a filosofia de hegel

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  • 8/14/2019 A Filosofia de Hegel

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    A Filosofia de HegelRonie Silveira

    Georg Wilhelm Friedrich Hegel nasceu em Stuttgart na Alemanha em 27 de agosto de 1770 e

    faleceu em Berlin em 1830. Em 1788 entrou para um seminrio de teologia protestante emTbingen. Nesse seminrio travou amizade com Schelling e Hlderlin. Em 1793 Hegelrenunciou profisso de pastor e at 1796 trabalhou como preceptor em Berna, na Sua.Depois disso, mudou-se para Frankfurt onde permaneceu at 1800 - ainda como preceptor. Em1801 ingressou como livre-docente da Universidade de Jena e em 1816 foi nomeado professorna Universidade de Heildeberg. Em 1818 transferiu-se para a Universidade de Berlim da qual setornou reitor em 1829.

    O objetivo que impulsionou originalmente a Filosofia de Hegel foi a reconstituio de um idealcristalizado na imagem da Grcia Antiga. Esse ideal personificava a busca da liberdade. No aliberdade subjetiva e privada como ns a entendemos hoje. O que esse ideal personificava erauma noo de liberdade completa sem a presena da alteridade e da diferena. Uma liberdade,

    portanto, que pelas suas prprias caractersticas implicava uma consumao ligada ao infinito:sua realizao deveria eliminar toda espcie de separao entre as dimenses da vida. Assim,em contraposio a um presente caracterizado pela ciso entre governados e governantes, entreDeus e os homens e entre Poltica e Religio, a Grcia Antiga representava, para Hegel e muitosde sua gerao, um ideal de harmonia e de identidade entre esses vrios aspectos. Liberdade,ento significava uma vida plena ou o reestabelecimento da juventude perdida da civilizaoocidental.

    Entretanto, o amadurecimento do pensamento de Hegel conduziu-o a uma posio diferente eantagnica com relao restaurao do mundo grego. A noo de retorno cedeu terreno aoreconhecimento da riqueza e da peculiaridade do presente histrico. Tambm tornou-se evidentea precariedade da liberdade antiga. Mesmo abandonando a busca pela restaurao da Grcia

    Antiga, o objetivo da liberdade ou da vida plena permaneceu orientando a Filosofia de Hegel emsua formulao definitiva.

    Se queremos eliminar toda a excluso, devemos iniciar por aquela que est presente no modocomo o conhecimento ocorre. Assim, o que sei algo que sei de outra coisa, de algo real. Ento,o que sei no a prpria realidade mas um saber relativo a ela. Todo saber est, portanto, forado ser. Quando conhecemos produzimos uma alienao, uma diferena entre o saber e o ser. Seentendermos o conhecimento dessa maneira, fazemos proliferar essa diferena e essa alienao.A necessidade de eliminao dessa alienao levou Hegel a formular uma noo muito peculiarde conhecimento.

    O motivo que leva o conhecimento a se constituir como um saber fora do ser a conscincia. porque a conscincia no o objeto do conhecimento que sua apreenso do ser produz outracoisa que no o prprio ser. Mesmo quando a conscincia reflete sobre si mesma, ela se tomacomo se fosse outra e, portanto, seu saber sobre si mesma ainda um saber diferente do que ela. Mas Hegel no propor que eliminemos a conscincia para evitar a alienao. Isso significariaafirmar que o verdadeiro conhecimento deve ser operado por outras modalidades que noaquelas prprias da conscincia como o sentimento ou a emoo, por exemplo. Hegel no cainessa armadilha da irracionalidade. Ele afirmar que a conscincia deve ser conduzida a umestgio no qual no haja mais a alienao mas isso deve ser produto do esforo da conscinciae no sua negao.

    Esse processo pelo qual a conscincia parte de um hipottico estado bruto e chega a identificar o

    saber com o ser descrito por Hegel na Fenomenologia do Esprito. O saber absoluto umsaber de si, isto , ele um conhecimento que no produz um saber exterior quilo que conhecido. Para que isso possa ocorrer, o conhecimento no pode ser diferente da realidade ou o

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    contrrio: o modo como as coisas so o mesmo modo pelo qual elas so conhecidas. Mas issoobviamente muito diferente do conhecimento emprico com o qual estamos habituados a lidarno nosso cotidiano.

    Se o conhecimento passa pela conscincia e pela sua particularidade, ele no instantneo e simum processo. Portanto, a verdade, para Hegel, deve ser entendida como um sujeito e no comouma substncia imvel. Uma maneira de compreender a especificidade da Filosofia de Hegel

    justamente atravs de sua afirmao de que a verdade um sujeito e no uma substncia.

