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Jogos locativos, espaço e lugar: o caso de Ingress Locative game, space and place: a case study of Ingress LUIZ ADOLFO ANDRADE 1 RESUMO O presente trabalho analisa a função de espaço e lugar nos jogos digitais. Buscamos com- provar experiência realizada anteriormente em projetos semelhantes, desta vez através de um estudo de caso do jogo Ingress, feito com base no evento Ingress First Saturday realizado em Juazeiro e Petrolina. A hipótese sustenta que espaço oferece as bases para ação dos jogadores, que produz um processo de mediação consumado pela criação de um lugar temporário. Este tipo de jogabilidade só é possível a partir do uso de mídia locativa na configuração de puzzles, narrativa e mecânica de jogo. A escolha por Ingress se deu em função deste jogos ser considerado em referencial no âmbito dos jogos locativos. PALAVRAS-CHAVE: Jogos digitais, mídia locativa, espaço, lugar, Ingress. ABSTRACT This paper analyzes the role of space and place of in digital games culture. We seek to demonstrate experience previously held in similar projects, this time through a case study of Ingress, based on the Ingress First Saturday experiencia in Juazeiro and Petro- lina. The hypothesis holds that space provides the basis for action of the players, which produces a mediation process accomplished by creating a temporary place. This type of gameplay is only possible from the use of locative media in puzzles, story and game me- chanics settings. The choice of Ingress was due this game be considered an referential under the locative games scenario. KEY-WORDS: Digital games, locative media, espace, place, Ingress. INTRODUÇÃO O advento das mídias locativas renovou a função do espaço nos processos de co- municação, potencializando um fenômeno concebido por Falkheimer e Janssen (2006) como a “virada espacial nos estudos de mídia”. Anteriormente, o espaço figurava apenas como “um pano de fundo” no processo de comunicação, com pouca ou nenhuma importância. A partir do uso das mídias locativas, o espaço torna-se a base para a ação de emissores e receptores, deixando o segundo plano para figurar no âmago do processo (ANDRADE e MEDEIROS, 2013). Trama: Indústria Criativa em Revista. Dossiê: A Cidade e as Questões do Urbano. Ano 1, vol. 1, julho a novembro de 2015: 11-22. ISBN: 1519-9347

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Jogos locativos, espaço e lugar: o caso de Ingress

Locative game, space and place: a case study of Ingress

LUIZ ADOLFO ANDRADE1

RESUMO

O presente trabalho analisa a função de espaço e lugar nos jogos digitais. Buscamos com-provar experiência realizada anteriormente em projetos semelhantes, desta vez através de um estudo de caso do jogo Ingress, feito com base no evento Ingress First Saturday realizado em Juazeiro e Petrolina. A hipótese sustenta que espaço oferece as bases para ação dos jogadores, que produz um processo de mediação consumado pela criação de um lugar temporário. Este tipo de jogabilidade só é possível a partir do uso de mídia locativa na configuração de puzzles, narrativa e mecânica de jogo. A escolha por Ingress se deu em função deste jogos ser considerado em referencial no âmbito dos jogos locativos.

PALAVRAS-CHAVE: Jogos digitais, mídia locativa, espaço, lugar, Ingress.

ABSTRACT

This paper analyzes the role of space and place of in digital games culture. We seek to demonstrate experience previously held in similar projects, this time through a case study of Ingress, based on the Ingress First Saturday experiencia in Juazeiro and Petro-lina. The hypothesis holds that space provides the basis for action of the players, which produces a mediation process accomplished by creating a temporary place. This type of gameplay is only possible from the use of locative media in puzzles, story and game me-chanics settings. The choice of Ingress was due this game be considered an referential under the locative games scenario.

KEY-WORDS: Digital games, locative media, espace, place, Ingress.

INTRODUÇÃO

O advento das mídias locativas renovou a função do espaço nos processos de co-municação, potencializando um fenômeno concebido por Falkheimer e Janssen (2006) como a “virada espacial nos estudos de mídia”. Anteriormente, o espaço

figurava apenas como “um pano de fundo” no processo de comunicação, com pouca ou nenhuma importância. A partir do uso das mídias locativas, o espaço torna-se a base para a ação de emissores e receptores, deixando o segundo plano para figurar no âmago do processo (ANDRADE e MEDEIROS, 2013).

