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1 A FORMAÇÃO DO PRODESSOR DE HISTÓRIA: IDADE MÉDIA E IMAGENS MAZZURANA, Marilda (SEED/PDE/UEM) Esta comunicação 1 se propõe a analisar imagens do espaço citadino medieval em fins do século XIII e início do século XIV. Essas imagens, a nosso ver, possibilitam vislumbrar as transformações históricas que fizeram surgir nova mentalidade, novas formas econômicas, culturais, artísticas e sociais para o homem medieval do Ocidente, mudando o rumo da evolução da história da humanidade. Por meio de imagens do pintor italiano Ambrogio Lorenzetti é que propomos o desafio de olhar para o final do século XIII e início do século XIV para entender o que incentivou o homem a repensar sua forma de viver, buscar novos caminhos e assumir novas convicções. Será então, pelo âmbito das obras de artes que retratam o novo ambiente urbano que iremos perceber o que essas mudanças representaram na maneira do ser humano se expressar, se relacionar e agir em relação a si próprio, aos demais indivíduos e ao meio em que vive. Na interpretação de Le Goff (1989), a cidade modifica a vida do homem medieval o qual restringe o seu círculo familiar, passando da família ampliada para a família nuclear (pais e filhos apenas), porém aumenta a rede de comunidades nas quais ele atua. Nesse sentido, ressaltamos que a convivência próxima, as relações de vizinhança, as ruas, tornam-se um espaço social, lugar de encontro e de convívio 1 Esta comunicação compreende parte da pesquisa desenvolvida no Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE), desenvolvido pela Secretaria de Estado da Educação (SEED), do Estado do Paraná.

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A FORMAÇÃO DO PRODESSOR DE HISTÓRIA: IDADE MÉDIA

E IMAGENS

MAZZURANA, Marilda (SEED/PDE/UEM)

Esta comunicação1 se propõe a analisar imagens do espaço citadino

medieval em fins do século XIII e início do século XIV. Essas imagens, a nosso ver,

possibilitam vislumbrar as transformações históricas que fizeram surgir nova

mentalidade, novas formas econômicas, culturais, artísticas e sociais para o homem

medieval do Ocidente, mudando o rumo da evolução da história da humanidade.

Por meio de imagens do pintor italiano Ambrogio Lorenzetti é que

propomos o desafio de olhar para o final do século XIII e início do século XIV para

entender o que incentivou o homem a repensar sua forma de viver, buscar novos

caminhos e assumir novas convicções. Será então, pelo âmbito das obras de artes

que retratam o novo ambiente urbano que iremos perceber o que essas mudanças

representaram na maneira do ser humano se expressar, se relacionar e agir em

relação a si próprio, aos demais indivíduos e ao meio em que vive.

Na interpretação de Le Goff (1989), a cidade modifica a vida do homem

medieval o qual restringe o seu círculo familiar, passando da família ampliada para

a família nuclear (pais e filhos apenas), porém aumenta a rede de comunidades nas

quais ele atua. Nesse sentido, ressaltamos que a convivência próxima, as relações

de vizinhança, as ruas, tornam-se um espaço social, lugar de encontro e de convívio

1 Esta comunicação compreende parte da pesquisa desenvolvida no Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE), desenvolvido pela Secretaria de Estado da Educação (SEED), do Estado do Paraná.

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e implicam em novo comportamento. Com isso o homem medieval buscava

resposta aos fenômenos que o rodeava empenhando-se em mudanças não só nas

artes, leis e regras, mas principalmente na sua forma de pensar e estar no mundo.

As transformações econômicas do século XIII e XIV fizeram surgir nas

cidades uma nova percepção do tempo, provocando rupturas quanto a esta

mentalidade. Le Goff (1979, p. 43) analisa essa mudança, no artigo Tempo da Igreja e

tempo do mercador, em que o autor classifica o tempo da Igreja pelos rituais cristãos

e o tempo do mercador pelas necessidades do comércio. A Igreja considerava usura

a cobrança do tempo transcorrido entre o pedido e o pagamento de um

empréstimo, por isso condenou esta prática (pecado de avareza), pois “pressupõe

uma hipoteca sobre um tempo que só a Deus pertence, [...] vendendo o que não lhe

pertence”. Essa proibição, como afirma Pirenne (1963, p. 30), impedia os

mercadores de enriquecer em plena liberdade de consciência e de conciliar a

prática dos negócios com os preceitos da religião. A nova sociedade urbana

precisava dessa mudança de mentalidade em relação ao tempo, para se adaptar às

condições impostas pelas práticas mercantis, principalmente porque o mercador

deveria considerar o tempo para definir o preço dos produtos, a duração do

trabalho artesanal, na viagem, no comércio em geral para assim, garantir bons

negócios. Aos poucos a necessidade de regular o tempo foi se impondo e a partir

da invenção do relógio mecânico no século XIV, o tempo (relógio) passa a

influenciar e gerir a vida das pessoas da cidade. O tempo que surgia era um tempo

novo, mensurável, racionalizado, com valor.

