a fenomenologia do egoísmo - stirner vs marx

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:: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas. Nº 4, Ano II, Abril de 2006, periodicidade semestral – Edição Especial: Dossiê Marx – ISSN 1981-061X. A FENOMENOLOGIA DO EGOÍSMO: STIRNER E A CRÍTICA MARXIANA [1] Sabina Maura Silva * Resumo Este trabalho visa a apresentar a concepção de homem presente na obra O Único e Sua Propriedade, de autoria do filósofo neo-hegeliano Max Stirner, e expor os limites e equívocos apontados por Karl Marx à mesma, desenvolvidos na obra A Ideologia Alemã. Palavras-chave: alienação, egoísmo, individualidade, sociabilidade, objetividade, subjetividade. Abstract This work seeks to present the cointained man’s conception in the work The Ego and Its Own, of autorship of the young-hegelian philosopher Max Stirner, and to expose the limits and misunderstandings pointed for Karl Marx to this conception, developed in the work The Germany Ideology. Key-words: alienation, egoism, individuality, sociability, objectivity, subjectivity. Este trabalho tem como objeto a tematização de Max Stirner acerca da individualidade, acompanhada pelas principais críticas de Karl Marx a esta tematização. Ou seja, tendo como centro de nossa investigação o pensamento de Stirner, visamos explicitar a determinação stirneriana do homem, presente na obra 1

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  • :: Verinotio - Revista On-line de Educao e Cincias Humanas. N 4, Ano II, Abril de 2006, periodicidade semestral Edio Especial: Dossi Marx ISSN 1981-061X.

    A FENOMENOLOGIA DO EGOSMO: STIRNER E A CRTICA MARXIANA[1]

    Sabina Maura Silva *

    Resumo

    Este trabalho visa a apresentar a concepo de homem presente na obra O nico e Sua Propriedade, de autoria do filsofo neo-hegeliano Max Stirner, e

    expor os limites e equvocos apontados por Karl Marx mesma, desenvolvidos na

    obra A Ideologia Alem.

    Palavras-chave: alienao, egosmo, individualidade, sociabilidade, objetividade, subjetividade.

    Abstract

    This work seeks to present the cointained mans conception in the work The

    Ego and Its Own, of autorship of the young-hegelian philosopher Max Stirner, and

    to expose the limits and misunderstandings pointed for Karl Marx to this conception,

    developed in the work The Germany Ideology.

    Key-words: alienation, egoism, individuality, sociability, objectivity, subjectivity.

    Este trabalho tem como objeto a tematizao de Max Stirner acerca da

    individualidade, acompanhada pelas principais crticas de Karl Marx a esta

    tematizao. Ou seja, tendo como centro de nossa investigao o pensamento de

    Stirner, visamos explicitar a determinao stirneriana do homem, presente na obra

    1

  • O nico e Sua Propriedade, bem como expor os limites e equvocos apontados

    por Marx a esta determinao, desenvolvidos na obra A Ideologia Alem.

    A importncia de um estudo sobre o pensamento de Stirner se justifica, ao

    nosso ver, por dois aspectos. Em primeiro lugar, pelo fato de a obra stirneriana

    constituir um momento da gnese das vertentes contemporneas que se dedicam

    problemtica da individualidade. De fato, nela encontramos, mesmo que sob a

    forma de antecipao, questes que, posteriormente, estaro configuradas de

    modo mais apurado nas obras de Nietzsche, Freud, Heidegger e Sartre, dentre

    outros. Alm do que, Stirner considerado, com freqncia, um dos pais do

    anarquismo.

    Em segundo lugar, a anlise de sua obra fundamental para a

    elucidao do pensamento de Marx, dado que a crtica de Marx a Stirner

    produzida no perodo formativo de seu pensamento prprio. Assim, torna-se

    questo importante para a compreenso da gnese e do desenvolvimento do

    pensamento marxiano realizar um estudo sistematizado das obras daqueles com

    os quais polemiza.

    No entanto, se o esclarecimento do pensamento de Stirner contribui para

    elucidar um momento especfico e fundamental do pensamento de Marx, um

    trabalho centrado sobre ele no pode prescindir da presena da crtica marxiana,

    cujo propsito desvelar o fundamento das determinaes stirnerianas acerca da

    individualidade e de suas relaes com o mundo. Neste sentido, temos tambm o

    intuito de mostrar que a crtica de Marx a Stirner ultrapassa os limites de uma

    querela intelectual, tratando-se, em verdade, de uma confrontao entre

    determinaes distintas acerca do real e do ser dos homens.

    Max Stirner, filsofo neo-hegeliano, publica em 1844 sua principal obra, O

    nico e Sua Propriedade, a qual se origina no contexto alemo de crtica a Hegel,

    iniciado nos anos subseqentes a sua morte. Deste confronto travado no seio do

    hegelianismo surge a chamada esquerda hegeliana, da qual Stirner um dos

    2

  • representantes. Convencidos que sua poca era de transio e que estava

    prxima uma nova etapa de desenvolvimento histrico, os neo-hegelianos

    demandavam por uma nova ontologia, capaz de reconciliar o homem consigo

    prprio, recuperando, assim, a essncia humana que at ento, julgavam, estivera

    alienada. De modo que, cada qual ao seu modo, todos buscavam os princpios da

    filosofia do futuro[2].

    Para Stirner, o Eu, tomado como individualidade singular, o fundamento

    de sua esfera existencial. No entanto, considera que tudo tem determinado a

    existncia dos indivduos, no tendo sido permitido a eles determin-la. A defesa

    intransigente da individualidade o leva a rejeitar a preponderncia de todas e

    quaisquer condicionantes exteriores ao Eu, sejam elas materiais ou espirituais, por

    representarem, aos seus olhos, foras que oprimem, limitam e escravizam os

    indivduos, expropriando-os de si.

    Rebelando-se contra a determinao de que algo possa ter contedo fora

    do indivduo Stirner, primeiramente, submete crtica todas as formas de

    alienao que, segundo ele, tm vitimado os homens, para em seguida

    demonstrar a individualidade como princpio e fim de si mesma. Seguindo a ordem

    da obra, passemos, pois, anlise stirneriana da alienao.

    I - A CRTICA DE STIRNER ALIENAO:

    No interior do pensamento stirneriano, a apreciao do fenmeno da

    alienao est diretamente ligado quela do desenvolvimento da individualidade,

    que Stirner aborda analisando as fases da infncia, adolescncia e idade adulta.

    Segundo ele, desde o nascimento o indivduo luta com o mundo, no qual

    lanado como um dado entre tantos, buscando encontrar e afirmar a si prprio,

    pois tudo com o qual a criana entra em contato se ope s suas intervenes,

    afirmando sua prpria existncia[3]. A criana observa e experimenta as coisas

    3

  • visando desvelar o que nelas est encoberto, a fim de desvendar seu fundamento.

    Teme e respeita o que lhe exterior at descobrir em si foras capazes de

    super-lo. Assim, /.../ por detrs de tudo encontramos nossa ataraxia, isto ,

    nossa intrepidez, nossa resistncia, nossa supremacia, nossa invencibilidade. Ns

    no recuamos mais timidamente diante o que, outrora, Nos provocava temor e

    respeito, mas tomamos coragem. /.../. E quanto mais Nos sentimos Ns mesmos,

    tanto menor se mostra o que antes parecia invencvel. E o que Nossa astcia,

    Nossa inteligncia, Nossa coragem, Nossa obstinao? Que mais, seno

    Esprito![4]. O mundo objetivo j no exerce nenhum domnio sobre o indivduo,

    pois Nada mais se impe, agora, ao frescor do sentimento de Nossa juventude,

    este sentimento de si: declaramos o mundo desacreditado porque Ns estamos

    acima dele, somos Esprito[5].

    Descobrindo seu esprito, o jovem adota um comportamento terico.

    Porm, no se confrontando mais com as coisas, passa a se defrontar com os

    imperativos de sua conscincia. Ocupando-se to somente de seus pensamentos,

    interessando-se pelo mundo somente quando v nele a manifestao do esprito,

    sacrifica sua vida visando realizar seus ideais. Buscando desenvolver e enriquecer

    seu esprito, o jovem reconhece que embora Eu seja esprito, no sou, contudo,

    esprito completo e devo primeiramente procurar o esprito perfeito[6]. Mas, com

    isso, Eu, que tinha acabado de Me encontrar como esprito, perco-me novamente,

    humilhando-me diante o esprito perfeito como diante algo que no me prprio,

    mas que est alm de mim , sentindo, com isso, meu vazio[7].

    4

    Diferentemente do jovem, o adulto afeioa-se a si como pessoa e

    encontra prazer em si mesmo como homem corpreo e vivo, adquirindo um

    interesse pessoal ou egosta, isto , um interesse no somente por nosso esprito,

    mas pela satisfao total do indivduo[8]. Repelindo o esprito da mesma forma

    que o jovem repelia o mundo, usando as coisas e os pensamentos segundo seu

    prazer, o homem egosta pe adiante de tudo seu interesse pessoal. De modo que

    o homem evidencia uma segunda descoberta de si. /.../ O homem se descobre

    como esprito corpreo[9]. Assim, Da mesma forma que Eu Me descubro por

  • detrs das coisas como esprito, Eu devo Me descobrir, mais tarde tambm, por

    detrs dos pensamentos, como seu criador e proprietrio. No tempo dos espritos,

    os pensamentos cresciam sobre minha cabea, da qual, no entanto, nasceram;

    eles pairavam como alucinaes febris e Me envolviam com uma fora terrvel. Os

    pensamentos, por si mesmos, tornaram-se corpreos, eram fantasmas como Deus,

    o Imperador, o Papa, a Ptria, etc. Mas se destruo sua corporeidade, Eu a

    reintegro Minha e digo: somente Eu sou corpreo. E ento Eu tomo o mundo

    como ele , como o que ele para Mim, como o Meu, como Minha propriedade:

    Eu relaciono tudo a Mim[10].

    Enfim, A criana, perturbada pelas coisas deste mundo, era realista at

    que, pouco a pouco, atinge o que h por detrs das coisas; o jovem,

    entusiasmado pelos pensamentos, era idealista, at progredir em direo ao

    homem, ao egosta que se comporta vontade com as coisas e com os

    pensamentos e pe acima de tudo seu interesse pessoal[11]. As etapas da vida

    so, portanto, caminhos percorridos pelo indivduo em direo a si prprio. As

    fases de seu desenvolvimento so delimitadas a partir do autoconhecimento

    oriundo das relaes da conscincia, seja com o que lhe exterior, quando a

    conscincia percebe-se como tal, seja consigo prpria, possibilitando ao indivduo

    apossar-se da conscincia de si, atingindo a culminncia de seu ser. Delineia-se,

    assim, a determinao fundamental da individualidade stirneriana, que vem a ser o

    autocentramento na conscincia de si.

