a filosofia do mundo

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Livro 1 A FILOSOFIA E A VISAO COMUM DO MUNDO* a Bento Prado Oswaldo Porchat 1. Se me disponho a filosofar, é porque busco compreender as coisas e os fatos que me envolvem, a Realidade em que estou imerso. E porque quero saber o que posso saber e como devo ordenar minha visão do Mundo, como situar-me diante do Mundo físico e do Mundo humano e de tudo quanto se oferece à minha experiência. Como entender os discursos dos homens e meu próprio discurso. Como julgar os produtos das artes, das religiões e das ciências. Mas não posso esquecer todos os outros que filosofaram antes de mim. Num certo sentido, é porque eles filosofaram que me sinto estimulado a retomar o seu empreendimento. 0 legado cultural da espécie põe à minha disposição uma literatura filosófica extremamente rica e diversificada, de que minha reflexão se vai alimentando. Se me disponho a filosofar, tenho também de situar-me em relação às filosofias e a seus discursos, tenho de considerar os problemas que eles formularam e as soluções que para eles propuseram. Nesse contato com as filosofias e no seu estudo, faço a experiência de sua irredutível pluralidade, de seu conflito permanente e de sua recíproca incompatibilidade. A consciência desse conflito e dessa incompatibilidade exprime-se em seus discursos, aliás, de modo quase sempre bastante explícito. Porque cada filosofia emerge no tempo histórico, opondo-se polemicamente às outras filosofias, que ela rejeita e anatematiza no mesmo movimento pelo qual se instaura. Contra os outros discursos filosóficos, cada novo discurso vem propor-se como o "bom" discurso. Qualquer que seja o seu projeto, o de "editar" o Real ou o de propor uma crítica do conhecimento, o de orientar a práxis humana ou o de efetuar uma análise "terapêutica" da linguagem, pertence, em geral, a todo discurso filosófico o dever impor-se como a única maneira correta de filosofar. Sob esse prisma, vale dizer que cada um deles de algum modo se propõe como a solução adequada do conflito das filosofias. Por isso mesmo, obriga-se a argumentar em causa própria, no afã de legitimar-se em face dos rivais e de validar a posição privilegiada que para si reivindica na arena filosófica. Pretensão que os outros discursos evidentemente desqualificam, opondo argumentos aos seus argumentos e reacendendo o conflito. Dispondo-me a filosofar, abordo criticamente os discursos filosóficos. E cedo descubro, então, que nenhum discurso filosófico é demonstrativo, mesmo num sentido fraco da palavra, contrariamente ao que tantos filósofos pretenderam. Dou-me conta de que a retórica é a lógica da filosofia. De que, com um pouco de boa vontade e algum engenho, sempre se pode construir um discurso filosófico bem argumentado a favor de ou contra qualquer ponto de vista. Por outro lado, jamais se persuade o auditório que se tem em mente. Os critérios de autovalidação próprios a cada discurso são sempre discutidos e rejeitados pelos outros. Donde a perpetuação inevitável de conflito das filosofias, num P , testemunho eloqüente de sua indecidibilidade básica. Situação essa que parece condenar inexoravelmente as filosofias, todas e cada uma delas, a uma

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Filosofia com uma visão particular sobre o mundo

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A FILOSOFIA E A VISAO COMUM DO MUNDO*

Livro 1

A FILOSOFIA E A VISAO COMUM DO MUNDO*PRIVATE

a Bento Prado

Oswaldo Porchat1. Se me disponho a filosofar, porque busco compreender as coisas e os fatos que me envolvem, a Realidade em que estou imerso. E porque quero saber o que posso saber e como devo ordenar minha viso do Mundo, como situar-me diante do Mundo fsico e do Mundo humano e de tudo quanto se oferece minha experincia. Como entender os discursos dos homens e meu prprio discurso. Como julgar os produtos das artes, das religies e das cincias.

Mas no posso esquecer todos os outros que filosofaram antes de mim. Num certo sentido, porque eles filosofaram que me sinto estimulado a retomar o seu empreendimento. 0 legado cultural da espcie pe minha disposio uma literatura filosfica extremamente rica e diversificada, de que minha reflexo se vai alimentando. Se me disponho a filosofar, tenho tambm de situar-me em relao s filosofias e a seus discursos, tenho de considerar os problemas que eles formularam e as solues que para eles propuseram.

Nesse contato com as filosofias e no seu estudo, fao a experincia de sua irredutvel pluralidade, de seu conflito permanente e de sua recproca incompatibilidade. A conscincia desse conflito e dessa incompatibilidade exprime-se em seus discursos, alis, de modo quase sempre bastante explcito. Porque cada filosofia emerge no tempo histrico, opondo-se polemicamente s outras filosofias, que ela rejeita e anatematiza no mesmo movimento pelo qual se instaura. Contra os outros discursos filosficos, cada novo discurso vem propor-se como o "bom" discurso. Qualquer que seja o seu projeto, o de "editar" o Real ou o de propor uma crtica do conhecimento, o de orientar a prxis humana ou o de efetuar uma anlise "teraputica" da linguagem, pertence, em geral, a todo discurso filosfico o dever impor-se como a nica maneira correta de filosofar. Sob esse prisma, vale dizer que cada um deles de algum modo se prope como a soluo adequada do conflito das filosofias. Por isso mesmo, obriga-se a argumentar em causa prpria, no af de legitimar-se em face dos rivais e de validar a posio privilegiada que para si reivindica na arena filosfica. Pretenso que os outros discursos evidentemente desqualificam, opondo argumentos aos seus argumentos e reacendendo o conflito.

Dispondo-me a filosofar, abordo criticamente os discursos filosficos. E cedo descubro, ento, que nenhum discurso filosfico demonstrativo, mesmo num sentido fraco da palavra, contrariamente ao que tantos filsofos pretenderam. Dou-me conta de que a retrica a lgica da filosofia. De que, com um pouco de boa vontade e algum engenho, sempre se pode construir um discurso filosfico bem argumentado a favor de ou contra qualquer ponto de vista. Por outro lado, jamais se persuade o auditrio que se tem em mente. Os critrios de autovalidao prprios a cada discurso so sempre discutidos e rejeitados pelos outros. Donde a perpetuao inevitvel de conflito das filosofias, num P , testemunho eloqente de sua indecidibilidade bsica. Situao essa que parece condenar inexoravelmente as filosofias, todas e cada uma delas, a uma insupervel precariedade, dificilmente compatvel com a natureza mesma dos projetos por que elas costumeiramente se definem. Seus discursos, em ltima anlise, parecem impotentes para efetivamente resolver os problemas que elas inventaram. Os cticos, de h muito, tinham feito sobre isso seu severo diagnstico.

natural, ento, que eu seja tentado a ver, nos discursos das filosofias, meros jogos de palavras, jogos engenhosos e complicados mas que, uma vez apreendidos e analisados, no posso mais levar a srio. Brinquedos dos filsofos com a linguagem, da linguagem com os filsofos, que ela enfeitiou. natural, ento, que eu desespere de poder filosofar. Por que daria minha adeso a tal viso do Mundo e no a tal outra? Por que assumiria tal atitude filosfica e no tal outra? Assumir qualquer posio filosfica configuraria uma escolha e uma escolha, em ltima anlise, arbitrria, uma vez que sua justificao no constituiria seno um exerccio a mais de habilidade retrica. No vendo como aderir criticamente a um discurso de outrem, por que me cometeria a editar um discurso original e novo, sabendo-o de antemo condenado, por sua prpria natureza, sorte adversa de que todos os outros compartilham? Por que continuar o empreendimento, por que insistir em buscar solues filosficas para os problemas das filosofias?

0 ceticismo antigo, apesar de sua critica acerba aos "dogmatismos", definiu-se por uma investigao continuada e incansvel, caracterizou-se como uma filosofia "zettica".1 Entendeu que suas razes valiam tanto quanto as do dogmatismo filosfico e que no lhe era possvel validar sua prpria argumentao ctica.2 Props, por isso, a suspenso do juzo, a epokh, sobre cada uma das questes examinadas. Para seu propsito de abalar o dogmatismo, isso lhe era suficiente. Mas, por isso mesmo, a lgica interna de seu procedimento condenava-o a prosseguir investigando. Essa atitude me parece pouco natural e nada razovel. Porque o razovel e natural que a experincia repetida do fracasso engendre o desnimo e o abandono da empresa. Se somos mais do que ratos de laboratrio, tambm dependemos, entretanto, das contingncias de reforo: sem nenhuma recompensa, desistimos.

Resta-me, ao que parece, dizer adeus s pretenses filosficas que em vo alimentei, deixar atrs a filosofia. Optar pelo silncio da no-filosofia e nele recolher-me. Numa deciso de ordem prtica e existencial, que se me impe como justificada, ainda que no seja, por certo, justificvel filosoficamente. Contentar-me-ei em ser apenas um homem entre os outros homens. Deixando-me viver, em sua plenitude, a vida comum dos homens. Redescobrindo e revivendo o homem comum em mim.

Os cticos tinham entendido que sua postura filosfica no implicava a renncia vida comum.3 Pondo em xeque os critrios da pretensa objetividade dogmtica tomaram o phainmenon, o que aparece, como critrio da ao, segundo os ditames da vida. De fato, porm, seu retorno vida comum no foi completo, porque no souberam mergulhar em sua no-filosofia. A permanncia no empreendimento filosfico, a proposta de investigao continuada atestam que eles ficaram a meio caminho. Os cticos no desesperaram da filosofia. Por isso mesmo, no se permitiram suprimir definitivamente o distanciamento que o dogmatismo instaurou entre a filosofia e a vida. Contestaram as solues dogmticas, mas preservaram o seu quadro terico. Guardaram a nostalgia de um espao extramundano reservado para a investigao filosfica, em oposio ao espao banal da vida comum qual, enquanto homens, se apegavam.

Proponho uma ruptura com a filosofia bem mais radical que a do ceticismo. Um mergulho profundo, definitivo e de alma inteira na vida cotidiana dos homens. No me limito a suspender meus juzos mas, em face dos jogos filosficos, ouso dizer: "No jogo mais"4 Regresso humanidade comum e assumo integralmente a sua no-filosofia.

2. Desenvolvi esse tema num trabalho anterior, o "Prefcio a uma Filosofia"5. Sob determinado prisma muitos o entenderam corretamente, sabendo ver que uma exposio autobiogrfica era, sobretudo, proposio de um itinerrio de idias e discusso de uma problemtica bsica para quem se dispe a filosofar. 0 conflito das filosofias e sua efetiva indecidibilidade, a inexistncia de critrios aceitos para validar as solues - e os problemas - que elas propem, a tentao do ceticismo e, bem mais radical, a tentao do silncio filosfico oferecem-se "experincia" de qualquer um que empreenda um dia meditar com seriedade sobre a natureza da filosofia.

A atmosfera cultural de nossa poca, mais ainda talvez do que ocorreu em outras pocas, parece contribuir para alimentar uma desconfiana sensata e uma justa insatisfao com respeito aos sistemas ou mtodos filosficos. Por um lado, os discursos das filosofias no escapam indenes ao crivo das tcnicas modernas de anlise lingstica, retrica ou lgica do discurso qualquer, nem s investidas da psicologia e da sociologia do conhecimento. Por outro, as grandes transformaes que convulsionam, num ritmo vertiginoso, o Mundo dos homens parecem recomendar um primado da prtica e da ao sobre a teoria e o discurso. Tudo parece induzir-nos a que nos apliquemos de preferncia aos problemas reais e angustiantes da vida comum de nossa espcie, renunciando aos discursos vos. Redescobrindo o homem comum em ns, quando dele nos tenhamos afastado. Outra postura seria de fuga e alienao.

