a família beija-flor - luiz anselmo bezerra

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA A FAMÍLIA BEIJA-FLOR LUIZ ANSELMO BEZERRA NITERÓI 2010

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Dissertação de Mestrado sobre a escola de samba Beija-Flor.

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    CENTRO DE ESTUDOS GERAIS

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    A FAMLIA BEIJA-FLOR

    LUIZ ANSELMO BEZERRA

    NITERI

    2010

  • 1

    LUIZ ANSELMO BEZERRA

    A FAMLIA BEIJA-FLOR

    Dissertao apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao em Histria da

    Universidade Federal Fluminense, como

    requisito parcial para a obteno do

    Ttulo de Mestre em Histria.

    Eixo cronolgico: Histria

    Contempornea.

    Linha temtica: Poder e Sociedade.

    Orientador: Prof. Dr. Marcos Alvito Pereira de Souza

    NITERI

    2010

  • 2

    Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat

    B574 Bezerra, Luiz Anselmo. A famlia Beija-Flor / Luiz Anselmo Bezerra. 2010.

    243 f.

    Orientador: Marcos Alvito Pereira de Souza.

    Dissertao (Mestrado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Departamento de Histria, 2010.

    Bibliografia: f. 243.

    1. Escola de samba - Rio de Janeiro (RJ). 2. Jogo do bicho. 3. Ditadura militar - Brasil, 1964-1979. 4. Poder. 5. Famlia - Aspecto poltico. I. Souza, Marcos Alvito Pereira de. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas e Filosofia. III. Ttulo.

    CDD 394.25098153

  • 3

    LUIZ ANSELMO BEZERRA

    A FAMLIA BEIJA-FLOR

    Dissertao apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao em Histria da

    Universidade Federal Fluminense, como

    requisito parcial para a obteno do

    Ttulo de Mestre em Histria.

    Aprovada em agosto de 2010.

    BANCA EXAMINADORA

    ___________________________________________

    Prof. Dr. MARCOS ALVITO PEREIRA DE SOUZA

    PPGH UFF

    ___________________________________________

    Profa. Dra. ADRIANA FACINA GURGEL DO AMARAL

    PPGH UFF

    ___________________________________________

    Profa. Dra. KARINA KUSCHNIR

    PPGSA UFRJ / IFCS

    ___________________________________________

    Profa. Dra. SIMONI LAHUD GUEDES (SUPLENTE)

    PPGA UFF

    ___________________________________________

    Profa. Dra. LEILA MARIA DA SILVA BLASS (SUPLENTE)

    PEPGCS PUC / SP

    NITERI

    2010

  • 4

    Ao amigo Daniel Madruga, de conselheiro amoroso a anjo da guarda (in memoriam)

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    A gratido tema central no universo da famlia Beija-Flor. E se o ato de agradecer

    tem sempre um carter impositivo e custoso, espero, no entanto, manifest-lo da forma mais

    espontnea possvel, do fundo do meu corao.

    uma satisfao poder dizer a meus pais que valeu a pena toda a dedicao que

    tiveram pela minha educao ao longo desses anos, eles sentiram de perto o drama dos

    ltimos momentos na elaborao do trabalho, e com muita compreenso, na certeza de que a

    transmisso de tudo aquilo que aprendi ser a sua maior compensao. E da mesma forma,

    acredito que tenha sido com minha querida irm e meu cunhado-irmo.

    Foi um prazer imenso conhecer pessoas to interessantes ligadas ao mundo do samba e

    que estavam aqui pertinho sem que eu me desse conta. Espero, humildemente, poder retribuir

    o tanto que aprendi fazendo alguma coisa pelo samba e pelo carnaval, j que at hoje s foi

    beneficirio do envolvimento com essas maravilhas do povo brasileiro.

    Para evitar esquecimentos, quero deixar registrado o meu agradecimento ao conjunto

    da famlia que no pequena , para todos do ramo dos Bezerra, dos Batista, dos Pereira,

    dos Nascimento e dos Teixeira. Apenas um agradecimento especial ao Pedro Jr., que foi

    decisivo na minha passagem do rock and roll para o samba.

    E sem os amigos eu no teria chagado ao trmino da luta, so tantos... Agradeo ao

    pessoal da rua onde me criei e aos colegas dos outros pedaos de Nilpolis que costumo

    frequentar que todos fiquem aqui representados pelo Luciano, pelo Eduardo, pelo Marcos

    (teacher), pelo Antnio Carlos, pelo Nelsinho, pelo Fabiano, pela Filomena, pelo Mrio

    Quintana, pelos Luses, pelo Marcelo, pelos Andrs e pelo Alberto. Quero lembrar a galera da

    UFF atravs dos diferentes grupos de amigos que giram em torno do Cadu e do Rafael, do

    Douglas, do Guilherme, do Jonas e do Fabrcio, da Sabrina e do Vincius, e da dona AP.

    A Ela e outras mulheres, meu eterno carinho.

    Aos professores da banca examinadora quero agradecer pelo tanto que suas sugestes

    contriburam para evoluo do trabalho. O curso de antropologia urbana da professora Karina

    Kuschnir, alm das timas amizades que me proporcionou, apontou o caminho da dissertao.

    As observaes dos professores Marcelo Badar e Adriana Facina foram fundamentais para o

    maior embasamento do trabalho em pontos mais relacionados s suas respectivas linhas de

    pesquisa, e isso deu realmente muita riqueza dissertao.

    A excelncia do PPGH UFF assegurou timas condies para a realizao da

    pesquisa, sou muito grato bolsa CAPES com a qual fui contemplado. Espero ter cumprido as

  • 6

    metas do programa com a qualidade do trabalho, que foi fruto de muita dedicao. Atravs da

    Silvana, quero manifestar minha gratido a todos os funcionrios da Ps. E aproveito para

    lembrar dos colegas que deram a maior fora no trabalho com as transcries: Morgana,

    Fernanda, Paulo, Lucinha e Leonardo.

    Reservo um agradecimento especial professora Leila Blass, ao nosso grande amigo

    tricolor sem palavras! e professora Maria Lcia Montes, esta pessoa queridssima que

    luxo s e, informalmente, teve um papel essencial na minha orientao.

    Ao meu querido mestre e amigo Marcos Alvito quero manifestar o reconhecimento do

    quanto que tem sido importante para mim dentro e fora do campo cientfico. Nos ltimos

    anos, foi ele a pessoa com quem aprendi as melhores jogadas, e embora seja um grande

    apaixonado pelo samba, foi seu estilo Bob Dylan sempre se transformando na rea de

    pesquisa uma das maiores inspiraes que tive ao longo dos anos na UFF.

    Agradeo ao que faz parte de tudo e de todos, porque acredito na existncia de uma

    fora maior que nos guia.

  • 7

    ela, Maravilhosa e soberana, De fato nilopolitana. Enamorada deste meu pas ela, A deusa da passarela Razo do meu cantar feliz. ela, Um festival de prata em plena pista, o sorriso alegre do sambista, Ao ecoar do som de um tambor... Beija-flor minha escola, Minha vida, meu amor

    A deusa da passarela, samba-exaltao de autoria de Neguinho da Beija-Flor

  • 8

    RESUMO

    O trabalho apresenta uma anlise das relaes institucionais entre jogo do bicho e escola de

    samba enquanto suporte do esquema de poder familiar montado no municpio de Nilpolis

    durante a ditadura militar e que se encontra em pleno vigor ainda nos dias atuais. Abordamos

    num primeiro momento vises macro-polticas que relacionam a projeo dos dois ramos do

    poder familiar interferncia militar na Baixada Fluminense. Entretanto, o estudo aprofunda a

    reflexo sobre a adeso ao regime por parte das lideranas das famlias Sessim e Abrao na

    medida em que se assenta nos pressupostos de um modelo epistemolgico atento relevncia

    de dados fragmentrios, ou seja, indcios soltos que foram identificados no exame de fontes

    jornalsticas, de arquivo e fontes orais, estas produzidas mediante a realizao de entrevistas

    de acordo com a metodologia da histria oral. Em funo disso, a pesquisa aponta para um

    conjunto mais amplo de fatores que teriam contribudo para a consolidao, pelas referidas

    famlias, de uma tradio de atuao poltica baseada no lugar. A relao dos chefes do

    esquema com setores da comunidade local tratada considerando-se a dimenso simblica do

    sistema de trocas que se centralizou na figura do banqueiro do bicho e presidente de hora da

    Beija-Flor, Ansio Abrao David, e foi estruturado atravs da organizao carnavalesca na

    forma de uma economia do dom. Portanto, o universo simblico do esquema poltico

    analisado no trabalho com a demonstrao de que se compe tambm pela interligao de

    elementos da memria dos imigrantes de origem libanesa estabelecidos na localidade e de um

    conjunto de valores incorporados do sistema do jogo do bicho. Seguindo a proposta

    etnogrfica do olhar de perto e de dentro, tomamos a viso de antigos moradores de Nilpolis

    vinculados Beija-Flor acerca do contexto em que esto inseridos e das prticas que

    desenvolvem como ponto de partida para explicao dos mecanismos que articulam as redes

    sociais responsveis pela sustentao da estrutura de poder estudada. Em sntese, argumenta-

    se que a vitalidade do esquema familiar est associada capacidade de articulao

    desenvolvida por suas lideranas atravs do controle de organizaes que permitem a

    manuteno, e reproduo, de vnculos estabelecidos tanto nas redes de sociabilidade de

    mbito local quanto em setores externos esfera do municpio e ao mundo do samba.

    Palavras-chave: escola de samba; jogo do bicho; poder familiar; ditadura militar.

  • 9

    ABSTRACT

    The paper presents an analysis of the institutional relations between jogo do bicho and

    samba school as part of the support of the family power scheme set up in Nilpolis during the

    military dictatorship, which fully works until the present time. To begin with, it is going to

    present macropolitician views which link up the projection of the two realms of the family

    power with the military interference in Baixada Fluminense. Nevertheless, the study goes

    deeper into the reflection about Sessim and Abrao family leaders sticking to the military

    regimen according to the tenets of an epistemological pattern concerned to the relevence of

    fragmentary data, that is, unattached clues identified in jornalistic sources, files and interviews

    as well. The latter were produced according to the oral history metodology. Because of this,

    the study indicates a larger number of factors which may have contributed to the

    consolidation of the political tradition of the referred families in the locality. The relation of

    the scheme leaders with the local community sectors is treated considering the symbolic

    dimension of the exchange system which has been centered in the figure of jogo do bicho

    leader and also honorary president of Beija-Flor samba school, Ansio Abrao David. This

    exchange system was structured through the carnavalesque organization under the form of the

    gift economy. Therefore, the symbolic universe of the political scheme is analysed in this

    paper with the demonstration that it is also compounded by the interconnection of Lebanese

    immigrant memory elements locally settled and a group of values incorporated in the jogo do

    bicho system. Following the ethnografic proposal of a close and inner look, we collected

    opinions from ancient Nilopolis dwellers linked to Beija-Flor about the context in which they

    are inserted and about the activities they develop as a starting point to explain the mechanisms

    that articulate the social nets responsible for the support of the power structure studied here.

