diante dessa situação, o Acre teve nomeado governador do Estado independente o

militar gaúcho José Plácido de Castro, que liderou a Revolução Acreana, resultando em derrota

das forças bolivianas em 1902 e proclamação da Terceira República do Acre, em 27 de janeiro

de 1903. Na iminência de um conflito armado, o governo brasileiro fechou o rio Amazonas e

indenizou previamente a empresa Bolivian Syndicate em cento e catorze mil libras esterlinas,

Page 12: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

em troca da desistência no arrendamento das terras acordadas com a Bolívia (VARGAS,

2017:223-224).

Com o Tratado de Petrópolis, firmado em 1903, garantiu-se a modificação de trechos

da fronteira (FIGURA 2), mediante o pagamento de dois milhões de esterlinos e a construção

da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (VIANA, 1948:192).

FIGURA 2 - Fronteira central do Brasil com a Bolívia (Rondônia e Mato Grosso)

FONTE: Brasil (2020)

Em síntese, a fronteira entre Bolívia e Brasil, caracterizada por atravessar dois

importantes biomas da América do Sul, o Pantanal e a Amazônia, foi marcada pela Questão do

Acre, resultando em perda territorial boliviana em prol do Brasil, mediante indenização

(VARGAS, 2017:214). O Estado brasileiro buscava ampliar sua ação intervencionista sobre o

território nacional e sua população, por meio da construção de uma ferrovia. Durante esse

período houve um aumento da presença e nas atividades do poder público central aliado ao

capital privado (RODRIGUES, 2020:62).

A região fronteiriça começa em pleno pantanal do rio Paraguai (FIGURA 3),

atravessando lagos e corixas, depois de pequenas elevações margeia o Guaporé e o Mamoré,

afinal alcançando os rios Abuman e Acre (FIGURA 4). É, portanto, essencialmente fluvial,

embora intercalada de trechos secos (RODRIGUES, 2020:235).

Page 13: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

FIGURA 3 – Fronteira sul do Brasil com a Bolívia (Mato Grosso do Sul)

FONTE: Brasil (2020).

FIGURA 4 – Fronteira norte do Brasil com a Bolívia (Acre e Rondônia)

Page 14: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

FONTE: Brasil (2020).

2.3 FRONTEIRA DO BRASIL COM A ARGENTINA

Em 25 de maio de 1810 eclodia em Buenos Aires, liderado pelos setores liberais e

ligados ao comércio, um movimento pela emancipação do Rio da Prata ao domínio espanhol.

O Vice-Reinado da Prata abrangia durante o período colonial uma vasta região, da qual faziam

parte os atuais Estados do Uruguai, da Argentina, da Bolívia, do Paraguai e o norte do Chile

(PRADO, 1994:38). A atual Argentina compreendia três regiões bem específicas: A primeira

era a de Buenos Aires e sua província, que monopolizava o movimento de exportações de toda

a região; A segunda, a do litoral dos rios (Santa Fé, Corrientes), tinha por aspiração a livre

navegação desses rios para escoar sua produção pecuária; e a terceira, chamada de interior

(Córdoba, La Rioja, Tucumán), compreendia os espaços que se dedicavam à agricultura de

subsistência e ao artesanato (PRADO, 1994: 39). Portanto, a futura Argentina estava dividida

em regiões com interesses econômicos diversos, que se envolveram numa longa disputa pela

direção do poder político.

Nessa conjuntura de domínio dos caudilhos federalistas surgiu, em Buenos Aires, Juan

Manoel de Rosas, personagem que concentrou em suas mãos poder político e que dividiu o país

em duas correntes políticas: rosistas e anti-rosistas (PRADO, 1994:42). Ao caudilhismo se

contrapunha o unitarismo advindo das cidades. A luta armada contra Rosas começou em 1839,

mas só foi vitoriosa em 1852, quando se uniram o governador de Entre Ríos, Urquiza, o

caudilho do Partido Blanco uruguaio, Rivera, e o Brasil (PRADO, 1994:45).

Page 15: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

Em 1853 a Constituição argentina foi jurada, tornando-se um Estado liberal, republicano

e federal. Os rios interiores passaram a ter livre navegação, resolvendo-se assim o velho

problema das províncias do litoral (PRADO, 1994:45).

Já em 1857, o Império buscou negociar com a Confederação Argentina, na cidade de

Paraná, um Tratado de Limites, aprovado pelo Congresso argentino, mas tornado sem efeito

pelo governo da Confederação porque o Brasil não quis aliar-se a ele para submeter pelas armas

a província de Buenos Aires (VARGAS, 2017:199). A realidade é que haviam discordâncias

internas na Confederação Argentina, somente apaziguadas após a vitória de Mitre sobre

Urquiza na batalha de Pavón, em 1861, unificando o país (PRADO, 1994:47). Foi preciso

esperar até 1862, com a assunção da presidência da República Unida por Mitre, para que o país

constituísse em um Estado organizado e estruturado em moldes nacionais (PRADO, 1994:41).

Somente em 1876, com o acordo de paz reconhecido, a Argentina passou a constituir os

limites com o Brasil (PRADO, 1994:177). Em 25 de janeiro de 1880, reunidos em Montevidéu

os representantes do Brasil, Quintino Bocaiúva e o Barão de Alencar, e os argentinos Estanislao

Zeballos e Enrique Moreno, assinaram o Tratado que delimitaria o território confinado a oeste

com Missiones, na Argentina, e ao sul com o Estado do Rio Grande do Sul (VIANA, 1948:201-

202).

Em face da rejeição do Tratado de Montevidéu, Brasil e Argentina decidiram levar o

litígio ao presidente dos Estados Unidos da América, Grover Cleveland que, em 5 de fevereiro

de 1895, delimitou a fronteira pelos rios Pepiriguaçu e Santo Antônio, o que atendia aos anseios

do Brasil. O Laudo Arbitral de 1895 deu ganho de causa ao Brasil, sendo então incorporados

os territórios em litígio incorporados aos estado de Santa Catarina e Paraná (VIANA,

1948:203).

Em 18 de junho, 15 de julho e 8 de agosto de 1904, respectivamente descritas nas 1ª, 2ª

e 3ª Atas das Conferências da Comissão Mista de demarcação, a linha divisória entre Brasil e

Argentina ficou delineada (VIANA, 1948:204). Com isso, a fronteira entre o Brasil e a

Argentina foi levantada e demarcada de 1901 a 1904.

A 4 de outubro de 1910, em Buenos Aires, foram assinadas a distribuição entre os dois

países as ilhas existentes nos rios Uruguai e Iguaçu. A região fronteiriça do Brasil com a

Argentina compreende três zonas distintas, sendo duas no Estado do Rio Grande do Sul e a

terceira nos Estados de Santa Cantarina e Paraná (VIANA, 1948:205).

Page 16: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

A questão fronteiriça nunca foi motivo de grave desentendimento entre Brasil e

Argentina. Em 27 de dezembro de 1927, Brasil e Argentina firmaram em Buenos Aires a

Convenção complementar de limites, que aperfeiçoou a delimitação pelo rio Uruguai e

determinou que se erigissem novos marcos no Brasil. Com isso, a delimitação da fronteira entre

estes países passa pelos rios Uruguai, Peperi-Guaçu e Iguaçu, desde a confluência do Quaraí

até o Alto Paraná (VARGAS, 2017:178-185) (FIGURA 5).

FIGURA 5 – Fronteira do Brasil com a Argentina

FONTE: Brasil (2020).