Essa redescoberta da vida comum, essa reconverso do filsofo ao homem comum que sempre fora, mas que sempre ignorara em sua filosofia e agora reencontra, foi o que propus no trabalho que mencionei.6 Num segundo momento, eu propunha tambm uma promoo filosfica de no-filosofia do homem comum, uma revalorizao filosfica de sua viso comum do Mundo.7 Entretanto, o estilo demasiado sucinto de um texto apenas programtico, tambm algumas imprecises nas idias propostas deram origem a mal-entendidos e confuses. Proponho-me agora reelaborar algumas noes e explicitar meu pensamento de modo mais claro e amplo sobre alguns pontos mais importantes, corrigindo alguma formulao porventura menos feliz. Tentarei responder a crticas e objees que me foram feitas, quase sempre oriundas de uma interpretao menos atenta de minhas palavras. Em particular, espero deixar bem patente que minha posio no se pode interpretar, sem mais, como uma mera variante da chamada filosofia do senso comum, ao contrrio do que se pretendeu.83. Renunciando filosofia, torno-me apenas um homem comum. A vida comum e cotidiana tudo aquilo que me resta, ao renegar das filosofias e de suas pompas. Assumo-a e vivo-a integralmente. E, ao modo de homem comum, organizo minha viso do Mundo, necessariamente falha e incompleta, necessariamente pessoal e minha. Mas nada me impede de, enquanto homem comum, consider-la em sua totalidade e com um olhar mais abrangente, buscando fixar alguns de seus traos mais gerais.

Apreendo-me imerso numa totalidade que me contm e que como tal se me manifesta, numa experincia que , ao mesmo tempo, de integrao e alteridade. Reconheo-a, essa totalidade que me cerca, engloba e transcende, como outra que no eu, como maior e mais poderosa que eu. Experimento essa Realidade, de que sou parte integrante, de modo continuado e irrecusvel. a experincia de minha vida cotidiana, experincia no pontual, mas que se prolonga indefinidamente na memria do passado. Essa Realidade, chamo-a de Mundo. Uma mera expresso, que me facilita o discurso. Direi, ento, que minha experincia , toda ela, experincia do Mundo; que minha vida, eu a vivo no Mundo. Que nele estou irremediavelmente imerso.

0 Mundo se me d numa experincia de riqueza e complexidade. A Realidade se me manifesta cheia de multiplicidades e de unidades, de variaes infindas, de diferenas e de semelhanas, estas ao menos relativas. 0 Mundo me oferece a experincia continuada de um devir no espao e no tempo. Tempo e espao que me aparecem como dimenses do Mundo. E eles dimensionam minha vida.

A totalidade, que o Mundo, se me apresenta constituda por coisas (ou objetos) e processos (ou fatos ou eventos) . As coisas me aparecem como semelhantes umas s outras, umas das outras dessemelhantes, umas com as outras integradas, umas das outras separadas. 0 mesmo se d com os processos ou eventos. Semelhanas e dessemelhanas, integraes e separaes, do-se em graus diversos e sob aspectos variados. Coisas e processos se combinam e continuamente interagem de modo mais simples ou mais complexo. Se a existncia ou devir de uma coisa se pode tambm dizer um processo ou fato, direi tambm que o Mundo a totalidade dos fatos.

A Realidade se me manifesta primeiramente a partir dos processos e coisas que me so mais prximos, por isso mesmo mais familiares. Os eventos do dia-a-dia, os fatos e os objetos ordinrios que povoam minha experincia do Mundo. Tudo aquilo que mais imediatamente me circunda e contm. Minha vida, eu a vejo como um processo em meio a esses processos, minha existncia, como a de uma coisa em meio a essas outras coisas. Essa poro da Realidade, esse Mundo mais prximo em que minha vida mais imediatamente se insere, -me por isso mesmo mais importante, tenho por ela um maior interesse existencial.

Esse Mundo mais prximo de mim se me apresenta tambm como um Mundo habitado por coisas que me so semelhantes, segundo graus diversos de semelhana. Por corpos fsicos, como o corpo fsico que sou. Por seres vivos, como o ser vivo que sou. Mas, em particular, por homens como eu, seres fundamentalmente semelhantes a mim, seres que sentem, pensam e falam, corpos pensantes como eu, em meio s outras coisas e processos do Mundo. Seres humanos que, como eu, interagem com o Mundo fsico que os cerca e, em particular, interagem continuadamente uns com os outros, inextricavelmente imbricados na vida social da espcie. Suas vidas imergem como a minha na experincia cotidiana do Mundo. Nele os homens nascem, sofrem, trabalham, gozam e morrem.

Quanto aos processos de minha vida interior e psquica, sensaes, emoes, prazeres, dores, desejos, sentimentos, cuja existncia me to manifesta e irrecusvel quanto a das coisas e processos fsicos, eu os tenho como fundamentalmente anlogos aos processos que experimentam os outros homens, em sua vida psquica e interior. Suas mentes, tenho-as como substancialmente semelhantes s minhas. Em verdade, porque assim os vejo que os reconheo como homens.

Eu me comunico com eles e eles se comunicam comigo e uns com os outros atravs da linguagem, a cujo uso foram introduzidos e na qual foram treinados desde a infncia pela sociedade, geralmente pela famlia. Essa linguagem humana se diversifica sob a forma das vrias lnguas particulares, prprias s diferentes etnias ou naes. E, freqentemente, os homens aprendem as lnguas uns dos outros e as traduzem em suas lnguas prprias. Essa linguagem, que meu pensamento interioriza, vejo-a como analogamente interiorizada nos pensamentos dos outros homens.

Fundamentalmente semelhantes, os homens so tambm extremamente diferentes uns dos outros. Diferentes fisicamente, economicamente, culturalmente, moralmente. Fortes ou fracos, ricos ou pobres, exploradores ou explorados, ativos ou ociosos, cultos ou ignorantes, inteligentes ou medocres, honestos ou perversos. Valores vrios impem-se sua aceitao, mas que diferem de um para outro homem, de um para outro grupo social. Os mais variados pontos de vista, opinies, crenas e doutrinas recebem acolhida entre os homens, destarte diferenando-os individual e coletivamente.

Aparece-me tambm que a maioria dos homens se preocupa egoisticamente apenas com seus problemas pessoais, embora alguns homens se preocupem tambm com os problemas dos outros. Mas todos buscam seu bem-estar prprio ou felicidade. A vida humana , em verdade, de prazer e dor, de alegrias e tristezas. Os homens amam-se e odeiam-se, confraternizam-se e guerreiam-se. 0 Mundo humano encerra muito de sofrimento. E a violncia de uns contra outros e a explorao de uns por outros. E a brutalidade das opresses e represses, das torturas e das guerras. Os homens tm a dura experincia de uma realidade por vezes brutal. Ainda assim, encontra-se neles muita esperana.

Minha imerso no Mundo me aparece irrecusavelmente como mediada por esse Mundo humano, de que fao parte com todos os homens. Apareo-me como um recm-chegado vida da espcie, sua cultura e civilizao, trazido vida pela sociedade humana e por ela integrado na sua histria. Acolhendo-me, transmitiram-me prticas e costumes, modos de pensar, a linguagem de que me sirvo, os conceitos que nela expresso. Neles eu nasci e por eles fui condicionado. Por isso mesmo, minha experincia do Mundo humano me aparece como absolutamente fundamental. Uma experincia que inteiramente me modela e que me leva a dizer espontaneamente "ns" em lugar de "eu".

4. Em verdade, tudo nos leva a falar de uma experincia comum do Mundo, de uma experincia humana comum do Mundo. Carter esse comum que lhe advm, de um lado, daquela semelhana bsica que os homens entre ns reconhecemos, mas, de outro lado, da prpria presena do Mundo que se nos manifesta, a todos e a cada um, como 0 objeto comum de nossa experincia continuada. Esse Mundo-totalidade, Realidade irrecusvel que nos transcende, maior e mais poderosa do que ns, ns o conhecemos enquanto seus habitantes, conhecemo-lo como o lugar de nossas vidas, o lugar de nosso mesmo reconhecimento uns dos outros como homens. Ns somos uns com os outros no Mundo. Como indivduos e como espcie, fomos por ele engendrados e a ele pertencemos. Nele vimos a ser, vivemos e perecemos, assistindo ao desaparecimento uns dos outros. E nos aparece que essa realidade Mundana de que dependemos em nada depende de ns. Nosso desaparecimento individual ou coletivo em nada a afetaria, exceo talvez feita para aspectos superficiais da minscula regio que mais proximamente nos contm. 0 Mundo nos aparece com dimenses quase infinitas e, se nelas atentamos, aparece-nos que a prxis humana no o modifica seno minimamente. Assim se nos manifesta a presena permanente do Mundo aos homens, a presena contingente dos homens no Mundo. A experincia comum do Mundo nos revela nossos limites e nossa finitude.

Mas essa experincia comum -o tambm de nossa insero e integrao no Mundo humano, ancorado naquela Realidade maior. Experincia de uma sociedade que nos precedeu, nos acolheu e formou e nos dever sobreviver a cada um de ns, como sobreviveu a milhes de outros homens. Experincia, ainda que parcial e limitada, de uma Histria humana que nos situa, nos define e nos ultrapassa. 0 mundo humano se nos manifesta, inserido no Mundo-totalidade, como um produto histrico e milenar dos prprios homens, de sua civilizao e cultura. Obra comum que, desde tempos imemoriais, os homens vm construindo. Povoam-no as instituies que inventaram e que evoluem sem cessar no espao da geografia e no tempo da histria. A pr~is humana transforma profunda e substancialmente o Mundo dos homens. Tcnicas, modos de produo, formas de relacionamento social. Artes, religies, cincias, filosofias. Atividades que buscam tambm conhecer o Mundo.

Porque humanos, privilegiamos naturalmente esse Mundo humano, fragmento humano do Mundo. Privilgio que em nada contradiz nosso reconhecimento do Mundo-totalidade, pano de fundo necessrio sobre o qual projetamos nossa histria e nossa humanidade. Privilgio que apenas traduz nossa preferncia por ns mesmos, em meio s coisas e aos processos do Mundo. Pois o que ocorre no Mundo humano nos diz sempre respeito e, s vezes, muito de perto. Se, com freqncia, podemos modific-lo substancialmente por meio de nossa ao individual ou coletiva, tambm ocorre com muita freqncia que ele se transforme profundamente de modo a contrariar nossas vontades individuais ou nossos programas coletivos. E as mais slidas de nossas instituies devm e se desfazem ao longo de nossa histria.

Com relao ao Mundo Humano, nossa experincia comum tambm a experincia de nossa contingncia e precariedade. Precariedade de nossas vidas e de nossas instituies. Imersos na histria dos homens, contingncia de nosso pensamento e de nossa linguagem, de nossas crenas e de nossos discursos, de nossos pontos de vista. Precariedade e contingncia de nossa situao.

Parte importante de nossa experincia comum do Mundo concerne ao uso de nosso discurso comum, que nos serve de meio de comunicao, ao mesmo tempo que reflete e registra essa mesma experincia. Ele se exprime atravs das vrias lnguas particulares que traduzimos umas nas outras. 0 discurso comum est sempre a dizer o mundo, seu eterno pressuposto, seu referencial permanente. Ele parte do Mundo, mas o Mundo se diz atravs dele. E essa remisso congnita do discurso comum ao Mundo que lhe confere significatividade e inteligibilidade. A significatividade e inteligibilidade que espontaneamente lhe atribumos, na medida mesma em que dele nos servimos. 0 Mundo o universo de nosso discurso cotidiano. Nossa experincia comum do Mundo continuadamente o tema de nosso relacionamento lingstico com os outros homens. sobre o Mundo que estamos uns com os outros sempre a conversar e a contar-nos estrias. Os homens esto sempre a informar-nos sobre o estado do Mundo.