    In short, it is discussed that the family scheme vitality is associated with the capacity of

    articulation developed by its leaders through the organization control which allow the

    maintenance and reproduction of established links both of the local sociability nets and of

    sectors out of the city and the samba world.

    Key words: samba school; jogo do bicho; family power; military dictatorship.

  • 10

    Sumrio

    Introduo 12

    Captulo I

    1. A Interferncia militar na Baixada Fluminense e seus desdobramentos em Nilpolis 21

    2. Os negcios do jogo do bicho em Nilpolis antes e depois do golpe de 1964 31

    3. A Escola de Samba Beija-Flor e a ditadura militar 46

    4. Abertura poltica e aumento da concorrncia no espao poltico-partidrio 57

    Captulo II

    1. Uma tradio familiar de ajuda ao semelhante 65

    2. O universo simblico dos jogos em Nilpolis 82

    3. A Beija-Flor dos anos de sacrifcio 85

    4. Os Abrao David e os tempos de sucesso da Beija-Flor 93

    5. O luxo e a grandiosidade da Beija-Flor 97

    6. Al, papai! A famlia Beija-Flor te ama! 103

    Captulo III

    1. Nilpolis e seus centros de sociabilidade 120

    2. Bloco Associao Carnavalesca Beija-Flor 123

    3. Escola de Samba Beija-Flor 126

    4. As demais associaes carnavalescas nilopolitanas na rede local de lazer 130

    5. A Escola de Samba Beija-Flor como uma alternativa de lazer 132

    6. A aproximao dos Abrao David com a Escola de Samba Beija-Flor 140

    7. Voltando questo dos enredos de exaltao do regime militar 149

    8. A contratao do carnavalesco Joosinho Trinta 151

    9. O samba-enredo e a quadra 158

    10. A dimenso espetacular dos desfiles da Beija-Flor 178

    11. O barraco 183

    12. Toma l, d c 194

  • 11

    13. Os projetos assistenciais da Beija-Flor de Nilpolis 204

    14. As festas religiosas promovidas por Ansio 209

    Concluso 222

    Fontes 226

    Bibliografia 229

    Anexos

    1. Os carnavais da Beija Flor de Nilpolis 234

    2. Os compositores campees 237

    3. As letras dos sambas-enredo de 1973 a 1978 239

    4. Listagem dos prefeitos de Nilpolis 241

    5. Genealogia dos ramos do poder familiar 242

    6. Mapa das principais ruas e avenidas do municpio de Nilpolis 243

  • 12

    Introduo

    A Beija-Flor se destaca entre as escolas de samba do Rio de Janeiro por ser

    considerada uma espcie de domnio familiar. No entanto, o incio de sua histria em muito

    antecede a direo dos Abrao David, comea pela fundao como bloco carnavalesco em 25

    de dezembro de 1948. A passagem condio de Grmio Recreativo Escola de Samba veio

    em 1954, e, segundo relatos de antigos componentes, teria resultado da iniciativa de uma das

    lideranas mais importantes da poca, o compositor Silvestre David dos Santos, popularmente

    conhecido como Cabana. Foram muitos carnavais no sobe e desce caracterstico das

    pequenas escolas, transitando entre os trs grupos definidos pela antiga diviso dos desfiles

    carnavalescos, at o retorno definitivo ao grupo de elite do carnaval carioca, o Grupo 1,

    com a apresentao dos chamados enredos de exaltao da ditadura nos carnavais de 1973, 74

    e 75, estando a escola nesse momento sob a presidncia de Nelson Abrao David. No entanto,

    foram as conquistas de 1976, 77 e 78 que se constituram atravs da memria no marco de

    uma nova fase associada atuao dos irmos Nelson e Aniz Abrao David, o Ansio. Com a

    permanncia da escola junto s grandes do carnaval carioca ficando assegurada pelo

    primeiro tricampeonato, passou-se a conferir aos Abrao David o status de verdadeiros

    donos da Beija-Flor.

    certo que a escola de samba faz parte, de uma forma ou de outra, da vida de quase

    todos aqueles que tm residncia em Nilpolis, mesmo que s se lembrem disso por conta da

    proximidade do carnaval. Eu no saberia dizer se foi exatamente a pesquisa das minhas

    origens nilopolitanas o que levou realizao deste trabalho. Embora nascido e criado em

    Nilpolis, as influncias da famlia de imigrantes nordestinos contriburam muito para me

    deixar meio que distante do povo do samba, e por essa razo creio que nos primeiros

    momentos da pesquisa realmente no estivesse observando algo to familiar.

    O desejo de explorar o universo da Beija-Flor s se confirmou no momento em que

    finalmente me dei conta do objeto de estudo que estava relativamente prximo de mim e que

    traria a oportunidade de abordar temas interessantssimos carnaval, poltica, jogo do bicho,

    religio e grande aprendizado numa primeira experincia de pesquisa. No fosse a

    oportunidade do curso Samba, Festa e Cultura Popular, ministrado pelo professor Marcos

    Alvito na graduao em Histria da UFF no ano de 2001, e que teve como uma das leituras o

    artigo da professora Maria Lcia Montes sobre a questo do erudito e do popular no contexto

    do carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro, no qual ela se refere a toda uma

  • 13

    experincia de campo no barraco da Beija-Flor na poca em que Joosinho Trinta era

    carnavalesco da escola1, o impulso para o trabalho talvez no tivesse surgido. Ora, deixou-me

    bastante intrigado o fato de uma pesquisadora residente na cidade de So Paulo saber tanto

    sobre a escola, e eu, morando a dez minutos da quadra, quase nada! Essa situao de certa

    forma vergonhosa para um rapaz nilopolitano recm formado em Histria me levou a buscar

    orientaes com os referidos professores para no perder a chance de aventurar a pesquisa.

    As primeiras entrevistas visando a realizao do trabalho foram feitas em 2005. Como

    eu no tinha vnculo com pessoas da Beija-Flor nem experincia em pesquisa de campo, e,

    alm disso, sentia um medo tremendo de ser interrogado sobre as intenes do estudo, a sada

    foi recorrer aos contatos de conhecidos meus com pessoas que pertencessem escola ou

    tivessem feito parte dela em um dado momento. De incio, as entrevistas aconteceram

    justamente com ex-componentes da escola, algo que me ajudou a desfazer o receio em tratar

    de certos temas nas conversas e acabou se tornando uma preparao para o contato com

    antigos componentes que conheci a partir da. No total, foram quinze entrevistados entre ex-

    componentes e componentes ativos da Beija-Flor, sendo que seis deles no mais participavam

    da escola no momento em que decidiram colaborar com o trabalho. Outros cinco

    colaboradores alm desses foram: um descendente libans e sua esposa brasileira, um ex-

    artista do barraco que no era exatamente componente da escola, um antigo morador de

    Nilpolis e militante partidrio de esquerda e um sambista da regio que no faz parte da

    Beija-Flor. Atravs desses contatos, passei a acompanhar atividades desenvolvidas na quadra

    de ensaios ao longo do ano e tambm alguns momentos do processo de confeco do desfile

    no barraco da Cidade do Samba.

    Tendo como proposta de pesquisa abordar a escola de samba enquanto ponto de

    articulao do esquema de poder montado pelas famlias Sessim e Abrao em Nilpolis,

    permaneci durante um bom tempo acreditando que as informaes obtidas atravs das

    entrevistas e observaes de campo eram muito superficiais, principalmente no tocante s

    relaes entre a escola de samba e o jogo do bicho. Somente atravs de referncias terico-

    metodolgicas adequadas foi possvel entender que, mesmo apresentando-se de forma

    dispersa, os dados disponveis poderiam dar embasamento a uma anlise consistente. Em

    primeiro lugar, destaco a relevncia do pressuposto fundamental do chamado paradigma

    indicirio, que apresento aqui nas palavras do historiador Carlo Ginzburg:

    1 Montes, Maria Lcia Aparecida. O erudito e o popular, ou as escolas de samba: a esttica negra de um espetculo de massa. In: Revista USP, 32 (1996-1997): 6-25.

  • 14

    [...] Se as pretenses de conhecimento sistemtico mostraram-se cada vez mais como veleidades, nem por isso a ideia de totalidade deve ser abandonada. Pelo contrrio: a existncia de uma profunda conexo que explique os fenmenos superficiais reforada no prprio momento em que se afirma que um conhecimento direto de tal conexo no possvel. Se a realidade opaca, existem zonas privilegiadas sinais, indcios que permitem decifr-la. 2

    A partir do momento em que me dei conta que os prprios atores sociais poderiam

    estar fornecendo indicaes para a reconstituio de uma profunda conexo capaz de

    explicar o funcionamento da estrutura de poder familiar, pereceu-me muito apropriado adotar

    como proposta metodolgica o modelo etnogrfico denominado por Jos Guilherme Magnani

    como olhar de perto e de dentro. Isto no tem a ver necessariamente com a fundamentao do

    estudo atravs de uma pesquisa de observao participante com o intuito de trazer tona

    detalhes escondidos, mesmo porque sustenta esse autor que o mtodo etnogrfico no se

    reduz a uma tcnica, ele pode usar e se servir de vrias, de acordo com as circunstncias de

    cada pesquisa. Na perspectiva de Magnani a etnografia seria:

    ... antes um mtodo de acercamento e apreenso do que um conjunto de procedimentos. Ademais, no obsesso pelos detalhes que caracteriza a etnografia, mas a ateno que se lhes d: em algum momento, os fragmentos podem arranjar-se num todo que oferece a pista para um novo entendimento. Em suma: a natureza da explicao pela via etnogrfica tem como base um insight que permite reorganizar dados percebidos como fragmentrios, informaes ainda dispersas, indcios soltos, num novo arranjo que no mais um arranjo nativo (mas que parte dele, leva-o em conta, foi suscitado por ele) nem aquele com o qual o pesquisador iniciou a pesquisa. Este novo arranjo carrega as marcas de ambos: mais geral do que a explicao nativa, presa s particularidades de seu contexto, pode ser aplicado a outras ocorrncias; no entanto, mais denso do que o esquema terico inicial do pesquisador, pois tem agora como referente o concreto vivido.3

    Nesse sentido, atravs de um exame atencioso que possibilitou a reorganizao de uma

    srie de indcios acerca da interferncia militar na Baixada Fluminense como fator

    determinante para a montagem do esquema de poder das duas famlias desenvolveu-se a

    abordagem macro-poltica que deu origem ao primeiro captulo. Nele, entram em cena como

    principais personagens os membros do crculo de deciso do poder familiar, que so os

    representantes dos Sessim e dos Abrao com atuao no campo poltico-institucional e os

    banqueiros do jogo do bicho ligados a este ltimo ramo de parentesco.

