memórias de velhos

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Os seres humanos sempre necessitaram da liguagem para se comunicar. A comunicação entre os humanos está envolta em vários aspéctos, dentre eles a linguagem e a identidade. Neste estudo abordamos a relação tênue entre a linguagem e as identidades de homens e mulheres idosos, buscando recontruir de forma sistemática, os traços de identidades que estão envoltos em seus relatos orais. Memórias de velhos é um trabalho multidisciplinar que passeia pela literatura oral, linguística e história social. Vale à pena conferir e conhecer um pouco mais do universo de homens e mulheres amazônicos que sairam das matas dos seringais e se aventuraram rumo às cidades em busca de melhores condições de vida.

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Sobre Terras e Gentes

Velhos

Memóriasde

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© LIMA, R. B. 2008.

Editoração Eletrônica/Capa – LIMA, Reginâmio B.

Grupo de Estudo e Pesquisa Sobre Terras e Gentes: Amazônia em FocoCoordenador do Grupo: Reginâmio Bonifácio de Lima

Pesquisadores: MsC. Maria Iracilda Gomes Cavalcante Bonifácio; Esp. LelciaMaria Monteiro de Almeida; Regineison Bonifácio de Lima e Pedro Bonifácio de

Lima.

Coleção Sobre Terras e Gentes:LIMA, Reginâmio B.. Sobre Terras e Gentes: O Terceiro Eixo Ocupacional deRio Branco (1971 - 1982). 1. ed. João Pessoa: Idéia Editora, 2006.LIMA, Reginâmio B. (Org.); BONIFÁCIO, Maria Iracilda G. C. (Org.). Habitantese Habitat. 2. ed. Rio Branco (AC): Boni, 2007.LIMA, Reginâmio B. (Org.); BONIFÁCIO, Maria Iracilda G. C. (Org.); ALMEIDA,

Lelcia M. M. (Org.). Habitantes e Habitat: A expansão da fronteira. Rio Branco(AC): Boni, 2007.

Diagramção: Anderson F. da Silva

Impressão: GRAF-SET

Ficha catalográfica preparada pela Biblioteca Central da Universidade Federal do Acre

Tel.: (068) 9997-4974

Foi feito o depósito legalImpresso no Brasil

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Ao Deus Todo-Poderoso, Criador da vida.A todos os amantes e estudiosos damemória humana que por guerras,holocaustos ou mortes prematuras nãoconseguiram concluir suas obras.Ofereço-lhes este trabalho, que ensejo sermais um capítulo sobre a memória develhos, nem melhor, nem o último, apenasdiferente – como todos os outros.Aos sujeitos lembrantes que entrevistei.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO......................................................................................7

CAPÍTULO I:TRAÇOS DA MEMÓRIAE SUBSTRATOS DE IDENTIDADES ..............................................191.1 Técnicas de registros de relatos orais ..................................... 191.2 Contextualizando o Terceiro Eixo Ocupacional

de Rio Branco ............................................................................251.3 Do planejamento à transcrição, textualização

e transcriação ............................................................................351.4 As vozes da memória .................................................................44

CAPÍTULO II:LEMBRANÇAS DE VELHOS ...........................................................532.1 Reflexões sobre a velhice ...............................................................532.1.1 A velhice e o corpo .......................................................................532.1.2 A velhice e o direito de sonhar .................................................... 572.1.3 Velhos em perfil ...........................................................................632.2 A constituição social da memória .................................................722.2.1 A memória, a identidade e o tempo ..............................................722.2.2 Memória autobiográfica e trajetórias de vida ...............................832.2.3 Demências e apatia influenciandoa memória e o esquecimento .................................................................892.3 O Velho, a Vida e o Mundo ...........................................................992.3.1 Ficção e deslocamento .................................................................992.3.2 Saudades, sonhos e solidão .................................................. 1082.3.3 De donas de casa a chefes de família .................................. 1192.3.4 Terras e Gentes: revisitando o passado ................................ 137

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................145

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NOTAS DE FIM........................................................................155REFERÊNCIAS.........................................................................157GLOSSÁRIO ............................................................................163

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INTRODUÇÃO

A razão da escolha do tema se deve a uma experiênciapessoal com idosos, além de há quase duas décadas conviver nalocalidade em estudo. Outro motivo foi poder dar continuidade àspesquisas que realizamos no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu,em “Cultura, Natureza e Movimentos Sociais na Amazônia”, peloCentro de Filosofia e Ciências Humanas da UFAC, onde analisamosa formação e crescimento do Terceiro Eixo Ocupacional de RioBranco. Durante a Pós-Graduação, foram trabalhados os aspectosde formação e transformação do espaço em lugar, em uma perspectivageo-histórico-social acerca da estrutura ocupacional dessa área, bemcomo, a ambiência empostada a partir dessas ocupações. Neste novoprojeto, produzido apartir de nossa dissertação de Mestrado emLetras: linguagem e identidade, com área de concentração em EstudosCulturais, pela UFAC, a continuidade foi dada analisando asperspectivas da memória cultural e da identidade, inerentes ao modode vida e as relações construídas na interação com os habitantes, aformação das ideologias e as práticas sociais nesse local.

