a falÁcia na ponta do nariz

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A FALÁCIA NA PONTA DO NARIZ – A SÍNDROME DE PINÓQUIO E A ARTE DE EPONOMINAR ERRONEAMENTE NO MUNDO DERMATOLÓGICO A Dermatologia apresenta características que a destacam das demais especialidades, especialmente na generosidade em números de epônimos e na freqüência da homenagem estar erroneamente associada. Outro aspecto pouco comum é o uso da expressão misnomer, significando uma palavra que expressa uma falsa impressão. Misnomers e epônimos formam uma liga forte e indissociável, a ponto de serem entendidas como fato consumado. Adenoma sebáceo de Pringle é a falácia no nariz do Pinóquio. Apesar da impressão clínica lembrar uma lesão das glândulas sebáceas, como imaginado por John James Pringle (1885-1922), num artigo nos primórdios do British Journal of Dermatology (1890), a lesão atualmente é denominada angiofibroma, especialmente na forma múltipla associada à esclerose tuberosa, ou ocorrendo de maneira solitária, onde é denominada de pápula fibrosa nasal, apesar de nem sempre ser no nariz. Angiofibroma é uma outra escolha infeliz, pois a lesão não tem relação direta com os vasos, mas sim com a papila mesenquimal do folículo piloso. Ou seja, angiofibromas são parentes muito próximos dos dermatofibromas. No reino das lesões sebáceas, também grassa a confusão – hiperplasias são provavelmente adenomas, adenomas e sebaceomas provavelmente são carcinomas, porém carcinomas sebáceos realmente são carcinomas. No caso dos epônimos, a confusão é tão freqüente que se tornou aceitável. O mais famoso equívoco é o microabscesso de Pautrier, que não aparece em nenhuma linha dos trabalhos de Lucien Marier Pautrier de 1920 a 1959, ano de sua morte. O termo foi erroneamente citado pelos americanos, pois o trabalho foi de Jean Darier, 30 anos antes de Pautrier. Como citado anteriormente, exemplos abundam. O sinal de Auspitz foi descrito por Hebra em 1832; no texto de Auspitz está citada a paternidade correta. Outros misnomers e “mis-eponizações” célebres incluem acantose nigricante (não tem acantose), amiloidose (beta-fibrilose), carcinoma basocelular (carcinoma tricoblástico), granuloma piogênico (hemangioma lobular adquirido), granuloma letal da linha média (linfoma de células T), granuloma facial (dermatose neutrofílica), paniculite de Weber- Christian (lúpus profundo ou linfoma), síndrome de Lyell (eritema multiforme ou síndrome de pele escaldada estafilocócica). Na biologia, uma das regras é manter o nome original, a despeito de parecer estranho na luz atual. A paleontologia tem um exemplo muito mais ruborogênico: a do basilossauro, um ancestral das baleias que ainda mantinha as quatro patas intactas. Traduzindo a palavra do grego, basilo é rei e sauro é lagarto. Esses termos refletem o pensamento da época, freqüentemente a visão científica do século XIX. Guardam um certo charme de aquilo que se tornou datado, rendendo conversas animadas com os dermatologistas mais novos e os estudantes de

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artigo publicado no jornal da SBD-RS em 2011

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Page 1: A FALÁCIA NA PONTA DO NARIZ

