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1 A família de Légua tá toda na eira”: tramas de parentesco nas relações entre pessoas e encantados 1 Martina Ahlert (UFMA/ Maranhão/ Brasil) Palavras chave: encantados, etnografia, parentesco Na região dos Cocais, no leste do Maranhão (nordeste brasileiro), se localiza um município chamado Codó. Com cerca de cento e vinte mil habitantes, ele é conhecido no âmbito da literatura local sobre religiões afro-brasileiras e encantaria como o espaço de referência dos encantados da mata, do povo de Codó, da família de Légua Boji Buá (COSTA EDUARDO, 1948; BARROS, 2000; FERRETTI, 2001; ARAÚJO, 2008; AHLERT, 2013). Essas referências falam sobre um conjunto heterogêneo de seres comumente denominados como encantados, que são recebidos nos corpos de pessoas por intermédio da incorporação, mas também notados em diferentes sensações, vistos em sonhos ou materializados em lugares e objetos que os pertencem. Encantados são seres mais que humanos que, no passado, foram pessoas. Sua mudança de estatuto aconteceu diante do seu desaparecimento (sem morte), momento em que se encantaram, passando a viver em um entre mundo de localização não exata chamado de Encantaria. É desse contexto que se deslocam para o plano humano de existência, onde se fazem presentes para trabalhar, aconselhar, dançar e acompanhar determinadas pessoas. Em Codó, os encantados são recebidos no cotidiano e também nos rituais de uma religião afro-brasileira denominada Terecô ou Tambor da Mata, que, por sua vez, se organiza em torno de tendas de pais e mães de santo. O encantado mais conhecido do Terecô de Codó é Légua Boji Buá da Trindade, tido por alguns como de origem nobre, mas também como um importante vaqueiro, aguerrido e apegado à confusão, valente, duro e consumidor de bebida alcoólica. Légua Boji Buá comanda uma importante e numerosa família de encantados que, segundo relatos, somam mais de quinhentas entidades 2 . Família é, segundo Mundicarmo Ferretti (2000), uma das formas de organização das entidades maranhenses, que ainda podem 1 Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2016, João Pessoa/PB. 2 Marcelo Senzala, presidente da Associação de Candomblé e Umbanda de Codó e Região, compartilhou comigo um levantamento pelo qual chegou aos números de 336 filhos homens e 214 filhas mulheres, totalizando 550 filhos de Légua Boji Buá da Trindade.

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Page 1: A família de Légua tá toda na eira” - ABA ... · ... um pai de santo da cidade, ... é primo de Coli Maneiro e de meu pai Légua Boji Buá. ... quando fui viver na cidade de

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“A família de Légua tá toda na eira”:

tramas de parentesco nas relações entre pessoas e encantados1

Martina Ahlert (UFMA/ Maranhão/ Brasil)

Palavras chave: encantados, etnografia, parentesco

Na região dos Cocais, no leste do Maranhão (nordeste brasileiro), se localiza um

município chamado Codó. Com cerca de cento e vinte mil habitantes, ele é conhecido

no âmbito da literatura local sobre religiões afro-brasileiras e encantaria como o espaço

de referência dos encantados da mata, do povo de Codó, da família de Légua Boji Buá

(COSTA EDUARDO, 1948; BARROS, 2000; FERRETTI, 2001; ARAÚJO, 2008;

AHLERT, 2013). Essas referências falam sobre um conjunto heterogêneo de seres

comumente denominados como encantados, que são recebidos nos corpos de pessoas

por intermédio da incorporação, mas também notados em diferentes sensações, vistos

em sonhos ou materializados em lugares e objetos que os pertencem.

Encantados são seres mais que humanos que, no passado, foram pessoas. Sua

mudança de estatuto aconteceu diante do seu desaparecimento (sem morte), momento

em que se encantaram, passando a viver em um entre mundo de localização não exata

chamado de Encantaria. É desse contexto que se deslocam para o plano humano de

existência, onde se fazem presentes para trabalhar, aconselhar, dançar e acompanhar

determinadas pessoas. Em Codó, os encantados são recebidos no cotidiano e também

nos rituais de uma religião afro-brasileira denominada Terecô ou Tambor da Mata, que,

por sua vez, se organiza em torno de tendas de pais e mães de santo.