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Neste estudo, foram enfocadas histórias de vida de“cidadãos comuns”, migrantes que, em sua trajetória, reelaboraramseus espaços, adaptando-se às novas dinâmicas sociais, integrando-se a diferentes culturas, ao mesmo tempo em que se afirmamidentitariamente como seringueiros e posseiros, em um processo dereconstrução de identidade individual e coletiva e este, por sua vez,forjado no interior do grupo. Embora seja sabido que, conforme afirmaThompson: “A natureza da memória coloca muitas armadilhas paraos incautos [...] oferece também recompensas inesperadas para umhistoriador que esteja preparado para apreciar a complexidade comque a realidade e o mito, o ‘objetivo’ e o ‘subjetivo’, se mesclaminextricavelmente em todas as percepções que o ser humano tem domundo, individual e coletivamente.” (THOMPSON: 1990, p. 179).

Portanto, nossa proposta neste projeto é identificar eanalisar as vozes dos velhos enquanto autonomia de expressão, apartir das lembranças desses antigos habitantes do Terceiro EixoRiobranquense, que se constituem como sujeitos reais, sociais e ativosna construção da história, bem como, relacionar sua inventividadena transformação da memória cultural e construção das identidades.

Verificamos que, na velhice, a lembrança se torna algomuito fluido, alguns se lembram com riquezas de detalhes e outrosnão. As recordações também se embaralham, cristalizam, recriammemórias, perde-se a exatidão. Esse trabalho foi pensado tentandocompreender esse fluir e refluir das memórias e tentando responderessas perguntas de como as lembranças se formam. Assim, nasproblemáticas levantadas buscamos analisar como foram gravadasna memória dos habitantes o aumento do fluxo migratório, no sentidocampo-cidade, na década de 1970 e início da década de 1980.Almejando explicitar, a partir de suas lembranças, de que maneira seproduziam as relações e interações sociais entre os habitantes doTerceiro Eixo Ocupacional de Rio Branco; como também levantarcomo se configuram e se constroem as identidades e a memória

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cultural nas conjunturas resultantes do processo de transformaçãoocorrido no local durante o período de formação (1971 – 1982).

A partir dos expostos, objetivamos proceder um estudoacerca do discurso dos moradores mais antigos do local, investigandocomo a presentificação do passado influiu na construção de suasidentidades e memória cultural, partindo da interação com suaslembranças e de que forma as modificações antrópicas efetuadasinfluenciaram suas vivências na periferia estendida.

Especificamente, intentamos compreender como asmigrações e as vivências dos habitantes se configuram em suas memórias, considerando suas origens e outros aspectos que levaramo local a ter um perfil tão peculiar; discutir, por meio dos relatos, aluta pela sobrevivência das populações migrantes expropriadas daperiferia de Rio Branco e sua conseqüente construção identitária com/no local; e, analisar a flutuação de conjunturas resultantes do processode transformação ocorrido na localidade durante o período deformação (1971 – 1982).

O trabalho de campo foi realizado após o devido registrono Comitê de Ética em Pesquisa. Fizemos entrevistas com homens emulheres que moram no que a Prefeitura de Rio Branco nomeou, noano de 2006, como sendo a Regional VI, estabelecida no novo PlanoDiretor da cidade. Os entrevistados relataram fatos que lhes vinhamà mente através de lembranças e memórias construídas pelosfragmentos de vivências e constituições a partir delas.

Em tempo oportuno, no texto, serão explicitadas algumasformulações mais detalhadas sobre o assunto. No momento, valeressaltar a metodologia com estudos a partir de autores como PaulThompson, Ecléa Bosi e Stuart Hall. Para trabalhar essas históriasde vida que pouco ou quase nada têm de escrito, resolvemos escolhera história oral porque acreditamos que ela está mais próxima do queintentamos por sua possibilidade de “compor e interpretar” as históriasde vida dessas pessoas em seu cotidiano. A História Oral discute adocumentação viva, ainda não aprisionada pela linguagem escrita e

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incorpora visões subjetivas, sentimentos e observações dosindivíduos. Alguém pode se perguntar sobre quais são os indivíduose que de sentimentos se fala. Afirmamos que, sendo vários osdiscursos que participam, integram e recontam a realidade, areconstrução dos fatos e a colagem das informações podem terdiversas formas.

