a experiÊncia urbana e apropriaÇÃo espacial a partir do jogo de realidade aumentada (arg) ingress

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Iluminuras, Porto Alegre, v. 16, n. 36, p.360-378, ago./dez. 2014 A EXPERIÊNCIA URBANA E APROPRIAÇÃO ESPACIAL A PARTIR DO JOGO DE REALIDADE AUMENTADA (ARG) INGRESS Breno Maciel Souza Reis 1 Introdução Os sujeitos sempre estabeleceram uma relação com o jogo como um modo de estar no mundo e de contato com as coisas, ou seja, uma mediação (Buytendijk, 1977; Caillois, 1990; Gadamer, 1997; Huizinga, 2008), diretamente relacionada ao próprio sentido de temporalidade que a coletividade humana possui em determinado momento histórico e indicando como se estrutura o pensamento e como entendemos a realidade. Longe de ser um processo exterior, ele possui imbricações que se enraízam na concepção que temos sobre nós mesmos e sobre o que nos cercam, constituindo assim mais do que uma atividade de mera diversão ou ausente de seriedade, mas um elemento de apropriação e construção da realidade; ou seja, o jogo é parte fundamental da vida humana e da construção cultural advinda da nossa experiência de mundo (Teixeira, 2005: 467). Assim, as relações que estabelecemos com o jogo hoje e o seu lugar na sociedade contemporânea refletem o modo como vivemos e interpretamos o mundo, uma vez que os mesmos se desenvolvem em uma dada configuração momentânea, social, tecnológica e cultural. Especialmente no caso deste trabalho, observamos a ubiquidade de tecnologias computacionais móveis constantemente conectados, assumindo também formas lúdicas e vinculadas ao espaço físico das cidades alterando não apenas práticas espaciais individuais e coletivas, mas também sobrepondo distintas camadas informacionais e também simbólicas, a partir da caminhada dos sujeitos e da ressignificação desses mesmos espaços. Se em outros períodos históricos a ocorrência do jogo era potencialmente distinguível das demais atividades cotidianas, hoje o seu caráter pervasivo parece-nos ainda mais evidente, porém não claramente reconhecível, haja vista que ele passa a abranger as mais diversas atividades da vida ordinária. Isso dito, percebemos na atualidade um deslocamento no tocante à própria experiência urbana, sabendo da existência de aparatos tecnológicos digitais de conexão contínua à rede e que se relacionam com o ambiente de maneira locativa (ou seja, contextualmente geolocalizada), se configurando como mediadores entre as experiências 1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil.

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A EXPERIÊNCIA URBANA E APROPRIAÇÃO ESPACIAL A PARTIR DOJOGO DE REALIDADE AUMENTADA (ARG) INGRESS

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  • Iluminuras, Porto Alegre, v. 16, n. 36, p.360-378, ago./dez. 2014

    A EXPERINCIA URBANA E APROPRIAO ESPACIAL A PARTIR DO

    JOGO DE REALIDADE AUMENTADA (ARG) INGRESS

    Breno Maciel Souza Reis1

    Introduo

    Os sujeitos sempre estabeleceram uma relao com o jogo como um modo de estar

    no mundo e de contato com as coisas, ou seja, uma mediao (Buytendijk, 1977; Caillois,

    1990; Gadamer, 1997; Huizinga, 2008), diretamente relacionada ao prprio sentido de

    temporalidade que a coletividade humana possui em determinado momento histrico e

    indicando como se estrutura o pensamento e como entendemos a realidade. Longe de ser

    um processo exterior, ele possui imbricaes que se enrazam na concepo que temos

    sobre ns mesmos e sobre o que nos cercam, constituindo assim mais do que uma

    atividade de mera diverso ou ausente de seriedade, mas um elemento de apropriao e

    construo da realidade; ou seja, o jogo parte fundamental da vida humana e da

    construo cultural advinda da nossa experincia de mundo (Teixeira, 2005: 467).

    Assim, as relaes que estabelecemos com o jogo hoje e o seu lugar na sociedade

    contempornea refletem o modo como vivemos e interpretamos o mundo, uma vez que

    os mesmos se desenvolvem em uma dada configurao momentnea, social, tecnolgica

    e cultural. Especialmente no caso deste trabalho, observamos a ubiquidade de tecnologias

    computacionais mveis constantemente conectados, assumindo tambm formas ldicas e

    vinculadas ao espao fsico das cidades alterando no apenas prticas espaciais

    individuais e coletivas, mas tambm sobrepondo distintas camadas informacionais e

    tambm simblicas, a partir da caminhada dos sujeitos e da ressignificao desses

    mesmos espaos. Se em outros perodos histricos a ocorrncia do jogo era

    potencialmente distinguvel das demais atividades cotidianas, hoje o seu carter pervasivo

    parece-nos ainda mais evidente, porm no claramente reconhecvel, haja vista que ele

    passa a abranger as mais diversas atividades da vida ordinria.

    Isso dito, percebemos na atualidade um deslocamento no tocante prpria

    experincia urbana, sabendo da existncia de aparatos tecnolgicos digitais de conexo

    contnua rede e que se relacionam com o ambiente de maneira locativa (ou seja,

    contextualmente geolocalizada), se configurando como mediadores entre as experincias

    1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil.

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    subjetivas que so desenvolvidas no contexto espacial, social e informacional das cidades.

    Tomando como horizonte a prpria complexidade inerente matria, apontaremos

    algumas questes relacionadas apropriao de sistemas ldicos com vistas sua

    utilizao por sujeitos portando aparatos portteis, como possvel modificador da

    experincia urbana mediada tecnologicamente.

