a funcionalização do direito penal a partir de critérios de política criminal
DESCRIPTION
Ganha cada vez mais aceitação, no âmbito científico, um Direito Penal não só orientado, mas verdadeiramente definido por critérios teleológicos de Política Criminal. A Política Criminal passou a orientar a Dogmática, adquirindo um papel de particular proeminência no âmbito da “Ciência Conjunta do Direito Penal”. Na prática, isso significa atribuir aos agentes políticos do Estado o poder de definir o que é o Direito Penal de acordo com os seus projetos. O novo objeto da Política Criminal do séc. XXI é orientado pela globalização à prevenção das ações humanas tipificadas como delituosas. As categorias e os conceitos da Dogmática Jurídico-penal agora apresentam-se funcionalmente determinados pelas finalidades eleitas pela Política Criminal. A influência desses critérios pode ser desejável, desde que limitada pelos princípios de garantia e regras que regem o Estado Democrático de Direito e pelas disposições constitucionais. Não se pode simplesmente tentar impedir que os valores sociais repercutam sobre o Direito Penal, mas antes é preciso prevenir que esses valores estejam em conformidade com o modelo de sociedade almejado.TRANSCRIPT
-
Conhea nossa nova pgina: www.ibccrim.org.br
ANO 23 - N 270 - MAIO/2015 - ISSN 1676-3661
| Editorial
Manoel Pedro Pimentel e as Cincias
Penais de nosso tempo
Alamiro Velludo Salvador Netto ______2
DIREITO PENAL EM DEBATE
Feminicdio: o equvoco do pretenso
Direito Penal emancipador
Juliana Garcia Belloque _____________3
DIREITO PENAL EM DEBATE
Sobre o feminicdio
Ela Wiecko V. de Castilho ___________4
DIREITO PENAL EM DEBATE
Um copo meio cheio
Marta Machado e Fernanda Matsuda __5
Protesto de presos: a exculpao da
reao em face da violao das garantias
individuais
Jos Rafael Fonseca de Melo _________7
Gargalos tampados
Mara Zapater ____________________9
O prenncio de um Direito Penal de
empresa no Brasil
Victor Augusto Estevam Valente _____11
O art. 265 do CPP e o exagero na sua
utilizao
Euro Bento Maciel Filho ___________14
Drogas e catstrofe: a poltica criminal da
guerra permanente no Brasil
#iago Fabres de Carvalho _________16
A funcionalizao do Direito Penal a
partir de critrios de poltica criminal
Carlo Velho Masi _________________18
| Caderno de Jurisprudncia
| O DIREITO POR QUEM O FAZ
Tribunal de Justia do Estado
de So Paulo ______________ 1845
| SISTEMAS REGIONAIS DE DIREITOS HUMANO
Corte interamericana de direitos
humanos _________________1846
| JURISPRUDNCIA
Supremo Tribunal Federal ___ 1848
Superior Tribunal de Justia __ 1848
Superior Tribunal Militar ____ 1849
Tribunal Superior Eleitoral ___ 1850
Tribunal Regional Federal ___ 1850
Tribunal de Justia _________ 1852
Editorial
No reduo da maioridade penalAps praticamente 25 anos de indiferena quanto
doutrina da proteo integral trazida pelo ECA, como que por ironia, a Comisso de Constituio e Justia da Cmara dos Deputados aprovou, por 42 votos a favor e 17 contra, a tramitao da PEC 171/93, que pretende
prever o incio da imputabilidade penal aos 16 anos.
A inimputabilidade penal representa uma das garantias fundamentais da pessoa humana, uma vez que
se a condio peculiar de pessoa em desenvolvimento
Dessa forma, a simples deliberao de proposta de emenda tendente a abolir ou minorar os direitos e garantias individuais, ou seja, as regras de proteo do indivduo frente ao Estado, j se revela como afronta Constituio que, em seu art. 60, 4, IV, trata tal matria como imutvel pelo Poder Constituinte Derivado.
Alm disso, a normativa internacional de defesa dos direitos humanos encampa o princpio da vedao ao retrocesso, em que a previso e a efetivao dos direitos deve ser realizada de forma progressiva, cada vez mais abrangente. Nesse sentido, a reduo da maioridade penal no poderia ser admitida sequer com o estabelecimento de uma nova Constituinte, sob pena de responsabilizao internacional do Estado Brasileiro. A Comisso Interamericana de Direitos Humanos, alis, j se pronunciou recentemente acerca da PEC 171/93,
grave retrocesso e uma violao dos direitos fundamentais dos adolescentes, pois viola sua garantia de ser tratado por uma justia juvenil especializada.
