a fundamentação deficiente das decisões interlocu- tórias ... · porque ausentes os mesmos...

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Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000 67 A fundamentação deficiente das decisões interlocu- tórias (ou: presentes os pressupostos legais, indefiro a liminar) Fabrício Antonio Soares Assessor de Desembargador Federal I. A fundamentação como causa da aplicação do direito ao caso concreto, e não como mera explicação Os gramáticos, de forma geral, diferenciam com nitidez a explicação, de um lado, e a causa, de outro, especialmente quando estudam as orações coordenadas ex- plicativas e as subordinadas adverbiais causais. Aí se vê que uma mesma conjunção, aparentemente numa mesma estrutura sintética, pode traduzir duas idéias diversas: explicação e causa. JOSÉ DE NICOLA e ULISSES INFANTE 1 ensinam que as orações coordenadas explicativas “são introduzidas pelas conjunções coordenativas explicativas”, ao passo que as orações subordinadas adverbiais causais, que são iniciadas pelas conjunções subordinativas causais, “exprimem a causa, o motivo do que se declara na oração principal. Causa pode ser definida como aquilo ou aquele que determina um acontecimento.” A conjunção “porque” pode introduzir esses dois tipos de orações. Mas há uma razão para a distinção da classificação dessas orações, distinção esta que é facilmente demonstrada pela existência da vírgula na explicativa. LUIZ ANTONIO SACCONI 2 explica: “Às vezes não é fácil estabelecer a diferença entre explicativas e causais, mas — como o próprio nome indica — as causais sempre trazem a causa de algo que se revela na oração principal, que traz o efeito. Essa noção de causa e efeito não existe no período composto por coordenação. Vejamos exemplos: Elisa chorou porque levou uma surra. Está claro que a oração iniciada pela conjunção é causal, visto que a surra foi sem 1 NICOLA, José, INFANTE, Ulisses. Gramática contemporânea da língua portuguesa. 5. ed. São Paulo : Scipione, 1991. p. 301-334. 2 SACCONI, Luiz Antonio. Gramática essencial da língua portuguesa. 4. ed. São Paulo : Atual, 1989. p. 276.

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Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000 67

A fundamentação deficiente das decisões interlocu-tórias (ou: presentes os pressupostos legais, indefiro

a liminar)

Fabrício Antonio SoaresAssessor de Desembargador Federal

I. A fundamentação como causa da aplicação do direito ao caso concreto, e não como mera explicação

Os gramáticos, de forma geral, diferenciam com nitidez a explicação, de um lado, e a causa, de outro, especialmente quando estudam as orações coordenadas ex-plicativas e as subordinadas adverbiais causais. Aí se vê que uma mesma conjunção, aparentemente numa mesma estrutura sintética, pode traduzir duas idéias diversas: explicação e causa.

JOSÉ DE NICOLA e ULISSES INFANTE1 ensinam que as orações coordenadas

explicativas “são introduzidas pelas conjunções coordenativas explicativas”, ao passo que as orações subordinadas adverbiais causais, que são iniciadas pelas conjunções subordinativas causais, “exprimem a causa, o motivo do que se declara na oração principal. Causa pode ser definida como aquilo ou aquele que determina um acontecimento.”

A conjunção “porque” pode introduzir esses dois tipos de orações.

Mas há uma razão para a distinção da classificação dessas orações, distinção esta que é facilmente demonstrada pela existência da vírgula na explicativa.

LUIZ ANTONIO SACCONI2 explica:

“Às vezes não é fácil estabelecer a diferença entre explicativas e causais, mas — como o próprio nome indica — as causais sempre trazem a causa de algo que se revela na oração principal, que traz o efeito. Essa noção de causa e efeito não existe no período composto por coordenação. Vejamos exemplos:

Elisa chorou porque levou uma surra.

Está claro que a oração iniciada pela conjunção é causal, visto que a surra foi sem 1 NICOLA, José, INFANTE, Ulisses. Gramática contemporânea da língua portuguesa. 5.

ed. São Paulo : Scipione, 1991. p. 301-334. 2 SACCONI, Luiz Antonio. Gramática essencial da língua portuguesa. 4. ed. São Paulo :

Atual, 1989. p. 276.

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dúvida a causa do choro, que é o efeito.

Elisa chorou, porque seus olhos estão vermelhos.

O período agora é composto por coordenação, pois a oração iniciada pela conjun-ção traz a explicação daquilo que se revelou na coordenada anterior. Não existe aí relação de causa e efeito: o fato de os olhos de Elisa estarem vermelhos não é causa de ela ter chorado.”

Esta incursão pelo estudo da língua portuguesa serve para esclarecer que a fundamentação das decisões judiciais, por ser, como será analisado, expressão da legitimidade da atuação jurisdicional, imperativo do Estado Democrático de Direito e direito fundamental do jurisdicionado, que tem amplo acesso à justiça, não deve ser uma mera explicação, mas sim uma causa, vale dizer, aquilo que determina um acontecimento, que é o deferimento ou o indeferimento do pedido.

O efeito do preenchimento dos pressupostos legais de uma liminar é o seu defe-rimento. A causa é o preenchimento desses mesmos pressupostos. Está estabelecida, portanto, uma relação de causa e efeito. Da existência dos pressupostos legais não pode decorrer o indeferimento da liminar.

Por isso é que, já mediante o subtítulo do trabalho, procurei assinalar que as decisões judiciais deferitórias porque presentes os pressupostos legais ou indeferitórias porque ausentes os mesmos pressupostos são fundamentadas de forma deficiente e que, quando se diz o óbvio, é o mesmo que não se dizer nada.

Esta a razão primordial de se sustentar que decisão fundamentada deficiente-mente não é o mesmo que decisão mal fundamentada

3, mas equiparada sim à decisão

não fundamentada, uma vez que, seja do ponto de vista gramatical, seja sob o prisma 3 Parte-se, portanto, de uma premissa diversa daquela anotada por várias decisões do SUPRE-

MO TRIBUNAL FEDERAL, em que se afirma ser a decisão deficientemente fundamentada equiparada à decisão mal fundamentada e não à não fundamentada. Mas os casos analisados pela nossa Suprema Corte são, à toda evidência, de decisões em que, efetivamente, havia algu-ma fundamentação, da qual o recorrente discordava, alegando estar deficiente. Mas, repita-se, o termo deficiente, nas decisões do Pretório Maior, é utilizado no sentido de fundamentação pouco desenvolvida, mas existente. Desse modo, não se pode dizer que a tese aqui sustentada está indo ao encontro de ou, mesmo, de encontro àquela decidida pelo STF. Tão-somente se fala de coisas diversas. Sustento neste estudo que decisões mal fundamentadas, concisamente fundamentadas e não fudamentadas são conceitos diversos, e que a deficiente fundamentação equipara-se à sua ausência. Vejamos, de fato, por outro lado, sobre o que decide o Supremo Tri-bunal Federal: “Quanto à alegação de nulidade da decisão por deficiência de fundamentação, pertinente o seguinte trecho do acórdão proferido no Recurso Extraordinário nº 77.792-MG, rel. Min. Rodrigues Alckmin: ́ Somente a falta de fundamentação é que torna a sentença nula. A fundamentação má ou deficiente não pode acarretar a pretendida nulidade.´ E, ainda, ´O que a Constituição exige, no art. 93, IX, é que a decisão judicial seja fundamentada; não, que a fundamentação seja correta, na solução das questões de fato ou de direito da lide: declinadas no julgado as premissas, corretamente assentadas ou não, mas coerente com o dispositivo do acórdão, está satisfeita a exigência constitucional.´ (RTJ 150/269, Rel. Min. Sepúlveda Pertence).”(RE nº 221.781/RJ, DJ 03.03.2000, Min. NÉRI DA SILVEIRA)

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das nossas garantias constitucionais, seja, ainda, sob o aspecto da justificação históri-co-política da fundamentação, efetivamente não há diferença entre o “defiro e ponto final” e o “defiro porque presentes os pressupostos legais”.