2.4 FRONTEIRA DA ARGENTINA COM O PARAGUAI

A independência do Paraguai, em 15 de maio de 1811, sem conflitos, representou a

busca pela autonomia em relação ao governo de Buenos Aires, que tardou em reconhecer a

independência paraguaia, além de reivindicar territórios do antigo Vice-Reino do Rio da Prata

(VARGAS, 2017:202).

A Confederação Argentina reconheceu a independência paraguaia somente em 17 de

julho de 1852, após assinatura de um acordo que concedia a província de Missiones à Argentina

(VARGAS, 2017:202-203).

O Tratado da Tríplice Aliança ofensiva e defensiva contra o governo do Paraguai,

firmado em Buenos Aires em 1º de maio de 1865, estabeleceu as bases da aliança militar e as

condições para a celebração da paz (VARGAS, 2017:203).

O erro do Tratado da Tríplice Aliança, atribuindo à Argentina todo o Chaco paraguaio,

foi percebido pelo Brasil que, mais tarde, buscou a correção pelo laudo arbitral do presidente

Hayes, dos Estados Unidos da América (VIANA, 1948:130). Esta decisão arbitral proferida em

Page 17: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

12 de novembro de 1878, adjudicou ao Paraguai a totalidade da área de litígio, fazendo com

que a Bolívia não tivesse seus pleitos considerados pelo árbitro (VARGAS, 2017:206).

No Brasil, o tratado foi criticado por terem sido consideradas excessivas as concessões

territoriais feitas à Argentina, em especial, a totalidade do Chaco Boreal. O acordo de paz entre

Argentina e Paraguai foi firmado apenas em 3 de fevereiro de 1876, em Buenos Aires, através

do qual o Paraguai renunciou o Chaco Boreal (VARGAS, 2017:203-204).

2.5 FRONTEIRA DA ARGENTINA COM A BOLÍVIA

Em 1776, a Real Audiencia de Charcas, circunscrição jurisdicional espanhola ao redor

da qual se originaria a Bolívia, foi integrada pela administração colonial ao Vice-Reino do Rio

da Prata, cuja capital, Buenos Aires, daria origem à Argentina. Em virtude da sobreposição de

territórios reivindicados, Argentina e Bolívia configurariam questões de limites nas primeiras

décadas de independência, em especial quanto às regiões de Tarija, Puna de Atacama e Chaco

Boreal (VARGAS, 2017:169).

Tarija, hoje parte da Bolívia, pertenceu à Argentina até a década de 1830. As vitórias do

exército peru-boliviano contra forças argentinas em 1838 viriam a consolidar esta situação.

Mesmo com a dissolução da Confederação Peru-Boliviana, em 1839, Tarija permaneceu

boliviana (VARGAS, 2017:170).

Em 1878, a Bolívia manifestou-se contrária à arbitragem entre Argentina e Paraguai

sobre a posse da região entre os rios Bermejo e Paraguai, parte do Chaco Boreal cuja posse a

Bolívia reivindicava com base em títulos coloniais. A sentença arbitral denominada Laudo de

Hayes, proferida pelo presidente dos EUA, ao ter sido favorável ao Paraguai, contribuiu para

aumentar a controvérsia territorial entre Bolívia e Paraguai, desembocando na Guerra do Chaco

(VARGAS, 2017:171).

Em 10 de maio de 1889, no contexto do fim da Guerra do Pacífico (1879-1883), em que

a Bolívia e o Peru saíram derrotados diante do Chile, a Bolívia firmou com a Argentina um

acordo secreto em que cedia a esta parte da região de Puna de Atacana em troca da Argentina

abrir mão de reivindicações sobre Tarija (VARGAS, 2017:171-172).

Em 1891, Argentina e Bolívia acordaram uma retificação ao Tratado de 1889, por meio

da qual os bolivianos transferiram aos argentinos a totalidade do território de Puna de Atacana.

O Tratado de 1925 estabeleceu o traçado definitivo da fronteira Argentina-Bolívia (VARGAS,

2017:173-176).

Page 18: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

2.6 FRONTEIRA DA BOLÍVIA COM O PARAGUAI

A fronteira entre Bolívia e Paraguai é marcada pela controvérsia acerca dos limites na

região do Chaco Boreal, com os países opondo títulos a sustentar suas pretensões territoriais na

região, culminando com a Guerra do Chaco, considerada a maior guerra nas Américas no século

XX (VARGAS, 2017:264).

Para a Bolívia, interessava a posição estratégica do Chaco, que lhe permitia acesso ao

Oceano Atlântico pelo rio Paraguai, em virtude de sua condição mediterrânea desde a perda do

litoral para o Chile na Guerra do Pacífico. De um lado, a Bolívia alegava os direitos coloniais

atinentes à Real Audiencia de Charcas, e de outro, o Paraguai invocava a reorganização

territorial da Coroa espanhola, que colocou a região sob a administração do Vice-Reino do Rio

da Prata (VARGAS, 2017:264).

Em que pese o fato das pretensões territoriais de ambas as partes, a maior parte da região

do Chaco era desocupada até o início do conflito. Tendo durado de 1932 a 1935, a Guerra do

Chaco inspirou a celebração do Pacto Antibélico ou Pacto Saavedra Lamas, em 1933, um

acordo multilateral firmado por mais de vinte países que condenava os conflitos bélicos

(VARGAS, 2017:265-267). O Pacto, definido durante a Guerra do Chaco, contou com a adesão

de várias nações, condenando a guerra, propondo solução pacífica dos problemas internacionais

e servindo de tentativa de se evitar a eclosão de conflitos fronteiriços na América (MOREIRA;

QUINTEROS; SILVA, 2010:184).

O Laudo arbitral del Chaco, proferido em Buenos Aires em 10 de outubro de 1938,

detalhou o traçado da fronteira adjudicando-se em torno de 350.000 Km2 do território em litígio

ao Paraguai, correspondendo a três quartos do total (VARGAS, 2017:269) (FIGURA 6).

FIGURA 6 - Mapa com decisão arbitral que dividiu o território em litígio

Page 19: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

FONTE: Argaña (1938)

Diante do exposto, o estudo da formação das fronteiras entre Brasil, Argentina, Paraguai

e Bolívia é imprescindível para o entendimento do processo de disputas territoriais por estes

países envolvidos direta e indiretamente na Guerra do Chaco, facilitando o esclarecimento sobre

a diplomacia e conflito bélico envolvidos.

3 A GUERRA DO CHACO NA VISÃO DE MILITARES DO EXÉRCITO BRASILEIRO

Page 20: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

A compreensão da Guerra do Chaco, sob o ponto de vista de militares do Exército

Brasileiro, carece da análise de dois documentos produzidos no âmbito da Força Terrestre

brasileira durante o desenvolvimento da fase bélica deste conflito: A questão do Chaco Boreal,

estudo sigiloso produzido no ano de 1934 pela Inspetoria do 1º Grupo de Regiões Militares, sob

a direção do General Waldomiro Castilho de Lima; e Synthese das informações colhidas sobre

a guerra boliviano-paraguaya, no Chaco Boreal, e seus antecedentes, Relatório Secreto

elaborado pela 2ª Seção do Estado-Maior do Exército, em 1935.