    Sabemos que a forma definitiva da verdade aquela em que o ser e o saber se identificamplenamente. Ora, nenhuma Filosofia pode produzir o ser ou o real mas somente o saber, isto ,uma certa apreenso do ser. A Filosofia Hegeliana consisitir, dessa maneira, na apreensoadequada ou verdadeira da realidade. O que ela estar lutando por construir ser sempre umaforma adequada para o saber (absoluto) pois a realidade j est dada. Obviamente nenhumarealidade dada para a conscincia sem que se constitua como uma certa forma particular desaber. Porm, essa modalidade atravs da qual o saber do real surge diante da conscincia aindano sua modalidade verdadeira. A conscincia dever tomar tais formas de apresentao do

    real como matria prima para retirar a verdade delas. Em outras palavras, para Hegel o real dado conscincia filosfica porm sob uma forma inadequada, sob uma forma no verdadeirae cabe a ela promover a harmonia entre o contedo e a forma.

    A Filosofia de Hegel no pode ser confundida como uma espcie de empirismo espiritual querene qualquer contedo na forma em que ele aparece para a conscincia. Pelo contrrio, elaproduz uma toro em tais contedos de tal forma que eles adquirem novos significados. Elaconstitui novos sentidos para velhas realidades. E esses novos sentidos esto sempre ligados significao que essa realidade particular adquire quando incorporada ao processo que buscaadequar a verdadeira forma ao verdadeiro contedo. Metaforicamente, a Filosofia hegeliana uma batria poderosa que fagocita sem destruir outros organismos. Esses passam a constitu-lacomo se fossem seus rgos internos. Ela, ento, um ser cujos rgos so outros seres. Mas de

    tal maneira que aqueles organismos isolados deixam de ser (falsamente) o que eram para serem(verdadeiramente) rgos dessa bactria superior.

    A Filosofia hegeliana no cria, de uma certa maneira, nada de concreto. Ela simplesmenteconcede a um contedo a sua forma verdadeira. Esse o sentido de limitar a atividade daFilosofia ao limiar dos eventos presentes. Definio esta que ficou famosa atravs da afirmaode Hegel de que "a coruja de minerva s levanta vo ao crepsculo". Isso tambm tornanecessrio que a Filosofia se ocupe da compreenso do passado e do presente pois nele que averdade se encontra na sua forma ainda inadequada e espera do trabalho filosfico. precisoque se faa, ento, uma leitura muito cuidadosa das obras de Hegel que no foram preparadaspor ele para a publicao. H nelas muitas afirmaes ligadas a expectativas com relao aofuturo principalmente aquelas ligadas a questes histricas e polticas. Tais afirmaes no

    podem ser entendidas como dotadas do mesmo estatuto cientfico prprio da cincia filosficahegeliana. Elas so somente opinies do Professor Hegel.

    A misso da Filosofia hegeliana , ento, o de dotar a realidade de uma forma adequada aosaber absoluto, isto , elevar o presente conscincia verdadeira de si mesmo. O que falta aomodo como a realidade se apresenta , vale a pena insistir, a forma no cientfica em que ela seapresenta. Em um certo sentido, o projeto filosfico hegeliano um projeto essencialmenteepistemolgico e no ontolgico.

    muito comum ouvir dizer que a forma que o real deve assumir para a Filosofia hegeliana sejaa "forma dialtica", isto , o esquema tese/anttese/sntese. Mas isso um engano. Esse supostoesquema dialtico no vale para a Filosofia de Hegel e nunca poderia ter sido nem cogitado porele.

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    O motivo simples. A forma cientfica da realidade, sua forma verdadeira, no introduzida emum contedo por fora da vontade de uma conscincia. Isso porque no h, no saber absoluto,uma conscincia distinta daquilo que conhecido. Essa situao em que o saber produzido poruma conscincia diante de um objeto uma situao distinta daquela requerida pelo saberabsoluto. Nesse, a forma adequada ao contedo a identidade de todas as modalidades sob asquais esse contedo se apresentou. No desenlace da identidade entre o contedo e a forma dosaber ocorre a unidade de todas as modalidades de aparecimento do real. Isso significa que todaa histria dessas modalidades verdadeira e no que a verdade seja histrica.

    Para cada modalidade particular h uma forma e um contedo. Do ponto de vista da cinciafilosfica de Hegel, essa forma particular dever se mostrar inadequada com relao a essecontedo particular. No h um critrio nico ou uma forma genrica a partir da qual se avalietodos os contedos em questo. A inadequao entre a forma e o contedo explicitados em cadacaso que so o motor da dialtica hegeliana. Como leitores j sabemos onde isso deverterminar (na identidade harmoniosa entre a forma e o contedo) mas na prtica essa identidadetem de ser produzida passo a passo por meio da definio de cada inadequao particular entreforma e contedo. Em outras palavras, no h nenhum sentido vlido na expresso

    "metodologia dialtica" - atribuda a Hegel. Tambm um equvoco enorme list-la como ummtodo nos manuais sobre o assunto.