    2 Ginzburg, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e histria. Trad. de Federico Carotti. So Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 177. 3 Magnani, Jos Guilherme Cantor. De perto e de dentro: notas para uma antropologia urbana. In: Revista Brasileira de Cincias Sociais, vol 17, n 49, So Paulo, junho de 2002: 11-29. p. 17.

  • 15

    No segundo captulo que o conjunto dos atores sociais envolvidos na trama passa a

    fazer parte efetivamente da anlise, a comear pelo trabalho de interpretao dos valores que

    tomam como referncia para descrever em seus prprios arranjos o universo social em que

    atuam. Nessa perspectiva assumimos definitivamente a proposta do olhar de perto e de

    dentro, e no sentido de analisar o poder familiar considerando a viso nativa a seu respeito.

    A categoria famlia est associada ao conjunto de imigrantes libaneses que se

    estabeleceram como comerciantes em Nilpolis, serve como referncia para que os antigos

    componentes descrevam a Escola de Samba Beija-Flor enquanto espao de socializao em

    sua primeira fase e tambm como smbolo da estrutura de poder chefiada por Ansio, da a

    escolha do ttulo do trabalho. E a partir dela procuramos identificar outras categorias nativas

    que fazem parte do conjunto de valores dos atores sociais inseridos no universo de pesquisa

    para compreend-lo como uma totalidade, conforme prope Magnani:

    Assim, uma totalidade consistente em termos de etnografia aquela que, experimentada e reconhecida pelos atores sociais, identificada pelo investigador, podendo ser descrita em seus aspectos categoriais: para os primeiros, o contexto da experincia, para o segundo, chave de inteligibilidade e princpio explicativo. Posto que no se pode contar com uma totalidade dada a priori, postula-se uma a ser construda a partir da experincia dos atores e com a ajuda de hipteses de trabalho e escolhas tericas, como condio para que se possa dizer algo mais que generalidades a respeito do objeto de estudo. 4

    A categoria do familiar e todas as outras que surgiram interligadas a ela amizade,

    respeito, honra, generosidade, lealdade foram definidas nos termos do pesquisador a partir

    de escolhas tericas, e nesse sentido as consideraes de Pierre Bourdieu acerca da teoria do

    dom ocuparam um lugar central na construo do segundo captulo.

    Contudo, tais categorias so construes que correspondem a determinadas relaes

    sociais, e foi no sentido de explicit-las que teve desenvolvimento o terceiro captulo do

    trabalho. Nessa etapa foi possvel demonstrar como so organizadas redes sociais atravs da

    estrutura de uma escola de samba, o que nos permite compreender porque ocorre a ampliao

    da influncia social dos banqueiros do jogo do bicho na medida em que se relacionam com as

    agremiaes carnavalescas.

    Alguns esclarecimentos importantes precisam ser feitos ainda nessa etapa introdutria.

    As entrevistas realizadas no mbito da pesquisa seguiram o modelo da chamada histria de

    vida, entretanto, havendo uma conduo para o relato de experincias acerca da trajetria de

    cada um dos colaboradores na Beija-Flor. Apenas no caso daqueles que no so componentes

    4 idem, p. 20.

  • 16

    da escola nem ligados ao mundo do samba adotou-se um foco especfico, como por

    exemplo, a memria dos desdobramentos da interferncia militar em Nilpolis, ou ento do

    estabelecimento das famlias de imigrantes libaneses na localidade.

    A questo da memria central no trabalho, a comear pelas prprias referncias

    temporais definidas pelos atores sociais que j revelavam interpretaes sobre o passado: a

    Beija-Flor dos anos de sacrifcio no seria a mesma dos anos de sucesso. Mas antes de

    qualquer apropriao em meio s diversas categorias propostas para a memria convm

    reconhecermos a sua condio primordial de fenmeno social. Michael Pollak observa,

    sobretudo, o fato da memria se caracterizar como um fenmeno construdo coletivamente e

    submetido a flutuaes, transformaes, mudanas constantes5. Nessa linha de raciocnio,

    uma definio pertinente aparece na sntese elaborada por Ciro Cardoso no tocante ao

    conceito de memria coletiva:

    Em primeira aproximao, poder-se-ia definir a memria coletiva como um conjunto de elementos estruturados que aparecem como recordaes, socialmente partilhadas, de que disponha uma comunidade sobre sua prpria trajetria no tempo, construdas de modo a incluir no s aspectos selecionados, reinterpretados e at inventados dessa trajetria como, tambm, uma apreciao moral ou juzo de valor sobre ela. Em ambos os nveis, tais ingredientes se modificam no tempo segundo mudem as solicitaes que, em diferentes situaes histrico-sociais, faam ao passado as instncias organizadoras da conscincia social. 6

    Na verdade, como o ato de recordar prprio de cada pessoa, lidamos propriamente

    com conjuntos heterogneos de memrias, sendo todas elas de alguma forma mediadas.

    Portelli observou muito bem como que a noo de memria dividida deve ser empregada em

    sentido amplo, evitando a persistncia do raciocnio baseado na simples oposio entre uma

    memria oficial marcada por intenso trabalho de organizao, e uma memria dos dominados,

    esta, dotada de espontaneidade, como se estivesse num estado de pureza.7 Interessaria, no

    entanto, o trabalho de subverso de memrias subterrneas num silncio imposto por

    circunstncias que as impedem de aflorar, mas isto sem desconsiderar que os prprios

    dominados compartilham valores e referncias temporais com os dominantes.8

    5 Pollak, M. Memria e identidade social In: Est. Hist., Rio de Janeiro, vol. 5, n10, 1992: 200-212. p. 201. 6 Cardoso, C. F. Um historiador fala de teoria e metodologia: ensaios. Bauru, SP: Edusc, 2005. p.17. 7 Portelli, Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana: 29 de junho de 1944): mito poltica e senso comum. In: Ferreira, Marieta. M. e Amado, Janana. (coords.) Usos e Abusos da Histria Oral. Rio de Janeiro: FGV, 1998. p. 126-127. 8 Pollak, M. Memria, esquecimento, silncio In: Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol.2, n 3, 1989: 3-15. p. 4.

  • 17

    As citaes de trechos das entrevistas realizadas no mbito da pesquisa aconteceram

    de acordo com alguns critrios: primeiro, para explicitar que determinadas informaes

    apresentadas no trabalho no so afirmaes do pesquisador; segundo, quando o entrevistado

    descreve uma determinada situao que perderia a riqueza da narrativa caso fosse reelaborada

    nas palavras do autor; e por fim, para indicar como as categorias nativas so articuladas na

    argumentao do discurso dos atores sociais.

    A preocupao em manter preservada a identidade dos entrevistados me obrigou a

    utilizar nomes fictcios para todos, ficando mantidos apenas os nomes das personalidades

    pblicas envolvidas no contexto da pesquisa. Procurei apresentar o mnimo possvel de

    informaes pessoais sobre os colaboradores do trabalho, tentando mencionar apenas os

    papis que desempenham ou desempenharam na agremiao carnavalesca (compositor,

    baiana, diretor, arteso, artista ou profissional do barraco). Todavia, a omisso de certas

    informaes a seu respeito ou a no citao de determinadas falas trariam um prejuzo

    considervel para o trabalho. Lidamos com a investigao de universos sociais em que as

    relaes se estabelecem face-a-face, isto imps a necessidade de adotarmos um esquema

    metodolgico que defende justamente a aproximao com os atores.

    Embora no tenha entrevistado representantes do crculo de poder das famlias Abrao

    e Sessim, apostei na anlise de fontes jornalsticas em que so publicadas entrevistas

    concedidas por eles e textos cuja autoria costuma ser atribuda aos mesmos. Basicamente, so

    os materiais oficiais de imprensa da Escola de Samba Beija-Flor, e antes de apresent-los cabe

    um esclarecimento importante sobre a grafia dos nomes dos principais personagens da

    pesquisa. Em primeiro lugar, Ansio foi como o banqueiro do jogo do bicho e presidente de

    honra da Beija-Flor, Aniz Abrao David, ficou popularmente conhecido em Nilpolis, antes

    mesmo de se tornar contraventor. Optei por utilizar a primeira forma ao longo do texto, sendo

    que nas citaes dos materiais de imprensa de Beija-Flor e outras fontes jornalsticas podem

    aparecer tambm as seguintes grafias: para o nome popular, Anzio; e para o sobrenome da

    famlia, Abro ou Abraho. S mesmo verificando o documento de identidade de Ansio ou

    de um de irmos para se saber a grafia correta...

    E em relao aos materiais oficiais de imprensa da Beija-Flor, trata-se de duas

    publicaes, uma delas o jornal O Beija-Flor, que passou a ser reeditado em julho de 2009.

    O projeto teve incio em dezembro de 2004, com a distribuio mensal e gratuita dos nmeros

    do jornal sendo feita atravs do barraco da Cidade do Samba e do Centro Social da Beija-

    Flor, sempre em tiragem de dez mil exemplares. Entre meados de 2008 e junho de 2009

    houve uma interrupo da produo. A equipe de redao do jornal composta por

  • 18

    profissionais especializados, que possuem trajetria tambm no mundo do samba. No so,

    porm, os mesmos representantes da equipe responsvel pela segunda das publicaes a que

    estamos nos referindo, pois um outro grupo de profissionais j est envolvido desde 2002 com

    a edio anual da revista Beija-Flor de Nilpolis uma escola de vida, tendo assumido papel

    mais significativo na construo de uma certa imagem mtica de Ansio.

    Convm observar que em ambas publicaes as inmeras menes ao nome de Ansio

    jamais fazem qualquer associao de sua pessoa s atividades da contraveno. Em vista da

    qualidade da produo grfica da revista, que tem tiragem de 60 mil exemplares, podemos

    supor um alto investimento na realizao do projeto. A distribuio ocorre no perodo do

    Carnaval, de forma gratuita, e se d em alguns setores do Sambdromo no dia do desfile da

    Beija-Flor; depois, uma certa quantidade de exemplares fica disponvel aos visitantes do

    barraco. Se pensarmos na popularidade que a Beija-Flor conquistou nos ltimos anos, e

    considerando o espetculo das escolas de samba como um evento turstico internacional,

    compreende-se que o alcance da revista muito amplo, o que potencializa de maneira

    extraordinria o trabalho de promoo pessoal dedicado a Ansio.

    Capa do jornal O Beija-Flor, fevereiro de 2010

  • 19

    Capa da Revista Beija-Flor, fevereiro de 2007

    A proposta editorial da revista contm dois pontos bsicos, alm do tema principal que

    desenvolvido em funo de alguma data comemorativa no mbito da agremiao

    carnavalesca. Em primeiro lugar, os editores afirmam que a revista tem como meta principal

    modernizar o relacionamento da Beija-Flor com a sociedade, tentando ampliar a famlia

    Beija-Flor com a conquista de novos simpatizantes e, por outro lado, fortalec-la mediante a

    valorizao dos componentes annimos, na promoo do que seria um resgate de suas

    memrias.9 O segundo ponto diz respeito divulgao dos trabalhos assistenciais realizados

    atravs da escola de samba com o patrocnio de seu presidente de honra.