No início do Apêndice do estudo dirigido pelo General Waldomiro Castilho de Lima,

fica evidenciada a solicitação do Ministro da Guerra, General Pedro Aurélio de Góes Monteiro,

para apresentação da questão do Chaco Boreal “que faz parte de um trabalho que estou

elaborando referente a Defesa Nacional e que de alguma sorte interessam urgentemente, no

momento atual político e militar sul americano à Defesa Nacional” (BRASIL, 1934:2). Esse

registro revela a preocupação do alto escalão militar brasileiro em relação ao conflito, de modo

a buscar subsidiar futuras decisões na esfera política do Governo, e a política intervencionista

dos militares do Exército Brasileiro. A situação das forças armadas revelava que o Forte

Coimbra, por exemplo, não estava preparada para uma guerra, contando com armamento,

estrutura e dispositivos defasados, além de ser uma guarnição de difícil recompletamento para

o quadro de oficiais, o que demonstrava a falta de interesse dos militares em servir neste local

(BRASIL, 1934:4). Aliado a esses fatores, havia a percepção da elite militar da demanda por

melhorias na defesa do forte para barrar o acesso ao Brasil pelo rio Paraguai frente a

incontestável superioridade naval da esquadra argentina, que poderia dificultar os transportes

marítimos e as comunicações do Brasil nos seus rios e no litoral (BRASIL, 1934:7-10). Apesar

de ser um conflito envolvendo Bolívia e Paraguai, pode-se perceber que o Brasil estava

impactado direta ou indiretamente com o desenrolar dos acontecimentos da guerra, quer seja

no nível militar, quer seja no diplomático ou político.

No terceiro capítulo do relatório secreto da 2ª Seção do Estado-Maior do Exército, fica

exposto o exame constante e minucioso da situação internacional do Brasil, em face do conflito,

na previsão das consequências no campo militar. Havia um posicionamento claro do Brasil em

torno da insatisfação argentina com o desmembramento do Vice-Reinado do Prata (BRASIL,

1935:105). A influência argentina preocupava as autoridades militares brasileiras, em especial,

por conta da expansão ferroviária argentina para as cidades bolivianas de Santa Cruz de la Sierra

e Puerto Suarez, além da destinação de 600 milhões de pesos para a continuidade do programa

Page 21: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

de comunicações do Ministério de Obras Públicas da Argentina (BRASIL, 1935:7). No quarto

capítulo deste relatório, apesar do título afirmar que trata-se do Teatro de Operações como foi

visto pelos combatentes, não há indicação de quem foram tais combatentes que expressaram

ponto de vista sobre as operações militares, o que leva a crer que a visão apresentada baseou-

se no que os militares brasileiros analisaram das informações obtidas pelo sistema de

inteligência. Em resumo, essa apreciação foi realizada através da análise do terreno, condições

meteorológicas e disposição dos fortins e tropas de ambos os países envolvidos na guerra

(BRASIL, 1935:121-125).

Ampliando-se a discussão sobre prováveis causas para as contendas das antigas colônias

hispânicas na América do Sul, deve ser levado em consideração que a colonização hispânica

permitiu “não haverem alguns países ainda traçado definitivamente as suas fronteiras,

mantendo discussões e pendências diplomáticas que se eternizam e que já tem causado muito

sangue e muitas questões políticas agitadas” (BRASIL, 1934:1). A respeito da formação das

nacionalidades paraguaia e boliviana:

...já semeadas de discórdia, sofreu, durante vários séculos grandes

perturbações, pelas instituições [...] expedidas pelo rei de Espanha, as quais

estabeleceram diversas delimitações sucessivas que deram ao território

colonial outros tantos governos [...] com os quais pretendeu corrigir os erros

anteriores, mas que, sempre feitos sem o conhecimento das condições

geográficas locais e obedecendo muitas vezes a injunções políticas, ainda mais

complicaram as questões de limites e de jurisdição, especialmente entre o

Peru, a Bolívia, a Argentina e Paraguai (BRASIL, 1934:3).

Para agravar ainda mais a situação, na região do Chaco haviam diversas empresas

industriais argentinas a quem o governo prestava auxílios por meio de sua influência no

Paraguai (BRASIL, 1934:8). Além disso, a projeção estratégica argentina angariou o controle

do transporte do petróleo do oriente boliviano como parte da articulação econômica da

Argentina com esta região, apoiado por um articulado sistema ferroviário (SILVEIRA,

2009:652). Sob este prisma, uma guerra na região não consistiria em bom negócio para os

argentinos. Para estes, a posse de Villa Occidental, localizada na margem oposta de Assunção,

no rio Paraguai, era a base para seu país colonizar o Chaco (DORATIOTO, 2019:3-10).

Visando o povoamento da região do Chaco, o Paraguai concedeu terras para tornar efetiva a

Page 22: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

sua ocupação. Cabe salientar que grandes tratos de terras foram outorgados às empresas

inglesas, americanas e argentinas, ocupando as últimas 50% das concessões, tudo com a

finalidade de explorar o quebracho, conhecido no Brasil pelo nome de baraúna (BRASIL,

1935:19).

De modo a compreender a questão que envolvia a cobiça pela região do Chaco Boreal,

por um lado, para a Bolívia era extremamente necessário obter uma saída para o Atlântico pelo

rio Paraguai e, de outro lado, o Paraguai possuía empreendimentos industriais enraizados onde

contava encontrar petróleo e outros minerais (BRASIL, 1934:3-4).

Assim sendo, Rodrigues e Silva (2019) destacam o problema relacionado ao isolamento

marítimo da Bolívia, que buscava uma saída para o mar:

Na guerra do pacífico (1879-1883), conflito que envolveu o Chile, a Bolivia

perdeu a região do litoral que lhe possibilitava acesso ao oceano Pacífico. [...]

os interesses bolivianos se voltaram para o rio Paraguai, que seria uma opção

de ligação com o oceano Atlântico pela bacia do Prata (RODRIGUES;

SILVA, 2019:15).

Já o Exército paraguaio, “não se achava em condições de fazer a mobilização, para isso

concorriam a desorganização geral do país, a falta de instrução do povo e a desídia dos

dirigentes” (BRASIL, 1935:86).

A partir de 1928, intensificaram-se as ações de ambos os litigantes para se apoderarem

do território do Chaco. Assim, os avanços dos destacamentos militares constituíram uma longa

linha de contato de onde partiram de parte a parte ataques mútuos (BRASIL, 1934:35). Em

1929, enquanto os beligerantes procuravam avançar sua ocupação no Chaco, “a comissão de

Conciliação de Washington empregava em vão seus esforços para evitar a guerra. Inúteis

também foram os esforços despendidos pela Argentina, Brasil, Chile e Peru” (BRASIL,

1934:35). Em 1930, a Bolívia refeita de sua revolução, passou por um período de agitação

popular em torno da fórmula de guerra, como único meio de solucionar a questão. Já o Paraguai

aproveitou-se das notícias divulgadas e procurou reforçar as suas guarnições do Chaco

(BRASIL, 1935:37).

Ainda nesse período:

Houve mesmo quem denunciasse que o Paraguai estava procurando pôr [...]

800 soldados paraguaios em trajes civis [...] em Corumbá, por pequenas levas

[a fim de] apoderar-se de Puerto Suarez, sede da 5ª Divisão de Exército

Page 23: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

boliviana, e cortar as comunicações [...] sem cogitar das consequências da

violação armada do território de uma grande nação neutra, que mantinha

atitude prudente e criteriosa diante das rusgas dos dois vizinhos irrequietos

(BRASIL, 1935:37).

Os direitos alegados pelo Paraguai em suas pretensões ao território do Chaco Boreal

podem ser resumidos em: Santa Cruz de la Sierra não compreendia a região chaquenha; os

limites da região não sofreram alterações; o Paraguai conservou a posse da margem direita do

rio Paraguai e da margem esquerda do Pilcomaio; e de acordo com provas documentais dos

tempos de D. Felipe II, ficaram sob a égide de Assunção todos os territórios, inclusive o Chaco

Boreal (BRASIL, 1934:5). Nesse mesmo sentido, “para o Paraguai, a principal tese defendida

para as causas da guerra diz respeito às questões territoriais. Alegação pautada também, em

documentos coloniais, afirmando que o Chaco pertencia à capital, Assunção” (RODRIGUES;

SILVA, 2019:17).