Esse nosso discurso comum, somos os homens que o reconhecemos todos como nosso e como comum. Como um comportamento humano no Mundo, evento do Mundo como qualquer outro comportamento humano. Seu objeto, o Mundo, tambm o seu lugar. E conhecemos sua contingncia pois nos aparece que nosso discurso no faz falta ao Mundo. No nos parece que as galxias se preocupem com ele. E conhecemos sua precariedade, sua freqente impotncia para dizer corretamente as coisas e os fatos do Mundo, embora o consideremos basicamente adequado ao Mundo. Pois nos servimos dele com confiana espontnea e o temos como fundamentalmente veraz.

Nele dizemos nossa percepo do Mundo, nele registramos nossas observaes do que se oferece nossa experincia, nele formulamos as certezas e evidncias da vida cotidiana. Nele exprimimos nossos pensamentos, formulamos nossas opinies e nossas crenas, que dizem o Mundo sob este ou aquele prisma. Com ele raciocinamos e inferimos, segundo regras que aceitamos e reconhecemos, reflexiva ou espontaneamente. Com ele nos aventuramos a propor explicaes sobre as coisas e processos do Mundo, que buscamos melhor conhecer. Nele construmos nossas teorias e doutrinas, nossas cincias e filosofias, produtos superiores de nossa atividade pensante. Pensamentos, opinies e crenas, teorias e doutrinas, cincias e filosofias constituem sempre, deste ou daquele modo, pontos de vista nossos sobre o Mundo que o nosso discurso exprime. Explcita ou implicitamente, o Mundo sempre o seu objeto nico e permanente. Eventos do Mundo humano, so processos, portanto, do Mundo que a ele revertem. Assim os conhecemos.

Alguns partilham muitas das nossas opinies e crenas, muitos tambm compartilham conosco algumas dentre elas. E h todas aquelas - e elas no so poucas - que toda a nossa comunidade, ou a maior parte dela; aceita conosco. Algumas crenas e pontos de vista parecem-nos de algum modo merecer mesmo a aceitao comum da espcie. Essas opinies e crenas compartilhadas pela comunidade constituem o que chamamos costumeiramente de senso comum. De um modo geral, podemos dizer que o senso comum varia muito no espao e no tempo, no interior de uma comunidade ou de uma comunidade para outra.

Nossa confiana no discurso comum grande , porm no ilimitada. E nele mesmo dizemos a conscincia que temos de suas limitaes, que so nossas. Reconhecemo-lo capaz de verdade e acertos, mas tambm de falsidade, erros e enganos. Mudamos com freqncia nossos modos de pensar, voltamos atrs em nossas opinies, abandonamos velhas crenas que rejeitamos como falsas e substitumos por crenas novas. Corrigimos continuamente nossos pontos de vista, tanto sobre as coisas mais banais e triviais quanto sobre as mais srias e importantes. A conscincia de nossos enganos e desacertos no nos leva descrena e dvida generalizada ou desconfiana sistemtica do discurso, recomenda-nos somente uma prudncia maior.

Uns dos outros com muita freqncia divergimos, assistimos continuamente ao choque de opinies, ao conflito de idias entre os homens. Criticamos e rejeitamos os pontos de vista uns dos outros, denunciando-os como falsos ou mal fundamentados. Discutimos, argumentamos, lanamos mo da experincia, de testemunhos, invocamos a autoridade. Procuramos persuadir-nos uns aos outros, s vezes em parte conseguimos. As divergncias entre teorias cientficas ou outras, o conflito incessante das filosofias aparecem-nos apenas como aspectos particulares, ainda que importantes, desse panorama geral. Crtica e autocrtica permanentes so a vida cotidiana do discurso.

Essa pluralidade de pontos de vista contrrios ou mesmo contraditrios configura, portanto, um trao particularmente notrio da prtica humana do discurso, que no nos parece seno muito natural. Eles se nos apresentam como tematizaes diferentes da leitura de um mesmo texto bsico, como variantes na interpretao mais geral de uma mesma experincia fundamental e comum, porquanto experincia de um mesmo Mundo. Pois nossas opinies e doutrinas, nossas crenas velhas e novas, nossos acordos e divergncias dizem sempre respeito ao mesmo e velho Mundo, que lhes serve sempre de pano de fundo.

5. Eis alguns traos gerais de minha viso do Mundo, que considero particularmente relevantes e que julguei oportuno fixar. Essa viso do Mundo se me manifesta, ela prpria, como minha, conforme as perspectivas que nela mesma para mim se desenham sobre o Mundo fsico e o Mundo humano nos quais minha experincia da vida cotidiana se insere. E a viso do Mundo de um homem no inculto, com alguma dose de esprito crtico, situado geogrfica, histrica, social e culturalmente, expressa num discurso que reflete inegavelmente essa situao e os condicionamentos de vria natureza que ela envolve. Esse discurso tem uma colorao fortemente pessoal e subjetiva, ele traz a marca de minha personalidade e de minha biografia. Por isso mesmo, nele se retratam de algum modo o espao e o tempo em que vivo, a sociedade a que perteno, o grupo social em que estou mais diretamente integrado, tanto quanto as idiossincrasias de minha formao e cultura. Um discurso que ao mesmo tempo manifesta o carter cultural das categorias de que se serve e as particularidades caractersticas da prpria lngua em que se escreve.

Entretanto, eu pretendo que no se trata de uma viso do Mundo meramente pessoal e subjetiva. Ou de mera expresso de uma situao histrica e social determinada. Em verdade, ouso mesmo dizer que se trata, de um certo modo, de uma viso comum do Mundo. Sei quanto essa expresso pode chocar espritos filosoficamente prevenidos ou demasiadamente influenciados por um relativismo sociolgico ou antropolgico exacerbado. Por isso, quero explicar um pouco o que tenho em mente, tentando desarmar alguns preconceitos.

Quero primeiramente relembrar que aquela viso minha do Mundo, cujos traos mais gerais acima esbocei, foi muito espontaneamente que eu a organizei quando, tendo renunciado filosofia, quis ser apenas um homem como os outros, retornando decididamente vida comum e cotidiana para viv-la em sua plenitude. Uma viso do Mundo que tranqilamente se me imps, sem nenhuma opo ou deciso de minha parte. Que no exprime adeso teoria ou preferncia por doutrina. E que pacificamente aceito e assumo, expresso inteligente e natural de meu mesmo relacionamento com a Realidade.

0 que pretendo que essa minha viso do Mundo tem muito em comum com as vises que os outros homens, meus semelhantes, tm, do Mundo, eles que esto imersos como eu na experincia cotidiana da vida comum. Vises do Mundo que se lhes impem tranqilamente, sem opes ou decises de sua parte. Vises em que espontaneamente registram, antes de qualquer adeso teoria ou preferncia por doutrina, sua experincia bsica da Realidade em que se reconhecem integrados. Em verdade, todos sabemos que essas mltiplas vises do Mundo so, tambm, extremamente diferentes e variadas, refletindo a infinda diversificao das situaes humanas, incorporando elementos de toda procedncia e natureza, exibindo as mais diversas ontologias. Nem concebemos que pudesse ser de outra maneira. E experimentamos todos quanto nossas prprias vises particulares do Mundo se modificam substancialmente no decorrer de nossas vidas, por exemplo rejeitando velhas entidades ou acolhendo outras novas.

0 que pretendo que h muita semelhana, tambm, entre as diferentes vises que os homens tm no Mundo. Que h como uma interseo de todas elas, inclusive a minha, que no vazia. Descontadas as particularidades prprias a cada um, minha viso do Mundo me aparece como algo que eu compartilho com os outros homens. E assim aparece a cada homem sua viso do Mundo. As diferentes vises do Mundo exibem algo como um ncleo bsico, razoavelmente rico e denso, comum a todas elas. Aqueles traos gerais de minha viso do Mundo que acima julguei relevante fixar aparece-me que integram esse ncleo central e comum. Todos ou uma boa parte deles, num grau maior ou menor, sob este ou aquele aspecto. Por certo no se tentou - seria acaso possvel? - um inventrio rigoroso e exaustivo, propus apenas algumas indicaes que me parecem fundamentais. Aparece-me que se encontram esses mesmos ingredientes, desta ou daquela maneira, em cada viso humana do Mundo. Algo como 0 mobilirio-padro da experincia humana do Mundo. Trivialidades de nossa vivncia do Mundo fsico e humano, sobre as quais estamos todos basicamente de acordo, coabitantes confessos da mesma Realidade. Que incluem boa parte do contedo de nossa experincia mais imediata da vida cotidiana, ns mesmos e as coisas e eventos que mais de perto nos cercam e afetam, os outros seres com que temos constante comrcio, sobretudo os outros homens. No vejo por que se precisaria de uma definio rigorosa quanto ao que deve ou pode

ser includo nele, ou dele ser excludo.

Na exata medida em que nos reconhecemos uns aos outros como homens que vivem a experincia comum do Mundo, podemos falar de uma viso comum do Mundo, pressuposto irrecusvel dessa experincia comum, assim como da comunicao que nos une atravs de nosso discurso comum. Ns todos a postulamos implicitamente - quando no a tematizamos explicitamente - a cada passo, a cada gesto, a cada palavra. A existncia de uma viso comum do Mundo um fato da vida cotidiana, no um ponto de doutrina. Em verdade, experincia comum do Mundo e viso comum do Mundo so as duas faces de uma mesma moeda. Temos cada uma delas ao ter a outra. A viso comum do Mundo no mais que nossa conscincia humana da experincia comum da Realidade. Essa experincia nos apareceu como fundamentalmente comum, enquanto experincia de um mesmo Mundo. E nossas vises particulares do Mundo desenham uma viso comum, enquanto vises do Mundo, reflexos naturalmente multiplicados da presena do mesmo Mundo a todos ns. 0 Mundo nos aparece como 0 objeto uno e comum de nosso olhar humano e mltiplo, suporte objetivo e slido de nossas vises particulares. 0 Mundo sustenta os "Mundos" dos homens.

Nada leva a supor que o fato inegvel de haver uma viso comum do Mundo requeira uma forma privilegiada de discurso para descrev-la. Discursos variados podem adequadamente propor-se para o mesmo efeito, desde que se reconhea que dizem fundamentalmente a mesma coisa. A descrio sucinta, que acima propus, de alguns dos aspectos mais gerais que caracterizam a viso comum constitui apenas uma dentre muitas formas possveis de organizar um discurso que a exprima.

Por outro lado, no posso obviamente alimentar a pretenso de tornar acessvel a qualquer um o discurso que para aquele fim utilizei. Sua compreenso adequada requer, por certo, um grau de cultura e um certo poder de abstrao de que boa parte dos homens no so capazes. Mas somente por um grosseiro sofisma se poderia sustentar que, sob pena de contradio, a descrio da viso comum do Mundo se devesse formular num discurso acessvel ao comum dos homens. Apenas posso pretender que meu discurso possa ser retomado por um homem suficientemente culto e inteligente para entend-lo e faz-lo seu. Isto , que ele possa ser reconhecido, por quem tenha as condies culturais e intelectuais para apreci-lo, como uma descrio razoavelmente adequada, ao menos em linhas gerais e, eventualmente, aps tal ou qual modificao, reformulao ou mesmo correo, da perspectiva comum que homem tem sobre o Mundo. Ainda que, em muitos e muitos homens, a viso do Mundo seja reconhecidamente tosca, mal organizada ou mesmo desconexa e confusa.

Espero ter dissipado em parte o mal-estar que pode acometer alguns espritos mais finos e delicados por causa da expresso "viso comum do Mundo". Explicado que foi o seu uso, parece-me que podemos us-la sem escrpulos exagerados. Aos que gostam de insistir nas diferenas e particularidades culturais, histricas, sociais, psicolgicas e outras que efetivamente distinguem e opem mesmo umas s outras as vises particulares que os homens tm do Mundo, peo apenas que no se esqueam de que o mesmo reconhecimento e especificao dessas particularidades e diferenas pressupe a representao de uma experincia comum da qual os homens somos os sujeitos e na qual nos reconhecemos como coabitantes do mesmo Mundo. Em outras palavras, o prprio reconhecimento das vises particulares pressupe o fato da viso comum.

