a experiência da náusea
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A EXPERIÊNCIA DA NÁUSEA
Jefferson Eduardo da P. Barbosa
Levou semanas, meses, para se acostumar outra vez com a
realidade de todos os dias, anterior a sua imersão, a ver um
corpo, um rosto, um lugar qualquer, como uma entidade
constituída e não com uma série infinita de pontos em
suspensão, sem outra relação entre eles além de duas ou três
leis mecânicas e rudimentares.
Juan José Saer
Os objetos que agrupamos sob o nome de “literatura” comportam diferenças que
nos faz questionar a pertinência de estarem, muitos deles, juntos numa mesma classe de
seres. Um termo tão geral só pode designar uma generalidade que os convoca. A
literatura – e tudo o que podemos agrupar sob esse nome – é ficção (mesmo que haja
vertentes que se denominem “não-ficção”, um tipo de realismo jornalístico cuja
pretensão maior é a de espelhar a realidade, o que significa apenas um desconhecimento
de sua própria prática).
Todavia, há livros de outras variedades que pretendem dizer a verdade, como os
de história ou mesmo de filosofia, e há livros que apenas propõem uma experiência,
livros que são experimentos. Foucault os chamou, certa vez, de “livros-experiência”, em
oposição aos “livros-verdade”. São livros que, depois de lidos, não podemos mais ser os
mesmos que éramos antes de lê-los.
A experiência-limite, termo que toma emprestado de Bataille, nos separa de nós
mesmos, arremessa-nos para longe, obriga-nos a pensar de outra maneira, a agir de
outra maneira. Essa característica própria dos livros-experiência não constitui um
conceito que nos permita separar rigorosamente certos livros de outros. A experiência-
limite é individual, isto é, o efeito de um livro sobre um indivíduo depende do complexo
de suas disposições e de sua história, de sua, como dizem, memória afetiva. Um livro
mal reputado pode, em dado momento da vida de alguém, modificar o seu saber sobre o
universo, sobre as leis, sobre a alma etc., e sua relação, portanto, consigo mesmo e com
os outros. Não vou me deter em questões tão imprecisas quanto complexas.
Eduardo Gianetti, economista que também escreve, além de textos sobre
economia, romances e ensaios filosóficos, disse, numa entrevista, que seus romances
eram “laboratórios de metafísica aplicada”. Seu último livro publicado, Ideia fixa, é um
romance que faz o seguinte experimento: como vive um homem que descobre o
fisicalismo, não podendo mais seguir seu caminho sem testemunhar em tudo que o cerca
a evidência implacável de seus preceitos? O livro é um experimento e propõe uma
experiência que conduz o indivíduo ao limite, obrigando-o a pensar diferente, a ser, ao
menos por um instante, diferente do que é.
A Náusea (1938), primeiro romance de Jean-Paul Sartre, é um livro-experiência,
um laboratório e um experimento que funciona como crítica dos valores e do
humanismo. O que Sartre experimenta em seu romance é uma radicalização da dúvida
cartesiana, mas não para criticar as bases do conhecimento e assim reformá-lo sob ideias
claras e distintas. A Náusea assemelha-se ao Discurso do método, porém, seu alcance
toca o próprio sentido da existência humana (BORNHEIM, 2003). Trataremos, agora,
da experiência filosófica da náusea, ou o êxtase do não-saber que assombra a literatura.
O personagem Antoine Roquentin é um jovem escritor que vive numa cidade da
França e trabalha na composição de uma biografia sobre um político do século XVII, o
marquês de Rollebon. A Náusea é escrito em forma de diário, através do qual
acompanhamos passo a passo a descoberta do personagem, seus assombros mais
íntimos diante da experiência que mudará sua vida, o seu mal estar diante da evidência
de uma verdade essencial que diz respeito profundamente à realidade humana.
Roquentin, o pequeno-burguês, talvez não tivesse ascendido a tal experiência se não
levasse uma vida fechada numa rotina tediosa, tão fria e repetitiva, uma solidão quase
impenetrável. O tédio em que vive é uma disposição essencial e contribui, sem dúvida,
para a sua descoberta. A fadiga que ele mesmo não compreende de início, o seu
cansaço, anuncia a experiência de estranhamento que é, para usar uma expressão muito
apropriada de Heidegger, a manifestação do ente em sua totalidade (HEIDEGGER, p.
236).
