a fotografia e o inconsciente

5
A fotografia, o inconsciente e o esquecimento Eduardo Vieira da Cunha* O absurdo aumento de dados oferecidos por um meio como a internet,, nos faz refletir sobre a questão da forma de assimilação das imagens que nos cercam. E nesse ponto a fotografia é o principal vetor. Uma estética possível da imagem fotográfica vai ter sempre que levar em conta as questões de assimilação e esquecimento, e suas ligações com a psicanálise. Fotografar revela antes de tudo um desejo compartilhar uma imagem, de faze-la de alguma forma e por algum tempo inesquecível, desejo que é o mesmo do ato de compartilhar e tornar presente e perene uma imagem psíquica, em uma conversa com um analista. Quando se conta um sonho, por exemplo. Mas poderíamos dizer que este não é um privilégio da fotografia, ele está presente em qualquer forma de representação. Vejamos depois o que especifica a fotografia. A fotografia pode ser vista como um instrumento de assimilação psíquica do mundo que nos rodeia: o conjunto de informações visuais as quais nós somos submetidos provoca uma impossibilidade de assimilação e de metabolização. Trata-se da definição psicanalítica do traumatismo. É traumático tudo aquilo que não pode ser psiquicamente metabolizado sob a forma de uma elaboração psíquica, quer dizer, simbolizado. Neste ponto insere-se a fotografia, como uma forma de lutar contra este traumatismo, contra esta perda: do momento, do objeto e do tempo. A fotografia nos demonstra que a perda não é irremediável. A linguagem pode ser analisada sob essa estética da perda, do luto que se instaura na hora da obtenção da imagem, e na recuperação desta mesma imagem em um segundo momento. Para François Soulages, perdas infinitas representam restos infinitos. Se uma foto qualquer foto pode ser definida como o efeito de luz sobre uma superfície sensível, o conceito de inconsciente algo é mais bem mais difícil de ser definido. 1

Upload: alisson-perna-torta

Post on 28-Sep-2015

231 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Eduardo Vieira da Cunha

TRANSCRIPT

A fotografia e o inconsciente

A fotografia, o inconsciente e o esquecimento

Eduardo Vieira da Cunha*

O absurdo aumento de dados oferecidos por um meio como a internet,, nos faz refletir sobre a questo da forma de assimilao das imagens que nos cercam. E nesse ponto a fotografia o principal vetor. Uma esttica possvel da imagem fotogrfica vai ter sempre que levar em conta as questes de assimilao e esquecimento, e suas ligaes com a psicanlise. Fotografar revela antes de tudo um desejo compartilhar uma imagem, de faze-la de alguma forma e por algum tempo inesquecvel, desejo que o mesmo do ato de compartilhar e tornar presente e perene uma imagem psquica, em uma conversa com um analista. Quando se conta um sonho, por exemplo. Mas poderamos dizer que este no um privilgio da fotografia, ele est presente em qualquer forma de representao. Vejamos depois o que especifica a fotografia.

A fotografia pode ser vista como um instrumento de assimilao psquica do mundo que nos rodeia: o conjunto de informaes visuais as quais ns somos submetidos provoca uma impossibilidade de assimilao e de metabolizao. Trata-se da definio psicanaltica do traumatismo. traumtico tudo aquilo que no pode ser psiquicamente metabolizado sob a forma de uma elaborao psquica, quer dizer, simbolizado. Neste ponto insere-se a fotografia, como uma forma de lutar contra este traumatismo, contra esta perda: do momento, do objeto e do tempo.

A fotografia nos demonstra que a perda no irremedivel. A linguagem pode ser analisada sob essa esttica da perda, do luto que se instaura na hora da obteno da imagem, e na recuperao desta mesma imagem em um segundo momento. Para Franois Soulages, perdas infinitas representam restos infinitos.