    H uma estrutura bsica definida em funo das sees permanentes que compem o

    corpo da revista e das falas de personagens centrais. Aps o editorial, rigorosamente, vem

    uma mensagem de Ansio, como se estivesse dando as boas vindas ao pblico do desfile, e em

    seguida, depois do ndice, vem a fala de Farid Abrao David, irmo mais novo de Ansio e

    atual presidente administrativo da Beija-Flor de Nilpolis. Depois disso que se apresenta um

    longo texto explicativo do tema de enredo a ser desenvolvido no desfile carnavalesco do

    respectivo ano, intercalando-se uma srie de propagandas.

    Uma fala tambm especial, e que est presente em todas as edies, a do deputado

    federal Simo Sessim. Essa no aparece numa posio fixa, s vezes vem logo no comeo da

    revista, em outras vem mais pelo final. Sempre assume a forma de um pronunciamento na

    tribuna da Cmara Federal, ressaltando-se a relevncia do tema de enredo da Beija-Flor e seu

    papel, assim como das escolas de samba em geral, enquanto smbolo de brasilidade.

    9 Revista Beija-Flor uma escola de vida. Fev. 2007.

  • 20

    H uma seleo de textos distribudos de forma mais flexvel, aparecendo espalhados

    no corpo da revista, sendo de autoria de jornalistas e pesquisadores convidados que colaboram

    no tratamento de assuntos relativos histria do carnaval. Artigos e reportagens

    especialmente dedicados escola de samba so quase sempre preparados pelos prprios

    membros da equipe de comunicao, e nesse sentido ganha destaque uma seo voltada para

    divulgao dos projetos assistenciais mantidos por Ansio.

    Mesmo que sejam fontes indiretas, produzidas a partir de todo um trabalho

    institucional, elas so ricas na medida em que apresentam as lideranas do poder familiar da

    forma como desejam aparecer publicamente. Portanto, os materiais de imprensa produzidos

    oficialmente em nome da diretoria da escola de samba so uma base para identificarmos os

    valores que fazem parte do universo dos Sessim e dos Abrao e que, de certa forma, so

    compartilhados por aqueles que esto vinculados s famlias.

  • 21

    Captulo I

    1. A interferncia militar na Baixada Fluminense e seus desdobramentos em Nilpolis

    O autor de um relevante estudo sobre a histria recente da Baixada Fluminense

    considera o caso do municpio de Nilpolis como modelo mais bem acabado de controle

    poltico baseado na conjuno entre poder militar, poder familiar e contraveno.10

    Em seu trabalho, o socilogo Jos Cludio Alves observa a situao poltica do

    municpio a partir da reestruturao promovida pela ditadura nas relaes de poder que

    prevaleciam at o momento na regio. De um modo geral, a interferncia militar teve como

    diretriz a supresso, com enfraquecimento ou cooptao, das formas de oposio existentes e

    daquelas que se apresentassem apenas como futura ameaa. E para tanto, um conjunto de

    aes bem definidas foram realizadas: cassaes de prefeitos e vereadores, fechamento e

    ocupao de cmaras e prefeituras, imposio de interventores e presso para o ingresso no

    partido governista.11

    De fato, as aes associadas interferncia militar e seus desdobramentos no plano

    macro-poltico constituem os primeiros elementos para uma abordagem da estrutura de poder

    montada sob o comando dos membros da primeira gerao de descendentes das famlias de

    origem libanesa Sessim David e Abrao David, estabelecidas em Nilpolis desde o incio da

    dcada de 1930. Contudo, se faz necessrio avaliar at que ponto a interferncia teve suas

    determinaes, e assim saber se a adeso ao situacionismo aps o golpe de 1964 explica por

    completo a ascenso poltica das famlias.

    As vises que sero apresentadas em debate neste captulo so basicamente

    formulaes de autores consultados em meio bibliografia existente sobre as relaes de

    poder na Baixada Fluminense durante a ditadura militar. No entanto, alguns dos antigos

    moradores de Nilpolis que concederam entrevistas no mbito desta pesquisa constroem

    tambm um ponto de vista acerca da ascenso das referidas famlias na poltica local a partir

    de uma associao com o advento do golpe. E por essa razo, foram selecionados alguns de

    seus relatos nos quais se destacam comentrios sobre a trajetria dos atores que chefiam, ou

    chefiavam, os tipos de organizaes em foco nesta primeira parte do estudo (diretrios locais

    de partidos, jogo do bicho, escola de samba, agncias de servios, rgos pblicos).

    Provavelmente, pelo fato de terem sido pessoas de militncia atravs da poltica partidria ou

    10 Alves, Jos Cludio Souza. Dos bares ao extermnio: uma histria da violncia na Baixada Fluminense. Duque de Caxias-RJ: APPH,CLIO, 2003. p.104 11 ibid., p.101

  • 22

    da atuao em movimentos sociais e no campo da cultura, os entrevistados imprimem tal

    enfoque na construo de seus discursos.

    Algumas fontes jornalsticas tambm tero relevncia, posto que a proposta de

    anlise no se prende ao carter de denncia que tais fontes geralmente assumem, mas

    procura detectar a partir de situaes de crise no seio do poder familiar quase sempre com

    ampla repercusso pblica informaes que possam ser teis no trabalho de elucidao de

    certos aspectos do funcionamento da estrutura de poder investigada.

    Uma breve reconstituio do quadro poltico nilopolitano anterior interferncia

    militar revela a projeo de certas lideranas diretamente envolvidas com o processo de

    emancipao que fez com que Nilpolis, em 1947, deixasse de ser distrito de Nova Iguau.

    Por exemplo, o ento deputado Lucas de Andrade Figueira foi considerado o principal

    articulador desse processo, ficando conhecido como o libertador de Nilpolis, e assim

    passou a contar com grande prestgio e exercer influncia sobre o eleitorado na cidade.12

    O primeiro prefeito eleito do municpio, Joo Moraes Cardoso Jnior13, havia sido o

    primeiro vereador distrital por Nilpolis na Cmara Municipal de Nova Iguau, em 1937.

    Portanto, na poca da emancipao j tinha uma certa trajetria, e pelo que se percebe de

    informaes disponveis acerca de sua atuao possvel considerar sua forte influncia na

    localidade, tanto que veio ser eleito prefeito mais duas vezes, em 1954 e 1967.

    Alm de Lucas Figueira, dois polticos que iniciaram a carreira atravs de mandatos

    no legislativo municipal se tornaram deputados influentes, sendo o primeiro Egdio Mendona

    Thurler, vereador na primeira legislatura, de 1947 a 1950, prefeito entre 1951 e 1955, e

    deputado por trs legislaturas consecutivas pelo PTB at se tornar Secretrio de Viao e

    Obras Pblicas no governo de Badger Silveira em 1962. Jarbas Lopes foi vereador na segunda

    legislatura, de 1951 a 1954, e provavelmente se tornou deputado pelo PSD em 1958, tendo

    depois desempenhado alto cargo na Cia. Transportes da Baa da Guanabara, no governo de

    Badger Silveira, assim como Egdio Mendona. Ambos foram chefes de seus partidos em

    Nilpolis durante a existncia do antigo estado do Rio.

    A concepo acerca da atividade poltico-partidria no municpio que aparece em

    relatos sobre o perodo anterior ao golpe revela uma atitude de condenao moral s correntes

    prticas de corrupo eleitoral e intercmbio de favores, dando a entender que seriam traos

    caractersticos de uma cultura poltica da regio, alm da pistolagem.

    12 A maioria das informaes sobre os polticos influentes em Nilpolis antes do golpe de 64 foram obtidas em Arajo, Raimundo. Figuras e fatos de Nilpolis. Rio de Janeiro: Revista Continente Editora, 1964. 13 Cf. Anexo 4 (pg. 241).

  • 23

    Miranda, antigo morador que veio ainda menino para Nilpolis nos anos 40, fala com

    indignao sobre a forma fraudulenta como os processos eleitorais transcorriam na localidade

    no perodo anterior ao golpe. O tom de sua fala talvez seja justificado pela idia de que os

    aspectos considerados negativos da prtica poltica venham sendo ao longo do tempo

    mantidos e reforados pelas lideranas partidrias que se sucedem. Ele recorda uma ttica

    ilegal de campanha utilizada nas eleies municipais em benefcio de um dos polticos

    anteriormente mencionados e de um vereador tambm conhecido na poca:

    [...] Egdio Mendona Thurler foi o grande lder do PTB em Nilpolis. Esse camarada, logo quando chegou aqui, trabalhava na cancela [era fiscal de barreira] que tinha entre Nilpolis e Anchieta. Tinha cancela dos dois lados, porque l era o estado da Guanabara, era Distrito Federal, e aqui era estado do Rio. Ele trabalhava ali e se elegeu vereador em Nilpolis trazendo gente de fora. Antigamente buscavam as pessoas, isso trazia voto. Tinha vereador, como o Jernimo, que morava na Piedade, ele transferia l da Piedade 400, 300 votos e se elegia aqui. O Egdio trazia caminhes de Porcincula com gente pra votar em Nilpolis, e se elegia vereador aqui. Tinha gente que trazia de favela do Rio de Janeiro 200, 300 pessoas, pra votar aqui na poca. [...] Havia realmente muita corrupo em campanha. 14

    Contando com a eleio para a segunda legislatura municipal (1951/54), Jernimo

    Moreira da Rocha exerceu o mandato de vereador por trs vezes consecutivas15. A prtica em

    larga escala do transporte de eleitores, para alm de ser indicativa do alto grau de corrupo

    existente na poca, aponta tambm para a ideia dos deputados influentes em Nilpolis at

    1960 no tirem sua votao exatamente concentrada no municpio.

    Havendo, portanto, lideranas articuladas de tal forma para o controle do eleitorado,

    supe-se que a ascenso de polticos concorrentes fosse algo bastante difcil. No entanto, em

    1962, um membro da famlia Sessim, o doutor Jorge David, conseguiu se eleger deputado

    estadual no antigo estado do Rio pela UDN, partido sem grande representao em Nilpolis16.

    A profisso de mdico teria favorecido seu ingresso na carreira poltica, na medida em que

    conquistou popularidade trabalhando numa regio que apresentava enorme precariedade nos

    servios de sade, e isto em associao com um estilo de fazer poltica baseado no

    intercmbio de favores atendendo as pessoas sem cobrar.

    Contudo, at os primeiros desdobramentos do golpe de 64 no poder local no se tinha

    uma concepo acerca das famlias Sessim e Abrao enquanto um grupo poltico - o que se

    14 Entrevista concedida ao autor a 17 de jan. de 2009. 15 Arajo, op. cit., p. 11 e 12. 16 O breve perfil que Raimundo Arajo traa em seu livro para cada uma das figuras polticas que atuaram em Nilpolis entre a emancipao e o golpe de 64 leva a crer que havia uma representatividade menor na localidade de polticos ligados a UDN frente a polticos de outros partidos, como o PTB, o PSD e mesmo o PTN do deputado Lucas de Andrade Figueira.