Trama: Indústria Criativa em Revista. Dossiê: A Cidade e as Questões do Urbano.Ano 1, vol. 1, julho a novembro de 2015: 11-22. ISBN: 1519-9347

Podemos apontar os jogos locativos como formato que evidencia este fenômeno da virada espacial. Neste caso, os jogadores utilizam smartphones e aplicativos com funções georreferenciadas para interagir em desafios que utilizam o espaço urbano como base das ações. O presente artigo analisa a função do espaço na cultura dos games, tomando como referencial a experiência nos jogos locativos. Buscamos comprovar a hipótese que o espaço torna-se a base para interação dos jogadores, impedindo seu uso aleatório nos jogos locativos. Deste modo, os jogos locativos poderão ser considerados um formato de jogo digital que faz oposição aos videogames.

Este trabalho é produzido com base em um estudo de caso do game Ingress (Goo-gle/Niantic Labs, 2012), que é referencial no cenário dos jogos locativos. Trata-se de um grande investimento no mercado de games e que vem obtendo sucesso considerá-vel de público e critica. O experimento foi conduzido em duas ocasiões nos meses de junho e julho de 2015, durante o Ingress First Saturday, evento realizado em Juazeiro - BA e Petrolina - PE.

Para desenvolver a discussão aqui proposta, iniciamos introduzindo uma noção de jogo locativo e uma breve descrição de Ingress. Em seguida, apresentamos o paradigma da computação ubíqua (ubicomp), que pode ser considerado uma das bases para o conceito de mídia locativa. No terceiro momento, discutimos as noções de mobilidade, espaço social e lugar para refletir formato dos jogos locativos e seu potencial para a comunicação social. Por fim, com base nos conceitos apresentados ao longo deste artigo, descrevemos nossas observações realizadas durante no Ingress First Saturday (IFC), evento que reúne vários jogares de Ingress em partidas simultâneas em todo mundo, disputado em Juazeiro – BA e Petrolina-PE.

JOGOS LOCATIVOS E INGRESS

Os jogos locativos utilizam o potencial das mídias locativas para criar um estilo de gameplay que utiliza a cidade como suporte para as ações dos jogadores. Deste forma, se aproximam das experiências lúdicas urbanas como Live Action Role Play, Pakour, dentre outras, mas com o diferencial de uso obrigatório de tecnologias e serviços baseados em localização na configuração de puzzles, narrativa e mecânica de jogo. O pioneirismo remonta ao projeto Geocaching, lançado no início dos anos 2000. Neste jogo, o público é desafiado a utilizar celulares e o sistema de posicionamento global (GPS) para esconder e encontrar recipientes chamados geocaches, ocultos em diferentes localizações nas cidades pelo mundo.

No Brasil, o pioneirismo pode ser atribuído à Vivo Telefonia, que lançou em 2004 o projeto Vivo em Ação. Este game figurou parte de uma campanha marketing. Vivo em Ação obrigava seus jogadores a interagir utilizando diversos serviços de comunicação do celular. O projeto teve mais três edições, estendo-se de 2004 até 2008.

Em 2005, foi lançado por aqui Alien Revolt, jogo desenvolvido pelo estúdio “M1nd Corporation” em parceria com Oi Telefonia e a Brasil Telecom. A proposta era integrar aos jogos para celular, elementos de RPGs multi-usuários (MMORPGs), além de tecnologias e serviços baseados em localização, convocando jogadores terráqueos para defender seu planeta de uma possível invasão alienígena. Em seguida, outros quatro projetos foram realizados até 2009, no Brasil – Senhor da Guerra: Invasão, CanYou See Me Now?, Gincana Global, Desafio T-Racer (Cf.: Mont’alverne, 2011).

