a experiência da náusea

7
A EXPERIÊNCIA DA NÁUSEA Jefferson Eduardo da P. Barbosa Levou semanas, meses, para se acostumar outra vez com a realidade de todos os dias, anterior a sua imersão, a ver um corpo, um rosto, um lugar qualquer, como uma entidade constituída e não com uma série infinita de pontos em suspensão, sem outra relação entre eles além de duas ou três leis mecânicas e rudimentares. Juan José Saer Os objetos que agrupamos sob o nome de “literatura” comportam diferenças que nos faz questionar a pertinência de estarem, muitos deles, juntos numa mesma classe de seres. Um termo tão geral só pode designar uma generalidade que os convoca. A literatura – e tudo o que podemos agrupar sob esse nome – é ficção (mesmo que haja vertentes que se denominem “não-ficção”, um tipo de realismo jornalístico cuja pretensão maior é a de espelhar a realidade, o que significa apenas um desconhecimento de sua própria prática). Todavia, há livros de outras variedades que pretendem dizer a verdade, como os de história ou mesmo de filosofia, e há livros que apenas propõem uma experiência, livros que são experimentos. Foucault os chamou, certa vez, de

Upload: jefferson-barbosa

Post on 06-Feb-2016

3 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

fgbh

TRANSCRIPT

Page 1: A Experiência Da Náusea

A EXPERIÊNCIA DA NÁUSEA

Jefferson Eduardo da P. Barbosa

Levou semanas, meses, para se acostumar outra vez com a

realidade de todos os dias, anterior a sua imersão, a ver um

corpo, um rosto, um lugar qualquer, como uma entidade

constituída e não com uma série infinita de pontos em

suspensão, sem outra relação entre eles além de duas ou três

leis mecânicas e rudimentares.

Juan José Saer

Os objetos que agrupamos sob o nome de “literatura” comportam diferenças que

nos faz questionar a pertinência de estarem, muitos deles, juntos numa mesma classe de

seres. Um termo tão geral só pode designar uma generalidade que os convoca. A

literatura – e tudo o que podemos agrupar sob esse nome – é ficção (mesmo que haja

vertentes que se denominem “não-ficção”, um tipo de realismo jornalístico cuja

pretensão maior é a de espelhar a realidade, o que significa apenas um desconhecimento

de sua própria prática).

Todavia, há livros de outras variedades que pretendem dizer a verdade, como os

de história ou mesmo de filosofia, e há livros que apenas propõem uma experiência,

livros que são experimentos. Foucault os chamou, certa vez, de “livros-experiência”, em

oposição aos “livros-verdade”. São livros que, depois de lidos, não podemos mais ser os

mesmos que éramos antes de lê-los.

A experiência-limite, termo que toma emprestado de Bataille, nos separa de nós

mesmos, arremessa-nos para longe, obriga-nos a pensar de outra maneira, a agir de

outra maneira. Essa característica própria dos livros-experiência não constitui um

conceito que nos permita separar rigorosamente certos livros de outros. A experiência-

limite é individual, isto é, o efeito de um livro sobre um indivíduo depende do complexo

de suas disposições e de sua história, de sua, como dizem, memória afetiva. Um livro

mal reputado pode, em dado momento da vida de alguém, modificar o seu saber sobre o

Page 2: A Experiência Da Náusea

universo, sobre as leis, sobre a alma etc., e sua relação, portanto, consigo mesmo e com

os outros. Não vou me deter em questões tão imprecisas quanto complexas.

Eduardo Gianetti, economista que também escreve, além de textos sobre

economia, romances e ensaios filosóficos, disse, numa entrevista, que seus romances

eram “laboratórios de metafísica aplicada”. Seu último livro publicado, Ideia fixa, é um

romance que faz o seguinte experimento: como vive um homem que descobre o

fisicalismo, não podendo mais seguir seu caminho sem testemunhar em tudo que o cerca

a evidência implacável de seus preceitos? O livro é um experimento e propõe uma

experiência que conduz o indivíduo ao limite, obrigando-o a pensar diferente, a ser, ao

menos por um instante, diferente do que é.

A Náusea (1938), primeiro romance de Jean-Paul Sartre, é um livro-experiência,

um laboratório e um experimento que funciona como crítica dos valores e do

humanismo. O que Sartre experimenta em seu romance é uma radicalização da dúvida

cartesiana, mas não para criticar as bases do conhecimento e assim reformá-lo sob ideias

claras e distintas. A Náusea assemelha-se ao Discurso do método, porém, seu alcance

toca o próprio sentido da existência humana (BORNHEIM, 2003). Trataremos, agora,

da experiência filosófica da náusea, ou o êxtase do não-saber que assombra a literatura.

O personagem Antoine Roquentin é um jovem escritor que vive numa cidade da

França e trabalha na composição de uma biografia sobre um político do século XVII, o

marquês de Rollebon. A Náusea é escrito em forma de diário, através do qual

acompanhamos passo a passo a descoberta do personagem, seus assombros mais

íntimos diante da experiência que mudará sua vida, o seu mal estar diante da evidência

de uma verdade essencial que diz respeito profundamente à realidade humana.