  • 24

    passou a perceber com facilidade dos anos 70 para c. A identificao dos Sessim com as

    foras que apoiaram a ditadura o que constitui a base para a construo de uma certa

    memria que atribui famlia a fora de um grupo poltico que estava emergindo.

    O marco inicial da interveno militar em Nilpolis se d com a cassao, ainda em

    64, do prefeito Eracydes Lima de Carvalho, que embora no tivesse tendncia poltica

    esquerdista, como recorda um dos colaboradores desta pesquisa, viu-se obrigado a deixar o

    cargo. Com isso, ocupou a vaga o ento Procurador Geral de Nilpolis, Joo Batista da Silva,

    que ficou frente da prefeitura entre 1964 e 1966. At o fim do mandato em 1967, assumiram

    o vice Zlio Sabino Barbosa, e ainda em 66 o interventor Francisco Gonalves Filgueiras.

    No dispomos de mais informaes institucionais acerca dessas mudanas no principal cargo

    do executivo municipal, portanto, no h como tirar concluses a partir da sobre possveis

    interferncias dos polticos identificados com as foras do golpe.17

    Contudo, atravs das entrevistas com antigos moradores do municpio tivemos

    relatos de situaes a partir das quais constroem uma argumentao no sentido de relacionar a

    ascenso poltica das lideranas da famlia Sessim antes mesmo dos representantes do ramo

    dos Abrao com os desdobramentos da interferncia militar.

    Retomando a entrevista de Miranda, num dado momento aps falar da influncia das

    antigas lideranas polticas da localidade, ele comenta:

    A famlia deles s comeou a ter ascenso poltica depois que os polticos de antes foram cassados. Quando veio a revoluo, cassaram o Lucas Figueira, o Jarbas Lopes, que na poca acho que era presidente das Barcas; ele foi nomeado, era do PSD. E o Egdio Mendona Thurler era do PTB de Joo Goulart, chegou a ser o primeiro secretrio de governo que teve o estado do Rio sendo de Nilpolis; depois, o segundo secretrio de governo do Rio sendo de Nilpolis, foi Gouveia Filho, secretrio do Brizola. Mas o primeiro que teve, de Nilpolis, foi Egdio Mendona Thurler, que era do PTB, Secretrio de Obras no governo do irmo do Roberto Silveira, Badger Silveira. Ento, depois que esse pessoal foi cassado que houve a ascenso poltica deles.

    Observa-se aqui o quanto que a operao limpeza atravs de cassaes teve

    impacto sobre Nilpolis ao afastar do cenrio poltico os representantes do legislativo estadual

    que tinham na localidade importante reduto eleitoral. Lembrando-se que a capital do antigo

    estado do Rio era Niteri, compreende-se a projeo que esses polticos haviam alcanado em

    vista dos cargos que ocuparam em setores estratgicos de governo. Portanto, ficava

    consideravelmente reduzida a concorrncia contra os situacionistas.

    17 Oliveira, Cludio. Nilpolis. In: Torres, Gnesis (Org.). Baixada Fluminense: a construo de uma histria: sociedade, economia, poltica. So Joo de Meriti, RJ: IPAHP Ed., 2004. p. 170. Cf. na seo dos anexos da dissertao a reproduo da listagem dos prefeitos de Nilpolis entre 1947 e 2004.

  • 25

    Outras duas vises que sero apresentadas aqui sobre a ascenso poltica das famlias

    Sessim e Abrao tm a ver com a atuao de seus principais representantes como

    colaboradores dos militares na perseguio aos inimigos polticos do regime.

    Na entrevista que me foi concedida por Machado, professor aposentado que

    trabalhou na rede pblica de ensino na Baixada Fluminense durante os anos 60 e 70, ele

    atribui o papel de delatores a figuras como o ento deputado estadual Jorge David, o professor

    Simo Sessim, irmo do deputado, e o professor Ruy Queiroz, filho da proprietria do

    Colgio Anacleto de Queiroz, que funcionou em Nilpolis de meados da dcada de 40 at os

    anos 80. Machado inicia a fala remontando o quadro poltico da poca:

    Veja bem, essa minha viso uma viso, e sendo particular, pessoal, deve ser unilateral, sei l... Mas vamos ver o que acontece em 64. Nilpolis sempre foi um municpio de situao na Baixada Fluminense, vamos chamar assim. Vou rotular, tudo bem? Nunca foi de oposio. Nilpolis sempre esteve com o poder, sobretudo com o poder militar, com o poder daqueles anos de chumbo que ns vivemos de 64 pra c. De Nilpolis saram vrios interventores, que at nem eram pessoas muito bem preparadas pra isso, estavam muito longe disso. Na realidade, foram oportunistas que serviram naquele momento aos interesses, inclusive, ao poder que se instituiu, que se imps populao de uma maneira geral. Ento, voc tem em Nilpolis aquele ncleo que girava em torno do Simo Sessim, do Ansio. E o Ansio nem muito, porque ele sempre foi envolvido com banca de bicho, esse tipo de coisa. Ento, ele era uma figura que quase no saa, s saa de noite. Contraventor era uma figura que s saa de noite, se no a polcia pegava e achacava. Hoje, no. Eles namoram modelos, tomam ch com o presidente, aparecem em carros alegricos. Inclusive, eles usaram a escola de samba at pra pode sair daquela forma de clandestinidade em que eles viviam. Mas o Simo Sessim, o Jorge David, o Ruy Queiroz... A famlia do Ruy Queiroz sempre foi envolvida com isso, tanto que ele foi interventor em Nova Iguau. Eles eram muito ligados ao pessoal dos rgos de represso, ao DOPS, ao Servio Nacional de Informao do Exrcito ali da Vila Militar. Essa gente toda era ligada. [...] Eles eram dedos-duros. A gente chama de dedos-duros, eles eram pessoas que comeavam a apontar e fazer cartrio de quem era comunista e quem no era...18

    Pelo retrospecto que foi feito neste trabalho, partindo do momento anterior mais

    prximo do golpe de 64, possvel assegurar que as principais lideranas locais estavam

    vinculadas ao ento governador do antigo estado do Rio, o trabalhista Badger Silveira. Com a

    mudana poltica, a tendncia foi para a projeo de polticos que se identificavam com as

    foras do golpe ou ento procuraram se alinhar de forma oportunista a elas. Tanto que, para

    os entrevistados Machado e Miranda, a partir da que surgem os sinais da formao de um

    ncleo de poder em Nilpolis sendo articulado pelos membros da famlia Sessim, enquanto

    colaboradores do regime. E cabe observar a partir do prprio relato de Machado, quando ele

    faz meno ao envolvimento de Ansio com o ncleo, que a prpria condio clandestina da

    18 Alves, op. cit., p. 104.

  • 26

    organizao do jogo do bicho que estava se formando assim como a fragilidade do ponto de

    vista financeiro em que se encontrava no momento logo posterior ao golpe deixavam o

    contraventor sob grande dependncia da influncia que havia sido conquista pelos Sessim

    atravs de sua projeo profissional e poltica.

    E ao que tudo indica, a adeso dos Sessim ao situacionismo se deu sem a necessidade

    de qualquer imposio, posto que foram partidrios de primeira hora do regime militar. No

    trabalho de Alves, o autor assinala a proximidade do deputado Jorge David com a autoridade

    militar responsvel pelas articulaes que levaram s principais aes nos municpios da

    Baixada durante a interferncia militar, o comandante da 1 Companhia de Polcia do

    Exrcito, o capito Jos Ribamar Zamith, da Vila Militar, em Deodoro19.

    No que se refere atuao do ento deputado Jorge David como colaborador dos

    militares nos assuntos polticos relativos ao municpio, Pedro, outro morador entrevistado por

    mim, relata uma situao que vivenciou na condio de militante estudantil:

    Bom, quando fazamos aqui o cientfico, foi fundada a Associao Municipal dos Estudantes Secundrios de Nilpolis. E a associao tinha uma atuao bastante razovel porque ela discutia poltica. Havia uma articulao com a UNE, ento, os estudantes aqui ficavam sempre atualizados com a questo poltica... Ns podemos dizer que foi um perodo em que se lia muito, e se procurava se atualizar em relao questo poltica, a questo social. [...] Ento, a associao atuou nesse sentido, quer dizer, havia eleies, tudo direitinho, era um processo democrtico interessante... Mas quando houve o golpe militar, a associao foi perseguida. Foi fechada! No princpio, se no me engano, houve uma interveno; e o estudante que entrou como interventor, a primeira declarao dele que saiu no jornal local, A voz dos municpios fluminenses, dizia que a associao, dali pra adiante, teria um carter recreativo e cultural, no sentido de esportes, essa coisa... Mas que associao de estudante no era pra ficar discutindo poltica! [...] Quando houve interveno aqui, frente disso estava o doutor Jorge David. E ele [o estudante], me parece que era ligado ao doutor Jorge David ou ficou ligado, n. Ele, ento, tinha um pensamento mais direita tambm. Ento, as coisas se fundiram. A primeira declarao dele foi aquela, e realmente ali a associao se acabou. [...] O doutor Jorge David j era deputado estadual. Naquela poca, o estado do Rio era um estado, e a Guanabara era outro. Ento ele era de Niteri, deputado, e ficava l na Assemblia de Niteri. Com a interveno na associao, o ento presidente que tentou resistir, embora o presidente fosse uma pessoa muito querida entre os estudantes, ele no era propriamente, digamos assim: estudante de esquerda. Havia na associao, realmente, outros grupos que se reuniam parte. Havia cursos de formao, havia todo um aprendizado no marxismo. Alguns grupos, mas no o presidente. O presidente no participava desse tipo de discusso. A questo poltica era discutida, mas ele no chegava a ponto de um alinhamento ideolgico, vamos dizer: marxista. Enquanto que outros estudantes, no grupo que eu estava, fizeram toda uma formao nessa rea. E ele, quando houve a interveno, foi preso, apanhou, foi pra delegacia aqui, depois ia ser remetido l para o Exrcito... E ele recebeu l muita pancada na delegacia, n. Ele apanhou muito! E a gente no tinha muito o que fazer. Ento a gente recorreu a um advogado da poca que era alinhado com o nosso grupo, que era o doutor J.C., que procurou aliviar, e tal... E

    19 Entrevista concedida ao autor a 20 de set. de 2009.

  • 27

    ele acabou sendo solto, porque no representava assim um perigo... Ele era um estudante, n? Que presidia a associao dos estudantes, mas no tinha nenhuma conotao maior que representasse um perigo a para os golpistas. Como eles estavam prendendo todo mundo, ento que dizer, ele foi.20

    Primeiramente, entende-se que havia uma iniciativa para organizao dos estudantes

    no municpio antes do golpe, e embora estivessem distantes do Centro do Rio e de Niteri,

    eles dispunham de um canal de contato com a Unio Nacional dos Estudantes que, juntamente

    com o investimento em formao por parte de alguns membros da associao criada em

    Nilpolis, fazia com que ficassem atualizados em relao ao debate das questes estudantis e

    de carter poltico mais amplo. Assim, a viso de uma localidade isolada, sem movimentao

    poltica dos jovens, deve ser compreendida como uma construo decorrente das relaes de

    poder que passaram a prevalecer aps o golpe.