Ao longo dos anos, os jogos locativos por muitas vezes dialogaram com outros gêne-ros de jogo digital semelhantes, por exemplo, os jogos de realidade alternativa. Os ARGs

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(sigla para alternate reality game) são jogos digitais que utilizam o potencial das novas tecnologias de informação e comunicação para criar uma forte impressão de mundo pa-ralelo na mente de seus jogadores. Os jogos de realidade alternativa surgiram também em 2001, com o lançamento de The Beast, jogo do filme “Inteligência Artificial”. Em alguns projetos, a mídia locativa era utilizada para informar a localização de itens de jogo, como foi o caso de I Love Bees (2004) e Zona Incerta. Em ambos os casos, o GPS foi utilizado para informar, respectivamente, a localização de telefones públicos nos Estados Unidos e fragmentos de um mapa em cidades do Brasil. Além de estimular essas incursões no espaço urbano, os primeiros ARGs também utilizavam a web para contar sua narrativa e impor alguns puzzles, disseminando conteúdo lúdico em perfis em redes sociais, vídeos no Youtube, websites, etc. A partir de 2010, com a popularização dos smartphones e o surgimento dos tablets, o desafio dos ARGs passou a envolver definitivamente para apli-cativos, que utilizam funções georreferenciadas para ampliar as possibilidades de criação dos game designers.

Em Ingress, o aplicativo pode ser baixado gratuitamente e instalado em um smar-tphone com sistema operacional Android ou iOS. Depois de criar uma conta gratuita, o jogador precisa escolher uma das duas fações – Enlightened (Iluminados) e Resistance (Resistência) – que travam uma batalha por portais de acesso à energia XM (Exotic Mat-ter). Trata-se de um componente misterioso que emana do solo terrestre oferecendo riscos à sociedade, dentre eles, a possibilidade de controlar nossa inteligência.

A disputa de Ingress também se desenvolve em ambientes da web, considerando tan-to sites mantidos pela Google e pela Niantic Labs, quanto nos fóruns criados pelos joga-dores. Por exemplo, domínios como “ingressforum.org2”, “ingresstips.com3”, o site da comunidade Ingress Enlightened Brasil4. Paralelamente, existe conteúdo criado pelos jo-gadores que podem interferir na jogabilidade de Ingress, como vídeos com tutorias e rela-tos de missões disponíveis no Youtube e as entradas criadas no Reddit5. Outra importante ferramenta para a disputa de Ingress é o mapa6 de portais criado pelos desenvolvedores e alimentado a partir das ações dos jogadores. Todos os usuários cadastrados no aplicativo podem acessar este mapa usando computadores situados em qualquer lugar do mundo

Após esta breve descrição inicial, podemos perceber como Ingress renovou a disputa de jogos como os ARGs, enfatizando o papel da localização e do lugar na rede destinada à comunicação em função do jogo. A seguir, buscamos caracterizar os ambientes utilizados para jogar Ingress à luz da noção de mídia locativa.

MÍDIA LOCATIVA E COMPUTAÇÃO UBÍQUA

A noção de mídia locativa pode ser associada ao paradigma da computação ubíqua, proposto pelo cientista Mark Weiser (1991) para sinalizar um novo capítulo na história da computação: a era pós – PC. No século XXI, previu Weiser, os computadores deixarão a condição de “máquinas em cima da mesa”, como os desktops e os notebooks, movendo-se das estações de trabalho para se infiltrar vida comum, oferecendo suporte em nossas interações com o mundo e com as outras pessoas.

A computação ubíqua representaria a terceira tendência na historia da computação (WEISER & SEELY-BROWN 1997). A primeira tendência é a “computação centralizada”, em que máquinas as máquinas ocupam posição central em ambientes específicos, cada uma sendo compartilhada por vários usuários simultaneamente. Um exemplo nesta linha são os mainframes, computadores de grandes proporções atualmente usados em bancos e estações de TV. A segunda tendência é a “computação pessoal”, em que cada computador é

associado diretamente a um usuário. Neste caso, podemos citar como exemplo os desktops, notebooks, laptops, dentre outros PCs. Finalmente, a terceira tendência é a “computação ubíqua”, na qual vários computadores assistem ao mesmo usuário, variando de acordo com a ocasião ou tarefa a ser executada. Aqui, podemos citar como exemplo os tablets, smartphones, sensores, computadores vestíveis como Google Glass, iWatch, etc.

