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13 A expansão do patrimônio: novos olhares sobre velhos objetos, outros desafios…* IZABELA TAMASO** Resumo: Nas últimas décadas assistimos à expansão significativa da afeição pelo patrimônio. Unesco e Iphan ampliam as políticas públicas para os patrimônios com objetivo de atender ao vasto repertório de expressões culturais e à pluralidade das identidades sociais. O decreto que instituiu o registro dos “bens culturais de natureza imaterial” tem provocado especial interesse dos antropólogos. Se as “referências culturais” são o que se considera “cultura”, elas sempre foram o objeto de registro mais caro dos folcloristas e antropólogos. Contudo, uma diferença há e não é de objeto, mas sim epistemológica. Importa refletir sobre a responsabilidade social dos antropólogos inventariantes, que ao participarem do processo de inventário e/ou registro de um bem cultural realizam laudos culturais sobre grupos específicos. Analogias com as práticas de antropólogos indigenistas são oportunas. Reflexões antropológicas de ordem teórica e ética se impõem ante o novo desafio. Palavras-chave: patrimônio cultural; antropologia; políticas públicas; laudos; ética. Nas últimas décadas, pudemos observar a crescente velocidade com a qual se espalharam mundialmente as obsessões com o passado e, sobretudo, com o que nós costumamos chamar de “patrimônio” (Canclini, 1994; Certeau, 1994; Jeudy, 1990; Lowenthal, 1998a, 1998b). As aten- ções voltaram-se para as raízes e as coleções tomaram conta do Ocidente, e espalharam-se por todo o restante do mundo: 95 % dos museus nasceram no pós-guerra e os sítios históricos multiplicam-se aos milhares (Lowenthal, 1998b). A nostalgia pelas “coisas velhas”, em muitos lugares, suplanta o desejo pelo progresso e pelo desenvolvimento. Ou melhor, redireciona o desejo. A “onda universalizante da Unesco” torna- se cada vez mais um valor para inúmeras cida- des que agora percebem que “moderno é ser antigo” (Tamaso, 2002). O desenvolvimento pode ser buscado por causa do patrimônio. Se antes o patrimônio funcionava como obstáculo do desenvolvimento, agora ele é fundamento deste. 1 Certeau ressalta que as “coisas antigas [que] se tornam importantes”, inquietando uma ordem produtivista e seduzindo “a nostalgia que * O presente artigo, revisto e ampliado, foi inicialmente apresentado com o título “Patrimônio imaterial: velhos objetos, novos desafios”, no Simpósio Memória, Cidades, Patrimônio, na 54 a SBPC, em Goiânia, no ano de 2002. Agradeço a Alcida Rita Ramos e Klaas Woortmann a leitura atenta, os comentários e as sugestões, lembrando que o argumento aqui desenvolvido é de minha exclusiva respon- sabilidade. A Letícia Vianna agradeço, além da leitura, o estímulo para que este artigo fosse publicado. ** Doutoranda em Antropologia Social pelo PPGAS – DAN/UnB e professora da Universidade Federal de Goiás (UFG). E-mail: [email protected] 1. A maior parte das reflexões que compõem este artigo é decorrente da experiência etnográfica na cidade de Goiás (GO), reconhecida pela Unesco em 2001 como “patrimô- nio mundial”. O tombamento do núcleo histórico pelo Ins- tituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) data de 1978. Antes disso, na década de 1950, algumas edificações foram tombadas, como monumentos isolados, pelo antigo Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan). Os dados coletados durante o trabalho de campo, realizado entre 2000 e 2002, estão sendo interpre- tados na tese de doutoramento em Antropologia pela UnB, em fase de finalização.

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A expansão do patrimônio: novos olhares sobrevelhos objetos, outros desafios…*

IZABELA TAMASO**

Resumo: Nas últimas décadas assistimos à expansão significativa da afeição pelopatrimônio. Unesco e Iphan ampliam as políticas públicas para os patrimônios comobjetivo de atender ao vasto repertório de expressões culturais e à pluralidade dasidentidades sociais. O decreto que instituiu o registro dos “bens culturais de naturezaimaterial” tem provocado especial interesse dos antropólogos. Se as “referências culturais”são o que se considera “cultura”, elas sempre foram o objeto de registro mais caro dosfolcloristas e antropólogos. Contudo, uma diferença há e não é de objeto, mas simepistemológica. Importa refletir sobre a responsabilidade social dos antropólogosinventariantes, que ao participarem do processo de inventário e/ou registro de um bemcultural realizam laudos culturais sobre grupos específicos. Analogias com as práticas deantropólogos indigenistas são oportunas. Reflexões antropológicas de ordem teórica eética se impõem ante o novo desafio.

Palavras-chave: patrimônio cultural; antropologia; políticas públicas; laudos; ética.

Nas últimas décadas, pudemos observar acrescente velocidade com a qual se espalharammundialmente as obsessões com o passado e,sobretudo, com o que nós costumamos chamarde “patrimônio” (Canclini, 1994; Certeau, 1994;Jeudy, 1990; Lowenthal, 1998a, 1998b). As aten-ções voltaram-se para as raízes e as coleçõestomaram conta do Ocidente, e espalharam-sepor todo o restante do mundo: 95 % dos museusnasceram no pós-guerra e os sítios históricosmultiplicam-se aos milhares (Lowenthal, 1998b).A nostalgia pelas “coisas velhas”, em muitoslugares, suplanta o desejo pelo progresso e pelo

desenvolvimento. Ou melhor, redireciona odesejo.

A “onda universalizante da Unesco” torna-se cada vez mais um valor para inúmeras cida-des que agora percebem que “moderno é serantigo” (Tamaso, 2002). O desenvolvimentopode ser buscado por causa do patrimônio. Seantes o patrimônio funcionava como obstáculodo desenvolvimento, agora ele é fundamentodeste.1

Certeau ressalta que as “coisas antigas[que] se tornam importantes”, inquietando umaordem produtivista e seduzindo “a nostalgia que

* O presente artigo, revisto e ampliado, foi inicialmenteapresentado com o título “Patrimônio imaterial: velhosobjetos, novos desafios”, no Simpósio Memória, Cidades,Patrimônio, na 54a SBPC, em Goiânia, no ano de 2002.Agradeço a Alcida Rita Ramos e Klaas Woortmann a leituraatenta, os comentários e as sugestões, lembrando que oargumento aqui desenvolvido é de minha exclusiva respon-sabilidade. A Letícia Vianna agradeço, além da leitura, oestímulo para que este artigo fosse publicado.** Doutoranda em Antropologia Social pelo PPGAS –DAN/UnB e professora da Universidade Federal de Goiás(UFG). E-mail: [email protected]

1. A maior parte das reflexões que compõem este artigo édecorrente da experiência etnográfica na cidade de Goiás(GO), reconhecida pela Unesco em 2001 como “patrimô-nio mundial”. O tombamento do núcleo histórico pelo Ins-tituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)data de 1978. Antes disso, na década de 1950, algumasedificações foram tombadas, como monumentos isolados,pelo antigo Serviço de Patrimônio Histórico e ArtísticoNacional (Sphan). Os dados coletados durante o trabalho decampo, realizado entre 2000 e 2002, estão sendo interpre-tados na tese de doutoramento em Antropologia pela UnB,em fase de finalização.

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TAMASO, IZABELA. A expansão do patrimônio: novos olhares...

se apega a um mundo a ponto de desaparecer”,são trazidas de volta pela “economia protecio-nista” que, em períodos de recessão, “semprese renova” (Certeau, 1996, p. 190). As “ilhotas”de passado surgem em meio à cidade moder-nista, “um espectro que agora ronda o urbanis-mo” e multiplica os investimentos no mercadode antiguidades. Segundo Certeau, esse “fan-tasma é esconjurado sob o nome de ‘patri-mônio’” e “sua estranheza convertida emlegitimidade” (Certeau, 1996, p. 190). As relí-quias, bens culturais que nos remetem aopassado, são então identificadas, classificadas,restauradas, expostas, protegidas, ressigni-ficadas. O recurso ao “arquivismo” é abusiva-mente usado. As culturas são postas em “mu-seus”, literal ou metaforicamente, enquantoregistros de patrimônio vão sendo realizados.

Essa ampliada afeição pelo patrimônio teminúmeras conseqüências. Patrimônio trazbenefícios. Dentre eles, propicia a ligação entreas várias gerações (dos nossos descendentesaos nossos ancestrais) (Jeudy, 1990; Lowenthal,1998b); cria vínculos entre os cidadãos por fazerreferência aos símbolos que são representativosda coletividade, ou bens coletivos (Canclini,1994; Gonçalves, 1996; Fonseca, 1994; Rubino,1991; Santos, 1992), acionando portanto o senti-mento patriota; propicia o desenvolvimentoeconômico ao atrair o turismo cultural (Choay,2001), e aumenta a auto-estima do grupo portadore herdeiro daquele legado. O patrimônio de todaa espécie, ao acumular, contraria a transito-riedade das coisas. Salvando da erosão e dodescarte, nós procuramos o equilíbrio entre oefêmero e o permanente (Jeudy, 1990). Mas aacumulação a que temos assistido por todo omundo é algo muito recente e cabe refletir sobreo contexto no qual a retenção das coisas dopassado se torna cada vez mais possível edesejada.

Segundo Lowenthal, o patrimônio expande-se especialmente porque a maioria das pessoascomeça a ter (e ser) parte nesse patrimônio:“em tempos passados, apenas uma pequenaminoria procurava por seus antepassados,acumulava antiguidades, desfrutava dos velhosmestres, ou excursionava por museus e sítioshistóricos” (Lowenthal, 1998b, p. 10). De algu-

mas décadas para cá, tais propósitos passarama atrair um número muito maior de pessoas, queolhando, vivendo, reconhecendo e valorizandoo patrimônio “dos outros”, de outros povos,começaram a desejar transformar suas histórias,seus monumentos, suas manifestações culturaisem patrimônio.

É importante considerar que, se o aciona-mento da categoria “patrimônio” trouxe inúmerosbenefícios, trouxe também danos a alguns grupossociais. O reconhecimento do valor arquitetônicoe histórico desencadeou, em muitos casos, oprocesso de gentrification, que se configurapor empreendimentos econômicos em espaçosselecionados da cidade, transformando-os emsetores de investimentos privados e públicos(Featherstone, 1995; Harvey, 1992; Leite, 2001).São tão valorizadas as construções localizadasnesses espaços, que sofrem um aumentosignificativo em seu valor imobiliário. As popula-ções nativas desocupam suas casas, ruas ebairros, reocupados por outras pessoas, queobviamente imprimem a eles outros valoressimbólicos e de usos.

Para Certeau, tal processo “subtrai a usuá-rios o que apresenta a observadores”, na medidaem que

faz passar esses objetos de um sistema depráticas (e de uma rede de praticantes) a umoutro. Empregado para fins urbanísticos, oaparelho continua fazendo esta substituiçãode destinatários; tira de seus usuários habituaisos imóveis que, por sua renovação, destina auma outra clientela e a outros usos. A questãojá não diz mais respeito aos objetos restaurados,mas aos beneficiários da restauração. […] Arestauração dos objetos vem acompanhada deuma desapropriação dos sujeitos. (Certeau,1996, p. 195-196)

Os laços sociais existentes nesses lugarestornam-se valores irrelevantes se comparadosao poder econômico e político que entra em cena,quando os lugares transformam-se em patrimô-nios. Além disso, muito embora constituam“patrimônios” nacionais ou mundiais, e issoremeta à propriedade cultural coletiva e global,o patrimônio é quase sempre acionado pelaselites, que freqüentemente inclina-o para finsespecíficos e nem sempre democráticos.

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A noção de legado universal é autocon-traditória; limitar a posse a alguns, enquantoexclui outros, está na razão de ser do patrimônio(Lowenthal, 1998b). Talvez seja por isso que asclasses marginalizadas sejam mais aptas a nãoreconhecerem com tamanha grandeza o valordos bens materiais imóveis. Preservar casasantigas gera a ameaça de terem sua vizinhançae seus bairros tomados pelo processo de gentri-fication. No caso dos bens materiais móveis,correm o risco de verem seus bens culturais –parte de suas trocas simbólicas cotidianas ourituais – apropriados pelos museus e centrosculturais. De alguma maneira, o bem materialcorre sempre o risco de ser apropriado pelaselites, que caminham com desenvoltura peloscorredores dos museus, das instituições preser-vacionistas, dos ministérios e de organizaçõesnão-governamentais.

