a experiÊncia operÁria vila maria zÉlia: a repÚblica de jorge street (1917-1924)

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1 Universidade Nove de Julho – Uninove Curso: História Disciplina: História do Brasil III (2012-1) Professor responsável: Geraldo José Alves Renan dos Santos – 911114053 – 3.A – Manhã TEMÁTICA: A EXPERIÊNCIA OPERÁRIA VILA MARIA ZÉLIA: A REPÚBLICA DE JORGE STREET (1917-1924) “Percorrer os caminhos da história da classe operária significa recuperar as inúmeras dimensões de sua experiência, [...] no sentido de resgatar as práticas cotidianas dos trabalhadores, suas condições de existência, seu modo de vida.” (DECCA, 1990:8) A partir da segunda metade do século XIX começa no Brasil um processo de sucessivas transformações, passando pela abolição da escravidão, a expansão da economia rural, o aparecimento da burguesia financeira industrial e o surgimento de uma nova “classe”: o proletariado, formado no período de construção e instalação da República, composto por uma multidão de indivíduos, trabalhadores qualificados ou não, sujeitos as regras da indústria. Segundo José Murilo de Carvalho, a “grande presença escrava, [...] acrescida mais tarde dos imigrantes do país e do exterior, formou a massa proletária [...]” (CARVALHO, 2011:159), confirmando Claudio Batalha, que diz que o operariado era composto por homens e mulheres, entre brancos, negros, mulatos e imigrantes europeus, presentes nos mais diversos tipos de estabelecimentos industriais. (BATALHA, 2003:164-165). Nicolau Sevcenko, no livro “Orfeu extático na metrópole”, aponta as transformações ocorridas no Estado de São Paulo, no período de transição entre Império e República: “Desde que a nova sistemática da economia cafeeira entrou em ação, São Paulo passou a crescer numa escala espetacular e, de núcleo periférico com população flutuante, passou a pólo econômico mais dinâmico do país e a centro político onde eram decididos os destinos da República.

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Universidade Nove de Julho – UninoveCurso: HistóriaDisciplina: História do Brasil III (2012-1)Professor responsável: Geraldo José Alves

Renan dos Santos – 911114053 – 3.A – Manhã

TEMÁTICA: A EXPERIÊNCIA OPERÁRIA

VILA MARIA ZÉLIA: A REPÚBLICA DE JORGE STREET (1917-1924)

“Percorrer os caminhos da história da classe operária significa recuperar as inúmeras dimensões de sua experiência, [...] no sentido de resgatar as práticas cotidianas dos trabalhadores, suas condições de existência, seu modo de vida.” (DECCA, 1990:8)

A partir da segunda metade do século XIX começa no Brasil um processo de sucessivas

transformações, passando pela abolição da escravidão, a expansão da economia rural, o aparecimento da

burguesia financeira industrial e o surgimento de uma nova “classe”: o proletariado, formado no período

de construção e instalação da República, composto por uma multidão de indivíduos, trabalhadores

qualificados ou não, sujeitos as regras da indústria.

Segundo José Murilo de Carvalho, a “grande presença escrava, [...] acrescida mais tarde dos

imigrantes do país e do exterior, formou a massa proletária [...]” (CARVALHO, 2011:159), confirmando

Claudio Batalha, que diz que o operariado era composto por homens e mulheres, entre brancos, negros,

mulatos e imigrantes europeus, presentes nos mais diversos tipos de estabelecimentos industriais.

(BATALHA, 2003:164-165).

Nicolau Sevcenko, no livro “Orfeu extático na metrópole”, aponta as transformações ocorridas no

Estado de São Paulo, no período de transição entre Império e República:

“Desde que a nova sistemática da economia cafeeira entrou em ação, São Paulo passou a crescer numa

escala espetacular e, de núcleo periférico com população flutuante, passou a pólo econômico mais

dinâmico do país e a centro político onde eram decididos os destinos da República. [...] no período de 62

anos, de 1872 a 1934, São Paulo configurou uma prodigiosa taxa de crescimento populacional [...],

cresceu numa escala de 6,77% ao ano. Esses números pareciam justificar plenamente o refrão ufanista

de que ‘São Paulo é a cidade que mais cresce no mundo’. Atraídos por essa fabulosa acumulação de

recursos, de oportunidades na indústria e no comércio ou vislumbrando a possibilidade de

enriquecimento, multidões de famílias e indivíduos acorreram a São Paulo, vindos de todas as partes do

Brasil, dos países platinos e dos quatro cantos do mundo. [...] Ao chegar não encontrariam sequer uma

cidade; teriam que improvisar suas habitações e suas vidas, enfrentando um volume inexorável de

contrariedades.” (SEVCENKO, 2009:108-109).