    Nos ancoraremos na abordagem antropolgica etnogrfica na cidade, em

    consonncia com o que defendem Rocha e Eckert (2013a;2013b;2013c), que consideram

    que a investigao sobre os modos de vida nas cidades deve levar em conta no s o

    aspecto urbano formal e planejado; mas tambm a multiplicidade de usos e apropriaes

    imprevistas e, por muitas vezes, subversivas do espao urbano. Ou seja, considerar

    que a rua , desde sempre, um espao de interao social, locus por excelncia de disputas

    territoriais, simblicas, materiais e no qual se manifestam e se formam trajetrias de

    sujeitos e grupos.

    Para tanto, sero expostas reflexes que advm primordialmente da nossa utilizao

    do jogo, as impresses e experincias provenientes dessa insero. Assim, esse artigo

    tambm empreende um exerccio de afastamento em relao nossa prpria experincia

    no contexto da cidade de Porto Alegre, onde residimos, mas da qual no somos naturais.

    A esse respeito, destacam Rocha e Eckert (2013b, p. 22) que a etnografia de rua

    um exerccio de (...) deslocamento em sua prpria cidade, o que significa dizer [...] que

    ela afirma uma preocupao com a pesquisa antropolgica a partir do paradigma esttico

    na interpretao das formas de vida social na cidade. Dessa forma, procuramos nos

    inserir na cosmologia prpria do jogo em questo, buscando, por meio das nossas

    caminhadas (tanto nos trajetos cotidianos, quanto naqueles realizados com propsitos

    especficos e voltados explorao citadina ldica que o jogo exige), capturar e

    questionar essa ambincia, e perceber alteraes na forma como nos apropriamos da

    mesma ou como entende Certeau (1998), como se do as nossas estratgias e tticas de

    (des)construo narrativa a partir dos passos e deslocamentos dirios.

    Delimitando a questo: o jogo e seu carter pervasivo como possibilidade de

    apropriao da cidade e ressignificao do espao

    Se tomarmos como verdadeira a premissa que diversos autores dedicados ao estudo

    do jogo corroboram, de que o fenmeno foi, e ainda , de fundamental importncia para

    a nossa evoluo e para a constituio de sociedades humanas independente do grau de

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    complexidade e organizao normativa que possuem podemos facilmente perceber que,

    desde os primrdios, o homem se utilizou do jogo como instrumento de

    compartilhamento e construo simblica sobre o mundo. Para Buytendijk (1977), uma

    caracterstica intrnseca ao que aqui chamamos jogo o fato de ele ser um mediador entre

    o homem e as coisas; ou seja, sob tal perspectiva, o jogo consiste em um modo de insero

    no mundo. Assim, devido ao carter simblico inerente ao jogo, o pensador entende que

    ele um dos elementos que nos permitem diferenciar-nos dos animais assim, o

    fenmeno do qual falamos, mais do que mera diverso ou recreao, se configura como

    uma experincia emancipatria humana, uma vez que ele se presta como transformador

    das relaes que os sujeitos estabelecem consigo mesmos, com os outros e com o mundo.

    Huizinga (2008), um dos principais tericos e considerado o fundador do campo

    hoje conhecido como game studies, entende que a existncia do jogo entre ns e o seu

    carter simblico representou, desde sempre, um papel fundamental na organizao e

    construo cultural humana. Assim, ele entende essa relao a partir de uma trade

    ontolgica, propondo assim que o homem ldico (Homo ludens) foi to importante quanto

    a nossa capacidade de raciocinar e pensar a realidade (Homo sapiens) e de criar,

    manipular e interagir com a natureza, modificando-a (Homo faber). Para o autor,

    inclusive, a linguagem uma tecnologia humana essencialmente ldica, considerando

    tambm a sua ocorrncia como um jogo o que corroborado por filsofos da linguagem,

    como Wittgenstein (1989).

    Destarte, pelo vis que consideramos aqui, o jogo se presta como um reflexo da

    sociedade na qual se desenvolve, conforme assinala McLuhan (2007); entretanto,

    poderamos acrescentar que, muito mais do que apenas prover indcios do modus vivendi

    particular ou funcionar como extenses de uma sociedade, como afirma o autor, o jogo

    tambm atua diretamente na definio de conceitos, regras, do que vlido ou no na

    vida social. Nesse sentido, ele se articula com as contingncias subjetivas, sociais,

    espaciais e culturais nas quais se desenvolve, inaugurando uma esfera prpria de

    existncia que possui um carter simblico que circunscreve e delimita a prpria

    experincia ldica, por ser reconhecidamente distinto da vida ordinria dos seus

    praticantes.

    Alm disso, interessante observar tambm como, para Simmel (1983), os

    processos dialgicos inerentes a toda interao social carregam em sua essncia um

    aspecto ldico. Ao dissertar a respeito, o autor conclui que o jogo est, desde sempre e de

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    forma ntima, relacionado prpria noo de sociedade e especificamente no que nos

    interessa nesse trabalho, as dinmicas de conflito e competio que se articulam na

    narrativa cosmolgica do Ingress, conforme ser exposto. Para o socilogo, a conexo

    entre jogo e sociabilidade explica porque esta deve abranger todos os fenmenos que j

    por si mesmos podem ser considerados formas sociolgicas ldicas. Isto se refere acima

    de tudo a jogos propriamente ditos que, na sociabilidade de todos os tempos,

    desempenhou um papel notvel (1983: 174). Ainda acrescenta que o sentido mais

    profundo, o duplo sentido de jogo social que o jogo no s praticado em uma

    sociedade (como seu meio exterior), mas que, com ele, as pessoas jogam realmente

    sociedade (1983: 174).