O modelo de Weiser apresenta uma filosofia que prega a importância de dois ingredientes fundamentais para criação de um sistema de máquinas distribuído e de uso intuitivo. O primeiro é a comunicação, necessária para o compartilhamento rápido de informação entre os dispositivos interconectados. O segundo é a informação contextual, que requer quatro tipos de dados: (i) o nome da localização corrente do usuário; (ii) identidade do usuário e das pessoas próximas a ele; (iii) identidade e status dos computadores próximos ao usuário; (iv) parâmetros físicos como tempo, temperatura, iluminação, clima, etc (ANDRADE, 2015).

Deste modo, a exemplo do que aconteceu na computação centralizada e na computação pessoal, as tecnologias de computação ubíqua puderam também ser utilizadas para comunicação social, criando um vinculo interessante entre mídia digital e elementos de localização. Um conceito que pode ilustrar este tipo de apropriação é a noção de “mídia locativa”, definida como:

mídia de localização e de mobilidade. O fluxo comunicacional se dá localmente, identificando a posição do usuário e propondo serviços locais. Lugar e o contexto são elementos essenciais, exigindo a copresença de usuário, dispositivos, lugares, softwares. Isso favorece novos usos do espaço (LEMOS, 2010, p.01).

Partindo desta definição, podemos entender que a noção de mídia locativa está relacionada ao uso comum de LBT e LBS, respectivamente chamados tecnologias baseadas em localização (location-based technologies) e serviços baseados em localização (location-based services). A linha de tecnologias baseadas em localização inclui o GPS, etiquetas como QRCode e RFID, computadores tablets, smartphones, redes sem fio que dependem da localização de antenas e da cobertura de sinal de telefonia para operar, como 3G, 4G e WiFi, além do Bluetooth, que permite o envio em curta distância de mensagens de áudio, vídeo e texto. Já o conjunto dos serviços baseados em localização abarca aplicativos com funções georreferenciadas (Waze, CityTourMo-bile, Moovit, etc.); mapas configurados a partir de bancos de dados como Google Maps e Apple Mapkit, que permitem acesso e leitura rápida de informações geoespaciais; anotações urbanas (GPS wrinting/GPS draw), podendo ser criadas a partir de apps como Map My Ride, Strava, Map My Run; etiquetas georreferenciadas (GeoTags), browsers de realidade aumentada (Junaio, Layar, etc.), redes sociais que agregam informação geoespacial (Facebook, Foursquare, Twitter, etc.) às mensagens de usuários (posts, comentários, check-ins, tweets etc.), dentre outros.

Ingress colocou em jogo alternativas para uso criativo do potencial oferecido pelas mídias locativas, por exemplo, se apropriando do serviço oferecido pelas etiquetas georreferenciadas, que passam a figurar como mecânicas. Fixar etiquetas com informação georreferenciada configura um procedimento concebi por McCullough (Cf.: 2013, p.201) como “etiquetagem”. Para McCullough, a etiquetagem traduz um atividade sociocultural coletiva emergente no século XXI, feita com base na produção de introduziu um modo mais fácil e rápido de “anexar informação” na cidade que as telas, trazendo definitivamente o ciberespaço para o nível das ruas, mostrando um modo para articular as noções de localização e mobilidade

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JOGOS LOCATIVOS, MOBILIDADE E LUGAR

Conforme apresentamos, o sentido de mídia locativa se articula às noções de mobi-lidade e localização. Do ponto de vista epistemológico, Aharon Kellerman observa que a mobilidade refere-se ao “desejo natural do ser humano em ser móvel”, chamado pelo autor de “utilidade intrínseca” pois remete ao prazer hipodérmico emanado pela nossa capacidade de movimentar o corpo e a informação pelo espaço. Para Kellerman, a mobi-lidade pode ocorrer em duas vertentes principais: a física, relacionada ao deslocamento do corpo, incluindo também os modos que podem ocorrer através de meios de transporte; a virtual, envolvendo o movimento da informação que circula por diferentes sistemas de telecomunicações, dentre eles o ciberespaço.