O encantado mais conhecido do Terecô de Codó é Légua Boji Buá da Trindade,

tido por alguns como de origem nobre, mas também como um importante vaqueiro,

aguerrido e apegado à confusão, valente, duro e consumidor de bebida alcoólica. Légua

Boji Buá comanda uma importante e numerosa família de encantados que, segundo

relatos, somam mais de quinhentas entidades2. Família é, segundo Mundicarmo Ferretti

(2000), uma das formas de organização das entidades maranhenses, que ainda podem

1 Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2016, João Pessoa/PB. 2 Marcelo Senzala, presidente da Associação de Candomblé e Umbanda de Codó e Região, compartilhou comigo um levantamento pelo qual chegou aos números de 336 filhos homens e 214 filhas mulheres, totalizando 550 filhos de Légua Boji Buá da Trindade.

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ser definidas por sua referência a linhas – como a linha da mata, onde estariam

classificadas as entidades de Codó - ou por referência a áreas geográficas.

Evidentemente, essas classificações apresentadas pela literatura são menos fixas do que

se sugere, podendo ser combinadas de maneiras diversas nas experiências das pessoas.

Neste texto3 eu pretendo pensar as relações entre pessoas e encantados a partir de

dois casos onde estes seres se cruzam em tramas de parentesco. Na sequência da

apresentação destes dois casos, sugiro que podemos pensar nas modalidades de relação

entre encantados e pessoas dando atenção à ideia de constituição da família, cuidado,

geração e noções de liberdade ou ausência de escolha. Pretendo mostrar como existem

similaridades e contribuições entre famílias de encantados e de pessoas, e não apenas

competição ou obrigações (aspectos bastante destacados na bibliografia sobre a

encantaria maranhense – ver FERRETTI, 2000; BARBOSA e BARROS, 2004;

CUNHA, 2013) – de forma que encantados e pessoas estão unidos em ações para

combater a solidão que ameaça à vida. Para tecer tais considerações, parto de uma

pesquisa etnográfica que realizo na cidade há pouco mais de cinco anos, quando tive

meu primeiro contato com o Terecô de Codó e com seus encantados. Desde o início

peço desculpas pelo caráter ainda experimental do texto.

Constituindo famílias

Pessoas e encantados possuem famílias. As famílias dos terecozeiros e as

famílias dos encantados não são consideradas idênticas. Elas são diferentes,

especialmente porque os encantados tem um poder de agência diverso do dos humanos.

Entretanto, há pontos de aproximação e semelhança entre ambas. Em Codó, o

parentesco entre as pessoas é marcado por uma noção de família não substantiva, aberta

e possível de ser continuamente modificada, que pode ser ‘aumentada’ e ‘diminuída’

dependendo do momento e do comportamento dos familiares.

A possibilidade de fazer parentes – de incluir pessoas na família – torna-se

evidente nos filhos de criação, bastante comum nas casas da cidade. A criação de filhos

3 Esse texto retoma aspectos da minha tese de doutorado (AHLERT, 2013), mas, ao mesmo tempo, traça alguns elementos novos, pensados a partir da relação com alunos meus que têm feito campo em Codó (Conceição de Maria Teixeira Lima, Marcos Carvalho Lamy e Luís Alfredo Lima) - com quem tenho débitos nesse e em outros textos.