A FALÁCIA NA PONTA DO NARIZ – A SÍNDROME DE PINÓQUIO E A ARTE DE EPONOMINAR ERRONEAMENTE NO MUNDO DERMATOLÓGICO

A Dermatologia apresenta características que a destacam das demais especialidades, especialmente na generosidade em números de epônimos e na freqüência da homenagem estar erroneamente associada. Outro aspecto pouco comum é o uso da expressão misnomer, significando uma palavra que expressa uma falsa impressão. Misnomers e epônimos formam uma liga forte e indissociável, a ponto de serem entendidas como fato consumado. Adenoma sebáceo de Pringle é a falácia no nariz do Pinóquio. Apesar da impressão clínica lembrar uma lesão das glândulas sebáceas, como imaginado por John James Pringle (1885-1922), num artigo nos primórdios do British Journal of Dermatology (1890), a lesão atualmente é denominada angiofibroma, especialmente na forma múltipla associada à esclerose tuberosa, ou ocorrendo de maneira solitária, onde é denominada de pápula fibrosa nasal, apesar de nem sempre ser no nariz. Angiofibroma é uma outra escolha infeliz, pois a lesão não tem relação direta com os vasos, mas sim com a papila mesenquimal do folículo piloso. Ou seja, angiofibromas são parentes muito próximos dos dermatofibromas. No reino das lesões sebáceas, também grassa a confusão – hiperplasias são provavelmente adenomas, adenomas e sebaceomas provavelmente são carcinomas, porém carcinomas sebáceos realmente são carcinomas. No caso dos epônimos, a confusão é tão freqüente que se tornou aceitável. O mais famoso equívoco é o microabscesso de Pautrier, que não aparece em nenhuma linha dos trabalhos de Lucien Marier Pautrier de 1920 a 1959, ano de sua morte. O termo foi erroneamente citado pelos americanos, pois o trabalho foi de Jean Darier, 30 anos antes de Pautrier. Como citado anteriormente, exemplos abundam. O sinal de Auspitz foi descrito por Hebra em 1832; no texto de Auspitz está citada a paternidade correta. Outros misnomers e “mis-eponizações” célebres incluem acantose nigricante (não tem acantose), amiloidose (beta-fibrilose), carcinoma basocelular (carcinoma tricoblástico), granuloma piogênico (hemangioma lobular adquirido), granuloma letal da linha média (linfoma de células T), granuloma facial (dermatose neutrofílica), paniculite de Weber-Christian (lúpus profundo ou linfoma), síndrome de Lyell (eritema multiforme ou síndrome de pele escaldada estafilocócica). Na biologia, uma das regras é manter o nome original, a despeito de parecer estranho na luz atual. A paleontologia tem um exemplo muito mais ruborogênico: a do basilossauro, um ancestral das baleias que ainda mantinha as quatro patas intactas. Traduzindo a palavra do grego, basilo é rei e sauro é lagarto. Esses termos refletem o pensamento da época, freqüentemente a visão científica do século XIX. Guardam um certo charme de aquilo que se tornou datado, rendendo conversas animadas com os dermatologistas mais novos e os estudantes de medicina. Porém, eventualmente necessitam de correção. Os patologistas, obsessivos pela correção, insistem em pronunciar a coloração para pesquisa de micobactérias com a fonética germânica – coloração de Ziehl-Neelsen, assim, com dois “e” no segundo nome. Os americanos pronunciam Nielsen e freqüentemente grafam a versão nessa forma anglicanizada. Os cavalheiros chamavam-se Franz Ziehl (1857–1926) e Friedrich Karl Adolf Neelsen (1854–1894) e tiveram uma participação menor no desenvolvimento dessa coloração, quase tão obscura quanto suas biografias. Quem desenvolveu a coloração e criou a expressão BAAR foi Paul Erlich, certamente o maior gênio da dermatologia mundial. A história nem sempre é gentil com seus grandes personagens, freqüentemente preferindo a fábula enganosa dos pequenos pinóquios.

Page 2: A FALÁCIA NA PONTA DO NARIZ

Heinrich Auspitz: nasceu dia 01 de março de 1835 em Nikolsburg, hoje Mikulov, Moravia (CZ). Formou-se em medicina em 1858, estudando Dermatologia com Von Hebra em 1862 – faz parte da chamada geração de ouro de Viena: Moritz Kaposi, Isodor Neumann, Joseph Pick, Salomon Herxheimer e Hans Hebra. Em 1864 estuda Dermatopatologia com Carl Wedl (1815-1891). Em 1869 publica o Archiv für Dermatologie und Syphilis junto com Pick. Descreveu a acantólise, paraceratose, histopatologia da sífilis, lúpus, varíola e histologia normal da pele, desenvolve a metodologia da curetagem das lesões cutâneas (1876), descreve histologicamente o sinal de Auspitz (1875), clinicamente observado por Devergie (1860), Hebra (1845) e Wilan (1808). Em 1883 perde a chefia do departamento de Dermatologia para Kaposi. Em 22 de maio de 1886 morre de insuficiência cardíaca em Viena. É um dos fundadores da Dermatopatologia, precedendo o trabalho de Unna.