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A GRAÇA COMUM E O EVANGELHO CORNELIUS VAN TIL K. SCOTT OLIPHINT (ORG.) Graca_comum_evangelho_final.indd 3 30/07/18 19:18

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A GRAÇA COMUM

E O EVANGELHO

CORNELIUS VAN TILK. SCOTT OLIPHINT (ORG.)

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A posição doutrinária da Igreja Presbiteriana do Brasil é expressa em seus “símbolos de fé”, que apresentam o modo Reformado e Presbiteriano de compreender a Escritura. São esses símbolos a Con�ssão de Fé de Westminster e seus catecismos, o Maior e o Breve. Como Editora o!cial de uma denominação confessional, cuidamos para que as obras publicadas espelhem sempre essa posição. Existe a possibilidade, porém, de autores, às vezes, mencionarem ou mesmo defenderem aspectos que re#etem a sua própria opinião, sem que o fato de sua publicação por esta Editora represente endosso integral, pela denominação e pela Editora, de todos os pontos de vista apresentados. A posição da denomina-ção sobre pontos especí!cos porventura em debate poderá ser encontrada nos mencionados símbolos de fé.

Rua Miguel Teles Júnior, 394 – CEP 01540-040 – São Paulo – SP Fones 0800-0141963 / (11) 3207-7099 – Fax (11) 3209-1255

www.editoraculturacrista.com.br – [email protected]

Superintendente: Haveraldo Ferreira Vargas Editor: Cláudio Antônio Batista Marra

Graça Comum e o Evangelho © 2018 Editora Cultura Cristã. Traduzido de Common Grace and the Gospel

© 1972, 1977 Presbyterian and Reformed Publishing Company. Segunda Edição integralmente redigi-

tada do original com prefácio e anotações de K. Scott Oliphint © 2015 P&R Publishing. Texto baseado

em "e Works of Cornelius Van Til, 1895–1987. Usado com permissão de Presbyterian and Reformed

Publishing Company, 1102 Marble Road, P. O. Box 817, Phillipsburg, New Jersey, 08865, USA.

Conselho Editorial

Antônio Coine

Carlos Henrique Machado

Cláudio Marra (Presidente)

Filipe Fontes

Heber Carlos de Campos Jr

Marcos André Marques

Misael Batista do Nascimento

Tarcízio José de Freitas Carvalho

Produção Editorial

Tradução

Vagner Barbosa

Revisão

Mauro Filgueiras Filho

Carolina Curassá Rosa

Marcos Paixão da Silva

Editoração

Felipe Marques

Capa

Lucas Gonçalves

1a edição 2018 – 3.000 exemplares

T569g Til, Cornelius Van

Graça comum e o evangelho / Cornelius Van Til; traduzido por

Vagner Barbosa . _ São Paulo: Cultura Cristã, 2018

304 p.

ISBN 978-85-7622-749-6

Tradução Common grace and the gospel

1. Teologia 2. Apologética I. Título

CDU 2-12

me esperança – O Evangelho segundo José / Iain M. Duguid

atthew P. Harmon; traduzido por Elizabeth Gomes. _São Paulo:

Tradução de Living in the light of inextinguishable hope – <e

CDU 2-277

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Sumário

Prefácio de K. Scott Oliphint ...............................................................................7

Nota do autor ..........................................................................................................45

Prefácio .....................................................................................................................46

PARTE UM

1. A filosofia cristã da história .........................................................................51

2. A doutrina de Abraham Kuyper sobre a graça comum .....................67

3. Graça comum em debate ............................................................................77

I. Desenvolvimentos recentes .....................................................................77

II. Algumas sugestões para o futuro ..........................................................90

PARTE DOIS

4. Particularismo e graça comum .................................................................159

5. Graça comum e testemunho ....................................................................185

6. Uma carta sobre a graça comum .............................................................208

7. Uma resposta à crítica ................................................................................259

8. A Dogmática reformada de Herman Hoeksema ...............................272

9. Considerações finais ....................................................................................285

Bibliografia .............................................................................................................297

Índice de nomes ...................................................................................................301

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Nota do autor

Os três primeiros capítulos deste pequeno livro apareceram em 1947 como um panfleto intitulado Common Grace.1 O capítulo 4,

“Particularismo e graça comum”, apareceu com o mesmo título em 1952.2 O capítulo 5, “Graça comum e testemunho”, apareceu primeiro em Torch and Trumpet, dezembro 1954 – janeiro 1955, e foi poste-riormente publicado como um livreto.3 O capítulo 6, da mesma forma, apareceu em forma de livreto, com o mesmo título, “Uma carta sobre a graça comum”.4 O capítulo 7 apareceu originalmente como um apêndice em meu resumo de aulas sobre Teologia Sistemática.5 O capítulo 8 é uma resenha que apareceu em The Westminster Theological Journal em novembro de 1968.6 O capítulo 9 e o capítulo final não foram publica-dos anteriormente.

Pede-se que o leitor tenha em mente que estes capítulos não formam um conjunto unificado, nem são uma coletânea de anotações descone-xas. São tentativas separadas de lidar com aspectos particulares do tema único – a graça comum e sua relevância para o evangelho.