    Isso nos permite problematizar tal ideia clssica da separao bem definida entre o

    jogo e a vida cotidiana, a partir da ubiquidade das tecnologias digitais mveis de

    Comunicao e Informao na contemporaneidade, entendendo que passamos a

    experimentar o fenmeno do jogo em momentos nos quais no reconhecemos sua

    ocorrncia de maneira clara ou imediata. Se antes o jogo pressupunha um certo ritual para

    que ocorresse (por exemplo, para utilizar um console de videogame, necessrio que o

    jogador decida realizar naquele momento a atividade em questo; que ligue o aparelho e

    tambm a televiso qual o videogame est conectado, que pegue os controles ou ative

    outros dispositivos, como sensores de leitura de movimentos corporais), hoje, dado o

    cenrio ubquo e o horizonte de permanncia cada vez mais invisvel das tecnologias

    infocomunicacionais na vida humana, estamos envolvidos em atividades ldicas das

    quais frequentemente no damos conta de sua ocorrncia.

    Com efeito, um tipo de jogo especfico emerge desse contexto, que designado por

    Lemos (2010) pela expresso jogos mveis locativos (JML), ou seja, (...) jogos urbanos

    que utilizam tecnologias e servios baseados em localizao nos quais o lugar parte

    integrante das regras e das aes do jogo. Podemos, analogamente, dizer que eles

    transformam a configurao fsica das cidades em um tabuleiro de jogo, no qual os

    usurios se movimentam, tanto com o objetivo ldico explcito, quanto na realizao de

    suas tarefas cotidianas; essa , alis, uma diferena fundamental que admite a

    pervasividade do jogo, nesse caso. Myr (2008) entende, assim, que os jogos desse tipo

    ultrapassam o ambiente tradicional caracterstico dos consoles de videogame e,

    deliberadamente, misturam a esfera do jogo com a vida ordinria, criando intersees

    entre essas instncias. O fenmeno passa, cada vez mais, a abarcar aspectos que at ento

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    no eram considerados como jogo e, inclusive, aqueles que socialmente so

    considerados sua anttese, como o trabalho e a educao escolar os quais confirmam

    sua presena difusa e seu carter medial.

    Em relao aos JML podemos ainda acrescentar as consideraes de Hjorth (2011),

    que entende como fundamentais as intersees entre o espao e a mobilidade

    informacional proporcionada por artefatos tecnolgicos digitais, afirmando que,

    justamente por colocar em sinergia espaos on-line e off-line, eles podem oferecer novas

    formas de experienciar a realidade, ou simplesmente o lugar no qual o sujeito se encontra.

    Para a autora, a possibilidade de interao em rede e do uso do espao citadino como

    elemento ldico oferecem uma oportunidade de transformar os modos como os sujeitos

    se apropriam e atribuem sentido aos mesmos. Assim, ela acredita que a mobilidade e

    tecnologias em rede no apenas alteram como ns entendemos o espao na vida cotidiana,

    mas tambm nos lembram que o lugar mais que somente a sua localizao fsica e/ou

    geogrfica. Com mais importncia, ele construdo atravs do acmulo constante de

    histrias, memrias e prticas sociais.

    Nesse sentido, essas formas de habitao do espao admitem a sua transformao

    em ambientes essencialmente ldicos, ou seja, as cidades contemporneas como espaos

    de fluxos que assumem caractersticas de jogo pela sua transmutao, a partir da qual os

    prprios sujeitos so os jogadores se movimentando pelos locais mas no mais apenas

    em momentos especficos nos quais o crculo mgico do jogo, conforme sugere Huizinga

    (2008) encontra-se em evidente existncia. A caracterstica pervasiva do jogo e que,

    reafirmamos, lhe prpria , encontra nas tecnologias mveis de comunicao ubquas

    potencializadores que fazem com que sua existncia se d de forma cada vez mais

    permanente e invisvel, imbricada em meio prpria vida cotidiana.

    Assim como a prpria rede e a tecnologia se infiltra no corpo social e por ele

    incorporada, derivando apropriaes na forma de prticas sociais e culturais, o jogo

    tambm encontra um vetor que potencializa a diluio das fronteiras entre o jogo e no

    jogo, o trabalho e o ldico. A cidade, que passou a representar durante um longo perodo,

    o enraizamento do sujeito em detrimento da pulso da errncia ou do nomadismo, como

    defende Maffesoli (2001); na qual era permitido ao sujeito se apropriar apenas

    parcialmente de suas camadas de sentido que sempre existiram, porm, eram restritas a

    locais ou grupos especficos, encontra, na sua transformao em ambiente ldico em rede,

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    possibilidades de ampliao de suas capacidades de comportar e dar visibilidade

    multiplicidade de sentidos que sempre lhe foi caracterstica.

    Neste sentido, especificamente no caso dessas manifestaes culturais

    contemporneas, o crculo mgico do qual falam Huizinga (2008) e Caillois (1990)

    expandido de vrias formas: o jogo no ocorre mais em tempos e espaos bem definidos,

    e os seus participantes no so determinados. Nesse sentido, como diagnosticam Montola,

    Stenros e Waern (2009), os jogos nesse contexto permeiam, se desdobram e embaam os

    seus limites tradicionais, por expandir o ambiente do jogo a partir de trs perspectivas: a

    temporal, ou seja, seja o fato de estarmos cada vez mais imersos em atividades ldicas; a

    espacial, que, conforme dissemos, remete possibilidade de jogar em variados lugares,

    em condies de deslocamento ou a dispensabilidade de consoles fixos ou limitados a

    ambientes especficos; e a social, que, enquanto fator resultante das anteriores, trata-se da

    ampliao do nmero de possveis jogadores em todos os lugares e a todo instante, em

    seus trajetos dirios, inclusive utilizando o espao citadino como o ambiente no qual a

    histria do jogo se desenrola.