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não biológicos e a circulação de crianças (FONSECA, 1995; GODOI, 1999) 4

é

recorrente em Codó, e pode se dar entre membros da família (consanguínea ou afim) ou

ainda entre pessoas conhecidas, mas sem laços de parentesco. A prática é tradicional e

perpassa diferentes gerações, ganhando importância em virtude dos casos de migração

para outros estados do Brasil – quando, normalmente, o adulto que migra não leva seus

filhos, os deixando em Codó, para serem criados por familiares ou por conhecidos. Essa

pretensa maleabilidade (DA MATTA, PRADO E MOURÃO SÁ, 1975) não subtrai a

importância dada à família e aos parentes, aspecto fundamental nas relações cotidianas e

também na atribuição de sentido às experiências da vida (BOURDIEU, 1997).

Espera-se que as pessoas de uma mesma família – estejam ou não vivendo

próximas e sendo ou não consanguíneas – cuidem umas das outras. Isso se torna mais

visível em momentos de doença onde é comum, por exemplo, receber em casa algum

parente que vive distante e precisa de tratamento médico na cidade. Espera-se ainda que

a família sempre se lembre de seus parentes, colocando fotos nas paredes da sala,

colecionando lembranças de nascimento e morte ou ainda cultivando a memória nas

visitas ao cemitério quando do falecimento de alguém da família. Por fim, se espera

ainda de um membro da família faça companhia, visite, ajude na organização de rezas e

festejos. É em nome da família que são legitimadas e justificadas as decisões tomadas

pelos sujeitos, como mudança de local de moradia, transformações no espaço

doméstico, sacrifícios de tempo e dinheiro. Não compreender essas relações pode levar

ao sentimento de uma diminuição da família, pois enquanto coletivo, ela se constitui das

interações (ainda que à distância, ainda que com espaços de tempo consideráveis) entre

seus membros (LATOUR, 2012).

As entidades, por sua vez, também possuem diversas relações de parentesco

entre si5. Os encantados têm família e costumam fazer referência a ela para se

apresentarem, como o ponto cantado que segue, de uma entidade filha de Légua Boji:

4 Filhos de criação aparecem tanto na literatura sobre famílias de trabalhadores rurais no nordeste (Durham, 1984; Godoi, 1999, por exemplo), quanto na bibliografia sobre grupos populares urbanos em outras regiões do Brasil (Fonseca, 1995). 5 No tambor de Mina, religião que predomina na capital do Maranhão, mas que está presente em outras cidades do Brasil, aparece menção aos encantados como organizados em famílias. Segundo Prandi e Souza (2004), “No tambor-de-mina, assim como os voduns da Casa das Minas, os encantados estão reunidos em famílias, cada uma com características próprias, cores, festas, etc. De modo geral as famílias mantêm suas características de terreiro para terreiro, reunindo os mesmos encantados, mas não raro variantes podem ser observadas, tanto no Maranhão como no Pará. Em São Paulo, as famílias dos encantados têm também absorvido caboclos da umbanda e do candomblé” (idem, p. 220).

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Eu sou filho de Légua

Eu venho do sul carnaubeiro

Eu selo meu cavalo é no tope da ladeira. (LAMY, 2016).

Venho dizendo que a família mais conhecida em Codó é de Légua Boji Buá da

Trindade, encantado que tem pai, irmãos, sobrinhos, esposa, além de grande número de

filhos e netos. Seu Zé Preto, um pai de santo da cidade, me disse que Légua é filho de

Pedro Angaço e casado com Rosa Rainha6, hoje não “carregada” por ninguém em

Codó. A grande família de Légua compartilha a relação com a mata, o gosto pela bebida

alcoólica (poucas vezes vi algum encantado da família de Légua não beber), como fica

evidente em alguns pontos cantados no salão, como, por exemplo, o que dá nome ao

título deste texto:

A família de Légua tá toda na eira

A família de Légua tá toda na eira

Bebendo cachaça e quebrando barreira

Bebendo cachaça e fazendo poeira.

Apesar dos membros de uma família compartilharem características, eles não são

uma grande categoria homogênea. Uma diferença entre os membros da família de

Légua, por exemplo, remete ao fato de alguns dos seus encantados saberem ler e

escrever, enquanto outros não dominam estes conhecimentos. A diversidade interna à

família se torna ainda mais evidente quando percebermos que suas origens podem ser

diversas, haja vista a possibilidade de existirem filhos de criação ou adoção entre os

encantados.