1 Van Til, Cornelius. Common Grace. Filadélfia: Presbyterian and Reformed, 1947.2 Van Til, Cornelius. Particularism and Common Grace. Phillipsburg: L. J. Grotenhuis, n.d.3 Van Til, Cornelius. Common Grace and Witness-Bearing. Phillipsburg: L. J. Grotenhuis, 1955.4 Van Til, Cornelius. A Letter on Common Grace. Phillipsburg: L. J. Grotenhuis, n.d.5 Van Til, Cornelius. An Introduction to Systematic Theology. Filadélfia: Westminster Theological Seminary, 1966.6 Van Til, Cornelius. Resenha de HOEKSEMA, Herman. Reformed Dogmatics. In: Westminster Theological Journal 31 (1968): p. 83–94.

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Prefácio

Este escritor, de tempos em tempos, dedicou-se ao estudo do tema graça comum. Os vários estudos breves publicados sobre este assunto

ao longo de vários anos são compilados neste volume. Originalmente, o tema da graça comum despertou meu interesse por-

que me pareceu ter importância básica para a apologética cristã. Aqueles que confessam a fé reformada são constantemente chamados a explicar como se pode fazer justiça ao “universalismo” do evangelho como apre-sentado na Escritura. Como é possível crer na eleição, especialmente na “dupla eleição”, sem fazer violência ao aspecto “quem quiser” do ensino bíblico?1 Como é possível crer na “depravação total” e ainda encontrar um “ponto de contato” para o evangelho entre as pessoas em geral?2

Não há como discutir adequadamente esses problemas, a não ser de-monstrando toda a “filosofia da história” como as confissões reformadas a

1 Acredita-se que há tensão entre a fé reformada e o “universalismo” do evangelho por causa da posição reformada sobre o decreto eterno de Deus, incluindo a eleição. Se for verdade, como diz a Confissão de Fé de Westminster, que, “pelo decreto de Deus e para a manifestação da sua glória, alguns homens e alguns anjos são predestinados para a vida eterna e outros preordenados para a morte eterna” (III.3), então pode-se supor que esse mesmo Deus, que ordena e decreta quem será salvo e quem não será, não pode sinceramente chamar todas as pessoas ao arrependimento. Assim, o “universalismo” (chamado de todas as pessoas ao arrependimento) do evangelho está em tensão com a eleição e reprovação do eterno decreto de Deus.2 A tensão entre uma noção reformada de depravação total e um “ponto de contato” apologético é diferente da tensão mencionada na nota anterior. Se todas as pessoas são totalmente depravadas por estarem verdadeiramente mortas em seus delitos e pecados, como a verdade da Escritura pode realmente “fazer contato” com essa depravação? Para usar uma analogia, o que se pode dizer a uma pessoa verdadeiramente morta que a faça responder? Se a condição humana é de morte espiritual, nada do que dissermos realmente alcançará as pessoas. No entanto, somos ordenados a pregar a Palavra para que as pessoas sejam salvas.

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Prefácio 47

ensinam. Quando a posição reformada da filosofia da história é apresentada com uma base abertamente bíblica, parece que as questões que se referem à “responsabilidade humana” e ao “ponto de contato” encontram sua solução na fé reformada e em nenhum outro lugar.

Mas, então, dizer isso não é dizer que a “solução” oferecida a estas ques-tões é uma solução “sistemática”, no sentido de que é logicamente pene-trável pelo intelecto humano. O “sistema de verdade” bíblico não é um “sistema dedutivo”. Os vários ensinos da Escritura não se relacionam entre si do mesmo modo que silogismos de uma série se relacionam entre si. O “sistema de verdade” da Escritura pressupõe a existência do Deus trino, interna e eternamente autocoerente que se revela ao ser humano com au-toridade suprema3

Superficialmente, e com palavras claras, tudo isso pode parecer indicar uma abordagem neo-ortodoxa à questão de Deus e de sua relação com o ho-mem. O que acontece é o oposto. A posição neo-ortodoxa da relação de Deus com o homem é baseada na ideia de que, visto que o homem não pode ter um conhecimento “sistemático”, isto é, um conhecimento puramente racio-nalista de Deus, ele deve, de um modo puramente racionalista, voltar à noção de que toda interpretação “sistemática” da “revelação” de Deus é nada mais que um “indicador” que aponta para algo de que o ser humano nada sabe. Isso significa que a posição neo-ortodoxa da relação de Deus com o homem é baseada na moderna noção filosófica, particularmente a pós-kantiana, da ver-dade como sendo nada mais que um conceito limitador. O homem é cercado por um vácuo e deve dirigir o “holofote” de seu intelecto a uma névoa impe-netrável.4 É em oposição a essa posição pós-kantiana de “conceito limitador”

3 Isto é monumentalmente importante, pois serve para colocar a Escritura em seu correto lugar fundamental na teologia. A teologia reformada é um sistema teológico. Ela confessa doutrinas bíblicas que acarretam e implicam umas às outras e, assim, é coerente e consistente. Mas isso não significa que as doutrinas sejam exaustivamente entendidas ou que sejam confessadas porque a nossa mente penetrou as suas profundezas, de modo que sabemos exatamente como todas elas se relacionam. Partindo dos parágrafos acima, Van Til está tornando explícito o fato de que não se pode simplesmente chegar ao ensino bíblico por um simples silogismo (dedutivamente). Pode-se inferir, por exemplo, que, visto que Deus escolheu seu próprio povo na eternidade e todos esses escolhidos necessariamente serão salvos, que não pode haver uma oferta sincera do evangelho a todas as pessoas ou uma ordem legítima de Deus para que todos se arrependam. Mas esse tipo de raciocínio, independentemente de quanto seja logicamente válido, não suporta o exame da Escri-tura. Extraímos nossas doutrinas da Escritura, e os ditames da razão devem servir à sistematização dessas doutrinas, não governá-la. Veja Oliphint, K. Scott. Reasons for Faith: Philosophy in the Service of Theology. Phillipsburg: P&R Publishing, 2006.4 Aqui Van Til admite que a relação da filosofia kantiana com a teologia neo-ortodoxa é enten-dida. Um “conceito limitador”, para Immanuel Kant, era algo postulado por ele para que possa-mos reconhecer os limites de nosso entendimento. Kant postulou um reino “numenal” como um conceito limitador, visto que nosso entendimento do reino “fenomenal” nunca pode se estender