    A perseguio sobre a associao com a mudana poltica se desenvolveu em etapas

    para promover um esvaziamento poltico da mesma. O ento deputado Jorge David aparece

    como o principal articulador da presso contra a organizao estudantil, e teria sido hbil ao

    adotar primeiramente uma estratgia de cooptao de uma liderana dos estudantes afinada

    como seu perfil poltico. A proposta para que a associao assumisse um carter esportivo e

    cultural mostrava, para o entrevistado, a inteno de enquadrar a militncia dos estudantes. E

    esse novo papel atribudo associao era bem condizente com as atividades a que o

    deputado estava ligado, pois teve todo um envolvimento com associaes esportivas na sua

    juventude, tanto que chegou a ter um programa transmitido por alto-falante chamado

    Nilpolis Esportivo entre os anos 1942 e 1952, foi fundador do time de futebol de vrzea

    Central de Nilpolis, mdico do Esporte Clube de Nova Cidade e da Seleo de Nilpolis,

    chegando mesmo a ser mdico do time de corao do falecido contraventor Castor de

    Andrade, o Bangu Atltico Clube, que foi campeo carioca de 196621.

    O relato ressalta diferenas de posicionamento entre os membros da associao, e

    isto teria sido explorado na interveno articulada pelo deputado, certamente na tentativa de

    dar algum tipo legitimidade a sua ao. Contudo, diante da resistncia dos estudantes

    contrrios interveno, partiu-se para a presso violenta que resultou no fechamento da

    associao. E mesmo que o antigo presidente tenha sido liberado aps ter sido preso e vtima

    de agresses fsicas, sua punio certamente passou a ser concebida como exemplo do que

    20 Entrevista concedida ao autor a 16 de set. 2009. 21 Informaes sobre Jorge David foram obtidas em Freitas, Valter. Famlias ilustres nilopolitanas. s.d. 2000.

  • 28

    poderia acontecer com outros tipos de insubordinao aos colaboradores do regime militar na

    localidade.

    O fato de Nilpolis ter sido sempre um municpio de menor expresso em relao ao

    de Nova Iguau fez com que muitos professores da regio atuantes no hoje chamado ensino

    mdio procurassem trilhar suas carreiras em escolas iguauanas. Segundo informaes que

    me foram passadas por Machado, depois que realizamos sua entrevista, houve um grupo de

    professores de Nilpolis que tinha muitas afinidades profissionais e polticas entre si e deste

    grupo fizeram parte Simo Sessim, que foi diretor do Colgio Estadual Aydano de Almeida,

    em Nilpolis, Armando Arosa, um dos antigos proprietrios do Colgio Olindense, localizado

    no bairro de Olinda, tambm em Nilpolis, e o professor Ruy Queiroz, cuja famlia era dona

    do Colgio Anacleto de Queiroz, como foi dito anteriormente. Machado conta que Rui

    Queiroz foi o primeiro do grupo a ingressar como professor no Instituto Rangel Pestana, em

    Nova Iguau, importante centro de formao de professores que hoje funciona ao lado da sede

    da Coordenadoria da Secretaria de Educao do Estado responsvel pela maior parte dos

    municpios da Baixada.

    Filiado UDN entre 1962 e 1965, logo que passou a vigorar o bipartidarismo Simo

    Sessim se tornou membro do partido da situao.22 Fazendo uma suposio sobre sua

    projeo profissional, bastante provvel que o fato de seu irmo Jorge David ter sido j

    naquela poca deputado pelo antigo estado do Rio tenha influenciado para que assumisse

    entre 1964 e 1969 a direo do Instituto de Educao Rangel Pestana. Sabemos que para se

    assumir a direo de escolas estaduais geralmente se faz necessrio algum tipo de mediao

    poltica, e naquele momento ainda no havia acontecido a fuso dos dois estados, o que

    deixava o deputado Jorge David com um poder de interferncia ainda maior nos assuntos da

    Baixada.

    Em 1969, Simo assumiu a Secretaria Municipal de Educao de Nova Iguau onde

    ficou at 1970, deixando o cargo para subir posio de Chefe do Gabinete Municipal de

    Nova Iguau. Foi justamente nesse perodo que esteve frente do governo municipal, como

    interventor, o professor Rui Queiroz, com quem Simo tinha amizade alm de afinidades

    profissionais e polticas. Desse modo, podemos compreender a fala de Machado quando diz

    que saram vrios interventores de Nilpolis. Alm dos dois que tiveram passagem pelo

    22 PORTAL DA CMARA DOS DEPUTADOS. Simo Sessim PP / RJ. (biografia, mandatos eletivos, filiaes partidrias, atividades partidrias, atividades profissionais e cargos pblicos, estudos e graus universitrios, atividades parlamentares, condecoraes, obras publicadas, misses oficiais. Documento produzido em 17/11/2009. Disponvel em: http://www.camara.gov.br. Acesso em: 15 de junho de 2010.

  • 29

    governo deste municpio23, o nilopolitano Ruy Queiroz, afinado com autoridades militares,

    teve grande projeo poltica em Nova Iguau.

    E como veremos no terceiro captulo, em consideraes especficas sobre a atividade

    de Simo Sessim como parlamentar, por conta de todo esse passado profissional ele criou uma

    forte ligao com questes ligadas rea de educao. Professores da rede estadual em

    Nilpolis comentam que, h um certo tempo, era comum que profissionais de educao

    buscassem apoio do deputado para agilizar transferncias de unidades escolares e obteno de

    licenas, ou ento apoio na indicao para cargos de direo nas escolas.

    Um episdio da poltica nilopolitana em 1970 pode ser tomado como marco da

    conjuno de interesses entre o ramo dos Sessim e o ramo dos Abrao. Trata-se do processo

    de impeachment do prefeito Joo Cardoso, poltico muito influente na localidade e que havia

    sido eleito para o cargo pela terceira vez em 1967. Naquele momento, dois representantes das

    famlias exerciam mandatos polticos pela Arena: Jorge David, no legislativo estadual; e

    Miguel Abrao, o irmo mais velho de Ansio Abrao, no legislativo municipal. Uma das

    fontes indicadas no trabalho de Alves24, o jornal Correio da manh de abril de 1970, traz uma

    reportagem sobre o afastamento de Joo Cardoso. O fato se deu mediante votao da Cmara

    Municipal de Nilpolis, sustentado pela acusao de que o prefeito estaria praticando atos

    lesivos ao errio da municipalidade. O trecho da reportagem diz:

    Por 14 votos contra trs, a Cmara de Vereadores de Nilpolis decidiu, na madrugada de ontem, pelo impeachment do prefeito Joo Cardoso, acusado pelo promotor da Comarca, Sr. Hugo Gonalves Roma, de praticar atos lesivos ao errio da municipalidade. (...) A denncia est fundamentada no excesso de funcionrios que recebiam sem trabalhar e aponta o filho do prefeito, Roberto de Morais Cardoso, como um funcionrio que acumulava cargos na secretaria de finanas no gabinete do prprio prefeito e na superintendncia de servios externos da prefeitura. Do documento consta ainda que ele, usando material da municipalidade e mo-de-obra de servidores, construiu um prdio na Rua Lcio Tavares. O ex-funcionrio Ansio David Abrao, irmo do 1 Secretrio da Cmara, Miguel Abrao, e primo do deputado Jorge David, presidente do Diretrio da Arena local, declarou, no depoimento, que sempre recebeu da prefeitura sem trabalhar, fato que tambm ocorria com cem outros servidores. J o vereador Antonio Porto, compadre do prefeito renunciou comisso especial para a qual foi indicado, alegando que muita gente recebeu dois pagamentos inclusive o chefe da diviso administrativa, arrolado como testemunha no processo, tambm deveria ser punido. 25

    23 Cf. Anexo 4 (pg. 241). 24 Op. cit., p. 104. 25 NILPOLIS afasta prefeito Cardoso. Correio da Manh, Rio de Janeiro, 6 fev. 1970. p. 10.

  • 30

    A informao de que a votao pelo afastamento do prefeito tenha acontecido na

    madrugada nos leva a crer na existncia de uma ao conspiratria. Mas pela indicao de

    que a denncia foi encaminhada atravs de um agente da Justia envolvendo testemunhas e o

    apoio de polticos que assegura a existncia de uma ao bem articulada. No cabe aqui nos

    preocuparmos com a comprovao das denncias, mas apenas assinalarmos que os indcios de

    desvio de dinheiro pblico, emprego de parentes como funcionrios fantasmas e o uso de

    bens pblicos em funo de interesses particulares eram prticas que s aconteciam mediante

    o controle das principais fontes de recursos na esfera municipal. Da o empenho dos Sessim

    em conjunto com os Abrao para afastarem do cenrio poltico concorrentes que no haviam

    sido retirados pela interferncia militar.

    E pode parecer estranha a meno declarao de Ansio sobre o fato de ele mesmo

    ter admitido receber salrios sem trabalhar quando estava empregado na Prefeitura. No

    entanto, sua motivao em depor contra o prefeito assumindo participao no esquema pode

    ser pensada a partir de um simples descontentamento em razo de uma possvel demisso, ou

    ento, das garantias oferecidas pelos polticos da famlia em vista dos riscos que correria ao

    confirmar uma das acusaes contra Joo Cardoso. Acredito que esta segunda opinio, sem

    descarte da primeira, tenha sido o verdadeiro motor em virtude da conjuno de interesses

    entre os Sessim e os Abrao. A fala atribuda a um dos aliados do prefeito aponta para o

    envolvimento de uma outra testemunha que teria sido beneficiria do esquema. Certamente,

    esta talvez estivesse ao lado do grupo emergente, que, logo depois do fato, passaria a contar

    com aliados frente do principal cargo do executivo, como foi o caso do emedebista Gilberto

    Rodrigues suas relaes pessoais com o poder familiar se sobrepuseram questo partidria

    e o interventor estadual Reinaldo Doyle Maia. Tanto foi assim que o professor e advogado

    Simo Sessim veio a ser Procurador-Geral de Nilpolis exatamente nesse momento, entre

    1971 e 1972, como informa seu perfil no Portal da Cmara dos Deputados.26 Ele se afastou do

    cargo provavelmente para lanar sua candidatura a Prefeito nas eleies de 1972.