II. A fundamentação como decorrência do Estado de Direito, meio de acesso a uma justiça justa e fator legitimador da atuação jurisdicional

A motivação deve ser vista como um dever do magistrado, num Estado De-mocrático de Direito, para a legitimidade de suas decisões, e como uma garantia do indivíduo, que tem amplo acesso ao Judiciário e amplo direito de defesa, inclusive com os recursos e meios a ele inerentes.

Passo a citar os melhores textos que encontrei na nossa literatura especializada nos quais se defendem essas idéias.

MANTOVANI COLARES CAVALCANTE4 confere um enfoque interessante

à necessidade da fundamentação das decisões interlocutórias, relacionando-a com a justiça dos pronunciamentos jurisdicionais e o duplo grau de jurisdição:

“É preciso, portanto, que se exija do juiz o rigoroso cumprimento dessa disposição constitucional, uma vez que, na medida em que se obriga a fundamentação de todas as decisões judiciais, deixa de ter tanta importância o princípio do duplo grau de jurisdição, pois este princípio tem como fundamento a possibilidade da correção das decisões injustas, e parece-me razoável concluir que a decisão fundamentada terá menor possibilidade de ser injusta.”

Também sobre a ordem jurídica justa a que todos têm amplo acesso, diz-nos FLÁVIO RENATO CORREA DE ALMEIDA

5:

“Ora, se a jurisdição é um poder, também é um dever. Dever de bem julgar. Dever de não impor a força que possui, sem que aquele contra o qual ela se dirige conheça as razões por que é obrigado a suportar as conseqüências do julgamento. Dever de solucionar os conflitos de interesses com Justiça, o que só é possível mediante a transparência de sua atividade.

[...]

Com a norma constitucional, a fundamentação das decisões tornou-se uma garantia, inerente à cidadania, já que o direito de acesso ao Poder Judiciário e o direito de obter um provimento também o são. Se se assegura ao cidadão o direito de obter a tutela jurisdicional – previsto no inc. XXXV do art. 5º da CF – é lícito concluir que a fundamentação é, também, uma garantia, e da mesma ordem.”

LUIZ GUILHERME MARINONI6 expõe com grandeza de alma sobre o arbítrio,

4 CAVALCANTE, Mantovani Colares. Regime jurídico dos agravos. São Paulo : Dialética,

1998. p. 133.5 ALMEIDA, Flávio Renato Correa de. Da fundamentação das decisões judiciais. Revista de

Processo, n. 67, p. 200, jul./set. 1992.

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a efetividade do processo e a legitimação do poder: “Na verdade, o princípio da motivação assume grande importância no juízo su-mário, apresentando-se como mecanismo impeditivo do arbítrio jurisdicional e, por conseqüência, como elemento possibilitador de uma maior efetividade do processo.

A proliferação das liminares antecipatórias, de que tanto se fala, bem como o abuso na concessão de tais liminares, não podem ser desligados da questão da falta de fundamentação das decisões. É difícil falar em ́ abuso´ na concessão de liminares quando, na verdade, poucas vezes são conhecidos os fundamentos pelos quais estas liminares são deferidas. A saída, portanto, não é a de proibir a concessão de liminares, mas sim a de se exigir uma adequada da fundamentação das decisões. Vale a pena lembrar, aliás, que o princípio da motivação possibilita o controle da atividade jurisdicional por qualquer um do povo, o que é altamente importante para a legitimação do poder, principalmente quando a decisão que concede a liminar é proferida em uma ação que constitui via de participação popular na gestão do bem comum, como a ação popular ou a ação civil pública.”

MARINONI, além do atinente à legitimação do poder, realça, como visto, as-pecto interessante da fundamentação. É que se, de fato, for fundamentada a decisão, não há que se falar em abuso na concessão de liminar e, portanto, na sua repressão, que é feita na forma de vedação.

Um belo dia, quando a garantia da fundamentação for socialmente eficaz, vere-mos que não há mais sentido para vedarmos a liminar em face da Fazenda Pública!

INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO7 explana não somente sobre a funda-

mentação como fator legitimador da atuação do hermeneuta, mas também do nosso contexto de Estado de Direito:

“No âmbito da hermenêutica jurídica, por outro lado, esse enriquecimento de perspectiva (causado pela integração histórica dos horizontes significativos do texto normativo e o do seu aplicador), porque amplia a capacidade de análise e de persuasão do intérprete, acentua-lhe, concomitantemente, o dever de prestar contas do seu trabalho interpretativo, o qual, para ser legítimo, há de ser racional, objetivo e controlável, pois nada se coaduna menos com a idéia de Estado de Direito do que a figura de um oráculo despótico ou iluminado, que esteja acima da lei e dos critérios usuais de interpretação.

[...]

Porque foi produzida segundo o ´devido processo legal´ em sentido amplo (substantive due process / procedural due process; justificação externa/interna), a

6 MARINONI, Luiz Guilherme. Efetividade do processo e tutela de urgência. Porto Alegre

: S. A. Fabris, 1994. p. 62-63.7 Anais do curso hermenêutica constitucional e direitos fundamentais, organizado em coope-

ração pelo Instituto Brasiliense de Direito Público e pela EMARF – Escola da Magistratura Regional Federal da 2ª Região.

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decisão judicial, que assim se obteve, estará revestida de legitimidade e eficácia, tornando-se insuscetível de desfazimento.

[...]

Em linguagem kelseniana, dir-se-ia que, embora a atividade interpretativa não seja apenas um ato de conhecimento, mas também de vontade, não é dado ao intérprete-aplicador desconsiderar o marco normativo imposto pela norma de nível supe-rior, da qual deve extrair, por derivação, a decisão para o caso concreto.

[...]

É que, no Estado de Direito, para ser socialmente vinculante, essa construção deve observar normas e critérios controláveis pela comunidade.”

LÚCIA VALLE FIGUEIREDO8, em artigo no campo do devido processo

legal, averbou sobre o Estado de Direito:

“No Estado Democrático de Direito, a motivação integra, de maneira inarredá-vel, ainda que possa não estar explícita, o devido processo legal em seu sentido material.”

Por falar em Estado de Direito, não poderia faltar, neste compêndio de como a nossa literatura especializada desenvolve o tema, o artigo histórico de JOSÉ CAR-LOS BARBOSA MOREIRA

9, que, em março de 1978, na vigência do regime de

exceção, sugere a introdução, após superada a ditadura, na nossa Constituição, da necessidade de fundamentação de todas as decisões judiciais proferidas em todos os graus de jurisdição:

“Seja como for, do ponto de vista em que neste trabalho nos situamos, preocupa-nos menos o exame da garantia da motivação no contexto das instituições político-jurídicas tais como hoje existem do que na perspectica das exigências do Estado de Direito cuja restauração se almeja. A essa luz, julgamos relativamente pouco importante indagar se a disciplina desta ou daquela matéria se harmoniza com as regras superiores em vigor, pela simples e óbvia razão de que as regras supe-riores em vigor nem sempre se harmonizam, elas próprias, com os postulados do Estado de Direito.

Nosso olhar dirige-se, neste momento, ao futuro. O restabelecimento do Estado de Direito, em sua plenitude, é preocupação constante e instante dos advogados brasileiros. A consecução de tal objetivo exige, sem dúvida, a reforma profunda das instituições sob que vivemos. Mas a nossa pregação não pode diluir-se em genéricas e vagas declarações de princípios. Somos convocados a contribuir com sugestões específicas e concretas para a grande tarefa de reconstrução de uma ordem jurídica que atenda aos anseios do País. Incumbe a cada qual

8 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Devido processo legal e fundamentação das decisões. Revista

de Direito Tributário, n. 63, p. 216.9 Trabalho apresentado à VII Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (maio

de 1978), Revista Brasileira de Direito Processual, v. 16.

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trazer o seu adminículo, modesto que seja, para dar forma visível e precisa ao ideal comum.”

TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER 10

enfatiza:

“Em face do Estado de Direito, nos dias atuais, se pode estabelecer o porquê desta exigência num sentido, sob certo aspecto, unívoco.