    Transpondo este processo para o curso histrico, Stirner mantm o

    mesmo procedimento analtico, dando contedo ao que referiu nas fases do

    desenvolvimento individual ao analisar os Antigos e os Modernos.

    A antigidade, perodo demarcado at o advento do cristianismo,

    representa a infncia, a fase realista da humanidade. Para os antigos, a verdade

    lhes era evidente atravs das manifestaes do mundo objetivo.

    Conseqentemente, eram dominados por ele, submetidos a uma ordem inalterada,

    vivendo na certeza de que o mundo e as relaes por ele impostas - os laos

    5

  • familiares e comunitrios, por exemplo -, eram os princpios incontestveis ante os

    quais deviam se curvar. Esta sujeio perdurou at que os sofistas proclamaram o

    entendimento como uma arma que o homem dispe contra o mundo. Porm,

    como o entendimento sofista permanecia sujeito ao mundo, pois o esprito era

    para eles apenas um meio[12], Scrates, apontando para a negao de seu

    carter prtico, indica a necessidade de o entendimento no sucumbir aos apelos

    do mundo. A partir dessa indicao socrtica, buscando encontrar o prazer de

    viver, esticos e epicuristas consideravam que a sabedoria da vida consistia no

    desprezo do mundo, numa vida sem desenvolvimento, sem extenso, enfim, numa

    vida isolada. A ruptura definitiva se d com os cticos, para os quais toda relao

    com o mundo privada de valor e verdade[13], restando em relao a ele

    somente a ataraxia (a impassibilidade) e a afasia (o mutismo - ou, com outras

    palavras, o isolamento da interioridade)[14]. Com a indiferena ctica a

    antigidade acaba com o mundo das coisas, com a ordem e a totalidade do

    mundo[15].

    necessrio precisar com clareza o que refere Stirner ao afirmar que a

    antigidade acabou com o mundo das coisas. Segundo ele, Quo pouco o

    homem consegue dominar! Ele deve permitir o sol traar seu curso, o mar impelir

    suas ondas, as montanhas elevarem-se em direo ao cu. Assim, sem poderes

    contra o invencvel, como poderia precaver-se da impresso de que era impotente

    em relao a essa colossal priso que o mundo? O homem deve se submeter

    ao mundo, a esta lei fixa que determina seu destino. Ora, para que trabalhou a

    humanidade pr-crist? Para livrar-se da opresso do destino, para no se deixar

    alterar por ele[16]. Porm, esta superao significa to-somente a

    desconsiderao das determinaes objetivas do mundo uma vez que, para

    Stirner, a histria antiga acabou desde que o Eu conquistou o mundo como sua

    propriedade. /.../ Ele deixou de ser superior a mim, deixou de ser inacessvel,

    sagrado, divino, etc., ele foi desdivinizado (entgttert) e Eu posso, ento,

    manipul-lo segundo meu agrado, porque poderia exercer sobre ele, se quisesse,

    toda minha fora prodigiosa, ou seja, a fora do esprito, e com ela remover

    6

  • montanhas, ordenar que as amoreiras por si mesmas se desenraizassem e se

    deslocassem para o mar (Lucas, 17,6) e tudo que possvel, ou seja, concebvel

    fazer /.../. Eu sou o senhor do mundo, a Mim pertence a soberania. O mundo

    tornou-se prosaico porque o divino dissipou-se dele: ele minha propriedade, que

    Eu disponho e domino como Me convm - quer dizer, como convm ao esprito[17].

    Portanto, a impresso de estar submetido ao mundo se devia impossibilidade de

    domin-lo, de superar a ordem natural. Contudo, se no podiam objetivamente, os

    homens tornaram-se capazes de faz-lo por meio da subjetividade. Ao

    determinismo inescapvel da natureza contrape-se, agora, a liberdade absoluta

    do esprito; a descoberta do esprito corresponde, pois, descoberta da liberdade.

    A impugnao da objetividade como algo dotado de verdade d incio

    modernidade, identificada por Stirner ao cristianismo. Embora os antigos tenham

    descoberto o esprito, no puderam ir alm disto; a tarefa de realiz-lo coube aos

    modernos. A modernidade se caracteriza por um processo de independentizao

    do esprito em relao ao concreto, ou seja, pelo esforo para transcender toda e

    qualquer determinao sensvel, pois para que o esprito seja efetivamente

    esprito, ele nada pode ter a ver com a matria. Todavia, como o esprito para se

    tornar independente se afasta do mundo sem poder aniquil-lo realmente, o

    mundo permanece irremovvel[18] e ao esprito liberto do mundo impe-se,

    portanto, a necessidade ineliminvel de tornar-se esprito livre no mundo. Os

    modernos tornaram isto possvel transfigurando o mundo, transformando-o em

    mundo do esprito. O esprito se converte assim no princpio que engendra e se

    manifesta nas coisas, que as faz ser o que so, que as vivifica, enfim, no que h

    de verdadeiro nelas.

    7

    Esta transfigurao no se limita ao mbito das coisas, pois o

    cristianismo, tendo como fim especfico Nos libertar da determinao natural (a

    determinao pela natureza), /.../ queria que o homem no se deixasse determinar

    por seus desejos[19]. De sorte que o esprito torna-se a fora exclusiva e no se

    ouve mais nenhum discurso da carne[20]. Considerando seu esprito como o que

    h de verdadeiro em si, os homens, porque no se resumem absolutamente ao

  • esprito, julgam-se menos que esprito e este se revela, assim, algo distinto da

    individualidade. O esprito torna-se o ideal, o inatingvel, o alm; torna-se Deus, o

    esprito puro que existe fora do homem e do mundo humano.

    Obcecados, os indivduos passam a ver fantasmas por todos os cantos,

    pois o mundo se transforma em simples aparncia, objeto de manifestao do

    esprito que habita as coisas. Possudos pela convico de que h um ser

    supremo do qual tudo emana, obstinam-se tarefa de determinar seu fundamento,

    compreender e descobrir sua realidade, buscando transformar o espectro em

    no-espectro, o irreal em real[21], de modo a conferir existncia ao imaterial. Disso

    decorre que O que outrora valia como existncia, como mundo, etc., mostra-se

    agora como simples aparncia e o verdadeiramente existente o ser /.../. Agora,

    somente este mundo invertido, o mundo do ser[22], existe verdadeiramente.

    Reconhecendo o esprito como superior e mais poderoso, os indivduos

    so forados a cultivar apenas interesses ideais, pois quem quer que viva por

    uma grande idia, uma boa causa, uma doutrina, um sistema, uma alta misso,

    no deve deixar nascer em si os apetites do mundo, os interesses egostas[23],

    isto , os interesses concretos, sensveis, pois no devem se deixar levar por

    qualquer determinao de carter material. Princpios, noes e valores, que

    reconhecendo expressamente a existncia de um ser supremo fundamentam a

    crena e o respeito em relao a ele, passam a dominar os indivduos como idias

    fixas que orientam todas as suas aes e relaes, engendrando e estimulando a

    negao e o desinteresse de si. Os dogmas religiosos, os princpios filosficos,

    morais e polticos constituem para Stirner exemplos destas idias fixas, que tm

    como meta zelar pelo esprito e moldar os indivduos de acordo com seus

    imperativos.

    I.1- As doutrinas do esprito:

    I.1.1- A filosofia e a negao do sensvel:

    8

  • Segundo Stirner, a modernidade segue um processo anlogo

    antigidade. Assim, sob a gide do catolicismo, o esprito ainda se encontrava

    ligado ao mundo. Foi apenas a partir da Reforma que comeou-se a considerar o

    esprito como algo absolutamente independente da matria. O protestantismo

    destri o mundo santificando-o, isto , introduzindo o esprito em todas as coisas.

    Reconhecendo o esprito santo como essncia do mundo, este se torna sagrado

    por sua simples existncia.

    Ao mesmo tempo em que redime o concreto, preenchendo-o com o

    esprito, Lutero preconiza a necessidade de rompimento da conscincia para com

    toda dimenso sensvel, uma vez que a verdade esprito, absolutamente no

    sensvel e, por isso, existe somente para a conscincia superior e no para a

    conscincia com inclinao mundana [24]. Por conseguinte, alcana-se com

    Lutero o reconhecimento de que a verdade, que pensamento, existe apenas

    para o homem pensante. O que significa que doravante o homem deve

    simplesmente adotar um outro ponto de vista, o ponto de vista celeste, da crena,

    da cincia ou o ponto de vista do pensamento em relao a seu objeto - o

    pensamento, o ponto de vista do esprito face ao esprito. Enfim, apenas o igual

    reconhece o igual! Tu te igualas ao esprito que Tu

    compreendes [25].

    9

    A soberania do esprito que se estabelece plenamente a partir da

    Reforma referendada pela filosofia, ocorrendo a legitimao terica do carter

    absolutamente espiritual do ser. Este processo se inicia com Descartes, que

    identifica o ser ao pensar, e se completa com a filosofia hegeliana, na qual Os

    pensamentos devem corresponder totalmente realidade, ao mundo das coisas e

    nenhum conceito pode ser desprovido de realidade[26], dando-se, enfim, a

    reconciliao entre as esferas espiritual e objetiva. Em suma, o resultado

    alcanado pelos modernos que tanto no homem quanto na natureza somente o

    esprito vive, somente sua vida a verdadeira vida. De modo que a modernidade

    culmina em uma abstrao: a vida da universalidade (Allgemeinheit) ou do que

    no tem vida[27].

  • Sobre a crtica de Stirner filosofia idealista, cabe destacar dois aspectos.

    O primeiro diz respeito ao apontamento da inverso ontolgica que o idealismo

    opera, transformando o imaterial, o no sensvel em origem e realidade do

    concreto, do sensvel, bem como censura da dissoluo do particular na

    universalidade abstrata. Nisto se pe em consonncia com a crtica de Feuerbach

    e Marx especulao, distinguindo-se os trs, entretanto, quanto ao que

    determinado como o efetivamente concreto e quanto ao que apontado como o

    princpio geral de determinao - para Stirner, apenas o indivduo singular e o

    egosmo.