No bastasse o bice decorrente da sistemtica normativa, a proposta de emenda constitucional
equivocada noo de ser o Direito Penal capaz de prevenir e impedir delitos, promessa essa que nunca
que a PEC produzir efeitos nocivos sociedade, tendo em vista que a insero precoce de pessoas no crcere poder acarretar sua morte social: ao permanecer
bvios que dispensam argumentao.
em que esto a aprender a lidar com a emancipao e a liberdade, criar ambientes mais propcios para o ingresso da juventude nas carreiras criminosas.
Sobre esse aspecto, imprescindvel a anlise dos ndices de reincidncia. Embora tais nmeros no sejam absolutamente seguros, nenhuma poltica sobre
de se ter em vista, por outro lado, que os atos
infracionais praticados por adolescentes no chegam a
das vtimas de homicdios no Brasil so adolescentes,
justamente por se tratar de parcela da populao mais carente de polticas pblicas, em escancarada oposio
evidente que h muitos outros argumentos, como
parlamentares. Por outro lado, s neste peridico, ao longo de mais de 20 anos, h dezenas de manifestaes
no qual se pontuou que negar os valores do Estatuto da Criana e do Adolescente e enfatizar a reduo da maioria penal como soluo para a crise de segurana mais do que escamotear a verdade. iludir a opinio pblica com fantasias e alimentar a hipocrisia. Acima de tudo, um lamentvel equvoco histrico, pois estigmatizar crianas como criminosos, penalizar adolescentes e criminalizar jovens, negar s novas geraes o direito de forjar seu projeto de sociedade. impedi-las de construir seu futuro em bases aliceradas na ideia de incluso social, no princpio da solidariedade e no respeito aos direitos civis.
O debate, em todo esse tempo, infelizmente em nada evoluiu. indispensvel repisar que o objetivo de todos deve ser comum: construir uma sociedade com o
nessa consecuo.No se ignora que o momento poltico seja dos
mais perigosos para os direitos e garantias plasmados na
o Brasil signatrio. No se pode ignorar, tambm, que nesses tempos de crise que se forjam unies potentes entre diversos atores sociais. Que mais essa tentativa de reduo da maioridade penal sirva para isso: alertar a todos que no basta se opor ao retrocesso; preciso forar o avano com a mesma intensidade e convico.
poder publicar no um editorial para, em coro a tantas outras instituies nacionais e internacionais, se contrapor mais uma proposta de reduo da maioridade penal, mas para comemorar que a famlia, a sociedade e o Estado criana, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito vida, sade, alimentao, educao,
ao respeito, liberdade e convivncia familiar e comunitria, alm de coloc-los a salvo de toda forma de negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade e opresso (art. 227, caput
Enquanto esse tempo no chega, ao menos em
no , uma boa ideia que se comece a cumprir a
impossvel , ao menos teremos dado aos nossos jovens e nossa sociedade o direito de sonhar.
-
ANO 23 - N 270 - MAIO/2015 - ISSN 1676-3661
Publicao do Instituto Brasileiro de Cincias Criminais
18
ANO 23 - N 270 - MAIO/2015 - ISSN 1676-3661
A funcionalizao do Direito Penal a partir de critrios de poltica criminalCarlo Velho Masi
teleolgicos de Poltica Criminal. Os grandes debates se travam entre
jurdico, ou seja, entre polticas criminais diversas.
condies histricas e pressupostos dogmticos. Hoje, considerando os malefcios da criminalidade moderna, a Poltica Criminal que orienta a Dogmtica. Sendo assim, no apenas o legislador, mas o intrprete do Direito Penal passa a observar as decises polticas para, em funo delas, adotar determinados posicionamentos. Esta a razo de Zaffaroni atribuir Poltica Criminal contempornea o forte componente de poltica institucional, uma vez que ela passaria a abarcar em seu campo a valorao da estrutura do sistema penal e das propostas formuladas a seu respeito.
do Direito Penal.
com os seus projetos (que teoricamente deveriam visar ao interesse
poderia dar azo a uma insegurana muito grande quanto aos critrios
movimento irreversvel.