O Estado de Direito se caracteriza por ser o Estado que se justifica, tendo como pauta a ordem jurídica a que ele próprio se submete. Assim, quando o Estado intervém na vida das pessoas, deve justificar a intromissão: materialmente, pois a intromissão tem fundamento, e formalmente, pois o fundamento é declarado, exposto, demonstrado.”

Assim, a necessidade de fundamentação independe da impugnabilidade da decisão, porque esta é um ato do Estado-juiz proferido no âmbito de um Estado De-mocrático de Direito e intrinsecamente associada a este está a idéia de controle, seja sob o aspecto interno ao processo (endoprocessual), seja sob o ponto de vista externo (extraprocessual), para todos quantos direta ou indiretamente interessem a decisão, e que, por isso, têm o direito de lhe dar ou deixar de lhe dar legitimidade.

Vê-se daí que a idéia de fundamentação como expressão do Estado de Direito está intimamente ligada à de legitimidade dos atos do Estado.

BARBOSA MOREIRA11

desenvolve conceito já explicado no trecho anterior-mente citado de INOCÊNCIO:

“O controle extraprocessual deve ser exercitável, antes de mais nada, pelos jurisdicionados in genere, como tais. A sua viabilidade é condição essencial para que, no seio da comunidade, se fortaleça a confiança na tutela jurisdicional – fator inestimável, no Estado de Direito, da coesão social e da solidez das instituições.”

Precisamos ainda avançar nesse campo, em que pese já havermos alcançado novamente o patamar de Estado Democrático de Direito!

Não atentamos para quanto uma liminar deferida ou indeferida invade a esfera do indivíduo, às vezes de forma mais contundente que a própria sentença.

Prevalece, ainda hoje, algumas vezes, a intuição, a expressão não do Estado de Direito, mas sim do voluntarismo do ditador; prevalece não a razão que vence sem o uso da força, mas sim o sentimento que vai e que vem aos sabores e dissabores do vento.

Ele é de lua. É assim que se diz, nas ruas, de uma pessoa instável.

Esquece-se, portanto, de que é justamente a instabilidade que a ordem jurídica 10

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Nulidades do processo e da sentença. 4. ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1997. p. 248-249. 11

MOREIRA, ob. cit.

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visa a precipuamente combater.

III. A fundamentação como garantia constitucional e o princípio da máxima efetividade

Como se percebe, ainda, no trecho citado de INOCÊNCIO, fala-se em funda-mentação como corolário do devido processo legal sob a ótica substantiva.

LÚCIA VALLE também, no trecho citado, enfatiza a idéia, pelo que se pode sustentar ser a fundamentação uma garantia individual, por ser aspecto do devido processo legal, em seu sentido material, inserto no art. 5º da Carta.

Todavia, ainda que assim não fosse, e ainda que a fundamentação não se inserisse no conceito de acesso à justiça justa com os meios e recursos a ela inerentes, sabemos todos que procede a afirmação de que não importa a localização de uma garantia, que, no caso, está hospedada no art. 93, IX, da Constituição, para caracterizá-la como individual e, portanto, fundamental.

É de FLÁVIO RENATO CORREA DE ALMEIDA12

a lição: “Não é apenas o art. 5º da atual CF, que trata das garantias do cidadão, sob o as-pecto processual. Afinal, não é porque o legislador constituinte optou por nominar um capítulo da Constituição de ´Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos´ que, necessariamente, apenas sob essa rubrica estejam elencados os direitos e as garantias que a Lei Maior traça aos súditos do Estado. Por óbvio, qualquer norma constitucional pode trazer garantias individuais ou coletivas, basta que o seu con-teúdo assim o indique, inimportando sua posição no corpo da Constituição.

[...]

O conteúdo da norma (do art. 93, inc. IX) é nitidamente uma garantia do cidadão, apesar de inserido no capítulo referente ao Poder Judiciário, e que, prima facie, parece apenas uma determinação quase administrativa, destinada aos órgãos jurisdicionais.

Assim não é.”

Até porque o art. 5º, § 2º, da Constituição ressalta não ser o rol do art. 5º exaus-tivo, pelo que não se excluem os direitos e garantias individuais inseridos em outro instrumento, principalmente na própria Constituição.

Importa, portanto, o conteúdo da norma, e não o seu aspecto topográfico.

PAULO GUSTAVO GONET BRANCO13

, citando JORGE MIRANDA, assinala que o que caracteriza um direito como fundamental é a expressão da consideração que as pessoas merecem na sociedade; por isso é que, sem dúvida, deve ser reconhe-cido na necessidade de fundamentação das decisões judiciais esse caráter de direito

12 ALMEIDA, ob. cit. p. 200.

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fundamental:“Fala-se, precipuamente, em direitos fundamentais quando Estado e pessoa se con-trapõem, autoridade e liberdade se encontram. Os direitos fundamentais enformam e limitam o exercício do poder político; expressam, afinal, a consideração que as pessoas merecem na sociedade.”

Mais adiante, PAULO GUSTAVO14

fala do aspecto de localização, citando decisão do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:

“No STF, na ADIn 939 (RTJ 151/755), deu-se importância ao fenômeno da defi-nição tradicional de uma pretensão como direito fundamental, para que assim seja reconhecida. No precedente, assentou-se que o princípio da anterioridade, ligado ao poder de tributar, embora constasse em lugar outro que o catálogo do art. 5º da Constituição, constitui um direito fundamental, dado que, historicamente, sempre foi assim tratado, constituindo, por isso, cláusula pétrea – conclusão decisiva para a declaração de inconstitucionalidade de emenda à Constituição que excepcionava esse princípio no caso do Imposto Provisório Sobre Movimentação Financeira.”

Com efeito, a natureza jurídica da necessidade de fundamentação possui três conseqüências básicas importantes: 1º)- o reconhecimento da aplicabilidade imediata, tendo em vista o art. 5º, § 2º, da Constituição, e, especificamente neste caso, a elevada densidade normativa do art. 93, inc. IX; 2º)- a inserção no conceito de cláusula pétrea e, portanto, imodificável até mesmo pelo legislador constituinte derivado reformador e revisional, pelo que se depreende do art. 60, § 4º, inc. IV, da Carta Política; 3º)- a aplicação do princípio de hermenêutica constitucional da efetividade.

Em relação a esse último aspecto, extremamente oportuno o ensinamento de GOMES CANOTILHO

15:

“A uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da actualidade das normas programáticas (Thoma), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais).”

Uma das características dos direitos fundamentais estudadas por PAULO GUS-TAVO

16 é a da sua vinculação aos poderes públicos, inclusive ao Poder Judiciário,

da seguinte forma:“A vinculação dos tribunais aos direitos fundamentais leva a doutrina a entender

13 Anais do curso hermenêutica constitucional e direitos fundamentais, organizado em coope-

ração pelo Instituto Brasiliense de Direito Público e pela EMARF – Escola da Magistratura Regional Federal da 2ª Região.14

Anais citados.15

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 5. ed. Coimbra : Liv. Almedina, 1991. p. 233.

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que estão eles no dever de conferir-lhes máxima eficácia possível. Sob um as-pecto negativo, a vinculação do Judiciário gera o poder-dever de recusar aplicação a preceitos que não respeitem os direitos fundamentais.”

JOSÉ AUGUSTO DELGADO17

, com a autoridade de Ministro do Superior Tribunal de Justiça, doutrinou:

“Defendo que, em face do comando constitucional já referido, não há mais condições de se sustentar essa posição, pela impossibilidade de se interpretar, restritiva-mente, qualquer direito ou garantia fundamental do cidadão inserido na Carta Magna. Ademais, há que se considerar como uma das partes não elogiáveis do Código de Processo Civil a que permitiu a expedição de sentenças concisas.”

GILMAR FERREIRA MENDES18

leciona:“De ressaltar, porém, que, enquanto princípio expressamente consagrado na Cons-tituição ou enquanto postulado constitucional imanente, o princípio da proteção do núcleo essencial (Wesensgehaltsgarantie) destina-se a evitar o esvaziamento do conteúdo do direito fundamental mediante estabelecimento de restrições descabidas, desmesuradas ou desproporcionais.”