E os homens comuns sabemos todos que assim se passam as coisas. No fiz mais que explicitar postulados e pressupostos. Aquilo que todos vivemos e pensamos e dizemos sobre o assunto. Inclusive os filsofos, quando se rendem s exigncias da vida diria e pem momentaneamente de lado as suas especulaes. Quando se esquecem de fazer filosofia.

At a, nenhuma filosofia. Estamos apenas com o homem comum, nos domnios de sua no-filosofia.9 Para quem se cansou do conflito das filosofias e a elas renunciou, dizendo adeus aos seus discursos, essa renncia significou um contentar-se com a viso comum do Mundo, um assumir gostosamente a no-filosofia dessa viso comum. Tal o sentido do mergulho profundo na vida cotidiana, para saborear sua rica e plena realidade. Um contentar-se com a ingenuidade do homem comum. Ou com o que os filsofos assim apelidaram. E que, entregues s suas especulaes, eles quase sempre desprezaram em suas teorias.

6. Eis que se pde operar, ento, o grande salto qualitativo que descrevi no "Prefcio a uma Filosofia"10 Em poucas palavras, a promoo filosfica da viso comum do Mundo. Sua valorizao filosfica, mediante sua transmutao em viso filosfica do Mundo. Como isso possvel? Parece-me que foi esse um dos pontos, naquele meu trabalho, que mais dificuldades suscitaram e que foram menos compreendidos. Tenho, no entanto, a convico de que, se ele se apreende corretamente, se obtm as condies para tentar uma verdadeira revoluo filosfica.

Ao philsophos que se tornou homem comum e que tranqilamente compartilha da viso comum do Mundo ocorre um dia que, em sua renncia desesperada filosofia, em face da indecidibilidade insupervel do conflito dos discursos filosficos, ele fora vtima da mesma hbris que os alimenta. Ele no desesperara se no por ter esperado em demasia,ll seu desespero proviera da esperana excessiva e injustificada que o Lgos nele incutira. Ele no escolhera pensar a questo da filosofia na forma de conflito das filosofias,l2 mas deparara com o espetculo desse conflito, constatara a incompatibilidade mtua e radical entre os universos filosficos em disputa. Ele no nutrira a pretenso de construir uma meta-filosofia exaustiva, ele aspirara somente a encontrar uma definio filosfica particular cujo discurso se pudesse justificar, de modo filosoficamente decisivo e irrecusvel, contra os discursos rivais: outra no era a pretenso de todo discurso filosfico. Assim, ele no escolhera pensar a filosofia na forma do poder argumentativo, ele travara conhecimento com as argumentaes retricas por que os discursos filosficos tentam validar-se e impor-se. Ele fizera a experincia que se oferece imediatamente a quantos se dispem a filosofar e procuram, para tanto, familiarizar-se com as diferentes posturas filosficas.

Mas ele se apercebe, agora, de que as filosofias o tinham sub-repticiamente persuadido a identificar a filosofia com os sonhos de seus projetos. A crer que o destino da filosofia se jogava inteiro no espao que forjaram para o seu conflito, se associava de modo indissolvel autonomia radical que o Lgos se atribua, dependia por completo da vitria impossvel de um dentre os muitos contendores. Em suma, ele fora levado a acreditar que a sorte da filosofia se jogava ao nvel dos discursos filosficos. E fora convencido de que a viso comum do Mundo constitua algo como um ponto zero do filosofar. Como se ela fosse vaga, essencialmente ambgua ou mesmo contraditria e sua preservao literal fosse, por isso mesmo, incompatvel com todo e qualquer empreendimento filosfico. Como se ela em nada pudesse servir filosofia, antes de ser filosoficamente "interpretada" e explicada. Como se o discurso comum que a exprime fosse filosoficamente opaco, enquanto a filosofia no se interrogar sobre o seu sentido para desvend-lo em resposta. Apenas sob essa tica, a renncia aos discursos em conflito, uma vez descoberta sua impotncia para dirimi-lo, se pde configurar como uma recusa da filosofia. No lhe tendo restado mais que a viso comum e no-filosfica do Mundo, a que ele firmemente se apegou, nosso homem comum se crera, por isso mesmo, proibido de filosofar.

Agora, porm, lhe ocorre que nada justifica assim brindar as filosofias do conflito com o monoplio e o privilgio do uso adequado e correto do nome "filosofia".13 Nada justifica que se faa a essa palavra uma tal injustia. Ele d-se conta de que aquela sua condio de espectador do conflito das filosofias lhe assegurava, em verdade, uma posio privilegiada que, cegado pelos feitios do Lgos prepotente, ele no soubera ou pudera aproveitar. Vivendo a aporia do conflito, perdera-se nela, tendo no entanto, ao alcance das mos, a chave que lhe permitira desfaz-la. Mas o Lgos o havia manietado. Enquanto no aderia a nenhuma das filosofias em disputa, ele era apenas um homem comum em busca de uma filosofia, um homem situado no espao da vida comum e que no tinha como seu seno o discurso comum dos homens. Mas a magia sedutora dos discursos filosficos o tornara incapaz de valorizar filosoficamente sua prpria condio, de olh-la com olhos simples de filosofia. E as filosofias marcavam seu discurso de homem comum com o estigma da ingenuidade.

Eis que ele se decide, ento, a promover filosoficamente a viso comum do Mundo, convertendo-a em base firme para uma viso filosfica do Mundo. Ele lhe confere a cidadania filosfica, dispe-se a endossar suas implicaes e pressupostos. Assume reflexivamente e em nvel terico o que, na viso do homem comum, era o produto de uma atividade quase sempre espontnea. Assume, decidida e confessadamente, as certezas e evidncias da viso comum como certezas e evidncias filosoficamente legtimas. Aceita, como real, do ponto de vista de uma semntica filosfica, isto , no sentido metafsico e forte do termo, o que se impe como real viso comum. Aceita as verdades da viso comum como verdades filosficas. E assim outorga s verdades "prticas" e s certezas "morais" da viso comum o estatuto de verdades e certezas tericas.14 Ele o faz com a mesma segurana tranqila, com a mesma convico e firmeza com que o homem comum sustenta a viso comum do Mundo. 0 novo filsofo assume essa viso comum como um conhecimento, reconhece-a como um saber. Ele a leva filosoficamente a srio, acolhendo suas pretenses como filosoficamente vlidas. Ele acolhe a "ingenuidade" na filosofia.

Essa filosofia v o Mundo, ento, como presena inexorvel que se manifesta e impe irrecusavelmente. Presena imediata e absoluta, que se no pode deixar de aceitar e reconhecer, irremediavelmente manifesta. Fato bruto e primeiro, objetividade plena, que se d imediatamente, numa evidncia absoluta e primeira, imune a qualquer dvida. Realidade que em si e por si, cuja autonomia radical prescinde absolutamente de nosso conhecimento e de nosso discurso. E o Mundo ou Realidade que assim se assume, essa filosofia no 0 assume como um grande X desconhecido, qual uma incgnita misteriosa sobre que se pronunciaria abstratamente e cuja natureza e contedo lhe coubesse eventualmente tentar investigar e desvendar. Ela no se limitar a repetir obsessivamente que h o Mundo,,l5 ela assume o que o Mundo , o que h no mundo. Ela assume o Mundo em carne e osso... Porque ela assume o Mundo como a totalidade dos fatos e coisas em que os homens estamos mergulhados e que se abre diante de ns a partir da esfera familiar dos fatos e objetos ordinrios que mais de perto nos cercam. Assume-se a realidade plena e absoluta dos aspectos e modos do Mundo que a viso comum recobre, em suas linhas gerais. Esse Mundo assumido contm, ento, todos os ingredientes fundamentais de nossa vida cotidiana, agora filosoficamente promovidos. Porque essa filosofia entende que nossa experincia cotidiana, no que ela tem de mais bsico, experincia do "realmente real".16Ela v o Mundo, ao mesmo tempo, como 0 objeto dessa experincia imediata e como o seu suporte e fundamento manifesto. Realidade inexorvel que nos contm, engloba e transcende. Realidade rica e complexa, de que nosso Mundo humano apenas um aspecto. E o homem se assume plenamente, portanto, como um ser no Mundo e do Mundo, numa auto-revelao que vai de par com a prpria manifestao do Mundo. 0 homem se d a si prprio no mesmo movimento pelo qual apreende o Mundo. E sua mesma viso do Mundo e seu mesmo discurso que a exprime e diz o Mundo lhe so, ao mesmo tempo, presenteados. E essa viso do Mundo se lhe d como fundamentalmente semelhante s vises que os outros homens tm do mundo, configurando uma viso comum. Ele se apreende, assim, como homem comum e como portador de uma viso comum do Mundo. E o que o homem comum conhece, a filosofia no desconhecer. Como o homem comum, a filosofia olha e v o que est diante de ns. 0 saber assumido consiste, pois, em bem mais de que na simples recusa da autoridade ilimitada do princpio de razo suficiente.17Assumindo o saber e conhecimento da viso comum como tais, a filosofia se pe como saber e conhecimento. Em verdade, porque o acolhe como um conhecimento anterior e originrio, ela efetua um reconhecimento. Ela vem assumir e refletir sobre conhecimentos que sempre foram nossos, ela aceitao reflexionante e crtica do que j se tinha e sabia. Reconheo algum quando me dou conta de que quem, de algum modo, eu j conhecia. A nova filosofia se prope como uma filosofia do reconhecimento do Mundo. Nela, a aceitao do Mundo no decorre de um eventual progresso no discurso filosfico, mas o seu ponto de partida. Ancorada na certeza e evidncia desse saber originrio, a filosofia do reconhecimento aspira somente a deixar o mundo dizer-se em seu discurso. Ela quer ser apenas o instrumento humano do auto-reconhecimento do Mundo.

Sempre conforme viso comum, a nova filosofia proclama, pelo simples fato de assumi-la, o primado absoluto do Mundo sobre o saber, do Objeto sobre o sujeito, do Conhecido sobre o conhecimento. Em suma, o primado do Mundo sobre o discurso comum, que tem no Mundo o seu referencial necessrio e o seu pressuposto permanente. Ela assume o discurso, todo discurso, como um evento do Mundo, como um aspecto do comportamento humano no Mundo. E assim assume a posterioridade absoluta do discurso em relao ao Mundo, a anterioridade correlata do Mundo em relao ao discurso. E entende que o discurso est sempre a dizer o Mundo. Reconhece sua precariedade e contingncia, sua capacidade de acertar e errar, seu poder e sua falibilidade. Mas ela o toma como basicamente veraz e assume a confiana espontnea que o homem comum nele deposita. Mas assume, tambm, que nosso discurso no faz falta ao Mundo.

Ao assumir teoricamente a viso comum do Mundo, a filosofia assume ipso facto sua expresso no discurso humano e comum como fundamentalmente adequada. Assume necessariamente essa poro do discurso como verdadeira e transparente, literalmente significativa. Acolhe-a como um discurso cuja boa compreenso dispensa totalmente qualquer esforo de interpretao e busca de sentido. Tal como, na viso comum do mundo, se v o seu prprio discurso. 0 Mundo, para a filosofia do reconhecimento, presena imediata que torna ocioso, torna em verdade absurdo qualquer projeto de legitimao outra do discurso que a exprime. Presena impositiva, cujo reconhecimento prescinde de qualquer outra justificao ou fundamentao. Existncia primeira e absoluta, que no tem de ser interpretada e cuja facticidade bruta faz mesmo da busca de sua interpretao um empreendimento sem sentido. Significao transparente que torna, por isso mesmo, obscura e incompreensvel a pergunta pela significao.l8Por outro lado, reconhecendo o discurso como um evento do Mundo, como um aspecto humano do Mundo, a filosofia v sob o mesmo prisma quanto nele se constri e prope. Teorias e doutrinas, cincias e filosofias no so, para ela, seno discursos humanos, eventos do Mundo humano, facetas do comportamento dos homens. Expresses contingentes da Opinio (dxa), pontos de vista humanos sobre o Mundo. Prticas opinativas mais ou menos felizes, que se devem mensurar pelo Mundo: a Opinio ora verdadeira, ora falsa... Ao Mundo elas dizem sempre respeito, o Mundo seu objeto nico e permanente, explcito ou implcito. Assim, em conformidade com a viso comum, a filosofia do reconhecimento humaniza e mundaniza todo saber e conhecimento, toda pretenso a saber e conhecer.