Coube a Roxin, um dos maiores defensores deste modelo de
Direito Penal.
criminais no apenas deveria integrar o objeto de estudo do Direito Penal, como a prpria construo das suas categorias dogmticas
Como bem pondera Muoz Conde
desde el momento en que el
es necesario que tambin se tengan en cuenta en su elaboracin
so atributos que, hoje, se complementam. A importncia que os direitos fundamentais adquiriram na sociedade hodierna faz com que a Dogmtica deva atuar no estudo conceitual dos institutos antes mesmo da sua entrada em vigor. As categorias e os conceitos bsicos
devem ser determinados e cunhados a partir de proposies poltico-criminais e da funo que por estas lhes assinalada no sistema.
A Poltica Criminal ganhou ento uma funo inteiramente nova e
penais, que interessavam apenas ao legislador, e no ao jurista, ela Figueiredo Dias
observa que esta atribuio acaba tornando o Direito Penal a forma
vazam no modus da validade jurdica, razo pela qual novamente as bases da legitimao penal devero ser buscadas nos princpios clssicos.
(das decises sobre a vida na Polis pode designar a mera prtica dos rgos do Estado e, em algumas ocasies, de particulares; ou pode
cuja misso ser proporcionar uma fundamentao racional prtica
com este. Fazer Poltica Criminal adquire, neste sentido, a funo de decidir legitimamente sobre a preveno de condutas relacionadas com o delito.
O aumento de criminalizaes decorre do avano tecnolgico, que traz consigo novos riscos sociedade. Por isso, o novo objeto
toma em considerao no s as decises legislativas, mas tambm outras instncias do poder (Ministrio Pblico, Polcia, Judicirio,
seja, todos os agentes da poltica.
H quem j chegue a
como um de seus instrumentos de preveno de condutas ilcitas, convivendo com o Direito Administrativo, o Direito Processual, o Direito Civil, entre outros setores. Como assenta Pablo Snchez-Ostiz, Se percibe ya que la Poltica dirigida a la prevencin de delitos cuenta con un instrumentarlo jurdico amplio, sem descartar outros meios no jurdicos.
Sin embargo, hay no pocos instrumentos, menos clamorosos, ms a
como la educacin no solo moral y cvica, sino tambin profesional ,
calidad de las ciudades, parques, o hasta de los transportes pblicos. La Poltica criminal en un Estado de Derecho aspira a regirse
por principios que constituyen a su vez lmites del ejercicio del poder y garanta de derechos y libertades.
do Direito Penal positivo. Sua funo ltima consiste em servir de padro crtico e em oferecer um critrio de determinao dos limites
Roxin aponta que o benefcio de estruturar categorias basilares permite
transformar no s postulados sociopolticos, mas tambm dados empricos e, especialmente, criminolgicos em elementos fecundos para a Dogmtica jurdica
social.
Figueiredo Dias alerta, contudo, que, ainda que teoricamente prevalea sobre a Dogmtica, a Poltica Criminal est invariavelmente
guiar pelos fundamentos constitucionais da concepo do Estado de
criminais devem ser procuradas e estabelecidas no mbito dos valores e dos interesses que integram o consenso comunitrio mediado e positivado pela Constituio. Dessa forma, a Poltica Criminal dever conceder especial ateno proteo dos direitos, das liberdades e das garantias de toda e qualquer pessoa.
Por outro lado, h autores que sustentam o absoluto equvoco de
-
19
ANO 23 - N 270 - MAIO/2015 - ISSN 1676-3661
Esta linha sustenta que isso desproveria a Dogmtica de referenciais
Penal e Poltica Criminal corresponderiam a campos diversos, com
de legitimidade/validade no mbito do prprio Direito Penal, com a principiologia e os fundamentos que lhe so inerentes. Assim, para DAvila a legitimidade do ilcito deve ser buscada na sua dimenso material, no fragmento de realidade que lhe confere concretude.
Acreditamos que, a despeito de o risco da funcionalizao da disciplina a partir de critrios de Poltica Criminal ser a politizao do Direito Penal para a promoo de campanhas eleitorais, certo
pelos princpios de garantia e regras que regem o Estado Democrtico de Direito e pelas disposies constitucionais.
Isso implica dizer que no se pode simplesmente tentar impedir que os valores sociais repercutam sobre o Direito Penal, mas antes preciso prevenir que esses valores estejam em conformidade com o modelo
em uma sociedade com valores verdadeiramente democrticos, em que os lderes polticos atuem a servio da verdadeira democracia. Do contrrio, toda e qualquer Poltica Criminal est fadada a atuar como instrumento simblico de atendimento paliativo dos reclames sociais emergentes.