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que falo de um conceito limitador cristão. Isso permite, segundo penso, apresentar um conceito verdadeiramente bíblico de “mistério” baseado no Deus da Escritura, que é luz e em quem não há treva nenhuma, por um conceito não cristão, particularmente pelo moderno conceito filosófico de mistério. No primeiro caso há um pensamento inteligível, não uma base exaustiva, intelectualmente penetrável para a experiência humana. No se-gundo, o homem não tem base inteligível para a sua experiência e, o que é pior, insulta o Cristo que veio lhe trazer luz e vida.5

Este é o ponto de vista que une os vários capítulos deste livro. As-sim, longe de ser um sistema de determinismo filosófico que reduz ao absurdo o conhecimento e a responsabilidade humana, a fé reformada, sendo imerecidamente baseada em exegese bíblica, é a única capaz de entregar ao homem a alegria pura do evangelho como revelada em Cristo e na Escritura.

às coisas como elas realmente são. Assim, o numenal era o “conceito limitador” do fenomenal. Grande parte da estrutura e do conteúdo filosófico de Kant foi assumido pela teologia neo-orto-doxa. Dizendo de forma simples, a neo-ortodoxia apresenta um Deus “totalmente outro” (i.e., “numenal”), que é “conhecido” (na medida em que é) somente em um evento revelatório. A “ver-dade” desse evento revelatório é estritamente empírico; ela vem não por meio da Escritura, mas diretamente de cima. Ainda assim, ela tem sua origem em um Deus que é “totalmente outro” e, assim, basicamente incognoscível. Assim, o que é conhecido no evento revelatório é um conceito limitador que nos dirige à “névoa impenetrável” de um Deus totalmente outro, incognoscível. O que Van Til está dizendo é o oposto da neo-ortodoxia porque (1) ele leva a sério a verdade da Escritura como Palavra de Deus e, assim, (2) a incompreensibilidade de Deus é pregada com base nessa verdade, não apesar dela.5 Isto significa que a posição cristã de mistério é que o mistério não é insuperável, visto que Deus é luz; não há nada misterioso ou que lhe seja desconhecido. A posição não cristã de mistério é que o mistério é insuperável, pois serve para “limitar” o que sabemos.

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PARTE UM

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CAPÍTULO 1

A filosofia cristã da história

A questão de onde se pode encontrar um ponto de contato com o mundo para a mensagem que traz é uma questão de grande interesse para todo

cristão.1 A doutrina da graça comum procura, pelo menos em alguma me-dida, oferecer essa resposta. Mas, para dar a resposta desejada, o conceito de graça comum deve ser estabelecido em seu contexto teológico correto. Ao discutir o problema, este artigo lida com (1) a filosofia cristã da história, da qual a doutrina da graça comum é uma parte; (2) a declaração moderna mais abrangente desse problema; (3) os elementos de destaque do debate recente sobre o assunto; e (4) algumas sugestões para estudo posterior.

O problema da graça comum2 pode, muito apropriadamente, ser considerado como parte ou aspecto do problema da filosofia da história. Dr. K. Schilder3 fala da obra de três volumes de Abraham

1 A questão do “ponto de contato” é multifacetada. Para Van Til, o “ponto de contato para o evan-gelho, então, deve ser buscado dentro do homem natural. No fundo de sua mente todo homem sabe que é criatura de Deus e prestará contas a ele”. Van Til, Cornelius. The Defense of the Faith, 4 ed. K. Scott Oliphint, org. Phillipsburg: P&R Publishing Company, 2008, p. 116. Incluído neste ponto de contato está o relacionamento pactual do homem, pois todas as pessoas cercadas por um ambiente exaustivamente pessoal, que é a presença de seu Deus e Criador. Assim, estando sem-pre em contato com a verdade, por dentro e por fora, podemos recorrer a essa verdade em nossa defesa do cristianismo. Para mais sobre ponto de contato, veja Van Til. Defense of the Faith, 90n2.2 Embora a questão seja assunto de debate, por conveniência, não colocaremos o termo “graça comum” entre aspas. Usamos o termo, como outras pessoas, livremente.3 Klaas Schilder (1890–1952) talvez seja mais conhecido como pai das Gereformeerde Kerken (Vrijgemaakt), ou “igrejas libertadas” (conhecidas como Gereformeerde Kerken onderhoudende artikel 31 van de Kerkenorde – “igrejas reformadas que apoiam o artigo 31 da Ordem da Igreja”). Schilder foi educado no Gereformeerde Gymnasium de Kampen, de 1903 a 1909. Em 1914,

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Kuyper4 sobre “graça comum” como um épico. E é verdadeiramente um épico. Ao apresentar a sua posição sobre a graça comum, Kuyper coloca todo o curso da cultura humana em seu campo de visão. Ele afirma que a graça comum é, em grande medida, responsável por fazer da história como um todo o que foi, é e continuará sendo. Por outro lado, ao rejeitar a doutrina da graça comum, o Rev. Herman Hoek-sema5 em seus vários escritos também coloca toda a história como seu campo. Ele argumenta que a história pode ser mais bem explicada se rejeitarmos a graça comum. É bom, então, logo no início perguntar-mos a nós mesmos sobre a filosofia da história. Fazer isso neste estágio inicial do nosso artigo nos ajudará a entender aqueles que afirmam e aqueles que negam a graça comum.