    At aqui, destacou-se basicamente a projeo de um dos ramos do poder familiar em

    Nilpolis, e asseguramos que isto aconteceu sem envolvimento direto dos Sessim com a

    explorao de atividades relacionadas ao jogo do bicho. Foram membros dos Abrao que

    despontaram nesse ramo de negcios ilcitos. Notamos referncias a Ansio nas fontes citadas

    que o colocam inicialmente num plano secundrio em relao s decises do crculo do poder

    familiar. Convm, portanto, discutirmos sua ascenso nos negcios do jogo do bicho,

    26 Op. cit.

  • 31

    destacando a relao disso com os desdobramentos da interferncia militar, e sua projeo no

    seio do prprio poder familiar.

    2. Os negcios do jogo do bicho em Nilpolis antes e depois do golpe de 1964

    A explorao de jogos como negcio tem um longo histrico no Rio de Janeiro e,

    certamente, o jogo do bicho foi uma das modalidades que teve maior destaque ao longo do

    sculo XX. A proibio das operaes das atividades desse jogo data de 1946, e a partir disso

    tem incio o processo de organizao do jogo na ilegalidade.27

    Existem autores que defendem a associao da difuso do jogo pelo subrbio e pela

    Baixada Fluminense com a expanso urbana dessas regies28. Nosso estudo no prope uma

    investigao histrica acerca da operao do jogo do bicho em toda Baixada, e desse modo, a

    busca de informaes se restringiu situao do jogo em Nilpolis.

    As informaes relativas a esse tema especfico que foram obtidas no mbito da

    pesquisa provm em boa parte de circuitos que preservam uma memria subterrnea acerca

    do envolvimento de membros da famlia Abrao David com o jogo do bicho. Alguns dados

    foram revelados publicamente em decorrncia de situaes de instabilidade no seio do poder

    familiar, como o famoso caso Misaque-Jatob, em 1981, e o assassinato da ex-esposa de

    Ansio Abrao, Eliane Mller, ocorrido em 1991.

    Nas consideraes de Michael Pollak, a noo de memria subterrnea aparece

    investida de um carter no oficial, como algo que se mantm ao longo do tempo

    preservando-se em estruturas informais, podendo aflorar em circunstncias especiais, como

    momentos de instabilidade interna no grupo, e especialmente se a partir disso ocorre

    reestruturao das relaes de poder acarretando uma reconstruo da memria dominante.29

    A maior parte da documentao utilizada na pesquisa foi produzida atravs de

    entrevistas realizadas segundo a metodologia da histria oral, porm, especificamente sobre o

    funcionamento da organizao do jogo do bicho chefiada por Ansio Abrao, os portadores de

    tal memria subterrnea s passaram a fornecer algumas das informaes que dispunham na

    27 Entre os estudos especficos existentes sobre o jogo do bicho, foram consultados para a realizao deste trabalho: Da Matta, Roberto e Sorez, Helena. guias, burros e borboletas um estudo antropolgico sobre o jogo do bicho. Rio de Janeiro: Rocco, 2006 e Magalhes, Felipe Santos. Ganhou leva... Do vale o impresso ao vale o escrito. Uma histria social do jogo do bicho no Rio de Janeiro (1890 1960). Tese (Doutorado em Histria Social) Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2005. 28 Queiroz, Maria I. Pereira de. Carnaval brasileiro: o vivido e o mito. So Paulo: Brasiliense, 1992. p. 97. 29 Op. cit. In: Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n 3, 1989: 3-15. p. 8.

  • 32

    medida em que se sentiram em condies de depositar um certo grau de confiana no

    pesquisador, e mesmo assim, muitos dos relatos sobre o domnio da contraveno

    aconteceram fundamentalmente por meio de conversas informais.

    Portanto, o que consegui obter atravs de entrevistas e conversas informais com

    antigos moradores do municpio aponta para uma pulverizao do capital do jogo do bicho at

    fins dos anos 60. Esses moradores ainda recordam os nomes de agentes de pequeno porte que

    administravam seus prprios negcios e, por essa razo, eram considerados banqueiros.

    Especula-se que o mais bem sucedido fosse o contraventor Faraco, que tambm atuava no

    ramo das loterias regulamentadas e nas corridas de cavalo. Alm dele, despontava um

    banqueiro de origem italiana, chamado seu ngelo, cujo empreendimento teria sido a porta

    de entrada para Ansio no jogo do bicho. Haveria outras figuras, sobre as quais no obtive

    maiores informaes alm das alcunhas: Sapurito, Chico Manteiga e Walter Gordo. Todos

    administravam seus prprios negcios, e segundo contam, no eram vistos com frequncia

    andando pelas ruas do municpio, at residiriam fora.

    Em geral, a explorao do jogo do bicho era conjugada com atividades legais, como

    era o caso de Faraco, dono de uma loja de loteria. ngelo era dono de alguns imveis. Havia

    os donos de uma barbearia do lado da cidade para a praa Paulo de Frontin que tambm

    lidavam com banca de jogo do bicho. Os contraventores possuam pontos de apostas no

    municpio sem que tivessem reas rigorosamente definidas, e atuavam dentro de um relativo

    clima de estabilidade, embora mantivessem firme a concorrncia entre si. Existiria uma

    preocupao entre esses banqueiros quanto a novatos que tentavam fazer a abertura de pontos

    de apostas. Nesse quadro de concorrncia, atravs do pagamento de suborno a prpria polcia

    seria um recurso no combate a competidores, como recorda o morador Pedro:

    Era comum em algumas ocasies a polcia fechar um ponto de bicho que pertencia a um banqueiro determinado, e no agia nos outros pontos. Quer dizer, s pegava aquele ponto. Ento se supem que um outro estivesse bancando a polcia pra ir contra o adversrio, n? No concorrente, digamos assim. No havia uma irmandade: Ah! Ns todos bancamos e tal. No era uma situao de equilbrio. E havia tambm novas pessoas querendo bancar, querendo montar ponto. Isso era comum. Normalmente, a polcia agia em cima deles, prendia, batia... Isso tudo mesmo antes de 64.

    A diviso das bancas se refletia na operao do jogo do bicho. Assim como

    acontecia na cidade do Rio, as apostas podiam ser feitas sob cotaes diferentes de acordo

  • 33

    com o valor pago pelo banqueiro dono do ponto. Tambm era comum a prtica da descarga,

    que colocava pequenos banqueiros na dependncia de outros mais poderosos.30

    A projeo de Ansio Abrao marca um novo perodo na organizao do jogo do bicho

    no s em Nilpolis, mas em toda Baixada Fluminense. Ansio, como ficou popularmente

    conhecido antes de sua entrada na contraveno, era filho de comerciantes libaneses

    estabelecidos no ramo de armarinhos e aviamentos e tinha forte ligao com moradores da

    localidade onde se criou. Uma pessoa familiarizada com sua histria conta que o pai de

    Ansio teria dvidas em relao ao futuro do filho o morador quis insinuar que Ansio

    manifestasse em sua juventude tendncia para envolvimento com atividades ilegais. Em

    relao formao escolar, sabe-se que Ansio no tem nvel superior. Um de seus primeiros

    trabalhos foi como cobrador de aluguis de um proprietrio de Nilpolis.

    O incio da carreira de Ansio no jogo do bicho lembrado em certas verses acerca

    de sua histria de vida com referncias a uma passagem prvia pelo trfico de drogas. A ttulo

    de exemplo, podemos recuperar um trecho da carta-denncia que foi publicada logo depois do

    assassinato de sua ex-esposa, em 1991, em que ela faz afirmaes nesse sentido:

    1963. Eu tinha 16 anos. Cheguei cidade de Nilpolis comeando uma vida conjugal com Aniz Abraho David. ramos humildes. Anzio, como chamado por todos, no vivia uma vida muito tranquila nem tampouco to honrosa como ele prprio diz: Vendi muita bala no trem. Passei muita fome! Nunca fui um traficante! Nunca usei qualquer tipo de txico! Nunca matei ningum! Com 16 anos, endolei muita maconha para que ele e eu tivssemos uma sobrevivncia e vendamos. Todos na Rua Odete Braga, em Nilpolis, sabem do nosso passado. O falecido Joo Coelho, grande matador da cidade, sempre quis e fazia de tudo para por um fim a Anzio. Naquela poca e como sempre, a poltica imperava e comandava, e Anzio tinha grandes garantias, como eu tambm. Dois anos, ficamos nesta vida. Foi a que tivemos que sair de Nilpolis, indo para Piedade, morando em casa de um motorista chamado Gaguinho. Ficamos l morando na Rua Ana Quinto. Logo em seguida, Anzio ficou trabalhando como guarda-costas da banca de bicho de Sapurito, Outro [?] e Seu ngelo, que mais tarde veio a casar com uma irm de criao de Anzio (Din). Seu ngelo era um dos capitalistas da banca. Foi ento que um dia Anzio tomou no peito a frente do jogo do bicho. Trabalhei muito, todo tempo ao lado dele. Nunca abri minha boca para falar o que sabia, pois as verdades dele no passavam de mentiras. Apesar das mentiras me beneficiarem tambm, nunca aprovei certos tipos de coisas que faziam e minha vida foi melhorando. [...]31

    30 A prtica da descarga era uma espcie de seguro oferecido por banqueiros mais ricos para que os menores tivessem como honrar o pagamento de uma premiao extraordinria. Para tanto, havia algum acordo financeiro entre os contraventores estabelecendo que o menos poderoso transferisse um determinado percentual de seu faturamento. Para consideraes mais completas sobre o mecanismo da descarga nas organizaes do jogo do bicho, cf. Magalhes, op. cit., p. 166. 31 CASO MISAQUE-JATOB ser reaberto. O Dia, Rio de Janeiro, 14 ago. 1991. As linhas de investigao sobre o crime foram em vrias direes na poca: intrigas de Eliane com os dois lados de sua famlia, envolvimento com o jogo do bicho e o trfico de drogas e at divergncias polticas locais. Tanto Ansio Abrao quanto o pai de Eliane, o senhor Dauro Mller, um dos chefes da apurao do contraventor, segundo o jornal da poca, no tiveram qualquer relao comprovada com as mortes. O comentrio que ainda existe em Nilpolis

  • 34

    O tom de acusao se fundamenta no fato do trfico de drogas no ser uma atividade

    ilegal respeitvel como o jogo do bicho. poca da reportagem, houve a confirmao da

    autoria da carta, que passou inclusive por percia grafotcnica. Em conversas informais com

    moradores de Nilpolis familiarizados com a histria, pude confirmar tais informaes, e

    assim compreender que a participao de Ansio em tal ramo de atividades ilegais foi

    importante para sua aproximao com operaes do jogo do bicho.

    Certamente, a atuao na organizao de um dos antigos banqueiros de Nilpolis fez

    com que Ansio tivesse a clara percepo do potencial do jogo do bicho como negcio, e isto

    sem falar na experincia quanto ao modo de operao especfica de tal atividade: na gesto de

    recursos financeiros, na obteno da proteo policial e coordenao de pessoal.