Segundo Paul Thompson, as pessoas comuns procuramcompreender as revoluções e mudanças por que passam em suaspróprias vidas por meio da História. A finalidade social da Históriarequer uma compreensão do passado que, direta ou indiretamente, serelaciona com o presente. A história oral é construída em torno daspessoas. Ela traz a história para dentro da comunidade e extrai amesma de dentro da comunidade.

Ao estudar as vivências dos sujeitos sociais, podemostomar por empréstimo a topificação concisa elaborada por Garcia(2004), onde ela elenca o papel do pesquisador, o método, a atuaçãodos autores, a narrativa, e o enfoque pelo qual pode perpassar apesquisa, dentro de uma análise dos estudos culturais, atentando parao fato de essa ser possível apenas quando os entrevistados são vistosenquanto sujeitos da pesquisa, e não objetos. Em sua exposição, aautora afirma que:

O objetivo do pesquisador é aprender como a vidados indivíduos aparece para eles, o poder da cultura e daestrutura social na determinação do comportamentopessoal.

Narrar a própria história implica num processo deracionalização, na medida que projeta o passado àinevitabilidade presente. Neste movimento ressurgem oserros e acertos, as motivações, constituindo um inventáriode descobertas e reavaliação. Narra-se como se fora parao outro, narra-se para si mesmo em última instância.

A tarefa científica se reduz ao enquadramento darealidade interior dos informantes na realidade exterior.Trata-se de comprovar como a experiência única é

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socialmente construída e situa-se dentro de padrões eregularidades social e historicamente previsíveis.

Os métodos tradicionais falham na captura dasvozes silenciadas. Para isto é preciso praticar métodos,epistemologias adequadas aos subrepresentados sociais.Tanto história oral, quanto história de vida parecemorientadas a uma ciência com postura de ativismo social.

O pesquisador adquire status de hermeneutainterpretando vozes, ouvindo segredos e problemas,ouvindo com, superando a dicotomia pesquisa e prática,autor e texto, sujeito e objeto.

A experiência vivida, relatos do vivido, aproblematização da vida revelam que o mais importanteda experiência social é a forma como o ator social vive osprocessos sociais e entendem o mundo do seu tempo.

Ao escutar desvelamos a lógica oculta de certoscomportamentos, podemos analisar como o ato social foivivido e praticado pelos atores, as diferentes formas decompreensão do real, o social sentido e vivido e seuimpacto sobre os indivíduos.

O indivíduo é agente ativo que pode construir seuambiente ante uma infinidade de maneiras pode resistir àpressão da sociedade. Ele não é a expressão de relaçõessociais estruturadas dominantes no sistema social, portadorde valores, atitudes e comportamentos. Ele possui suaautonomia pessoal, volitiva, afetiva e subjetiva, e atua numcontexto social que perpassa nossos atos, sonhos, delírios,obras, comportamento. A história deste sistema está nahistoria de vida pessoal (GARCIA, 2004, p. 5).

Garcia resumiu de forma concisa a atuação na pesquisa,contudo, algumas outras formulações precisam ser levadas emconsideração, para tanto, utilizaremos os procedimentos de outrosautores. Assim, algumas referências teóricas, conceitos e conjunturassociais serão estudados, com a devida contextualização, acerca daurbanização da cidade e do processo expansivo. A alteridade marcanteno ser humano, que torna o outro imprescindível para sua constituição,

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posiciona as variadas visões ocorridas no confronto das entoaçõesdas lembranças e suas correlações com as relações sociais vivenciadas.

A base teórica de nossa investigação se apóia nopensamento identitário de Ecléa Bosi e na perspectiva historiográficada discussão social como elemento fundante para a construção deum modo de vida comunitário, embasada no pensamento estruturalde Paul Thompson.

Continuando, em uma visão transdisciplinar da produçãocultural e das ciências humanas, tendo como pressuposto diferentesdiscursos existentes, em relações sociais diferenciadas e uma culturafundamentalmente não-unitária, foram analisadas as vozes que estãoimpregnadas no discurso, ou seja, a interação entre os discursos comoconstituição e manifestação da inventividade dos sujeitos.

Seqüencialmente, foram aplicados questionários,procurando levantar informações sobre o espaço de moradia doshabitantes e suas relações de convivência, nas palavras de PaulThompson:

Uma coisa é saber que as ruas ou campos em tornode uma casa tinham um passado antes que ali tivessechegado; bem diferente é ter tido conhecimento, por meiodas lembranças do passado, vivas ainda na memória dosmais velhos do lugar, das intimidades amorosas poraqueles campos, dos vizinhos e casas em determinadarua, do trabalho em determinada loja (1992: p. 30-31).