Por sua vez, a Bolívia baseou-se nos seguintes aspectos para alegar a posse da região do

Chaco Boreal: o território do Chaco Boreal era situado na antiga Gobernation de Nova Toledo,

que constituía parte do território da Audiência das Chargas, de onde surgiu a Bolívia; uma

cédula real de 1563 reconheceu as terras do Chaco como sendo separadas do rio Paraguai; a

divisão em dois governos, feita pela coroa espanhola, pela cédula de 1617, não se estendeu

sobre o Chaco; e em 1810 as nações sul-americanas fixaram o princípio do uti-possidetis

(BRASIL, 1934:5-7). O governo da Bolívia apresentava suas alegações baseadas em

“documentos do período colonial, considerando que suas fronteiras incluíam todas as terras da

antiga Audiência de Charcas, que era a mais alta autoridade jurídica e administrativa no sul do

vice-reinado do Peru, durante os três séculos coloniais” (RODRIGUES; SILVA, 2019:16). Os

argumentos dos bolivianos, portanto, consistiam em questionamentos acerca de remotas

delimitações feitas em uma época em que não se havia conhecimento das terras da região e que

os reis dividiam as mesmas sem conhecê-las, destinando-as aos aventureiros ambiciosos

(BRASIL, 1934:7).

Em síntese, “se para os paraguaios o caso do Chaco resume-se a uma questão de limites,

para a Bolívia, o problema encerra uma questão de posse integral do território” (BRASIL,

1935:40).

Rodrigues e Silva (2019) arrematam a ideia sobre as causas da guerra ao afirmarem que:

Page 24: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

As delimitações territoriais consistem em importantes fatores para os

modernos Estados nacionais, pois em sua formação no século XIX, a fronteira

geopolítica traçada por delimitações espaciais era essencial, e fazia parte do

discurso de legitimação das elites locais responsáveis pela formação da nação

(RODRIGUES; SILVA:17).

O nível mais alto de tensão entre os paraguaios e bolivianos ocorreu durante as ações

que visavam a tomada de fortins, destacando-se o momento em que “os paraguaios tomaram o

fortim Vanguardia seguido da tomada, pelos bolivianos, do fortim Boquerón” (BRASIL,

1934:36). Nesse ínterim, salienta-se a ação pontual da aviação de ambos os países e também as

ações de artilharia. Devido às inundações, alguns fortins foram evacuados pelos bolivianos

(BRASIL, 1934:37). Aproveitando deste momento de fragilidade dos bolivianos, o governo

paraguaio “decretou a mobilização, em 3 de agosto de 1932 e fez um apelo a todo o país para

que concorresse à defesa nacional, esse apelo foi atendido e os voluntários compareceram em

massa aos quartéis” (BRASIL, 1935:87). Apesar dos embates, essa fase das operações foi

denominada hostilidades, pelo seu característico de ações isoladas de destacamentos, não

havendo uma ação geral que parecesse seguir a um plano de guerra por conta da escassez dos

efetivos dos beligerantes (BRASIL, 1934:37).

No mesmo dia, 3 de agosto de 1932, “a Comissão dos Neutros convocou a solidariedade

de todos os Governos da América e as 19 nações do continente dirigiram aos governos do

Paraguai e da Bolívia o veemente apelo, no sentido de reconduzirem uma solução pacífica”

(BRASIL, 1935:46).

No estudo das forças militares em um conflito, a observância dos recursos humanos é

um fator de análise imprescindível de ser feito. Sobre o exército paraguaio, seus quadros

contavam com “oficiais jovens, a começar pelo comandante em chefe que tem apenas 46 anos”

(BRASIL, 1935:128). O Adido Militar brasileiro em Assunção teve a seguinte impressão sobre

este comandante militar paraguaio: “É um homem calmo, de espírito repousado, não fala de si

nem de suas glórias. É metódico, e tem hábitos moderados: alimenta-se com sobriedade, só

bebe álcool por exceção e fuma apenas um cigarro por dia, depois do almoço” (BRASIL,

1935:128). Para o Adido Militar brasileiro na Bolívia, o perfil dos soldados bolivianos foi

apresentado pelo critério racial, apontando que o “índio é apático e indiferente, de uma

humildade extrema [...]. O cholo é sonso, desonesto [...]. O branco é egoísta e capaz de grandes

Page 25: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

atos de heroísmo levado pela vaidade mas não pela ideia de Pátria. Faz o que pode para não ir

ao Chaco...” (BRASIL, 1935:141).

O ano de 1932 foi assim sintetizado no Relatório do General Waldomiro Castilho de

Lima, a respeito dos aspectos militares:

Vimos como as hostilidades conduziram em 1932 os quase beligerantes a uma

generalização da luta, com o emprego de todas as armas de que dispunham e

sem declaração formal do estado de guerra. Dessas operações salientou-se

a supremacia das forças paraguaias melhor preparadas e situadas próximas as

suas bases de reabastecimento, ao passo que as bolivianas se achavam longe...

[...] Os paraguaios na sua ofensiva conquistaram grande parte do terreno

chaquenho mas, com a chegada dos reforços bolivianos a situação se

estabilizou, paralisando-se aquela ofensiva (BRASIL, 1934:37-38, grifo do

autor).

O Exército paraguaio no Chaco contava inicialmente com um Corpo de Exército3. No

decorrer das operações, foi aumentando. No ano de 1933, “o efetivo era então de 32.000 homens

(combatentes). Em dezembro de 1934 foi organizado mais um Corpo de Exército que

representavam agrupamentos de 10.000 homens” (BRASIL, 1935:77-78).

No Exército boliviano a organização foi análoga a do Exército paraguaio:

Em 1932 contava de 7 a 8 mil combatentes no Chaco. Em fins de 1933 aquele

Exército possuía dois Corpos de Exército, cujos efetivos variavam de 10 a 15

mil homens. Tinham então o efetivo de cerca de 25 mil homens. Elevaram-no

depois a 30 ou 35 mil homens (efetivo comparável ao paraguaio) [...]. Consta

que em setembro de 1934, chegaram a ter em armas cerca de 40 mil homens

(BRASIL, 1935:95).

De acordo com a distribuição da área das operações militares, conforme consta no

Relatório produzido pelo General Waldomiro, tinham-se três setores: Norte, onde se

desenrolaram as operações entre Porto Suarez e o Fortim Toledo, região menos importante pela

natureza árida, falha de comunicações e menos habitada; Centro, onde estendeu-se a ofensiva

paraguaia quebrando a resistência boliviana nos fortins; e Sul, zona importante para as

3 Agrupamento de militares com efetivo aproximado de 10.000 homens. Dependendo da composição, pode variar

de 7.000 a 12.000 homens. A organização do Corpo de Exército engloba o Comando; o Estado-Maior; os Serviços

de Intendência, Saúde e Transporte; e a Tropa (combatentes das armas de Infantaria, Artilharia e Cavalaria)

(BRASIL, 1935:78-79).

Page 26: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

operações militares, onde a maioria dos efetivos e recursos foram empenhados (BRASIL,

1934:38-39).

No ano de 1933, durante os meses de janeiro e fevereiro, os bolivianos realizaram

movimentos de contra-ataque em direção aos paraguaios, especialmente no setor Centro,

enquanto que mantiveram-se na defensiva no setor Sul. Durante o mês de março, os bolivianos

passaram a adotar operações ofensivas no setor Sul, destacando-se na progressão sobre

Alihuatá, fazendo com que as forças paraguaias recuassem. Em abril, após a tomada de

Alihuatá, os bolivianos conquistaram várias posições, mas o resultado geral não correspondeu

às expectativas esperadas (BRASIL, 1934:39-40).