    As cibercidades e mdias locativas como pressuposto para a existncia dos JML

    A condio de mobilidade da informao proporcionada pelas tecnologias de

    conexo contnua (Santaella, 2007) e a estrutura que foi instalada no espao urbano para

    dar conta das mesmas, provocaram um novo paradigma ao j recente campo de estudo da

    cibercultura, inserindo novas configuraes tanto comunicacionais e informacionais,

    quanto arquitetnicas, urbansticas, sociais, bem como tambm artsticas e estticas, uma

    vez que foi possvel portar para as ruas das cidades tecnologias antes fixas e limitadas a

    ambientes fechados, como empresas e residncias. O ciberespao, assim, passou a estar

    em todos os lugares, alterando tambm as paisagens e como vivenciamos o mundo fsico,

    agora mediados por dispositivos digitais conectados em rede de maneira ubqua.

    A esse entrecruzamento composto pelo espao urbano em sua materialidade

    (praas, avenidas, monumentos histricos, edifcios, etc.), a infraestrutura tecnolgica

    necessria como antenas, cabos, redes sem fio de telefonia e de dados, alm dos prprios

    dispositivos em sua fisicalidade somados aos sujeitos que transitam e portam consigo

    esses aparatos, Lemos (2004) denomina como cibercidade ou cidade-ciborgue.

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    Importante lembrar que, para o autor, a prpria cidade uma construo cultural e

    artificial humana repleta de sentido ou seja, um artefato, desenvolvido e em relao

    direta com as configuraes tecnosociais vigentes em um dado perodo histrico.

    As cibercidades seriam assim a medida de nossa poca, palimpsestos nos quais se

    inscrevem discursos e se proferem enunciados, tanto atravs da interferncia dos sujeitos

    fisicamente, quanto atravs da esfera informacional e mvel que se sobrepe a ela,

    modificando nossa vivncia do espao urbano basta pensarmos em tecnologias de

    geolocalizao via satlite, ou GPS, as quais conseguem rastrear a localizao exata de

    algum em coordenadas geogrficas e fornecer uma experincia ampliada do espao

    fsico circundante. Dessa forma, funcionam tambm como navegadores urbanos,

    conectando dispositivos, satlites e redes sem fio com as ruas das cidades, tomando agora

    novas formas e moldando a polis contempornea por meio da juno da mesma com o

    ambiente virtual das redes telemticas (Lemos, 2004) concretizando a existncia das

    mdias locativas, ligadas diretamente ao contexto espacial, informacional e social na qual

    esto sendo utilizadas.

    O termo mdia locativa foi cunhado por Karlis Kalnins para designar o uso de

    servios em rede baseados em geolocalizao (location-based services, ou LBS);

    entretanto, as mdias locativas j existiam analogicamente, na forma de cartazes, mapas,

    placas de trnsito e anncios expostos no espao urbano. Em relao s mdias locativas

    digitais, parece-nos que o fator fundamental de diferenciao das mesmas o fato de que

    elas esto, eletronicamente e de maneira ubqua, organizadas no ciberespao na forma de

    metadados e contextualmente relacionadas, pois se constituem como tecnologias

    sensveis ao ambiente, permitindo acesso e armazenamento de informaes em bases de

    dados de servios que se prope a agrupar e exibir nas telas de variados dispositivos essas

    informaes.

    Sem dvida, se locomover pela cidade carregando consigo um dispositivo

    conectado e exibindo constantemente informaes sobre ela impacta no modo como

    direcionamos nosso olhar para a mesma. Ao mesmo tempo em que proporcionam uma

    ampliao das nossas capacidades cognitivas e perceptivas, representam tambm uma

    transposio das mesmas para a exterioridade de nossos corpos, as quais retornam na

    forma de pacotes de informao e que so interpretados no por ns, mas pelo dispositivo

    receptor e exibidas nas telas dos mesmos.

  • Breno Maciel Souza Reis

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    A esse respeito, sabemos que os instrumentos e tecnologias que utilizamos

    modificam nossa viso sobre o mundo e nosso entendimento sobre o ambiente que nos

    cercam, promovendo novas dinmicas de interao com o mesmo e nos modos como o

    habitamos. Armazenadas em grandes repositrios de informao e transformadas em

    prticas sociais, elas penetram de forma profunda no cotidiano at quase se tornarem

    invisveis, dada sua caracterstica pervasiva, integrando de forma definitiva a camada

    virtual, e o mundo fsico, em processos nos quais no se reconhece de imediato o incio

    de um e o fim do outro (Weiser, 1991).

    Podemos aqui retomar as consideraes de Meyrowitz, que em No Sense of Place

    (1985), entende os novos contextos miditicos como potencializadores de transformaes

    nas interaes sociais desde os j bastante estudados meios massivos, como a televiso,

    rdio e impressos, at mais recentemente os digitais e globalmente conectados.

    Considerando que o espao tambm exerce grande influncia na sociabilidade entre os

    indivduos, entendemos que o paradigma se encontra justamente do momento em que

    percebemos a informatizao do territrio e a potencializao da construo simblica do

    mesmo em rede, ou seja, o que Certeau (1998) chama de retricas ambulatrias, agora na

    forma de rastros informacionais que compe as histrias e o registro dos lugares,

    transformando a cidade em (...) redes comunicativas, florestas de cabos, e na

    transformao do sujeito, atrado e estendido nas esferas eletrnicas e nas formas de

    relaes metageogrficas em desbravador desse novo territrio flutuante (Di Felice,

    2009: 160). Lemos, inclusive, sugere que agora, temos um novo sentido do lugar (new

    sense of place), um territrio informacional, (...) onde relaes comunicacionais se do

    diretamente com lugares e objetos do espao urbano, potencializando apropriao e

    ressignificao (2010: 2).

    A etnografia de rua como exerccio de deslocamento em relao ao Ingress

    Isso dito, um dos questionamentos que norteiam esse trabalho so os possveis

    desdobramentos que tais expanses do jogo acarretam no tocante apropriao e

    experincia citadina em um contexto de conexes locativas a partir de um cenrio ldico.