Ainda em relação ao terceiro aspecto de que falava, vale a pena trazer à cola-ção lição de LUÍS ROBERTO BARROSO

19, um dos nossos maiores estudiosos não

somente acerca da efetividade das normas constitucionais, tendo elaborado a sua tese de livre docência nessa área, mas também dos princípios de hermenêutica constitu-cional, eis que insere o princípio da efetividade no capítulo dos princípios específicos de interpretação da Constituição:

“A efetividade significa, portanto, a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade.”

Para finalizar este capítulo, não se poderia deixar de citar a obra pioneira de JOSÉ AFONSO DA SILVA

20 em que se pontifica:

“Por isso é que se diz que a eficácia jurídica da norma designa a qualidade de produ-zir, em maior ou menor grau, efeitos jurídicos, ao regular, desde logo, as situações, relações e comportamentos de que cogita; nesse sentido, a eficácia diz respeito à aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade da norma, como possibilidade de sua aplicação jurídica. O alcance dos objetivos da norma constitui a efetividade. Esta

16 Anais citados.

17 DELGADO, José Augusto. Alguns aspectos controvertidos no processo de conhecimento.

Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 80, n. 664, p. 32, fev. 1991.18

MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. São Paulo : Celso Bastos Editor, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1998. p. 35.19

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. São Paulo : Saraiva, 1996. p. 220.

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é, portanto, a medida de extensão em que o objetivo é alcançado, relacionando-se ao produto final. Por isso é que, tratando-se de normas jurídicas, se fala em eficácia social em relação à efetividade, porque o produto final objetivado pela norma se consubstancia no controle social que ela pretende, enquanto a eficácia jurídica é apenas a possibilidade de que isso venha a acontecer.”

IV. Objetivos da fundamentação

Passo a desenvolver o tema relativo aos objetivos da fundamentação, momento em que o estudo começará a assumir um cunho mais prático.

TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER 21

aponta quais são as razões para se fundamentar uma decisão judicial:

“A primeira destas razões, familiar ao pensamento tradicional, é de ordem técnica. Seria, sob esse enfoque, necessária a motivação, para poder precisar-se e delimitar-se minuciosamente o âmbito do decisum.

A impugnabilidade tem como pressuposto a fundamentação ao objeto impugnado, principalmente porque se tem por admitido que as decisões não sejam arbitrárias. Esta, a segunda razão de ordem técnica.

Outro enfoque que pode ser concebido, típico de nossa época, é o que vê na idéia de garantia a fonte básica de inspiração da obrigatoriedade da motivação das decisões judiciais.

[...].

A motivação (além disso):

- oferece elementos concretos para que se possa aferir a imparcialidade do juiz;

- poder-se-á dizer, também, por meio do exame da motivação da decisão, verificar da sua legitimidade;

- por fim, a motivação garante às partes a possibilidade de constatar terem sido ouvidas, na medida em que o juiz terá levado em conta, para decidir, o material probatório produzido e as alegações feitas pelas partes.”

ROGÉRIO LAURIA TUCCI e CRUZ E TUCCI22

ensinam:“Do ponto de vista subjetivo, a motivação da sentença tem por escopo imediato demonstrar ao próprio juiz, antes mesmo do que às partes, a ratio scripta que legitima o ato decisório, cujo teor se encontrava em sua intuição.

Visa ela, outrossim, a persuadir o sucumbente ou o condenado da justiça do decidido, mostrando-lhe que o resultado do processo não é fruto de sorte ou do acaso, mas de verdadeira atuação da lei sobre os fatos levados à cognição judicial e comprovados, com a especificação da norma aplicável ao caso concreto.

20 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed. São Paulo :

Malheiros, 1998. p. 66.21

WAMBIER, ob. cit. p. 248.22

TUCCI, Rogério Lauria, TUCCI, Cruz e. Constituição de 1988 e processo. São Paulo : Saraiva, 1989. p. 74-75.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000 77

E, por outra vertente, as razões de decidir importam, também, permitir o controle da sentença, para que se possa estabelecer a exata dimensão do conteúdo da vontade do juiz e, conseqüentemente, para a verificação dos limites objetivos do julgado”

O gênio de ENRICO TULLIO LIEBMAN23

, em artigo sugestivamente intitulado “Do Arbítrio à Razão”, concebeu:

“tem-se como exigência fundamental que os casos submetidos a juízo sejam julga-dos com base em fatos provados e com aplicação imparcial do direito vigente; e, para que se possa controlar se as coisas caminharam efetivamente dessa forma, é necessário que o juiz exponha qual o caminho lógico que percorreu para chegar à decisão a que chegou”

V. Implicações práticas do discurso: o que diz a doutrina?

Quando o juiz diz que defere porque estão satisfeitos os requisitos legais, está dizendo o óbvio, porque somente defere quando há um respaldo na lei.

Por essa razão, é necessário que se diga por que estão presentes os pressupostos naquele caso concreto posto à sua apreciação.

É preciso, portanto, que o juiz não procure uma explicação que caia num vazio, num nada jurídico. Como já tentei dizer na primeira parte deste estudo, em que se analisou o aspecto gramatical do ́ porque´, dizer que Elisa chorou, porque seus olhos estão vermelhos não é fundamentar; não é dar a causa desse efeito.

Mas, mesmo assim, é mais do que dizer que se defere o pedido porque estão presentes os seus pressupostos. Pode-se chorar sem ficar com os olhos vermelhos, mas deferir o pedido sem estarem presentes os pressupostos é impossível.

Assim, por ser a fundamentação, sob o aspecto gramatical, causa do direito aplicado ao caso concreto, garantia constitucional, em que vige o princípio da máxi-ma efetividade, decorrência do Estado de Direito, meio de acesso a uma justiça justa (às vezes a redundância é necessária), fator legitimador da atuação jurisdicional (o concurso público legitima apenas o ingresso) e por todos os demais objetivos aponta-dos, aprofundei-me na pesquisa sobre como os nossos doutrinadores vêem a decisão deficientemente fundamentada, vale dizer, como vêem, em face do art. 93, inc. IX, da Carta, o defiro ou indefiro porque presentes ou ausentes os pressupostos legais.

SÉRGIO FERRAZ24

afirmou:“Quando eu estou pleiteando ao juiz que me dê uma liminar, porque senão meu direito morre e o juiz simplesmente diz não dou — e eles fazem em geral com um despacho que os senhores sabem que é até carimbo: ausentes os seus pressupostos da concessão, indefiro a liminar. Quer dizer, isso aí é uma brincadeira, sobretudo

23 LIEBMAN, Enrico Tullio. Do arbítrio à razão : reflexões sobre a motivação das sentenças.

Revista de Processo, São Paulo, n. 29, p. 79.

78 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000

a partir da Constituição de 88, que manda que todas as decisões sejam motivadas e dizer ausentes os pressupostos evidentemente não é motivar coisa nenhuma. Tem que dizer em que eles estão ausentes. Porque não acontece o periculum. Porque não acontece o fumus. Tem que dizer, fundamentadamente.”

LÚCIA VALLE FIGUEIREDO25

escreveu:“Como último tópico, somente queríamos enfatizar que as decisões devem ser necessariamente motivadas. Dizer, por exemplo, que o magistrado motivou sua decisão quando afirmou não existir periculum in mora, ou não existir fumus boni iuris ou não estarem presentes os requisitos do art. 7º, inc. II, da lei nº 1.533/51, significa, na verdade, que o juiz não disse nada. Isso não é motivação. O juiz tem de explicitar por que não está presente o fumus boni iuris, por que não está presente o periculum in mora. Remeter-se, apenas, ao texto legal não é motivar, é ausência de motivação judicial.”

Em outra ocasião, assinala, ainda, LÚCIA VALLE26

:“Tanto o administrador como o juiz deverão dizer: ´aplico o artigo tal, inciso qual, porque a hipótese examinada, tais e tais fatos, inserem-se na hipótese legal, por força de tais ou quais razões.´

É dizer: de alguma forma a alegação de dispositivo legal pode ser considerada motivação, fundamentação do ato."