As tropas necessitavam de repouso e nessa fase da luta as operações

compreenderam períodos de luta e de repouso, nos quais as forças se

reorganizaram e se reconstituíram os transportes e as comunicações [...]. Além

disso, pelo clima árido e as condições locais onde imperam as febres e a falta

de água potável começou a atuar consideravelmente sobre o físico e o moral

dos combatentes, dificultando as operações de toda a sorte (BRASIL,

1934:40).

Nesses primeiros meses do ano de 1933, os combates no Chaco passaram a ter um

aspecto diferente do que até então estava acontecendo. “Quebraram-se a harmonia e a

coordenação das operações, que passaram a constituir choques de patrulhas e ações locais, tal

como no início das hostilidades” (BRASIL, 1934:41).

Em 25 de agosto de 1933, por iniciativa do chanceler brasileiro Mello Franco “os países

do ABCP [Argentina, Brasil, Peru e Chile], no sentido de evitar que este conflito escapasse da

ação conciliatória da América [...] dirigiram aos Governos do Paraguai e Bolívia uma

proposição de acordo...” (BRASIL, 1934:50). Face a impossibilidade de conciliação dos

interesses do Paraguai e da Bolívia, “os Governos integrantes do ABCP em nota de 1-10-1933,

ao Conselho das Sociedades das Nações, renunciaram prosseguir as tentativas de conciliação”

(BRASIL, 1934:52).

No ano de 1934, durante o período de janeiro a maio, “os paraguaios progrediram

constantemente, [...] buscando a via central de penetração boliviana...” (BRASIL, 1935:166).

A contraofensiva boliviana ocorreu em torno dos destacamentos paraguaios “e agiu contra eles

em pequenas operações, em vez de reunir seus meios e realizar um amplo envolvimento [...]. O

único resultado [...] foi o de forçar as tropas paraguaias a um recuo de cerca de 60 Km”

Page 27: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

(BRASIL, 1935:172). No início de novembro de 1934, teve início uma ofensiva paraguaia,

progredindo sobre o Pilcomayo, afetando diretamente no poder político da Bolívia. “Os últimos

revezes sofridos pelas tropas bolivianas refletiram-se na situação política do país, provocando

a renúncia do Presidente da República Dr. Daniel Salamanca, que foi substituído pelo Dr.

Tejada Sorzano” (BRASIL, 1935:178). Além do óbice no aspecto político, o componente

militar revelava que “o Chaco Boreal está totalmente perdido para a Bolívia, a qual teria

dificuldade em recuperá-lo novamente pelas armas” (BRASIL, 1935:178).

Em 24 de janeiro de 1935, os bolivianos iniciaram um retraimento, sobre o qual

marchavam os paraguaios com intensidade (BRASIL, 1935:183). Face as dificuldades de

mediação entre as questões que envolviam a Bolívia e o Paraguai, pode-se apontar que a guerra

poderia perdurar por mais alguns anos. O Paraguai, apesar da difícil situação financeira vivida,

poderia suportar novos conflitos por algum tempo. Possuía armas tomadas do inimigo e teria

condições de abastecer seus caminhões, devido aos poços de petróleo e refinarias conquistadas

da Bolívia (BRASIL, 1935:194). A situação da Bolívia era mais favorável, pois estava arcando

com seus compromissos, pagando suas compras no exterior, em virtude da valorização do

estanho. Os recursos humanos bolivianos eram maiores do que os do Paraguai e estariam

dispostos a mobilizar um efetivo de 100 mil militares para prosseguir nos combates (BRASIL,

1935:195).

Em que pesasse as possibilidades dos contendores, “a Bolívia deseja ardentemente a paz

porque confia agora na doutrina de que a vitória não dá direitos. [...] o Paraguai não admite que

a Bolívia venha a conseguir por via diplomática o que não pôde obter pelas armas” (BRASIL,

1935:196). A intenção dos paraguaios era a de criar um novo Estado na América do Sul que

“abrangeria territórios, agora pertencentes à Bolívia, dos Departamentos de Santa Cruz de La

Sierra, El Beni e Tarija, [...] para o novo Estado ligar-se também à Argentina. Sua área seria de

700.000 quilômetros quadrados e sua população de meio milhão de habitantes” (BRASIL,

1935:189). Este intento paraguaio desconsiderava a existência ou não de uma consciência

separatista por parte dos bolivianos de Santa Cruz de La Sierra.

Sobre a alegação de neutralidade brasileira, “a definição real da situação política do

Brasil [...] é marcada pelo posicionamento pró-Bolívia. [...] O Paraguai aparece como um

potencial inimigo das questões de fronteiras” (RODRIGUES; SILVA, 2019:21).

A respeito do posicionamento argentino, “não resta dúvida que a Argentina auxiliou o

Paraguai, cedendo-lhe armamento e alguns aviões, depois de apagar, em seus arsenais, os

Page 28: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

escudos e distintivos argentinos” (BRASIL, 1935:91). Além disso, “a Companhia Argentina de

Navegação Mianovich cedeu gratuitamente ao Paraguai onze unidades, entre navios e

rebocadores, os quais são utilizados como transportes de guerra” (BRASIL, 1935:94).

Com o término da guerra, este foi o panorama apresentado pelas relações exteriores

entre Brasil e Paraguai:

Estabelecida a paz, porém, o Paraguai buscou construir uma rodovia ligando-

o ao Brasil. Em 1938, o embaixador paraguaio nos Estados Unidos e ex-

comandante na Guerra do Chaco, general José Félix Estigarribia, pleiteou e

obteve ajuda norte-americana, por meio de um empréstimo de US$ 3,3

milhões de dólares do Export-Import Bank, para a construção de um caminho

viário desde Assunção até a fronteira com o Brasil. Em 1939, na passagem de

Estigarribia pelo Rio de Janeiro, a caminho do Paraguai, onde assumiria a

Presidência da República, ambos os países assinaram o acordo para

construção da ligação ferroviária Campo Grande-Ponta Porã-Pedro Juan

Caballero-Concepción (DORATIOTO, 2012:440).

Para a análise da disputa do poder regional no âmbito da América do Sul, Projeção

Continental do Brasil, livro publicado em 1938 pelo então capitão do Exército Brasileiro Mario

Travassos, aborda os fenômenos de ordem geopolítica, atestando a demanda dos Estados sul-

americanos de possuírem saídas para o mar, suas aspirações pelo domínio das bacias

hidrográficas e detalha a situação do Brasil nesse complexo de fenômenos, pelo espaço e sua

posição geográfica (TRAVASSOS, 1938). Sobre a obra, Rodrigues e Silva (2019) assinalam

que esta fonte “tem por objetivo fundamentar a posição do Brasil na América do Sul e sinalizar

os rumos de uma política externa capaz de guiar o Brasil a uma posição de hegemonia regional,

superior à da Argentina” (RODRIGUES; SILVA, 2019:9). A consolidação do pensamento

geopolítico, principalmente no meio militar brasileiro, a partir dos anos 1930, intensificou a

rivalidade do Brasil com a Argentina (RODRIGUES; SILVA, 2019:11). No plano militar,

Mário Travassos revelou inquietação face a perda da supremacia militar na América do Sul para

a Argentina, algo que o Brasil manteve durante o período imperial (SILVEIRA, 2009:659).