    Especificamente no caso deste trabalho, observamos a cidade, espao em certa medida

    organizado e normatizado segundo regras de planejamento mais ou menos estruturadas e

    com usos tambm previstos, mas que assume outros sentidos e ressignificada a partir

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    das caminhadas dos sujeitos, da forma como ela vivenciada - ou, como sugere Certeau

    (1998), os sujeitos, em seus trajetos e a partir das narrativas cotidianas escritas pelos seus

    passos, transformam em outras coisas cada elemento disponvel no espao urbano.

    Narrar a cidade nesse contexto significa essencialmente desvendar os seus usos, os

    enredos que nela so inscritos, entendendo-a como locus primordial onde se do relaes

    sociais, ou seja, (...) um arranjo espao-temporal onde a vida social se desenrola nas suas

    mais diversas formas (Rocha; Eckert, 2013c: 13). nas ruas, e atravs das sutis falas

    dos passos, que apreendemos os modos de vida em um espao contraditrio por

    excelncia, por comportar os mais diversos e inusitados usos; possuidora de diversas

    cosmologias, a cidade coexiste com diversas faces de si mesma, construdas em tempos-

    espaos distintos e sobrepostos, nos quais vo sendo tecidas camadas de sentido. Ela ,

    assim, o (...) lugar imaginado e vivido, a rua em que moramos ou a rua que frequentamos

    assiduamente em nossas tarefas dirias, as ruas que falam da cidade, as ruas onde

    depositamos nossos sonhos e involuntariamente recordamos e desejamos (Rocha;

    Eckert, 2013c: 13).

    Um aspecto a ser destacado na fala das autoras e que nos leva ao prprio objeto que

    aqui tomamos para anlise caracterstica do Ingress de estimular o jogador a praticar a

    cidade a partir de uma narrativa cosmolgica que prpria do jogo: a descoberta de uma

    forma de energia denominada Exotic Matter (Matria Extica, ou XM) que emana de

    alguns pontos da cidade e que pode tanto ser manipulada para levar a Humanidade a um

    novo estgio de conscincia, quanto ameaar a nossa prpria existncia, a liberdade e

    o pensamento. A partir dessa premissa, duas faces se formam e disputam o controle

    sobre esses locais nos quais a XM se concentra (chamados portais): os Iluminados

    (Enlightened) e a Resistncia (Resistance).

    Assim, para que fosse possvel adentrar no universo do Ingress, procedemos na

    instalao do aplicativo em um smartphone com sistema operacional Android e

    realizamos o cadastro, seguido da escolha de um pseudnimo que identifica os jogadores

    no sistema no necessrio fornecer o nome real nem uma fotografia, embora seja

    possvel customizar um emblema com formas e cores fornecidas pelo aplicativo. Como

    parte da narrativa do jogo consiste em transformar o jogador em um agente de uma das

    faces (inclusive os jogadores se chamam assim), o anonimato assegurado, sendo

    possvel apenas, ao visualizar o perfil de um jogador, ter acesso a dados relativos sua

    participao, como nvel, medalhas obtidas (badges), pontuao e demais informaes.

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    Ao jogar na e com a cidade, os jogadores se apropriam do espao fsico

    distintamente do que fariam em outra situao: uma praa no somente uma praa, mas

    significa para os mesmos outra coisa: um portal, um ponto de encontro de jogadores de

    uma faco, um territrio de disputa simblica, cujo sentido estritamente singular ou

    seja, experincias so produzidas e contextos articulados, os quais so tecidos narrativa

    ldica, enriquecendo o universo prprio do jogo, criando usos imprevistos ou, como ainda

    defende Certeau (1998), proporcionando prticas inventivas, criativas, costumes e

    estratgias particulares. Ou ainda, como acreditam Rocha e Eckert (2013b: 14), so essas

    aes, ou prticas cotidianas, que conferem as feies particulares das ruas, dos territrios

    urbanos, dos espaos vividos coletivamente na cidade.

    Tendo isso exposto, uma vez instalado o aplicativo e escolhida a faco qual nos

    vincularamos, nos tornamos um agente do Ingress em Porto Alegre. Esse processo,

    que Kozinets (2010) chama de entre cultural, consiste em adentrar o universo a ser

    estudado atravs da imerso do pesquisador no objeto, que ocorreu, no caso em questo,

    com a utilizao do Ingress nas situaes mais variadas: tanto em trajetos cotidianos, nos

    percursos habituais, quanto tambm com sadas a campo especificamente com o propsito

    do jogo. Hine (2000) entende essa imerso como fundamental na pesquisa etnogrfica,

    pois requer do investigador uma postura de comprometimento e de engajamento em

    relao ao objeto e com os sujeitos que o constituem. Ou seja, necessrio que o

    pesquisador adentre no ambiente estudado e que atente s redes de relaes que emergem

    tanto entre os sujeitos a partir das interaes que estabelecem entre si, quanto com o

    prprio ambiente, os artefatos tecnolgicos e com o contexto espacial, social e cultural

    no qual se inserem.

    Esse trabalho constitui tambm um exerccio de deslocamento no tocante prpria

    experincia urbana que possumos de Porto Alegre, cidade onde se desenvolve a pesquisa

    em questo. Para isso, tomamos as consideraes de Simmel (1983) em seu texto sobre o

    estrangeiro, buscando nos tornar estranhos no espao ao qual estamos habituados e que

    percorremos diariamente. Dizemos isso porque sabemos que com o dia a dia certas

    particularidades da cidade, seus usos e habitantes, se tornam transparentes ao filtro

    invisvel que o cotidiano impe e, muitas vezes, nos desafia a olhar a cidade sob outra

    perspectiva: a de sua constante construo e destruio criativa por meio das prticas que

    nela se do. Assim, aponta Simmel (1983: 184) que

  • A EXPERINCIA URBANA E APROPRIAO ESPACIAL...