A partir dessas reflexões, este estudo se justifica pela importância que o

fenômeno citadino medieval ganha no processo de transformação social, cujas

mudanças do período em questão se constituíram em vigas mestras no processo de

transição social do mundo feudal para a sociedade capitalista. Nesse sentido, os

séculos XIII e XIV constituem-se num legado cultural importante para a

humanidade. Não há como negar as heranças medievais, a topografia das cidades,

a arquitetura, as referências culturais, religiosas, éticas, a universidade, o livro, o

relógio, o moinho, o comércio, a nova concepção de trabalho de tempo e outros que

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aconteceram no espaço citadino e que justificam a formação de novas estruturas

sociais e mentais presentes na sociedade moderna.

Acreditamos que o ensino da História medieval por meio de imagem nos

permite compreender que as relações humanas são sempre modificadas de acordo

com as relações sociais de cada tempo histórico. E a História enquanto disciplina

que estuda o homem tem o compromisso de situar a condição humana no mundo,

buscando um significado e um sentido à vida em diferentes tempos, contribuindo

para que o aluno reconstrua sua identidade pessoal e coletiva.

Há muito tempo, com efeito, nossos grandes precursores, Michelet, Fustel de Coulanges, nos ensinaram a reconhecer: o objeto da história é, por natureza, o homem. Digamos melhor: os homens. Mais que o singular, favorável à abstração, o plural, que o modo gramatical da relatividade, convém a uma ciência da diversidade. Por trás dos grandes vestígios sensíveis da paisagem, [os artefatos ou as máquinas,] por trás dos escritos aparentemente mais insípidos e as instituições aparentemente mais desligadas daqueles que as criaram, são os homens que a história quer capturar (BLOCH, 2002, p. 54).

Para entender as transformações que ocorreram na Idade Média, bem como

as mudanças que estão acontecendo na atualidade decorrentes do processo de

globalização, que por sua vez também gera grandes mudanças no modo de agir,

pensar e viver das pessoas, é fundamental repensar a formação do homem,

buscando sobretudo, a formação de cidadãos conscientes, que compreendam,

participem e interfiram nas relações sociais de seu tempo histórico.

Os acontecimentos construídos pelas ações do homem ao longo do tempo

produzem relações humanas, a partir das quais irão construir novas ações. Em

consonância com as Diretrizes Curriculares (2008, p. 14) observamos que “as relações

humanas determinam os limites e as possibilidades das ações dos sujeitos de modo

a demarcar como estes podem transformar constantemente as estruturas sócio-

históricas.” Assim, a nossa época não é a forma natural e correta de ser, mas pode e

deve ser modificada de acordo com nossas ações como foi o mundo medieval que

por sua vez, também não foi a forma correta de os homens serem, mas foi uma

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época histórica na qual os homens viveram e produziram mudanças no seio de

suas relações sociais, exatamente por isso se transforma em exemplo para nós.

O trabalho com imagens em sala de aula representa um importante

elemento da atividade sócio-cultural humana, que possibilita a reflexão, ação e

expressão do homem em relação a si próprio, aos demais indivíduos e ao meio em

que vive. Nesse sentido, faz-se muito oportuno as palavras de Morin quando em

sua obra Os sete saberes necessários à educação do futuro insiste na integração entre o

homem, natureza e sociedade.

Disso decorre que, para a educação do futuro, é necessário promover grande remembramento dos conhecimentos oriundos das ciências naturais, a fim de situar a condição humana no mundo, dos conhecimentos derivados das ciências humanas para colocar em evidência a multidimensionalidade e a complexidade humana [...] (MORIN, 2002, p. 48).