    Contudo, Ansio era apenas mais um funcionrio da banca. Um conhecido meu

    recorda que o viu muitas vezes transitando por ruas da cidade, ainda no barro, com uma

    bicicleta que utilizava para recolher dinheiro de apostas nos pontos. Isto deve ter sido

    provavelmente na fase em que trabalhava como empregado do antigo banqueiro italiano.

    No dispomos de informaes exatas acerca do que teria sinalizado para o bicheiro

    que ele poderia tomando no peito, ou seja, usando da violncia, se apossar do negcio do

    patro. Pelo que foi colocado anteriormente, seria muito difcil um agente trilhar uma

    carreira de sucesso comeando por baixo, e abrindo pontos a seu bel prazer. Tanto era assim

    que, segundo um morador de Nilpolis, o feito de Ansio teria causado surpresa nas pessoas

    familiarizadas com as operaes do jogo do bicho. Numa conversa informal que tivemos em

    Nilpolis no ano de 2005, esse morador me falou:

    Na famlia do Ansio, a primeira pessoa que despontou com sucesso financeiro foi seu irmo Jacob Gorila, e sem nenhuma ligao com a contraveno, pois a carreira como policial federal lhe proporcionou tal enriquecimento... Na verdade, Ansio era um z-ningum, no tinha recursos suficientes para financiar negcio de bicho. O controle do jogo aqui na regio era dividido entre banqueiros que possuam uma lgica de compra para passagem de pontos. Eu fiquei sabendo que o Ansio tinha virado banqueiro atravs de um apontador do centro do Rio. Isso tudo para minha enorme surpresa, porque mesmo morando fora de Nilpolis naquele momento, sabia que Ansio no tinha posses suficientes para comprar uma parte do jogo.

    que Eliane Mller, aps sua separao com Ansio, passou a falar mais do que devia, tanto que, j preocupada com seu possvel assassinato, empenhou-se em redigir de prprio punho uma carta-denncia em que cita inmeras pessoas, mas em especial seu ex-marido, seu pai e seu irmo. O texto transcrito da carta foi publicado em vrios jornais, tornando-se uma fonte importante para esta pesquisa principalmente porque foi tomada como elemento para a reabertura, dez anos depois, do famoso caso Misaque-Jatob, do qual vamos falar mais a frente.

  • 35

    A fala sugere, na verdade, que a implementao de um projeto pessoal de ascenso no

    ramo do jogo do bicho exigia muito do recurso violncia. No entanto, em se tratando de um

    negcio, no se deve perder de vista a exigncia de capacidade de negociao baseada em

    cdigos especficos de tal atividade, alm de senso de oportunidade. Na entrevista de Pedro,

    ele conta as experincias de dois senhores que eram irmos, com quem tinha uma relao

    prxima, e que foram agentes da contraveno no municpio:

    Esses irmos trabalharam no bicho aqui, um deles era dono do ponto e bancava o prprio jogo descarregando para o Ansio, desde que ele passou a ter as bancas todas. Mas o outro irmo, que era mais novo, trabalhou por um bom tempo com banqueiros l de baixo [cidade do Rio], sempre como gerente de pontos, e depois veio a ser gerente aqui na banca do Ansio, talvez num dos principais pontos de Nilpolis, que era um ponto em que havia um volume de apostas muito grande, empregava vrios apontadores de bicho, e ento ele gerenciava aquilo. Esse mais novo trabalhou muito com o Nelsinho, irmo do Ansio, e Nelsinho gostava muito dele, foi quem o colocou como gerente naquele ponto ali... Agora, quanto ao mais velho, eu no posso precisar, mas ele assumiu o ponto de jogo j no final de 63 para o incio de 64. Ento, quer dizer, quando acontece o golpe, ele continua com aquele ponto dele. Ele chegou a emprestar dinheiro ao Ansio na poca. O Ansio foi pedir a ele uma certa quantia, um volume grande, e digamos assim, ele emprestou prontamente. Da que o Ansio, a partir do momento que tomou as bancas, embora no querendo que ningum mais bancasse jogo no municpio, tinha uma certa tolerncia com esse senhor, de saber que ele bancava o prprio ponto, e no interferia. Interessante que um dos irmos do Ansio, o Jacob Gorila, manifestava vrias vezes inteno de tomar o ponto do cara, s que isso no se concretizava por duas razes: primeiro, porque o Ansio no demonstrava interesse nisso, n? E segundo, o irmo mais novo que tambm atuava no jogo se dava muito com o Nelsinho, e sempre que pintava o clima de ameaava, esse mais novo intercedia: No deixa! meu irmo, e tal. Ento, o mais velho bancou o jogo dele at o final. O que ele no conseguia - e a sim vamos dizer que o Ansio seria contra, e talvez tenha influenciado muito -, e tentou algumas vezes, foi colocar novos pontos. Tinha uma pessoa trabalhando para ele quando tentou colocar trs pontos num bairro de Nilpolis, coisa e tal, mas a polcia jogou pesado! Essa presso era sempre a polcia que fazia.

    A organizao do jogo do bicho em bases familiares foi um fator central para o

    fortalecimento dos negcios chefiados por Ansio. A partir das consideraes de Marcos

    Alvito sobre o modo de operao das quadrilhas de traficantes cariocas, temos uma boa

    referncia para pensar a organizao do jogo do bicho na ilegalidade levando em conta a

    necessidade dos contraventores lanarem mo de estratgias especficas para o cumprimento

    de suas funes organizacionais bsicas, como a comunicao, a tomada de decises, o

    reconhecimento de autoridade e a escolha de lideranas. A impossibilidade de vincular os

    membros da organizao por meio de relaes contratuais formais, assim como estabelecer a

    hierarquia em estatutos legais, torna o parentesco direto uma via importantssima para a

    transmisso de poder, sendo complementado pelo parentesco indireto, por sua vez, baseado

  • 36

    em relaes de afinidade que tambm passam a fundamentar uma srie de laos para a

    expanso de negcios ilcitos.32

    Alguns dos entrevistados chegam a mencionar que os irmos mais velhos, Jacob e

    Miguel, recebiam rendimentos de uma certa quantidade de pontos. Entretanto, s dispomos de

    indcios acerca do envolvimento indireto do primeiro com o jogo do bicho. E atravs da

    imprensa, temos informaes consistentes sobre a participao de parentes diretos tanto da ex-

    esposa de Ansio quanto da atual nos negcios ilcitos do contraventor33. No entanto, o brao

    direito de Ansio foi realmente seu irmo Nlson Abrao, pois com ele estabeleceu uma

    espcie de sociedade para explorao dos negcios do jogo do bicho em Nilpolis, e a

    parceria que resultou no controle da diretoria da Escola de Samba Beija-Flor.

    So obscuras as informaes sobre o trfico de drogas em Nilpolis a partir do

    momento em que os Abrao tomaram o controle do jogo do bicho em Nilpolis. Sem dvida,

    este ramo teve crescimento ao longo dos anos, e por mais que se supunha algum tipo de

    autorizao por parte do chefe do jogo do bicho para a realizao do comrcio das drogas em

    seu territrio, as informaes disponveis indicam que os contraventores procuraram se

    manter afastados da explorao de tal atividade, considerada no respeitvel.

    Existe um ponto em comum na viso dos entrevistados a respeito do que teria sido o

    fator primordial para a ascenso de Ansio como grande banqueiro na Baixada Fluminense.

    Trata-se da idia de que a concentrao dos pontos em suas mos e a verticalizao da

    organizao que passou a chefiar teve relao direta com os desdobramentos da interferncia

    militar que se acentuou na regio entre 1968 e 1972. Miranda, sendo um morador

    familiarizado com a carreira do contraventor, coloca o seguinte:

    Quando comearam a prender os bicheiros, muitos foram abandonando, e a o Ansio foi segurando tudo. Segurou o jogo todo e foi expandindo as bancas. O governo militar prendeu os bicheiros todos na Ilha Grande, e esses daqui ficaram com medo, se afastaram e deixaram de criar o jogo. A ele veio e meteu! Tomou conta de tudo. [...] Houve uma cobertura poltica, o negcio cresceu por causa disso. E ele muito inteligente, o Ansio, uma pessoa muito inteligente. E que tambm tem peito pra encarar as coisas, porque para entrar num troo desse, duro como ele era na poca... Pra segurar uma banca de bicho duro, o cara tem que ter peito! E credibilidade de apanhar um emprstimo aqui outro ali... Foi mais ou menos entre 68 e 70 que as bancas foram tomadas, mais ou menos por a. E com a ascenso poltica do Simo e do Jorge David, que eram l do partido do governo, aumentou a credibilidade desses caras junto aos rgos de governo.

    32 Alvito, Marcos. As cores de Acari Uma favela carioca. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001. p. 181. 33 Para o caso dos parentes de Eliane Mller, fao novamente referncia a CASO MISAQUE-JATOB ser reaberto. O Dia, Rio de Janeiro, 14 ago. 1991. Em relao participao do irmo de Fabola David, atual esposa de Ansio Abrao, na mfia dos caa-nqueis, isto foi noticiado em OTVIO, Chico. ENREDO de jogo e poltica. O Globo, Rio de Janeiro, 5 abr. 2010, O pas, p.3.

  • 37

    O dado acerca da priso dos bicheiros, em dezembro de 1968, est confirmado em

    Gspari como ao decorrente da decretao do AI-5.34 E essa medida especfica talvez possa

    ser explicada em funo de uma certa postura moralizante defendida pelas lideranas da

    corrente militar que se tornava hegemnica a partir de ento no comando do regime.

    H controvrsias quanto priso de Ansio junto com os demais banqueiros do Rio

    de Janeiro no presdio da Ilha Grande no final daquele ano. Alguns dos antigos moradores que

    acompanharam a evoluo do jogo do bicho em Nilpolis no confirmam o fato, como se

    verifica no relato transcrito acima. No entanto, existe a verso daqueles que dizem ter sido o

    contraventor um dos detidos da poca, mas que teria sido liberado pouco tempo depois atravs

    de contatos da famlia com autoridades militares.35

    Contudo, parece seguro afirmar que o medo que se abateu sobre os antigos

    banqueiros de bicho atuantes em Nilpolis depois da ao repressiva de 68 tenha consistido

    numa preocupao efetiva, a partir dali, quanto necessidade de recomposio de conexes

    com polticos e autoridades policiais que assegurassem a proteo policial de seus agentes.

    Pedro, um dos colaboradores da pesquisa, apresentou uma reflexo bastante

    interessante nesse sentido falando das provveis expectativas entre os agentes da

    contraveno quanto continuao de seus negcios logo assim que houve o golpe de 64. Ele

    colocava que alguns dos antigos banqueiros de bicho provavelmente tivessem o mesmo

    pensamento de parte significativa da sociedade brasileira que acreditava numa passagem

    rpida dos militares pelo poder, e assim, teriam d