Em qualquer filosofia da história, as pessoas procuram sistematizar os “fatos” da história. Os muitos “fatos” da história devem ser harmo-nizados segundo um padrão. Ou, se desejarmos, podemos dizer que os muitos “fatos” da história devem ser considerados à luz desse padrão.

graduou-se com honras na escola teológica da Gereformeerde Kerken de Kampen. De 1914 a 1933, ministrou em seis diferentes congregações. Depois de obter seu Ph.D. na Universidade de Erlangen, Alemanha, sua denominação o chamou para substituir A. G. Honig como professor de Teologia Sistemática. Schilder foi preso por se opor aos nazistas, depois do que, por outras razões, foi deposto do ministério, em agosto de 1944. Isso levou à fundação das igrejas libertadas naquele ano. A controvérsia seguia Schilder; suas opiniões sobre a aliança e a igreja eram controvertidas. De importância específica aqui é que ele debateu com Herman Hoeksema sobre a graça comum e a aliança. Muito popular entre as obras de Schilder é a tradução de seu Christus en cultuur. Veja Schilder, Klaas. Christ and Culture. Trad. G. van Rongen e W. Helder. Winnipeg: Premier, 1977. Para mais informações sobre Schilder, veja Geertsema, J. Always Obedient: Essays on the

Teachings of Dr. Klaas Schilder. Phillipsburg: P&R Publishing, 1995.4 Abraham Kuyper (1837–1920) foi teólogo e político. Primeiro-ministro da Holanda de 1900 a 1905, Kuyper tentou aplicar a teologia calvinista na área da política. Na teologia, é mais conhecido por suas contribuições nas áreas de cosmovisão cristã e enciclopédia teológica e pelo desenvolvi-mento da doutrina reformada da graça comum. Veja Kuyper, Abraham. Encyclopedia of Sacred Theology. Nova York: Scribner’s, 1898; Lectures on Calvinism. Grand Rapids: Eerdmans, 1978; De gemeene gratie [a graça comum]. Kampen: Kok, 1931–32, 2ª impr.; Souvereiniteit in eigen kring [A soberania em sua própria esfera]. Amsterdã: Kruyt, 1880. Para uma excelente análise da cosmovisão de Kuyper, veja Heslam, Peter S. Creating a Christian Worldview: Abraham Kuyper’s Lectures on Calvinism. Grand Rapids: Eerdmans, 1998.5 Não é exagero afirmar que foi, primariamente, Herman Hoeksema (1886–1965) quem começou o debate sobre a graça comum em círculos reformados no século 20. Hoeksema se opôs aos “três pontos sobre a graça comum” adotados pela Igreja Cristã Reformada em 1924 (veja o apêndice em Van Til. The Defense of the Faith). Sua oposição à noção de graça comum levou à sua deposição do ofício da Igreja Cristã Reformada, após o que ele (e alguns outros que concordavam com ele) começou as Igrejas Protestantes Reformadas da América. Hoeksema foi pastor e professor dessa denominação de 1924 a 1964.

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A filosofia da história é, portanto, um aspecto do desconcertante pro-blema Um e muitos.6

Além disso, na filosofia da história, os “fatos” são considerados sob o aspecto de mudança. Se há outras ciências que tratam primariamente com o que é “estático”, a filosofia da história trata primariamente do compor-tamento “dinâmico” da “realidade”. É natural, então, que, ao lidar com o problema da filosofia da história, a própria existência de um único padrão desses muitos, particularmente desses muitos mutáveis, seja questionada. Isso significa, para quem não baseia seu pensamento em pressupostos cris-tãos, que é natural questionar a existência de um padrão totalmente abran-gente presente em, e sob os “fatos” mutáveis da história. Para aqueles que baseiam seu pensamento em pressupostos cristãos, por outro lado, seria antinatural ou mesmo contraditório fazer isso. Para essa pessoa, o fato mais básico de todos é a existência do Deus trino. Ela aprendeu sobre esse Deus na Escritura. Para o cristão, o estudo da filosofia da história é um esforço para ver a vida toda sempre à luz do padrão que lhe é mostrado no Monte.7 Ele não consegue questionar, mesmo quando não consegue explicar total-mente, o padrão da Escritura, à luz do qual examina os fatos da história.

Mas interpretar os fatos – todos os fatos, especialmente os fatos em seu aspecto mutável – à luz de padrão já totalmente estabelecido na Palavra de Deus é ser “anticientífico” aos olhos da ciência, da filosofia e da teologia atuais. A atual metodologia pressupõe a não criação de todos os fatos do universo; ela admite a supremacia da mudança. Nisso, ela segue os gregos. Com Cochrane,8 podemos, portanto, falar de posição clássico-moderna e colocá-la em oposição à posição cristã.9