O Chaco Boreal compreende o território entre a Bolívia, o Paraguai, a Argentina e o

Brasil, confinando politicamente “com o Brasil, pelo território de Mato Grosso [do Sul], desde

a embocadura do rio Apa até a Baía Negra, pelo rio Paraguai [...] com a Argentina, pelo braço

inferior do Pilcomayo, desde sua foz no rio Paraguai...” (BRASIL, 1934:23). Esta característica

Page 29: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

hidrográfica demonstra a inevitável apreensão do Brasil e da Argentina quanto às consequências

posteriores ao término da Guerra Paraguaio-boliviana. Enquanto que o rio Paraguai é navegável

durante todo o ano, o rio Pilcomaio é próprio para a navegação apenas no período de cheia”

(BRASIL, 1934:26). Um ponto favorável para a Argentina residia no fato de que a direção

natural para o escoamento de produtos para a exportação que passavam pela região do Chaco

“conduz diretamente a Buenos Aires, ao escoadouro da bacia platina. Essa circunstância pode

tornar essa direção dissociadora das mais perigosas” (TRAVASSOS, 1938:62). Apesar deste

direcionamento no sentido da Argentina, “o Brasil Platino [...] dispõe de portos com suficiente

capacidade de atração na costa e dos estímulos de países mediterrâneos que naturalmente

reagem contra a força centrípeta do Prata” (TRAVASSOS, 1938:91). Deste modo, havia um

predomínio econômico da vertente atlântica sobre a do Pacífico, aspecto esse que tanto o Brasil,

quanto a Argentina, possuíam vantagens em relação aos demais países sul-americanos

(TRAVASSOS, 1938:92).

Quanto ao aspecto geológico, a região chaquenha é sedimentada, “onde as águas são

salobras pela presença dos remanescentes depósitos de sal marinho [...] o solo em geral não é

fértil. Sua vegetação em geral raquítica e rarefeita em toda a extensão...” (BRASIL, 1934:24).

Este é um fator que traduziu-se na dificuldade de adoção de políticas públicas que promovessem

a ocupação do Chaco Boreal.

Sobre o interesse da Argentina na região, “o Paraguai tornou-se, assim, virtual

prisioneiro geopolítico da Argentina [...]. O comércio exterior paraguaio era feito pela via

fluvial [...] sob controle de empresas argentinas de navegação e de casas comerciais dessa

nacionalidade” (DORATIOTO, 2015:194). Neste contexto, podem ser observados aspectos que

caracterizam o poderio da Argentina na região do Chaco Boreal: dos 22 mil hectares do

território, 10,5 mil eram de propriedade argentina; dos 30 mil paraguaios habitantes, 18 mil

trabalhavam em estabelecimentos industriais argentinos; metade das cabeças de gado eram de

propriedade argentina; dos 420 quilômetros de vias férreas, 320 quilômetros eram de

propriedade dos argentinos; e os argentinos tinham investidos 40 mil pesos em

estabelecimentos comerciais (BRASIL, 1934:9). As vias férreas foram construídas pelos

argentinos devido “a exploração do quebracho, exigindo a penetração do Chaco, à medida que

rareavam a margem do rio os seus troncos cobiçados, determinou o emprego das vias férreas

[...] todas a serviço das companhias...” (BRASIL, 1934:21). Acrescentando as evidências do

controle argentino de grande parte da região do Chaco, “o petróleo que existe nas proximidades

Page 30: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

do rio Paraguai está em mãos de industriais argentinos” (BRASIL, 1934:10). De fato, percebe-

se que os interesses econômicos da Argentina tenderiam a favorecer seu apoio ao Paraguai, em

detrimento aos questionamentos da Bolívia.

Os seus esforços, por mais de uma vez, se conjugaram tenazmente na

recomposição política do vasto território [...] um plano de imperialismo

econômico que ela procura realizar [...]. Para isso tirou partido da situação

mediterrânea do Paraguai e da Bolívia e do determinismo geográfico da bacia

do Prata, veículo natural desses países para o Atlântico Sul, de cuja saída ela

é detentora (BRASIL, 1935:105).

No entanto, apesar da forte influência argentina na região, o Brasil havia conquistado

um bom posicionamento geográfico na região próxima à área de litígio:

E devemos observar que o território fronteiriço do Brasil com o Chaco [...] na

região Corumbá-Coimbra, reconhecido pela Bolívia como legitimamente

brasileiro, pelo tratado de 1867, [...] que garantiu ao Brasil o ‘uti-possidetis’

sobre aquelas terras; mas os paraguaios e mesmo os bolivianos alegam que

essas terras lhes pertenceram e lhes pertencem... (BRASIL, 1934:14).

Este tratado celebrado com a Bolívia, em 1867, reconheceu “a essa nação [Bolívia],

direitos ao longo daquele rio [Paraguai]. E, quando cedeu, em 1903, terras nas proximidades de

Forte de Coimbra, fê-lo na certeza de que [...] estava contígua ao território boliviano...”

(BRASIL, 1935:41). Sintetizando o aspecto da posição geográfica brasileira, “a via marítima

assegurou muitas vezes nossa unidade política, e as vias terrestres [...] conduziram a expansão

fomentadora da unidade social e econômica brasileira” (TRAVASSOS, 1938:93).

Por outro lado, “quando a Argentina, pelo tratado de 76 [1876] conformou a sua

fronteira pelo Pilcomaio, deu, do mesmo modo, testemunho de que reconhecia paraguaio o

território ao norte desse rio” (BRASIL, 1935:41).

Aproveitando da posição geográfica conquistada e motivado por considerações de

ordem geopolítica, “em 1895, o governo brasileiro levantou a hipótese de se estabelecer uma

ligação ferroviária com o Paraguai, de modo a reduzir a dependência do comércio guarani da

Argentina” (DORATIOTO, 2015:194). Além disso, o Brasil também vislumbrou criar meios

de atração da economia boliviana, através da construção de uma via férrea ligando Santa Cruz

a Corumbá, que seria ponto de articulação da Bolívia ao eixo portuário Santos – Rio Grande

Page 31: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

(SILVEIRA, 2009:654). Apesar de não ter sido concretizado tal empreitada pelo Brasil, no

período mencionado, fica perceptível a disputa existente entre o Brasil e a Argentina.

Os governantes paraguaios da década de 1920, todos da facção do Partido

Liberal liderada por Manuel Gondra, alteraram a política externa do país. Este

ascendeu à Presidência da República em 1920 e buscou romper a dependência

do país com relação à Argentina, aumentando os vínculos com os Estados

Unidos e o Brasil. Gondra empenhou-se em estabelecer uma ligação

ferroviária entre Brasil e Paraguai, de modo a que o comércio exterior guarani

pudesse utilizar-se de porto brasileiro. A estratégia gondrista, seguida por seus

sucessores, era a de compensar a influência argentina no país por meio de uma

aproximação com o Brasil, até se chegar a um equilíbrio com esses dois

vizinhos (DORATIOTO, 2015:195).

Por sua vez, o chanceler Eusébio Ayala, que viria a ser presidente paraguaio em 1921,

defendeu a construção de uma estrada de ferro, com capital brasileiro, ligando Foz do Iguaçu a

Assunção. Despe ponto, alcançava-se São Paulo por trem e, daí, o Rio de Janeiro, podendo-se

unir as capitais dos dois países (DORATIOTO, 2015:196).

Ainda no ano de 1927, há que ser destacada uma ação efetuada no campo militar

brasileiro:

O então presidente Washington Luís Pereira de Sousa determinou a inspeção

das fronteiras do Brasil até o final de seu governo, com o objetivo de estudar

as condições de povoamento e segurança, sendo então o General de Divisão,

Cândido Mariano da Silva Rondon, nomeado Inspetor da Fronteira

(RODRIGUES; SILVA, 2019:4).