Essa discussão do autor é extremamente importante ao profissional do

ensino de História, pois possibilita a vinculação entre o conteúdo a ser ensinado e a

concepção do homem em sua totalidade. O conhecimento deve trazer contribuições

que situem o ser humano no mundo, possibilitando o reconhecimento da unidade e

da complexidade humana. Como o ser humano é a um só tempo físico, biológico,

psíquico, cultural, social, histórico será muito importante integrar a História à Arte

e a outras disciplinas. A nosso ver, essa integração disciplinar das diferentes áreas

do conhecimento, é uma forma de resgatar a totalidade do homem nas várias

dimensões: afetiva, cognitiva e social, numa relação integradora de emoção e razão,

afetividade e cognição, subjetividade e objetividade, conhecimento e sentimento.

Sabemos que o mundo contemporâneo, exige do jovem o sentimento de

conhecimento, de sensibilidade que o posicione e o ajude a pensar e agir diante de

situações novas ou inesperadas. A apreciação e análise das imagens artísticas

tornam nosso olhar mais atento às representações e aos seus significados,

contribuindo para a compreensão que temos de nós mesmos e, conseqüentemente,

da realidade. Ser capaz de opinar a respeito desse mundo, de expressar a própria

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vontade e os próprios sentimentos, de entender o outro e de se fazer respeitar é

condição fundamental para ser, de fato, um cidadão.

A educação deve conduzir à “antropo-ética”, levando em conta o caráter ternário da condição humana, que é ser ao mesmo tempo indivíduo/sociedade/espécie. Nesse sentido, a ética indivíduo/espécie necessita do controle mútuo da sociedade pelo indivíduo e do indivíduo pela sociedade, ou seja, a democracia; a ética indivíduo/espécie convoca, ao século XXI, a cidadania terrestre (MORIN, 2002, p. 17).

A ética não está relacionada a lições de moral, fundamenta-se na consciência

de que o ser humano é ao mesmo tempo, indivíduo, parte da sociedade e parte

integrante da natureza. Assim para o desenvolvimento verdadeiramente humano

deve-se também desenvolver a autonomia individual, as participações

comunitárias e a consciência de pertencer à espécie humana. É preciso educar a

partir de valores éticos, estéticos e políticos, permitindo que o educando seja capaz

de construir sua identidade social e coletiva.

Os primeiros estudos sobre ética, moral e política partiram dos filósofos da

cultura ocidental, especificamente na Grécia antiga. O filósofo Aristóteles na obra

Ética a Nicômaco entende o homem como um ser social e político, nascido para a

vida em comum e sua ação humana está orientada para a execução de algum bem,

ao qual estão unidos o bem e a felicidade. A ética para o autor serve como

condução do ser humano à felicidade. No convívio social o homem precisa buscar

o conhecimento (virtude intelectual) e praticar a justiça (virtude moral) para assim,

pelo exercício da razão, característica própria do homem, poder deliberar e

escolher o que é mais adequado para si e para o outro, movido por uma sabedoria

prática em busca do equilíbrio entre o excesso e a deficiência. Para Aristóteles, o

hábito é o princípio regulador das ações tanto na vida coletiva, como na conduta

individual. Assim, dependendo dos atos que praticamos nas relações com os outros

estaremos sendo justos ou injustos, pois, o hábito de praticar atos bons leva a

virtude e ao contrário gera o vício.

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A multiplicação das cidades medievais, a crescente população vinda do

campo para viver nestes espaços, o estabelecimento de um novo sistema de

relações sociais e outras das transformações histórico-sociais exigem do homem

medieval do século XIII e XIV novas formas de agir e de se comportar, sobretudo

para viver nesse espaço público. Com isso, se faz necessário seguir algumas regras

de convívio e é nesse sentido que a filosofia de Aristóteles constituiu-se numa fonte

inesgotável de elementos de reflexão para os problemas políticos, éticos e sociais,

contribuindo na organização da cidade medieval. Embora Aristóteles (384-322 a.C)

tenha apresentado um referencial para os homens de sua época, no sentido de

buscar respostas para ter uma vida feliz naquele momento histórico, suas idéias

permitem reflexões válidas também para o contexto atual por tratar sobre o agir

humano e as relações sociais.