Aproveitando o gancho de LÚCIA VALLE, podemos trazer aqui os ensina-mentos de ADAUTO SUANNES, que, no seu recente “Fundamento Ético do Devido Processo Penal”, vai mais longe, colocando que a ausência de amparo legal, por si só, não pode justificar o indeferimento do pleito, dado não ser a lei a única fonte do direito. Afirma também o ex-Desembargador do TJ-SP que o “indefiro porque inexiste o pressuposto legal” é um cacoete irrefletidamente repetido por alguns juízes, eis que até os governos mais despóticos trataram de justificar os seus atos.

NELSON NERY JÚNIOR27

defende:“Outro fato comum, que ocorre amiúde no foro, é a ausência de motivação das decisões concessivas ou denegatórias de liminar, em mandado de segurança, cau-telares, possessórias e ações civis públicas. A locução ´presentes os pressupostos legais concedo a liminar´, ou, por outra, ´ausentes os pressupostos legais denego a liminar´, são exemplos típicos do vício aqui apontado. O ministro, desembarga-dor ou juiz tem necessariamente de dizer por que entendeu presentes ou ausentes os pressupostos para concessão ou denegação da liminar, isto é, ingressar no exame da situação concreta posta à sua decisão, e não limitar-se a repetir os

24 Conferência realizada no auditório do IRB, em 26/06/97, gravada pelo Centro de Pesquisa

e Atualização em Direito - CEPAD.25

FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Mandado de segurança. São Paulo : Malheiros, 1996. p. 143.26

FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Devido processo legal e fundamentação das decisões. Revista de Direito Tributário, n. 63, p. 215.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000 79

termos da lei, sem dar as razões de seu convencimento.”

MARINONI28

advoga a tese de que:“Deverá o juiz precisar as razões pelas quais entende existir ou não o fumus boni iuris e o periculum in mora. Quando houver o perigo de irreversibilidade dos efeitos fáticos do provimento, a decisão deverá explicar a razão pela qual ocorreu a opção (ou não) pela realização antecipada do direito, valendo dizer que o juiz estará obrigado a fundamentar a sua valoração sobre os bens que devem ser ponderados.”

TEORI ALBINO ZAVASCKI29

pontificou com enorme simplicidade sobre as decisões que antecipam ou deixam de antecipar a tutela:

“Como ocorre em relação a todos os demais conceitos indeterminados, também aqui cabe ao juiz demonstrar, circunstanciadamente, o porquê da relevância e do risco de ineficácia, e esse deve ser o conteúdo de sua fundamentação.”

É de MANTOVANI COLARES CAVALCANTE30

a lição específica sobre o efeito suspensivo no agravo:

“Por isso mesmo, a decisão do relator que atribui efeito suspensivo ao agravo deve ser fundamentada, significando dizer que o relator tem a obrigação de expor em sua decisão onde ele detectou a relevância do fundamento do recurso e a possibilidade de dano de difícil reparação no caso de cumprimento da decisão atacada, não bastando dizer que estão presentes os pressupostos autorizadores da medida.

A decisão do relator que simplesmente afirma a presença dos requisitos ensejadores da atribuição do efeito suspensivo do agravo, sem identificar onde tais requisitos afloram na petição do recurso, é decisão nula, por contrariar a referida norma constitucional que exige a fundamentação de todas as decisões judiciais.”

E sobre a medida cautelar, ainda, de MANTOVANI CAVALCANTE31

:“O mesmo já não se pode dizer em relação à decisão que esteja desprovida de qualquer fundamentação, ou que traga uma fundamentação disfarçada, como é o caso daquelas concessivas de liminar em ação cautelar, sob a simples justificativa de que estariam ´presentes os pressupostos autorizadores da medida, quais sejam, o fumus boni juris e o periculum in mora´, sem, contudo, se dizer onde restou demonstrado pelo autor da inicial que realmente estão presentes tais pressupostos.

Aliás, tal decisão se prestaria até mesmo para não se conceder a referida liminar,

27 NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios de processo civil na Constituição Federal. 4. ed. São

Paulo : Revista dos Tribunais, 1997. p. 172.28

MARINONI, ob. cit. p. 62.29

ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação de tutela. São Paulo : Saraiva, 1997. p. 203.30

CAVALCANTE, ob. cit. p. 53-54.

80 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000

bastando o magistrado afirmar que ´não estão presentes os pressupostos autoriza-dores da medida, quais sejam o fumus boni juris e o periculum in mora.

Observe-se, por isso mesmo, que tal posicionamento é desprovido da fundamentação necessária para se avaliar a razoabilidade da decisão judicial.”

CALMON DE PASSOS32

, com a ênfase de um verdadeiro mestre, desenvolve o tema no campo da tutela antecipada:

“Já dissemos muita coisa, precedentemente, sobre o convencimento do magistrado e seu dever de fundamentar esse convencimento, quando tratamos do pressuposto da prova inequívoca da alegação do autor. A lei foi enfática, pedindo o que a Constitui-ção pede com muito mais autoridade. Acontece que nós sabemos perfeitamente que o Brasil é um país em que não valem as regras do jogo, mas sim o querer, mais ou menos arbitrário, dos que são ́ autoridades´ e nos interpelam, constantemente, com peito inflado e cenho carregado: ´Você sabe com quem está falando?´

A fundamentação só é entendível como clara e precisa quando ela é explícita e completa quanto ao suporte que o juiz oferece para as suas decisões sobre questões de fato e de direito postas para seu julgamento. Se o fato não é controvertido, ine-xiste questão de fato, dispensada a fundamentação, bastando a referência ao fato certo. Se houver controvérsia, a decisão só é fundamentada quando o juiz aprecia a prova de ambas as partes a respeito e deixa claras as razões por que aceita uma e repele a outra. Já as questões de direito, suas decisões são fundamentadas quando o juiz expõe o embasamento doutrinário, jurisprudencial ou dogmático sério que o leva a decidir como decide, tendo em vista os fatos já admitidos para formação de seu convencimento, nos termos precedentemente expostos.

Coisa tão simples e de tão fácil percepção, infelizmente, pouco vale entre nós. Vamos nos esforçar por fazer da antecipação da tutela um exercício de cum-primento do dever. São os meus votos. Sinceramente espero não ler, no futuro, imoralidades jurídicas iguais às que tenho lido na fundamentação de certas cautelares, em que se diz, pura e simplesmente, estar-se deferindo a medida porque presentes tanto o fumus boni juris quanto o periculum in mora (assim mesmo em latim, para impressionar) e a parte que consulte uma sibila para desvendar o pensamento do magistrado.

Decisão sem fundamento ou sem fundamento aceitável como tal, no mínimo que seja, é decisão nula, que não obriga e deve ser reformada, inclusive via mandado de segurança, com punição do culpado por essa violência desnecessária a uma garantia constitucional básica.”

Não sou eu quem estou dizendo que indeferir porque ausentes os pressupos-tos legais ou deferir porque presentes os mesmos pressupostos, evidentemente, não é motivar coisa nenhuma, que isso é uma brincadeira, que repetir os termos

31 Idem, p. 134.

32 PASSOS, Calmon de. Reforma do código de processo civil. São Paulo : Saraiva, 1996. p.

205-206.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000 81

da lei é um vício, que é uma fundamentação disfarçada, que, com isso, não se diz nada, sendo uma decisão judicial sem conteúdo e que é necessário que a parte consulte uma sibila para consultar o pensamento do magistrado. Quem afirma tudo isso, como textualmente vimos, são os autores acima citados, muitos dos quais são, inclusive, juízes.

Assim, vê-se que se é unânime em proclamar a efetividade da garantia da fun-damentação das decisões judiciais.

De fato, dizer-se que basta ao juiz fazer referência genérica aos fundamentos e documentos dos autos, que basta ao juiz indicar genericamente o dispositivo legal em que se baseia para decidir, é esvaziar ao nada a garantia constitucional da motivação das decisões judiciais. Afinal, nunca o juiz, pelo menos não é o que se vê na prática, irá dizer pura e simplesmente que defere ou indefere o pedido e ponto final. É preciso, porém, dotar o indivíduo de garantias efetivas, substanciais.