    O segundo, que constitui um dos pontos determinantes da crtica de Marx,

    revela, ao nosso ver, o ncleo do pensamento stirneriano. Stirner ressalta a

    concretude que os ideais adquiriram ao longo da modernidade, o que poderia

    levar a supor que visa recuperar o mundo objetivo, livrando-o do peso da

    abstrao. No entanto, para ele, o que constitui a falha capital deste perodo vem

    a ser precisamente a no superao da objetividade, condio fundamental para a

    afirmao da individualidade pois, argumenta, Como pode-se alegar que a

    filosofia ou a poca moderna trouxe a liberdade, j que ela no nos libertou do

    poder da objetividade? /.../ Ela somente transformou os objetos existentes /.../

    em objetos representados, isto , em conceitos, diante os quais no s no se

    perdeu o antigo respeito, mas, ao contrrio, se o intensificou. /.../ Por fim, os

    objetos apenas sofreram uma transformao, mas conservaram sua supremacia e

    soberania; enfim, continuou-se submerso na obedincia e na obsesso, vivendo

    na reflexo, com um objeto sobre o qual refletir, um objeto para respeitar e acolher

    com venerao e temor. Apenas se transformou as coisas em representaes das

    coisas, em pensamentos e conceitos e a dependncia em relao a elas tornou-se

    tanto mais ntima e indissolvel[28]. De modo que o fundamental para Stirner

    tambm atingir a liberdade em relao objetividade. E visando realizar o que a

    modernidade no pde efetuar, dado que no partia do verdadeiramente real,

    aponta a necessidade de supresso de qualquer mediao entre o indivduo e si

    mesmo.

    10

  • Deve-se pr em relevo, outrossim, que embora critique o contedo,

    Stirner acolhe o movimento e segue o mtodo da filosofia hegeliana. ntida a

    similitude entre o caminho percorrido pelo eu em direo a si prprio e aquele que

    Hegel estabelece conscincia em direo razo. A diferena bsica reside

    precisamente no ponto final do percurso. Se na filosofia de Hegel a conscincia

    trilha um caminho que culmina no saber de si enquanto figura do Absoluto, em

    Stirner a conscincia individual tambm chega a um saber, que vem a ser o

    conhecimento de que somente ela o fundamento de toda realidade, de toda

    existncia ou, em outros termos, ao reconhecimento de si como o absoluto. Ou

    seja, em Hegel tem-se a fenomenologia do universal que se desdobra em

    particulares - os quais constituem momentos deste universal -, enquanto que em

    Stirner tem-se a fenomenologia de uma singularidade em confronto com qualquer

    dimenso de universalidade, tomada como pura negao da individualidade.

    Voltando questo do domnio do espiritual na modernidade, Stirner

    submete critica o humanismo ateu que se desenvolve em sua poca, atentando

    para o fato de que, embora se ataque a essncia sobre-humana da religio, no

    se abandonou a postura religiosa, uma vez que o posicionamento anti-religioso

    resultou to somente na humanizao da religio, simplesmente operando a

    substituio de Deus pelo homem. Permanecem prisioneiros do princpio religioso

    porque o homem que se torna o novo ser supremo no se refere ao indivduo

    singular, mas espcie, ao gnero humano. Se outrora o esprito de Deus

    ocupava o indivduo, agora ele se encontra ocupado e se pauta pelo esprito do

    Homem. De modo que o comportamento em direo ao ser humano ou ao

    homem apenas removeu a pele de serpente da antiga religio para assumir uma

    nova, igualmente religiosa[29]. A conquista da humanidade torna-se, assim, o

    ideal diante o qual o indivduo deve se curvar, o alvo sagrado que deve atingir.

    11

    Com a vitria do Homem sobre Deus d-se a substituio dos preceitos

    religiosos pelos preceitos morais. Esta moral puramente humana - que segue sua

    prpria rota orientando-se pela razo, dado que na lei da razo o homem se

    determina por si mesmo, porque o homem racional e do ser do homem que

  • resultam necessariamente estas leis[30] -, obtm sua independncia do terreno

    religioso propriamente dito com o liberalismo. Representando a ltima

    conseqncia do cristianismo, o liberalismo, dando continuidade ao velho

    desprezo cristo pelo Eu[31], apenas ps em discusso outros conceitos -

    conceitos humanos no lugar de divinos, o Estado no lugar da Igreja, a cincia no

    lugar da f /.../[32], tendo como finalidade realizar o homem verdadeiro.

    I.1.2- O liberalismo e a negao do indivduo:

    Sob o termo liberalismo, Stirner designa genericamente o liberalismo

    propriamente dito, o socialismo e o humanismo crtico de Bruno Bauer,

    chamando-os, respectivamente, liberalismo poltico, liberalismo social e liberalismo

    humano. Na perspectiva stirneriana, estas trs variaes, que tm em comum a

    rejeio da individualidade, diferenciam-se apenas quanto ao elemento mediador

    capaz de levar ao florescimento do homem no indivduo. O liberalismo poltico

    estabelece o estado, o liberalismo social, a sociedade, e o liberalismo humano a

    realizao universal da humanidade.

    I.1.2.1- O Liberalismo Poltico:

    Segundo Stirner, para esta vertente o indivduo no o homem e s

    adquire a humanidade na comunidade poltica, no estado, onde so abstradas

    todas as distines individuais. Portanto, empunhando a bandeira do estado, a

    burguesia, visando suprimir os estados particulares que impediam o

    estabelecimento efetivo de uma comunidade verdadeiramente humana, arrebatou

    os privilgios das mos dos nobres e os transformou em direitos expressos em

    leis e garantidos igualmente a todos. De modo que, doravante, nenhum indivduo

    vale mais que outro; so todos iguais.

    12

  • No entanto, observa Stirner, esta igualdade reflete negativamente sobre a

    individualidade, uma vez que os interesses e a personalidade individuais foram

    alienadas em favor da impessoalidade, dado que o estado, indistintamente, acolhe

    todos. Isto torna manifesto que o estado no tem nenhuma considerao com os

    indivduos particulares, que passam a valer somente enquanto cidados.

    Consequentemente, tem-se a ciso entre as esferas do pblico e do privado e, na

    mesma medida em que o indivduo relegado em prol do cidado, a vida privada

    renegada, passando-se a considerar como a verdadeira vida a vida pblica.

    Esta despersonalizao que ocorre na esfera estatal revela, segundo

    Stirner, o verdadeiro objetivo da burguesia ao buscar a igualdade: conquistar a

    impessoalidade, isto , afastar todo e qualquer arbtrio ou entrave pessoal da

    esfera do estado, purificando-o de todo interesse particular. Portanto, transformou

    o que outrora era esfera de interesses particulares em esfera de interesses

    universais. Neste sentido, a liberdade individual, sobre a qual o liberalismo

    burgus vela ciosamente, no significa de modo algum uma autodeterminao

    totalmente livre, pela qual minhas aes seriam inteiramente Minhas, mas apenas

    a independncia em relao s pessoas. Individualmente livre quem no

    responsvel por ningum[33]. , pois, liberdade ou independncia em relao

    vontade de outra pessoa /.../, porque ser pessoalmente livre s-lo na medida em

    que ningum possa dispor de Minha pessoa, ou seja, que o que Eu posso ou no

    posso no depende da determinao de uma outra pessoa[34].

    13

    A liberdade poltica, por seu turno, significa to somente a liberdade do

    estado em relao a toda mediao de carter pessoal. De modo que no foram

    os indivduos que se emanciparam; ao contrrio, foi o estado que se tornou livre

    para sujeit-los. E o faz atravs da constituio, a qual, ao mesmo tempo em que

    lhes concede fora, fixa os limites de suas aes. De modo que a revoluo

    burguesa criou cidados obedientes e leais, que so o que so pela graa do

    Estado. Portanto, no regime burgus somente o servidor obediente o homem

    livre![35], porque renega seu ser privado para obedecer leis gerais, nica razo

    pela qual so considerados bons cidados.

  • I.1.2.2- O Liberalismo Social:

    Segundo Stirner, os liberais sociais visam completar o liberalismo poltico,

    tido por eles como parcial porque promove e reconhece legalmente a igualdade

    poltica, deixando subsistir, contudo, a desigualdade social advinda da propriedade.

    Considerando que o indivduo nada tem de humano, pretendendo fundar uma

    sociedade em que desaparea toda diferena entre ricos e pobres, os socialistas

    advogam a abolio da propriedade pessoal, preconizando que ningum possua

    mais nada, que cada um seja um pobre. Que a propriedade seja impessoal e

    pertena sociedade[36].

    A supresso da propriedade privada em favor da propriedade social tem

    por corolrio a supresso do estado, j que este, conforme Stirner, o nico

    proprietrio de fato, que concede a ttulo de feudo o direito de posse a seus

    cidados. Assim, em lugar de uma prosperidade isolada, procura-se uma

    prosperidade universal, a prosperidade de todos. Porm, ao tornar a sociedade a

    proprietria suprema, os indivduos se igualam porque tornam-se todos miserveis,

    o que acarreta o segundo roubo cometido contra o que pessoal em interesse

    da humanidade. Roubou-se do indivduo autoridade e propriedade, o Estado

    tomando uma e a sociedade outra[37].

    Os socialistas pretendem superar o estado de coisas vigente sob o

    liberalismo poltico fazendo valer o que constitui para eles o verdadeiro critrio de

    igualdade entre os homens, que vem a ser a necessidade recproca entre os

    indivduos, a qual torna manifesto que a essncia humana o trabalho. Assim, diz

    Stirner, a contraposio dos comunistas ao liberalismo poltico se funda no

    preceito de que nosso ser e nossa dignidade no consistem no fato de que Ns

    somos todos filhos iguais do Estado /.../, mas no fato que Ns todos existimos uns

    para os outros. Esta a nossa igualdade, ou seja, por isso que Ns somos

    14

  • iguais, porque Eu, tanto quanto Tu e todos Vs, agimos ou trabalhamos, portanto,

    porque cada um de ns um trabalhador [38].

    Conforme Stirner, do ponto de vista do socialismo, o ser trabalhador a

    determinao de humanidade que deve nortear os indivduos, pois s tem valor o

    que conquistado pelo trabalho. Logo, se no liberalismo poltico o indivduo se

    subordina ao cidado, no liberalismo social se aliena ao trabalhador porque

    respeitando o trabalhador em sua conscincia, considerando que o essencial

    ser trabalhador, se afasta de todo egosmo, submetendo-se ao supremo poder de

    uma sociedade de trabalhadores[39], tanto como o burgus submete-se ao estado,

    porque se pensa que da sociedade que provem o que os indivduos necessitam,

    razo pela qual se sentem em dvida total para com ela. Assim, os socialistas

    permanecem prisioneiros do princpio religioso e aspiram com todo fervor a uma

    sociedade sagrada[40], desconsiderando que a sociedade somente um

    instrumento ou um meio do qual os indivduos devem tirar proveito, que no h

    deveres sociais mas exclusivamente interesses particulares aos quais a sociedade

    deve servir.

    I.1.2.3- O Liberalismo Humano:

    Segundo Stirner, a doutrina liberal atinge seu ponto culminante com a

    crtica alem ao liberalismo levada a efeito pelos crculo dos livres (Die Freien),

    liderados por Bruno Bauer. Ao empreenderem a crtica do liberalismo, estes

    acabam por aperfeio-lo pois o crtico permanece um liberal e no vai alm do

    princpio do liberalismo, o homem[41].