Em função da complexa dinâmica social dos últimos tempos e por visar o

homem na sua totalidade (matéria e espírito) esse estudo se reportará teórico-

metodologicamente à História Social, pois é nela que encontramos a abertura

necessária ao olhar do pesquisador. É oportuno destacar que a nova relação da

História com a imagem ocorre, principalmente, a partir da década de 70, do século

XX, quando Jacques Le Goff e Pierre Nora organizaram e publicaram na França a

coleção História: Novos Problemas; Novas Abordagens; Novos Objetos. Enfim,

partindo dessa premissa, este trabalho, que compreende uma parte da pesquisa

que desenvolvemos no Programa de Desenvolvimento Educacional – PDE,

desenvolvido pela Secretaria de Estado da Educação (SEED) do Estado do Paraná,

pretende analisar imagens do espaço citadino como evidência histórica para

compreender as transformações que ocorreram na Idade Média ocidental entre os

séculos XIII e XIV.

As imagens que serão utilizadas como evidências históricas, expressam

significados simbólicos e estéticos importantes para a compreensão das relações

sociais e culturais presentes na História Medieval. O diálogo entre as fontes visuais

e escritas será fundamentado pela metodologia proposta por Panofsky em

Significado nas Artes Visuais e por Francastel em A Realidade Figurativa. Os dois

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autores propõem que as imagens sejam contextualizadas dentro do período e local

em que foram produzidas, observando-se também a origem e o histórico do artista.

Para a análise de imagens, Panofsky (1979) propõe os seguintes passos: a

descrição pré-iconográfica, a análise iconográfica e a interpretação iconológica. No

primeiro passo devemos observar a imagem e identificar o tema natural ou

primário, ou seja, é a identificação das formas puras, portadoras de significados.

Em seguida poderemos fazer um relatório de tudo o que se percebe nela, visando a

identificação e descrição dos significados factual e expressional da obra. O segundo

passo corresponde à análise iconográfica, cujo objetivo é identificar os significados

convencionais expressos pelos elementos da imagem, relacionando os motivos

artísticos (factual/expressional), com os fatos e acontecimentos construídos por

meio da cultura da sociedade da qual faz parte. Estabelece-se a relação entre o que

foi identificado na imagem e o tema que ela representa. A utilização de fontes

literárias, enciclopédias e dicionários tornam-se indispensável para a identificação

e familiarização dos temas e conceitos retratados na imagem. O terceiro passo é a

interpretação iconológica em que se chega ao significado intrínseco ou conteúdo

propriamente dito da imagem, nessa fase teremos a possibilidade de descobrir os

valores simbólicos, finalidades e a importância da imagem na sociedade em que foi

concebida.

Nesse processo é necessário, pois, conhecer a especificidade da linguagem

visual, seus limites e possibilidades.

Interpretar exige paciência, a imagem deve ser olhada, questionada, para que história e memória sejam entendidas. Olhar não é simplesmente ver, nem observar com mais ou menos competência. Ele pressupõe a implicação, deliberada uma experiência, isto é, uma explicação. As criações humanas só são suscetíveis de interpretação e de explicação pelo caminho da compreensão implicativa, de uma tomada de consciência sobre si mesmo. Logo, o objeto de conhecimento é reconhecido por estar intimamente em constituição pelo sujeito que conhece. Para tal, ele deve dialogar com a imagem, interrogá-la e estabelecer certa intimidade com a mesma (DIDI-HUBERMAN apud KERN, 2007, p. 140).

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A leitura de imagens implica compreensão, entendimento, significação e

consciência. A apreciação e análise das imagens artísticas tornam o nosso olhar

mais atento às representações e aos seus significados, contribuindo para a

compreensão que temos de nós mesmos e da realidade. Convivemos diariamente

com uma produção infinita de imagens que nos transmitem inúmeras informações

e mensagens, daí a necessidade de serem lidas despertando os sentidos da sutileza,

da sensibilidade estética, do belo, do conhecimento e da visão crítica de mundo.

Para isso é preciso ir além do que se vê, rompendo com a superficialidade do

visível e imediato e aprofundar o diálogo possível e implícito na obra.

Como afirma Francastel (1973, p. 69), o mundo visual não só possui sua

lógica própria, como ainda funda um modelo particular de atividade produtiva.

Em outras palavras, “existe um pensamento plástico - ou figurativo - como existe

um pensamento verbal ou um pensamento matemático”. Dessa forma, existem

valores e sentidos que somente as imagens possuem possibilitado transmitir

informações para o intelecto, de acordo com regras específicas, experiências,

percepções e esquemas representativos do pensamento e que, por isso, não são

substituídos por outras formas de linguagem. As linguagens verbal e a escrita

poderão complementar a comunicação e mediar a interpretação da imagem.