Nesses dois casos, cabe ressaltar que quasenunca o valor atribuído, pelo grupo portador, aobem cultural corresponde ao valor atribuído pelasinstituições oficiais de preservação. A plurali-dade de valores e significados, somados ao não-reconhecimento dos valores locais, é umaquestão que nos remete aos debates da relaçãoe da complementaridade dos valores materiaise imateriais de todas as coisas, recorrentementeobnubilados pelas (e nas) políticas públicas depreservação, que se fundamentam no institutodo tombamento.

Há alguns anos a fragilidade dos Profetasde Aleijadinho, imagens esculpidas em pedra-sabão, que compõem parte do ádrio de São BomJesus dos Matosinhos, em Congonhas doCampo,2 ganhou notoriedade. Por essas escul-turas estarem sofrendo com a ação do tempo, esem dispor de uma tecnologia específica paraprotegê-las no próprio local em que sempreestiveram, tornou-se pública a idéia de que osProfetas de Aleijadinho fossem removidospara um provável museu. No local seriam colo-cadas réplicas. Há algumas décadas técnicosem conservação e restauro, autoridades epopulação local vêm debatendo o problema.Prova é que moldes para réplicas já foram feitos

há mais de 30 anos.3 Os especialistas em con-servação pedem pela proteção da obra sacra.Os devotos pedem pela manutenção dosProfetas como parte indissociável das trocassimbólicas que ali se dão. Tanto o valor artísticoatribuído pelos especialistas quanto o valorsimbólico atribuído pelos devotos são expressõesdo caráter intangível do bem material. Não seestá disputando o objeto, mas o que ele significa,para uns como obra de arte, para outros comosímbolo de devoção e peça fundamental nastrocas simbólicas cotidianas e rituais. Aqui,então, a disputa baseia-se no domínio do intan-gível.

Arantes chamou atenção – e, provavel-mente, tenha sido o primeiro antropólogo noBrasil a fazê-lo – para o fato de que a “defesado passado” para os propósitos do patrimônio

se estrutura em torno de intensa competição eluta política em que grupos sociais diferentesdisputam, por um lado, espaços e recursosnaturais e, por outro (o que é indissociáveldisso), concepções ou modos particulares dese apropriarem simbólica e economicamentedeles. (Arantes, 1984, p. 9)

O conflito é, pois, constitutivo das políticasde preservação dos patrimônios culturais(Tamaso, 1998). Segundo Lowenthal, o conflitoé “endêmico ao patrimônio” (1998b, p. 234). Osvalores atribuídos ao bem cultural, quandoentram em disputa, revelam um processo dehierarquização. Um valor será selecionado comomais importante e mais legítimo; os outrospermanecerão como seus opostos complemen-tares: valor artístico/valor da fé. O grupo queestiver de posse da gestão daquele bem culturalestabelecerá seus valores como mais legítimos.Na arena de disputa, os outros não poderão serconsiderados. Se decidirem que os Profetasdeixarão seu lugar original, a população será maisuma vez expropriada de seu próprio patrimônio.

Há, contudo, um patrimônio que ainda nãofoi expropriado do grupo que o produziu e lheatribuiu valores: o patrimônio imaterial. Este éum domínio no qual a agencialidade dos sujeitos

2. Inscrito no Livro do Tombo de Belas Artes pelo Iphanem 1939 e reconhecido como Patrimônio Mundial pelaUnesco em 1985. (In: http://www.iphan.gov.br)

3. Conferir reportagem intitulada “Deteriorando Aleijadi-nho”, na Folha de S. Paulo, 2 fev. 2000. Folha Ilustrada,p. 1.

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sociais ainda não sofreu impacto. A culturatradicional e popular – crenças, comida, dança,procissões, folias, expressões, música etc –mantém-se com relativa autonomia, no queconcerne à ação dos realizadores e participanteslocais.

Os bens de natureza imaterial

Para atender à clientela ampliada e diver-sificada, o patrimônio, antes da elite, dos bensmateriais, de um passado remoto, dos monu-mentos e dos grandes heróis, passa agora a sertambém aquele das classes populares, de umtempo mais recente, da arquitetura vernaculare da cultura intangível das várias etnias (Lowen-thal, 1998b). Torna-se, segundo Lowenthal,“mais substancial, mais secular, e mais social”(1998b, p. 14). Uma observação atenta às“cartas” e “recomendações” da Unesco é sufi-ciente para acompanhar a transformação.

Desde 1964, já havia sido insinuada umamudança nos critérios de seleção dos sítioshistóricos. A noção de monumento histórico foientão ampliada na “Carta de Veneza” e passoua compreender não apenas “as grandes criações,mas também às obras modestas, que tenhamadquirido com o tempo uma significação cultural”(1964, apud Cury, 2000, p. 92). Várias foram ascartas patrimoniais redigidas pela Unesco ou porórgãos a ela ligados que cuidaram de aprofundaro debate e as recomendações sobre as culturastradicionais e populares.

A preocupação com a herança culturalpassou a recair sobre as idéias e imagens e nãoapenas sobre as coisas. Essa transformaçãoreflete, em parte, a influência das culturas quenão compartilhavam com a mania ocidental debens materiais como patrimônio.

A Polônia, por exemplo, apesar de terreconstruído suas edificações arrasadas pela 2a

Guerra Mundial, porque entendia que eramimportantes para a identidade nacional, atual-mente se preocupa mais com o patrimôniocomposto pelos pensamentos e memórias queas construções evocam, do que com as cons-truções em si. O patrimônio, na China, enfatizamais as palavras do que as coisas. A idéiachinesa de que sítios antigos tornam-se sítios depatrimônio pelo passado de palavras e não por

suas pedras remete à idéia do valor atribuído àcoisa e não à coisa em si. A preservação, nessecaso, é mais das memórias e histórias sobre ossítios e monumentos do que de suas estruturas(Lowenthal, 1998b, p. 20). No Japão, segundoOgino (1995), a arte tradicional exprime-se maispor sua reatualização do que por conservarfielmente o patrimônio do passado. Além disso,a política japonesa já havia incorporado há tempo“l’idée de trésor national vivant”, que consisteem conservar seus ofícios ou hábitos: os bensimateriais (Ogino, 1995, p. 57).

Esta era a única esfera da herança culturalque ainda não tinha sido acionada pelo Estadobrasileiro, no que concerne às políticas públicasde preservação do patrimônio cultural. Aindaque a preservação da cultura tradicional epopular brasileira já fizesse parte das intençõesdo grupo que participou da criação do Serviçode Patrimônio Histórico e Artístico Nacional(Sphan),4 e que posteriormente tenha sidoavidamente retomada pelo grupo do CentroNacional de Referência Cultural (CNRC) e daFundação Nacional Pró-Memória (FNPM), osinstitutos de proteção legal em vigor no âmbitofederal não se mostraram adequados à proteçãodo patrimônio cultural de natureza imaterial(Fonseca, 1994). Contudo, os trabalhos, estudose reflexões desses grupos garantiram a amplia-ção do conceito de patrimônio, que já na Consti-tuição Federal de 1988 foi definido como sendoconstituído pelos “bens de natureza material eimaterial, tomados individualmente ou emconjunto, portadores de referência à identidade,à ação, à memória dos diferentes grupos forma-dores da sociedade brasileira […]” (apud Iphan,2000, p. 33).

O documento da Unesco “Recomendaçãosobre a salvaguarda da cultura tradicional epopular”, de 1989, ampliou as possibilidades, aoapontar formas jurídicas de proteção às mani-festações da cultura tradicional e popular. Em1997, o Iphan realiza em Fortaleza um semináriointernacional com o propósito de refletir sobreformas de proteção ao patrimônio imaterial, doqual decorre a “Carta de Fortaleza”. Em 1998,é formada uma comissão, com a finalidade de

4. Conferir o anteprojeto de Mário de Andrade para a cria-ção do Sphan (Andrade, 2002).

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elaborar uma proposta de acautelamento dopatrimônio imaterial (Iphan, 2000, p. 12).5

Havia que se aguardar o momento no qualo trabalho (de décadas) de inúmeros intelectuais,artistas e cidadãos sensibilizados pela riquezada pluralidade cultural brasileira daria finalmenteorigem ao Decreto n. 3551, de agosto de 2000,que institui o “Registro dos Bens Culturais deNatureza Imaterial”.6 Como instrumento dapolítica de preservação praticada no país peloInstituto do Patrimônio Histórico e ArtísticoNacional (Iphan), o decreto visa reconhecer osvalores de bens que têm “relevância nacionalpara a memória, a identidade e a formação dasociedade brasileira” (Iphan, 2000a, p. 25).

A nova política de preservação tem pro-vocado interesse de inúmeros pesquisadores. Osantropólogos, sobretudo, têm olhado para o “pa-trimônio imaterial” como mais uma possibilidadeno mercado de trabalho. O que são os “patrimô-nios imateriais”? O próprio Iphan (2000a) reco-nhece que o maior problema no qualificativo“imaterial” é de que, ao enfatizar mais o conhe-cimento, o processo de criação e o modelo, ten-dem a desconsiderar as condições materiais desua existência, não dando conta, portanto, detoda a complexidade do objeto que pretendemdefinir. Sant’Anna, coordenadora do Grupo deTrabalho do Patrimônio Imaterial (GTPI), consi-derou a distinção operativa à medida que deli-neia o conjunto dos bens culturais que não vinhasendo oficialmente reconhecido como patrimônionacional (Sant’Anna, 2000, p. 13). Debatessemânticos à parte, os “patrimônios imateriais”são, segundo Arantes, as “referências das iden-tidades sociais”, são “as práticas e os objetospor meio dos quais os grupos representam,realimentam e modificam a sua identidade elocalizam a sua territorialidade” (Arantes, 2001,p. 131). Os patrimônios imateriais são “sentidosatribuídos a suportes tangíveis”, às práticas eaos lugares.

Então, eles sempre foram o objeto mais carodos folcloristas e dos antropólogos. Milhares depáginas já foram escritas sobre a cultura brasi-leira (imaterial/material). Entretanto, muitopouco se refletiu sobre o que significa inventariarum bem imaterial e, ao inseri-lo em um dos livrosde registro, atribuir-lhe o estatuto de “PatrimônioCultural do Brasil”.

Uma diferença há e não é de objeto, massim epistemológica. Transforma-se o modo comose “olha” para o objeto. Manifestações culturais(dança, música, poesias, crenças, expressões,técnicas etc.), encaradas por folcloristas, são“folclore”, “fato folclórico”, “manifestaçãofolclórica”. Aos olhos dos antropólogos, são“cultura”. Atualmente, a tendência de ambos éde percebê-los como “patrimônio”; ao menospelo fato de que, ao serem potencialmente benspatrimoniais, ampliam as possibilidades profis-sionais de ambos.

É oportuno lembrar que os folcloristas viramdesabar seus planos para a constituição de umadisciplina autônoma, quando da constituição dasciências sociais no Brasil, como um saberlegítimo e científico, pelo não-reconhecimentodo folclore como um tema relevante (Vilhena,1997). Ao comparar o trabalho de identificaçãoda nação, realizado pelos folcloristas, com aquelefeito pelos agentes preservacionistas, Tamasoenfatiza que, no caso dos folcloristas, a identi-ficação é produzida por intermédio da culturapopular, enquanto “no caso dos agentes preser-vacionistas, em parte contemporâneos dosfolcloristas, tal identificação” é produzida porintermédio da “idéia de memória e tradição”, nosentido da cultura erudita e dos bens monu-mentais (Tamaso, 1999, p. 313). Assim, “en-quanto agentes do folclore encomendavampesquisas sobre a cultura popular, os agentespreservacionistas protegiam os monumentosrepresentativos das classes dominantes” (1999,p. 313). Com o quê se entretinham os antropó-logos? Não exatamente com debates em tornoda preservação dos patrimônios culturais. Aomenos, não até a década de 1980, quando algunspoucos trabalhos começaram a surgir.7

5. Sobre o processo histórico da categoria patrimônio cul-tural e patrimônio imaterial, conferir Gonçalves, 1996;Fonseca, 1994; Santos, 1992; Rubino, 1991, além do “Dossiêfinal das atividades da Comissão e do Grupo de TrabalhoPatrimônio Imaterial” (Iphan, 2000).6. Registro que se pode fazer em um dos seguintes livros:Livro de Registro dos Saberes, Livro de Registro das Cele-brações, Livro de Registro das Formas de Expressão e Livrode Registro dos Lugares.