Um critério bastante seguro para se averiguar se houve substancialmente uma motivação, ou se esta é fruto de um mero formalismo, é verificar se a decisão é do tipo padrão. Como diz SÉRGIO FERRAZ, no trecho citado, se é carimbo, ou mais modernamente, se é um modelo gravado no computador, que só precisa ser alterado por causa do nome das partes.

Neste caso, por força da generalidade das suas expressões, a decisão pode se aplicar a diversos processos, em que a União, o INSS e a Associação dos Joga-dores de Xadrez, por exemplo, são partes. Como não parece crível que processos envolvendo matérias tão diversas e partes tão significativamente diferentes mereçam exatamente, em termos formais, a mesma fundamentação, identifica-se, assim, de forma inequívoca, uma deficiência, revelando-se que a hipótese não mereceu uma análise particularizada do juiz ou relator, como particular foi o caso que se colocou à sua superior apreciação.

Por vezes, a decisão está revestida de termos bastante rebuscados, próprios dos formalistas, como assinalou CALMON DE PASSOS. É o que ocorre, por exemplo, no “em nome dos fundamentos legais e dos fatos colhidos nos autos”, ou “compul-sando os autos, verifico estarem ausentes os pressupostos legais”, ou, ainda, “após examinar detidamente os autos, tenho que o requisito do periculum in mora não se mostra presente.”

Nestes casos, ninguém possui a capacidade de desvendar o mistério consistente no porquê o juiz visualizou que não havia o periculum in mora, ou no porquê de entender inexistir o fumus boni iuris. É necessária, como disse, ainda, CALMON DE PASSOS, uma sibila para desvendar o pensamento do prolator do ato decisório travestido de fundamentação.

Assim, como já afirmei, fundamentação sucinta não se confunde com funda-mentação deficiente.

82 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000

A fundamentação deficiente é, em outras palavras, aquela inclara, seja por sua parte conclusiva não ser compatível com a motivação, seja pela motivação fática não ser adequada ao caso dos autos, seja, ainda, na hipótese enfocada, pelos motivos de direito não estarem explicitados.

Sabe-se que o nosso princípio de apreciação das provas é o do livre convencimen-to motivado, em que o magistrado usa de silogismo, pelo qual os fatos são a premissa menor, o direito é a premissa maior, e a conclusão, a parte dispositiva. Assim, as premissas devem ser compatíveis entre si e compatíveis com a conclusão. Mas para isso é necessário que ambas as premissas e a conclusão estejam explicitadas.

Como vimos, fundamentação deficiente, que, pelos motivos expostos, se equipara à não fundamentação, não se confunde com má fundamentação.

E esta, de sua vez, também não se confunde com fundamentação sucinta, que não é necessariamente má, posto que pressupõe exteriorização da análise do caso concreto em breves palavras, como sói acontecer, e com razão, em boa parte dos gabinetes de juízes que conduzem milhares de processos.

TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER33

desenvolveu tese em monografia sobre o tema das nulidades das sentenças, mas que se aplica também às decisões interlocutórias:

“Pode dizer-se, que há, grosso modo, três espécies de vícios intrínsecos das senten-ças, que se reduzem a um só, em última análise: 1) a ausência de fundamentação; 2) a deficiência de fundamentação; 3) a ausência de correlação entre fundamen-tação e decisório. Todas são redutíveis à ausência de fundamentação e geram nulidade da sentença. Isto porque ´fundamentação´ deficiente, em rigor, não é fundamentação (...)”

VI. O que diz a jurisprudência?

Em caso estudado no âmbito do Tribunal Federal da 2ª Região, havendo sido pedida a nomeação de outro perito para novo exame de livros e documentos, por causa de alegado erro na interpretação dos lançamentos contábeis, o indeferimento do juiz federal de 1ª instância foi impugnado, inclusive sob o ponto de vista da defi-ciência de fundamentação, o que, segundo o recorrente, teria acarretado a nulidade do decisum.

Assim se manifestou o juízo agravado:“Improcede o pedido de nomeação de outro perito, vez que a perícia foi realizada com a observância dos requisitos legais.

Expeça-se alvará para levantamento dos honorários.

33 WAMBIER, ob. cit. p. 257.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000 83

Digam as partes se têm outras provas a produzir”

Como argumentado acima, este é um exemplo típico de decisão cuja funda-mentação está vazia de conteúdo. Mas a tese que prevaleceu na Primeira Turma do TRF, felizmente com um voto vencido, foi a de mantê-la, baseando-se no fato de as decisões interlocutórias poderem ser fundamentadas concisamente, segundo o preceito inscrito no CPC, art. 165, 2ª parte.

CELSO RIBEIRO BASTOS34

, no entanto, escreveu:“Contudo, permite a lei processual que em determinadas hipóteses as decisões possam ser concisas. Isto não significa dizer ausência de fundamentação, o que ensejaria a nulidade da sentença ou do acórdão, mas, sim, no sentido de que ela seja externada de forma breve, sucinta, lingüisticamente falando. Mesmo assim, há de ser suficiente para demonstrar as razões que levaram o magistrado a formar sua convicção. A falta de motivação da sentença acarreta a nulidade do ato decisório.

[...]

Sentenças e acórdãos terminativos, sem julgamento do mérito (art. 459, CPC), e decisões interlocutórias (art. 165, 2ª parte, CPC) permitem fundamentação concisa.”

Em outras palavras: as decisões interlocutórias, como aquela que foi proferida na vertente hipótese, necessitam sempre ser fundamentadas, por força do disposto no art. 93, inc. IX da Constituição da República, o que não obsta a que a lei processual civil, na forma do CPC, art. 165, 2ª parte, trace graus diferentes de fundamentação, sem que, com isso, se estabeleça a vedada intermediação infraconstitucional.

Assim, tanto a sentença de mérito, como a decisão interlocutória precisam ser fundamentadas, mas é inegável que a primeira deva ser mais lastreada do que a se-gunda, pelo que o ponto nevrálgico da questão é saber qual o limite entre a decisão concisa mal fundamentada e a não-fundamentada.

Com efeito, outro critério para verificarmos a deficiência da fundamentação é vermos quais são os motivos pelos quais as decisões devem ser fundamentadas, para que possamos constatar, no caso concreto, se a finalidade da norma constitucional foi alcançada, ou seja, se houve fundamentação, mesmo que concisa, e se foram demonstradas as razões que levaram o magistrado a formar sua convicção.

Tendo em mira todas essas observações, a Desembargadora Federal VERA LÚCIA LIMA, que à época integrava a Primeira Turma do TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 2ª REGIÃO, no voto vencido a que aludi, referente ao caso do inde-ferimento de nova perícia com base na ausência dos pressupostos legais, entendeu

34 BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo : Saraiva, 1997.

v. IV, t. II, p. 51.

84 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000

que a finalidade perseguida pela norma inserta na Carta Maior não foi alcançada, por duas razões. Assim está o voto da Magistrada:

“A) não se mostrou ao sucumbente a atuação da lei sobre os fatos levados à cog-nição judicial, uma vez que não fez o juízo agravado nenhuma menção sequer acerca de uma ou algumas das peculiaridades dos fatos que ensejaram a aplicação do direito da forma como lhe pareceu correta, ou seja, não se pôde averiguar por quais motivos vislumbrou que os requisitos legais da primeira perícia realizada foram atendidos;

B) não se permitiu, pela remissão genérica aos requisitos legais da primeira perícia, um controle dos motivos da decisão, para que se pudesse estabelecer a exata dimensão do conteúdo da vontade do juiz e, conseqüentemente, para que se verificassem os limites objetivos do julgado, ou seja, a parte não pôde rebater os argumentos do juízo, no intuito de convencer o órgão ad quem de que os requisi-tos legais, ao contrário do afirmado, foram atendidos, por causa de tais ou quais contra-argumentos, eis que, se não há argumentos, é óbvio que não possa haver também contra-argumentos.”