6 O “desconcertante problema Um e muitos” é um problema filosófico que enfoca como podemos relacionar fatos individuais (os muitos) com uma categoria mais geral ou universal (o um). Deve-se observar que isso não é um problema que incomoda a maioria das pessoas, mas é um problema perene na história da filosofia. Quando lidam com coisas como problema de significado, os filóso-fos procuram mostrar como afirmações tais como “eu vi um cachorro” são significativas. Para que essa afirmação faça sentido, deve haver alguma noção de “cachorro” que seja mais que um fato individual, de modo que qualquer pessoa que ouça a afirmação empregue uma noção universal de “cachorrice” para entender a afirmação sobre um cachorro individual que foi visto. Tem que haver alguma relação entre os muitos (cachorros individuais) e o um (cachorrice).7 Van Til provavelmente está se referindo aqui à planta do templo que Salomão construiu, que foi dada a Davi, seu pai, no monte Moriá. Van Til usou isso como uma analogia de como os cristãos devem pensar sobre o seu mandato cultural. Como Salomão ao construir o templo, eles devem pensar nisso em termos do que é estabelecido na palavra de Deus.8 COCHRANE, Charles Norris. Christianity and Classical Culture. Oxford: Clarendon Press, 1940.9 Charles N. Cochrane (1889–1945) era canadense. Estudou na Universidade de Toronto e em Oxford e exerceu sua carreira pedagógica na Universidade de Toronto. O livro ao qual Van Til se refere mostra o impacto do cristianismo sobre o mundo greco-romano.

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O crente e o não crente diferem no início de toda investigação cons-ciente de si mesma. A “facticidade” do primeiro fato que encontram está em questão. As várias escolas de pensamento não cristãs têm dife-rentes princípios de individualização.10 Alguns encontram seu princípio na “razão”, enquanto outros o encontram no “continuum espaço-tempo”. Mas todos concordam, pelo menos por implicação, que ele não deve ser encontrado onde o cristão o encontra – no conselho de Deus.11

Às vezes é sugerido que, embora haja uma diferença básica entre a explicação cristã e a não cristã, não há essa diferença na mera descrição de fatos. Não podemos concordar com isso. A moderna descrição cien-tífica não é a coisa inocente que nós, como cristãos, muito facilmente pensamos que é. O famoso “ictiologista” de Sir Arthur Eddington sugere isso.12 Esse “ictiologista” explora a vida do oceano. Ao fazer um levanta-mento de suas descobertas, ele faz duas afirmações: (1) “Nenhuma cria-tura marinha tem menos de duas polegadas de comprimento; (2) Todas as criaturas marinhas têm guelras”.13 Se um observador questionar a pri-meira observação, o “ictiologista” responde que, em seu trabalho como cientista, não está interessado em um “reino objetivo de peixes”. Os únicos peixes que existem para ele são aqueles que ele pegou em sua rede. Ele ousa dizer: “O que minha rede não pode pegar não é peixe”. Isso significa que descrição é padronização. Este é um ato de definição, é uma afirmação de o que e de que. Esta é uma afirmação de conotação e de denotação. A própria descrição é uma explicação.14

10 Um princípio de individualização é aquilo pelo qual uma coisa pode ser distinguida de outra. Re-cuar pelo menos até Aristóteles, cujo princípio de individualização estava ligado à sua teoria de forma e matéria, é um dos principais aspectos do problema “um e muitos” que Van Til menciona acima.11 Van Til destaca “razão” e “continuum espaço-tempo”, aparentemente, devido à discussão de Cochrane desses assuntos no livro mencionado acima. Por “conselho de Deus”, Van Til se refere ao entendimento e à harmonia do Deus trino em criar e controlar tudo que existe. O que, por fim, distingue uma coisa da outra é a determinação de Deus na criação. Como veremos, como o conselho de Deus é o conselho do Deus trino, o problema de um e muitos tem sua raiz no fato de que Deus é um (em essência) e três (em pessoas).12 Sir Arthur Eddington (1882–1944) foi um dos mais famosos astrofísicos do século 20. Como Van Til observa na próxima nota, a analogia ictiologista de Eddington é encontrada em sua Philoso-phy of Physical Science, que publicou palestras originalmente dadas em 1938. O propósito dessas palestras era tratar de epistemologia científica.13 EDDINGTON, Arthur. The Philosophy of Physical Science. Cambridge: University Press, 1939, p. 16.14 No contexto do argumento de Eddington, a rede do ictiologista define e explica o que é “peixe”. Se alguém perguntar sobre criaturas marinhas que têm guelras e têm menos de duas polegadas de comprimento, pela definição do ictiologista, essas criaturas não podem ser peixes porque a sua rede não pode pegá-las. Assim, como Van Til observa, a explicação é reduzida à definição e a conotação reduzida à denotação. A própria definição de uma coisa é seu significado.

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A atual descrição científica não é meramente explicação, mas é uma explicação definitivamente anticristã. A atual metodologia científica quer ser antimetafísica.15 Ela alega não fazer pronunciamentos sobre a natureza da realidade como um todo. Superficialmente, parece ser muito modesta. Na verdade, porém, a atual metodologia científica não faz pro-nunciamentos sobre a natureza da realidade como um todo. Quando o ictiologista de Eddington diz que não está interessado em um “reino ob-jetivo de peixes”, ele não está sendo totalmente honesto consigo mesmo. Ele está muito interessado em que esse “reino objetivo de peixes” sirva como fonte para seus peixes cientificamente reconhecidos. Alguns des-ses peixes “objetivos” devem ser classificados como peixes que têm uma posição científica. Alguns deles, pelos menos, devem ser capturáveis. As-sim, os “fatos”, isto é, os fatos “objetivos”, para se tornarem fatos que têm posição científica, devem ser padronizáveis. Mas, para serem padro-nizáveis, para o cientista moderno, esses fatos devem ser absolutamente amorfos. Isso significa que devem ser totalmente maleáveis. Eles devem ser como a água que deve ser transformada em gelo por um refrigerador.16