7. Dentre eles e, sobretudo, as reflexões de Antonio AugustoArantes (1984) e, posteriormente, Marisa Veloso MotaSantos (1992), Silvana Rubino (1991) e José Reginaldo San-tos Gonçalves (1996).

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Contudo, como “folclore” ou “cultura”, obem cultural observado era apenas inventariadoe registrado do ponto de vista da pesquisa, fossefolclórica, fosse etnográfica. O inventário e oregistro – em cadernos de campo, fitas de áudioe vídeo e filmes fotográficos – não implicavamuma ação de política pública de reconhecimentoe salvaguarda do bem cultural. Já o inventário eo registro do bem de natureza imaterial” cons-tituem uma ação deliberada do Estado-nação,que pode ser intermediada por antropólogos. Ésobre a responsabilidade dessa ação que vourefletir. Antes, contudo, é importante retomaras políticas públicas estabelecidas e declaradaspela Unesco e pelo Iphan, respectivamente sobreas culturas tradicionais e populares e os bensde natureza imaterial. Informo que não farei umacronologia das ações, uma vez que ela pode serencontrada em outros trabalhos.8 Destacareideclarações que sejam úteis para complexificaro lugar a ser ocupado pelo antropólogoinventariante – categoria que passarei a usarao me referir ao antropólogo que executa qual-quer função no Inventário Nacional de Refe-rências Culturais, seja pesquisa, trabalho decampo ou coordenação de inventários –,entrecortando-as com análises que possamcontribuir para o entendimento da problemática.

Iphan e Unesco: as políticas públicaspara o reconhecimento de bens culturais

Nas Cartas Patrimoniais redigidas por oca-sião das reuniões da Unesco, freqüentementefaz-se referência à necessidade de associar ospatrimônios culturais às políticas de desenvol-vimento do turismo. Já em 1969, a “Carta deQuito”, preocupada com a “valorização dopatrimônio cultural”, discorreu sobre a impor-tância de “incorporar a um potencial econômicoum valor atual; de pôr em produtividade umariqueza inexplorada, mediante um processo derevalorização” (1967 apud Cury, 2000, p. 111).

Especificamente preocupada com a preser-vação dos patrimônios monumentais, a “Cartade Quito” salienta ainda que

se os bens do patrimônio cultural desempenhampapel tão importante na promoção do turismo,é lógico que os investimentos exigidos parasua restauração e habilitação específicasdevem ser feitos simultaneamente aos quereclama [sic] o equipamento turístico. (1967,apud Cury, 2000, p. 113)

A Unesco revela a prioridade a ser dadanas escolhas para os projetos de restauro ehabilitação: devem atender à demanda turística,uma vez que “do ponto de vista exclusivamenteturístico, os monumentos são parte do equipa-mento de que se dispõe para operar essa indús-tria numa região determinada” (1967, apud Cury,2000, p. 115). Considerados como equipamentosda indústria do turismo, os patrimônios culturaisedificados são a ela adaptados. E os patrimôniosculturais de natureza imaterial? Como serão“usados” para atender à lógica do mercadoturístico?

O processo de mercantilização pelo qualalgumas culturas populares tradicionais passa-ram, antes mesmo de se verem referidas como“patrimônio cultural”, é um indicador de que, seantes o mercado já agia no sentido de lucrarcom artefatos ou práticas culturais tradicionais,como serão os passos após o reconhecimentofeito pelo Estado-nação do valor “patrimonial”do bem de natureza imaterial?

É importante, nesse caso, reconhecer a“ambivalência” dos efeitos da mercantilizaçãonas culturas populares tradicionais, que se, porum lado, têm seus produtos artesanais (emmaior ou menor grau) deteriorados pela inserçãodo valor de troca, têm também suas tradiçõesprodutivas e culturais reativadas, muitas vezespela incorporação de seu artesanato no mercadoturístico (Canclini, 1994, p. 101).

Pesquisadores e teóricos das culturas popu-lares (Arantes, 1998; Brandão, 2000; Canclini,1997; Carvalho, 1989; Cavalcanti, 2001; Segato,2000) críticos das concepções românticas sobreas culturas já superaram há algumas décadasos pares de opostos que serviam para pensar asculturas populares na modernidade: hegemônico/subalterno, culto/popular e moderno/tradicional.

Canclini cuidou de rechaçar eficientementevárias análises equivocadas afirmando que: (1)“o desenvolvimento moderno não suprime as

8. Dossiê Final das Atividades da Comissão e do GTPI (2000);Garcia (2004).

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culturas populares tradicionais”; (2) “as culturascamponesas e tradicionais já não representama parte majoritária da cultura popular”; (3) “opopular não se concentra nos objetos”; (4) “opopular não é monopólio dos setores populares”;(5) “o popular não é vivido pelos sujeitospopulares como complacência melancólica paracom as tradições”; (6) “a preservação pura dastradições não é sempre o melhor recurso popularpara se reproduzir e reelaborar sua situação”(Canclini, 1997, p. 215-238).

Não obstante haver concordância para comas refutações feitas por Canclini (1997), no queconcerne às concepções sobre cultura populartradicional, não se pode deixar de considerar opapel que desempenhará o antropólogo inven-tariante ao ser parte do processo de inventárioe registro de bens de natureza imaterial. Ou seja,ao passar do papel de pesquisador de políticas erecepção de práticas patrimoniais para o deinventariante de patrimônios culturais. Ademais,há que se considerar a presença de antropólogosno Conselho Consultivo do Iphan. Para estescaberá a tarefa, junto aos demais conselheiros(que não têm nenhuma obrigação para com asreflexões antropológicas), de reconhecer comoprocedente (ou não) o pedido de registro de umdado bem cultural.

Em 1989, a 25a Reunião da Unesco reco-mendou aos Estados-membros que tomassemas medidas necessárias “relativas à salvaguardada cultura tradicional e popular”. Definiu “cul-tura tradicional e popular” como

conjunto de criações que emanam de umacomunidade cultural fundadas na tradição,expressas por um grupo ou por indivíduos eque reconhecidamente respondem às expec-tativas da comunidade enquanto expressão desua identidade cultural e social; as normas evalores [que] se transmitem oralmente, porimitação ou de outras maneiras. Suas formascompreendem, entre outras, a língua, a lite-ratura, a música, a dança, os jogos, a mitologia,os rituais, os costumes, o artesanato, a arqui-tetura e outras artes. (1989, apud Cury, 2000,p. 294)

Observe-se que a recomendação da Unes-co para a salvaguarda das culturas tradicionaise populares não se limita aos bens de natureza

intangível. Recomendou ainda a Unesco que a“cultura tradicional e popular, enquanto expres-são cultural, deveria ser salvaguardada pelo epara o grupo (familiar, profissional, nacional,regional, étnico etc.) cuja identidade exprime”(1989, apud Cury, 2000, p. 295). Orientou nosentido de que os Estados-membros da ONUrealizassem inventários, criassem sistemas deidentificação, registro, conservação, difusão eproteção das culturas tradicionais e populares.O que foi feito no Brasil, sob responsabilidade,dentre outros, do antropólogo Antonio AugustoArantes.9

Recomendou também que a difusão dacultura tradicional e popular deveria “sensibilizara população para a importância da cultura tradi-cional e popular como elemento de identidadecultural” e ainda que “numa difusão deste tipo,contudo, deve-se evitar toda a deformação, afim de salvaguardar a integridade das tradições”(1989, apud Cury, 2000, p. 297-298).

A difusão de um dado bem cultural estátambém prevista no Decreto 3551/2000. Oregistro dos bens culturais de natureza imaterialassegura ao bem cultural “ampla divulgação epromoção”,10 por parte do Ministério da Cultura.Quais conseqüências podem advir da “ampladivulgação” dos bens culturais? Se os criadores,participantes e responsáveis pelos bens culturaisdesejam que suas práticas sejam divulgadas, porcerto pleiteiam o reconhecimento do valor cultu-ral do grupo. Contudo, o valor simbólico atribuídoàquela referência cultural, ao ser amplamentedivulgado, desencadeia ou potencializa a incor-poração de valor econômico.

No sentido econômico, segundo Gorz, “o‘valor’ designa sempre o valor de troca de umamercadoria na sua relação com outras”. Refe-rências culturais tradicionais não podem sertrocadas porque, obviamente, não “têm sentidono ‘valor’ econômico” (Gorz, 2005, p. 30).Contudo, Gorz salienta que

se não podem ser apropriadas ou ‘valorizadas’,as riquezas naturais e os bens comuns podemser confiscados pelo viés das barreiras artifi-

9. Conferir o Manual de aplicação para o Inventário Na-cional de Referências Culturais (Iphan/Minc, 2000).10. Decreto 3551, de 4 de agosto de 2000.

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ciais que reservam o usufruto delas aos quepuderem pagar um direito de acesso . Aprivatização das vias de acesso permitetransformar as riquezas naturais e os benscomuns em quase-mercadorias que propor-cionarão uma renda aos vendedores de direitode acesso. (Gorz, 2005, p. 31)

O controle do acesso aos bens patrimoniais,como “uma forma privilegiada de capitalizaçãodas riquezas imateriais” (Gorz, 2005, p. 31), temestado freqüentemente no controle das elitesculturais.

Ao refletir sobre as atribuições de valor aosbens culturais, Arantes reconhece dois eixossobre os quais se estruturam as “mudançasproduzidas pelas políticas de patrimônio sobreas culturas locais”: um valor de uso, referente ànatureza simbólica, e um valor de troca, referenteà natureza alegórica (Arantes, 2001, p. 134).Seriam dois aspectos dos mesmos bens culturais.Em um aspecto, o bem patrimonial representaum símbolo (unidade sensorial entre signo ereferente) e, por isso, é constantemente trans-formado pelo “trabalho social de produçãosimbólica”. O segundo aspecto do bem patri-monial, o valor de troca, é o modo como a“cultura participa da política de identidade e dosjogos de mercado” (Arantes, 2001, p. 134).

Tal distinção feita por Arantes pode sermelhor compreendida em outro artigo de suaautoria, no qual ele faz uma distinção conceitualentre patrimônio-referência e patrimônio-recurso (Arantes, 1999). Na “economia simbó-lica do patrimônio”, o primeiro seria relativo aobem patrimonial como símbolo – sentidosenraizados na vida coletiva – e o segundo comoalegoria, no qual o signo não é intrinsicamenteassociado a um referente, fazendo a ele apenasuma alusão icônica. Nesse aspecto da signifi-cação que Arantes (1999) denomina de alegó-rico, estariam contidos a preferência estética eo prazer lúdico. Entendo que a natureza alegóricado bem patrimonial é também simbólica, namedida em que o consumo de um bem cultural– seja estético, seja lúdico – implica usos eprocessos de apropriação de signos.11 Contudo,

a distinção entre elas é operativa a fim decolaborar para a distinção do “valor de uso” dosbens patrimoniais, para o “valor de troca” deles.Assim, o bem patrimonial está sujeito às conse-qüências das políticas de patrimônio, que “parti-cipam ativamente desse complexo processo deconstrução e atribuição de sentido às atividadesconsideradas” (Arantes, 2001, p. 135).