E continuou a Desembargadora:“O que fez Sua Excelência, o MM. Juiz a quo, foi dizer que observou o perito do juízo os requisitos legais. Mas, por quê? Qual(is) o(s) motivo(s) que acarretou(aram) o entendimento segundo o(s) qual(is) a “perícia foi realizada com a observância dos requisitos legais”?

Que o MM. Juiz entendeu que foram observados os requisitos legais parece ir-refutável, tanto que indeferiu o pedido. Mas, por que ele entendeu dessa forma e não de outra?

Destaque-se aqui, mais uma vez, que não se exige uma fundamentação erudita, mas somente uma exposição concisa de um ou alguns dos motivos que levaram o juiz a entender dessa forma, para que as finalidades acima mencionadas sejam alcançadas.

Se essa exposição concisa ficasse inclara, incompleta, contraditória ou injusta, dir-se-ia que a decisão estaria mal-fundamentada; porém, como não há exposição nenhuma dos motivos ensejadores do indeferimento da nova perícia, diz-se que a decisão não está fundamentada.”

A Quarta Turma do mesmo Tribunal Federal da 2ª Região, ao contrário da Pri-meira, decidiu, à unanimidade, pela relatoria do Desembargador Federal ROGÉRIO VIEIRA DE CARVALHO, em outro caso a respeito da fundamentação deficiente:

“A r. decisão recorrida foi assim concebida: ´Indefiro a antecipação dos efeitos da tutela, pois não vislumbro a presença dos requisitos que autorizam a sua concessão.´Entendo que não serve de fundamentação à decisão, que defere, ou nega, a ante-cipação dos efeitos da tutela jurisdicional, pretendida no pedido, a só afirmação, ou negação da prova inequívoca, da verossimilhança das alegações. Doutra sorte, bastaria a invocação do dispositivo legal que autoriza a antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional, e que enuncia seus pressupostos, para se ter por

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000 85

fundamentada a decisão que defere ou nega a tutela antecipada. [...]

Sem motivação, nula é a r. decisão recorrida (art. 93, inc. IX, da Constituição Federal).”

Estes são votos proferidos no âmbito, repita-se, da assoberbada Justiça Federal do Rio de Janeiro, pelo que se conclui que não é motivo para não fundamentar ou fundamentar deficientemente o excesso de trabalho.

Bem recentemente, o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, em expressão de grande sintonia com as necessidades e os anseios dos advogados, estudiosos e da população em geral, acolheu a tese, pela lavra do Ministro SÁLVIO DE FIGUEI-REDO TEIXEIRA:

“Uma das maiores garantias do jurisdicionado é a fundamentação das decisões no âmbito do Poder Judiciário. Por meio da motivação é que se tem ciência se a decisão foi calcada na lei, se arbitrária ou praticada com abuso de poder.

[...]

No caso, o Juiz concedeu a liminar em decisão assim lançada, na linha de tantas outras que irregularmente são proferidas no País:

´R. A.

Presentes os elementos autorizadores da medida liminar pleiteada.

Vê-se que, vislumbra-se no pleito formulado o fumus boni iuris e o periculum in mora.

Desta forma, defiro a liminar perseguida, determinando que, desde logo, expeça-se mandado para seu fiel cumprimento e citação válida.´

Não poderia o Juiz assim decidir, sem explicitar em que consistiria, na espécie, o fumus boni iuris e qual o perigo da demora, ainda que de forma concisa. Com efeito, era direito da parte contrária, até porque a liminar foi concedida sem a sua participação, que fossem explicitados os fundamentos da decisão, inclusive para que pudesse embasar futuro recurso.”

Portanto, não se vislumbra o error in judicando na decisão não fundamentada, até porque este seria de difícil apreciação, mas sim o error in procedendo, pelo que dá ensejo à nulidade, devendo o juízo prolator do decisum pronunciar-se no que tange à fundamentação, podendo até mesmo alterar seu anterior posicionamento não fundamentado

35.

Combate-se a ausência ou deficiência de fundamentação, como é óbvio, seja por meio de embargos declaratórios, que também incidem na decisão interlocutória, não obstante a letra fria da lei, seja por recurso de agravo de instrumento, seja, ainda, por intermédio do mandado de segurança, já que, pelos motivos expostos, há um direito líquido e certo do indivíduo juridicamente interessado em obter os fundamentos pelos quais se decidiu desta ou daquela forma.

86 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000

VII. O que diz a oposição?

Por fim, vale comentar que há uma corrente que diz que, se a decisão é indefe-ritória do pedido do autor e este interpôs o agravo com pedido de atribuição de efeito suspensivo ativo, por exemplo, não se imporia óbice a que o relator negasse o efeito suspensivo, por não estarem presentes os pressupostos autorizadores.

Argumenta-se que quando o relator nega efeito suspensivo, está tomando emprestada a fundamentação da decisão agravada. Estaria, desse modo, mantendo decisão judicial pelos seus próprios fundamentos.

Entretanto, como defendido por GILMAR MENDES no trecho citado, essa construção, apesar de engenhosa, viola às escâncaras o princípio da proteção do núcleo essencial, já que estabelece uma limitação incabível a um direito fundamental.

Diferente há a hipótese de o juiz lastrear seu julgamento em algum trecho das razões recursais, da decisão recorrida, de algum outro julgado, do parecer do Ministério Público, ou ainda, e principalmente, em algum trecho de doutrina. Desse modo, o juiz concretiza e exterioriza o que está decidindo com base naqueles argumentos.

Do contrário, seria necessário que o juiz reproduzisse o trecho, por con-cordar com ele, mas em outros termos, o que poderia configurar, além de uma inutilidade, um verdadeiro plágio.

VIII. Espécie de nulidade absoluta

A nulidade que ocorre nesta hipótese é de ordem pública, pois, em verdade, quando o juiz deixa de fundamentar uma decisão é o Estado de Direito e a legitimidade da função jurisdicional, como expus, que estão sendo tangenciados.

Como conseqüência, mesmo que o recorrente não ventile esse ponto, o Tribunal pode se pronunciar ex officio.

Foi o que decidiu a Quarta Turma do Tribunal Federal da 2ª Região, que já se manifestou nesse sentido pela lavra do Desembargador Federal CARREIRA ALVIM

36:

“Não se vislumbra na espécie mera fundamentação sucinta, mas deficiência de fundamentação atentatória aos preceitos legal e constitucional. Tal matéria é de ordem pública, prescindindo até mesmo de alegação da parte.”

JOSÉ DELGADO37

escreveu:

“Com razão, portanto, Lopes da Costa quando afirmou que o preceito da mo-tivação da sentença é de ordem pública, por colocar a Administração da Justiça a coberto de suspeita dos dois piores vícios que possam manchá-la: o arbítrio e a 35

O princípio da proibição da reformatio in pejus indireta, que, doutrinariamente, é criticado no processo penal, não pode ser invocado no processo civil.36

Ap. Cív. nº 44496/RJ, j. 05-10-93.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000 87

parcialidade.”

TERESA ARRUDA WAMBIER38

pondera:“Numa imagem matemática, dir-se-ia que o conjunto de matérias examináveis de ofício é maior do que o das matérias de ordem pública. Portanto, toda matéria de ordem pública é examinável de ofício, mas nem tudo o que pode ser examinado de ofício consiste em matéria de ordem pública.”

Inclusive, se é pedida, em vez da nulidade, a reforma da decisão agravada, pode o Relator, com base na ausência ou deficiência de fundamentação, de plano

39, ou a Turma

ou Câmara, dar parcial provimento ao recurso, já que a reforma nada mais é do que a desconstituição de um pronunciamento jurisdicional e a constituição de outro, ao passo que a nulidade é somente a desconstituição para que outro seja constituído.

TERESA ARRUDA WAMBIER40

defende a tese de que é absoluta a nulidade na hipótese de falta da fundamentação da decisão:

“A falta ou o vício de motivação, como se disse, são causas de nulidade da sen-tença. Taruffo inclina-se a considerar como inexistente a sentença a que falte um ‘conteúdo mínimo’, indispensável, de motivação, para que nela se reconheça o exercício legítimo do poder jurisdicional. Trata-se de um vício particularmente grave, e que, por isso, deveria ter sido tratado de forma especial pelo legislador, de maneira que ficasse claro não se poder aplicar a este vício o princípio da sanatória geral da coisa julgada.