Em particular, ela humaniza e mundaniza todas as filosofias, sem excluir-se obviamente a si prpria. Ela assume, com a viso comum, que tudo que possam dizer os discursos filosficos mera opinio do homem, ainda quando opinio verdadeira. Opinio de um homem real num Mundo que est a, o que quer que dele digam as filosofias. De um homem real que vive, antes de filosofar. No princpio, o Verbo no era... As filosofias so apenas produtos da prtica terica dos homens, fatos da vida humana, em que pese sua excelsa dignidade de saber mais alto. Elas esto irremediavelmente situadas. O conflito indecidvel em que os discursos filosficos incansavelmente se empenham se trava, de fato, no espao e no tempo da vida comum. Mera disputa entre opinies de homens, que tem sempre, como pano de fundo, o velho Mundo. Mas a sorte do Mundo no se joga nesse conflito. Assim v as filosofias a viso comum dos homens, assim as v tambm a nova filosofia.

Eis a, pois, algumas indicaes sobre o que se pode entender por promoo filosfica da viso comum do Mundo. Ela significa assumir na filosofia o Mundo como ele , como ele se d nossa experincia imediata, anteriormente a qualquer filosofia. 0 filsofo assume, enquanto filsofo, o que no pode deixar de aceitar e de reconhecer, enquanto homem comum. Acolhe, em sua filosofia, a viso comum do Mundo que se lhe impe, quando no faz filosofia. A viso comum do Mundo que se imps ao espectador do conflito das filosofias, quando este a elas renunciou. E que "resistiu", pois, a essa renncia. A filosofia vem assumir o que sempre se tem, mesmo quando dela se desiste.

7. Ao descrever a renncia s filosofias do philsophos que se deixara vencer pela indecidibilidade de seu conflito, falamos vrias vezes de retorno vida comum, de reingresso, de volta. Ao ver-nos discorrer sobre esta redescoberta do amplo espao da vida comum, um filsofo, leitor intrigado, veio maliciosamente perguntar-nos onde se estava antes.19 E, vendo-nos tematizar a viso comum e nela insistir, vendo-nos reafirmar suas verdades comuns, ele nos perguntava perplexo: "Mas quem jamais disse o contrrio?"20 Tanto mais que todos reconhecemos que os prprios filsofos, enquanto homens comuns, evidentemente compartilham da viso comum. Eles nunca pretenderam negar que Wittgenstein usasse uma cueca sob a cala.21Ora, tudo indica que se tratava de uma volta ao lugar de onde nunca se sara, de um reencontro do espao onde sempre se vivera. Pois no se tinha, por certo, deixado a vida nem se abandonara a condio humana: o philsophos nunca quisera ou pudera renunciar vida cotidiana e comum. E tudo parecia indicar, tambm, que ningum "disse o contrrio", que nenhum filsofo reconhecido jamais ousara proferir to estranho discurso. Por que, ento, insistir no trivial, repetir o bvio? Por que lembrar o que ningum esquece, reafirmar aquilo de que ningum duvida? Porque o Mundo da viso comum, todos o reconhecem e ningum dele duvida. Se ningum nega a experincia comum, de que pode servir enumerar truismos?22 D-se a impresso de que se combate uma metafsica delirante, que recusaria a existncia do Mundo da experincia cotidiana e a vida comum. Mas, se ela no corresponde a nenhuma filosofia histrica,23 estaramos perdendo nosso tempo a convocar banalidades para guerrear fantasmas.

O que tnhamos em mente, entretanto, era a tradicional e freqente desqualificao filosfica da vida comum, do homem comum, do discurso comum, do saber comum, tal como ocorre em muita filosofia. Desqualificao falaciosa que quer converter a experincia comum do Mundo, por exemplo, em "f perceptiva", a viso comum do Mundo em "realismo ingnuo", toda a perspectiva da atitude espontnea sobre o Mundo em mera ilustrao do simplismo e ingenuidade filosfica. As certezas do homem comum, as verdades comuns da experincia cotidiana, os filsofos vivem-nas, por certo, e no as negam, enquanto homens. Mas, enquanto filsofos, no as assumem. Desprezando-as teoricamente, nesse sentido ignoram-nas em suas filosofias, ignoram-nas enquanto verdades e enquanto certezas. Nesse sentido em que as desqualificam, pode-se dizer que as recusam. Desqualificao terica, recusa filosfica, empreendidas em nome da racionalidade que postulam para a filosofia. Assim que boa parte das filosofias opta por esquecer "metodologicamente" a viso comum do Mundo, recusando-se a integr-la ao seu saber racional e terico. No podendo furtar-se, enquanto homens, experincia do Mundo, no o reconhecem como filsofos. 0 Mundo no , para eles, o universo reconhecido de seus discursos.

Repugna a tais filsofos integrar a prtica cotidiana e a experincia da vida comum a suas filosofias. Desconsiderando filosoficamente as verdades cotidianas, o bom senso, o senso comum, instauram de fato 0 dualismo do prtico e do terico, da vida e da razo filosfica. Instauram, consciente e propositadamente, o divrcio entre o homem comum que so e o filsofo que querem ser. No querendo assumir suas filosofias como meras prticas humanas no Mundo reconhecido, empenham-se em tentar esquec-lo, obscurec-lo, "p-lo entre parnteses" no interior de seus projetos tericos.

Tais projetos consubstanciam, assim, uma tentativa de criar um espao prprio e privativo para a filosofia fora do Mundo que o filsofo conhece, enquanto homem comum. A concepo desse espao extramundano24 o fruto necessrio do primado concedido razo sobre o Mundo. E o resultado imediato de a filosofia reivindicar para si uma liberdade absoluta e um desprendimento total em relao ao Mundo. Como se o pleno desabrochar da racionalidade exigisse um total distanciamento em relao ao Mundo, um distanciamento terico sui generis que, se no se exige explicitamente, implicitamente ao menos sempre se postula. Somente a constituio desse espao extramundano permitiria o exerccio do olhar crtico do filsofo, somente a existncia de to privilegiado mirante ensejaria filosofia debruar-se sobre seu Objeto, reconhec-lo e investig-lo, ou mesmo instaur-lo. E o relacionamento da filosofia com o Objeto se daria, portanto, fora do Mundo.

Em tais filosofias, na melhor das hipteses, o Mundo apenas o ponto de partida que se vai deixando para trs, ou o porto de embarque que se perde logo de vista, na medida em que o discurso filosfico vai tomando forma e a viagem filosfica se processa. Procuram-se formas de expresso, mtodos, critrios; buscam-se certezas, verdades, intuies; tudo se empreende, menos recorrer ao que l atrs se deixou e se desqualifica. Se se utilizam as verdades comuns, a contragosto e sempre como se fora provisrio. Qual verdade em trnsito, sem direitos a um visa de permanncia no discurso da filosofia. Verdades cujos prstimos se tolera aproveitar como que acidentalmente, mas a que se recusa conferir a cidadania filosfica. Associa-se-lhes, no mximo, uma certeza "moral".

natural, ento, em conseqncia desse distanciamento do Mundo forjado em nvel da razo filosofante, que se cave um abismo entre o lgos da filosofia e o discurso do homem comum. E muitos filsofos de fato opem, quase sempre muito explicitamente, ao discurso comum o discurso filosfico. Qualificam o discurso comum de vago, de incerto, de obscuro, quando no de contraditrio e inconsistente. Isto , desqualificam-no. Recusam-lhe qualquer transparncia, qualquer significatividade clara e imediata que se pudesse, sem mais, filosoficamente assumir. Procedem como se toda e qualquer poro do discurso comum exigisse sempre uma anlise e uma interpretao filosfica, para que se lhe possa desvendar a significao oculta. A busca da significao e a construo da interpretao tornam-se tarefas primeiras da filosofia. E sempre de m vontade que os filsofos se vem obrigados a mover-se na esfera do discurso comum e a dele servir-se. Pagam-lhe o devido tributo, mas sempre buscando escapar e, em no escapando, fingem t-lo abandonado, de corpo e alma empenhados em construir um reino verbal parte para as suas construes racionais. Comprometem-se a conformar um discurso claro e luminoso, que no querem contaminado pelo discurso ordinrio. E um s e o mesmo o movimento que pretensamente instaura o espao extramundano da filosofia e que constitui o seu discurso alegadamente especfico, rigoroso e competente. E a filosofia assim adentra o reino da Linguagem.

A filosofia ter eventualmente por Objeto - eventualmente, mas no necessariamente - um aspecto ou conjunto de aspectos do Mundo, eventualmente o prprio Mundo. Assim, por exemplo, a matria, a vida, o homem, a linguagem, a histria, o prprio Mundo em sua totalidade, so, por certo, os objetos privilegiados de muita filosofia. Mas considerados supostamente do exterior, para serem, por assim dizer, recriados, reconstrudos, instaurados, postos em sua mesma objetividade pelo lgos filosfico. Ou, pelo menos, tal a pretenso que este ltimo alimenta.

Em sua hbris sem peias, a filosofia, que se concede aquele pretenso distanciamento crtico e que no assume nem reconhece o Mundo, com isso se condena o tudo problematizar. 0 filsofo parece esquecer-se de que o projeto originrio da filosofia era o de compreender melhor e bem esse Mundo de nossa experincia cotidiana. Ele se esquece de que os homens se puseram a filosofar, em ltima anlise, apenas para compreender melhor seu dia-a-dia, para enriquecer e articular melhor sua viso comum do Mundo. Procede-se, ento, ao questionamento radical e absoluto de todo o contedo dessa viso comum, convertendo-se o Mundo num grande X desconhecido. Problematizam-se as certezas todas e as evidncias mais triviais. 0 Eu e o Outro, as outras mentes e a existncia dos mesmos objetos fsicos ordinrios. 0 pensamento e a linguagem, as noes de percepo, de existncia, de verdade, de conhecimento. A capacidade referencial e a significatividade do discurso, a prpria lgica e todo o saber.

Problematiza-se o Mundo em sua totalidade, a prpria existncia do Mundo exterior. J se ter refletido suficientemente sobre quo estranha - e sintomtica - esta expresso: "mundo exterior?"25 0 Mundo transforma-se num problema a ser resolvido, sua aceitao e reconhecimento numa mera crena a ser julgada. Nossa certeza quanto ao mundo exterior se apelida, com alguma condescendncia, de certeza prtica ou de certeza moral. Vive-se a extravagante aventura de projetar-se a razo para fora do Mundo, nas asas da imaginao filosfica, para eventualmente tentar a ele voltar no discurso da filosofia. Ou para decidir da impossibilidade do regresso. Na melhor das hipteses, que nem sempre ocorre, parte-se em busca de uma recuperao filosfica do Mundo, para um esforo de legitimao filosfica da aceitao de sua existncia. Empreende-se a grande busca do fundamento ltimo, concebem-se os estranhos projetos de fundamentao.26 Tenta-se, num certo sentido, a mgica da recriao, como se o Mundo se pudesse extrair de dentro do discurso, qual o coelho se tira da cartola do artista.