Se uma foto qualquer foto pode ser definida como o efeito de luz sobre uma superfcie sensvel, o conceito de inconsciente algo mais bem mais difcil de ser definido. Podemos dizer do ponto de vista descritivo que aquilo que inconsciente se ope a tudo o que consciente, assim como a diferena existente entre o conhecido e o desconhecido. Segundo Serge Tisseron, o inconsciente seria regido por regras particulares: ele no possui nem ndice de tempo, nem possibilidade de negao, e seus contedos seriam caracterizados pela livre circulao de cargas afetivas que o so associadas. neste ponto que se pode fazer uma comparao com a imagem em psicanlise: a fotografia pode ser considerada como um modo de significao analgico que no possui nem ndice de tempo nem possibilidade de negao (ainda que este ltimo ponto seja complexo). Este ponto de vista nos permite abordar o inconsciente da fotografia mais do que o inconsciente na fotografia de determinado autor.

Mas a questo que me interessa a assimilao e o seu contrrio: a rejeio, ou a perda. Vivemos em uma sociedade informada a tal ponto que a verdadeira sabedoria representa a arte do esquecimento. Somente ao aprender a rejeitar, que se pode assimilar. Se o conceito de imagem latente em fotografia pode ser comparado ao de inconsciente, em psicanlise, a questo do arquivo e do negativo se faz importante: o inconsciente algo esquecido, algo que j foi sabido, e que nem por isso desapareceu completamente. Mas onde armazenar, onde guardar tantas imagens? Em um arquivo mental? Chegaria sem dvida um momento crtico onde tudo pode ser perdido, ou esquecido. Arquivos reais guardam coisas, arquivos fotogrficos mantm disposio imagens. Mas nenhum arquivo pode ter tanta imagem armazenada quanto as que dispomos hoje.

A Bibkioteca de Babel que Borges concebeu e escreveu em forma de novela em 1941 j foi muitas vezes comparada internet. Os depsitos de livros imaginados pelo autor de O Aleph tem uma infindvel capacidade de armazenar livros. Basta que um livro seja possvel- diz Borges- para que exista em Babel.fotos do menino que me foram apresentadas me permitiram uma reflexo sobre um assunto que foi abordado em minha tese de doutorado, e que trata do seguinte: A fotografia poderia ser menos utilizada como meio de traduo de elementos internos de quem fotografa, mesmo que estes elementos se deixem transparecer-do que como uma fora de integrao e de coeso mental, familiar ou social. Esta fora de coeso corresponde a uma funo de equilbrio a qual a imagem (tanto psquica como material) utilizada para assegurar.

Mas a fotografia, como qualquer outro tipo de imagem, possui capacidades de nos mostrar e informar e de nos fazer IMAGINAR. Poderiamos relacionar esta propriedade a processos psicanalticos, a uma leitura freudiana , segundo o qual todo o contedo manifesto de ima imagem redireciona-a a um contedo latente, que MOSTRA e ESCONDE ao mesmo tempo. Poderamos citar a obra de Helmut Newton, por exemplo, ou a obra de Bernard Posslu, ou Joseph Sdek.

E existem tambm certos SEGREDOS que no dizem respeito vida do criador das imagens, mas s MARCAS e TRAOS nele deixados por seus pais, ou seus ascendentes. Se impossvel s crianas, e aos adultos nas quais elas se transformam tratar estes assuntos atravs de palavras, no proibido trat-los atravs de imagens. Mas como o contedo permanece secreto ao prprio criador, ele no consegue mais do que apontar a uma determinada direoA imagem funciona como um NDICE APONTADO A QUALQUER VERDADE, para a qual o observador convidado a assegurar ele mesmo. No se trata, para o criador da imagem, DE COMPARTILHAR COM O OBSERVADOR UM SEGREDO, MAS DE TRANSFORM-LA EM ELEMENTOS ENIGMTICOS (a inqiuietante estranheza, o estranhamento) O espectador seria confrontado a uma mesma situao fsica da criana diante de um segredo de famlia: levado a pressentir a verdade que o escondida, no possui nenhum meio de verificar a veracidade de suas fantasias. As questes do espectador da imagem so condenadas a permanecer sem respostas.