    Preconizando, como as formas precedentes, o afastamento dos

    particularismos que impedem os indivduos de serem verdadeiramente homens, o

    liberalismo humano considera, porm, que toda e qualquer determinao

    particular - o credo religioso, a nacionalidade, as especificidades e os mbeis

    puramente individuais - constitui uma barreira que afasta o indivduo da

    15

  • humanidade que determina o ser de cada um. De modo que, para esta vertente, o

    indivduo no e nada tem de humano. A crtica encetada pelo liberalismo

    humano aponta, ento, para o fato de que tanto o liberalismo poltico quanto o

    social deixam intacto o egosmo, pois tanto o burgus quanto o trabalhador

    utilizam o Estado e a sociedade para satisfazerem seus interesses pessoais. E,

    para que o liberalismo atinja contedo plenamente humano, estabelecem que os

    indivduos devem aspirar a um comportamento absolutamente desinteressado,

    consagrando-se e trabalhando em prol do desenvolvimento da

    humanidade. Desligando-se dos interesses egostas, ou seja, particulares, atinge-

    se o interesse universal, nico comportamento autenticamente humano.

    Stirner considera que a Crtica, exortando que o homem seja humano,

    exprime a condio necessria de toda sociabilidade, porque somente como

    homem entre homens que se socivel. Com isso, ela anuncia seu alvo social, o

    estabelecimento da sociedade humana [42], que no reconhece absolutamente

    nada que seja particular a Um ou a Outro, que recusa todo valor ao que porta um

    carter privado. Desta maneira fecha-se o crculo do liberalismo, que tem no

    homem e na liberdade humana seu bom princpio e no egosta e em tudo que

    privado seu mau princpio; que tem naquele seu Deus e neste seu diabo. Se a

    pessoa particular ou privada perdeu completamente seu valor perante o Estado

    (nenhum privilgio pessoal) , se na sociedade dos trabalhadores ou dos pobres a

    propriedade particular (privada) perdeu seu reconhecimento, na sociedade

    humana tudo o que particular ou privado no ser mais levado em

    considerao[43].

    16

    De sorte que entre as teorias sociais, a Crtica , incontestavelmente, a

    mais acabada, porque ela afasta e desvaloriza tudo o que separa o homem do

    homem, todos os privilgios, at mesmo o privilgio da f. nela que o princpio

    do amor do cristianismo, o verdadeiro princpio social, encontra sua mais pura

    plenitude e produz a ltima experincia possvel para tirar do homem sua

    exclusividade e sua repulsa em relao ao outro. Luta-se contra a forma mais

    elementar e, portanto, mais rgida do egosmo[44], ou seja, a unicidade, a

  • exclusividade, a pessoalidade. Esta luta evidencia que o liberalismo tem um

    inimigo mortal, um contrrio insupervel como Deus e o diabo[45]: o indivduo.

    Portanto, por representar a ltima forma conferida ao ideal, resta ento

    romper com o espectro do Homem para com isso quebrar definitivamente a

    dominao espiritual. Mas quem far tambm o Esprito se dissolver em seu nada?

    Aquele que revela por meio do Esprito que a natureza v (Nichtige), finita e

    perecvel; apenas ele pode tambm reduzir o esprito igualmente vacuidade

    (Nichtigkeit). Eu posso e todos dentre vs nos quais o Eu reina e se institui como

    absoluto[46]. Enfim, somente o egosta pode faz-lo.

    II - A CATEGORIA DA ALIENAO:

    Para Stirner, o egosmo ineliminvel e se manifesta mesmo naqueles

    que se devotam ao espiritual porque, ressalta, o sagrado existe apenas para o

    egosta que no se reconhece como tal, o egosta involuntrio, que est sempre

    procura do que seu e ainda no se respeita como o ser supremo, que serve

    apenas a si mesmo e pensa ao mesmo tempo servir sempre a um ser superior;

    que no conhece nada superior a si e se exalta, contudo, pelo superior, enfim,

    para o egosta que no gostaria de s-lo e se rebaixa, ou seja, combate o seu

    egosmo, rebaixando-se, contudo, para elevar-se e satisfazer, portanto, seu

    egosmo. Querendo deixar de ser egosta, ele procura em seu redor, no cu e na

    terra, por seres superiores para oferecer-lhes seus servios e se sacrificar. Mas,

    embora se agite e se mortifique, ele age, no fim das contas, apenas por si mesmo

    e pelo difamado egosmo que no o abandona. Por isso, eu o chamo egosta

    involuntrio[47]. Mas se assim o , por que isso se d? Ou seja, por que seres

    essencialmente egostas se alienam?

    17

    Na descrio das fases da vida, encontra-se explcito que o indivduo ,

    ele prprio, no s a fonte do que mas tambm de sua negao, de sua perda,

    uma vez que mesmo quando dominado pelos pensamentos, ele dominado por

  • seus pensamentos que, por no serem reconhecidos como seus, adquirem

    existncia autnoma em relao ao eu que os produziu. No entanto, a partir de

    outro texto, intitulado Arte e Religio, escrito em 1842, que se pode compreender

    com mais clareza o que constitui este fenmeno. Analisando a relao entre arte e

    religio, Stirner aponta que a arte manifestao da ardente necessidade que o

    homem tem de no permanecer s, mas de se desdobrar, de no estar satisfeito

    consigo como homem natural, mas de buscar pelo segundo homem, espiritual[48].

    A resoluo desta necessidade se d com a obra de arte, dado que ela configura,

    objetivamente, o ideal do homem de transcender a si prprio. Com a obra de arte,

    o homem fica em face de si mesmo; porm, O que lhe est defronte e no ele:

    o alm inatingvel em direo ao qual fluem todos os seus pensamentos e todos

    os seus sentimentos, seu alm envolvido e inseparavelmente entrelaado no

    aqum de seu presente[49]. Enquanto a arte posio de um objeto, a religio

    contemplao e precisa, portanto, de uma forma ou de um objeto[50] ao qual se

    defrontar.

    Segundo Stirner, o homem se relaciona com o ideal manifestado pela

    criao artstica como um ser religioso: ele considera a exteriorizao de seu

    segundo eu como um objeto. Tal a fonte milenar de todas as torturas, de todas

    as lutas; porque terrvel ser fora de si mesmo, e todo aquele que para si

    mesmo seu prprio objeto impotente para se unir totalmente a si e aniquilar a

    resistncia do objeto[51]. Logo, a arte d forma ao ideal e a religio encontra no

    ideal um mistrio e torna a religiosidade tanto mais profunda quanto mais

    firmemente cada homem se liga a seu objeto e dele dependente[52]. Portanto, a

    alienao ocorre no processo de objetivao da individualidade e se d pelo fato

    de o indivduo contemplar sua exteriorizao como algo que no lhe pertence,

    como algo por si, que o transcende. Contempla a si atravs de uma mediao,

    relacionando-se consigo mesmo de modo estranhado, pois no reconhece o

    objeto como sua criatura, convertendo-o em sujeito.

    18

    O que Stirner recusa a transcendncia do objeto sobre o sujeito. Isto

    porque o objeto, sob sua forma sagrada como sob sua forma profana, como

  • objeto supra-sensvel tanto quanto objeto sensvel, nos torna igualmente

    possudos[53], uma vez que, tomado como algo por si, obriga o sujeito a se

    subordinar sua lgica prpria. Destri-se, assim, a singularidade do

    comportamento, estabelecendo um sentido, um modo de pensar como o

    verdadeiro, como o nico verdadeiro [54]. Contra isso, Stirner argumenta que o

    homem faz das coisas aquilo que ele [55], ou seja, as determinaes das coisas

    so diretamente oriundas e dependentes do sujeito. E ironizando o conselho dado

    por Feuerbach, o qual adverte que se deve ver as coisas de modo justo e natural,

    sem preconceitos, isto , de acordo e a partir daquilo que elas so em sua

    especificidade, Stirner aponta que v-se as coisas com exatido quando se faz

    delas o que se quer (por coisas entende-se aqui os objetos em geral como Deus,

    nossos semelhantes, a amada, um livro, um animal, etc.). Por isso, no so as

    coisas e a concepo delas o que vem em primeiro lugar mas Eu e minha

    vontade[56]. Ento, Porque se quer extrair pensamentos das coisas, porque se

    quer descobrir a razo do mundo, porque se quer descobrir sua sacralidade, se

    encontrar tudo isso[57], pois Sou Eu quem determino o que Eu quero encontrar.

    /.../ Eu escolho o que meu esprito aspira e por esta escolha Eu me mostro -

    arbitrrio[58]. Torna-se claro, pois, que Stirner no leva em considerao a

    existncia dos objetos, ou seja, o que eles so em si, independente da

    subjetividade, e somente admite a efetividade dos objetos na medida em que esta

    estabelecida, sancionada pelo sujeito.

    A indiferena para com o objeto se d em funo de que Toda sentena

    que Eu profiro sobre um objeto criao de minha vontade /.../. Todos os

    predicados dos objetos so resultados de minhas declaraes, de meus

    julgamentos, so minhas criaturas. Se eles querem se libertar de Mim e ser algo

    por si mesmos, se eles querem se impor absolutamente a Mim, Eu no tenho

    nada mais a fazer seno apressar-Me em restabelec-los a seu nada, isto , a

    Mim, o criador[59]. De modo que a relao autntica entre sujeito e objeto s se d

    quando as propriedades dos objetos forem acolhidas como frutos das

    deliberaes dos indivduos. Conseqentemente, pelo fato de ser o sujeito aquele

    19

  • que pe a objetividade do objeto, segue-se que no se pode ter determinaes

    universais sobre as coisas, mas to somente determinaes singulares, postas

    por sujeitos singulares, rompendo-se, assim, a dimenso da objetividade como

    imanncia.

    Acatar a objetividade como algo por si , para Stirner, abdicar da

    existncia pois o nico ser por si o indivduo, produtor de seu universo

    existencial. Por isso, no condena as convices, crenas e valores que os

    indivduos possam abraar. Apenas no admite que sejam tomados como algo

    mais que criaturas: Deus, o Cristo, a trindade, a moral, o Bem, etc. so tais

    criaturas, das quais eu devo no apenas Me permitir dizer que so verdades, mas

    tambm que so iluses. Da mesma maneira que um dia Eu quis e decretei sua

    existncia, Eu quero tambm poder desejar sua no existncia. Eu no devo

    deix-los crescer alm de Mim, ter a fraqueza de deix-los tornar algo absoluto,

    eternizando-os e retirando-os de meu poder e de minha determinao[60].

    Portanto, os indivduos podem crer, pensar, aspirar, contanto que no percam de

    vista que so eles o fundamento das crenas, pensamentos e aspiraes, bem

    como daquilo que crem, pensam e aspiram. Neste sentido, a superao da

    alienao significa, pois, a absoro da objetividade pela subjetividade,

    requerendo somente que o indivduo tome conscincia de que por trs das coisas

    e dos ideais no existe nada a no ser si mesmo; em suma, exige que o indivduo

    negue autonomia a tudo que lhe exterior e tome apenas a si como ser autnomo,

    que atribua somente a si a efetividade da existncia.