Evidente que, se a preservação das culturastradicionais populares e/ou intangíveis entra naagenda dos órgãos nacionais e internacionais depreservação, simultaneamente surgem as possi-bilidades de impacto sobre elas, em conse-qüência das próprias políticas públicas. Assimcomo no caso dos centros históricos, que têmsido tomados pelas políticas públicas, em geral,muito mais pelo seu aspecto alegórico do quepor sua dimensão simbólica, os bens de naturezaimaterial podem ser estimulados a práticas quevalorizem sobremaneira seu aspecto alegórico.E aqui a pergunta feita por Arantes, ao refletirsobre os centros históricos, se apresenta tãooportuna:

e sobre as identidades sociais e pessoais, quaisas conseqüências dessa tendência que quertornar soft as diferenças culturais, quer tornarfast o soul étnico, lisos os territórios existenciaise o nosso velho mundo um inócuo parquetemático? (Arantes, 1999, p. 131)

O texto de apresentação da metodologiado Inventário Nacional de Referências Culturais(INRC), que consta do Manual de aplicaçãodo INRC, assinado por Arantes, revela o “desa-fio de natureza política” a ser enfrentado: a“responsabilidade social de pesquisadores etécnicos”, uma vez que se prevê que o INRCpoderá produzir conseqüências na “formação ereconfiguração das identidades dos grupos ecategorias sociais envolvidos”. O inventáriopoderá provocar, por sua reflexividade, “impac-tos sobre estratégias políticas e de mercadoassociadas ao patrimônio” dos grupos envolvidos(Iphan, 2000b, p. 27).

Em outra publicação, Arantes chamou aatenção para o fato de que

emanando de centros de decisão que trans-cendem o plano local, as medidas de acaute-lamento necessariamente repercutem (ou

11. Sobre o assunto conferir artigo de Rogério ProençaLeite, “Patrimônio e Consumo Cultural em CidadesEnobrecidas”, publica nesse mesmo volume da Revista So-ciedade e Cultura.

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causam impactos) sobre os sentidos/senti-mentos localizados reforçando-os, redefinindo-os, legitimando-os ou, negativamente, silen-ciando-os. (Arantes, 2001, p. 133-134)

Revelando que seu objetivo é refletir “sobreos aspectos” da metodologia do INRC, a fim de“aprofundar a problemática relativa ao chamadopatrimônio imaterial”, Arantes finaliza o textocom o item “Conseqüências e recomendações”,no qual, dentre outras reflexões importantes,indica: a necessidade de envolvimento da popu-lação local, “na medida do possível”, no “trabalhode pesquisa e elaboração dos dados”, a promo-ção de ações educativas para estudantes, e anecessidade de “prever e atuar” sobre o impactocausado pelo INRC nas estratégias políticas ede mercado, “mitigando-os ou maximizando seusefeitos, conforme seja o caso, visando aosinteresses da população” (Arantes, 2001, p. 138).

A “Carta da Unesco”, para a “salvaguardadas culturas tradicionais e populares”, reco-mendou que os Estados-membros tomassemmedidas a fim de proceder à adequada difusãodas culturas tradicionais e populares. Dentreeles, a criação de “emprego de horário integralpara especialistas em cultura tradicional epopular que se” encarregariam “de fomentar ecoordenar as atividades voltadas para o temana região” (1989, apud Cury, 2000, p. 298).Sugeriu que os empregos fossem criados emnível municipal, regional ou em grupos ouassociações que tratem do tema.

Ao indicar a necessidade de um especia-lista, em contato direto e sistemático com ogrupo, a Unesco indica que o trabalho nãoterminaria com um provável registro e difusãoda cultura tradicional e popular. A recomen-dação previu efeitos que apenas a presença deum profissional especialista e compromissadoseria capaz de evitar. O compromisso maior doEstado-nação não terminaria na ação do registro,do reconhecimento e da difusão da culturatradicional e popular, mas, ao que me parece,deveria começar na difusão e acompanhar osseus efeitos. Funcionaria esse profissional comoum tradutor de sistemas culturais discursivos,no sentido dado por Oliveira (2004)?

Outra recomendação foi no sentido deestimular “a comunidade científica internacional

a adotar um código de ética apropriado à relaçãocom as culturas tradicionais e o respeito quelhes é devido” (1989, apud Cury, 2000, p. 299).A vagueza do termo “comunidade científicainternacional” é problemática, uma vez queatribui responsabilidade a um grupo indefinido,vago e perdido em meio às mais variadas áreasdisciplinares com compromissos, responsa-bilidades e ética das mais diversas. Prova dissoé o debate contemporâneo dos associados daAssociação Brasileira de Antropologia (ABA),no que concerne à Resolução 196, instituída pelaComissão de Ética em Pesquisa (Conep) doMinistério da Saúde, que visa regular a pesquisacom seres humanos em geral.12

Uma vez que a nova política de preservaçãodos patrimônios amplia as possibilidades detrabalho para os antropólogos, qual a respon-sabilidade deles diante dessa nova atividade? OManual de aplicação do Inventário Nacionalde Referências Culturais informa que asequipes técnicas, encarregadas do planejamentoe da coordenação dos trabalhos de inventário,devem ser compostas por profissionais quesejam provenientes das ciências sociais – comdestaque para a antropologia –, história, letras,geografia, museologia e arqueologia (Iphan,2000b, p. 35). O número e a proporção variamem virtude do contexto referente a cada sítio.13

No manual são listadas questões consi-deradas “espinhosas”, por exemplo, “comoidentificar e delimitar os sentidos enraizados naspráticas cotidianas” ou “que aspectos serãopertinentes para sua identificação”, dentreoutras. Assim, há a preocupação para com acaracterística das investigações que, por seremamplas, limitam a possibilidade de profundidade.A solução dada para resolver tal limitação é a“cooperação entre os encarregados do inven-tário e os especialistas das áreas de conhe-cimento relevantes” (Iphan, 2000b, p. 30). Apesquisa etnográfica, apesar de complexa, éindicada como uma das metodologias a seremusadas, desde que ela se conforme a padrões,como o de limitar-se a “aspectos da vida social

12. Conferir Luis Roberto Oliveira (2004) e Alcida RitaRamos (2004).13. Entendido como “configuração socioespacial” (Iphan,2000b)

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que sejam mais imediatamente reconhecíveispelos atores e que se proponha a registrar osdados que sejam mais imediatamente apreen-síveis por meio de roteiros e formulários padro-nizados”14 (Iphan, 2000b, p. 30).

Lembrando que eticamente o antropólogoestá compromissado com o grupo estudado,15

como atender devidamente o interesse do con-tratante, quando este for conformado por institui-ções públicas de cultura e preservação? Aindaque, em meio às instituições públicas, existamrepresentantes do grupo que apóiem tanto ostrabalhos do INRC quanto um doravante regis-tro como reconhecimento do valor cultural dogrupo, como equacionar os conflitos internos aogrupo, que nem sempre chegam até as institui-ções públicas de preservação ou nem sempresão por elas considerados? Estou me referindoespecificamente à questão da representativida-de. Um exemplo pode esclarecer a problemática.

O objeto do Inventário Nacional de Refe-rência Culturais (INRC) é descrito e exempli-ficado no Manual do INRC: (1) Celebrações,(2) Formas de Expressão, (3) Ofícios e Modosde Fazer, (4) Edificações e (5) Lugares. Em doisdeles, há exemplos referentes à cidade de Goiás(GO).16 No item “Celebrações”, há referênciaà Procissão do Fogaréu e, no item “Edificações”,a referência é feita à Casa de Cora Coralina.Tenho dúvidas de que ambas referências feitasno Manual do INRC sejam “referências cultu-rais” no sentido apresentado no próprio manual(Iphan, 2000b) como sendo “objetos, práticas elugares apropriados pela cultura na construçãode sentidos de identidade” e, ainda, “o quepopularmente se chama de raiz de uma cultura”(Iphan, 2000b, p. 29). Não obstante seremcitadas apenas como exemplos do que poderáser inscrito nos respectivos livros de registro,tanto a Procissão do Fogaréu como a Casa de

Cora Coralina merecem uma incursão etnográ-fica, ainda que breve.

A Procissão do Fogaréu raramente é citadapelo vilaboense como sendo uma das manifes-tações religiosas mais importantes. Ao pedir queescolhessem uma procissão, a que eles atribuemmais significado e que têm maior afeição,raramente obtive como resposta a Procissão doFogaréu. Outras três procissões são muito maiscitadas, muito mais esperadas. São aquelas comas quais o vilaboense “perde seu tempo”: aProcissão do Encontro, a Procissão dos Passose a Procissão da Paixão de Cristo. Qualquerpequeno detalhe, qualquer modificação, qualquerausência (por doença ou morte) de um dosintegrantes são intensamente vividos pelosmoradores. Consideram que uma delas, a Pro-cissão do Encontro, por acontecer em umasegunda-feira, é a procissão “dos vilaboenses”,pois participam dela apenas os vilaboenses, quesão moradores da cidade de Goiás. Por nãoatender ao mercado turístico, não recebe inter-ferência dos “de fora”.17 É como uma festa paraos mais íntimos. Ela é especialmente referidapelos vilaboenses.

No caso da Casa de Cora Coralina, levantotambém uma dúvida. Minha etnografia em Goiásrevelou que a Casa de Cora, como um “lugar”(atribuído no item “Edificação”), não é nem omais “querido”, nem o mais “lembrado”, nem omais “belo”. Há mesmo crítica veemente departe dos moradores do centro histórico pelasistemática presença da Casa de Cora, quandose fala de Goiás.18 Defendem a importância deoutros “lugares” – exemplo é o Chafariz deCauda – como mais representativo de Goiás.

14. Ressalta que a adaptação da pesquisa etnográfica aoINRC não seria uma tentativa de transformar o “inventárionum sucedâneo simplificado de pesquisa etnográfica” (Iphan,2000).15. Conferir o Código de Ética do Antropólogo (http://www.abant.org.br). Também disponível em Víctora et al.(2004, p. 173-174).16. Foram realizados levantamentos pelo Departamentode Identificação e Documentação em Goiás (GO) e emDiamantina (MG) em 1998, e em Serro (MG), em 1995(Manual de aplicação do INRC, Iphan, 2000b).

17. Nem mesmo os vilaboenses ou filhos de Goiás que resi-dem em Goiânia ou outras cidades, e que costumam freqüen-tar as festas e procissões da cidade de Goiás, têm disponibi-lidade de participar dessa Procissão do Encontro, por serrealizada em uma segunda-feira. Com exceção para os apo-sentados. Filhos de Goiás é categoria nativa usada paraàqueles que ou nasceram na cidade de Goiás, ou são filhos devilaboenses, mas que residem em outras cidades (a maioriaem Goiânia, outros no interior do estado de Goiás ou emBrasília). Em geral, mantêm residências na cidade de Goiáse vêm à cidade em todos os eventos religiosos, culturais oucívicos importantes.18. Delgado (2003) analisa o discurso sobre o qual a poetisaCora Coralina (sua casa e museu) é tomada para auxiliar naconstrução de Goiás como cidade histórica e patrimôniomundial. A “batalha das memórias” é ponto central do tra-balho de Delgado.

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Assim, se referências culturais são “as fes-tas e os lugares a que a memória e a vida socialatribuem sentido diferenciado: são as mais belas,são as mais lembradas, as mais queridas” (Iphan,2000b, p. 29), nem a Procissão do Fogaréu (comocelebração), nem a Casa de Cora Coralina(como edificação) o são. Ao menos não paraos moradores do centro histórico; aqueles quemais densamente (tanto temporal quanto espa-cialmente) atribuem sentido e valores, sobretudoos mais idosos.

Mas se alguns defenderem a idéia de que,para os jovens, a Casa de Cora e a Procissãodo Fogaréu constituem “referências culturais”importantes, como ficarão as políticas depreservação em meio às diferentes formas deapropriação dos bens? Como compatibilizarapropriações que tomam como “mais belas”,“mais lembradas” e “mais queridas” coisas nãoapenas diferentes, como por vezes até anta-gônicas?

Não estariam sendo, tanto a Procissão doFogaréu quanto a Casa de Cora, “referênciasculturais” construídas pelas agências gover-namentais e não-governamentais preserva-cionistas local, regional e nacionalmente? Oumelhor, não estariam as políticas de preservação“redefinindo” ou ao menos “legitimando” algunsbens culturais, enquanto simultaneamentesilenciam outros, conforme já foi alertado porArantes (2001)? Quais agentes sociais dacidade de Goiás participam ativamente dosprocessos de seleção dos bens culturais? Comopensar na questão da representatividade quandoa elite cultural transita melhor e mais freqüen-temente pelos corredores do Iphan, das agênciasgovernamentais estaduais e federais?