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Percebemos que com a constante industrialização, São Paulo, que não passava de um pequeno

centro urbano, teve um crescimento populacional significativo, consequentemente se tornando um grande

mercado distribuidor em diversas áreas no início do século XX, assim como afirma Antonio Bandeira Júnior:

“Comparando, sob o ponto de vista industrial, o Estado de São Paulo com os demais Estados da

República, parece-nos poder afirmar ser ele o único que mantém estabelecimentos fabris em todos os

ramos, sendo que alguns deles só aqui existem, não somente tratando-se de todo o Brasil, como

também da América do Sul.” (BANDEIRA in DECCA, 1990:10).

Diante deste quadro, os inúmeros trabalhadores que se instalaram em São Paulo precisavam de

uma moradia, eis que começam a surgir os bairros populares, localizados na parte baixa da cidade, “bairros

varzeanos que se formavam contornando o centro”. (DECCA, 1990:18).

Entre os séculos XIX e XX, a habitação operária começa a se esboçar “n’um ininterrupto suceder de

pequenas habitações, [...] todas mais ou menos iguais, de estilo pobre ou indefinível” (PETRONE in FAUSTO,

1983:19), surgindo assim um “padrão operário de moradia, apontando conjuntamente o aparecimento e

proliferação de cortiços.” (DECCA, 1990:18).

Alguns exemplos de moradias operárias eram: as casas individuais, de três ou quatro cômodos,

tanto próprias quanto alugadas, era o melhor tipo de moradia operária; as vilas, compostas por uma série

de habitações anexas umas as outras, com cozinha e instalações sanitárias independentes; os cortiços, que

era uma forma de moradia coletiva, mas diferentes das vilas, tinha suas instalações sanitárias e a cozinha

para uso geral. (DECCA, 1987:30).

Na República Velha, a classe operária era considerada perigosa pela burguesia e pelos poderes

públicos, tanto social quanto higienicamente, a organização dos trabalhadores era considerada

extremamente prejudicial, segundo Maria Auxiliadora Guzzo de Decca: “A população operária, vista pelos

poderes constituídos geralmente como gente promíscua e ‘degenerada’, de hábitos nocivos e cultura

inferior, estaria potencial e efetivamente predisposta à criminalidade e à revolta.” (DECCA, 1990:49).

As habitações operárias coletivas eram precárias, as condições higiênicas e sanitárias inadequadas e

consequentemente motivo de epidemias, “[...] o ‘estado sanitário da capital’ era considerado bastante ruim

de maneira geral. [...], os bairros operários e pobres sofriam com a falta de saneamento.” (DECCA,

1987:39), o poder público, portanto, visando habitações mais higiênicas, estimulou a construção de vilas

operárias “[...] tanto em terrenos municipais quanto em áreas desapropriadas, propondo uma série de

facilidades [...]. Essas facilidades [...] tinham como objetivo a construção de habitações operárias melhores

do que os cortiços, mais higiênicas [...]” (MORANGUEIRA, 2006:32), assim, algumas indústrias começaram a

construir vilas operárias anexas às suas instalações produtivas.

Uma das primeiras vilas operárias a surgir em São Paulo, foi a Vila Maria Zélia, idealizada pelo

médico e empresário Jorge Street, proprietário da Companhia Nacional de Tecidos de Juta, unindo o sonho

dos operários de ter uma moradia e o seu de construí-las, considerava que a indústria fazia parte da vida

dos operários, sabia também que a insatisfação dos funcionários poderia causar greves. Segundo Street:

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“Não há trabalho realmente fecundo sem pelo menos alguma alegria de viver e sem a consciência de

que essa vida se passa em condições compatíveis com a dignidade humana, que não degradem e

humilhem. No que eu observava, tal dignidade não podia existir e era natural o sentimento de profundo

descontentamento, tão próximo da revolta que a situação existente gerava.” (STREET in

MORANGUEIRA, 2006:87).