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    Iluminuras, Porto Alegre, v. 16, n. 36, p.360-378, ago./dez. 2014

    O estrangeiro no est submetido a componentes nem a tendncias peculiares do

    grupo e, em consequncia disso, aproxima-se com a atitude especfica de

    objetividade. Mas a objetividade no envolve simplesmente passividade e afastamento; uma estrutura particular composta de distncia e proximidade,

    indiferena e envolvimento. [...] Objetividade no significa de maneira alguma no-

    participao (que geralmente exclui tanto a interao subjetiva quanto a objetiva), mas

    um tipo especfico e positiva de participao (...).

    Na busca pela delimitao de um campo para a pesquisa em questo, nos apoiamos

    em Fragoso, Recuero e Amaral (2011: 182) que, com base em Hine (2009), defendem a

    inseparabilidade do mesmo da vida cotidiana, tanto do pesquisador, quanto do grupo

    social e do objeto de pesquisa que se pretende investigar o que parece pertinente,

    considerando que aqui tratamos especificamente de um jogo que se desenrola na esfera

    do ordinrio na vida dos seus jogadores, e no constitui necessariamente um evento

    especfico ao qual devem se dedicar de forma separada do seu cotidiano (Huizinga, 2008).

    Dito isso, podemos agora apresentar o objeto em questo e, em seguida, sob uma

    perspectiva autorreflexiva, comentar nossos apontamentos realizados durante a insero

    no jogo em questo. Ressaltamos, no pretendemos aqui apresentar anlises definitivas

    sobre a matria, nem consideramos que as reflexes expostas correspondam totalidade

    das apropriaes possveis do Ingress por parte dos jogadores - dada inclusive a conciso

    desse trabalho. Para que fosse possvel registrar os acontecimentos e aspectos que nos

    chamaram a ateno durante a participao no jogo, utilizamos como registro anotaes

    (tanto em papel quanto em aplicativos com essa funo no prprio dispositivo mvel

    utilizado); tambm realizamos capturas de tela que foram anexadas s notas, sendo que

    algumas delas esto expostas adiante.

    O Ingress

    O Ingress um jogo mvel locativo2 (Lemos, 2010) de realidade aumentada3, ou

    ainda um augmented reality game (ARG) que, uma vez instalado em dispositivos mveis

    digitais que possuem conexes Internet via redes sem fio, permite que o jogador

    visualize em seu dispositivo um mapa das imediaes onde ele se encontra, a partir da

    2 Lemos (2010) define jogos mveis locativos como aqueles jogos urbanos que utilizam tecnologias e servios baseados em localizao nos quais o lugar parte integrante das regras e aes do jogo. 3 Realidade Aumentada um conjunto de tecnologias e protocolos que permitem adicionar e visualizar

    imageticamente camadas de informao vinculadas ao espao fsico, atravs de equipamentos (telefones

    celulares, culos especiais, capacetes) e da imbricao entre redes informacionais globais e a cidade.

  • Breno Maciel Souza Reis

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    Iluminuras, Porto Alegre, v. 16, n. 36, p.360-378, ago./dez. 2014

    base de dados georrefenciada do Google Maps4, e sinais de geoposicionamento via

    satlite emitidos e recebidos pelo aparelho. Entretanto, diferentemente de outros sistemas

    de navegao espacial, o objetivo especificamente a camada ldica e informacional que

    lhe adicionada: possvel identificar e capturar os pontos da energia Exotic Matter

    (Matria Extica, ou XM) espalhados pelo espao e se movimentando medida em que

    o jogador transita pelas ruas da cidade, bem como verificar itens disponveis para

    aquisio alm de visualizar graficamente os portais, inclusive com a indicao de

    distncia e rotas de deslocamento at eles (figura 1).

    Figura 1: Tela inicial do jogo Ingress. Fonte: o autor (2014)

    O sentido do jogo em sua essncia mvel, e convida os que dele participam a

    explorarem o espao urbano das cidades em busca de portais, ou seja, locais nos quais a

    XM emana os quais so, em sua maioria, monumentos, praas, edifcios, pontos

    histricos e tursticos e outros pontos de grande circulao de pessoas, capturando em

    seus percursos fragmentos dessa energia espalhados aleatoriamente e adquirindo armas e

    outros elementos simblicos do jogo. Cada um desses portais de domnio de uma ou de

    outra faco, e o papel dos jogadores percorrer esses locais e atac-los, buscando a sua

    posse. Inclusive, atravs de uma funcionalidade onde possvel se comunicar

    4 http://maps.google.com.br/. Acesso em 26 jul. 2014

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    Iluminuras, Porto Alegre, v. 16, n. 36, p.360-378, ago./dez. 2014

    secretamente com outros membros da mesma equipe, coordenar ataques coletivos

    simultneos a um portal, exigindo assim um regime de copresena de vrios jogadores.

    Alm disso, uma evidncia de que o sentido do jogo se encontra justamente na

    explorao do espao fsico que, para a progresso em nveis que variam de 1 a 8,

    necessrio um nmero cada vez maior de pontos de experincia, adquiridos

    principalmente com o registro e a descoberta de portais novos visitar e realizar hacking

    repetidamente nos mesmos portais torna um tanto demorada a progresso no jogo. Seja

    atravs de situaes deliberadas o jogador visitar um local unicamente objetivando uma

    ao de jogo ou mesmo ocorrendo em ocasies casuais de trajetos de ida e volta de

    locais nos quais o jogo no o principal propsito (trabalho, estudo, situaes de

    consumo, entre outras), parece-nos que nessas caminhadas pela cidade podem ser

    fornecidas novas experincias sensoriais e perceptivas atravs da sobreposio de uma

    camada informacional que, mesmo fictcia, altera as experincias do sujeito em relao

    ao espao urbano. Ainda, importante acrescentar que sine qua non a presena do jogador

    nas imediaes dos portais: impossvel hackear, atacar, defender ou realizar qualquer

    ao remotamente nos mesmos, ou seja, distncia.