Partindo das bases estabelecidas por Kellerman, André Lemos define a “cultura da mobilidade” a partir de três dimensões presentes na vida social contemporânea: (i) a física, que consiste no deslocamento dos corpos pelo espaço; (ii) a informacional, relacionada ao movimento de informação através dos meios de comunicação; (iii) a imaginária, correspondente à capacidade cognitiva do ser humano em “mover-se por meio da imaginação”. Para Lemos, a mobilidade sempre irá se manifestar através dessas dimensões, sendo que uma pode acabar se tornando reguladora da outra. Por exemplo, a mobilidade imaginária é capaz de determinar deslocamentos no espaço e estimular mobilidade informacional, que se manifesta na comunicação realizada durante nossa mobilidade física. Por outro lado, a mobilidade informacional pode incidir na mobilidade física, determinando os locais para onde nos dirigimos enquanto imaginamos, por exemplo, o que poderemos encontrar por lá.

Já a localização, por sua vez, é considerada um dos componentes que integram a noção de lugar, junto do “local” e do “sentido de lugar”. Localização corresponde à ao ponto no espaço ocupado pelo lugar, que é determinado por coordenadas de latitude e longitude. Local se relaciona à maneira como um lugar aparece, incluindo prédios, ruas, parques, dentre outros aspectos tangíveis, como elementos de estrutura e infraestrutura. O sentido de lugar é o efeito que emana dos simbolismos que podem ser associados a um lugar (CRESSWELL, 2004). Para Michel de Certeau, o lugar pode ser entendido como uma “produção social”, resultando em uma configuração instantânea de posições, em que os elementos envolvidos são distribuídos de acordo com relações de coexistência, seguindo a “lei do próprio”: eles se acham uns ao lado dos outros, cada qual ocupando seu lugar específico no tempo e no espaço. Um lugar é concreto, visível e simbólico, composto por três elementos, considerando os sentimentos e emoções que ele evoca.

A ideia de um processo de produção social de lugares remonta ao trabalho de Henri Lefebvre, que estabelece um processo temporário de produção simbólica. Este processo pode ser compreendido a partir de três tipologias de espaço, que se relacionam com diferentes escalas de tempo: (i) “espaço percebido”, de curta duração, podendo ser verificado a partir das práticas espaciais realizadas nos eventos que envolvem determinados tipos de construção social coletiva, como competições esportivas, jogos, comícios políticos, shows competições esportivas, dentre outros exemplos em que a ação social que é percebi-da torna-se determinante para a compreensão do sentido atribuído ao espaço; (ii) “espaço concebido”, de longa duração, vinculados às relações de produção e a consequente ordem imposta por elas - conhecimento, sinais, códigos e relações - onde pode-se identificar o que é vivido de acordo com o que é concebido; (iii) “espaço vivido”, de duração indeterminada, que se relaciona de forma direta ao lado “clandestino da sociabilidade”, sendo experimentado através de sua associação direta a imagens e símbolos, como o espaço apropriado cladestinamente por gangues, moradores de rua, camelôs, favelas etc.

Partindo das bases estabelecidas por Lefebvre, Rob Shields (1991) propõe a noção de “espacialização” para se referir a esses processos de contínua construção do espaço pe-las práticas sociais. Shields entende que uma espacialização se torna visível justamente através do sentido que as pessoas associam aos lugares no dia a dia. Ou seja, de acordo com Shields, a noção de espacialização define um processo social de produção de sentido que se manifesta através de diferentes atividades realizadas em nossa vida comum, cujo resultado pode ser concebido como lugar.

Os jogos locativos são experiências consumadas pela criação de um lugar temporário, chamado círculo mágico (SALEN e ZIMMERMAN, 2012). Esta tipologia de lugar aparece na lista de “terrenos de jogo” apresentada pioneiramente por Huizinga, sendo produzida a partir de um processo de espacialização com base na ação social dos jogadores. Trata-se de forma de supressão de tempo e espaço inerente a todos os estilos e modalidade de jogo, desde suportes lúdicos analógicos, como tabuleiros e cartas, até a hipermídia e as mídias locativas.

No caso dos jogos locativos, o círculo mágico apresenta algumas características peculiares, com as regras de transformação e as expansões social temporal e espacial. As regras de transformação são procedimentos que permitem a apropriação de elementos da realidade, como ruas, praças, prédios, monumentos etc., e transformá-los em peças do jogo (NIEUWDORP, 2005). A partir da ação dessas regras, os itens apropriados recebem uma função paralela que só faz sentido no contexto do jogo, caracterizando um processo concebido como enquadramento lúdico (ANDRADE, 2015).