A criação de membros que chegam à família foi contada, em campo, por alguns

encantados, que comentaram sobre o parentesco de sangue e o de consideração. Em um

encontro entre Coli Maneiro, Ricardo Légua, Rei de Mina e Caboclo Cearense, Ricardo

Légua nos disse:

Eu, Ricardo Légua Ferreira da Trindade Boji Buá, sou sobrinho de

Coli Maneiro Ferreira da Trindade. Coli Maneiro é irmão de meu

pai. Então é assim, nós é parente como vocês aqui na terra do pecado,

não tem parente de sangue? Pois eu mais Coli Maneiro é parente de

sangue. É assim, não é que eu respeito menos ele ou que ele me

6 Mundicarmo Ferretti (2000) mostra que “Os caboclos da Mina [religião da capital maranhense] têm, geralmente, um ancestral não caboclo, que os aproxima dos gentis, ou foi adotado, como filho, por algum vodum” (ibid., p. 87).

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respeita menos, é assim, ele é meu tio (Ricardo Légua, agosto de

2011) 7.

Segundo Ricardo Légua, há similaridades entre a forma com que se organiza o

parentesco no “mundo do pecado” e na Encantaria, onde existem tanto os laços de

sangue como laços de consideração - quando não há consanguinidade, mas existe

convivência e cuidado. Nesse mesmo dia, Ricardo Légua contou que Rei de Mina, além

de guia do salão localizado na Morada Nova (local do terreiro aonde vinham dançar) era

filho de Coli Maneiro (irmão de Légua Boji) e com ele aprendeu a consumir bebida

alcoólica. Caboclo Cearense, que também estava presente, segundo Ricardo, “é meu tio,

é primo de Coli Maneiro e de meu pai Légua Boji Buá. Nós somos de uma descendência

só, de uma família”.

A situação de encontro entre esses encantados era também o encontro entre

pessoas de uma mesma família, pois, seus cavalos eram Zé Willan (pai de santo de

Morada Nova que carregava Coli Maneiro), Regina (sua esposa, que recebeu Ricardo

Légua), Alzira (tia de sangue de Regina que estava com Rei de Mina) e a filha mais

velha do casal (com Caboclo Cearense). É diante dessas articulações que eu narro, em

seguida, histórias nas quais a biografia das pessoas se entrelaça com a presença dos

encantados. Os dois casos que apresentarei chamam atenção para a amplitude do

contato com as entidades na vida das pessoas e para a impossibilidade de contar seus

percursos de vida sem lançar mão dessas presenças (CARDOSO, 2007). Demonstram

ainda a insuficiência das narrativas que relacionam o religioso com apenas parte da vida

de um sujeito e destacam as modalidades de relação entre pessoas e entidades

(AHLERT, 2016).

Dona Chica Baiana, Pedro e Seu Gili

A primeira história que eu gostaria de contar é a de Pedro. Conheci Pedro no

segundo semestre de 2010, quando fui viver na cidade de Codó para o campo da minha

tese de doutorado. Ele tinha pouco mais de trinta anos e morava na casa de sua mãe,

Dona Janoca. No mesmo espaço, entre seus sobrinhos e outros parentes, havia dois

quartos dedicados às entidades: Dona Chica Baiana e Dona Maria Padilha

respectivamente ocupavam o quarto da entrada da casa e o do fundo do pátio. As duas

7 Posso transcrever literalmente a fala de Ricardo Légua porque tive acesso às imagens registradas em vídeo, por Ananias Caldas, André Sampaio, Taís Nardi e Tiago Mello, em 2011.

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senhoras constituíam parte do conjunto de entidades que Pedro recebia – tanto ele como

qualquer outro terecozeiro recebe mais do que uma entidade durante sua vida (ou

mesmo durante uma mesma noite).

