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FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO DA USP DEPTO DE PROJETO | GRUPO DE DISCIPLINAS DE PLANEJAMENTO
AUP 270 A FORMAÇÃO DO ESPAÇO NACIONAL CSABA DEÁK | NUNO FONSECA | KLÁRA MORI | ANDREÍNA NIGRIELLO
A FRAGMENTAÇÃO DO ESPAÇO NACIONAL BRASILEIRO CONSIDERAÇÕES À LUZ DA TEORIA DA ACUMULAÇÃO ENTRAVADA
MARINA ANDRADE LEONARDI N. 6452023 | 1º SEMESTRE 2010
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Ao refletir sobre a organização do espaço habitado por uma sociedade, é preciso levar em
conta que esse espaço é produzido pela sociedade que o habita, segundo determinadas
intenções. Dessa forma, analisar a configuração do espaço nacional brasileiro implica
compreender as características da sociedade que a delineou e mantém, e implica, além
disso, entender como está organizado o processo produtivo no país, situando-o dentro de
um estágio de desenvolvimento.
Neste trabalho, que propõe uma discussão sucinta sobre a fragmentação do espaço
nacional brasileiro, adotaremos a interpretação de Csaba Deák sobre a sociedade e a
organização produtiva do país.
A SOCIEDADE DE ELITE E A ACUMULAÇÃO ENTRAVADA NO BRASIL
Segundo Deák, a sociedade brasileira é uma sociedade de elite, cuja formação remonta
ao período colonial. No século XIX, durante o processo da Independência, grupos sociais
da classe dominante local se organizaram, ganharam força e passaram a guiar a
constituição do Estado brasileiro com base num só objetivo: assegurar as condições de
reprodução do status quo ante. Isso significava manter a estrutura social da Colônia e a
organização produtiva que a sustentava.
A organização da produção colonial
A produção colonial visava, em primeiro lugar, gerar um excedente que seria enviado à
metrópole. Também havia, no entanto, uma parcela da produção destinada à
sobrevivência e reprodução social local. Deák esclarece que esses dois processos — o
de extração de excedente por parte da metrópole e o de produção e reprodução local —
eram processos antagônicos, já que o segundo — apesar de ser a própria base para a
ampliação do primeiro — só poderia se desenvolver plenamente se utilizando do
excedente por ele mesmo produzido (o que já seria incompatível com a ampliação do
primeiro processo). Sendo assim, para que a produção colonial se desenvolvesse de
acordo com os interesses da metrópole, o princípio da extração de excendente precisava
ser continuamente reimposto contra a tendência para a ampliação da reprodução local.
Essa reimposição se deu por vários meios — entre os quais, no Brasil, predominou a
redução da escala da reprodução local.
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No século XIX, como dissemos, havia grupos sociais organizados e influentes que
desejavam constituir o Estado nacional sem abrir mão dessa estrutura produtiva. Para
preservar a ordem econômica e social, esses grupos promoveram uma pequena
transformação — ou talvez “adaptação”: substituíram a exploração colonial pela
expatriação de excedente (a princípio como forma de pagamento dos juros sobre a dívida
externa com a Inglaterra, contraída como condição do reconhecimento da independência
por parte de Portugal). Como sintetiza Deák: “O que era determinado de fora passa a ser
determinado de dentro.” (1999: 8)
A expatriação de excedente como princípio da acumulação entravada
Vimos que a sociedade de elite brasileira, ao constituir o Estado nacional como base
institucional para a manutenção do status quo ante, adotou o princípio da expatriação de
excedente visando preservar a base material para sua continuada reprodução. Esse
princípio fundamenta o processo que Deák denominou de acumulação entravada, distinto
tanto da exploração colonial quanto da acumulação capitalista em geral.
O processo de acumulação entravada apresenta antagonismos intrínsecos semelhantes
àqueles que descrevemos anteriormente com relação ao processo produtivo colonial.