    Uma pesquisa divulgada em 20135, feita com 1.572 jogadores do Ingress revelou

    alguns dados interessantes que parecem confirmar a tendncia do jogo em questo a

    estimular novas relaes com o espao e a cidade: 88% declararam que visitaram locais

    que nunca tinham ido nas suas prprias cidades a partir do uso no jogo. 93% deles

    afirmaram ter passado a caminhar mais depois do incio das atividades no jogo, e 24%

    passaram a andar mais de bibicleta. Um outro aspecto que merece destaque o seu carter

    social: 74% dos entrevistados afirmaram que conheceram pessoas por meio do jogo e

    29% afirmaram ter feito novos amigos. Isso parece expor que, alm de desempenhar um

    papel como mediadores das relaes espaciais entre os jogadores e a cidade, o jogo

    funciona tambm como catalizador de interaes sociais com propsitos muito

    especficos e que, talvez, no ocorrerriam entre os jogadores seno a partir do Ingress.

    O mote principal do jogo se encontra se encontra na interseo entre redes digitais

    mveis e o espao fsico da cidade, conforme demonstrado em vdeo promocional

    divulgado pelo laboratrio responsvel por prover de informaes atualizadas e

    complexificar a cada dia a narrativa do jogo6. O mundo real no como parece,

    5 http://simulacrum.cc/2013/01/23/the-demographics-of-ingress/. Acesso em 21 jan. 2014. 6 https://www.youtube.com/watch?v=92rYjlxqypM. Acesso em 13 jul. 2014.

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    afirmam categoricamente; obviamente, deve-se aceitar tal premissa para que o jogador

    adentre o enredo e participe efetivamente na construo narrativa ldica. No se joga

    como se, recuperando Caillois (1990) ou o jogador cr na veracidade do que est

    vivenciando naquele momento especfico (o que no impede que ele saiba se tratar de

    fico), ou nenhuma estratgia tcnica, narrativa ou grfica funcionar, por mais

    sofisticada ou elaborada que seja. Ao transformar cidados comuns em agentes secretos

    por meio do download e instalao do aplicativo Ingress em seu smartphone ou tablet,

    necessrio convenc-los a comprar a histria do jogo, ou seja, absorv-los na cosmologia

    ldica que instaurada.

    Como dissemos, o jogo se fundamenta na dinmica de competio entre duas

    equipes a partir da simulao de um conflito pico que ocorre pelas ruas da cidade

    dominadas pelas faces. Mas, para que uma equipe siga como dominante em uma regio,

    necessrio que seus membros cooperem entre si, em processos de ajuda mtua visando

    atingir um determinado objetivo comum seja ele destruir um ponto rival, manter um

    portal estratgico para a sua faco, ou ainda trocar informaes, novidades, descobertas

    e outros contedos a respeito do andamento do jogo.

    Durante a pesquisa para a elaborao desse trabalho, constatamos a existncia de

    comunidades em sites de rede social (principalmente o Google +7) e em servios de trocas

    de mensagens instantneas, como o Hangouts8, e no aplicativo para dispositivos mveis

    WhatsApp9. Utilizados como ferramentas alternativas ao jogo, nesses espaos so

    discutidas estratgias de domnio de regies dentro das cidades, de ataques simultneos a

    portais inimigos, bem como de troca de informaes sobre o andamento do jogo e das

    aes feitas. Ainda no tocante s dinmicas de cooperao e conflito, percebemos tambm

    a existncia de um hbito entre os jogadores e que ficou evidente quando

    acompanhamos as conversas por meio dessas ferramentas de articulao e interao

    social entre eles , que a reunio planejada e coletiva em algum ponto da cidade com

    vistas ao ataque coletivo a um portal de nvel elevado, visando destru-lo ao difcil de

    7 http://plus.google.com. Acesso em 15 jul. 2014. 8 Hangouts um servio de troca de mensagens instantneas multiplataforma do Google Inc., proprietria

    tambm do Google + e do Ingress, que pode ser utilizado tanto em sua verso web para computadores

    tradicionais quanto atravs de um aplicativo instalado em dispositivos mveis. Ele permite que pessoas

    conversem, inclusive com a formao de grupos nos quais vrios usurios podem trocar mensagens

    instantaneamente. Disponvel em https://www.google.com.br/hangouts/. Acesso em 15 jul. 2014. 9 WhatsApp um aplicativo gratuito de troca de mensagens multiplataforma para dispositivos mveis de

    propriedade do Facebook Inc.

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    Iluminuras, Porto Alegre, v. 16, n. 36, p.360-378, ago./dez. 2014

    ser realizada de forma solitria. Capturamos tambm, durante a pesquisa, imagens

    relacionadas a esses eventos disponibilizadas em boletins oficiais, o Ingress Report,

    enviado via e-mail pela desenvolvedora do jogo para os seus participantes (fig. 2):

    Fig. 2: grupo de jogadores reunidos em local pblico para encontro. Fonte: Decode Ingress (2014)

    H dentro do aplicativo do Ingress um campo no qual possvel se comunicar com

    outros jogadores: em um deles, todos os participantes tm acesso s mensagens, no

    importando a qual equipe pertenam; em outro, permitida a conversa apenas entre os

    membros de uma mesma faco. interessante observar tambm a existncia de agentes

    duplos, que participam das duas equipes com usurios diferentes, mas que se engajam

    primordialmente em uma, utilizando a outra exclusivamente para obter informaes

    privilegiadas. Durante a pesquisa para a elaborao deste trabalho, tomamos

    conhecimento de um grupo coletivo de jogadores no WhatsApp pertencente aos

    Iluminados na cidade de Porto Alegre - RS, visando especificamente tornar mais segura

  • Breno Maciel Souza Reis

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    Iluminuras, Porto Alegre, v. 16, n. 36, p.360-378, ago./dez. 2014

    a troca de informaes entre os membros da faco citada e articular aes coletivas em

    portais inimigos (fig. 3):