[...]

Não há, portanto, na terminologia que propomos, sentenças eivadas de ‘nulidade relativa’. Elas só terão herdado do processo em que foram proferidas nulidades absolutas (as outras estarão preclusas) e os vícios intrínsecos, como há pouco vi-mos, consubstanciam-se, sempre, em nulidades absolutas. São, pois, sempre decretáveis de ofício.”

Vale somente lembrar que a doutrina de TERESA ARRUDA, embora esteja essencialmente voltada para a sentença, conforme indica o próprio título do livro, aplica-se também, perfeitamente, às decisões interlocutórias, porque, como disse, não

37 DELGADO, ob. cit. p. 32.

38 WAMBIER, ob. cit. p. 137.

39 Por força da lei nº 9.756/98, permite-se ao relator, adiantando o entendimento do colegiado,

sem excluir a viabilidade do agravo interno, dar procedência ao recurso, se a decisão agravada confrontar jurisprudência dominante de Tribunal Superior. De fato, no capítulo da jurispru-dência, há julgado firmemente acolhido pelo Superior Tribunal de Justiça, que, por outro lado, nunca, ao menos que eu conheça, manifestou entendimento em sentido contrário, ou seja, no sentido de que a fundamentação deficiente nessas hipóteses não gera a nulidade da decisão. É firme, portanto, a jurisprudência.40

WAMBIER, ob. cit. p. 258-269.

88 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000

há diferença ontológica entre a fundamentação das decisões incidentes ao processo e daquelas que o encerram. A dessemelhança básica reside apenas na extensão do decisum. É que a interlocutória e a terminativa podem ser concisas, ao passo que as definitivas não.

Desse modo, a nulidade, por todas as razões desenvolvidas nos capítulos precedentes e neste, é absoluta.

CELSO BASTOS41

defende opinião diversa:“A nulidade contemplada no preceito ora comentado (art. 93, IX) coloca a dúvida quanto a saber-se se na expressão está incluída a necessária determinação de que a falta de fundamentação venha a ser fulminada com a nulidade absoluta ou se ela se compadece com uma nulidade meramente relativa ou anulabilidade. Ao que nos parece, levando em conta preceito de interpretação constitucional, os termos técnicos utilizados pela Constituição não devem ser interpretados com o mesmo rigorismo que eles possuem na legislação infraconstitucional. Destarte, a Consti-tuição está utilizando a expressão nulidade dentro do contexto de uma teoria geral do ato inválido, do ato viciado, não se comprometendo, necessariamente, com uma ou outra formulação específica. O que é necessário é que seja respeitada a vontade constitucional que vê no ato uma invalidade, como algo que o vicia, portanto, que o torna passível de uma forma qualquer de desfazimento por vício. Às leis proces-suais incumbirá dizer, em cada caso concreto, se se trata de nulidade absoluta ou de nulidade relativa conforme a gravidade da própria decisão ou levando em conta outras realidades processuais. Não se poderia aplicar a Constituição por cima de toda a validade do processo a ponto de se decretar nula uma decisão interlocutória não fundamentada depois de o processo ter ultrapassado a fase própria para tanto, sob o fundamento de que a Constituição fala em nulidade. Quer-nos parecer que, nesse caso, trata-se de nulidade relativa e desde que não argüida em tempo hábil o ato se convalida.”

E CELSO arremata:“Em síntese, portanto, o termo nulidade contemplado no texto constitucional abrange tanto a nulidade absoluta, quanto a nulidade relativa, dependendo da gravidade do vício que macule o ato. A forma correta para dosar o teor dessa nulidade é dada pelas leis processuais tendo em vista o bom andamento do processo.”

Não posso concordar com esse posicionamento baseado no bom andamento do processo.

Assim, diz CELSO, não se poderia decretar a invalidade de todo um processo caso a nulidade de uma decisão interlocutória não fosse argüida a tempo.

41 BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo : Saraiva, 1997.

v. IV, t. III, p. 52 -53.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000 89

O argumento é sedutor e, não obstante revestido de muito “bom senso”, deve-mos dele desconfiar.

Primeiramente, é contraditório dizer que às leis incumbirá dizer se a nulidade é absoluta ou relativa e, mais à frente, afirmar que deve levar o juiz em conta outras “realidades processuais”. Ou é a lei ou são as realidades processuais.

Creio que, desse modo, o sistema ficaria quebrado e se voltaria a decidir com base em sentimento, intuição.

A intuição é boa, não se nega, mas desde que respaldada em algo mais concreto e estável, ao menos em termos ideais, que é a lei. E a lei processual, efetivamente, não prevê se a nulidade, nessa hipótese, é relativa ou absoluta.

Mas por todas as razões defendidas neste trabalho e, sobretudo, porque a própria Constituição comina a sanção processual, deve-se defender, a meu ver, a existência, neste caso, de uma nulidade absoluta.

Além do mais, o argumento de “bom senso” do professor paulista, com todas as vênias, não procede, uma vez que a nulidade da decisão interlocutória não implica necessariamente a nulidade de todo o processo.

É que, conforme principiologia estudada por TERESA ARRUDA, vê-se que vigora entre nós o princípio da conservação ou aproveitamento, que é a outra face do princípio da causalidade ou concatenação. É dizer: o vício do ato somente se propaga aos atos ulteriores que sejam dele dependentes, o que não ocorre necessariamente com a nulidade da decisão interlocutória, ainda mais se já proferida sentença. TERESA escreveu:

“Serão originárias as nulidades que se referirem ao ato viciado, e derivadas as que disserem respeito aos atos que, em si mesmos, nada têm de viciados, mas, por causa do princípio da interdependência, acabaram por contaminar-se da nulidade do ato que os terá antecedido. A nulidade, no processo, como se disse, se propaga.

Nessa propagação serão atingidos os atos subseqüentes e que guardem vínculo de dependência com o antecedente viciado.”

A sentença não guarda necessariamente vínculo de dependência com a decisão interlocutória.

Com efeito, aquele indivíduo atingido exclusivamente por esta pode impugnar sua nulidade por falta de fundamentação a qualquer tempo.

Ao fim e ao cabo, ainda discordando da doutrina do Professor CELSO RIBEI-RO BASTOS, ainda que vista a ausência de fundamentação sob o prisma puramente formal, há formalidades que não podem ser superadas, pelo que trago ao debate três ensinamentos para a nossa vida, citados pela Professora TERESA ARRUDA ALWIM WAMBIER

42:

“JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA: Confiar ao juiz papel mais ativo não

90 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, jan./jun. 2000

implica forçosamente instaurar no processo civil o domínio do autoritarismo ou do paternalismo.

SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA: A eliminação das formalidades apresenta-se geralmente como fonte geradora de despotismo.

JOÃO BATISTA LOPES: É muito difundida a idéia de que o magistrado deve libertar-se das formalidades legais e procurar a verdadeira justiça. Os riscos dessa orientação são evidentes. Não há confundir formalidade com formalismo. Só este deve ser evitado, não aquela.”

Para encerrar, num dos trechos de BARBOSA MOREIRA citados, diz o Pro-fessor Titular da UERJ que somos convocados a contribuir com sugestões específicas e concretas para a grande tarefa de reconstrução de uma ordem jurídica que atenda aos anseios do País e que incumbe a cada qual trazer o seu adminículo, modesto que seja, para dar forma visível e precisa ao ideal comum.

Foi isso que tentei fazer nessas minhas modestas e concretas sugestões, em que pese o contexto de o nosso País se haver modificado de 1978 para cá.

Encerro, portanto, não sem antes dizer que respeito muitíssimo todas as opiniões em contrário, porque isso também é sinal de que estamos num Estado Democrático de Direito, e me desculpar pela ênfase do discurso, sinal da jovialidade do autor, e pelo excesso de citações, sinal de falsa erudição.

42 WAMBIER, obra citada, p. 136 e 138.