Roquentin, o pequeno-burguês, talvez não tivesse ascendido a tal experiência se não

levasse uma vida fechada numa rotina tediosa, tão fria e repetitiva, uma solidão quase

impenetrável. O tédio em que vive é uma disposição essencial e contribui, sem dúvida,

para a sua descoberta. A fadiga que ele mesmo não compreende de início, o seu

cansaço, anuncia a experiência de estranhamento que é, para usar uma expressão muito

apropriada de Heidegger, a manifestação do ente em sua totalidade (HEIDEGGER, p.

236).

A descoberta do nada que ele mesmo, Roquentin, é, dá-se por meio do tédio, “o

profundo tédio, que como névoa silenciosa desliza para cá e para lá nos abismos da

Page 3: A Experiência Da Náusea

existência, nivelando todas as coisas (...) numa estranha indiferença” (Ibid.). Na vida

cotidiana temos em vista este ou aquele ente com o qual nos ocupamos – no caso de

Roquentin, o seu livro sobre Rollebon o impede de ver, enquanto dura a sua atividade, a

radical ausência de sentido que leva a vida de todo existente. A experiência que instaura

um novo modo de ser para Roquentin, um novo conhecimento de si e do mundo, não é a

aquisição de um princípio intelectual. Esse rapaz sem importância coletiva, esse

indivíduo como tantos outros, descobre o nada que ele mesmo é, a pura e esmagadora

contingencia da vida, devido a uma disposição de humor fundamental: a angústia. A

experiência da angústia que Heidegger descreve em Que é metafísica? se aplica

perfeitamente a Roquentin:

Na angústia – dizemos nós – “a gente se sente estranho”. O que suscita tal

estranheza e quem é por ela afetado? Não podemos dizer diante de que a gente

se sente estranho. A gente se sente totalmente assim. Todas as coisas e nós

mesmos afundamo-nos numa indiferença. Isto, entretanto, não no sentido de um

simples desaparecer, mas em se afastando eles se voltam para nós. Este afastar-

se do ente em sua totalidade, que nos assedia na angústia, nos oprime. Não resta

nenhum apoio. Só resta e nos sobrevém – na fuga do ente – este “nenhum” (p.

237).

O que incomoda Roquentin e faz com que ele se interesse de maneira muito

estranha pelas coisas, mergulhado numa imensa insatisfação, num enjoo insistente

diante dos objetos, é a profunda indeterminação e desconhecimento de si mesmo como

pessoa – uma vez que sua postura como sujeito não é abalada. Essa angústia diante da

indeterminação e da ausência de fundamento, como veremos, é um dos pontos

privilegiados da grande obra filosófica de Sartre, O ser e o nada.

A experiência de Roquentin, a sua alucinação – pois a ausência de fundamento

impossibilita qualquer conhecimento sobre a realidade – é similar a uma iluminação, a

uma compreensão profunda da realidade, mas que nada soluciona – ele se choca com o

limite e nenhum entendimento é possível, pois ainda que haja o sujeito do

conhecimento, o objeto é absolutamente opaco e intransponível. A Náusea, uma vez

descoberta, não vai embora, não é curável. O nada que ela manifesta é o próprio ser

humano – “a Náusea sou eu” (SARTRE, p. 187), escreve Roquentin, num estágio já

avançado de sua enfermidade.

Page 4: A Experiência Da Náusea

A experiência de Roquentin é trágica, não tem solução – o que se apresenta no

final do romance, a “salvação pela arte”, não é mais que um desvio de sua visão

intolerável. Ele permanece o sujeito que é, tratando a si e aos outros como objetos.

Como pode constatar no início, algo mudou, “há algo de novo, uma determinada

maneira de segurar meu cachimbo ou meu garfo” (Ibid.p 17), mas não sabe ao certo o

que mudou – “é uma mudança abstrata que não se fixa em nada” (Ibid.p 18). Ele

continua: “Fui eu que mudei? Se não fui eu, então foi esse quarto, essa cidade, essa

natureza; é preciso decidir. Acho que fui eu que mudei: é a solução mais simples. A

mais desagradável também” (Ibid. p. 18). Que ele, Roquentin, já não seja o mesmo, não

lhe soa bem. Todavia, sob a mudança ele permanece o mesmo, um sujeito, um centro

luminoso, uma zona clara, e quanto a isso não há o que fazer – exceto matar-se.

Um experimento similar feito por Samuel Beckett em O Inominável (1954) dilui

a certeza daquilo que para Sartre não poderia ser atacado de nenhuma maneira: o sujeito

como princípio. Aquilo que experimentamos em Sartre como tragédia, experimentamos

em Beckett, de modo ainda mais radical, como cinismo. A Náusea é filosoficamente

moderno – e como tal não abandona os dualismos que estruturam a filosofia moderna.

É uma experiência do desenraizamento. Roquentin, no percurso que leva à sua

revelação, descobre a exterioridade, um fora totalmente outro em relação à realidade

humana, mas que diz sobre ela algo essencial. O que o choca, na verdade, é o caráter

não humano disso que se desvela para a sua consciência. Sente que qualquer

determinação que advenha dos valores humanos é perfeitamente inútil, um

mascaramento que beira a canalhice – como no caso do Autodidata, na cena em que

discutem sobre o humanismo.