    Fig. 3: grupo no WhatsApp de jogadores pertencentes aos Iluminados em Porto Alegre RS.Fonte: o autor (2014)

    Interessante observar como em diversos momentos da teoria de Simmel (1983), o

    termo jogo surge como vocbulo para designar as dinmicas nas relaes sociais entre os

    indivduos, dada a prpria imprevisibilidade que emana do conceito na perspectiva do

    socilogo, e que parece convergir tal como o trabalhamos aqui. Convm recuperar que

    Caillois (1990) sugere a questo do desconhecimento do resultado final do jogo como um

    fator principal do fascnio que ele exerce entre os jogadores. Alm disso, ao utilizar o

    conceito de jogo como designador das possibilidades interativas e das relaes entre

    indivduos em Simmel (1983), parece confirmada a ideia exposta previamente do carter

    social do mesmo, lanando mo de tal termo para denotar sempre um encontro, estar

    junto com o outro.

    Cabe ainda ressaltar a noo de competio para Simmel como uma forma pura de

    conduta humana. J dissemos que a questo intrnseca ao jogo em suas diversas

    manifestaes, mesmo que no possua tal caracterstica explcita ou que ela no seja o

    produto final do ato de jogar. Entendemos que existem modalidades de jogos que

    possuem a competio como fora-motriz do funcionamento dos mesmos; entretanto,

    cremos que, ao considerarmos os mesmos sob a perspectiva de Simmel como forma

    bsica de sociao entre os indivduos, podemos entender a competio como elemento

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    bsico das relaes humanas em sociedade. A partir de tal constatao, nos parece

    pertinente entender a competio como interao, ou seja, como uma

    (...) forma de relao dos homens entre si; forma que pode envolver toda sorte de

    contedo, mas que, a despeito da grande variedade desses contedos, a forma mantm

    sua prpria identidade e prova que pertence a um campo regulado segundo leis

    prprias e suscetveis de abstrao (1983: 66).

    Sabemos que a cidade , desde sempre, espao de conflito, negociao, criao e

    destruio inventiva a partir das suas apropriaes e usos previstos ou inesperados, a

    partir de uma pulso da vida metropolitana, dando origem a modos de vida que Jacobs

    (2009: 13) descreve como sendo fantasticamente dinmicos. Nesse sentido, podemos

    inclusive pensar na transmutao do espao sob um prisma ldico como sendo a busca

    por um reencantamento do mundo weberiano, propiciado pelo jogo; a energia que, dentro

    da cosmologia do Ingress, emana do espao pblico de carter fantstico, misterioso,

    mgico. Ela est e no est nos lugares de forma simultnea: ao mesmo tempo em que

    presente e objeto de disputa por parte de jogadores, os cidados desavisados que transitam

    por aquele mesmo espao sequer se do conta de que, paralelamente, travada uma

    batalha simblica e fsica sobre aquele ponto.

    As relaes de conflito e cooperao, assim, servem como engatilhadores de

    transformaes sociais, espaciais e simblicas, atravs da habitao de um distinto

    contexto espacial e temporal que existe como possibilidade, imaginao e criao

    coletiva. O ordinrio, assim, passa a ser extraordinrio a partir de inesperadas formas de

    interveno no espao fsico. Ou seja, como defende Certeau (1998: 178) uma rua no

    a mesma para duas pessoas, ou mesmo para uma mesma pessoa em situaes diferentes;

    ou seja, o caminhante transforma em outra coisa cada significante espacial.

    Consideraes Finais

    Reapropriar a cidade como fbula. Essa a premissa do Ingress, jogo que tomamos

    como objeto de incurso nesse trabalho. Ao transitarem pela cidade em seus trajetos

    cotidianos e aparentemente de forma casual, os jogadores se apropriam do espao fsico,

    constroem relaes que ultrapassam os vnculos formais ou esperados sobre aqueles

    lugares. Da mesma forma como a arte de rua, estilos de msica e demais manifestaes

    artsticas, os jogos que misturam o espao fsico com o imaterial, o on-line e o off-line, o

  • Breno Maciel Souza Reis

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    Iluminuras, Porto Alegre, v. 16, n. 36, p.360-378, ago./dez. 2014

    comum e o fantstico, tambm expressam uma cultura urbana pulsante, cheia de vida, em

    cidades que so incessantemente desconstrudas, reconstrudas e ressimbolizadas atravs

    de seus usos criativos. Ou seja, (...) uma cultura urbana [que] se expressa no s por suas

    convenes gestuais, de linguagens recorrentes, especializaes profissionais de seus

    portadores, mas [que] se apresenta igualmente atravs de suas prticas ordinrias, saberes

    e tradies (Rocha; ECkert, 2013c: 25).

    Longe de esgotar as possibilidades de anlise em relao a um objeto ainda to

    recente e, ao mesmo tempo, to fundamental para o homem o jogo , temos cincia que

    aqui buscamos apontar algumas questes que podem servir de embasamento para que

    possamos pensar o objeto em mais profundidade em momento posterior, haja vista a

    prpria conciso desse trabalho. Tomando como horizonte tambm a compreenso da

    cidade como tessituras discursivas surgidas das prticas individuais e sociais em relao

    mesma; ou seja, como sugere Magnani (1992), a paisagem urbana, composta pelas suas

    composies arquitetnicas, urbansticas e sociais o resultado das prticas, intervenes

    e modificaes que a sua ocupao causa o que tambm corroborado por Certeau

    (1998). Nesse sentido e visando uma investigao mais profunda do nosso objeto,

    acreditamos que a antropologia urbana e a etnografia de rua se apresentam como

    poderosas fontes de dilogo com o campo da Comunicao.

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    Recebido em: 30/09/2014

    Aprovado em: 22/11/2014