Os encantados sempre fizeram parte das histórias de Pedro e o acompanham

desde que nasceu. Segundo me contou, o seu parto foi feito por Dona Chica Baiana,

encantada do seu avô, “em cima” dele – ou seja, nele incorporada. Segundo a mãe de

Pedro, Dona Chica acompanhou todo o crescimento do menino, período em que

pregava peças escondendo a criança pela casa para que a mãe não a encontrasse. Ainda

na infância Pedro sentiu os primeiros sinais de mediunidade8, quando via diversas

coisas que o assustavam, o faziam gritar e chorar. Diante dessas manifestações, Pedro

foi acompanhado pelo avô a partir dos sete anos de idade. Nesse momento, junto com

um primo, passou a residir e ser criado na casa de Seu Gili – como era conhecido seu

avô, um afamado brincante do tambor, padrinho de importantes casas de Terecô de

Codó.

Os dois meninos conviveram com a familiaridade com que o avô se relacionava

com as tendas e as brincadeiras e Pedro se lembra de ouvir quando ele, depois de

colocá-los para dormir, saia para dançar Terecô. Recorda-se, ainda, de segui-lo, atrás do

som dos tambores, para assistir os toques e giras. Neste período as crianças não podiam

brincar dentro dos salões (até hoje é raro encontrar alguma criança participando) e

Pedro se lembra de ser reprimido pelos encantados do avô que acreditavam que ele era

muito novo para dançar. Outros encantados, porém, logo percebiam sua mediunidade,

enrolavam-no nas suas saias e o levavam para dentro do salão.

Pouco tempo depois, quando Pedro tinha nove anos de idade, Seu Gili faleceu.

Depois de sua morte, a encantada Chica Baiana passou para a croa de Pedro, ou seja,

passou a ser recebida pelo menino.

Dona Chica Baiana está na vida da minha família há muitos anos.

Acho que mais de cem anos. Desde minha bisavó, mãe do meu avô,

que chamava de Catita e que morreu com noventa e oito anos. Mas,

quando morreu ela já tinha preparado meu avô para cuidar da

missão dela na terra. E quando eu tinha sete anos meu avô me

preparou, mas acho que Dona Chica Baiana me acompanha desde o

ventre da minha mãe, porque quando eu nasci, a parteira que me

pegou foi Dona Chica Baiana, incorporada em meu avô (Pedro, 24 de

setembro de 2011).

8 Palavra que remete ao recebimento de encantados – não utilizada, nesse contexto, no sentido do

espiritismo kardecista.

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Aos dez anos, Pedro já trabalhava com os encantados, cuidando de pessoas da

família. Ele é um dos casos – existem outros na cidade – de pessoas que não foram

‘feitas’ ou preparadas por nenhum pai de santo (SANSI, 2009). Segundo me contou, ele

foi “zelado” por uma pessoa de mais tempo na religião, mas nunca precisou de pai de

santo “porque já vem toda uma preparação de fundo”. Em virtude disso, se refere à

Dona Chica Baiana, encantada herdada do avô, como sua mãe de santo.

Durante meu campo, a irmã de Pedro, que vivia na mesma casa que ele, teve um

filho. Durante toda a gravidez, Dona Chica Baiana esteve rezando, benzendo e tratando

com remédios a barriga da futura mãe. Segundo a própria Chica me confessou, ela

estava “segurando” a gravidez diante de uma ameaça de eclampse9. As pessoas da

família do pai de santo, que foram para a maternidade no dia do parto, viram a

encantada – vestida de branco, de lenço na cabeça – entrar no espaço hospitalar e

acompanhar todo o nascimento do menino. Ela estava presente em espírito e não

incorporada, como me explicaram.

Coli Maneiro, Dona Regina e Seu Zé Willan

A segunda história que eu gostaria de contar é de Dona Regina e Seu Zé Willan.