Já as expansões do círculo mágico permitem um relacionamento singular de jogos como os locativos com a vida comum, a partir do potencial do lugar para a comunicação. A expansão espacial permite integrar o espaço urbano ao espaço lúdico, ampliando a nossa noção do espaço do jogo. A expansão temporal equilibra o tempo do jogo às configurações da realidade. No mesmo passo, acaba tolhendo do jogador a opção de apertar um botão de “paralisar o jogo”, procedimento muito comum nos videogames. Por fim a expansão social permite que o conteúdo lúdico atinja pessoas que não estão jogando e os faço perceber as ações em curso, oferecendo as opções de se tornar jogador, espectador, ignorar o jogo ou ainda confundir as ações do jogo com a realidade (MONTOLA et. Ali, 2009)

ESTUDO DE CASO: INGRESS FIRST SATURDAY EM JUAZEIRO/PETROLINA

Juazeiro e Petrolina são duas cidades coirmãs, conectadas por uma ponte sobre o Rio São-Francisco, que demarca a fronteira entre os estados da Bahia e de Pernambuco. Por conta desta proximidade, é comum que seus habitantes transitem constantemente entre os dois municípios no dia a dia, para realizar procedimentos comuns – fazer com-pras, trabalhar, estudar, lazer, realizar consultas médicas etc.

As duas cidades apresentam características favoráveis à prática de jogos como os locativos. O relevo plano de Juazeiro e Petrolina, que constitui o Vale do São Francisco, facilita a mobilidade física dos jogadores. Na mesma direção, o céu constantemente limpo e aberto, típico do clima semiárido, facilita a captação do sinal GPS e, conse-quentemente, a mobilidade informacional. Por fim, os municípios possuem juntos um número razoável de habitantes (cerca de 600 mil) que somado ao visual proporcionado pela Velho Chico e pela arquitetura local criam um cenário propício para disputa de jogos locativos.

Como já foi dito, a narrativa de Ingress é fundamentada no conflito entre dois gru-pos – Enlightened (Iluminados) e Resistance (Resistência) – que travam uma batalha

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por portais de acesso à energia XM (Exotic Matter). Para criar esses portais, basta foto-grafar a localização onde deseja fixá-lo e enviar para a produção do jogo, que decide se autoriza ou não sua abertura. Despois de instalado, o portal passa a ser associado às outras entradas dominadas pelo grupo ao qual seu criador está filiado. Neste cenário, o objetivo principal dos jogadores consiste em encontrar a maior quantidade de portais controlados pela sua facção. Quando sobe de level, a meta passa a ser conectar essas entradas de três em três, formando triângulos de diferentes tamanhos, usando como referenciais o aplicativo e localização do jogador.

O experimento que guiou este estudo foi conduzido no primeiro sábado dos meses de junho e julho de 2015, respectivamente em Juazeiro e Petrolina. Nas duas ocasiões, ocorreu um evento em âmbito mundial chamado Ingress First Saturday, no qual joga-dores das duas facções são desafiados a controlar o maior número de portais abertos, usando como referencial uma localização pré – determinada (uma praça, um bairro etc.) dentro de um intervalo de tempo de duas horas. Ao final, o grupo declarado ven-cedor foi aquele que conseguiu controlar mais portais e possuir mais jogadores que aumentaram seu level durante a partida.

Figura 1- Disposição de portais em Petrolina

A primeira partida foi realizada em Juazeiro – BA no dia 6 de junho, utilizando como referencial a Praça da Catedral, região central da cidade. Durante esse experimento, podemos constatar que as características físicas do local acabam interferindo no jogo. O centro de Juazeiro é formado por ruas estreitas e curtas, criando um genuíno labirinto

urbano que dificultou a tarefa de chegar ate os portais para defendê-los, ataca-los ou hackea-los. Esta atividade, que representa parte da diversão de jogar Ingress, pode nos mostrar os sinais da ação das regras de transformação e do enquadramento lúdico. Neste caso, as regras se apropriaram do formato estreito das ruas de Juazeiro e transformou a porção de espaço usada no jogo em um grande labirinto urbano. Já o enquadramento lúdico determinou uma função para as ruas utilizadas no jogo, desafiando os jogadores a percorre-las em busca dos portais.