    20

    O carter puramente subjetivo que Stirner confere apropriao da

    objetividade salienta-se plenamente quando se analisa a revolta individual,

    condio de possibilidade para o reconhecimento de si como base da existncia.

    Segundo ele, reflete um descontentamento do indivduo consigo mesmo, razo

    pela qual No se deve considerar revoluo e revolta como sinnimos. A

    revoluo consiste em uma transformao das condies, da situao existente,

    do Estado ou da Sociedade; , por conseqncia, uma ao poltica ou social; a

    revolta tem como resultado inevitvel uma transformao das condies, mas no

  • parte delas; ao contrrio, porque parte do descontentamento do homem consigo

    mesmo, no um levante planejado, mas uma sublevao do indivduo, uma

    elevao, sem levar em considerao as instituies que dela nascem. A

    revoluo tem em vistas novas instituies, a revolta nos leva a no Nos deixar

    mais instituir, mas a Nos instituir Ns mesmos e a no depositarmos brilhantes

    esperanas nas instituies. Ela uma luta contra o existente porque, quando

    bem sucedida, o existente sucumbe por si mesmo, ela apenas a Minha

    libertao em relao ao existente. Assim que Eu abandono o existente, ele morre

    e apodrece. Ora, como meu propsito no a derrubada do existente, mas elevar-

    Me acima dele, ento minha inteno e ao no poltica ou social, mas egosta,

    como tudo que concentrado em Mim e em minha singularidade[61]. Em outros

    termos, a revolta parte e se dirige subjetividade e a revoluo objetividade,

    razo pela qual a primeira uma ao autntica e a segundo uma ao

    estranhada do indivduo. E dado a supremacia do sujeito, prescinde de qualquer

    modificao sobre o objeto. Seguindo as palavras de Giorgio Penzo, em sua

    introduo edio italiana de O nico e Sua Propriedade, obviamente apenas

    com o ato existencial da revolta que se pode tornar menor a afeco do objeto,

    pelo que o eu se reconhece totalmente livre no confronto com o objeto[62].

    H que observar, contudo, que tal reconhecimento significa to somente

    aceitar o objeto como tal, tomando-se, no entanto, como o rbitro de tal aceitao.

    Neste sentido, Stirner pretende a afirmao da individualidade apesar e a despeito

    das coisas. No se deixando reger pelos objetos, ainda que acatando as

    determinaes da objetividade como posio de sua vontade, o indivduo abre as

    vias para o incio de sua verdadeira e plena histria, a histria do nico e sua

    propriedade.

    21

  • III- A RESOLUO STIRNERIANA: O NICO

    Visando remeter individualidade - fundamento ltimo e intransponvel -

    tudo o que dela foi expropriado e determinado de modo abstrato e transcendente,

    Stirner assume a tarefa de desmistificar todos os ideais, mostrando que nada so

    seno atributos do Eu. Ou seja, aqueles s podem ganhar existncia se

    assentados sobre o indivduo. Mas para tal o indivduo tem de conquistar sua

    individualidade, recuperando sua corporeidade e sua fora, para fazer valer sua

    unicidade.

    III.1- A Conquista da Individualidade:

    Segundo Stirner, desde o fim da antigidade, a liberdade tornou-se o

    ideal orientador da vida, convertendo-se na doutrina do cristianismo. Significando

    desligar-se, desfazer-se de algo, o desejo pela liberdade, como algo digno de

    qualquer esforo, obrigou os indivduos a se despojarem de si mesmos, de sua

    particularidade, de sua propriedade (eigenheit) individual.

    Stirner no recusa a liberdade, pois evidente que o indivduo deva se

    desembaraar do que se pe em seu caminho. Contudo, a liberdade insuficiente,

    uma vez que o indivduo no s anseia se desfazer do que no lhe apraz, mas

    tambm se apossar do que lhe d prazer. Deseja no apenas ser livre mas

    sobretudo ser proprietrio. Portanto, exatamente por constituir o ncleo do desejo

    seja pela liberdade, seja pela entrega, o indivduo deve tomar-se por princpio e

    fim, libertar-se de tudo que no si mesmo e apossar-se de sua

    individualidade.

    Profundas so as diferenas entre liberdade e individualidade. Enquanto

    a liberdade exige o despojamento para que se possa alcanar algo futuro e alm,

    a individualidade o ser, a existncia presente do indivduo. Embora no possa

    ser livre de tudo, o indivduo ele prprio em todas as circunstncias pois, ainda

    22

  • que entregue como servo a um senhor, pensa somente em si e em seu benefcio.

    Com efeito, seus golpes Me ferem: por isso, Eu no sou livre; contudo, Eu os

    suporto somente em meu proveito, talvez para engan-lo atravs de uma

    pacincia aparente e tranquiliz-lo, ou ainda para no contrari-lo com Minha

    resistncia. /.../. De modo que tornar-Me livre dele e de seu chicote somente

    conseqncia de Meu egosmo precedente[63]. Logo, a liberdade - permisso

    intil para quem no sabe empreg-la[64] - apenas adquire valor e contedo em

    funo da individualidade, a qual afasta todos os obstculos e pe as condies

    de possibilidade para a liberdade.

    Stirner frisa que a individualidade (Eigenheit) no uma idia nem tem

    nenhum critrio de medida estranho mas encerra tudo que prprio ao indivduo,

    somente uma descrio do proprietrio[65]. Esta individualidade, que diz

    respeito a cada indivduo singular, afirma-se e se fortalece quanto mais pode

    manifestar o que lhe prprio. E exprimir-se como proprietrio exige que o

    indivduo no s tenha a plena conscincia dessa sua especificidade mas que,

    principalmente, exteriorize suas capacidades para se apropriar de tudo que sua

    vontade determinar. O indivduo tanto mais se realiza e se mostra como tal quanto

    mais propriedades for capaz de acumular, pois a propriedade que se manifesta

    exteriormente reflete o que se interiormente. Para que isto se d, o indivduo tem

    de se reapropriar dos atributos que lhe foram usurpados e consagrados como

    atributos de Deus e, depois, do Homem.

    23

    Stirner aponta que as tentativas da modernidade para tornar o esprito

    presente no mundo significam que estas perseguiram incessantemente a

    existncia, a corporeidade, a personalidade, enfim, a efetividade. Mas observa que

    centrada sobre Deus ou sobre o Humano, nunca se chegar existncia, dado

    que tanto Deus quanto o Homem no possuem dimenso concreta, mas ideal e

    nenhuma idia tem existncia porque no capaz de ter corporeidade[66],

    atributo especfico dos indivduos. Logo, a primeira tarefa a que o indivduo deve

    se lanar recobrar sua concreticidade, perceber-se totalmente como carne e

    esprito, aceitando, sem remorsos, que no s seu esprito mas tambm seu

  • corpo vido por tudo que satisfaa suas necessidades. Conquista-se, assim, a

    integralidade como subjetividade corprea. Contudo, recuperar a corporeidade

    no significa que o indivduo deva se entregar a ela, deixando-se dominar pelos

    apetites e inclinaes sensveis, uma vez que a sensibilidade no a totalidade de

    sua individualidade. Ao contrrio, a conquista da individualidade requer o domnio

    sobre o corpo e sobre o esprito.

    Apropriando-se de sua concretude, de sua existencialidade, o indivduo

    deve, por conseguinte, apropriar-se de sua humanidade. Conforme Stirner, o

    Homem como realizao universal da idia, isto , como corporificao da idia,

    representa a culminncia do processo de abstrao que permeou a modernidade.

    Admitindo a possibilidade de a essncia poder estar separada da existncia, o ser

    separado da aparncia, o indivduo foi considerado inumano, o no-homem cuja

    misso , precisamente, vir a ser homem. Assim, a humanidade assentou-se no

    sobre o Eu corpreo, material, com seus pensamentos, resolues, paixes[67],

    mas sobre o ser genrico Homem. De modo que o ser abstrato e indiferenciado

    tomou o lugar do ser real, particular, especfico.

    24

    No entanto, ser humano no a determinao essencial do indivduo.

    mesmo insignificante que ns sejamos homens, pois isto s tem significado na

    medida em que uma de nossas qualidades, isto , nossa propriedade. Eu sou

    certamente, entre outras coisas, tambm um homem, como Eu sou, por exemplo,

    um ser vivo, conseqentemente um animal, ou um europeu, um berlinense, etc.[68].

    O humano se realiza no ser homem, que no significa preencher o ideal o homem,

    mas manifestar-se como indivduo[69], ou seja, manifestar-se como e no aquilo

    que . Com isso, a questo conceitual o que o homem? se transforma na

    questo pessoal quem o homem? Enquanto com o que procura-se o conceito

    a fim de realiz-lo, com o quem tem-se uma resposta que dada de modo

    pessoal por aquele que interroga: a pergunta responde-se a si mesma[70]. Portanto,

    quem o homem? o indivduo, o finito, o nico[71]. O homem vale como

    universal; porm, Eu e o egosmo somos o verdadeiro universal, porque cada um

    egosta e se pe acima de tudo[72].

  • A fora do Eu stirneriano a atualizao de suas capacidades; atravs

    dela, o indivduo objetiva a vontade que o move e expande sua propriedade. o

    que especifica e distingue os indivduos, que so o que so em funo da

    quantidade de fora que possuem. Todavia, no decorrer de sculos de

    cristianismo se perseguiu um modo de torn-los iguais enquanto ser e poder ser.

    Primeiramente, encontrou-se a igualdade no ser cristo que, todavia, ao excluir os

    no cristos, deixava subsistir a diferena, pois s os seguidores dos preceitos

    divinos eram merecedores das ddivas de Deus. O poder ser se revelava, assim,

    um privilgio. Contra esse particularismo, lutou-se pela igualdade universal

    advinda da humanidade presente em cada indivduo e, como homem, reclamou-se

    pelo que legitimamente, ou seja, por direito, cabe ao Homem. O direito, portanto,

    uma concesso dada aos indivduos em funo de estarem subordinados a uma

    potncia, ela sim detentora da vontade soberana. Advindo de uma fonte externa,

    todo direito existente direito estranho[73].

    No entanto, segundo Stirner, fora do indivduo no existe nenhum direito,

    pois Tu tens direito ao que Tu tens fora para ser[74]. Assim, quando o indivduo

    forte o suficiente para agir segundo sua vontade, est em seu direito e o realiza.