Na análise de imagens devemos perceber seus silêncios e decifrar seus

códigos, visto que a mesma não reproduz a realidade, mas a reconstrói a partir de

sua linguagem própria. Nessa perspectiva, a imagem surge como resultado de um

processo de uma atividade intelectual e manual, possuindo elementos do

percebido, do real e do imaginário, funcionando como um testemunho histórico e

social de um período e de uma cultura. Como produto social e histórico as

pinturas de Ambrogio Lorenzetti (1290-1348) representam a efervescência da

cidade medieval, na qual o comércio é o grande dinamizador desse espaço,

fazendo surgir novas formas de trabalho e de sociabilidade.

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Figura 1

Esta imagem que reproduzimos, sob o título “Os efeitos do bom governo na

cidade” (1337-1340) de Ambrogio Lorenzetti consistem de um grande grupo de

figuras alegóricas em que o pintor representa os “efeitos do bom e do mau

governo na cidade e no campo”. São afrescos do Palácio Público de Siena (Itália)

que retratam as atividades cotidianas do espaço citadino e a harmonia dos homens

com o meio. Entre as várias cenas do dia-a-dia observa-se, o comércio, lojas e

oficinas abertas, o transporte de cereais e feno, algumas pessoas chegando do

campo sendo atraídas pela vida da cidade. No geral, as pessoas estão conversando

e circulando com bens realizando seu trabalho ligado ou não as corporações de

ofício. Na imagem aparece muitos artesãos e mercadores que expõem as suas

mercadorias ou transportam os produtos em cavalos e mulas. Observe também,

que na parte superior da imagem 1, estão alguns trabalhadores sobre andaimes,

em cima de telhados, mostrando que o trabalho não pára, simbolizando assim, que

a cidade está crescendo, sendo construída para o alto. Outra cena significativa é a

do professor (mestre) e seus alunos (discípulos), que aparece por baixo de um

pórtico, revelando o novo estilo de vida que surge com a evolução das cidades.

Prina e Padovan (1995, p. 19) afirma que “para o ‘burguês’, torna-se muito

importante a imagem de si, o apresentar-se bem e atingir uma posição de prestígio

no seio da sociedade comunal”. Nesse contexto por isso que a instrução, a

educação e a cortesia passam a ser elementos fundamentais na formação do

indivíduo. Neste cenário é interessante ressaltar a relação estreita entre a

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Universidade e o desenvolvimento urbano a qual possibilitou um novo olhar

sobre a vida e suas relações. A Universidade começa a surgir em fins do século

XII, destacando-se principalmente no século XIII a qual marcou o renascimento

urbano, promovendo uma verdadeira revolução intelectual, que fez a sociedade se

desenvolver através do conhecimento, do raciocínio e de influências greco-

romanas. Le Goff (1998, p. 105) identifica a imagem da cidade como “trabalho e

jogos, riqueza e beleza, harmonia e bem-estar da comunidade: é o ideal do bom

governo urbano, pelo príncipe”. O orgulho urbano encontra seu sustento inovador

e criativo na sua função cultural: escola, universidade, arte, religião e urbanismo.

A cena da dança em círculo de mãos dadas, acompanhada por canto e

tamborim é a ‘carola’, que de acordo com Prina e Padovan (1995, p. 25) “simboliza

a serenidade e a harmonia que reinam na cidade graças ao Bom Governo”. A

dança na Idade Média foi considerada uma manifestação contrária à moral cristã,

no entanto, a partir do século XIV ela encontra um lugar social junto da nobreza e

da ascendente burguesia mercantil. Não menos importante que o estudo da

Gramática, da Matemática, da Astronomia e da música, a dança torna-se requisito

indispensável para a boa formação, além de ser um elemento de distração e

divertimento aperfeiçoando o corpo e a alma. Para Prina e Padovan (1995, p. 9) “A

dança é uma representação de grupo e, como tal, desenvolve neste um sentimento

de união e solidariedade, redimensiona as manifestações egocêntricas(...).” A

atividade da dança gera uma atmosfera descontraída e recreativa favorece as

relações interpessoais sem desmerecer os valores individuais.