    Tendo como base tais princpios, a obra de Hegel distingue-se em trs grandes conjuntos: oEsprito Subjetivo, o Esprito Objetivo e o Esprito Absoluto. Na primeira parte, Hegel se detmna relao interna do Esprito consigo mesmo. A Cincia da Lgica descreve esse momento davida do Esprito. A lgica, nesses termos, no um conjunto de regras do raciocnio correto esim um conjunto de apresentaes subjetivas do Esprito ou a maneira como ele se mostra parasi mesmo sem que se estabelea uma alteridade real. Na segunda parte, o Esprito torna-seobjetivo, isto , estabelece-se uma diferena entre a conscincia e o mundo. Essa a parte emque Hegel trata das questes ligadas s cincia empricas, Moral, Histria, Poltica e aoDireito. Na terceira parte, ele descreve o processo pelo qual o Esprito chega plena conscincia

    de si atravs da alteridade, isto , como se realiza a liberdade e a vida plena. Aqui, Hegel tratarda Religio e da Filosofia.

    Essa estrutura encontra-se expressa na Enciclopdia das Cincias Filosficas. Porm, Hegeldesenvolveu mais longamente muitos dos temas ali contidos em obras particulares. Porexemplo: Princpios da Filosofia do Direito, Lies sobre Filosofia da Histria Universal,Lies sobre a Histria da Filosofia, Lies sobre Filosofia da Religio.

    Mas, enfim, a Filosofia de Hegel ainda pertinente? Isto , algum pode, hoje e compropriedade, dizer-se hegeliano? Em um sentido rigoroso, creio que a resposta deve sernegativa. Por uma razo muita simples. Vamos supor que Hegel tenha razo. Se a Filosofia aapreenso cientfica do contedo de uma poca, sua Filosofia vale para a sua poca e no para a

    nossa. Ento um contrasenso dizer-se hegeliano. Nesse sentido, quem se diz hegeliano noparece haver captado a essncia de sua filosofia e, assim, h mais de Hegel naqueles que noso hegelianos.

    Mas em um sentido menos rigoroso, penso que alguns princpios gerais da Filosofia de Hegelainda podem ser vlidos. 1) A necessidade de que a Filosofia preste ateno ao presentehistrico , com certeza, uma assero importante para vrias correntes filosficascontemporneas incluindo aqui o Pragmatismo. A Filosofia deve se fazer a partir dosproblemas colocados no presente porque esses so os problemas para os quais ainda no hsoluo. 2) Penso tambm que sua crtica utilizao de uma forma geral para o conhecimento um mtodo, como ns dizemos hoje deveria ser objeto de uma maior ateno. Uma anliserpida de dissertaes e teses de cursos de ps-graduao do pas nos mostraria a inoperncia ea falta de resultados prticos da epidemia metodologizante que nos aflige. Mais ateno e menosmtodo poderia ser uma indicao hegeliana para essa patologia. 3) A Filosofia hegeliana

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    contm ainda um princpio importante que o de operar uma contraposio entre a forma e ocontedo que me parece extremamente valioso como um princpio de crtica geral. Qualquer umde ns pode criticar qualquer coisa apenas porque no assume tal ou tal postulado. Mas assimcriticamos algo apenas porque a desconhecemos. Isso no uma crtica, um estranhamentoseguido de uma opinio. Mas uma crtica pertinente deve considerar aquilo que se pretende eaquilo que se alcana, isto , os critrios para efetuar a crtica devem dizer respeito quilo que sealcanou dentro dos parmetros daquilo que se pretendeu. 4) Tambm penso que a Filosofia deHegel contm um princpio de conduta filosfica importante ligada quela caracterstica deconceder novos significados para contedos j conhecidos. O que a Filosofia seno isso: ver oconhecido sob uma nova perspectiva? 5) Por ltimo, a Filosofia de Hegel contm umcomponente de valorizao do trabalho intelectual o duro trabalho do Esprito para chegar a simesmo e dotar-se da forma verdadeira. Isso se apresenta como um antdoto contra as pretensesde profundidade no manifesta de vrios tipos de obscurantismos filosficos ou no.

    Bibliografia Recomendada

    1. Para os iniciantes em Hegel, recomendo a Introduo s suas Lies sobre Histria daFilosofia na qual ele se permite algumas metforas que faciliam a compreenso de algunsaspectos essenciais de sua filosofia.

    2. Para um panorama mais geral de seu sistema filosfico, sugiro sua Enciclopdia das CinciasFilosficas.

    3.Para uma anlise das motivaes e dos ideias que nortearam a elaborao da Filosofia deHegel sugiro o seguinte livro de Bernard Bourgeois: Hegel Francfort ou Judasme-Christianisme-Hegelianisme. Paris: J. Vrin, 1970.

    4. Para uma compreenso da diferena entre o modo como os eventos histricos aparecem paraa conscincia emprica e seu significado filosfico, recomendo um artigo de P.-J. Labarrire: Lasursomption du temps et le vrai sens de l histoire conu. Revue de Mtaphysique et de Morale.N.1, jan-mar., p. 92-100, 1979.

    Para entender a pretenso geral da Filosofia hegeliana e o princpio da alienao que ela visavacombater, sugiro, meu pequeno livro Judasmo e Cincia Filosfica em G.W.F. Hegel. SantaCruz do Sul: EDUNISC, 2001.

    Ronie Alexsandro Teles da Silveira, professor de filosofia da Universidade de Santa Cruz,

    Rio Grande do Sul