a faca não corta o fogo - cenas de escrita

8
HELDER, Herberto. “A faca não corta o fogo”. In: ______. Ofício cantante. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009. 1. pratica-te como contínua abertura, o mais atento que custe, com uma volta sobre ti mesma até eu aparecer no outro lado do rosto, quando te olhas, espera que desapareça o ruído em cada palavra, e agora só a ela se ouça, e então aumenta tanto quanto possas se escutas que me aproximo, a género de abrasadura mulheril, a cálculo lírico infundido nas lides de ar e fogo, edoi lelia doura, que o mênstruo coza e a seda escume, à luz que nasce da roupa, e os substantivos perfeitos respirem uns dos outros na têmpera e frescor da língua indestrutível, e então estendo por ti acima o melhor do meu braço, se é que posso fulgurar, e enquanto crio, cria-me, e cria-te como começo de mim mesmo, isto: que unas o avulso, se te puderes mover como o ar que respiro, ó irrepetível, inenarrável, inerente e tu viras vibrantemente a cabeça e entre a tua cabeça e a minha cabeça a luz é tratada segundo a maravilha (p. 537-538) 2. que fosses escrita com todas as linhas de todas as coisas numa frase de ensino e supremacia, pela quantidade de brancura fêmea, pelo enredo luminoso, com as linhas dos dias concêntricos rectos e curvos numa só linha respirada,

Upload: mariana

Post on 25-Sep-2015

61 views

Category:

Documents


14 download

DESCRIPTION

helder

TRANSCRIPT

HELDER, Herberto. A faca no corta o fogo. In: ______. Ofcio cantante. Lisboa: Assrio & Alvim, 2009.

1.pratica-te como contnua abertura,o mais atento que custe,com uma volta sobre ti mesma at eu aparecer no outro lado do rosto,quando te olhas,espera que desaparea o rudo em cada palavra,e agora s a ela se oua,e ento aumenta tanto quanto possas se escutasque me aproximo,a gnero de abrasadura mulheril,a clculo lrico infundido nas lides de ar e fogo,edoi lelia doura,que o mnstruo coza e a seda escume, luz que nasce da roupa,e os substantivos perfeitos respirem uns dos outros na tmperae frescor da lngua indestrutvel,e ento estendo por ti acima o melhor do meu brao,se que posso fulgurar,e enquanto crio, cria-me, e cria-te como comeo de mim mesmo,isto: que unas o avulso,se te puderes mover como o ar que respiro, irrepetvel, inenarrvel, inerentee tu viras vibrantemente a cabeae entre a tua cabea e a minha cabea a luz tratadasegundo a maravilha (p. 537-538)

2.que fosses escrita com todas as linhas de todas as coisas numa frase de ensino esupremacia, pelaquantidade de brancura fmea,pelo enredo luminoso,com as linhas dos dias concntricosrectos e curvos numa s linharespirada,unidamordidos por dentes caninos, que substantivos!assim me encontre eu perdido numa grande escrita,toca-se, e o fogo morde o cabelo,a luz movida levanta o corpo,a exasperada delicadeza com que se toca na obra-primade uma plpebra, de umaclavcula,e logo atrs a omoplata vergada pela crua labareda do plo jorrando da cabea!que implacvel poder o desta ordem das matrias,a ordem do acessvel,e o prodgio ohdo ar na luz revolvidos de um espao para outro,e de repente entende-seque um corpo s um corpo: prova do improvvel, ouimpossibilidade, ouesplendor, ouque alta tenso! e diz-se:toca-me, e toca-se, e os dedosdespedaam-se, e aquilo em que se toca alumia-seat ao intacto, o intocvel (p. 538-539)

3.que eu aprenda tudo desde a morte,mas no me chamem por um nome nem pelo uso das coisas,colher, roupa, caneta,roupa intensa com a respirao dentro dela,e a tua mo sangra na minha,brilha inteira se um pouco da minha mo sangra e brilha,no toque entre os olhos,na boca, na rescrita de cada coisa j escrita nas entrelinhas das coisas,fiat cantus! e faa-se o canto esdrxulo que regula a terra,o canto comum-de-dois,o inexaurvel,o quanto se trabalha para que a noite aparea,e noite se v a luz que desaparece na mesa,chama-me pelo teu nome, troca-me,toca-mena boca sem idioma,j te no chamaste nunca,j ests pronta,j s toda (p. 540)

4.cabelo cortado vivo,marga contra os dedos,umbigo,a plenos pulmes das formas, o mundo, como respira o mundo!runs por onde respira e brilha marga infusa: a matria que,arrancada, respira erespirando no ar ininterrupto dolorosamente brilha,no seu estado avulsobrilha, absoluta e o sangue urgente inundando a boca:to curta cano para tamanha vida:alos por onde o cho respira,e a mo que brilha quando os toca,to pouca mo em to nascida obra e anis de um corpo cortado vivono cabelo,na marga contra os dedos,no umbigo:na folha escura onde cada frase brilhaum relmpago apenas antes de ser escrita (p. 553-554)

5.perder o dom, mas quem o perde?com o peso do sangue nos dedos, os dedos no interruptor:que a luz se faa,que aparea imediata e toda,abruptssima,a flor com o seu feixe de artrias,a rosa irrefutvel (p. 555-556)

6.mas como: um pequeno poema com um relmpago ngreme e instantneo entre as linhas,pau puro, arbalanado, laranja,a mais limpa chama coada pela rvore,e a noite devora o mundo,e eu reluzo,as varas requeimadas contra as grandes fbricas da gua,at mesa onde escrevo? (p. 557-558)