Arantes recomenda que a sociedade parti-cipe da definição “das políticas e particu-larmente na seleção dos bens a serem identi-ficados e, sobretudo, registrados”. São dois osmotivos que justificam a importante participaçãoda “sociedade”:

(1) o fato dessas ações modificarem os valoresconstruídos e atribuídos a esses bens, porque,resultando de atividades correntes em gruposlocalizados, a sua continuidade depende dodesempenho criativo dos seus executantes, queé balizado por conhecimentos e concepções

estéticas que são propriedade intelectualdessas comunidades, e principalmente (2) pelofato das referências serem sempre função dosvalores diferenciados que cada grupo atribuinum determinado onde e quando a alguns bensculturais do seu repertório. (Arantes, 2001,p. 135)

Não obstante a declaração dessas reco-mendações, como antropólogos, não podemosdesconsiderar que o diferencial de atribuição devalor, e a conseqüente apropriação diferenciadapelos diversos grupos, se dá em meio a conflitossobre a construção das identidades, dos símbolose do acesso a determinados bens culturais. Nãopodemos esquecer que a luta pelo poder denomear o patrimônio é antes de tudo uma lutapelo poder de pôr em destaque uma “memória”,uma história”. Os vários grupos servem-se deestratégias de relações de forças que suportame são suportadas por tipos de saber (Foucault,1995).

O problema apresentar-se-ia ao antro-pólogo não exclusivamente quando da execuçãodo INRC em um dado sítio, mas também, apósesse processo, da escolha do bem a ser indicadopara o registro. O bem cultural proposto paraser registrado é o mais representativo para osmembros daquela comunidade? Ou é maisrepresentativo para alguns, que, por seremdetentores de algum saber legitimado pelamaioria – em geral o poder de falar em nomedo grupo sobre a história local (os memorialistas)–, impõem um dado bem cultural sobre todos osoutros? Não seria esse o caso da Procissão doFogaréu?19 Ao escolher um bem cultural para oregistro, qual dimensão do bem patrimonialestará sendo valorizada pelo INRC: a simbólicaou a alegórica? E como equacionar o conflitointerno a cada uma dessas dimensões?

A Unesco também tratou de implantar umapolítica de reconhecimento do “patrimônioimaterial”. Em maio de 2001, realizou a primeiraProclamação dos Obras-Primas do PatrimônioOral e Intangível da Humanidade. Foraminscritos dezenove bens culturais dentre teatro,

19. Carneiro analisa as várias percepções sobre a Procissãodo Fogaréu e confirma a pluralidade de discursos, enfatizandoque a Procissão do Fogaréu é “vista como mero marketingda cidade, atração turística” (Carneiro, 2005, p. 111).

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TAMASO, IZABELA. A expansão do patrimônio: novos olhares...

música, rituais etc. Tem como objetivo identificar,preservar e promover as expressões culturais.Os critérios de inclusão na lista são “uma forteconcentração de patrimônio cultural intangívelde excepcional valor” ou “uma expressãocultural tradicional e popular de excepcional valordo ponto de vista histórico, artístico, etnológico,sociológico, antropológico, lingüístico ou lite-rário”.20 Outros critérios relacionados com aimportância do fenômeno cultural, como afir-mação de identidade, raízes históricas, exce-lência, podem ser considerados. Pode tambémpesar sobre a decisão o atestado de risco dedesaparecimento, seguido de um plano de açãopara a preservação.

O antropólogo Peter J. M. Nas (2002)levantou algumas questões concernentes àpolítica da Unesco para os bens intangíveis quesão, em alguma medida, as reflexões que vimosfazendo no Brasil a propósitos da política paraos bens de natureza imaterial. Nas observou queo fenômeno da variedade cultural é colocadona agenda mundial em um caminho prático echamou a atenção do público e dos mass media.Questiona, por exemplo, por que se deveriapreservar e revitalizar esse tipo de fenômenocultural. É possível preservar cultura e folclore?O que acontece quando eles são politizados porprogramas de proteção governamental nacionale internacional? Nenhuma pergunta nova, seestamos atentos para os debates em nível nacio-nal. No entanto, continuam pululando em meioàs ações de inventário e registro que têm sidopraticadas.

Nas (2002) destaca ainda o paradoxo dadono programa, que enquanto se baseia no fato deque a urbanização, modernização e globalizaçãoconstituem o grande perigo para a variedade dasculturas humanas, terminam por globalizar ofenômeno para reagir à mesma globalização. Aglobalização e a localização, por estarem criandouma crise de identidade, acabam por gerar novasformas de identidades. Essa luta pela identidadeé o que segundo Nas (2002) constitui o foco dacrise social contemporânea e a iniciativa daUnesco. Alguns casos inscritos pela Unescocomo Obras Primas do Patrimônio Oral e Intan-gível da Humanidade (OPPOIH), são citados

como sendo ou um tipo de “legitimação” deidentidades (Jongmyo Jerye na Coréia), ou delegitimação e resistência (Garifuna) e outrosainda, como representação mais de conservação(Zápara e Jama’el-Fina), do que de construçãode identidades. É importante ressaltar que a idéiado “risco de desaparecimento” está presente nasformulações que indicam “conservação”, “legi-timação” e “resistência”.21

Nas enfatiza a importância de os antro-pólogos examinarem de perto o programa –considerado uma intervenção transnacional euma forma de experimento de política culturaldo mundo moderno –, a fim de alcançarem seuimpacto nas comunidades envolvidas (Nas, 2002,p. 143). Contudo, a “onda universalizante” daUnesco aumentou sua “cobertura” de ação.Ampliando a Convenção do Patrimônio Materialde 1972, a Unesco realizou, em 2003, a Con-venção para Salvaguarda do Patrimônio CulturalImaterial. Seguem as normas dadas por essaconvenção alguns programas que já tinham sidocriados e estavam em execução pela Unesco,como Obras-Primas do Patrimônio Oral eIntangível da Humanidade, o Tesouros HumanosVivos, Traditional Music of the World. O“Endangered Languages” foi criado simulta-neamente à convenção.22 Com a ampliação da“cobertura”, amplia-se igualmente o importantetrabalho de observação antropológica junto aosgrupos criadores e portadores desses bens.

Arantes tem tomado alguns pontos comorelevantes. Afirmou que os “impactos devemser avaliados com a participação da populaçãoafetada e cujo monitoramento é parte importanteda responsabilidade social das instituições envol-vidas” (Arantes, 2001, p. 135). O fato de que

20. Site http//:www.unesco.org.fr

21. Em Sandroni (2005), é possível acompanhar as refle-xões sobre a candidatura do samba brasileiro como Obra-Prima do Patrimônio Imaterial da Humanidade. Apresentaparte do diálogo institucional entre Unesco e MinC, reve-lando a intenção da Unesco em “apoiar” a candidatura,sugerindo, porém, que “o objeto do apoio fosse trocado”,uma vez que o samba não estaria, segundo a Unesco, “emrisco de desaparecimento” (apud Sandroni, 2005, p. 45).22. O programa Traditional Music of the World teve inícioem 1961. O programa Tesouros Humanos Vivos foi formu-lado em 1993. O OPPOIH foi criado em 1998 e teve aprimeira proclamação em 2001. Outras duas proclamaçõesjá foram feitas. Na segunda foi inscrita, dentre os 28 esco-lhidos, Expressões Gráficas e Orais dos Wajapi, do Brasil. Oúltimo programa a ser criado foi Endangered Languages,em 2003. Site: http//:www.unesco.org.

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faça referência à “população afetada” não ésignificativo? A voz passiva não remeteria àidéia de que a agência não está dada na popu-lação e sim noutros sujeitos sociais? Há possi-bilidade de que as instituições envolvidas assu-mam de fato a responsabilidade de “monitora-mento”? Poderiam manter antropólogos emconstante contato com o grupo? Qual a viabi-lidade dessa orientação no que concerne àoperação prática e econômica demandadas?

A propósito dos OPPOIH, Handler (2002)23

propõe que um escrutínio à lista dos dezenoveinscritos na primeira proclamação pode revelarque alguns são mais poderosos e institucional-mente mais defendidos que outros e que, prova-velmente, há um favorecimento das expressõesfolclóricas e marginais em detrimento dosfenômenos culturais mais eruditos ou dos massmedia. Indica que nossa atenção deve se voltarpara conhecer como influências políticas dosproponentes podem interferir ou, ao contrário,como pouca influência política pode ser razãopara justificar sua proposição. Fenômenosculturais hegemônicos estão sendo propostos?Handler está particularmente chamando aatenção para as diferenças de resultado quepodem ser analisadas em relação aos poderesdiferenciados.

No Brasil, Simão (2005) demonstrou quesuas preocupações caminham na mesmadireção exposta por Handler (2002). A autorapropõe uma dupla trajetória para a reflexãosobre os instrumentos de registro:

primeiro, deve-se problematizar, à luz da teoriaantropológica contemporânea, a relaçãosujeito/objeto do conhecimento, que vai refletirno posicionamento do antropólogo em campo,na sua postura reflexiva diante dos dadoscoletados, ao questionar as continuidades, ospoderes e interesses envolvidos no campo eseus reflexos na escrita etnográfica. Numsegundo momento, devem-se investigar osvínculos institucionais e as interlocuções entreantropólogos, agentes e agências, que vãoestabelecer os ‘elos, os recursos e os aliadosdisponíveis’ (Latour, 2000, p. 104) para a

flexibilização das fronteiras do patrimônio.(Simão, 2004, p. 61)

Arantes, revelando que o olhar e a abor-dagem antropológica orientavam sua condutacomo presidente do Conselho de Defesa doPatrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico eTurístico de São Paulo (Condephaat), no inícioda década de 1980, expunha sua preocupaçãocom os impactos causados pelas políticaspúblicas de preservação:

Nós produzimos uma cultura de certa maneirasui generis em relação às outras, uma culturaespecífica de preservação. […] Nós, de certamaneira, inventamos esse tipo de memória, essaforma de preservação, ao usarmos institutosjurídicos. Isto posto, de que maneira asociedade digere isso? Quais são os problemasque essa ‘digestão’ coloca? E como elareeelabora, como eventualmente se apropria ounão dessa cultura? (Arantes, 1984, p. 81)

Referindo-se, na ocasião, especificamenteaos bens de natureza material, uma vez que osoutros não tinham ainda entrado para o crono-grama e as diretrizes das instituições preser-vacionistas, Arantes chamava atenção à épocapara o fato de que, ao se efetuar a política depreservação (inventário, seleção e tombamentodo bem), os responsáveis estavam de fato intro-duzindo, “no processo de produção da cultura,um dado novo, um elemento novo que é a culturaproduzida por nós, intelectuais, técnicos, pesqui-sadores, políticos” (Arantes, 1984, p. 81).

Entendo que o alerta de Arantes (1984)serve, após vinte anos, para os bens de naturezaimaterial. Qual cultura, nós antropólogos, esta-remos selecionando e, por conseqüência, “produ-zindo”? É importante lembrar que, no processode seleção, tombamento e preservação do bemcultural de natureza material, os profissionais (ochamado corpo técnico) que produziam “cultu-ra” eram quase exclusivamente provenientes deoutras áreas disciplinares, como a arquitetura ea história. Ao possibilitar ao antropólogo ser co-participante e, portanto, co-responsável peloprocesso de “produzir cultura”, a nova políticaimpõe a urgência de reflexões que semprenortearam e diferenciaram os profissionais daantropologia.

23. Os comentários de Handler foram feitos a propósito dacomunicação feita por Peter J. M. Nas (2002) no Forumon Anthropology in Public, organizado pela CurrentAnthropology, v. 43, n. I, fevereiro de 2002.

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TAMASO, IZABELA. A expansão do patrimônio: novos olhares...

Por uma “antropologia da prática”:“etnólogo orgânico”, “antropólogoativista” e antropólogo inventariante

O antropólogo, ao realizar o trabalho decampo, realiza um registro dos dados observadose, após um trabalho analítico, imprime-o em suasdissertações, teses, livros, artigos. Do registroetnográfico, para o registro etnológico/antro-pológico.