    Se o ato no se coaduna vontade de um outro, este tambm est no direito de

    no aceitar e fazer prevalecer sua vontade, caso tenha a fora para tal. De modo

    que a ao no necessita de nenhuma autorizao, pois a efetivao da vontade

    do indivduo que se cifra em si mesmo. E uma vez que a fora a medida do

    direito, os indivduos tornam-se proprietrios do que so capazes, capacidade que

    depende exclusivamente de sua fora para se apoderar e de sua fora para

    conservar a posse. Portanto, enquanto o direito uma obsesso concedida por

    um fantasma, a fora sou Eu mesmo. Eu sou o poderoso e o proprietrio da fora.

    O direito est acima de Mim /.../, uma graa concedida por um juiz; a fora e o

    poder existem somente em Mim, o forte e o poderoso[75].

    25

    Ademais, a conquista da individualidade demanda a necessidade de

    reorganizao das relaes entre os indivduos, dado que at ento os indivduos

    no puderam alar a seu pleno desenvolvimento e valor, pois no puderam ainda

  • fundar suas sociedades sobre si prprios cabendo-lhes to somente fundar

    sociedades e viver em sociedade[76], no como querem, mas de acordo com

    interesses gerais, que visam apenas ao bem comum. Em conseqncia, o modo

    de existncia dos indivduos determinado exteriormente pela forma da sociedade,

    atravs das leis e regras de convivncia, de modo que estes no se relacionam

    diretamente, mas pela mediao da sociedade.

    Os indivduos devem tomar conscincia do impulso que os leva a

    estabelecer um intercmbio com os outros. Segundo Stirner, as relaes

    interindividuais se resumem ao fato de que Tu s para mim apenas meu alimento,

    mesmo se Eu tambm sou utilizado e consumido por Ti. Ns temos entre Ns

    apenas uma relao, a relao de utilidade, do pr-se em valor e em vantagem[77].

    De modo, que para assenhorear-se de suas relaes e estabelec-las de acordo

    com seus interesses, imprescindvel romper com as formas institudas de

    sociedade, que tm em vista, todas, restringir a singularidade dos indivduos.

    Assim, desde que um interesse egosta se insinue no seio da sociedade, ela

    estar corrompida e caminhar para a sua dissoluo /.../[78].

    A dissoluo da sociedade se dar, conforme Stirner, com a associao

    dos egostas, uma reunio continuamente fluida de todos os elementos

    existentes[79], na medida em que se forma a partir da volio dos indivduos que,

    liberta dos constrangimentos sociais, ganha livre curso. O que a caracteriza o

    fato de os indivduos se relacionarem sem contudo um limitar o outro, porque no

    se encontram ligados por nenhum vnculo extrnseco, ou, nos termos de Stirner,

    porque nenhum lao natural ou espiritual faz a associao; ela no nem uma

    unio natural, nem espiritual[80].

    Na associao, as relaes entre os indivduos se do sem

    intermediao alguma, o que os permite unirem-se aos outros exclusivamente por

    seus interesses pessoais. Visto que Ningum , para Mim, uma pessoa

    respeitvel, tampouco meu semelhante, mas meramente, como qualquer outro ser,

    um objeto pelo qual Eu tenho ou no simpatia, um objeto interessante ou no, um

    26

  • sujeito til ou intil[81], se Eu posso utiliz-lo, Eu me entendo e Me ponho de

    acordo com ele e, por este acordo, intensifico minha fora e atravs dessa fora

    comum fao mais do que isolado poderia fazer. Neste interesse comum, Eu no

    vejo absolutamente nada de outro seno uma multiplicao de minha fora e Eu o

    mantenho apenas enquanto ele a multiplicao de minha fora[82]. E por existir

    apenas em funo de interesses, os indivduos so livres para participarem de

    quantas associaes desejarem, bem como para delas se desligarem de acordo

    com sua convenincia. Transformando as relaes sociais em relaes pessoais,

    os egostas podem fruir o mundo, conquistando-o como sua propriedade.

    III.2- O gozo de si:

    Stirner supunha estar no limiar de uma poca[83], em cuja entrada

    estaria inscrita no mais a frmula apolnea Conhea-Te a Ti mesmo, /.../ mas

    Valoriza-Te a Ti mesmo! [84].

    Segundo ele, os indivduos vivem preocupados e oprimidos pela tenso

    em conquistar a vida, seja a vida celeste, seja a vida terrena, o que os impede de

    desfrutar a vida[85]. Por isso, conclama os indivduos para o gozo da vida, que

    consiste em us-la como se usa a lmpada, fazendo-a arder. Utiliza-se a vida e,

    por conseqncia, a si mesmo, vivendo-a; consumindo-a e se consumindo. Gozar

    a vida utiliz-la[86].

    27

    O mundo religioso procurava a vida, mas este esforo para alcan-la

    se limitava em saber em que consiste a verdadeira vida, a vida bem aventurada,

    etc.? Como atingi-la? O que fazer para tornar-se homem, para estar

    verdadeiramente vivo? Como preencher esta vocao?[87]. A procura pela vida

    indica a procura por si mesmo e quem se procura ainda no se possui, mas

    aspira ao que deve ser[88]; por isso, durante sculos, diz Stirner, os homens

    apenas tm vivido na esperana, entretidos com uma misso, uma tarefa na vida,

    com algo para realizar e estabelecer atravs de sua vida, um algo para o qual sua

  • vida somente meio e instrumento, algo que vale mais que esta vida[89]. De sorte

    que os que se preocupam com a vida no tm poder sobre sua vida presente, pois

    devem viv-la com a finalidade de merecer a verdadeira vida, devem sacrificar

    inteiramente sua vida por esta ambio e por esta misso[90], o que resulta na

    perda de si, na ciso entre sua vida futura, a qual deve atingir e sua vida presente

    e efetiva, que deve ser sacrificada em prol da primeira.

    Alm do mais ao se perseguir impetuosamente a si mesmo /.../,

    despreza-se a regra de sabedoria que consiste em tomar os homens como eles

    so, ao invs de tom-los como se gostaria que eles fossem, instigando-os, por

    isso, a irem atrs do Eu que deveriam ser, ambicionando fazer com que todos os

    homens tenham direitos iguais, sejam igualmente respeitados, igualmente morais

    ou racionais[91]. Admitindo que, sem dvida alguma, a vida seria um paraso se

    os homens fossem como deveriam ser, Stirner observa, porm, que o que algum

    pode se tornar, ele se torna[92], pois possibilidade e realidade coincidem sempre.

    No se pode fazer o que no se faz, tal como no se faz o que no se pode

    fazer[93]. Portanto, o que os indivduos so, bem como as capacidades que

    possuem, manifestam- se sempre, qualquer que seja a circunstncia ou estado

    em que eles se encontrem. Assim, Um poeta nato pode ser impedido pelas

    circunstncias desfavorveis de atingir o cume de seu tempo e de criar, aps

    srios e indispensveis estudos, obras de arte, mas ele far versos, quer seja

    criado de fazenda ou tenha a oportunidade de viver na corte de Weimar. Um

    msico nato far msica, quer seja com todos os instrumentos ou somente com

    um canudinho. Uma cabea filosfica nata se confirmar filsofo universitrio ou

    filsofo de aldeia e, enfim, um imbecil nato /.../ permanecer sempre um crebro

    limitado, mesmo que ele tenha sido adestrado e treinado para ser chefe de

    escritrio ou engraxe as botas deste chefe[94].

    28

    Segundo Stirner, Ns somos Todos perfeitos! Ns somos, a cada

    momento, tudo o que podemos ser e no precisamos jamais ser mais do que

    somos[95]. Por isso, um homem no chamado a nada, no tem tarefa nem

    destinao, tanto quanto uma flor ou um animal no tm nenhuma misso. A flor

  • no obedece misso de se perfazer, mas ela emprega todas as suas foras para

    usufruir o melhor que pode do mundo e consumi-lo; ela absorve tanta seiva da

    terra, ar da atmosfera e luz do sol quanto pode receber e armazenar. O pssaro

    no vive segundo uma misso, mas emprega suas foras o quanto pode /..../. Em

    comparao com as de um homem, as foras de uma flor ou de um pssaro so

    mnimas, e o homem que empregar as suas foras capturar o mundo de modo

    muito mais potente que aqueles. Ele no tem misso, mas foras que se

    manifestam l onde elas esto, porque seu ser no tem existncia seno em sua

    manifestao /.../[96], o que ele faz, em realidade, a cada instante de sua vida.

    Stirner assevera que o indivduo se afasta de seu gozo pessoal quando cr dever

    servir a algo alheio. Servindo apenas a si torna-se no apenas de fato /.../, mas

    tambm por (sua) conscincia, o nico[97]. No nico, o proprietrio retorna ao

    Nada criador do qual nasceu[98] porque a designao nico to-somente um

    nome, uma designao genrica que indica o irredutvel de toda individualidade,

    cujo contedo e determinao so especficos e postos por cada indivduo,

    especificamente, j que no h algo que os pr-determine.

    29

    O egosmo, no sentido stirneriano do termo, refere-se, por um lado, ao fato de que

    cada indivduo vive em um mundo que seu, que est em relao a ele, que o

    que para ele, motivo pelo qual sente, v, pensa tudo a partir de si. Por outro lado,

    diz respeito tanto s pulses e determinaes que compem a esfera exclusiva do

    indivduo, quanto ao amor, dedicao, preocupao que cada individualidade

    nutre por si. O homem, na tica de Stirner ego. Porm, o fato de constiturem

    eus no torna os indivduos iguais, uma vez que a condio de possibilidade de

    ser no se deve ao fato de serem todos egostas, mas em terem fora para

    expandir seu egosmo. Da, cada eu ser nico e sua individualidade constituir a

    nica realidade a partir da qual se pem suas possibilidades efetivas. No se

    pautando por nenhum critrio exterior, o nico no se deixa determinar por nada, a

    no ser pela conscincia de sua autonomia como indivduo dotado de vontade e

    fora, razo pela qual livre para desejar e se apossar de tudo o que lhe apraz

    atravs de sua potncia nica. um ser vido, movido pela nica fora capaz de

  • torn-lo si mesmo: o egosmo. , enfim, o indivduo que se pe como centro do

    mundo e prefere a si, acima de todas as coisas; que orienta suas aes,

    estabelece suas relaes com o outro-de-si e dissipa sua existncia visando

    somente a um fim: satisfazer a si mesmo.

    IV- A crtica de Marx:

    Ao se comparar o pensamento de Marx com o de Stirner, torna-se claro

    que a incompatibilidade entre eles no se d quanto aos problemas a serem

    enfrentados. Ambos visam resoluo do mundo humano, de modo a emancipar

    as individualidades de todos os entraves que impedem seu pleno desenvolvimento

    e manifestao. Porm, se o fim os aproxima, trs questes fundamentais -

    referentes determinao da individualidade e do mundo humano e aos meios e

    ao alcance da emancipao das individualidades - os opem de modo cabal.