Eis o grande desvio da razo libertina, quando ela se comete a tentar engendrar a Realidade, sob o pretexto de salv-la. Quando, divinizando o Lgos, ela se prope como editora do Mundo. Em verdade, ela perde o Mundo, porque o retorno que eventualmente arrisque no ser mais que artifcio verbal. E ela se perde para o Mundo, porque recusou ser apenas um saber do Mundo. Dele libertada, a imaginao filosfica se entrega prazerosa explorao das riquezas inesgotveis da linguagem humana, multiplicando filosofias. E assistimos, assim, quela guerra sem fim entre os universos filosficos, num espao de fico. A ave de Minerva ala vo ao cair da tarde. Essa imagem animal foi infelizmente, parece, bem escolhida. Ela retrata bem a aventura do Lgos.

Moore lembrava o fato estranho de filsofos terem sido capazes de sustentar sinceramente, como parte de seus credos filosficos, proposies inconsistentes com o que sabiam ser verdadeiro.27 0 paradoxo no oferece maior dificuldade. que grande o poder da linguagem e o Lgos um grande Senhor.28 Por ele enfeitiado, o esprito humano levado a acreditar que quanto ocorre com as palavras, assim tambm se passa com as coisas.29 Aristteles parece ter-nos prevenido em vo contra os desvarios do discurso.

8. H um sentido bastante preciso, portanto, no qual se pode falar de uma desqualificao filosfica da viso comum do Mundo, de uma recusa do Mundo pelas filosofias. Chamo de idealista toda postura filosfica que empreende essa desqualificao, que efetua uma tal recusa, merc da primazia concedida s palavras sobre as coisas, razo sobre o Real.30 0 idealismo resume, assim, o delrio da razo libertina, a sua iluso essencial, a sua hbris mais perversa. Em outras palavras, o idealismo a recusa de integrar a viso comum do Mundo ao discurso filosfico, como componente fundamental e irrecusvel. 0 que leva ao fechamento da filosofia sobre seu prprio discurso, que ela hipostasia e no qual se instala, tendo posto o Mundo entre parnteses . a problematizao filosfica do Mundo. Ele implica sempre na postulao explcita ou implcita daquele espao extramundano para a filosofia, a que acima nos referimos. Implica sempre na decidida recusa de qualquer remisso ao Mundo para a soluo de seus problemas.

O idealismo apresenta-se historicamente sob os mais variados matizes. Nem todas as filosofias que desqualificam a viso comum do Mundo o fazem de igual maneira, havendo gradaes sem fim no distanciamento terico do Mundo que elas se permitem. 0 espao de suas construes tericas se acopla mais ou menos mal, segundo diferentes arranjos que variam muito de uma para outra, ao da vida cotidiana que dimensiona nossa experincia do Mundo. A sua alienao em relao ao Mundo no se d sempre sob a mesma forma ou em igual amplitude. Algumas vezes, depara-se com a desqualificao aberta e franca da viso e do discurso comuns, no mais das vezes procede-se com muito mais sutileza. Em muitos casos, o temor da alienao probe ao filsofo uma conscincia clara das implicaes e pressupostos de sua mesma postura. Donde o recurso a uma sofisticada auto-dissimulao e a recusa tcita de levar a cabo uma auto-anlise mais profunda. Em verdade, somente uma anlise cuidadosa dos discursos filosficos permitir tornar manifesto, em cada caso, seu maior ou menor grau de comprometimento com a postura idealista.

Torna-se, pois, evidente que a riqueza e complexidade da produo filosfica torna impraticvel qualquer tentativa de dar conta, mediante uma descrio esquemtica geral, das variadas formas histricas do idealismo. Se no empreendemos o exame particular e minucioso das doutrinas caso por caso, temos de ater-nos a indicaes gerais e forosamente menos precisas sobre o denominador comum que as aproxima e aparenta, enquanto variante diversificadas de uma mesma postura bsica. Assim, nem tudo quanto acima dissemos sobre o idealismo se aplica adequadamente, ou mesmo analogamente, a todas elas. Mas nem por isso aquela descrio geral menos vlida, na medida em que um certo esquecimento terico do Mundo configura o seu lote comum. A alienao que denunciamos permanece de longe o que h de melhor repartido entre as filosofias. Porque o bom senso , por certo, a coisa do Mundo melhor partilhada, filsofos parte...

Parece-me ficar claro, como se responder quela pergunta perplexa do leitor-filsofo que estranhou nossa demorada insistncia na viso comum do Mundo: "mas quem jamais disse o contrrio?". Respondo-lhe que todas as filosofias da recusa do Mundo, todas as filosofias que desqualificam a viso comum do Mundo, num certo sentido que acima precisei, "dizem o contrrio". De algum modo elas "dizem o contrrio", na medida em que se recusam a dizer o Mundo. 0 idealismo no diz o Mundo, ele "diz o contrrio". A filosofia moderna, de um modo geral, tem sempre "dito o contrrio". Desta ou daquela maneira, sob este ou aquele aspecto, numa forma mais ou menos explcita, com um grau maior ou menor de conscincia. Pois, no sentido em que acima o definimos, o idealismo tem sido, de fato, o paradigma oculto, mas onipresente, de toda a modernidade.31 certo que boa parte dos filsofos modernos ou contemporneos que tenho em mente recusariam indignados o epteto de idealista. Muitos deles fazem mesmo profisso de f anti-idealista. Mas creio ter deixado bem claro o sentido em que uso a expresso. Eles se movem no interior do universo espiritual do idealismo, eles consomem sua energia - e a de seus leitores - na tentativa de resolver os problemas e quebra-cabeas que o idealismo inspirou. E que somente adquirem sentido dentro do projeto idealista, se ele se aceita como legtimo. Projeto que de tal modo impregna - ou infesta o mundo filosfico, que as questes pertinentes sua problemtica interna e prpria acabam por transvestir-se em problemas espontneos e naturais da reflexo filosfica.

Sob esse prisma, portanto, no hesitarei em chamar de idealistas doutrinas quanto ao mais to diferentes como, por exemplo, o empirismo ingls, a filosofia crtica, o pragmatismo americano ou o positivismo lgico. Este ltimo, por exemplo, quando rejeita como "metafsicas" e desprovidas de significado as proposies sobre o mundo exterior que se no podem verificar empiricamente segundo os padres e critrios estritos de verificabilidade que ele define. Tambm chamarei de idealistas bom nmero das filosofias contemporneas da linguagem, quando julgam poder prescindir do reconhecimento filosfico do Mundo para tematizar e compreender a linguagem filosoficamente. Direi o mesmo de certas correntes da filosofia marxista de nossos dias que se comprazem paradoxalmente em abordar temas marxistas nos moldes da problemtica idealista e a partir de seus pressupostos, infiis por certo ao esprito e letra da obra adulta de Marx. E no seno muito natural que tudo isso ocorra, j que a atitude idealista define a postura bsica e constitui a dimenso mais essencial da racionalidade filosfica moderna.

Essa postura bsica, a filosofia moderna deve-a sabidamente ao cartesianismo, que constitui a fonte de inspirao profunda de seu idealismo visceral. E, sem sombra de dvida, pode-se falar de um cartesianismo profundo do pensamento ocidental. Foi a genialidade de Descartes que deu nascimento e forma consistente ao grande projeto da contestao filosfica do reconhecimento do Mundo. O Cogito pode, a justo ttulo, ser tomado como o smbolo historicamente privilegiado dessa extraordinria empresa da alienao da razo humana. Inventando a dvida hiperblica, a filosofia do Cogito abriu decididamente o caminho pelo qual as filosofias posteriores no cessaram de avanar, seguindo as suas pegadas. Pouco importa que elas no retomem temas ou solues cartesianas, ou que venham mesmo a rejeitar explicitamente o Cogito. E sempre o esprito profundo do cartesianismo que as anima, dele, em verdade, que elas continuamente se alimentam. Seu estilo e sua postura fundamental as fazem herdeiras, diretas ou indiretas, da grande tradio cartesiana. Deve-se filosofia do Cogito a perverso secular da razo ocidental.

A filosofia crist, ao tematizar o dogma bblico da criao, exigindo uma causalidade e explicao extramundana para o Mundo em sua totalidade, subordinando a existncia do Mundo - e sua permanncia nela - vontade inteligente de um Deus criador, iniciara de algum modo o processo de desestabilizao filosfica do Mundo, cujo reconhecimento, no entanto, ela assumia. Com o pensamento cristo, a mesma matria do Mundo deixou de bastar-se filosoficamente a si mesma. Sob esse prisma, o cristianismo filosfico preparou o terreno para a filosofia do Cogito, para tanto apropriando e reinterpretando, luz da Revelao, as categorias da filosofia clssica grega, que tambm se aplicavam, por certo, ao Mundo filosoficamente reconhecido (isso era verdade tambm para o platonismo, embora nele tenha lugar uma certa desqualificao ontolgica do Mundo da experincia cotidiana) . O Cartesianismo, ento, recorrendo ao arsenal do ceticismo grego, que a filosofia da Renascena repusera em moda, e exacerbando a dvida ctica at o limite extremo, operou a grande inverso idealista, pondo filosoficamente em xeque o mesmo reconhecimento do Mundo. E a razo filosfica passou a precisar da bondade divina at mesmo para assumir a existncia do Mundo. O cartesianismo fez, assim, passar ao ato potencialidades de algum modo inscritas no discurso filosfico cristo sobre a Criao. Ele proclamou a independncia da razo e de seu discurso em relao ao Mundo, conferindo ao lgos humano o lugar divino da exterioridade. Nesse sentido, ele divinizou o discurso dos homens. Ou humanizou o Verbo de Deus... E o reconhecimento do Mundo se converteu expressamente, pela vez primeira, num problema filosfico.

A filosofia posterior veio a rejeitar os prstimos da bondade divina e acabou de perder o Mundo... Por vrias vezes, ela tenta recuper-lo, reinstaur-lo, recri-lo em seus discursos. Creio lcito dizer que, nesse empreendimento, ela de fato se erige em sucednea laica da teologia da criao. Ela se faz o instrumento da vontade do homem de ser Deus. A filosofia do Cogito cavou um abismo entre a razo e o Mundo e a filosofia posterior se encarregou de alarg-lo e aprofund-lo. A histria do pensamento ps-cartesiano a estria de como esse abismo se alargou e aprofundou continuamente. A oposio histrica da razo ao Mundo veio a resultar na filosofia contempornea da linguagem. E o grande confronto filosfico de nossos dias se d entre o Mundo e a linguagem, que tomou o lugar do Cogito. 0 lingisticismo da filosofia contempornea o ltimo triunfo de Descartes.

9. Creio poder, agora, responder tambm aquela pergunta intrigada do leitor que estranhou falssemos do retorno do philsophos sua condio de homem comum, de seu reencontro do espao da vida comum, quando desesperou de encontrar uma soluo para o conflito das filosofias e decidiu renunciar a elas: o leitor malicioso nos perguntou onde se estava antes. Respondo-lhe que, antes, arrastado para o turbilho "extramundano" dos universos filosficos em conflito, o philsophos vivia um distanciamento malso entre a razo e a vida, entre o Mundo dos homens e os universos dos discursos filosficos. 0 dualismo esquizofrnico do filsofo que ele aspirava a ser e do homem que ele era mas com o qual a filosofia no permitia que ele se identificasse integralmente. A metfora da volta vida comum se entende bem, quando se considera o processo de desqualificao filosfica da viso comum do Mundo, quando se reflete sobre o empreendimento secular de alienao da razo em relao Vida. Trata-se, por certo, de uma volta ao lugar de onde nunca se sara, a no ser nas asas da imaginao filosfica...