Ao efetuar o inventário e o registro de um“bem cultural de natureza imaterial”, seja apedido de instituições governamentais – muni-cipais, estaduais ou federal – ou não-gover-namentais, seja a pedido dos grupos criadores eportadores do bem a ser inventariado (e quiçáregistrado), o antropólogo estará participando deuma terceira modalidade de registro. O registroque se fará no INRC e talvez no Livro de Regis-tro dos Bens Culturais de Natureza Imaterial.Um registro não mais antropológico, agora, maisdo que nunca, político. Alguns contra-argumen-tarão lembrando que qualquer trabalho antropo-lógico foi sempre político. Ramos, por exemplo,afirmou que no “Brasil, como em outros paísesda América Latina, fazer antropologia é um atopolítico” (1992b, p. 155). Um ato político que,segundo Debert, termina por exigir

posicionamentos quanto à proibição exercidapelo governo às entradas e pesquisas em áreaindígena; indicação de profissionais para aemissão de laudos periciais; elaboração deregulamentações; controle de questões éticasque envolvem os antropólogos, e pronuncia-mentos nos meios de comunicação de massa.(Debert, 1992, p. 14)

No entanto, tais participações (registros emteses, laudos, mídia etc) visam ao conhecimentoe ao reconhecimento de singularidades culturaise de legitimação da diversidade cultural, por meioda divulgação científica, seja no meio acadêmico,seja para a sociedade de maneira ampla. Assim,os antropólogos não apenas não processam umahierarquização de culturas, como ainda secomprometem em colaborar para a garantia e asalvaguarda dos grupos estudados. Significa quese comprometem responsavelmente por cola-borar, caso necessário, na preservação daquiloque for sinalizado como importante pelo grupo.

Lembrando que o grupo pode reconhecer comoimportante a parcial destruição (reatualização)como prática de preservação de uma tradição.Exemplo disso é o já citado caso do Japão(Ogino, 1995).

Canclini propõe que se observe o patrimôniocomo um “espaço de disputa econômica, políticae simbólica”, que contempla a ação de três“tipos de agentes: o setor privado, o Estado e osmovimentos sociais”. Para Canclini, há umarelação imediata entre a forma de interaçãodesses setores e as contradições nos usos dopatrimônio (Canclini, 1994, p. 100).

A antropologia, como área disciplinar,cuidou de refletir sobre as contradições e os con-flitos em torno dos patrimônios, acompanhandoo discurso (Gonçalves, 1996; Santos, 1992) oua ação (Arantes, 1984; Fonseca, 1994; Rubino,1991; Garcia, 2004) de um ou mais agentes, oua relação entre eles (Arantes, 1984, 1999, 2001;Lewgoy, 1992; Tamaso, 1998; Leite, 2001).

Contudo, no caso da participação do antro-pólogo no processo de inventário e registro deum bem cultural, para atender às políticaspúblicas culturais, ele não está transitando emmeio aos três setores: setor privado, Estado emovimentos sociais. Ele entra como parte inte-grante de um dos setores. Ou seja, desloca-sedo papel de antropólogo que reflete sobre aspolíticas e práticas preservacionistas – e sobreos impactos destas para os grupos portadoresde bens patrimoniais – para o papel de antro-pólogo inventariante; o que não significa quea participação do antropólogo seja nesse casoilegítima. Deve, contudo, pautar-se pelo exer-cício da reflexão sistemática sobre a práticaantropológica, no sentido metodológico e teórico,como garantia de participação responsável eética. Haverá que relativizar sua própria parti-cipação.

Na situação atual em que se encontram osdebates sobre a relação do antropólogo com aspolíticas de preservação dos patrimônios ima-teriais,24 é oportuno lembrar de uma caracte-rística da antropologia brasileira marcada pelafreqüente atuação política de antropólogos em

24. Reflexões sobre a relação entre a antropologia e o INRCpodem ser encontradas em Simão (2003) e Fonseca et al.(2004).

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defesa de causas de grupos indígenas, negros,quilombolas etc. Os antropólogos brasileiros têmassumido o importante papel de mediadores emsituações de conflito de interesses ou, segundoOliveira (2004), “no âmbito da comunicaçãointerétnica” ou do “agir comunicativo”.

A ABA tem demonstrado especial inte-resse nos debates sobre ética e responsabilidadesocial, diante dos novos desafios: a grandediversificação da atividade profissional dosassociados da ABA (Funai, Procuradoria Geralda República, Fundação Palmares, ONGs,instituições privadas de ensino etc); a existênciade contralaudos, que afirmam a posição dife-renciada de antropólogos em campos políticose econômicos em disputa; a relação entre aantropologia e outras áreas disciplinares comoo direito e as ciências da saúde, estas últimas,sobretudo, no que concerne às normatizaçõesvinculadas ao Conselho Nacional de Saúde(CNS), pela Comissão Nacional de Ética emPesquisa (Conep).25

Não caberia somar a todos esses desafiosa recente incorporação do antropólogo notrabalho do Inventário Nacional de ReferênciasCulturais? Não deveria a inserção do antro-pólogo nesse novo campo ser também consi-derada como tema para a reflexão sobre éticae responsabilidade social? Convicta de que aresposta é positiva problematizarei um poucomais sobre esse novo papel, o do antropólogoinventariante, não a fim de imobilizar-lhe a ação,mas a fim de ampliar-lhe os horizontes etno-gráficos e teóricos.

De maneira geral, farei uma análise compa-rativa das demandas de ação dadas aos antropó-logos indigenistas, com aquelas propostas maisrecentemente para o antropólogo inventariante.De maneira específica tratarei de criar paralelos– sempre resguardando as diferenças entre aquestão indígena e a questão patrimonial – entreo laudo pericial e o inventário, como documentosproduzidos sob responsabilidade de antropólogos,com poder senão de transformar, pelo menosde causar impacto em maior ou menor grau,positiva ou negativamente, sobre os grupos nelese por eles tratados.

Tomarei por base especialmente antro-pólogos indigenistas que vêm há algum tempoproblematizando a questão da ética e daresponsabilidade social do antropólogo, no queconcerne às demandas dos direitos indígenas.

Chamando a atenção para as situações nasquais a pesquisa antropológica vai, como disseOliveira, “além da construção de conhecimentose se vê enleada em demandas da ação” (2004,p. 22), Cardoso Oliveira cita sua própria expe-riência etnográfica como um exemplo no qual a“saudável combinação de etnólogo e de indi-genista” acabou por impor formas de ação aoprocesso de pesquisa. O antropólogo pesquisadorse viu também na condição de “etnólogoorgânico”;26 ou seja, na condição de pesquisadorumbilicalmente ligado a uma “entidade, umaclasse social, um setor de classe ou um dossegmentos desse setor” (2004, p. 24). Seu antigovínculo como etnólogo do Serviço de Proteçãoao Índio (SPI) teria condicionado de tal maneiraseu fazer antropológico que o pesquisador emcampo assumia, vez por outra, a postura doindigenista.27

O etnólogo orgânico, “intermediário naelucidação de situações equivocadas”, cumpriria,segundo Oliveira (2004) o papel de intérprete“de idiomas culturais em confronto”. Assim, a“antropologia prática” deve se pautar pelomodelo de eticidade de Groenewold – da macro,meso e microesfera28 –, considerado por Oliveira

25. Conferir Antropologia e ética: o debate atual no Bra-sil, livro que resultou de encontros, oficinas e simpósiosorganizados pela ABA.

26. Faz referência à expressão gramsciana.27. Um dos exemplos relatados por Oliveira (2004) refere-se a uma situação de contato interétnico na cidade deMiranda. Um casal de índios terena aguardava para ser aten-dido pelo proprietário de uma casa de comércio, quando oantropólogo e outros fregueses entraram. Não obstante es-tarem esperando há mais tempo, o proprietário do comér-cio foi atendendo os outros, desconsiderando o casal deíndios. O antropólogo, imbuído da postura indigenista, in-dagou sobre o motivo em não atender os índios que haviamchegado antes e, ouvindo do comerciante uma respostaetnocêntrica – “esses bugres não ligam por esperar, eles nãotêm pressa, o tempo para eles não conta como para nós” –, começou a “discutir” com o comerciante; mesmo cientede que deveria estabelecer boas relações com as “áreascircunvizinhas às reservas terênas”, para o bom andamentode sua pesquisa. Posteriormente, ao retomar suas anotaçõesde campo, leu a seguinte frase: “Será que mais do que brigar,não deveria eu devotar-me a elucidar” (2004, p. 24-25).28. Sendo a microesfera o espaço das particularidades, amacroesfera o espaço do universal e a mesoesfera o lugardos Estados nacionais, cujo papel seria o de mediar as esfe-ras locais e globais (2004, p. 26).

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como “útil para orientar os nossos passos noterreno da moral” (2004, p. 28). A interme-diação entre as esferas, em termos de uma éticadiscursiva, só se realiza quando o pesquisadorparticipa do diálogo entre as partes.

Assim, Oliveira entende que, em demandasde ação, acionadas por conflitos entre as esferassociais, o etnólogo orgânico não só pode comodeve agir junto aos grupos estudados “sempresob o signo da solidariedade – sendo estasolidariedade o modo pelo qual iluminamos o teorde nossa imparcialidade e, esta, sob o signo dajustiça” (Oliveira, 2004, p. 28).

O “agir comunicativo” de que trata Haber-mas é retomado por Oliveira, uma vez que paraele “sempre que estivermos voltados para a reali-zação do trabalho etnográfico, também estare-mos abertos para as questões que a própriaprática indígena nos propuser” (Oliveira, 2004,p. 21). Descartando a “antropologia aplicada”,por não se orientar pelo diálogo com aquelessobre os quais age, e a “antropologia da ação”,por ser demais reflexiva, Oliveira propõe umanoção de prática “nos termos de uma tradiçãoinerente à filosofia moral” (2004, p. 21). Retomao conceito de “prática” de Lévy-Bruhl (1910),como aquela que “designa as regras da condutaindividual e coletiva, o sistema de direitos edeveres, em uma palavra as relações morais doshomens entre si” (apud Oliveira, 2004, p. 22).Oliveira especifica ainda que confere as “rela-ções morais” um “sentido moderno, como o dasrelações dotadas de um compromisso com odireito de bem viver dos povos e com o deverde assegurar condições de possibilidade deestabelecimentos de acordos livremente nego-ciados entre interlocutores” (2004, p. 22).

Alcida R. Ramos também tem refletido háalgumas décadas sobre responsabilidade sociale ética no trabalho do antropólogo (1992a;1992b; 2004). Em “O antropólogo como atorpolítico” (1992a), a autora levanta algumasquestões relativas à crescente demanda de parti-cipação dos antropólogos indigenistas que meparecem bastante oportunas para o debate atualsobre os patrimônios imateriais:

[…] o que acontece quando somos chamadospelos poderes estabelecidos a pôr o conhe-cimento que acumulamos a serviço daquilo que

geralmente criticamos? Até onde podemosempurrar a lança, não raro quixotesca, do rela-tivismo cultural e do respeito absoluto à famosaalteridade? Quando nossas sugestões pisamnos calos dos interesses desenvolvimentistas,somos acusados de querer guardar os índiosem zoológicos. Quando aceitamos dialogar comesses interesses, corremos o risco de acusaçõesde cooptação, ou de sermos francamentecooptados, o que não é inédito entre nós. Restaentão perguntar: será possível que o ethosantropológico é irremediavelmente incom-patível com uma participação mais direta comaqueles que traçam as diretrizes da nação? Nãoserá uma contradição em termos advogar alegitimidade das diferenças e engajar-se emnegociações com quem sistematicamente negaessa legitimidade? […]Que Estado nacionalseria suficientemente esclarecido para acatar avocação relativizadora da antropologia? Ou,inversamente, que antropologia seria suficien-temente despojada de relativismo para suportarcompromissos ‘realistas’ com o Estado?(Ramos, 1992a, p. 156-157)

Seriam compromissos “realistas”, porexemplo, o processo de hierarquização para aseleção das manifestações culturais brasileiras?O antropólogo ativista, para Ramos, tem o papelde ator político do qual não pode se eximir.Propõe encarar essas questões sem “falsasexpectativas e sem um niilismo paralisante”(1992a, p. 157). Penso que os antropólogosinventariantes encontram-se no mesmo ponto:nem devem se imobilizar diante das novasdemandas sociais (participação e/ou coorde-nação em INRC), nem descartar a posturacrítica, relativizadora e ética da prática antro-pológica. Como manter o equilíbrio em meio àsretóricas desenvolvimentistas e globalizantes dosEstados-nações membros da ONU e co-partí-cipes das decisões das Unesco para o “patri-mônio mundial”?