O cientista, mesmo quando alega estar meramente descrevendo fatos, admite que pelo menos alguns aspectos da realidade são não estruturais

na natureza. Seu pressuposto é mais amplo que isso. Ele realmente ad-mite que toda a realidade é não estrutural na natureza. Para fazer um punhado de cubos de gelo, a mãe precisa de uma pequena quantidade de água. Mas, para manter os cubos de gelo intactos até a hora de servir o suco, ela deve controlar toda a situação. Ela deve se certificar de que, enquanto isso, seu filho não usará os cubos de gelo para fins pessoais. Da mesma forma, o cientista, para que sua descrição de uma pequena área, ou de um aspecto ou de uma dimensão da realidade se mantenha, deve admitir que a realidade como um todo é não estrutural na natureza até que seja estruturada pelo cientista. A ideia de um fato “bruto”, to-talmente não interpretado, é o pressuposto para se encontrar qualquer

15 Isto é, a atual metodologia científica quer explicar os “fatos” sem fazer referência a algo que seja insuperável ou a algo que transcenda os “fatos” e lhes dê significado.16 O ponto de Van Til aqui é que o peixe que o ictiologista define e explica por seus dois critérios devem ter vindo de algum lugar; eles devem ter estado em algum lugar antes de serem descritos e explicados, quando foram “apanhados” pelo ictiologista. Onde quer que estivessem, contudo, não puderam ser definidos (daí a noção de “amorfos” de Van Til) e por isso podem, portanto, ser explicados segundo qualquer critério que o cientista escolher (daí a noção de “maleáveis”). Como a água transformada em cubos de gelo, eles só têm forma e definição quando forma e definição lhes são impostas por fatores externos.

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fato de posição científica.17 Um “fato” não se torna um fato, segundo os pressupostos dos cientistas modernos, até que tenha sido transformado em um fato pelo poder definidor supremo da mente humana. O cientista moderno, fingindo ser meramente um descritor de fato, é, na realidade um fabricante de fatos. Ele fabrica fatos quando os descreve. Sua própria descrição é a manipulação de fatos. Ele precisa de “material’ para fabricar fatos, mas o material de que ele precisa deve ser material bruto. Qual-quer outra coisa estraga seu maquinário. Os dados não são primariamente dados, mas primariamente extraídos.18

Parece, então, que um juízo universal sobre a natureza de toda a exis-tência é pressuposto até mesmo na “descrição” do cientista moderno. Pa-rece, também, que esse juízo universal nega o coração do ponto de vista cristão-teísta.19 De acordo com qualquer posição cristã coerente, Deus, somente Deus, tem poder definidor final. A descrição ou plano de Deus do fato faz com que ele seja o que é. O que o cientista moderno atribui à mente humana o cristianismo atribui a Deus. Na verdade, o cristão afirma que Deus nem mesmo precisa de uma matéria informe para a criação de fatos. Mas esse ponto não anula o argumento de que aquilo que o cristão atribui a Deus o cientista moderno, mesmo quando engajado em mera des-crição, virtualmente atribui ao ser humano. Dois criadores, um real e outro imaginário, estão em combate mortal entre si. O Deus trino completo e

17 A noção de “fato bruto” tem sido mal interpretada na teologia e na apologética de Van Til. Às vezes se pensa que o ponto de Van Til era que, visto que não há fatos brutos, todos os fatos são o que são em virtude de como os interpretamos. Isso, porém, tem mais a ver com o relativismo pós-moderno e nada a ver com a interpretação de fato por Van Til. Para Van Til, um fato bruto é um fato mudo. Isto é, é um fato que não “diz” nada; ele não tem significado até que uma pessoa, nesse caso, um cientista, lhe dê significado. Assim, de acordo com Van Til, não há fatos brutos. Mas a razão pela qual não há fatos brutos não é que todo fato leva consigo a nossa interpretação. Pensar dessa forma é se tornar presa do relativismo. Para Van Til, não há fatos brutos porque todos os fatos são criados. Como criado, portanto, todo fato leva consigo a interpretação que lhe foi dada por Deus. Ele fala e traz os fatos à existência e fala por meio daquilo que criou. Mas a ciência não cristã não tolera qualquer noção de criação de fatos por Deus.18 As referências a material “bruto” e a dados que são primariamente extraídos são maneiras dife-rentes de descrever a postura antimetafísica da ciência. Visto que os fatos são considerados fatos “brutos”, eles só podem ter sentido depois de definidos pela ciência; eles só podem ter estrutura depois que ela é determinada pelo cientista. Assim, os fatos só podem ser o que são quando o cientista descreve e delineia o que eles são. Antes dessa descrição, eles estão simplesmente “lá” para serem extraídos. Essa postura tem suas raízes em Immanuel Kant, que efetivamente eliminou a metafísica como fonte ou fundamento do significado.19 Este é um ponto crucial para se entender na apologética de Van Til. Uma vez que a ciência ad-mite a noção de “fatos brutos”, ela faz também uma afirmação universal de que os fatos não são o que o cristianismo diz que são, a saber, evidência e revelação do verdadeiro Deus.