Trata-se da oposição entre a expatriação de excedente e a acumulação autônoma —
oposição análoga à que havia na Colônia entre extração de excedente por parte da
metrópole e ampliação da produção local. Assim como, no período colonial, era
necessário reimpor continuamente o princípio da extração de excedente, após a
Independência, com o estabelecimento do processo de acumulação entravada, tornou-se
necessário reimpor continuamente a primazia da expatriação sobre a acumulação.
Nessa comparação, nota-se, entretanto, uma diferença importante: enquanto a produção
colonial se baseava no trabalho escravo, após a constituição do Estado nacional passou-
se a utilizar a mão-de-obra assalariada. Como a ampliação da força de trabalho (às
custas do aumento da massa salarial) é uma condição da maximização do excedente
expatriável, passou-se a empregar uma pequena parcela da produção acumulada (não
expatriada) com esse objetivo (ampliar a força de trabalho), tendo como resultado uma
inevitável expansão do mercado interno. Esse mercado interno é regido pelas leis da
acumulação, que representam uma força antagônica à expatriação do excedente. O
conflito gerado por esse embate — em suma, o conflito entre as forças pró e contra a
manutenção do status quo — deflagrou crises sucessivas ao longo da história do Brasil.
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A acumulação entravada e os estágios de desenvolvimento
Neste ponto, vale esclarecer que o processo de acumulação entravada se relaciona
diretamente com os estágios de desenvolvimento do país. Para Deák, só durante o
estágio de acumulação extensiva é que estão presentes as condições necessárias para
que ocorra a acumulação entravada. Com a transição para o estágio de acumulação
intensiva, porém, essas condições se perdem, e a acumulação entravada torna-se
“impossível”.
No final dos anos 1980, Deák apontava que o estágio de acumulação extensiva havia se
esgotado no Brasil. Por isso, se questionava sobre como seria superada a crise daquele
período, isto é, em que condições e com que sucesso seria empregado mais uma vez o
antigo expediente de reimposição da primazia da expatriação de excedente sobre
tendência de acumulação autônoma.
É difícil concluir se a transição para o estágio de acumulação intensiva já ocorreu por
completo e se, conseqüentemente, o país abandonou o princípio produtivo da acumulação
entravada. No entanto, mesmo que essa transição já tenha ocorrido ou esteja em
processo, considerando que os seus efeitos levariam algum tempo para se expressar no
espaço físico nacional, adotaremos, neste trabalho, a hipótese de que os princípios da
acumulação entravada ainda se manifestam na organização desse espaço.
A ACUMULAÇÃO ENTRAVADA E A FRAGMENTAÇÃO DO ESPAÇO NACIONAL
Como dissemos no início, a organização do espaço nacional brasileiro deve ser
relacionada às características específicas da sociedade que o produz, sempre levando
em conta as intenções que a motivam. Procuramos deixar claro esse pressuposto para
nos contrapormos ao que Klára Mori chamou de “ideologização do espaço”, isto é, o
emprego de um conjunto de expedientes ideológicos para sustentar a falsa idéia de que o
espaço se forma aleatoriamente, “como se fosse produto da atuação anárquica de um
conjunto de ʻatoresʼ individuais ou coletivos sobre o território.” (1997: 107-108)
Tomando por base o texto Brasil: urbanização e fronteiras, discutiremos sucintamente a
fragmentação do espaço nacional como expressão e instrumento da acumulação
entravada. Em primeiro lugar, porém, é preciso esclarecer o que queremos dizer com
“espaço nacional fragmentado”. Esse esclarecimento pode ser feito indentificando-se
alguns mecanismos da fragmentação.
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Mecanismos da fragmentação do espaço nacional
Do ponto de vista político-administrativo, o que chamamos de fragmentação do espaço
nacional está representado graficamente nos mapas políticos do território brasileiro, que
mostram sua divisão em regiões, estados e municípios (Fig. 2). O que vemos nos mapas
de hoje, note-se, é apenas o arranjo atual para um princípio de segmentação adotado
desde o século XVI (Fig. 1). Durante a colônia, o país fora repartido em capitanias
hereditárias e depois em capitanias da corte; alçado à categoria de Reino-Unido, ganhou
uma nova divisão em províncias; no Império, surgiu a categoria dos estados — que,
juntamente com a dos municípios, se consolidou durante a República. Fazendo um
parênteses, podemos dizer que a fragmentação territorial foi mais uma das características
do Brasil-colônia que a elite se esforçou em manter após a Independência.