Como “ator político”, há outra analogiapossível entre o antropólogo ativista (e etnólogoorgânico) e o antropólogo inventariante: dizrespeito aos laudos antropológicos, ressalvadasas diferenças específicas, que serão analisadas.O laudo antropológico pericial é uma das provassolicitadas a um antropólogo por um juiz queesteja dirigindo um dado processo judicial.Implica, portanto, a existência de conflitos de

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interesses, que devem ser resolvidos de acordocom a lei. A perícia judicial é solicitada a fim deapurar um fato ou situação cuja resoluçãodepende de conhecimento técnico ou científico(Santos, 1994). São exemplos de períciaantropológica a “investigação do grau deentendimento de um grupo indígena quanto àeliminação da vida humana” (criminal) e a“reconstituição da memória tribal sobre possede determinada terra” (civil) (Santos, 1994, p.22). O laudo antropológico é o resultado dediligências periciais, compostas por observaçõesde campo. Compõe-se, em geral, de um relatório,resumo dos fundamentos, respostas aos quesitose apêndice científico (Santos, 1994).

Ainda que o laudo antropológico não seconfunda com pesquisas de caráter acadêmico,a qualidade das informações etnológicas, comoaspectos da cosmologia, demografia, atividadeseconômicas e rituais, organização social etc., éfundamental para garantir a força de argu-mentação. Sendo assim, Valadão levanta umaquestão com relação aos laudos antropológicosque penso servir para pensar a situação atualdo antropólogo inventariante:

pode um antropólogo que não tenha estudosacumulados relativos ao grupo indígenaenvolvido no processo responder satisfato-riamente ao quesitos propostos dentro do prazode um ou dois meses determinado pelo juiz,considerando-se especialmente que deverãoser envolvidas pesquisas específicas para aconstrução do laudo? (Valadão, 1994, p. 40)

Valadão informa que a ABA, até aquelemomento, havia indicado para perícias antropo-lógicas apenas “antropólogos conhecedores dosgrupos envolvidos nos processos”, entendendoa medida como “prudente” a considerar-se “ainexistência de metodologia e culturas própriasà produção dessas pesquisas/documentos, bemcomo das responsabilidades para com osresultados dos trabalhos” (1994, p. 40, grifo daautora).

O que chama a atenção é que as preocu-pações de Valadão são em parte as que têminquietado os antropólogos que vêm refletindosobre o INRC. O que há de significativa dife-rença é que, no caso do reconhecimento dosbens de natureza imaterial, o Estado-nação

(Iphan/Minc) criou a “metodologia e a culturapróprias à produção” das “pesquisa/docu-mentos”: a metodologia dada no Manual deaplicação do INRC. Sendo assim, a princípio,eliminar-se-ia a necessidade de participação deum antropólogo conhecedor do grupo envolvido;sobretudo se pensarmos que o INRC prevê aanexação de pesquisas acadêmicas antropo-lógicas e outras no levantamento bibliográfico aser feito sobre o sítio e os bens inventariados.Porém, Valadão cita o fator “responsabilidadepara com resultados dos trabalhos” e, nesseponto, o problema se apresenta da mesma formapara ambos os campos: indígena e dos gruposportadores de bens patrimoniais a serem reco-nhecidos.

Proponho também que se reflita sobre acapacidade do INRC de captar valores e signi-ficados dos mais diversos grupos para alémdaqueles que em geral respondem pela históriado grupo. O próprio Manual de aplicação doINRC indica que os pesquisadores (inventa-riantes) procurem por aquelas “pessoas” quetenham “um conhecimento aprofundado dacultura local” (Iphan, 2000, p. 35). Mesmo nãose resumindo ao conhecimento dessas “pes-soas”, o INRC propõe que se comece por elasque, ao meu ver, podem de início direcionar ogrupo inventariante para “referências culturais”que não são apropriadas como valores maissignificativos pelo grupo como um todo, masantes por parte do grupo que detém o poder sobrea construção da memória local. Como tratar ascontradições sociais, que freqüentemente atin-gem os embates sobre a memória, se o que oINRC pretende é buscar apreender os signi-ficados e valores que os grupos sociais atribuemaos seus bens culturais, para, em seguida, seconsiderar pertinente, indicar o registro dedeterminado bem cultural.29 Não seria o antro-pólogo especialista no grupo o mais adequadopara interpretar as contradições inerentes àprática da memória ou ao processo sobre o qualse dão as narrativas sobre o passado e o tempo?Mas o que seriam antropólogos especialistas?

29. Ainda que seja uma das fases do registro, o inventárionão se limita a ele. O INRC tem por objetivo fazer o “le-vantamento, atualização e organização dos dados sobre de-terminada realidade cultural territorialmente delimitada”(Garcia, 2004, p. 78)

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Ramos levanta questões importantes sobreo papel de “testemunhas” desempenhado pelosantropólogos que realizam laudos periciais.Questiona primeiramente a categoria “espe-cialista”:

Até que ponto sou especialista em Yanomami?[…] a pequena parte da vida indígena queconseguimos assimilar em nossas investi-gações será suficiente para que tenhamosaquela visão, ao mesmo tempo global eespecífica, que nos habilite a fazer afirmaçõesque, ao passar do domínio da lei, serãometamorfoseadas em fatos e verdades jurí-dicas? (Ramos, 1992b, p. 55-56)

Outro ponto importante tratado por Ramos,e que pode ser trazido para iluminar os debatessobre a nova política de preservação dos patri-mônios culturais, é que, como “autores de laudospericiais, somos, ao fim, uma vicissitude conjun-tural na trajetória interétnica dos índios”.Parafraseando Ramos, a participação dos antro-pólogos inventariantes “é uma contingênciahistórica e, como tal, deve ser avaliada” (Ra-mos, 1992b, p. 56). Tais considerações levamRamos a tocar na “incômoda questão do pater-nalismo” (no campo do indigenismo), da qualfreqüentemente são acusados a Igreja e o Esta-do, mas que, quando é o antropólogo o acusado,sente “seus brios feridos” (Ramos, 1992b, p. 56).

Para além das limitações do “especialista”ou “perito”, Ramos levanta questões importantessobre o “processo pelo qual nos tornamosexperts”, ou seja, o modo como pensamos aantropologia. Ao irmos para o campo carre-gamos conosco tanto nossa existência anteriorquanto posturas teóricas, métodos e ferramentasanalíticas que moldam de tal forma os dadosque recolhemos, que tanto funcionam no sentidode ampliar quanto de estreitar nossa percepção.Segundo Ramos, “domesticamos a realidadecom categorias que nos são familiares, tanto emtermos de nossa socialização cultural como denosso treinamento profissional” (1992b, p. 56).Nossa vivência de campo é transformada emuma linguagem que não pertence àquela reali-dade e que vai sendo reproduzida em nossosescritos, “que poderão incluir, entre outrascoisas, laudos periciais, declarações oficiais oupúblicas etc.” (1992b, p. 56). Ramos é enfática

em afirmar que não devemos nos iludir, pois “essalinguagem acadêmica, aparentemente neutra,não é sempre inofensiva” (1992b, p. 56).

As reflexões de Ramos objetivam lançarluz sobre a complexidade do trabalho antropo-lógico que, para além dos limites acadêmicos,deve manter uma “ponte constantemente esten-dida entre o rigor profissional e o compromissopolítico” (1992b, p. 59). Critica uma posturaingênua, segundo a qual os laudos periciais seriamcapazes de “salvar” os grupos humanos do“flagelo”, afirmando que o simples fato de seacreditar que o conhecimento antropológico deveservir a alguma coisa mais do que à academia émotivo para que enfrentemos os desafios.

O desafio que está sendo imposto nomomento é aquele de refletir sobre a relaçãoentre vários atores sociais – entre o antropólogoinventariante e o grupo portador do bem cultural;entre o grupo portador do bem cultural e asinstituições públicas de preservação; as relaçõesinternas ao próprio grupo; as relações entre oantropólogo inventariante e as instituiçõespreservacionistas; entre os antropólogos e osprogramas de pós-graduação em “gestão dosbens culturais”; entre os antropólogos inventa-riantes e a academia – no que concerne às estru-turas hierarquizadas de saber e poder, tanto nocorpo do Estado quanto nas universidades einstituições financiadoras de pesquisa. Assim, oantropólogo inventariante é antes de tudo “sujeitoe objeto do seu próprio trabalho” (Ramos, 1992b).Deve cuidar para não ser surpreendido porsituações contraditórias, nas quais a ação comoautoridades em determinado assunto imobilizeo trabalho como antropólogo.30

Entendo, pois, que essa nova modalidadede atuação – registrar primeiramente noinventário, com o objetivo de registrar finalmenteno Livro de Registro – pode ser comparada coma atuação em laudos periciais antropológicos,os quais Silva considerou como sendo locusprivilegiado de acúmulo dos vários papéis porparte dos antropólogos : (1) cientista e traba-lhador acadêmico; (2) pesquisador de campo;

30. Exemplo disso é dado por Ramos (1992b), quando otrabalho em laudos periciais realizados a pedido do PoderJudiciário desencadeia a proibição por parte do Executivode regressar ao campo para dar continuidade ao trabalhoantropológico de pesquisa.

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(3) militante, e (4) profissional com competênciamuito específica, mas com profissão não regu-lamentada (1994, p.60). Esse antropólogoinventariante do patrimônio, de certa forma,estará efetuando o que passo a chamar a partirde agora de um laudo cultural: que se constituidos resultados das pesquisas iniciadas no INRC,sendo concluído com a indicação de registro deuma dada “referência cultural”, ou apenaslimitado à indicação de registro.31 O antropólogodeverá estar ciente de que estará mettant enscène todos os papéis acima relacionados.

Alguns poderão alegar uma diferença, emprincípio, entre o laudo pericial antropológico eo laudo cultural do qual participaria, dentre outrosprofissionais, o antropólogo. Refutando essapossível linha argumentativa, apresento ascaracterísticas do laudo pericial para em seguidarevelar que uma provável defesa da diferençaentre eles seria equivocada e sem valor heu-rístico maior.

O laudo pericial antropológico é acionadopela justiça e efetuado pelo antropólogo32 pararesolver situações de conflito de interesses. OINRC seria uma espécie de laudo cultural que,no entanto, não teria como objetivo a resoluçãode conflitos de interesses, no sentido judicial.Os conflitos seriam internos ao grupo criador eportador do bem cultural. Seriam resultado dadisputa pelo “passado”, pelas “marcas identi-tárias”. Haveria, então, um conflito de ordemnão-judicial, uma disputa simbólica para imporuma narrativa sobre o passado como maislegítima. A disputa pelos valores atribuídos aosbens é deveras importante e pode, por vezes,colocar na arena valores simbólicos em disputacom alegóricos.

Ademais, o próprio fato que antropólogosrealizem um “inventário” que, em últimainstância visa, averiguar o potencial “patri-monial” de dado bem cultural configura-se umaespécie de “laudo”. Ao enviar ao ConselhoConsultivo do Iphan uma proposta de registro, orelatório baseado em um dossiê deverá declarare comprovar o “valor” inventariado. Não cons-titui, pois, um laudo cultural? E não seria o própriolaudo pericial, antes de tudo, um laudo cultural?Convicta de que a resposta é positiva passo apartir de agora a me referir ao antropólogoinventariante como aquele que realiza um laudocultural em algum momento do processo dereconhecimento oficial de um bem cultural denatureza imaterial.

Assim, um mesmo antropólogo poderápraticar uma ou mais de uma das várias formasde registros: registro no decorrer da pesquisapara o INRC, no parecer de solicitação deregistro ao Conselho Consultivo do Iphan e nopróprio registro, que é a inscrição em um dosLivros de Registro. Registros que desencadea-rão, conforme já previu Arantes (2001), impactosque devem ser considerados pelo trabalhoantropológico “prático” e/ou “intelectual”, quese pretenda socialmente responsável e ético.

Considerando-se todas as observaçõesfeitas até o momento, penso que os antropólogosque lidam com questões relativas aos patrimôniosculturais devem balizar suas ações e reflexõesna direção de alguns pontos que considerocruciais. Alguns deles já foram parcialmentetratados pelos profissionais que se debruçaramsobre a nova política de preservação dos patri-mônios (Decreto 3551/2000, INRC, ProgramaNacional de Patrimônio Imaterial).