A descoberta do nada que ele mesmo, Roquentin, é, dá-se por meio do tédio, “o
profundo tédio, que como névoa silenciosa desliza para cá e para lá nos abismos da
existência, nivelando todas as coisas (...) numa estranha indiferença” (Ibid.). Na vida
cotidiana temos em vista este ou aquele ente com o qual nos ocupamos – no caso de
Roquentin, o seu livro sobre Rollebon o impede de ver, enquanto dura a sua atividade, a
radical ausência de sentido que leva a vida de todo existente. A experiência que instaura
um novo modo de ser para Roquentin, um novo conhecimento de si e do mundo, não é a
aquisição de um princípio intelectual. Esse rapaz sem importância coletiva, esse
indivíduo como tantos outros, descobre o nada que ele mesmo é, a pura e esmagadora
contingencia da vida, devido a uma disposição de humor fundamental: a angústia. A
experiência da angústia que Heidegger descreve em Que é metafísica? se aplica
perfeitamente a Roquentin:
Na angústia – dizemos nós – “a gente se sente estranho”. O que suscita tal
estranheza e quem é por ela afetado? Não podemos dizer diante de que a gente
se sente estranho. A gente se sente totalmente assim. Todas as coisas e nós
mesmos afundamo-nos numa indiferença. Isto, entretanto, não no sentido de um
simples desaparecer, mas em se afastando eles se voltam para nós. Este afastar-
se do ente em sua totalidade, que nos assedia na angústia, nos oprime. Não resta
nenhum apoio. Só resta e nos sobrevém – na fuga do ente – este “nenhum” (p.
237).
O que incomoda Roquentin e faz com que ele se interesse de maneira muito
estranha pelas coisas, mergulhado numa imensa insatisfação, num enjoo insistente
diante dos objetos, é a profunda indeterminação e desconhecimento de si mesmo como
pessoa – uma vez que sua postura como sujeito não é abalada. Essa angústia diante da
indeterminação e da ausência de fundamento, como veremos, é um dos pontos
privilegiados da grande obra filosófica de Sartre, O ser e o nada.
A experiência de Roquentin, a sua alucinação – pois a ausência de fundamento
impossibilita qualquer conhecimento sobre a realidade – é similar a uma iluminação, a
uma compreensão profunda da realidade, mas que nada soluciona – ele se choca com o
limite e nenhum entendimento é possível, pois ainda que haja o sujeito do
conhecimento, o objeto é absolutamente opaco e intransponível. A Náusea, uma vez
descoberta, não vai embora, não é curável. O nada que ela manifesta é o próprio ser
humano – “a Náusea sou eu” (SARTRE, p. 187), escreve Roquentin, num estágio já
avançado de sua enfermidade.
A experiência de Roquentin é trágica, não tem solução – o que se apresenta no
final do romance, a “salvação pela arte”, não é mais que um desvio de sua visão
intolerável. Ele permanece o sujeito que é, tratando a si e aos outros como objetos.
Como pode constatar no início, algo mudou, “há algo de novo, uma determinada
maneira de segurar meu cachimbo ou meu garfo” (Ibid.p 17), mas não sabe ao certo o
que mudou – “é uma mudança abstrata que não se fixa em nada” (Ibid.p 18). Ele
continua: “Fui eu que mudei? Se não fui eu, então foi esse quarto, essa cidade, essa
natureza; é preciso decidir. Acho que fui eu que mudei: é a solução mais simples. A
mais desagradável também” (Ibid. p. 18). Que ele, Roquentin, já não seja o mesmo, não
lhe soa bem. Todavia, sob a mudança ele permanece o mesmo, um sujeito, um centro
luminoso, uma zona clara, e quanto a isso não há o que fazer – exceto matar-se.
Um experimento similar feito por Samuel Beckett em O Inominável (1954) dilui
a certeza daquilo que para Sartre não poderia ser atacado de nenhuma maneira: o sujeito
como princípio. Aquilo que experimentamos em Sartre como tragédia, experimentamos
em Beckett, de modo ainda mais radical, como cinismo. A Náusea é filosoficamente
moderno – e como tal não abandona os dualismos que estruturam a filosofia moderna.
É uma experiência do desenraizamento. Roquentin, no percurso que leva à sua
revelação, descobre a exterioridade, um fora totalmente outro em relação à realidade
humana, mas que diz sobre ela algo essencial. O que o choca, na verdade, é o caráter
não humano disso que se desvela para a sua consciência. Sente que qualquer
determinação que advenha dos valores humanos é perfeitamente inútil, um
mascaramento que beira a canalhice – como no caso do Autodidata, na cena em que
discutem sobre o humanismo.