A Vila Operária Maria Zélia, inaugurada em 1917, contava com 198 residências para abrigar os dois

mil e cem funcionários da fábrica, e também com duas escolas (uma para meninos, outra para meninas),

creche, igreja, campo de futebol, etc., uma pequena cidade construída com tudo o que o operariado

precisava, como podemos observar na descrição feita por Street:

“ao redor da fábrica mandei construir casas para a moradia dos trabalhadores com toda a comodidade e

conforto da vida social atual [...] depois de um grande parque com coreto para concertos, salão para

representações e baile; escola de canto coral e música, um campo de Football; uma grande igreja com

batistério; um grande armazém com tudo o que o operário possa ter necessidade para sua vida, [...] uma

sala de cirurgia-modelo e uma grande farmácia [...] uma escola para os filhos de operários e creches

para lactantes [...]. Quis dar ao operário [...] a possibilidade de não precisar sair do âmbito da pequena

cidade que fiz construir a margem do rio, nem para a mais elementar necessidade da vida [...].” (STREET

in MORANGUEIRA, 2006:86-87).

A relação entre operário e patrão não se restringia somente ao ambiente fabril, foram criados

também laços de afetividade entre estes, frequentemente a família Street organizava festas com o

propósito de se aproximar dos operários, “como se todos pertencessem a uma mesma família”.

(MORANGUEIRA, 2006: 89), criando assim um laço paternalista, que, segundo Vanderlice Morangueira,

caracterizava-se da seguinte forma: “ (...) 1) presença física do patrão nos locais de produção, e mesmo a

moradia patronal; 2) linguagem e prática de tipo familiar entre patrões e operários; 3) adesão dos

trabalhadores a esse modo de organização.” (MORANGUEIRA, 2006:94).

Na Vila Maria Zélia “[...] toda comemoração [...] contava com uma missa de benção e

agradecimento.” (MORANGUEIRA, 2006:127), e em meio à muitas manifestações carinhosas por parte dos

operários, Jorge Street aproveitava para conversar com estes, na intenção de mostrar que “o trabalho

dignificava o homem e que este, associado à disciplina e à obediência, poderia modificar o mundo.”

(MORANGUEIRA, 2006:92)

Os moradores consideravam Jorge Street como um pai, pois além da fábrica, tinham a vila que era

um espaço de conforto e lazer, estavam sempre unidos em comemorações, tanto que “falavam dos

benefícios concedidos, da moradia, do trabalho e do patrão com orgulho.” (MORANGUEIRA, 2006:94), se

sentiam protegidos pelo patrão, mas o “paternalismo” exercido por Street, era também uma forma de

manipulação para com os empregados, que tinham até o tempo de lazer controlado, com o intuito de

“evitar os desvios de moral, controlar as revoltas, [...] e as possíveis associações sindicais, principalmente as

idéias anarquistas.” (MORANGUEIRA, 2006:93).

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José Murilo de Carvalho, no livro Os Bestializados, ressalta que: “Todo sistema de dominação, para

sobreviver, terá de desenvolver uma base qualquer de legitimidade, ainda que seja a apatia dos cidadãos.”

(CARVALHO, 2011:11), e pode se comparar ao que acontecia na Vila Maria Zélia, Jorge Street legitimava seu

poder com a apatia dos operários, que “bestializados”, não percebiam que esse paternalismo, acabava por

deixá-los impossibilitados de se organizarem contra o patrão, que lhes cedia tantos benefícios.

A Igreja, também, exercia uma forma de controle sobre os moradores da vila, pois “defendia o

direito a uma organização sindical, mas que não pregasse a greve, a anarquia, propondo uma conciliação

entre patrões e empregados, defendendo a prática da religião católica, contra as idéias socialistas.”