Dona Regina e o pai de santo Zé Willan são casados e vivem em um povoado do

município de Lima Campos, chamado Morada Nova. Ambos possuem, em suas famílias

de origem, pessoas com “mediunidade”, que dançavam terecô em Codó, município

onde viviam anteriormente. A família de seu Zé Willan é do povoado de Santo Antônio

dos Pretos, zona rural de Codó, mesmo local de onde vem o avô de Pedro, espaço

considerado de encantaria forte.

A história do casal tem os encantados e os festejos de santo como elementos

centrais. Na gravidez de Regina sua mãe teve problemas com a gestação e o médico

antecipou os riscos de morte da mãe e da criança. A avó materna, chorando por causa do

prognóstico, encontrou o encantado Coli Maneiro, irmão de Légua Boji (em cima de um

9 A irmã de Pedro conversou comigo sobre a gestação e a presença de Chica Baiana, quando me disse: “Durante a gravidez eu sempre via ela. À noite, eu dormindo, eu sentia ela, eu via ela. Eu perguntava para mamãe porque Dona Chica me visitava tanto à noite (...) eu não sabia o porquê. Era porque eu estava correndo risco de vida e o meu nenê também. Quando eu entrei na sala de parto eu não estava tendo força, eu chamei em primeiro lugar por Deus e chamava por ela também...” (Eliane, 24 de setembro de 2011).

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cavalo antigo e muito conhecido, hoje falecido), em uma festa de tambor na casa de

Antoninha (casa onde o avô de Pedro era padrinho). Segundo conta Regina, Coli

conversou com sua avó:

Aí Seu Coli disse pra ela [a avó], que ela [a mãe] não ia morrer, que

eu ia nascer e que eu ia ser dele. Assim a mamãe conta que eu ia ser

dele. Aí eu acredito que eu ia ser mesmo, porque o mundo dá muitas

voltas, que hoje eu estou aqui, cuidando dele (...) Mas quem ajeitou

tudo, quem fez todo o processo para que eu nascesse, foi ele (Regina,

25 de setembro de 2011).

Correu tudo bem no parto da mãe de Regina e ela cresceu sem apresentar sinais

de “mediunidade”, participando dos festejos de tambor apenas nos dias em que havia

‘baile dançante’, para se divertir com os amigos e namorar. Seu pai e sua mãe, contudo,

dançavam Terecô e cozinhavam em uma tenda que tinha um tamborzeiro muito

afamado, conhecido como Zé Willan. Em 1992, impressionada com as falas sobre a

notoriedade do tamborzeiro, Regina acompanhou os pais no festejo de santo, para ver de

quem se tratava. Quatro anos depois os dois estavam casados.

Seu Zé Willan, por sua vez, nasceu, segundo conta, no período de um festejo de

santo, em um parto acompanhado por algumas entidades. Ele recebeu um encantado de

herança do seu pai, Coli Maneiro – o mesmo encantado que cuidara do nascimento de

Regina e que havia dito para sua avó que a criança da gestação de sua filha viveria e

“seria dele”, pois estava destinada a lhe cuidar no futuro. Como se casou com um pai

de santo que recebe o encantado, Regina acredita que seu casamento é resultado desta

trama entre pessoas e encantados. Anos depois, Regina também manifestou

“mediunidade” e passou a receber o encantado de sua mãe, Ricardo Légua. Ricardo é

filho de Légua Boji e, portanto, sobrinho de Coli Maneiro.

Tramando cuidados, referências e heranças

As histórias, brevemente apresentadas acima, sobre o percurso de vida de alguns

terecozeiros, mostram a família como central na definição de como essas pessoas vão se

constituindo e dos caminhos que suas vidas vão tomando. A partir delas, eu gostaria de

destacar cinco pontos que me parecem interessantes para falar sobre a importância da

constituição das relações sociais nas quais os encantados se integram, não apenas como

participantes, mas como figuras ativas.

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O primeiro ponto que eu gostaria de destacar são as relações intergeracionais que

são operadas por intermédio do contato entre pessoas e entidades (RABELO, 2014)10

.