O philsophos fora induzido ao distanciamento "terico" em relao ao Mundo, ao esquecimento "metodolgico" da viso comum do Mundo, vivera a extravagante experincia do "espao extramundano" que as filosofias pretenderam para si forjar. Ele se enredara na problematizao filosfica do Mundo, nas tentativas filosficas de "editar" o Real, ele se deixara seduzir pela tentao da exterioridade. Empenhado na busca de uma definio filosfica que se pudesse efetivamente validar, ele vivera a dolorosa experincia intelectual da indecidibilidade essencial do conflito das filosofias, da inocuidade dos projetos de auto-legitimao de seus discursos.

A renncia filosofia e a opo pelo silncio da no-filosofia representaram para ele, ao mesmo tempo, o abandono dos jogos da linguagem filosfica e a recusa daquele espao de fico no qual as filosofias travam obstinadamente o seu eterno debate. Significaram o abandono do estranho privilgio de ser cidado de dois mundos. Foi como se, deixando atrs a noite escura da fabulao, ele pudesse agora imergir de corpo e alma na luz que ilumina o dia dos homens. Para reviver com justificada alegria a experincia humana comum do Mundo em sua plenitude, sem mais a estranha tentao de pr o Mundo entre parnteses, como se fosse uma sentena. Longe da companhia dos que se recusaram a aprender com o Mundo. Por tudo isso, no creio descabida a metfora da volta vida comum.

10. Mas voltemos filosofia que reconhece o Mundo. Algum filsofo vir dizer-nos que a consulta da filosofia ao saber da viso comum deixa "as coisas como esto" e nos deixa, a ns, no grau zero da filosofia.32 Responder-lhe-ei que a filosofia do reconhecimento "deixa" confessadamente as coisas como esto, pois as reconhece como coisas dotadas de plena realidade e objetividade. No alimenta a pretenso de delas fazer tabula rasa, pois entende que "no pode com elas". Mas por outro lado, ao reconhecer as coisas e processos do Mundo, a filosofia se confere um ponto privilegiado de partida. Esse ponto de partida no um vcuo de saber, mas uma plenitude de manifestao e presena. Em verdade, no se trata de um ponto, mas de uma base slida de partida. A promoo filosfica da viso comum , precisamente, a sua transmudao em base para uma viso filosfica do Mundo. Reconhecendo o Mundo, a filosofia se d a si mesma essa base extraordinariamente rica sobre a qual se erguer o edifcio filosfico. Fundamento forte, alicerce slido plantado em terra firme. O Mundo reconhecido o fundamento que a filosofia exibe e descreve, para sobre ele construir-se, no o tendo construdo. Tomando-o como necessrio Objeto, a filosofia v nele, anteriormente, o seu Sujeito suporte e raiz, fonte e alimento. 0 mundo reconhecido o pressuposto explicitado do discurso filosfico, o referencial imediato que o nortear e lhe dar sentido. Dando. s palavras de Wittgenstein um sentido por certo diferente daquele que o filsofo lhes atribua, direi tambm que em filosofia, "conhecemos, no ponto de partida, todos os fatos que precisamos conhecer".33 Tudo isso leva-me justificadamente a dizer que no existe o grau zero da filosofia.

Mas no verdade que toda a filosofia est ainda por fazer? Sim, num certo sentido. Mas a filosofia se pode agora fazer, porque ela dispe de um fundamento firme. No tem que procurar por certezas e evidncias primeiras, porque as tem em seu ponto de partida. No perseguir no ar o que tem como cho: o solo no se inventa, mas sobre ele se caminha. No sair busca de critrios para legitimar o seu discurso, na medida em que este imediatamente se legitima, enquanto expresso do reconhecimento do Mundo. Pois vimos acima como, ao assumir teoricamente a viso comum do mundo, a filosofia assume ipso facto sua expresso no discurso comum como fundamentalmente adequada, assume ipso facto a significatividade imediata e transparente deste discurso que ela faz seu. No mais forjando o extravagante projeto de procurar alhures o cho que j pisa, a filosofia partir da viso assumida do Mundo para explicit-la sempre mais, articul-la sempre melhor, constantemente aperfeio-la e nesse sentido enriquec-la, tornando-a mais sistemtica, auto-consciente e crtica. Explicitao, articulao, aperfeioamento, sistematizao e crtica que a preservaro, no entanto, de qualquer desqualificao, clara ou dissimulada. A partir da, a filosofia procurar definir suas tarefas e fixar seus programas, formular seus problemas e propor suas solues. 0 mundo reconhecido, que no um problema, ser o referencial permanente para a formulao de problemas e a proposio de solues. Alfa e mega da filosofia, origem e fim no questionveis dos questionamentos filosficos. E a filosofia remeter constantemente ao Mundo para orientar, aperfeioar ou mesmo corrigir suas formulaes. 0 caminhar da filosofia tem agora parmetros bem fixos que o balizam. Dentro deles, podero abordar-se os problemas histricos e clssicos da filosofia, seja para orientar sua soluo, seja para desmascarar eventualmente sua falsa problematicidade. Mas se caminhar sempre por terra conhecida. 0 reconhecimento do Mundo ter sido apenas o ponto de partida.34 Mas ele o nico ponto de partida possvel para uma s filosofia.

E se procurar construir, assim, o discurso crtico da filosofia. A razo filosfica encontrar sua fora e grandeza nessa submisso ao Mundo que ela reconhece como anterior e transcendente a ela, maior e mais poderoso que ela. Relativa ao Mundo, a filosofia sabe que o Mundo no lhe relativo.35 Ela se constituir num ato de humildade, como rendio da razo ao Mundo. "Porque a racionalidade da razo se manifesta no reconhecimento de seu lugar prprio, no no culto narcsico de sua divindade imaginria".36 E, com isso, se opera um verdadeiro redimensionamento da racionalidade filosfica.

11. Viro dizer-nos, tambm, que a promoo filosfica da viso comum do Mundo exprime a esperana de reconstituir-se uma "metafsica natural do esprito humano"37 Mas lcito perguntar se cabe realmente falar de uma filosofia natural e espontnea do homem comum. Entendo que, a menos que se queira usar a palavra "filosofia" num sentido extremamente vago e descomprometido, no se deve dizer que a viso comum do Mundo , em si mesma, de natureza filosfica. 0 homem comum, em geral, no filosfico, no faz filosofia. A sua viso comum do Mundo, mesmo quando ele civilizado e culto, faltam a sistematicidade construda, a sofisticao da anlise, o aprofundamento da reflexo crtica que caracterizam costumeiramente os empreendimentos filosficos. Mas, sobretudo, no nos permitido esquecer que a filosofia tem uma histria e que essa histria foi sucessivamente definindo rumos e problemticas e quadros de referncia para a reflexo dita filosfica. Ainda que a rica pluralidade das distintas tendncias filosficas no autorize uma definio inequvoca e aceita do nome "filosofia",38 no parece conveniente aplicar-se o termo seno ao produto de uma atividade de reflexo consciente de sua insero naquela histria e capaz de explicitamente determinar-se em relao a ela. Capaz de tematizar crtica e comparativamente problemas e solues, de aproximar semelhanas e opor diferenas, posicionando-se em relao as outras correntes de pensamento. Alis, sabidamente assim que procederam e procedem as vrias doutrinas que se propem - e que so reconhecidas - como filosofias. Essas caractersticas essenciais faltam, obviamente, viso comum do Mundo. No vejo, ento, como se possa, num sentido um pouco mais rigoroso, falar de uma "metafsica natural do esprito humano" ou de uma "filosofia espontnea do homem comum".

Mas se verdade que a viso comum do Mundo no , em si mesma, filosfica; se ela no constitui uma reflexo sobre o ser ou sobre o conhecimento, sobre o discurso ou sobre a verdade; se ela ignora, em suma, as questes tradicionais da filosofia, no menos verdade, contrariamente ao que alguns tambm sustentam, que ela contm, por assim dizer, uma potencialidade filosfica especfica, ela abriga em si o germe de uma filosofia. E ela se pode, sem maior esforo, prolongar nessa filosofia, que lhe permanecer extraordinariamente fiel. A filosofia que reconhece e assume o Mundo, promovendo a viso comum, se props exatamente nesse sentido. Eis porque me parece vlido dizer que, se optamos por no opor-lhe resistncia filosfica, a viso comum do Mundo "fora" uma filosofia.39 Tanto ao expor, pginas acima, de que modo entendia essa promoo filosfica da viso comum, quanto ao demorar-me numa anlise sucinta de sua desqualificao pela filosofia que chamei de idealista, penso ter deixado suficientemente manifesto o carter positivo da filosofia que emerge da orientao que proponho. Positividade essa que exprimiu sob a forma de teses sobre o Mundo, sobre o conhecimento, sobre o discurso, sobre a prpria natureza da filosofia.40Essa positividade se contrape precisamente, pois, positividade idealista. A filosofia do reconhecimento no se caracteriza menos pelo seu carter reativo4l contra todas as formas da filosofia idealista que por seu contedo positivo manifesto. Em verdade, carter reativo e contedo positivo constituem as duas faces de uma mesma moeda. um s e o mesmo o movimento pelo qual a promoo da viso comum "fora" uma filosofia e exclui muita filosofia. Curiosamente, alguns parecem experimentar uma certa dificuldade em perceber aquele contedo filosfico latente na viso comum do Mundo, teimando em atribuir-Ihe uma "inocncia" filosfica absoluta, uma potencialidade totalmente neutra em relao s diferentes posturas filosficas, inclusive em relao s idealistas. Entretanto, uma re-leitura mais rigorosa dos grandes textos idealistas e mais atenta a esta questo deveria trazer claramente luz a incompatibilidade radical e insupervel entre, de um lado, a viso comum, se literalmente assumida a srio no discurso filosfico, e, de outro lado, grande parte das asseres e a mesma orientao bsica que definem a posio idealista. No por outra razo que se procede desqualificao que apontamos, ora efetuando-a explicitamente, ora mascarando-a sob o disfarce de uma "reinterpretao": buscam-se, ento, para a viso comum, significaes que ela imediatamente no comporta e prope-se, das proposies que a exprimem, uma anlise" cujo sentido , precisamente, o de torn-las compatveis com o discurso idealista. Esse procedimento constante das filosofias idealistas testemunha de sua percepo correta daquela incompatibilidade.

No oporei maior objeo a que se agracie a filosofia do reconhecimento com o velho epteto de realista. Desde que, com isso, se queira apenas insistir no fato de que essa filosofia reconhece a anterioridade do Real, assumindo a significatividade transparente do discurso que diz imediatamente sua presena reconhecida. Mas rejeitarei firmemente que se trate minha posio de naturalista, quer se designe por esse termo uma forma qualquer de biologismo,42 quer se pretenda, com seu uso, atribuir nova filosofia um parentesco qualquer com as cincias da natureza, como o caso da epistemologia "naturalizada" de Quine.43 E a recusa do espao extramundano para as filosofias, se isso que se entende por naturalismo,44 no tem de significar a renncia metafsica: a filosofia do reconhecimento assenta confessadamente numa metafsica descritiva.45 Mas, uma vez estabelecido esse ponto, permito-me confessar, em seguida, minha crena sincera de que essa posio filosfica representa, de fato, o triunfo da animalidade sadia da espcie contra os delrios e devaneios da razo filosofante.

A inverso idealista negara o realismo grego e cristo, o novo realismo nega a negao idealista. Mas no se trata de um simples retorno postura original da filosofia clssica grega, que assumia espontaneamente a viso comum do Mundo e a incorporava serenamente ao discurso filosfico. Aps a queda, no se pode mais querer reencontrar a "inocncia" original.46 Mas se pode sempre salvar a filosofia, libertando-a do demnio idealista e recuperando a viso comum do Mundo. 0 novo realismo tem necessariamente de construir-se contra o idealismo, donde o seu carter essencialmente reativo. 0 que explica, tambm, a sua necessria sofisticao. No se pode voltar a Aristteles ignorando Kant ou Descartes.