    A Ideologia Alem, redigida entre setembro de 1845 e maio de 1846, em

    colaborao com Engels, ocupa um lugar preciso no itinerrio do pensamento

    marxiano. Esta obra fecha o ciclo crtico filosofia especulativa alem, iniciado em

    1843, com a crtica filosofia do direito e do estado de Hegel, tendo como objeto a

    filosofia neo-hegeliana.

    A anlise dos pressupostos tericos do sistema hegeliano propiciou a

    Marx desvendar mistrio da filosofia de Hegel, o qual consiste em considerar a

    maneira de ser, a natureza, as qualidades especficas das coisas como

    determinaes, desdobramentos de um princpio extrnseco. O real no o que

    a partir de suas mltiplas determinaes intrnsecas, mas modos a partir dos quais

    o princpio autogerador se revela, sendo reduzido a fenmeno, a aparncia. De

    modo que a especulao hegeliana, por inverso determinativa, reduz a

    diversidade dos objetos a um conceito genrico, que retm a identidade sob forma

    de universal abstrato. Convertido em ser, este conceito tomado como produtor

    dos objetos particulares a partir de sua autodiferenciao, o que faz com que as

    30

  • complexas interconexes da realidade percam suas determinaes essenciais e

    se justifiquem somente enquanto realizaes, graus de desenvolvimento do

    conceito.

    Portanto, a constituio do pensamento marxiano propriamente dito se d

    a partir da recusa abstratividade do pensamento hegeliano. Neste sentindo,

    podemos perceber um ponto de convergncia com Stirner. Todavia, esta

    convergncia se d apenas no que se refere percepo de um problema central

    da filosofia hegeliana. Com efeito, ambos censuram o carter universalista e

    abstrato da filosofia hegeliana e reclamam pelo particular, pelo concreto. No

    entanto, contrariamente a Stirner, Marx reconhece a efetividade e concreticidade

    no s da individualidade, mas tambm do mundo e reivindica a determinao da

    realidade a partir da apreenso dos nexos imanentes a ela, visando o

    desvendamento do real a partir do real, isto , o desvendamento do modo de ser

    especfico dos entes em sua particularidade, a partir dos prprios entes. Logo,

    enquanto Stirner nega toda objetividade fora do indivduo, Marx a reconhece e a

    toma como ponto de partida. A objetividade , para ele, a categoria fundante do

    ser, que por si, constitudo e suportado pela malha tecida por suas

    determinaes intrnsecas, possuindo atributos e modo de ser prprios, e existindo

    independentemente de qualquer relao com um sujeito.

    Para Marx, o homem uma forma especfica de ser, portanto, objetivo.

    Dotado de foras essenciais que tendem objetividade, estas se atualizam

    apenas atravs da relao com outros seres. Logo, Marx no parte do homem

    como centro, tampouco reduz tudo ao homem, mas parte do homem como ser que

    estabelece relaes com a multiplicidade de seres que compem seu entorno,

    incluindo-se a os outros homens, que constituem, frente a cada indivduo,

    objetividades determinadas, bem como objetos nos quais comprova suas foras

    essenciais.

    Dado sua especificidade ontolgica, o ser humano necessariamente

    levado a forjar suas condies de existncia, a instituir a mundaneidade prpria a

    31

  • si, razo pela qual atividade objetiva dos homens o princpio que engendra a

    efetividade da vida humana. Ou seja, o mundo humano e a forma de existncia do

    indivduos so criao objetiva dos prprios indivduos e constituem o processo

    histrico do vir-a-ser homem do homem, isto , o processo objetivo e subjetivo de

    autoconstituio do humano. Chasin esclarece que Marx, ao identificar atividade

    humana como atividade objetiva, articula atividade humana sensvel, prtica,

    com forma subjetiva, dao de forma pelo efetivador, o que reflete sua

    simultaneidade em determinao geral prtica dao de forma: a primeira

    contm a segunda, da mesma forma que esta implica a anterior, uma vez que

    efetivao humana de alguma coisa dao de forma humana coisa, bem como

    s pode haver forma subjetiva, sensivelmente efetivada, em alguma coisa. O que

    instiga a novo passo analtico, fazendo emergir, em determinao mais detalhada

    ou concreta, uma distino decisiva: para que possa haver dao sensvel de

    forma, o efetivador tem primeiro que dispor dela em si mesmo, o que s pode

    ocorrer sob configurao ideal, o que evidencia momentos distintos de um ato

    unitrio, no qual, pela mediao da prtica, objetividade e subjetividade so

    resgatadas de suas mtuas exterioridades, ou seja, uma transpassa ou transmigra

    para a esfera da outra, de tal modo que interioridade subjetiva e exterioridade

    objetiva so enlaadas e fundidas, plasmando o universo da realidade humano-

    societria - a decantao de subjetividade objetivada ou, o que o mesmo, de

    objetividade subjetivada. , por conseguinte, a plena afirmao conjunta,

    enriquecida pela especificao do atributo dinmico de cada uma delas, da

    subjetividade como atividade ideal e da objetividade como atividade real, enquanto

    momentos tpicos e necessrios do ser social, cuja potncia se expressa pela

    sntese delas, enquanto construtor de si e de seu mundo[99]. Esta determinao

    da atividade, indita, tanto quanto sabemos, at a elucidao de Chasin, elimina

    qualquer possibilidade de se imputar ao pensamento marxiano carter objetivista,

    pois conquanto haja prioridade do objetivo em relao ao subjetivo, isto no

    elimina o fato de que a prpria objetividade possa se dar sob forma subjetiva,

    como enunciado na I Tese Ad Feuerbach.

    32

  • , portanto, a determinao da atividade humana, considerada tanto em

    sua dimenso correlativa e articuladora entre atividade ideal e atividade concreta,

    quanto em sua dimenso efetivadora da objetividade humana, que constitui a

    pedra de toque da nova configurao do pensamento marxiano e que orienta as

    afirmaes contidas em A Ideologia Alem. Nesta obra, de posse das novas

    conquistas, Marx inicia uma nova abordagem da filosofia especulativa, dada a

    feio que esta toma no interior do pensamento neo-hegeliano, denunciando a

    inverso ontolgica entre conscincia e ser.

    Segundo Marx, os neo-hegelianos exacerbam o carter especulativo da

    filosofia hegeliana e partem de dupla mistificao: em primeiro lugar, admitem a

    dominao das idias sobre mundo real e identificam os estranhamentos que

    vitimam os homens a falsas representaes produzidas pela conscincia. Em

    segundo lugar, efetuam a crtica do real a partir da crtica da religio. Assim, os

    jovens hegelianos criticavam tudo, introduzindo sorrateiramente representaes

    religiosas por baixo de tudo ou proclamando tudo como algo teolgico[100]; O

    domnio da religio foi pressuposto. E, aos poucos, declarou-se que toda relao

    dominante era uma relao religiosa e se a converteu em culto, culto do direito,

    culto do estado, etc. Por toda parte, tratava-se apenas de dogmas e da crena em

    dogmas. O mundo viu-se canonizado numa escala cada vez mais ampla at que o

    venervel So Max pde canoniz-lo en bloc e liquid-lo de uma vez por todas[101].

    Autonomizando a conscincia e considerando os produtos da conscincia

    como os verdadeiros grilhes dos homens, os neo-hegelianos buscam libert-los,

    esclarecendo-os e ensinando-os a substituir estas fantasias por pensamentos que

    correspondam essncia do homem, diz um, a comportar-se criticamente para

    com elas, diz um outro; a expurg-las do crebro, diz um terceiro, julgando que,

    com isso, a realidade existente cair por terra (idem), dado que reduzem-na a

    produto das representaes da conscincia. Lutando apenas contra as iluses da

    conscincia, os neo-hegelianos, segundo Marx to-somente interpretam

    diferentemente o existente, reconhecendo-o mediante outra interpretao[102].

    33

  • O importante a frisar que Marx no nega o carter ativo, nem tampouco

    o estranhamento da conscincia. O que recusa a substantivao da conscincia

    e a ciso entre conscincia e mundo. Os neo-hegelianos, ao tomarem a

    conscincia como sujeito, desvinculam-na de sua base concreta e lutam to-

    somente com as sombras da realidade[103], isto , com representaes, luta que

    circunscrita ao mbito da conscincia no altera em nada as fontes reais do

    estranhamento, as quais devem ser buscadas em seu substrato material e

    superadas atravs da derrocada prtica das contradies efetivamente existentes.

    Por isso, A despeito de suas frases que supostamente abalam o mundo, os

    idelogos da escola neo-hegeliana so os maiores conservadores, pois /.../ no

    combatem de forma alguma o mundo real existente[104].

    A refutao marxiana ao carter autnomo e determinativo conferido

    conscincia fundamenta-se no princpio que A conscincia jamais pode ser outra

    coisa que o ser consciente, e o ser dos homens o seu processo de vida real[105].

    Ou seja, o solo originrio da conscincia o processo de produo e reproduo

    dos meios de existncia humana, o qual subentende uma relao objetiva com a

    natureza e com outros homens. Como, para Marx, os contedos da conscincia

    so produtos do processo de vida real, segue-se que estas representaes so a

    expresso consciente - real ou ilusria - de suas verdadeiras relaes e atividades,

    de sua produo, de seu intercmbio, de sua organizao poltica e social[106]. De

    modo que a conscincia uma das foras essenciais humanas. Especificamente,

    a faculdade que o homem tem de portar em si, sob a forma de idealidades, a

    totalidade objetiva na qual est inserido. Portanto, o modo de proceder, ou seja, a

    atividade prpria da conscincia, a produo de idealidades, porm estas no

    advm da atividade pura da conscincia, mas da produo concreta da vida. Face

    a este vnculo entre conscincia e produo da vida, vale destacar a observao

    marxiana: Se a expresso consciente das relaes reais destes indivduos

    ilusria, se em suas representaes pem a realidade de cabea para baixo, isto

    conseqncia de seu modo de atividade material limitado e das suas relaes

    sociais limitadas que da resultam[107]. E se, em toda ideologia[108], os homens e

    34

  • suas relaes aparecem invertidos como numa cmara escura, tal fenmeno

    decorre de seu processo histrico de vida, do mesmo modo porque a inverso dos

    objetos na retina decorre de seu processo de vida puramente fsico[109]. Assim,

    tanto quanto a conscincia, tambm seu estranhamento derivado do modo de

    produo da vida; em outros termos, a alienao no resultado de contradies

    que se do puramente no nvel da conscincia, como consideram os neo-

    hegelianos, mas resultado de contradies efetivamente existentes no mundo

    objetivo. Logo, No a conscincia que determina a vida, mas a vida que

    determina a conscincia[110]. Neste sentido, os neo-hegelianos sucumbem a duplo

    equvoco: invertem a determinao entre conscincia e processo de vida real e

    autonomizam a conscincia de suas relaes com o que lhe exterior.