(MORANGUEIRA, 2006:99). Morangueira ainda nos mostra como o Jornal A Plebe interpretava a existência

da Igreja na Vila Maria Zélia: “(...) A fábrica Maria Zélia afim de que os negócios corram bem com o auxílio

de Deus e dos padres, possue uma capella, onde se celebram funções funambulescas do ritual padrecal.” (A

Plebe 03/10/1919 in MORANGUEIRA, 2006:103). O jornal A Plebe, ainda afirmava o “paternalismo

manipulador” de Jorge Street, tendo o padre como colaborador:

“Referimo-nos a fábrica Maria Zélia, ao cujo redor a companhia nacional de Juta construiu uma cidadela

isolada inteiramente do convívio social e onde a vontade patronal, tendo por servidores seus capatazes

e o padre da igreja da vila, impera discricionariamente, de maneira absoluta, encontrando-se os que por

necessidade ali vivem numa situação de escravos livres.” (A Plebe 18/02/1920 in MORANGUEIRA,

2006:166).

Fica evidente o paternalismo que Street desempenhava, “o que não deixava de ser uma forma de

cooptar os operários e ainda fortalecer os laços de afetividade entre eles.” (MORANGUEIRA, 2006:92),

podemos ver o orgulho ao falar do patrão no depoimento de uma moradora da vila:

"Ele não foi nem patrão aqui, viu? Ele foi pai aqui da vila e dos operários daqui, porque ele foi bom, bom

demais, viu? ... Quando ele se encontrava na vila todo mundo ficava contente, as crianças corriam,

abraçavam, ficavam perto, nem parecia ele; mesma coisa que fosse uma pessoa que entrasse no portão

e viesse conversar com a gente... Assim como gente amiga... Que parava para conversar, era muito,

muito amigo daqui." (depoimento de Cinta Ramos Amantea in MORANGUEIRA, 2006:89).

Em meados da década de XX, as “[...] contestações operárias recrudescem nas capitais [...]”

(SEVCENKO, 2008:37), Street sabendo de boatos de uma greve na sua indústria recorre para o emocional

dos operários, lembrando da relação familiar que tinha com os empregados, diz: “E ainda que houvesse,

alguma coisa que nos dividisse, aqui há um elo intangível entre nós, um elo que fará sempre, em qualquer

caso, desaparecer mal entendidos e malquerenças entre nós – são vossos filhos.” (MORANGUEIRA,

2006:95).

Não ocorreram greves na fábrica, mas sim protestos contra os diretores, pois estes “[...] cometiam

arbitrariedades, com certeza, sem o conhecimento do industrial (Jorge Street).” (MORANGUEIRA, 2006:96),

e os protestantes “tinham a certeza de resolver o conflito estabelecido entre os operários e o patrão.”

(MORANGUEIRA, 2006:97).

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Enfim, a experiência operária na Vila Maria Zélia pode ser vista de diversas formas. A vila surgiu

como moradia ideal, num momento em que as habitações operárias eram consideradas precárias, a vila

contava com tudo o que o operariado precisava, e ainda o industrial Jorge Street, como estratégia de

dominação, desenvolveu laços afetivos com os moradores, e a partir do seu “paternalismo” os manipulava

tanto direta quanto indiretamente, fazendo com que os operários ficassem impotentes diante de suas

imposições.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BATALHA, Claudio Henrique de Moraes. Formação da classe operária e projetos de identidade coletiva, in:

FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (org.) - O Brasil Republicano I: O Tempo do

Liberalismo Excludente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, pp. 161-189.

CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3ªedição. São Paulo:

Companhia das Letras, 2011.

DECCA, Maria Auxiliadora Guzzo de. A vida fora das fábricas: cotidiano operário em São Paulo (1920-1934).

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

DECCA, Maria Auxiliadora Guzzo de. Cotidiano de trabalhadores na República: São Paulo 1889-1940. São

Paulo: Brasiliense, 1990.

FAUSTO, Boris. Trabalho urbano e conflito social. São Paulo: Brasiliense, 1976.

MORANGUEIRA, Vanderlice de Souza. Vila Maria Zélia: visões de uma vila operária em São Paulo (1917-

1940). São Paulo: FFLCH-USP, 2006.

SEVCENKO, Nicolau. O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso, in: SEVCENKO, N.

(org.). História da Vida Privada no Brasil (v. 3). São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 7-48.

SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura, nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.