Primeiramente é importante ressaltar quenão basta estarmos de posse dos conhecimentosde uma dada manifestação cultural. O nossoolhar antropológico deve estar atento às cate-gorias que estão entrando em cena: “inventário”,“referência cultural”, “patrimônio imaterial”,“registro” e interpretar criticamente os usos aosquais eles têm servido nos mais variados lugares,uma vez que, como enfatizou Canclini, o“problema mais desafiante, agora, são os usossociais do patrimônio” (1994, p. 102). Casocontrário, correremos o risco de nos depararmoscom uma postura ingênua dos antropólogos

31. No primeiro caso, enquadram-se os casos nos quais umdado “sítio” foi inventariado com base na metodologia de-finida pelo Manual de aplicação do Inventário Nacionalde Referências Culturais (INRC) e de cujo inventário de-correu a indicação do registro de uma determinada “refe-rência cultural”, por exemplo, o registro da viola-de-cocho(MT). No segundo caso, a solicitação de registro não édecorrente da aplicação da metodologia do INRC. Exemploé o registro da arte gráfica e pintura corporal dos Waiãpi,cuja documentação que amparou a solicitação de registro éde autoria da antropóloga Dominique Gallois.32. O antropólogo pode requerer ao juiz um auxiliar da áreaque considerar necessária, para a realização dos trabalhos depesquisa visando à elaboração do laudo pericial (Santos,1994).

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diante de um fenômeno social, econômico epolítico.

Não basta já ter exaustivamente analisado,compreendido ou interpretado uma determinadamanifestação cultural. É necessário se informarcomo as políticas de patrimônio se dão, a fim desaber como a idéia de patrimônio será incor-porada àquela manifestação cultural, ou comoas políticas de patrimônio a englobarão. Oconhecimento prévio do grupo é fundamental,mas o conhecimento dos debates mais atuaisdos patrimônios, sobretudo aqueles que inter-pretam a recepção das práticas e políticas depreservação por parte dos grupos portadores debens patrimoniais, é condição básica se oantropólogo deseja realizar um trabalho res-ponsável.

De posse de uma compreensão mais espe-cífica do fenômeno “patrimônio” no mundo, háque se considerar, em segundo lugar, que noçãotem o grupo a ser inventariado, da idéia de“patrimônio cultural brasileiro”. Como o grupoa incorpora no cotidiano de suas práticas? Comopensa em fazer uso dessa categoria e o queespera dela? Questões que remetem não apenasà idéia de apropriação, mas sobretudo como osbens apropriados como patrimônio podemdeflagrar posições políticas distintas. Ou seja,por meio desses bens, as pessoas passariam ase definir em constantes contrastes identitáriosem relação a posições de poder, à tensão com oEstado, à auto-imagem criada tendo comoreferência o olhar dos de “fora” (turistas, porexemplo). Nesse caso, penso que cabe especi-ficamente ao antropólogo ser capaz de avaliarresponsavelmente, juntamente com o grupo aser inventariado, o impacto que, porventura, oregistro possa vir a trazer futuramente.

No processo da candidatura do título depatrimônio mundial da cidade de Goiás, muitasforam as campanhas que tiveram como propósitoesclarecer a opinião pública sobre o que signi-ficava ser “patrimônio mundial” e quais bene-fícios o título traria para a cidade. Vendo a cidadetoda em obras, para a instalação da fiaçãosubterrânea e da rede de esgoto (antes inexis-tente), muitos entenderam que toda a cidadereceberia o mesmo benefício que se tributavaao centro histórico. Além disso, os debatessempre foram norteados pelos impactos posi-

tivos: incremento do turismo seguido do conse-qüente aumento de empregos para cobrir essademanda; maior escoamento dos produtosartesanais e comidas típicas; possibilidade demais cursos tanto de capacitação para garçons,recepcionistas, cozinheiras e guias turísticos,quanto universitários em nível de graduação epós-graduação.

Os impactos negativos não foram sequeradmitidos no momento da campanha: aumentoda violência; significativa alta do custo de vida;concentração de poder quanto à gestão dosrecursos do patrimônio em grupos específicossem participação popular efetiva e hierar-quização dos patrimônios (temporal e espacial-mente), da qual decorrem ofertas para quemoradores tradicionais, de certas ruas, vendamsuas casas para que estas atendam a fins cultu-rais. Estes são apenas alguns dos inúmerosimpactos com os quais os vilaboenses se depa-raram, após a conquista do título de “patrimôniomundial” e já os colocaram em um nível discur-sivo.33 O exemplo dos patrimônios materiais nãopode ser desconsiderado pelos antropólogos quetrabalharão com os patrimônios intangíveis.Porque a intangibilidade destes termina exata-mente onde começam os inúmeros interesseseconômicos e políticos. Se há diferença deobjeto, não creio que haja diferença de riscos.

A tradição que fundamenta o bem intan-gível, os laços sociais que são alimentados porele, as trocas simbólicas que dependem damanifestação cultural para acontecerem, arelação que o bem cultural estabelece temporale espacialmente, nada disso se situa apenas nonível do intangível. Como já foi deveras ressal-tado (Iphan, 2000a), os caracteres imateriais dobem cultural só podem sê-lo se contarem comum apoio material: vestimenta, instrumentos,música, ornamentos, objetos, espaço físico, sereshumanos etc. Creio que, quando os impactos sedão no âmbito da esfera material da mani-festação cultural, é porque, de alguma maneira,já atingiram a esfera do intangível e vice-versa.Não são dois caracteres distintos. São caracteresinterdependentes: um só existe pelo e para ooutro. Os impactos, quando afetam um sistema

33. Dados coletados no trabalho de campo realizado nacidade de Goiás entre 2000 e 2002.

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cultural, fazem-na tanto do ponto de vista mate-rial quanto do intangível. E creio ainda que osfuturos “patrimônios imateriais”, pela sua feiçãoparticular, de manifestações culturais em cons-tante dinâmica, ficam ainda mais sujeitos aosimpactos advindos das políticas de patrimônio.

O terceiro ponto a ser considerado dizrespeito à relação entre os antropólogos e ogrupo a ser inventariado. Penso que os antro-pólogos que se disponham a realizar o INRCnão devem perder de vista que o compromissodo antropólogo é para com o grupo estudado, eque este não deve ser suplantado para atenderaos interesses das agências estatais, não-governamentais ou privadas que porventura ostenha contratado. É oportuno citar a perspectivacrítica de Carvalho ao chamar a atenção para ofato de que “a crise do Estado brasileiro podeafetar também a perspectiva dos pesquisadores,gerando novas ambivalências de adesão emesmo de identidade social e política” (2004,p. 11).

Sendo assim, o quarto ponto a ser consi-derado seria uma indicação de que os antro-pólogos se comprometessem a acompanhar ogrupo inventariado após o registro, a fim decolaborarem para impedir rupturas e desinte-grações não desejadas pelo grupo, naquelesistema cultural, em conseqüência da divulgaçãoe promoção deste.

Os projetos de desenvolvimento têm sidorecorrentemente debatidos e acompanhadospelos antropólogos há algumas décadas. Osantropólogos têm sido chamados por empresaspúblicas e privadas, tanto para elaborar projetosde desenvolvimento quanto para avaliar seusefeitos (Arantes et al., 1992). A maior preo-cupação é para com os vários sistemas culturais,que podem ser absolutamente transformados porprojetos, que têm como mote o “desen-volvimento da região”. Os projetos de desen-volvimento, no caso dos bens culturais intangíveis,são projetos turísticos. Os bens culturais não sãoobstáculo para esse tipo de desenvolvimento.São antes a sua razão de ser (Lowenthal, 1998b).Ao invés de desconsideradas pelo Estado-nação, as manifestações culturais serão reco-nhecidas como “patrimônio cultural brasileiro”e serão divulgadas com um único interesse,dentre outros, de que as políticas de preservação

do país, finalmente, reconheçam a importânciados vários grupos étnicos formadores da culturabrasileira. Uma demonstração do espíritodemocrático. É um bom motivo. Mas quemarcará com os riscos?

Estou certa de que, se um novo mercadode trabalho se abre para o antropólogo, tambémsurgirão novos objetos de estudo, oriundos datransformação das manifestações culturais nosmais recentes “patrimônios culturais brasileiros”.Pois se a atribuição do valor patrimonial passaa ser cada vez mais desejada, se a afeição pelopatrimônio se alastra pelo mundo, nós antro-pólogos devemos tentar entender o contextosocial no qual tal aceitação se dá e quaisconseqüências podem surgir do investimento naidéia de “patrimônio” e nas práticas de preser-vação dos patrimônios. Qual contribuição osantropólogos podem dar aos gestores daspolíticas e práticas de preservação dos patri-mônios, mas, sobretudo, aos grupos que estarãosendo inventariados e talvez registrados?

Entendo que devemos acompanhar osprocessos de atribuição do valor “patrimônio”em casos específicos, a fim de observar proxi-mamente os resultados da inserção dessa novacategoria. Como a categoria “patrimônio” éapropriada pelos vários grupos sociais? A quaisgrupos ela melhor serve ou é melhor opera-cionalizada? Quais grupos, por dificuldade dese apropriar dessa categoria, são excluídos doprocesso? Quais expectativas são geradas pelainserção da idéia de “patrimônio” e pela ascen-são das políticas públicas a ela relacionadas?

O quinto ponto a ser considerado dizrespeito à questão da representatividade naesfera cultural. Quanto a isso, vale lembrar quea Unesco enfatiza a importância do papel a serdesempenhado pelos grupos criadores e porta-dores dos bens culturais, que devem ser agentesdo processo de solicitação, registro e açõesposteriores ao reconhecimento. Também noBrasil esta é uma preocupação. Arantes (2001)recomenda que o acompanhamento dosimpactos deve ser feito com a participação dapopulação afetada. Há, pois, que se proble-matizar mais a questão da representatividadena esfera cultural de países onde a democracianão foi efetivamente instituída e a cidadania estáainda por ser conquistada.

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Vianna, esclareceu que a realização deinventários e registros tem por objetivo propor-cionar “ampla base de dados no sentido deorientar as políticas públicas de preservaçãocultural e regulamentação de direitos para ascomunidades criadoras dos bens culturais emquestão” (2001, p. 97). Preocupada que estoucom a questão da representatividade e daagencialidade dos criadores e portadores dosbens culturais, pergunto: como (e quem vai)garantir que os próprios criadores e agenteslocais do bem cultural serão também “agentes”no processo de seleção de políticas e regula-mentação de seus direitos? Como podemos nósantropólogos contribuir para que a cidadania sejaefetivamente alcançada no processo de patri-monialização dos bens culturais?

O sexto ponto seria que a AssociaçãoBrasileira de Antropologia (ABA), preocupadaque está como ética e responsabilidade socialdos antropólogos, incluísse em sua pauta dedebates a questão dos patrimônios culturais edos antropólogos inventariantes. Não seriaoportuna uma participação mais efetiva da ABAno caso do patrimônio, assim como ocorre nocaso do indigenismo?

Se, por um lado, estamos assistindo àampliação de novas oportunidades de inserçãono mercado de trabalho por meio dos INRC edos Registros dos Bens Culturais de NaturezaImaterial, simultaneamente estamos presen-ciando a constituição de novos objetos de estudo,uma vez que a ampliação dos patrimônios tendea aumentar as tensões constitutivas, dada a lutaempreendida pelos vários grupos sobre quemdeve possuir e interpretar o patrimônio.

Abstract: In the last decades we can see an importantexpansion for the heritage. UNESCO and Iphan extendthe public politics for the heritage in order to attend thevast repertory of cultural expressions and the plural socialidentities. The edict, that establishes the register of“intangible cultural references”, is instigating the especialinterest of anthropologists. If the “cultural references”are what “culture” means, than they are always importantmatter of register from many folkloristics and anthro-pologists. Nevertheless, there is some difference and it isnot about the subject itself, but epistemological. It isimportant to reflect about the social responsibility ofinventory maker anthropologists, who make cultural

expertises about specific groups, when they participateto the process of inventory and/or register of intangiblereference. It is opportune to make analogies with thepractices of Indian anthropologists. In front of that newchallenge it is necessary to make anthropologic reflectionsabout its concerning theory and ethic.

Key-words: cultural heritage, anthropology, publicpolitics, expertises, ethic.

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