Chica Baiana relaciona Pedro diretamente ao seu avô, seu Gili, na medida em que,

depois do falecimento dele, passa a ser recebida pelo neto. Coli Maneiro, encantado de

Seu Zé Willan, era recebido pelo seu avô e pelo seu pai, até chegar à sua croa. Regina,

por sua vez, recebe um encantado que passava em sua mãe. Os encantados, nesse

âmbito, transitam entre gerações familiares, trazendo consigo conhecimentos (pois são

ancestrais) e ao mesmo tempo aprendendo coisas novas (pois suas histórias não estão

fechadas). Se levarmos a sério a compreensão de que eles participam na constituição das

pessoas (AHLERT, 2016), podemos sugerir que eles conectam substâncias e energias

entre mortos (cujos corpos já compartilharam) e vivos.

O segundo ponto que proponho pensar está relacionado com o primeiro, pois, a

partir dessas relações intergeracionais e da movimentação dos encantados, podemos

falar sobre a constituição das pessoas e da forma como se entendem e se posicionam.

Seu Zé Willan e Pedro, desta forma, não apenas recebem os mesmos encantados que

seus antecessores familiares, eles também retomam seus pais e avôs para falar de sua

presença no Terecô. É neste sentido que acionam a relação de suas famílias com locais

conhecidos como de encantaria forte e costumeiramente trazidos, em Codó, para falar

do início da religião no local – como Santo Antônio dos Pretos. Os encantados e os

lugares a eles relacionados fazem parte de narrativas que constroem um lugar no mundo

e os espaços de referência para a constituição do que Pedro e Zé Willan são – eles que

nascem pela mão dos encantados e são por eles acompanhados durante a vida.

O terceiro ponto desencadeado pelos casos acima descritos remete ao papel de

cuidado desempenhado pelas entidades. Normalmente, mesmo em conversas nos rituais,

as pessoas destacam o aspecto ‘duro’ da relação entre pessoas e encantados, apontando

para as diversas obrigações que são necessárias e para os castigos presentes no

descumprimento dessas mesmas obrigações. Já nos dois casos aqui mencionados, os

encantados aparecem em momentos de cuidado - é desta forma que vemos Chica Baiana

e sua relação com a irmã de Pedro diante dos riscos de sua gestação, assim como no

momento do parto no hospital. Também há cuidado na preocupação de Coli Maneiro

10 Miriam Rabelo chama atenção para o papel das entidades nas relações de parentesco. Para a autora, “as entidades não apenas adensam relações que já são fortes, como marcam positivamente vínculos cuja importância cambia ao longo da história de vida ou que estão em tensão com outros laços igualmente significativos para os sujeitos”. Elas também consolidam preferências nas redes de aliança. (Rabelo, 2008, p. 193).

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com a gravidez da mãe de Regina – momento em que a vida da gestante e da criança

estavam em risco. Isso não acontece apenas nessas duas narrativas, pois, em Codó, os

encantados são presenças constantes nos momentos de nascimento (alguns são

conhecidos como parteiros) e também de falecimento – quando vêm para se despedir e

chorar a morte, antes de, eventualmente, serem recebidos como herança por outro

membro da família ou pessoa próxima.

Em quarto lugar, para indicar o papel ativo dos encantados na constituição das

famílias, sugiro que eles são propulsores da inclusão de novas pessoas entre os parentes.

Pedro, em uma conversa que tivemos, proferiu um agradecimento aos encantados que

recebia, não apenas por cuidarem dele, mas de todos “aqueles que fazem parte da casa,

que chegam como clientes, mas terminam fazendo parte da família”. Sua irmã tinha me

dito algo semelhante havia pouco tempo, ao me contar que Dona Chica Baiana, através

dos atendimentos, possibilitava a convivência intensa de alguns clientes com a família

do pai de santo – convivência que os fazia continuar frequentando a casa depois de

encerrarem seus tratamentos.