A segunda partida que fez parte do experimento aqui descrito foi disputada em 04 de julho na cidade de Petrolina – PE, usando a região entre e a Catedral orla do Rio São Francisco (FIG.1). Neste caso, foi possível observar novamente a ação das regras de transformação e do enquadramento lúdico, que tornaram o Velho Chico o cenário da partida. Com ruas mais espaçadas e maiores em comprimento, os portais em Petro-lina ficavam mais afastados fisicamente, o que obrigou os jogadores a percorrerem uma distancia maior para interagir com essas etiquetas. Como desafio a parte, era preciso atacar e defender os portais.

Um detalhe importante é que a partida em Juazeiro foi disputada à noite, enquanto em Petrolina ocorreu no turno da tarde. Assim, o calor e o fluxo de pessoas comuns nas ruas foram diferentes em cada ocasião, interferindo no desempenho dos jogadores. Ana-lisando a forma que um portal assume na interface de usuário (Figura 2) e as possibilida des que os jogadores dispõem para interagir com essa entrada, podemos concebê-la como

FIG 02: Portal na Interface de usuário em Ingress

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uma etiqueta georreferenciada, visto que seu papel é vincular elementos da nar-rativa do jogo a uma localização especifica no espaço urbano. Para interagir com essas GeoTags típicas de Ingress, o jogador deve se aproximar fisicamente da lo-calização, usando como referencial a interface de usuário, mostrando como a ex-pansão espacial pode conectar os espaços lúdico e físico. Ao chegar no portal, o jogador pode realizar as seguintes ações: (i) hackear o portal, neste caso deve re-solver um puzzle chamado Glyph, que consiste em reproduzir sequencias de linhas na interface do celular para ganhar itens de jogos; (ii) atacar o portal com bom-bas, caso o mesmo pertencer à facção rival, até conseguir toma-lo; (iii) se o por-tal pertencer a sua facção, ele pode implanta escudos para defende-lo de ataques.

Na medida em que avança nas fases de Ingress, aumentam as distâncias necessárias para conectar os portais, forçando os jogadores a percorrerem trechos cada vez maiores, medidos até mesmo em quilômetros. Para acumular pontos, as linhas que formam os triângulos precisam envolver um número crescente das chamadas “unidades mentais”, itens do jogo que figuram analogia ao número real de habitantes naquela região. A porção de espaço usada para a disputa de Ingress pode revelar as nuances do círculo mágico dos jogos locativos, apontando as formas pelas quais esse lugar se apropria de elementos da realidade para transforma-los em peças do jogo.

Figura 3 - Jogadores posam para fotos ao final do Ingress First Saturday no centro de Petrolina

Outros aspectos puderam ser observados nas duas partidas. As pessoas comuns, aquelas que não estão jogando, podem desempenhar alguma função na disputa, atrapalhando a mobilidade física dos jogadores, fornecendo uma informação para ajudar e/ou confundir um jogador ou simplesmente gritando, aplaudindo etc. Outra observação importante deu conta de que a mobilidade dos jogadores na cidade interfere de forma importante nos movimentos realizados in game, conectando de uma forma peculiar o espaço do jogo, visualizado na tela do celular, ao espaço físico. Por fim, cabe destacar que o jogador em Ingress controla menos do tempo do jogo em comparação anos videogames tradicionais, visto que não existe a opção de “pausar” as ações durante a partida. Caso ele faça a opção por parar a disputa, pode perder todo o progresso adquirido ao longo daquela partida. Estes efeitos são provocados respectivamente