12. Ainda uma ltima lembrana de Sexto Emprico. Ele nos diz47 que ao filsofo ctico sobreveio a mesma experincia que ao pintor Apeles. Deste se contava que pintando um cavalo e desejando representar a escuma do animal, desesperou de consegui-lo e arremessou sobre a pintura a esponja com que costumava limpar seu pincel. Ora, sucedeu que a marca feita pela esponja sobre a pintura produziu a imagem da escuma. Do mesmo modo, o filsofo ctico buscava atingir a quietude d'alma (ataraxa), tentando decidir sobre o verdadeiro e o falso, sobre o conflito entre as aparncias e as idias. Descobrindo-se incapaz de uma tal deciso, procedeu suspenso de seu juzo (epokh), quando lhe sobreveio inesperadamente, ento, a ataraxa que buscara em vo.

Eu direi algo semelhante da filosofia. Quando nos dispomos a filosofar, deparamos com o conflito das filosofias, tornamo-nos seus espectadores e nos deixamos enfeitiar pelos discursos filosficos. Buscando uma deciso para o conflito, fazemos a experincia de sua indecidibilidade. Renunciamos, ento, ao filosofar e redescobrimos a vida comum. Eis seno quando incidentalmente nos damos conta de que a filosofia buscada nas nuvens esperava, de algum modo, desde sempre por ns, na terra dos homens. Donde promovermos a nossa viso humana e comum do Mundo, conferindo-lhe um estatuto filosfico. A possibilidade de filosofar nos foi assim brindada, depois que renunciamos filosofia. Deitando fora seus instrumentos, aconteceu-nos recuper-la. Repetindo, de algum modo, a experincia do pintor Apeles.

como se houvesse um tempo lgico48 da instaurao filosfica. Descoberta do conflito das filosofias, experincia de sua indecidibilidade, tentao do ceticismo, renncia filosofia, redescoberta da vida comum, silncio da no-filosofia, promoo filosfica da viso comum. Uma seqncia ordenada de etapas que no vejo como se pudessem logicamente dispensar. No teria sido, com efeito, possvel comear diretamente pela promoo filosfica da viso comum e pelo reconhecimento filosfico do Mundo. Porque se estaria apenas lanando uma filosofia a mais na arena do conflito. Ora, no se tratava de obter no conflito uma vitria impossvel, mas de vencer o conflito, superando-o. Somente nossa renncia filosofia pde consegui-lo. E o silncio da no-filosofia pde, ento, obscuramente preparar a restaurao filosfica. A promoo filosfica da viso comum se faz por sobre o conflito, e a nova filosofia no vai se integrar nele.49Um salto qualitativo verdadeiramente se opera. E a filosofia vence a barreira da linguagem.

Bibliografia(*) Publicado em Manuscrito III, l, Campinas, 1975; tambm em Filosofia e epistemologia III, Lisboa, 1981.

(1) Cf. Sexto Emprico, Hipotiposes Pirronianas I, 7. Cito o texto conforme a edio da Loeb Classical Library, William Heinemann Ltd., Londres, e Harvard University Press, Cambridge, Mass., 1955.

(2) Cf. ibid. I, 14-15 et passim.

(3) Koins bos, cf. ibid. I, 23-24; 237-238.

(4) Cf. Trcio Sampaio Ferraz Jr., "A Filosofia como Discurso Aportico"

in gento Prado Jr., Oswaldo Porchat Pereira e Trcio Sampaio Ferraz, A Filosofia e a Viso Comum do Mundo, Editora Brasiliense, So Paulo, 1981. Nesse trabalho, o autor comenta criticamente meu artigo "0 Conflito das Filosofias". A crtica de Trcio foi-me deveras estimulante e desempenhou um papel importante no desenvolvimento de minhas reflexes.

(5) Cf. nesta coletnea, pp. 22-45.

(6) Cf. ibid., pp. 34 segs.

(7) Cf. ibid., pp. 34 segs,

(8) Bento Prado assim pretendeu, cf. Bento Prado Jr., "Por que Rir da Filosofia?", in Bento Prado Jr., Oswaldo Porchat Pereira, Trcio Sampaio Ferraz, A Filosofia e a Viso Comum do Mundo, Ed. Brasiliense, So Paulo, 1981, pp. 59-97. Trata-se de um texto de rara elegncia e profundidade, no qual o autor procura analisar e criticar, dentro do quadro mais amplo de uma crtica s filosofias do senso comum, as idias que expus no "Prefcio a uma Filosofia". 0 artigo de Bento, do qual essencialmente discordo, obrigou-me, no entanto, a aprofundar algumas de minhas idias e a desenvolver com mais preciso certos pontos daquele meu trabalho. 0 presente texto, sob muitos aspectos, tambm uma resposta a Bento Prado, ainda que no me tenha sido possvel abordar aqui todas as dificuldades que ele formulou.

(9) Espero ter ficado claro, nesta exposio, que a idia do homem comum no uma simples "fico operativa, ou seja, um projeto pedaggico", como quer Bento Prado, cf. "Por que Rir da Filosofia?", p. 90.

(10) Cf. "Prefcio", pp. 39 segs.

(11) Cf. ibid,, p. 39.

(12) Contra Bento, cf. "Por que Rir da Filosofia?", p. 95.

(13) Cf. "Prefcio", p. 40.

(14) Bento Prado julgou, entretanto, que eu reputava inacessvel a certeza metafsica ou absoluta, substituindo-a por uma certeza meramente moral, cf. "Por que Rir da Filosofia?", p. 95. E entendeu, tambm, que eu tomava a idia de verdade exclusivamente no sentido de "certeza moral", cf. ibid., p. 94. Mas a promoo filosfica da viso comum do Mundo transforma as certezas e verdades comuns em certezas e verdades metafsicas. Apenas no se trata de uma metafsica especulativa, eis toda a diferena.

(15) Conforme Bento Prado d a entender, cf. ibid., p. 79.

(16) No Fedro 249c, apresentando a teoria das Idias sob a forma do mito da reminiscncia, Plato nos fala do que a alma viu na grande procisso celeste em que ela acompanhava o passeio de um deus, quando ela olhava de cima tudo que presentemente dizemos ser (enai) e erguia a cabea para o alto, em direo ao realmente real (t n ntos). Desconhecendo essa dicotomia, a promoo filosfica da viso comum leva-nos a identificar o "realmente real" com o que "presentemente dizemos ser".

(17) Cf. "Por que Rir da Filosofia?" p. 79.

(18) Contra Bento Prado, cf. ibid., p. 'l9. Entretanto, Bento interpreta mal minhas idias ao atribuir-me a recusa de um estatuto filosfico para a interpretao e a tese de que somente h fatos brutos ou interpretaes vazias (cf. p. 94). Porque a filosofia do reconhecimento reconhece, alis de acordo com a viso comum do Mundo, que o discurso comum tambm comporta vagueza, ambigidades e contradies. Ela apenas assume que h um fato bruto primeiro, a presena do Mundo com seu mobilirio de fatos e objetos que se oferecem experincia imediata e se apreendem na viso comum. o reconhecimento desse fato bruto que dispensa qualquer hermenutica. Mas essa mesma facticidade bruta fornece, ao mesmo tempo, a base necessria e slida que servir de referencial para a anlise e interpretao de outras pores do discurso. Entendo, alis, que a existncia dessa base que dispensa uma hermenutica a condio necessria e suficiente para toda hermenutica possvel. Por outro lado, no me parece correta a interpretao que Bento oferece (cf. pp. 79-80) da distino introduzida por Moore entre, de um lado, a compreenso de uma proposio e a apreenso de sua verdade e, de outro lado, a sua anlise (analysis) correta (cf. G. E. Moore, "A Defense of Common Sense", in Philosophical Papers, Collier Books, New York, 1966, pp. 32-59). Sobre a noo de anlise em Moore, leia-se o cap. 5 ("Sentido Comn, Datos Sensoriales y Propiedades no Naturales") do livro de E. A. Rabossi intitulado Anlisis Filosfico, Lenguaje y Metajzsica, Monte vila Editores, Caracas, Venezuela.

(19) Cf. "Por que Rir da Filosofia?", p. 78.

(20) Cf. ibid., pp. 62 e 79.

(21 ) John Wisdom relata que, ao ouvir a prova de um mundo exterior proposta por Moore, disse Wittgenstein: "Those philosophers who have denied the existence of Matter have not wished to deny that under my trousers I wear pants", cf. ' John Wisdom, "Moore's Technique", in The Philosophy of G.E. Moore, ed. by Paul Arthur Schilpp, The Library of Living Philosophers, 1942, Northwestern University, Evanston and Chicago, p. 431. Bento Prado toma essa passagem para epgrafe da parte II de "Por que Rir da Filosofia?", cf. p, 69.

(22) Cf. "Por que Rir da Filosofia?", p. 79; "De que nos serviu o trabalhoso inventrio dos trusmos de que partiu Moore, se no final e ao cabo nos reencontramos no ponto de partida de qualquer filosofia?".

(23) Cf. ibid., p. 62.

(24) Tomo a expresso a Danto, cf. Arthur C. Danto, Analytical Philosophy of Knowledge, Cambridge University Press, Cambridge, 1968, pp. IX-X.

(25) Veja-se o comentrio de Moore sobre a expresso external things (coisas exteriores) e outras equivalentes, cujo uso o autor lembra ocorrer j em Descartes, cf. G.E. Moore, "Proof of an External World", in Philosophical Papers, p. 128. interessante notar que uma expresso equivalente se utilizava na linguagem do ceticismo grego. Sexto Emprico, com efeito, nos diz que o ctico se limita a dizer o que lhe aparece (t heaut phainmenon), nada afirmando sobre as realidades ou substncias exteriores ( t xothen hypokernena), ef. Hip. Pirr. I, 15.

(26) Bento Prado formula com justeza a posio das "filosofias do senso comum" quanto ao desvio que leva a filosofia ao delrio idealista: "0 desvio comea quando se considera o mundo como problemtico ou insuficientemente fundado, como uma aparncia a ser salva por uma instncia supostamente superior", cf. "Por que Rir da Filosofia?", p. 64.

(27) Cf. "A Defence of Common Sense", p. 41. Esse paradoxo foi chamado por Lazerowitz "o paradoxo de Moore", cf. Morris Lazerowitz, "Moore's Paradox", in The Philosophy of G.E. Moore, ed. Schilpp, pp. 369-393.

(28) E Grgias quem o diz, cf. Grgias, fragm. 11 (conforme a numerao dos fragmentos dos autores pr-socrticos em Die Fragrnente der Vorsokratiker, Diels-Kranz, 3 vol., Wedmannsche Verlagsbuchhandlung, 1956).

(29) Cf. Aristteles, Refutaes Sofsticas 165a. Trata-se de uma bela passagem do rganon, na qual o filsofo explica por que os homens se deixam enganar pelas palavras.

(30) Cf. "Prefcio" p. 40.

(31) Cf. ibid., p. 41.

(32) Cf. "Por que Rir da Filosofia?", p. 78: "A consulta que fazemos ao senso comum nada nos informa, portanto, a respeito do Mundo, deixa 'as coisas como esto' e, a ns, no grau zero da filosofia .

(33) Palavras de Wittgenstein, citadas por Moore, cf. G.E. Moore, "Wittgenstein's Lectures in 1930-33", in Philosophical Papers, p. 317.

(34) Comentando o "Prefcio a uma Filosofia" (particularmente pp. 41-42) Bento Prado entendeu, no entanto, que a filosofia que eu propunha se restringia explicitao da viso comum, cf, "Por que Rir da Filosofia p. fil: "Necessariamente diferente, a perspectiva do filsofo no inteiramente outra, j que se limita a explicitar o que estava presente na perspectiva anterior" (isto , na da "atitude espontnea").

(35) Ao estudar a categoria da relao, Aristteles nos diz que os relativos se caracterizam pela reciprocidade de sua relao a seus correlativos (isto , estes tambm lhes so relativos) e pela sua simultaneidade com eles: o