7.o fogo arrebata-se do gs at cara, e lavra-a,algures algum canta,a ameaa do gs abraa a casa inteira,e eu ouo na cozinha a cano pura e precria,e debruo-me sobre a panela,que spro no caos da casa!e em baixo, tirada ao caos e safra do ouro, a operao miraculosa,e se decifro o alcance:sangue denso,densa lngua mestia em que tudo est escrito,e deito gro na panela: a luz que roda na mofaz reluzir o gro: e a ameaa do fogoabrasa a casa inteira,a ilumina-a toda:cantam:ser que o organizam, ao nome em exerccio, depressa,exaltante, de pessoa,para chamar como quem toca na cabea e se inclina entre cru e cozido?e talha uma ferida na tmpora esquerda,quando a pessoa est mais dentro de um lado e mais fora de outro,e legumes, sal, azeite, especiarias, ervas,suam,rebenta-lhes a flor na fervuraque de perfume,que de lume at ao fundo da boca!(mnimo, mortal, humlimo, malamado do mundo:aliteraes bilabiais nasais s vezes sonoras ou isso)e lmpicas ilcitas? libertam-se as vozes,e eu mexo com a colher de pauimemorialmenteo milagre cotidiano da transmutao dos corpos:porque glorioso trazer, de minas da terra, e deno sei que direitos e avssos,os elementos, e trabalh-los, e a poder deplantas e leos,atingir a unidade que algum atinge com o seu nome, oh quantasvozes,luz nas vozes,cantando!e se me sento mesa, e cmo, e crio o ritmo,a razo do ritmo,colher que descee ascendeentre as coisas geraise as inspiradas, hbeistcnicas do pormenor: uso dos utenslios, talento,pensamento, epifania:ferida que da tmpora traa o corpo todo: e de umlado e de outro, defronte,os objetos arcaicos entre dedos e dedos e labaredas:e to levssimo e arguto o canto ligado a ferver de msica ignota, e a obra de com-la,sopasuperlativa (p. 567-569)

8.isto que s vezes me confere o sagrado, quero eudizer: paixo: tirar,pr, mudar uma palavra, ou melhor: ficar certocom a vrgula no meio da luz,dividindo,erguendo-me do embrulho da carne obsessiva:que eu habite durante uma espcie de eternidadeo claro isto no o entendo, esta pancada desferidano mximo concreto: copo,cigarros,o livro, e do prprio meu: a ininterruptaamargura da memria, o to pouco dequente respirao istoeu no entendo que os dedos sejam arrancados com o copo, queno caderno a vrgulafundamentaltrave tudo para sempre e depois a obra das bruscasaberturas, a abertura de cada coisa, e cadaminha abertura na aberturado mundo istono o entendo fora e dentro, estavelocidade, sporque fui to oficinal com as pontuaes mais simplese o quotidiano em baixo,amor e desamor porque no entendo que uma garra me tenha apanhado por trs da cabeae me tenha impelido, e odesequilbrio sobre as rduas escritas em casa, ou adevastao morfolgica, ouum abalo, um abuso,nada,me concedam a sumptuosa ignorncia quantas atmosferas acimados ps na vrgula: oarrebatamento (p. 593-594)

9.mesmo assim fez grandes mos, mos sem anis, incorruptveis,e aplicou-as nas matrias virgens,escreveu algumas palavras numa folha fechada escreveu-asoh milagre na folha estanque, e elastransbordaram:morreu disso

10.an ar vibram as colinas desse tempo, colinasamarelas, vibram do chode onde se erguiam, o cho cruzam-no s cegas linhaspara cima: frias,cruas fruticulturas, esse tempo que ponho agora sobre a mesano tem nada: nem colinas nem vibrao, e o arest na cabea, as colinas respiramnela, a seiva onde se apoia a mesa,a mo onde o sangue se apoia,movem-se, alumiam-se,o ar foid e outro dia, colinas nem sei se as houve, a seiva escoa-se,mas estas coisas idas,divididas, unem-se na frase cheiade atmosfera,e no tamanho da luz no papel, na mesa, agora, leioa concordncia do que no era, as colinasdesses dias trmulos e entreabertos,e a madeira soprada: colinasescritas, potentes, exmias, amarelas (p. 601)

11.que poder de ensino o destas coisas quandoem idioma: um copo de gua agreste plenamente na mesa,s em linguagem o copo me inebria placa de gelo em que lbulosdo crebro? e exalta-me a transparncia, porquefora, sobadministraogeral: cincia, literatura, economia, gramtica,nada, nenhum copo, nenhuma gua na mesa,me fazem sangrar a ferida essencial, ou mover-mes cegas e s avessasat o ltimo reduto; s antes,por trs, depois, frente, eu sinto que a membrana de vidro, reservando uma poucade gua miraculadamente do caosdos dicionrios, me despedaacomo primeira palavra,no apenas os dedos, mas dedos e memria, devotao de vida;a lio do nomeque no tem Deus, e de que o nosso nomediminuto se aproxima; basta aquela gua delgada enquanto algures ceifam na terra,edificam; gua colhida o verbocopo ou em Deus advrbiode modo,e h um n interno requeimado, um n semntico, e um calafriotrespassa a bic preta, e em nativo escrevoa msica de ouvido,e o ar que est por cima enchetodo o caderno,e equilibram-seo copo sobre a toalha, transparncia, plano de gua,e dedos e papel e script e trmula superfcie da memria,tudo passado a multplice e ardente (p. 605-606)