Assim como a delimitação de estados e municípios, a definição de grandes regiões,
embora tenha sofrido alterações ao longo do tempo, sempre expressou um princípio de
segmentação, tanto da leitura do do território quanto das intervenções sobre ele (Fig. 3).
FIGURA 1. Modelo da formação dos Estados brasileiros
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FIGURA 2. Estados e regiões do Brasil
FIGURA 3. Evolução das grandes regiões brasileiras
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Devemos observar que o processo de fragmentação baseado especialmente na criação
de novos municípios tem-se acentuado de maneira profunda desde meados do século
passado (Fig. 4). Além de contribuírem para a heterogeneização e ampliação das
fronteiras internas ao espaço nacional, os sucessivos desmembramentos das unidades
político-administrativas oneram os cofres da União, uma vez que — segundo estimativa
de Klára Mori — dos cerca de 6 mil municípios brasileiros, apenas mil têm autonomia
financeira, enquanto os demais vivem às custas de recursos repassados pelo Estado.
É importante frisar que a fragmentação político-administrativa se traduz numa
fragmentação física do território — pois, além da administração política, também a gestão
do espaço foi descentralizada e pulverizada. Por um lado, cada unidade goza de certa
autonomia para lidar com seus próprios interesses e potencialidades; por outro, não existe
uma política nacional de planejamento que promova a unificação entre as “partes”. O
resultado é um processo de ordenação do espaço que ocorre em escalas mais ou menos
locais geralmente de forma desconectada com o resto do país.
“Desconexão”, aliás, é o princípio geral adotado pelo Estado para reforçar as
contratendências ao processo de formação do mercado unificado. Esse princípio se
expressa exemplarmente nas políticas públicas com relação à infraestrutura de
transportes, que é mantida em condições de grande precariedade e com uma distribuição
heterogênea pelo território (Fig. 5). Dentro da lógica da acumulação entravada, trata-se da
imposição de mais um bloqueio ao desenvolvimento autônomo do país.
A fragmentação é também promovida por mecanismos jurídico-tributários — estes menos
evidentes nas representações gráficas — que criam, reproduzem ou ampliam padrões de
diferenciação interna do território. Para citar um exemplo, a distinção entre zonas rurais e
urbanas, embora não se sustente do ponto de vista da produção capitalista de
mercadorias, é mantida em função da existência de impostos territoriais distintos e da
diferenciação entre trabalhadores do campo e da cidade nos termos da CLT
(Consolidação das Leis do Trabalho). Outro exemplo é suscitado por manchetes
escandalosas sobre o “caos fundiário” na Amazônia, onde “apenas 4% das terras rurais
estão legalizadas” (COUTINHO, 2009: 32); de fato, a inexistência de um controle jurídico
e institucional da propriedade privada acentua a idéia de que o território brasileiro é
retalhado por “terras de ninguém”.
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FIGURA 4. Evolução da formação dos municípios 1940-1990
FIGURA 5. Redes de transportes no Brasil
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Este último caso evidencia um outro mecanismo que contribui para a fragmentação do
território: a ideologia. Construída pela classe dominante, ela procura obstruir a apreensão
da totalidade do espaço nacional, reforçando a idéia de que a heterogeneidade é
intrínseca a ele e não pode ser atenuada. Na verdade, a retórica acentua as diferenças ao
ponto de elas parecem “naturais” e quase insolúveis. Mesmo assim, há também um
discurso de que as intervenções do Estado buscam a diminuição das desigualdades
regionais e o desenvolvimento do país como um todo. Em resumo, a atitude do Estado
diante da heterogeneidade do espaço nacional é, nas palavras de Klára Mori, “a
conversão do desigual em objeto, sua ratificação, oficialização e (sempre sob o pretexto
de combatê-lo), sua reprodução.” (1997: 108)
Fragmentação como projeto do Estado de elite
A ideologia faz parecer que a fragmentação do espaço brasileiro é um dado de realidade
inescapável, enquanto de fato ela é um produto do projeto nacional traçado pelo Estado
de elite. Não podemos perder de vista que a manutenção da heterogeneidade do território
convém aos interesses da classe dominante, na medida em que bloqueia a formação do
mercado unificado e a expansão da acumulação autônoma — garantindo mais uma vez a
primazia da expatriação de excedente. Trata-se de um projeto nacional que objetiva,
portanto, manter a “constelação de espaços locais”, barrando a constituição de um
“espaço em que mercadorias, trabalho e capital fluam livremente e numa escala
suficientemente grande para sustentar um processo autônomo de acumulação” (DEÁK
apud MORI, 1988: 27).