pelas expansões social, espacial e temporal que, junto das regras de transformação e do enquadramento lúdico, são deflagrados pelo processo de espacialização que produz o circulo mágico dos jogos locativos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir desta descrição, podemos constatar que as mídias locativas serviram como principal recurso usado na disputa de Ingress. Durante o experimento supra citado, foi possível notar que o GPS, uma genuína tecnologia baseada em localização, foi usado para determinar a distancia entre os jogadores e os portais de Ingress. Essas entradas, como foi dito, podem ser concebidas como GeoTags, etiquetas georreferenciadas que vinculam conteúdo do jogo à localização para onde o jogador deve se dirigir - tornan-do-se, portanto, um serviço baseado em localização. Outro aspecto importante para interação dos jogadores entre si e com os portais de Ingress são as redes de acesso 3G e 4G, que dependem de antenas fixas de telefonia para funcionar, sendo assim conce-bidas como tecnologias baseadas em localização. Por fim, outro recurso usado para o desenvolvimento do jogo é a base de dados geoespacial da plataforma Google Maps, que serviu para criar o desenho da interface de usuário de Ingress.

Ainda nesta experiência, foi possível verificar que espaço adquire nova função em jogos locativos, como Ingress. Nos videogames tradicionais, o espaço é um elemento “residual”, usado aleatoriamente como pano de fundo para a ação do jogador e exerce pouca ou nenhuma importância na interação. Deste modo, seu uso pode ser considerado aleatório, uma vez que é possível escolher qualquer espaço para jogar, podendo inclusive trocá-lo sempre que algo atrapalhar os jogadores (conversas, movimento de pessoas, ruídos, etc.). Basta acionar um botão de “pausa” o similar no painel do console e mudar de lugar.

Nos jogos locativos, esta alternativa não existe. O espaço escolhido para jogar deve permanecer o mesmo até o fim. Caso decida reiniciar o jogo para usar outro espaço, o jogador perde toda a progressão que adquiriu ao longo da partida em curso. Esta hipótese foi comprovada tanto na partida em Juazeiro quanto em Petrolina. Mesmo se o jogador quisesse, não era possível para trocar de espaço enquanto jogava Ingress durante o IFS. Em cada uma dessas partidas, a ação dos jogadores sobre o espaço urbano deflagrou um processo lúdico de espacialização, responsável por criar o circulo mágico, que envolveu o perímetro no entorno das localizações, cujo espaço foi usado como base para interação. Deste modo, criou-se um lugar, um circulo mágico, que figurou com mediador entre jogo, jogador e realidade, sendo de fundamental importância para a jogabilidade de Ingress.

Deste modo, foi possível perceber que as funções de espaço e lugar na cultura dos games são reconfiguradas pelo uso lúdico das mídias locativas, expoentes do modelo da computação ubíqua. Os lugares podem figurar como mediadores na experiência em jogos locativos, atribuindo sentido ao espaço, que serve de como base para interação dos jogadores, configurando um processo de produção social, concebido como espacialização. Por fim, concluímos que as mídias locativas, através da sua qualidade de agregar conteúdo informacional a localizações especificas no espaço, renovaram a cultura dos games, transformando a cidade no suporte para disputa de jogos como Ingress.

Cumpre ressaltar que trabalho aqui realizado não esgota as possibilidades de reflexão sobre jogos como os locativos. É importante identificar e compreender as formas

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de sociabilidade que podem emergir a partir do uso lúdico das mídias locativas. Por exemplo, a experiência de jogar Ingress pode revelar uma modalidade em linguagem transmídia, considerando que os movimentos e as escolhas do jogador podem ser orientados por conteúdo disseminado em diferentes ambientes. Estas informações pode ser encontradas na forma de tutoriais, fragmentos narrativos, dentre outros recursos que complementam a experiência de jogar Ingress.

REFERÊNCIAS

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NOTAS

1. Professor adjunto da Universidade do Estado da Bahia, atuando no curso de Jornalismo em Multimeios e no Programa de Pós-graduação em Educação, Cultura e Territórios Semiáridos (PPGESA). Doutor em Co-municação e Cultura (cibercultura) pela Universidade Federal da Bahia.

2. Disponível em: <ingressforum.org>. Acesso em: jul. 2015.

3. Disponível em: <ingresstips.com>. Acesso em: jul. 2015.

4. Disponível em: <https://sites.google.com/site/ctbaenl/home>. Acesso em: jul. 2015.

5. Disponível em: <http://www.reddit.com/r/Ingress/>. Acesso em: jul. 2015.

6. Disponível em <http://ingressportal.com/maps/>. Acesso em: jul. 2015

22 | Luiz Adolfo Andrade