Por fim, o quinto ponto remete ao entrelaçamento de noções de liberdade e/ou

ausência de agência (JOHNSON, 2014) – questões interessantes se pensadas em relação

ao parentesco, muitas vezes tomado como ‘natural’ e não como escolha (STRATHERN,

1991). Quando o encantado Coli Maneiro afirmou à avó de Regina que a gravidez de

sua filha seria levada a cabo e que a criança seria dele – o que para Regina havia se

concretizado, pois ela se casou e era ajudante de um cavalo que o recebia – ele fazia

uma previsão sobre seu futuro. No Terecô se compreende que a mediunidade é algo que

vem com o nascimento, como uma espécie de destino ou mesmo sina. As intervenções

das entidades, normalmente, não podem ser previstas ou controladas pelas pessoas que

precisam se submeter à negociação com os encantados. Uma participação importante de

alguém da família diante da manifestação de mediunidade é segurar os encantados para

que uma criança não precise se preocupar com eles muito cedo. Os familiares são, nesse

sentido, mediadores da relação entre determinadas pessoas (especialmente as crianças) e

as entidades – e assim, buscam construir estratégias diante do chamado e da necessidade

do brincar Terecô.

Nos casos aqui contados, portanto, os encantados não são seres distantes. Eles

são uma forma utilizada pelas pessoas para falar sobre si, dada sua presença constante

(uma forma de falar sobre a identidade, sobre o casamento, sobre as escolhas). Como

durante a vida de um terecozeiro ele se relaciona com muitas entidades, elas constituem

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parte importante dos seres com os quais uma pessoa se relaciona em sua trajetória.

Além disso, elas também podem ser percebidas como agentes no adensamento das

relações sociais entre as pessoas. Entre meus interlocutores, era comum ouvir que a pior

coisa que poderia acontecer com uma pessoa era a solidão. Uma pessoa que estivesse

viajando sozinha, morando em outra cidade a trabalho ou que vivesse longe da família,

era fator de preocupação e mesmo de pena. Quem não tem família, não tem parentes e

não tem encantados que o acompanham, não tem quem cuide ou dele se lembre. Para

evitar a solidão, pessoas e encantados trabalham ativamente.

Considerações finais

Neste artigo, de forma ainda muito inicial, busquei apresentar elementos para

pensar, através do parentesco, as relações entre pessoas e encantados. Nesse sentido,

utilizar no título o termo ‘tramas’ remete tanto ao entrelaçamento dos fios que

constituem as histórias (como um trançado entre pessoas e entidades diversas que se

cruzam e necessitam umas das outras para se constituírem) quanto remete às tramas de

um enredo que, tal como em um filme ou novela, se compõe de narrativas que dão

sentido aquilo que vivem os brincantes do Terecô.

Busquei pensar as relações entre pessoas e entidades sob a chave da família e não

da constituição da pessoa11

, o que me fez acionar casos onde os encantados

desempenham funções importantes, como parteiros e cuidadores, como aqueles que

contribuem para o aumento das famílias e fornecem características a partir das quais os

sujeitos de definem e falam sobre si. Os encantados contribuem, nesse sentido, para

manutenção de relações sociais já existentes dentro das famílias – destacando elos,

reforçando ligações – mas, também permitem o aumento das famílias, a constituição de

novas relações e o incremento do número de pessoas nos contatos cotidianos.

Ao fazer isso, eles ajudam a evitar a solidão, sentimento temido e indesejado na

vida das pessoas. As famílias (em seus múltiplos formatos), portanto, são instrumento

ou laço importante que precisa ser sempre reafirmado nas ações dos sujeitos, pois a

solidão é sempre uma possibilidade nas suas vidas. Para combater essa ameaça, é

11 Em outro texto escrito recentemente, chamei atenção para a constituição da pessoa e para as possibilidades de ruptura instauradas no afastamento entre pessoas e entidades (AHLERT, 2016).

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preciso cuidar, fazer companhia, lembrar-se das pessoas e, para tanto, vivos, mortos e

encantados são mobilizados.

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