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independente do cristianismo e o homo noumenon, o homem autônomo de Immanuel Kant, não podem ser supremos.20

Concluímos, então, que, quando as duas partes, o crente e o incrédulo, são epistemologicamente autoconscientes e, como tais, engajadas no esforço interpretativo, não se pode dizer que tenham algum fato em comum.21 Por outro lado, deve ser afirmado que eles têm todos os fatos em comum. Am-bos lidam com o mesmo Deus e são feitos à imagem de Deus. Em resumo, eles têm em comum a situação metafísica. Metafisicamente, as duas partes têm todas as coisas em comum, enquanto, epistemologicamente, não têm nada em comum.22

Os cristãos e os não cristãos têm filosofias do fato opostas. Eles tam-bém têm filosofias da lei opostas. Eles diferem sobre a natureza da diver-sidade; também diferem sobre a natureza da unidade. Correspondendo à noção de força bruta está a noção de lei abstrata impessoal, e correspon-dendo à noção de fato interpretado por Deus está a noção de lei inter-pretada por Deus. Entre os filósofos não cristãos há várias noções sobre o fundamento dos universais da experiência humana. Alguns encontram esse fundamento “objetivamente” no universo. Outro, “subjetivamente”, no homem. Mas todos concordam, pelo menos por implicação, que ele não deve ser encontrado onde o cristão o encontra – no conselho de Deus. O cientista não cristão sentiria dificuldades se tivesse que sustentar uma filosofia cristã do fato. Ele se sentiria limitado em número e em tipos de fato que poderia considerar. Da mesma forma, o cientista não cris-tão sentiria dificuldades se tivesse que sustentar a filosofia cristã da lei. Para ele, isso introduziria a noção de capricho na ciência. A lei, segundo

20 A filosofia de Kant é difícil de resumir. Como foi dito na nota 18, a filosofia de Kant está por trás da tendência antimetafísica da ciência secular. O homo noumenon da filosofia de Kant é homem autônomo porque é o eu real, independente de todos os limites fenomenais.21 A importante noção de ser “epistemologicamente autoconsciente” será repetida frequentemen-te na discussão da graça comum e da apologética de Van Til. Observe como Van Til qualifica a situação: “Quando as duas partes são epistemologicamente autoconscientes e, como tais, engajadas no esforço interpretativo”. Van Til é cuidadoso em deixar claro que as diferenças entre o cristão e o não cristão vêm à tona na medida em que as partes têm consciência de suas diferenças epistemo-lógicas e interpretativas e as explicitam. Se uma das partes não for epistemologicamente autocons-ciente, isso não significa que essas diferenças não existam, significa apenas que elas não são claras.22 É necessário enfatizar esta declaração e mantê-la em mente, visto que muitos que interpretam mal Van Til ou não a conhecem ou a ignoram totalmente. Metafisicamente, os cristãos têm todas as coisas em comum com os não cristãos, pois todos têm o mesmo Deus trino, vivem no mesmo mundo criado, foram criados à imagem de Deus etc. Epistemologicamente, porém, não têm nada em comum, pois o não cristão interpreta todas as coisas sem referência ao verdadeiro Deus e à sua criação. Para o não cristão, o conselho de Deus e seu plano são automaticamente excluídos desde o início de toda e qualquer interpretação da realidade. Como afirmado na nota anterior, esse motivo epistemológico é explícito na medida em que há autoconsciência epistemológica.

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ele imagina, deve ser algo que não tem nada a ver com personalidade. Quando Sócrates perguntou a Eutífron se “o piedoso ou santo é amado pelos deuses porque é santo ou é santo porque é amado pelos deuses”, ele tentou deixar claro que toda lei deve, pela natureza do caso, estar acima de toda personalidade.23 Para encontrar a essência de algo devemos, se-gundo Sócrates, ir além daquilo que se pensa sobre essa coisa. Dizer que os deuses amam o santo não nos dá discernimento sobre a essência da santidade. É, como diriam os escolásticos, meramente dar uma definição extrínseca de santidade. O Bom, o Verdadeiro e o Belo, como princípios abstratos, pairam sobre todos os deuses e os homens – estes são os uni-versais do pensamento não cristão.24 Até as chamadas filosofias persona-listas,25 como as de Bowne,26 Knudsen [sic],27 Brightman,28 Flewelling29 e