Mas vejamos outras especificidades da fotografia: ela trabalha sempre o entre; ENTRE O ESQUECIMENTO E A LEMBRANA, ENTRE O LUTO E SUA NEGAO, ENTRE A LUZ E A SOMBRA. A fotografia representa a negao da durao: ela apresenta uma forma de lembrana fora do tempo, e os mortos e desaparecidos al representados o fazem de forma eterna e imutvel. A paralisia da imagem fotogrfica se oporia assim ao trabalho do luto, entre o negar e o aceitar o luto. O trabalho do psicanalista italiano Sylvio Fanti, que segundo Serge Tisseron (Le Mystre de La Chambre Claire. Paris: Archimbaud, 1996) desenvolveu um mtodo chamado de micropsicanlise- que consiste em fazer da fotografia uma ferramenta que chamada a intervir no trabalho do luto dentro do processo psicanaltico. As imagens mais utilizadas so fotos de famlia trazidas pelos pacientes. Neste contexto, as marcas as quais as fotografias portam- marcas de dedos, dobras- so tomadas em um tipo de interpretao que estabelece relaes entre sujeito e sua prpria histria. Estas elaboraes permitem uma aceitao progressiva das situaes que at ento tinham ficado em sofrimento por causa da introjeo. Assim, a maneira pela qual a fotografia utilizada COMO ELEMENTO DO TRABALHO DE LUTO OU COMO OBSTACULO A ESTE TRABALHO- DEPENDE DO OLHAR QUE NS DIRIGIMOS A ELA.

Mas falemos dos PODERES DA FOTOGRAFIA:

A FOTOGRAFIA POSSUI PODERES DE:

-REPRESENTAO;

TRANSFORMAO;

ENVELOPAMENTO.

Os poderes de REPRESENTAO seriam os ligados segurana da passagem entre PERCEPO E APRESENTAO. Ela asseguraria quele que fotografa a garantia de que o caminho entre perceber e representar continua aberto.

Os poderes de TRANSFORMAO se originaria na experincia do espelho: Segundo Tisseron, a experincia do menino ver no espelho, alm de sua imagem, a imagem da me atrs de si que lhe olha, faz nascer nele a CONVICO DE QUE A SUA IMAGEM PERCEBIDA E IDENTIFICADA, nascendo a necessidade de compartilhar imagens.

A experincia do espelho oferece ainda a qualquer pessoa a possibilidade de conviver com um espao ENTRE a percepo interna e ntima de si e a sua imagem objetivada na superfcie. Ela abre um espao de tenso formado entre a imagem que nos conhecida, a que nos d segurana, e a imagem da inquietante estranheza, aquela da aproximao, do detalhe, prxima ao sobrenatural e ao reino das sombras.

E por fim os PODERES DE ENVELOPAMENTO da imagem. Existe uma imagem inventada por Balzac de que a fotografia retiraria as camadas sobrepostas as quis seriam constitudos os seres humanos. Existe tambm uma crena animista de que a fotografia rouba a alma. Mas h uma fora mais forte na fotografia: O PODER DO ENVELOPAMENTO. A fotografia possui este poder de reunir em um mesmo enquadramento elementos aparentemente dispersos. O poder de Envelope leva mais em conta o olhar do outro sobre si mesmo. A fotografia, segundo este poder, visaria raramente TRANSFORMAR a realidade de um objeto ou seu espectador, mas ao contrrio, seria chamada a autenticar um modelo ou a reforar uma identidade geogrfica,pessoal ou social. Esta fora de coeso corresponde a uma funo de equilbrio a qual a imagem (tanto psquica quanto mental) chamada a assegurar.11