No plano político, no Brasil, Getúlio Vargas, após a queda do presidente Washington

Luís em 1930, priorizou os assuntos internos. A partir de 1930, o Estado brasileiro enfatizou a

vigilância e a preocupação com a defesa das fronteiras, em virtude de dois conflitos

contemporâneos que ocorreram na América do Sul: a Guerra do Chaco e a Questão Letícia

(RODRIGUES; SILVA, 2019:3).

Do lado paraguaio, a atenção voltou-se para garantir a posse do Chaco, crescentemente

contestada pela Bolívia. Contestação que limitou a política externa paraguaia de fazer

movimento mais brusco de afastamento da Argentina (DORATIOTO, 2015:197). Com isso, o

Paraguai não conseguiu estabelecer uma relação equilibrada com Argentina e Brasil,

Page 32: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

acarretando na transferência da dependência da argentina para a brasileira. Transferência

decorrente da construção de Itaipu e da ligação rodoviária entre Paraguai e Brasil

(DORATIOTO, 2015:207).

Em relação à Bolívia, “não teve a grande procura de terras que fez a prosperidade do

lado paraguaio, embora concedesse franquias [...] as dificuldades de transporte do Alto Chaco

invalidam qualquer iniciativa de emprego de capital” (BRASIL, 1935:22).

Os interesses brasileiros eram “contrários ao desenvolvimento comercial argentino

porque viriam a constituir uma concorrência inconveniente ao escoamento e a importação dos

seus produtos” (BRASIL, 1934:16). Ao Brasil não era conveniente que a Argentina dominasse

a margem direita do rio Paraguai e, por isso, interessou-se para que a Bolívia ali permanecesse,

evitando inconvenientes sob os pontos de vista militar e econômico, face a possível perda das

relações comerciais com a Bolívia (BRASIL, 1934:17).

Apesar das tratativas para o desfecho da fase bélica da guerra, a Argentina movimentou-

se na tentativa de aumentar sua esfera de influência com a Bolivia, através do programa que

visava a construção de transversais ferroviárias passando pelo Chaco Boreal (BRASIL,

1935:107). O Brasil, atento a esta movimentação argentina, foi capaz de “chegar a tempo de

demonstrar ao Governo de La Paz, a oposição que ia entre a nova política de comunicações do

oriente boliviano com os compromissos de intercomunicações boliviano-brasileiras, oriundos

do Tratado de Petrópolis (BRASIL, 1935:106)”. Tal ação brasileira foi capaz de frustrar o plano

da expansão ferroviária argentina.

No entanto, a Argentina possuía suas ambições muito bem definidas:

Deslocada a mediação do conflito para a Sociedade das Nações, a interferência

indireta da Argentina fez-se sentir para protelar as negociações de paz: de

acordo com os interesses da Argentina, protetora e credora dos paraguaios, o

conflito só deveria cessar depois desses últimos se apossarem da região

petrolífera (BRASIL, 1935:110).

A visão da política intervencionista dos militares brasileiros é expressa no estudo

realizado por militares integrantes do Estado-Maior do Exército, à época da Guerra do Chaco:

Para nós é preferível que a Bolívia não venha a dispor da saída que pretende

sobre o rio Paraguai, para que, no futuro, toda a sua produção da região

oriental, que demande o Atlântico, não seja desviada para o Prata e sigam em

Page 33: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

parte, pelas estradas de ferro brasileiras em busca do porto de Santos

(BRASIL, 1935:119).

Entretanto, havia o receio de que “se a região Bahia Negra viesse a ser adjudicada à

Bolívia, todo o comércio do oriente boliviano entraria na órbita de influência econômica de

Buenos Aires e mais sólida se tornaria a bandeira argentina nas águas do rio Paraguai”

(BRASIL, 1935:119). No que se refere à essa posição, os militares brasileiros possuíam “temor

com a tradicional disputa de poder regional, e avalia, com bastante preocupação, a hegemonia

militar alcançada pela Argentina na América do Sul, no início do século XX” (RODRIGUES;

SILVA, 2019:20).

Em relação aos interesses militares, pode-se observar que não havia aliança do Brasil

com os dois países beligerantes, pois qualquer deles poderia vir a ser um inimigo em potencial,

aliado a um país mais forte. A continuação de Bahia Negra em mãos do Paraguai ou a sua

transferência à Bolívia, constituiria um trunfo para impedir que esses dois países entrassem ao

mesmo tempo em uma aliança contra o Brasil (BRASIL, 1935:120). As operações no setor de

Bahia Negra sempre preocuparam o Brasil porque se realizavam junto à sua fronteira seca na

região Corumbá – Coimbra. Todavia, o esforço principal dos paraguaios foi exercido na direção

de oeste, atraídos pelas jazidas de petróleo (BRASIL, 1935:185).

Precavendo-se de uma situação que poderia ser desfavorável ao Brasil, as primeiras

intervenções realizadas pelo Estado Brasileiro foi a integração do litoral com o interior, com a

construção de linhas telegráficas, e inspecionar a demarcação dos limites terrestres

(RODRIGUES; SILVA, 2019:3).

Quanto a ideia de se criar um novo país na América do Sul, “o Paraguai contaria com

um aliado certo, em uma nova guerra em que se empenhasse. O perigo se estenderia assim até

a bacia do Amazonas” (BRASIL, 1935:190). Caso este plano paraguaio obtivesse êxito, para o

Brasil as consequências seriam negativas. Porém, para a Argentina, seria bastante favorável,

uma vez que dominava economicamente o Paraguai e seria fácil estender esta influência ao

novo país. “Se fosse coroada de êxito a ideia do Estado-Tampão, as divergências de ordem

internacional seriam capazes de desencadear uma conflagração continental” (BRASIL,

1935:191).

A inspetoria militar da fronteira Madeira-Guaporé, por intermédio do capitão inspetor

Aluízio Pinheiro Ferreira, prestou informações ao comando da 8ª Região militar sobre a

situação do conflito no Chaco, afirmando que o grande perigo para os interesses brasileiros

Page 34: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

seria o avanço das tropas paraguaias até o coração continental, no território boliviano. Caso o

Paraguai conseguisse alcançar tal feito, promoveria o bloqueio do Altiplano até o Oriente

boliviano, o que traria consequências mais graves para o Brasil no subcontinente. A

possibilidade do controle da Argentina sobre o oriente boliviano era agravada pelo provável

separatismo do Departamento de Santa Cruz em relação ao Altiplano. A interpretação militar

do interesse brasileiro na Guerra do Chaco vai ao encontro da disputa com a Argentina pelo

predomínio na América do Sul (SILVEIRA, 2009:656-658).

De outro modo, a posição defendida pelo Adido Militar brasileiro seria “mudar a base

da frota brasileira de Montevidéu para Ladário. Isso redundaria em grande economia [...] em

dinheiro brasileiro, daríamos trabalho a operários e vida a Ladário...” (BRASIL, 1935:204).

Atualmente, a cidade de Ladário é a sede do 6º Distrito Naval, Organização Militar da Marinha

do Brasil. Já o município de Corumbá abriga a 18ª Brigada de Infantaria de Fronteira, além do

17º Batalhão de Fronteira, Organizações Militares do Exército Brasileiro.

Sobre as projeções do que o conflito poderia resultar, pode-se inferir que o ápice da

questão estaria “numa guerra de extermínio entre as duas Nações, ameaçando estender-se pelos

demais países sul-americanos, devido a certos erros de política ou por choques de interesses

internacionais” (BRASIL, 1934:35). Desta feita, pode-se ter uma melhor dimensão da

relevância estratégica do Chaco Boreal para o controle do poder regional na América do Sul.