    Marx distingue-se dos neo-hegelianos, pois, pelo fato de considerar a

    conscincia como atributo especfico de um ser e tambm por no partir daquilo

    que os homens dizem, imaginam ou representam, tampouco dos homens

    pensados, imaginados e representados[111]. Seu ponto de partida so os homens

    realmente ativos e seu processo de vida real. De modo que, para ele, produes

    espirituais como a moral, a religio, a metafsica e qualquer outra ideologia, assim

    como as formas da conscincia que a elas correspondem no tm histria, nem

    desenvolvimento autnomo, mas os homens, ao desenvolverem sua produo

    material e seu intercmbio material, transformam tambm, com esta sua realidade,

    seu pensar e os produtos de seu pensar[112].

    35

    De sorte que, para Marx, a crtica do real no se reduz crtica da

    conscincia, isto , crtica das representaes, mas consiste /.../ em expor o

    processo real de produo, partindo da produo material da vida imediata /.../ e

    em conceber a forma de intercmbio conectada a este modo de produo e por

    ele engendrada (ou seja, a sociedade civil em suas diferentes fases) como o

    fundamento de toda a histria, apresentando-a em sua ao enquanto Estado e

    explicando a partir dela [ a sociedade civil] o conjunto dos diversos produtos

    tericos e formas da conscincia - religio, filosofia, moral, etc.[113]. No se trata,

    como na concepo idealista da histria, de procurar uma categoria em cada

  • perodo, mas sim de permanecer sempre sobre o solo da histria real; no de

    explicar a praxis a partir da idia, mas de explicar as formaes ideolgicas a

    partir da praxis material[114].

    Disso decorre que todas as formas e todos os produtos da conscincia

    no podem ser dissolvidos por fora da crtica espiritual, pela dissoluo na

    autoconscincia ou pela transformao em fantasmas, espectros, vises, etc. -

    mas s podem ser dissolvidos pela derrocada prtica das relaes reais de onde

    emanam estas tapeaes idealistas[115], as quais so o fundamento real que, em

    seus efeitos e influncias sobre o desenvolvimento dos homens, no em nada

    perturbado pelo fato destes filsofos se rebelarem contra ele como

    autoconscincia e como o nico [116].

    Evidenciada a distino entre o pensamento marxiano e a filosofia

    especulativa, em suas vertentes hegeliana e neo-hegeliana, podemos passar

    crtica especfica a Stirner, salientando que esta tem como fim explicitar o carter

    especulativo da anlise stirneriana em relao ao homem e ao mundo, bem como

    pr a descoberto o aspecto pseudo-revolucionrio e o perfil conservador de suas

    proposituras.

    IV.1- O mistrio da construo stirneriana:

    A partir da posio marxiana, Stirner opera uma destituio ontolgica

    tanto do mundo quanto do homem, na medida em que os destitui de sua

    objetividade.

    Reproduzindo a natureza geral do procedimento especulativo, Stirner,

    atravs de esquemas e truques lgicos, traa um plano judicioso, estabelecido

    por toda eternidade, /.../ afim de que o nico possa vir ao mundo no tempo

    previsto[117]. O momento inicial deste plano consiste, primeiramente, em isolar e

    autonomizar o Eu, determinando tudo o que no se reduz a ele como o no-Eu,

    36

  • como o que lhe estranho. Em seguida, a relao do Eu com o no-Eu

    transformada em uma relao de estranhamento, o qual ganha sua expresso

    final na transformao de tudo que existe independentemente do Eu em algo

    sagrado, isto , na alienao (Entfremdung) do Eu em relao a alguma coisa

    qualquer tomada como sagrado[118]. Aps reduzir a realidade e os indivduos a

    uma abstrao, inicia-se o segundo momento do plano traado por Stirner, ou seja,

    chega-se fase da apropriao, pelo indivduo, de tudo que anteriormente foi

    posto como estranho a ele. Chamando a ateno para o carter ilusrio desta

    apropriao que, sem dvida, no se encontra nos economistas[119], Marx aponta

    que ela consiste, pura e simplesmente, na renncia representao do sagrado, a

    partir da qual o indivduo assenhora-se do mundo, tornando-o sua qualidade ou

    propriedade.

    Em verdade, aceitando com candura as iluses da filosofia especulativa,

    que toma a expresso ideolgica especulativa da realidade como a prpria

    realidade, separada de sua base emprica, Stirner critica as condies reais

    fazendo delas o sagrado e as combate batendo-se contra a representao

    sagrada que h nelas[120]. Isto porque supe que no h relaes a no ser com

    os pensamentos e com as representaes[121]. Logo, ao invs de tomar por

    tarefa descrever os indivduos reais com seu estranhamento (Entfremdung) real e

    as condies empricas deste estranhamento (Entfremdung)[122], transforma os

    conflitos prticos, ou seja, conflitos dos indivduos com suas condies prticas de

    vida, em conflitos ideais, isto , em conflitos destes indivduos com as idias que

    eles fazem ou pem na cabea[123]. De modo que, para Stirner no se trata mais

    de suprimir (aufheben) praticamente o conflito prtico, mas simplesmente

    renunciar idia de conflito, renncia qual, como bom moralista que , ele

    convida os indivduos de maneira premente[124].

    37

    No entanto, diz Marx, apesar dos diversos truques lgicos que So

    Sancho utiliza para canonizar e, precisamente por esse meio, criticar e devorar o

    mundo existente, ele apenas devora o sagrado, sem tocar em nada propriamente

    do mundo. Portanto, naturalmente, sua conduta prtica s pode ser conservadora.

  • Se ele quisesse realmente criticar, a crtica profana comearia justamente l onde

    cai a pretendida aurola sagrada[125].

    Marx rechaa, pois, a reduo stirneriana da realidade subjetividade e o

    conseqente descarte da objetividade, bem como a reduo de todo processo

    objetivo e toda relao objetiva, que determinam objetivamente a subjetividade, a

    uma representao. Ademais, critica o fato de Stirner, da mesma forma que

    prescinde de determinar o fundamento concreto da existncia dos homens, de seu

    mundo e de suas representaes, prescindir igualmente de determinar o

    fundamento concreto da alienao, abstraindo a alienao efetiva ao converter os

    estranhamentos reais em falsas representaes. De modo que o ncleo da

    refutao marxiana se deve ao reconhecimento, por Stirner, da realidade pura e

    simples das idias, motivo pelo qual aborda o real a partir de representaes,

    supostas, por sua vez, como produtos de uma conscincia incondicionada. Tal

    reconhecimento ressalta, para Marx, o carter acrtico do pensamento stirneriano,

    dado que lhe permite abster-se de indagar sobre a origem das representaes,

    limitando sua superao transformao da conscincia, no sentido de que

    mudando-se as idias, muda-se a realidade. Aplica-se, portanto, a Stirner a

    observao que Marx faz a respeito de Hegel: a superao da alienao

    identificada com a superao da objetividade e a superao do objeto

    representado, do objeto como objeto da conscincia, identificada com a

    superao objetiva real, com a ao sensvel distinta do pensamento, com a

    praxis e com a atividade real[126].

    38

    Quanto ao indivduo stirneriano, Marx aponta que ele no corresponde a

    nenhum indivduo real, pois no corporal, nascido da carne de um homem e

    de uma mulher, [mas] um Eu engendrado por duas categorias, idealismo e

    realismo, cuja existncia puramente especulativa[127]. Abordando a vida

    somente numa perspectiva ideolgica, Stirner reduz o indivduo conscincia,

    limita sua atividade produo de representaes e identifica o desenvolvimento

    individual ao que atribui ser o desenvolvimento da conscincia, tomada como algo

    absolutamente incondicionado, que entretm relao apenas consigo mesma.

  • Para Marx, j mostramos, o indivduo objetivamente ativo e a conscincia se

    desenvolve na relao objetiva que os indivduos entretm com o que lhes

    exterior - o mundo e os outros homens -, de modo que seu desenvolvimento est

    diretamente ligado quele das condies de existncia. Outrossim, isolando e

    singularizando o desenvolvimento dos indivduos e No levando em considerao

    a vida fsica e social, no falando jamais da vida em geral, So Max, conseqente

    consigo mesmo, abstrai as pocas histricas, a nacionalidade, a classe, etc.

    /.../[128], vale dizer, abstrai as particularidades que medeiam o processo de

    desenvolvimento das individualidades.

    Em relao histria, tambm abordada sob uma perspectiva ideolgico-

    especulativa, Marx observa que Stirner, apresentando uma mera variante da lgica

    que orienta o desenvolvimento individual, ao abstrair as transformaes objetivas

    que determinam o desenvolvimento histrico, oferece um claro exemplo da

    concepo alem da filosofia da histria, na qual a idia especulativa, a

    representao abstrata, torna-se o motor da histria, de modo que a histria

    reduzida histria da filosofia. Novamente seu desenvolvimento no concebido

    conforme as fontes existentes e tampouco como o resultado da ao das relaes

    histricas reais, mas apenas segundo a concepo exposta pelos filsofos

    alemes modernos, particularmente Hegel e Feuerbach. E mesmo destas

    exposies no se retm seno os elementos teis para o fim proposto e que a

    tradio fornece a nosso santo. Assim, a histria se reduz a uma histria das idias,

    tais quais so imaginadas, a uma histria de espritos e de fantasmas e s se

    explora a histria real e emprica, fundamento desta histria de fantasmas, para

    que ela lhes fornea um corpo[129]. Omitindo completamente a base real da histria,

    excluindo da histria a relao dos homens com a natureza, Stirner compartilha da

    iluso de cada poca histrica, transformando a representao que homens

    determinados fizeram de sua praxis real /.../ na nica fora determinante e ativa

    que domina e determina a praxis desses homens. /.../ De modo mais consistente,

    ao sagrado Max Stirner, que nada sabe da histria real, o curso da histria aparece

    como um simples conto de cavaleiros, bandidos e fantasmas, de cujas vises s

    39

  • consegue naturalmente se salvar pela dessacralizao[130], o que no significa

    desfazer-se das representaes sobre o real a partir da delucidao do real como

    algo em si, mas em negar, pura e simplesmente, o carter sagrado atribudo s

    representaes. De modo que, devido absoluta desconsiderao pela realidade,

    Stirner para Marx o mais especulativo dos filsofos especulativos.

    IV.2- A crtica de Marx individualidade stirneriana e suas relaes com o mundo:

    A critica marxiana a Stirner no um ataque individualidade. Marx no

    se dedica a demolir seu pensamento porque nele se encontra a defesa

    intransigente da soberania do indivduo, mas sim porque nele a forma de ser do

    ser social - o indivduo - acha-se transformada em uma fantasmagoria, em uma

    abstrao.

    Stirner parte da suposio de que o indivduo possa existir livre de

    qualquer condio prvia que no seja si mesmo e se desenvolver em um mundo

    do qual seja o centro. Marx, ao contrrio, afirma que o desenvolvimento de um

    indivduo condicionado pelo desenvolvimento de todos os outros com