O bloqueio da apreensão e do aproveitamento do espaço nacional como um todo também
se faz por meio da regionalização das ações governamentais sobre o território. Sempre
com o suporte da ideologia, a institucionalização da estrutura de diferenciação interna do
espaço nacional justificou a adoção de uma “política regionalizada”, com base no discurso
de que, diante do “alto grau de heterogeneidade do território”, é mais eficiente adotar
intervenções específicas para cada região do que ações abrangentes de unificação.
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CONCLUSÃO
De forma muito resumida, este trabalho procurou mostrar como a configuração do espaço
nacional brasileiro expressa os interesses da sociedade de elite, calcados na manutenção
do status quo. Partindo da compreensão do sistema produtivo adotado no país, que se
baseia no princípio da acumulação entravada, percebe-se que a fragmentação espacial
faz parte do projeto nacional do Estado de elite, pois se constitui em mais um instrumento
de bloqueio da acumulação autônoma no país. Procurou-se ainda frisar o papel
fundamental da ideologia na sustentação das políticas adotadas pelo Estado.
O sucesso dos expedientes ideológicos é evidente — basta notar que a fragmentação do
território não é apontada como desvantajosa pelo censo comum, e nem por parte da
produção intelectual. Um entendimento mais claro do que ela representa, entretanto, é
imprescindível para compreender o processo de produção e reprodução do espaço
nacional e quem sabe, futuramente, poder intervir nesse processo.
BIBLIOGRAFIA
COUTINHO, Leonardo. Terra sem lei. Revista Veja, edição especial “Amazônia”, s/n,
setembro de 2009, pp. 32-37. Disponível no sítio:
http://veja.abril.com.br/especiais/amazonia/terra-sem-lei-p-32.html. Acesso em 10/6/10.
DEÁK, Csaba. Acumulação entravada no Brasil e a crise dos anos 80. In: Deák,
Csaba e Schiffer, Sueli. O processo de urbanização no Brasil. São Paulo:
Edusp/Fupam, 1999.
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Sítio: http://www.ibge.gov.br. Acesso
em 10/6/10.
MORI, Klára. Brasil: urbanização e fronteiras. São Paulo: FAUUSP, Tese de
Doutorado, 1997.
MORI, Klára. Contribuição ao estudo da formação do espaço brasileiro. São Paulo:
FAUUSP, Dissertação de Mestrado, 1988.
THÉRY, Hervé; MELO, Neli Aparecida de. Atlas do Brasil. Disparidades e dinâmicas do território. São Paulo: Edusp, 2006.
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CRÉDITO DAS IMAGENS
1. THÉRY, Hervé; MELO, Neli Aparecida de. Atlas do Brasil. Disparidades e dinâmicas
do território. São Paulo: Edusp, 2006, p. 48.
2. Id., ibid., p. 15.
3. Id., ibid., p. 268.
4. IBGE, Diretoria de Geociências, Departamento de Geografia, Anuário Estatístico do
Brasil, 1993. Obtido no sítio http://www.ibge.gov.br/mapas_ibge/pol.php, link “Evolução
municipal”. Acesso em 10/6/10.
5. THÉRY; MELO. Op. cit., p. 197.