ARENDT, Hannah. O que poltica? .
BATISTA, Nilo. Introduo crtica ao direito penal brasileiro.
DAVILA
Revista Sntese de Direito Penal e Processual Penal
DIAS Direito penal
_______. O papel do direito penal na proteo das geraes futuras. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
GRECO LEITE Revista Liberdades, So Paulo,
MASI
conjunta do direito penal. Boletim IBCCRIM, So Paulo, a. 22, n. 261, p.
MUOZ CONDEcriminal: historia de una relacin atormentada. Revista de Estudos Criminais,
PREZ CEPEDA, Ana Isabel. La seguridad como fundamento de la deriva del derecho penal postmoderno. Madrid: Editora Iustel, 2007.
ROXIN, Claus. Estudos de direito penal
_______. Poltica criminal e sistema jurdico-penal.2000.
SNCHEZ OSTIZ, Pablo. Fundamentos de poltica criminal: um retorno a los princpios. Madrid: Marcial Pons, 2012.
SILVA SNCHEZ SNCHEZ OSTIZ, Pablo. Fundamentos de poltica criminal: um retorno a los princpios. Madrid: Marcial Pons, 2012.
ZAFFARONI Direito penal brasileiro.2003.
Notas
DAVILARevista Sntese de Direito
Penal e Processual Penal
especialmente p. 47. Segundo GRECO LEITERevista Liberdades,
especialmente p. 107, Para Roxin, no possvel extrair de dados pr-jurdicos solues para problemas jurdicos, de modo que a teoria do delito tem de ser construda sobre fundamentos normativos, referidos aos fins da pena e aos fins do direito penal, isto , a poltica criminal. O caminho correto s pode ser deixar as decises valorativas poltico-criminais introduzirem-se no sistema do direito penal (... . Com isso, Roxin delineia as bases de sua concepo funcional ou teleolgico-racional da teoria do delito, que obteve vrios adeptos dentro e fora da Alemanha e encontrou, em seu posterior Tratado, sua verso mais elaborada.
(2 BATISTA, Nilo. Introduo crtica ao direito penal brasileiro.
DIAS
futuras. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra,
p. 56.
ZAFFARONI Direito penal brasileiro.
(5 MASIconjunta do Direito Penal. Boletim IBCCRIM, So Paulo, a. 22, n. 261, p.
(6 ROXIN, Claus. Poltica criminal e sistema jurdico-penal. p. 20.
(7 Idem, ibidem.
MUOZ CONDERevista de
Estudos Criminais, especialmente p. 12.
(9 ROXIN, Claus. Estudos de direito penal
DIAS Direito penal
Idem, ibidem.
(12 Para ARENDT, Hannah. O que poltica?Brasil, 2004. , a poltica se baseia na pluralidade dos homens e na
de todos os homens entre si de acordo com uma igualdade relativa e em contrapartida s diferenas relativas. O sentido da coisa poltica os homens terem relaes entre si em liberdade, entendida tanto negativamente quanto positivamente.
SILVA SNCHEZ SNCHEZ-OSTIZ, Pablo. Fundamentos de poltica criminal: um retorno a los princpios. Madrid: Marcial Pons, 2012. p. 13.
(14 PREZ CEPEDA, Ana Isabel. La seguridad como fundamento de la deriva del derecho penal postmoderno. Madrid: Editora Iustel, 2007. p. 309.
SNCHEZ-OSTIZ, Pablo. Fundamentos de poltica criminal... cit., p. 25.
DIAS Direito Penal: parte geral cit., p. 34.
SNCHEZ-OSTIZ, Pablo. Fundamentos de poltica criminal... cit., p. 34.
Idem, ibidem, p. 35.
(19 ROXIN, Claus. Estudos de direito penal
(20 DIAS Direito penal: parte geral cit., p. 35.
(21 DAVILARevista Sntese de Direito
Penal e Processual Penal
(22 PREZ CEPEDA, Ana Isabel. La seguridad como fundamento de la deriva del derecho penal postmordeno. Madrid: Iustel, 2007. p. 51.
Carlo Velho MasiMestre em Cincias Criminais pela PUC-RS.
Especialista em Direito Penal e Poltica Criminal pela UFRGS. Advogado criminalista.