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Figura 2

A figura 2, também faz parte do afresco do Palácio Público de Siena de

Ambrogio Lorenzetti (1337-1339) em que a imagem mostra a muralha com suas

torres e portas como passagem e forma de interligação entre a cidade e o campo. A

muralha separa o espaço da cidade com o espaço do campo. Para Le Goff (1998) o

campo é visto de forma negativa como lugar de rusticidade, ao contrário da

cidade que representaria educação, cultura, bons costumes e elegância. O autor

contextualiza as mudanças nas estruturas econômicas e sociais presentes na cidade

do século XIII e XIV ao afirmar que

A cidade da Idade Média é um espaço fechado. A muralha a define. Penetra-se nela por portas e nela se caminha por ruas infernais que, felizmente, desembocam em praças paradisíacas. Ela é guarnecida de torres, torres das igrejas, das casas dos ricos e das muralhas que cercam. Lugar de cobiça, a cidade aspira à segurança. Seus habitantes fecham suas casas à chave, cuidadosamente, e o roubo é severamente reprimido. A cidade, bela e rica, é também fonte de idealização: a de uma convivência harmoniosa entre as classes. A misericórdia e a caridade se impõem como deveres que se exercem nos asilos, essas casas de pobres. O citadino deve ser melhor cristão que o camponês. Mas os doentes, como os leprosos que não podem mais trabalhar, causam medo, e essas estruturas de abrigo não demoram a se tornar estruturas de aprisionamento, de exclusão. As ordens mendicantes denunciam as desigualdades provenientes dessa organização social urbana e desenvolvem um novo ideal: o bem comum. Mas elas não podem impedir a multiplicação dos marginais no fim da Idade Média (LE GOFF, 1998, p. 71).

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As muralhas com suas portas possuíam caráter defensivo protegendo os

habitantes da cidade dos invasores e bandidos. Indicavam a dinâmica da cidade,

seu crescimento e alargamento ocorriam em função da expansão da muralha.

Apesar de a cidade ser um ambiente fechado, as portas das muralhas era o elo de

ligação por onde passavam pessoas e mercadorias, significando, portanto, a

passagem para o mundo e o intercâmbio com o exterior.

As obras de Lorenzetti foram a primeira tentativa do pintor em apresentar

um cenário real com habitantes reais. Essa expressão artística revela a nova

tendência na pintura que busca inspiração na vida cotidiana dos cidadãos,

principalmente na Itália entre o século XIII e XIV, em que tem início a valorização

do homem e da natureza. O Gótico de Siena, Itália, é uma concessão constante ao

humanismo. Cresce o realismo da paisagem e do corpo humano, declinando a

predominância emocional religiosa. Nesse contexto, as pinturas de Lorenzetti

classificadas como medieval ou pré-renascentista indicam, no entanto, uma

mudança para temas mais laicos ao invés de motivos religiosos como eram a

grande maioria naquela época. Suas obras mostram a influência dos pintores

Simone Martini e Duccio e de maneira indireta traz a marca de Giotto (1267-1337),

o principal artista do estilo gótico italiano que inicia um novo estilo com novos

temas relacionados à natureza exterior e ao homem. Seu estilo vem ao encontro de

uma visão humanista do mundo, que vai se firmando até ganhar plenitude no

Renascimento.

Nas figuras 1 e 2, Lorenzetti retrata as aspirações dos citadinos em viver

numa cidade que impere o bom governo e a justiça, mostra a cidade em plena

harmonia com múltiplas atividades, as imagens dão idéia de prosperidade,

riqueza, ordem e segurança de vida, não se concebe o conflito nem o confronto, a

política que prevalece é o bem comum.Entretanto as cidades do século XIII

desenvolviam-se espontaneamente, com suas construções amontoadas ao longo

das ruas curvas e estreitas e estas favoreciam às revoltas, crimes e estupros,

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constituíam-se em espaços de desigualdades sociais, marcado por relações de

dominação, resistência e conflitos.

No século XIII os avanços técnicos, por exemplo, o arado de ferro, o moinho

hidráulico e outros, promoveram o desenvolvimento das forças produtivas,

provocando significativos impactos sobre as relações econômicas e sociais

existentes no período feudal. É na cidade que ocorre a valorização da vida ativa,