23 Van Til está citando Eutífron, de Platão, em que Sócrates está inquirindo sobre a natureza do santo (ou do bom). Se o “santo é amado pelos deuses porque é santo”, então a santidade (ou bon-dade) é insuperável; a causa de os deuses o amarem está na própria santidade. Se, por outro lado, alguém é “santo porque é amado pelos deuses”, então são os deuses que são insuperáveis, e o que eles determinam que seja santo é santo (ou bom).24 Platão defendia que ideias como o Bom, o Verdadeiro e o Belo, e não os deuses, eram insuperá-veis. Eles são “princípios abstratos” porque são, por definição, impessoais. Eles têm sua origem em si mesmos, não em uma pessoa.25 Van Til se interessou pela filosofia personalista e se envolveu com ela em toda a sua carreira. Como ele diz em sua palestra (veja adiante), o personalismo era uma filosofa e uma teologia, e tem suas raízes na moderna teologia metodista. A interação mais antiga de Van Til publicada foi em uma resenha do livro de Knudson, Albert. Doctrine of God. Christianity Today 1, no. 8 [dezembro de 1930]: p. 10-13. A definição com a qual Van Til parece trabalhar foi dada por Knudson em sua Philosophy of Personalism. Nova York: Abingdon, 1927, p. 87: “à luz destes fatos, podemos definir personalismo como aquela forma de idealismo que dá igual reconhecimento aos aspectos pluralistas e monísticos da experiência e que encontra na unidade consciente, na identidade e na atividade livre da personalidade a chave para a natureza da realidade e a solução dos problemas máximos da filosofia”. Esta citação e uma das interações de Van Til com o personalismo podem ser encontradas em “Boston Personalism”, uma palestra dada na faculdade de Escola de Teologia da Universidade de Boston em 6 de março de 1956 (não publicada). Veja também Van Til. The Case for Calvinism. Filadélfia: Presbyterian and Reformed, 1964, p. 62–64,78–79.26 Borden Parker Bowne (1847–1910), teólogo metodista e personalista de Boston, recebeu seu B.A. (1871) e M.A. (1876) na Universidade de Nova York. Tornou-se professor de Filosofia na Universidade de Boston em 1876 e lecionou ali por 30 anos. É muito conhecido por seu livro Metaphysics: A Study in First Principles. Nova York: Harper & Brothers, 1882.27 Albert C. Knudson (1873-1953) recebeu um A.B. da Universidade de Minnesota, Mineápolis (1893), e um S.T.B. e Ph.D. da Universidade de Boston (1896; 1900), onde, presumivelmente, foi aluno de Bowne. Ele não lecionou na Universidade de Boston imediatamente após sua gradua-ção, mas posteriormente lecionou em sua escola de Teologia.28 Edgar S. Brightman (1884–1953) recebeu seu B.A. em 1906 e seu M.A. em 1908, ambos na Universidade Brown, e seu Ph.D. na Universidade de Boston, em 1912. Editou a obra intitulada Personalism in Theology: A Symposium in Honor of Albert Cornelius Knudson. Boston: Boston University Press, 1943.29 Ralph Tyler Flewelling (1871–1960) estudou na Universidade de Michigan, Alma College, e

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outros ainda são não personalistas no fim.30 Seja na ciência, na filosofia ou na religião, o não cristão sempre procura um mediador que esteja entre ou acima de Deus e de si mesmo, como corte final de apelação.

O crente e o não crente têm filosofias do fato opostas e filosofias da lei opostas.31 Por trás disso, eles também têm opiniões opostas sobre o ser humano. Correspondendo à ideia de fato bruto e lei impessoal está a ideia de homem autônomo.32 Correspondendo à ideia de fato e lei contro-lados por Deus está a ideia de ser humano controlado por Deus. A ideia de criação a partir do nada não é encontrada na filosofia grega nem na moderna. A ideia de criação causal é odiosa até mesmo aos críticos da vi-são clássico-moderna, citada acima, como Cochrane, Reinhold Niebuhr33 e os teólogos dialéticos.34 Somente pensadores ortodoxos defendem a ideia de criação. Consequentemente, somente os pensadores ortodoxos se sentem compelidos a questionar toda a metodologia clássico-moderna.

também no Instituto Bíblico Garrett (Evanston) e na Universidade de Boston (Ph.D., 1909). Tor-nou-se professor e catedrático do departamento de Filosofia da Universidade do Sul da Califórnia e, em 1918, foi designado catedrático das Forças Expedicionárias Americanas em Beaune, França. Foi ordenado na Methodist Episcopal Church em 1896. Flewelling foi fundador e editor da revista filo-sófica The Personalist, lançada em 1920, renomeada como Pacific Philosophical Quarterly, em 1980.30 Para ver por que o personalismo ainda é não personalista no fim, veja Van Til, “Boston Perso-nalism”, citado acima. Em resumo, o foco do personalismo na personalidade humana se torna um foco em uma personalidade humana abstrata. Todo foco em algo abstrato é, por definição, “não personalista no fim”. Isto se refere à ênfase de Van Til no “pensamento concreto”.31 O crente afirma que os fatos e as leis são criados e controlados por Deus, mas o não crente não concorda.32 Essas três categorias – fato bruto, lei impessoal e homem autônomo – são centrais para toda a apologética de Van Til e são, de muitas maneiras e com ênfases variadas, pressupostas por todos que rejeitam o cristianismo. A extensão em que a pessoa tem consciência desses pressupostos depende da medida em que ela é “epistemologicamente autoconsciente”. Fatos brutos são fatos sem sentido a menos que alguém lhes dê interpretação; eles são a antítese de fatos criados, em e por meio dos quais Deus fala. A noção de lei impessoal pressupõe que a realidade (ou pelo menos aspectos dela) tem uma estrutura como de lei, que nenhum ser pessoal mantém ou controla. O homem autônomo pressupõe que o ser humano não é criado nem controlado por Deus, mas é lei para si mesmo. Entender estas três categorias como pressupostos básicos de todos os não cristãos proporciona importante discernimento sobre aquilo que Van Til quer defender.33 Reinhold Niebuhr (1892–1971) foi contemporâneo de Van Til, teólogo e pastor neo-ortodoxo muito influente. Filho de imigrantes alemães, Niebuhr estudou no Seminário Teológico Éden e se graduou Bacharel em Divindade na Yale Divinity School.34 Entre os “teólogos dialéticos”, Van Til certamente tem em mente Karl Barth (1886–1968) e Emil Brunner (1889–1966). A teologia dialética, falando de modo geral, é outro termo para a neo-ortodoxia (às vezes também chamada de “teologia da crise” – veja adiante), que procura afir-mar pela negação e pelo paradoxo. Por exemplo, em seu comentário de Romanos, Barth alega que Deus deve ser entendido como “a não existência do mundo”. Para mais sobre Barth e Brunner, veja Van Til, Cornelius. The New Modernism: An Appraisal of the Theology of Barth and Brunner. 2ª ed. Filadélfia: Presbyterian and Reformed, 1947.

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