O estudo sigiloso, realizado pelo Exército Brasileiro, no ano de 1934, possui

“importante significado político-militar para os interesses e decisões do Estado Brasileiro, pois

constitui em representação da visão mais ampla e confiável, [...] com relação à questão

geopolítica regional” (RODRIGUES; SILVA, 2019:20). Na perspectiva dos documentos

elaborados pelo Exército Brasileiro, pode-se verificar a posição militar brasileira quanto à

guerra e a política nacional, destacando-se a ação do Alto Comando do Exército sobre o conflito

(RODRIGUES; SILVA, 2019:25). Por fim, “não nos falta unidade geográfica – falta-nos,

ainda, traduzir politicamente os fatores que a manifestam” (TRAVASSOS, 1938:95).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Guerra do Chaco foi o maior conflito do século XX, envolvendo Estados da América

do Sul. O encerramento da fase diplomática deste conflito, em 1938, correspondeu a um marco

de rearranjo territorial e aprimoramento do campo diplomático pelos países deste

subcontinente.

Page 35: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

Em seguida, em 1939, o mundo entraria na maior das guerras já conhecidas na história

da humanidade. Alguns dos meios e técnicas militares empregados na Guerra do Chaco foram

empregados durante a Segunda Guerra Mundial.

Bolívia e Paraguai são os únicos Estados da América do Sul que não possuem saída para

o mar, além de serem dois dentre os países mais pobres da região. Por sua vez, Argentina e

Brasil rivalizaram pelo controle do poder regional sendo, portanto, os Estados que exerciam as

maiores influências na América do Sul.

Até a eclosão da Guerra, pode-se apontar que a Argentina conseguiu obter vantagens

em comparação ao Brasil, por conta de sua influência na economia paraguaia e tentativa de

estender-se pela Bolívia. Por sua vez, o Brasil, atento às movimentações da Argentina, buscou

equilibrar a disputa pelo poder regional na América do Sul.

O Império do Brasil manteve-se reunido em apenas um Estado, fato distinto do ocorrido

com a criação dos Estados colonizados pelos espanhóis na América, que fragmentaram-se e

deram origem a diversos países. Nesse sentido, para o Brasil, a demarcação e a delimitação de

suas fronteiras, apesar da extensão territorial, foram feitas com extrema preocupação,

destacando-se a habilidade política e diplomática nas relações com os seus vizinhos.

O presente estudo, ao abordar os aspectos da guerra propriamente dita, ateve-se à

observância do ponto de vista de militares brasileiros, de modo a permitir uma apreciação dos

sentimentos, as influências, as ações e as decisões daqueles que foram responsáveis por pensar

o Exército Brasileiro e o país no cenário internacional, num contexto de disputa geopolítica

com a Argentina, pelo controle do poder regional, por ocasião da Guerra do Chaco, no período

de 1932 a 1938.

5 REFERÊNCIAS

ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, G. E. do Nascimento; CASELLA, Paulo Borba. Manual

de Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2009.

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A dimensão retórica da historiografia. In

PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (Org.). O historiador e suas fontes. São

Paulo: Contexto, 2009, p. 223-249.

ARGAÑA, Luís A. El Tratado de Paz, Amistad y Límites com la República de Bolivia del

21 de Julio de 1938. Asunción: Imprenta Nacional, 1938. Disponível em:

http://www.portalguarani.com/1275_luis_andres_a_argana/14366_tratado_de_paz_amistad_y

_limites_con_la_republica_de_bolivia_del_21_de_julio_de_1938_dr_luis_a_argana_.html.

Acesso em: 10 Abr. 2020.

Page 36: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

BARROS, José D’Assunção. O Campo Histórico. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.

BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de

política. v.1. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998, 674 p.

BRASIL. Exército Brasileiro. A questão do Chaco Boreal (Estudo sigiloso). Rio de Janeiro:

Inspetoria do 1º Grupo de Regiões Militares, 1934.

BRASIL. Exército Brasileiro. Synthese das informações colhidas sobre a guerra

boliviano-paraguaya, no chaco boreal, e seus antecedentes (relatório secreto). Rio de

Janeiro: Imprensa do EME, 1935.

BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Segunda Comissão Brasileira Demarcadora de

Limites. Fronteiras do Brasil. Disponível em: http://scdl.itamaraty.gov.br/pt-

br/fronteiras_da_scdl.xml. Acesso em: 10 Abr. 2020.

CLAUSEWITZ, Karl Von. Da Guerra. Tradução de Teresa Barros Pinto Barroso. São Paulo:

Martins Fontes, 1979.

DORATIOTO, Francisco Fernando Monteoliva. A ocupação político-militar brasileira do

Paraguai (1869-1876). 2019. Disponível em:

https://www.academia.edu/28560464/A_ocupa%C3%A7%C3%A3o_pol%C3%ADtico_milit

ar_brasileira_do_Paraguai_1869_1876_.pdf. Acesso em: 12 Jul. 2019.

DORATIOTO, Francisco Fernando Monteoliva. Paraguai: Mediterraneidade e Política

Externa até 1989. Monções, v.4, n.7, jan./jun. 2015.

DORATIOTO, Francisco Fernando Monteoliva. Relações Brasil-Paraguai: afastamento,

tensões e reaproximação (1889-1954). Brasília: FUNAG, 2012.

ELTZ, André Henrique. Ocultação indígena na Guerra do Chaco (1932-1935). Revista

Labirinto, vol. 23, jul-dez, pp. 22-64. Porto Velho: UNIR, 2015.

GARCIA, Eugênio Vargas. Cronologia das relações internacionais do Brasil. Rio de

Janeiro: Contraponto, 2005.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. O Extremo Oeste. São Paulo: Brasiliense: Secretaria de

Estado da Cultura, 1986.

HUNTINGTON, Samuel Philips. O Soldado e o Estado: Teoria e Política das Relações entre

Civis e Militares. Tradução de José Lívio Dantas. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército,

1996.

KEEGAN, John. A Face da Batalha. Tradução de Luiz Paulo Macedo Carvalho. Rio de

Janeiro: Biblioteca do Exército, 2000.

MATTOS, Carlos de Meira. Geopolítica e teoria das fronteiras. Rio de Janeiro: Biblioteca

do Exército, 1990.

Page 37: A GUERRA DO CHACO: AS TENSÕES GEOPOLÍTICAS NA DISPUTA DE …

MOREIRA, Luiz Felipe Viel; QUINTEROS, Marcela Cristina; SILVA, André Luiz Reis da.

As relações internacionais da América Latina. Petrópolis: Vozes, 2010.

PEDROSA, Fernando Velôzo Gomes. A História Militar Tradicional e a “Nova História

Militar”. (Anais). XXVI Simpósio Nacional de História. São Paulo: ANPUH, Jul. 2011.

PRADO, Maria Lígia. A formação das nações latino-americanas. 11. ed. São Paulo: atual,

1994.

RODRIGUES, Fernando da Silva. Amazônia na Primeira República: através do acervo

documental do arquivo histórico do exército. Rio de Janeiro: Mauad X, 2020.

RODRIGUES, Fernando da Silva; SILVA, Érica Sarmiento da. A Guerra do Chaco vista

pelos olhares dos militares do exército brasileiro (1932-1935). Secuencia. Jan./Abr. 2019.

SILVEIRA, Helder Gordim da. A visão militar brasileira da Guerra do Chaco: projeção

geopolítica e rivalidade internacional na América do Sul. Antíteses, v. 2, n. 4, jul.-dez, pp.

649-667. Londrina: UEL. 2009.

TRAVASSOS, Mario. Projeção Continental do Brasil. São Paulo: Companhia Editora

Nacional, 1938.

VARGAS, Fábio Aristimunho. Formação das fronteiras latino-americanas. Fundação

Alexandre Gusmão, 2017.

VIANA, Hélio. História das Fronteiras do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Militar, 1948.