surgindo assim, um novo conceito para o trabalho. Segundo Le Goff (1998) a

valorização do trabalho é uma função histórica da cidade medieval, nesse

ambiente a ociosidade passa a ser combatida e são apreciados os resultados

criadores, produtivos e a utilidade do trabalho. As mudanças que vão ocorrendo

principalmente relacionadas ao crescimento demográfico, à economia, ao novo

conceito de trabalho e os novos valores, geram na cidade medieval uma nova

estratificação social que não se resume mais no mundo dos senhores e

camponeses. Forma-se uma nova classe econômica a dos prósperos mercadores e

artesãos (burguesia). Na cidade passam a conviver juntamente com a privilegiada

nobreza senhorial (reis, clero, senhores feudais, ministros) os elementos urbano

emergentes, como os artesãos e suas corporações de ofício, os comerciantes, os

prestadores de serviço, os intelectuais, além dos diversos grupos que coexistiam,

em geral pertencentes às camadas inferiores, que de alguma forma lutavam por

seus direitos e contra aqueles que os dominavam. A maioria dos trabalhadores

não estava ligada a uma corporação e muitos não tinham emprego fixo. Com isso,

havia uma estreita relação entre a delinqüência e a pobreza, gerando

conseqüentemente a mendicância e o roubo, que mesmo punidos com severidade

eram problemas comuns nas cidades medievais.

Foi na cidade que os mais diferentes segmentos sociais se encontraram,

travaram relações e criaram várias instituições como os conselhos (comunas), com

funções políticas e administrativas; as confrarias, associações de caráter religioso

que tinham objetivos assistenciais e as corporações de ofício, de caráter profissional

que agrupavam os elementos de uma mesma profissão. De acordo com Pirenne

(1963) as corporações de ofícios foram criadas pela necessidade de proteger tanto o

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artesão que fabrica e vende, como o cliente que compra a produção urbana. Elas

visavam, sobretudo, regular a quantidade e a qualidade dos produtos; as relações

de trabalho; defender o preço justo; eliminar a concorrência desleal e assegurar o

monopólio local impedindo que trabalhos similares de outras regiões entrassem

nos mercados da cidade.

A cidade contemporânea, agora policêntrica, diferentemente da medieval, já

não distingue o espaço urbano do espaço rural. É claro que são muitas as

diferenças das cidades de hoje em relação as da Idade Média. Atualmente se ouve

falar da cidade fortaleza, não de uma cidade unida contra seus inimigos de fora,

mas da criação de fortalezas dentro das cidades, onde um grupo de cidadãos se

protege contra os outros.

Figura 3 - La cité, 1346.

A figura 3 é uma reprodução de um quadro miniatura do acervo da

Pinacoteca Nacional de Siena, o qual simboliza a cidade ideal, foi realizado pelo

pintor Ambrogio Lorenzetti em 1346 e é considerado a primeira representação de

uma paisagem urbana. Nessa imagem, Lorenzetti concebe a estrutura da cidade

repleta de linhas retas e planos geométricos, as diversas construções (palácios,

torres, muralhas, igrejas) representam um exemplo da arquitetura medieval com

influências do estilo gótico. Este estilo desenvolveu-se principalmente na França e

ficou conhecido também como a arte das catedrais, refletindo o desenvolvimento

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das cidades. Acreditava-se chegar a Deus não apenas pela fé, isso explica a

grandiosidade das construções, em que tudo se volta para o alto, projetando-se na

direção do céu. Perceba que a Igreja aparece no alto, em destaque tornando visível

a representação do seu domínio sobre a cidade. Entretanto, a presença expressiva

da Igreja não era visível só na paisagem urbana em termos de estrutura física, mas

também na organização da vida cotidiana, na religião, na economia e na cultura em

geral.

A catedral juntamente com o mercado é o local de convergência do povo da

cidade. No seu interior, além das orações, também aconteciam diversas reuniões e

assembléias civis. Símbolo de fé e do amor é a casa de todos, com sua luz, sua

beleza, sua arte, transmite segurança, serenidade e purificação. A religião na Idade

Média assumiu um papel fundamental ao assegurar a vivência do coletivo, ao

construir uma unidade em torno das coisas sagradas, compondo uma mentalidade

que permitia o controle social do indivíduo. Até mesmo a desestruturação do

Feudalismo não implicou na destruição da cultura cristã. O próprio Estado

Moderno se utilizou da teoria do direito divino para justificar seu poder.

A cultura na Idade Média foi muito influenciada pela religião católica, as

artes no geral e os livros eram marcados pela temática religiosa. Os vitrais das

igrejas traziam cenas bíblicas, pois era uma forma didática e visual de transmitir o

evangelho para uma população quase toda formada por ágrafos. A linguagem

visual procurava colocar em evidência símbolos e signos dotados de mensagens

explícitas ou implícitas, traduzindo muitas vezes o sistema ideológico vigente.

Como afirma Huizinga (1978), A cultura medieval era, sobretudo, uma cultura de

imagens em que as ações da vida diária, individual e social estavam

constantemente relacionadas com Cristo ou a salvação.

No entanto, a partir do século XIII o homem medieval modifica-se, em

função de que na cidade as relações sociais se tornam mais complexas e exigem

novas formas de pensar e agir. Le Goff (1989, p.24) afirma que a própria

religiosidade “aceita cada vez mais as coisas do mundo, vão descendo do céu à

terra, sem que o homem medieval deixe de ser profundamente religioso e de se

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preocupar com a sua salvação que, agora, se baseia menos no desprezo pelo

mundo do que na sua transformação”.

Todas as transformações dos novos espaços sociais, o desenvolvimento do

comércio e das cidades, o aparecimento da burguesia, o surgimento das

Universidades, o enfraquecimento do poder dos senhores feudais, a aliança entre

os reis e a burguesia e conseqüentemente o fortalecimento do poder dos reis, as

crises do século XIV, levaram aos poucos o feudalismo à dissolução.

Considerações Finais

Considerando que as obras de arte são um valioso instrumento para a

construção do conhecimento, acreditamos que a leitura das imagens enriquecida

com o conhecimento histórico gera a compreensão do lugar, das relações sociais e

culturais da época em que a obra foi criada. É importante destacar que conhecer a

linguagem própria das imagens representa um meio de interferir e entender o

desenvolvimento cultural, social e até determinadas formas de poder de uma

determinada sociedade, pois ao mesmo tempo em que se aprende com a imagem,

se educa pela imagem. Assim, a nosso ver, compreender as imagens significa

desvendar o papel que sua produção ou apreciação exerceu e continua a exercer

em diferentes contextos históricos.

As cidades medievais contribuíram para a formação do mundo moderno,

inseriram novos valores decorrentes da dinâmica comercial, das novas relações

sociais, da vida universitária, da movimentação das ordens religiosas, da Igreja e

da cultura em geral. Podemos então afirmar que o final do século XIII e início do

século XIV marcam o período de grandes mudanças na maneira do homem ver o

mundo. Nesse sentido é interessante perceber pelo âmbito das artes o que essas

mudanças representaram na maneira do ser humano se expressar, se relacionar e

agir em relação a si próprio, aos demais indivíduos e ao meio em que vive.

A Educação por meio das imagens diversifica as práticas escolares,

possibilita desenvolver a sensibilidade, o gosto estético-cultural e a formação de

um homem que interage e faz parte da construção de sua sociedade, contribuindo

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assim, para compreender as transformações sociais que acontecem no tempo e no

espaço possibilitando a identificação das mudanças e continuidades em relação a

época atual. Durante as aulas de História, muitas outras reflexões e/ou atividades

poderão ser realizadas no sentido de proporcionar aos educandos uma nova

percepção ética e estética da realidade buscando a preservação do espaço público

como lócus da existência da comunidade e soluções para os problemas urbanos

que de alguma forma comprometem e interferem no bem comum.

REFERÊNCIAS

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PRINA, F. C. & PADOVAN M. A dança no ensino obrigatório. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.

Referências das imagens

Imagem 1: AMBROGIO LORENZETTI. Os efeitos do bom governo na cidade,1337-1340, Afresco, Palácio Público, Siena. In: COSTA, R. da. Um Espelho de Príncipes artístico e profano: a representação das virtudes do Bom Governo e os vícios do Mau Governo nos afrescos de Ambrogio Lorenzetti (c. 1290-1348?). Disponível em: <http://www.ricardocosta.com/pub/lorenzetti.htm> Acesso em 02 set. 2008.

Imagem 2: AMBROGIO LORENZETTI. Os efeitos do bom governo na Cidade, 1337-1339, Afresco. Palácio Público, Siena, AKG, Paris. In: LE GOFF, J. Por amor às cidades: conversações com Jean Lebrun. São Paulo: UNESP, 1998, p. 14.

Imagem 3: AMBROGIO LORENZETTI. La cité, 1346. Quadro. Siena, Pinacoteca Nacional, AKG, Paris. In: LE GOFF, J. Por amor às cidades: conversações com Jean Lebrun. São Paulo: UNESP, 1998, p. 122.