A caracterização das evidências orais, sua confiabilidadee análises da aceitabilidade enquanto documentos são tratadas deforma a oferecer uma avaliação da produção e contribuição que aevidência oral tem dado quando revela novos campos e perspectivasda pesquisa.

Utilizamos a metodologia desenvolvida por PaulThompson por acreditarmos ser a mais apropriada para o tipo depesquisa por nós desenvolvida, uma vez que Thompson é um dosmais influentes eruditos e propagadores da pesquisa em história oral

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pelo mundo. Em sua obra A Voz do passado, escrita em 1978, revistae ampliada em 1988 e reeditada em 2002, o autor mostra as bases dométodo e do significado da pesquisa com oralidade e história oral.

Os estudos das evidências orais estão presentes na históriahumana há milênios, contudo, ficaram esquecidos por várias décadasnos últimos séculos. Somente nos anos de 1960 houve um “boom”nas pesquisas com História Oral nos EUA. Nesse mesmo período,Paul Thompson, com o intuito de estudar um período recente dehistória social inglesa, utilizou e aperfeiçoou instrumentos deentrevistas para a atuação com oralidade. Enquanto nos EUA apesquisa com relatos orais estava voltada para os “Great Men” –grandes homens –, Paul Thompson e seus colegas da Essex atuavamcoletando testemunhas de “ordinary people” – pessoas comuns.

A experiência bem sucedida na recém fundadaUniversidade de Essex, onde Paul Thompson trabalhava, logo seespalhou por várias áreas do conhecimento e seu método tornou-semodelo para pesquisadores de vários países, inclusive norte-americanos.

Um outro motivo para utilizarmos a metodologia depesquisa oral inglesa de Paul Thompson é o fato dessa metodologia,desde a década de 1970, ser muito utilizada em atividadesgerontológicas. No processo de reminiscência de pessoas idosas, oestímulo da sua memória, o convívio e as atividades terapêuticaslevaram a implicações sociais consideradas agradáveis tanto para osidosos em suas habitações, hospitais, asilos, quanto para seusconviventes.

Para Paul Thompson, a pesquisa com relatos orais é uminstrumento de mudança que pode colaborar para a construção deuma sociedade mais justa, uma vez que ela possibilita novas versõesda história ao “dar voz” a múltiplos e variados narradores. Assim,permite atividades mais democráticas nas próprias comunidades, umavez que possibilita a construção a partir das palavras dos queparticiparam e vivenciaram um determinado período, mediante asreferências que têm em seu próprio imaginário.

Completando a base teórica da pesquisa, utilizamos opensamento de Ecléa Bosi, em sua tese de livre docência que deu

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origem à obra Memória e Sociedade (1994), na qual afirma que ovelho não consegue lutar, é preciso que nós lutemos por ele. Esseshomens e mulheres velhos são oprimidos de muitas e variadas formas:através da burocracia para se aposentar, as filas intermináveis, dasnecessárias próteses nem sempre adquiridas, das tutelas e de tantasoutras formas que explicitamente agridem os velhos ou tacitamentesão permitidas.

Para Ecléa Bosi, ser velho “é lutar para continuar sendohomem” (1994, p. 18), na tentativa cotidiana de sobreviver e suafunção social é lembrar e aconselhar. Ao retratar o velho na sociedadecapitalista, a autora afirma que o velho “sem projeto, impedido delembrar e de ensinar, sofrendo as diversidades de um corpo que sedesagrega à medida que a memória vai-se tornando cada vez maisviva, a velhice, que não existe para si, mas somente para o outro. Eeste outro um opressor” (Ecléa Bosi, 1994, p. 19).

Stuart Hall (2003) trabalha de forma um pouco mais“sistemática” e comenta a identidade cultural do sujeito pós-moderno.Para o autor, a alteridade tem se mostrado como necessária para quea nova busca de ver o local não se separe do global, da mesma formaque o global tem sido visto a partir das localidades. Porque hoje nãoexistem mais “lugares fechados em si”, há uma pluralidade de culturasinteragindo dialeticamente e é necessário aprendermos a viver comas diferenças identitárias.

O corpus do trabalho, consta da coleta e análise deentrevistas produzidas com os habitantes antigos da localidade,buscando neles a linguagem, a memória e as relações sociaisvivenciadas. Portanto, ao acessar a memória desses homens emulheres, temos como base para estudos as entrevistas e análisesefetuadas a partir de relatos orais e questionários produzidos nainteração com os moradores que chegaram e permaneceram no local,exercendo, de certa forma a liderança em cada bairro. Assim, deacordo com entrevistas da pesquisa anterior sobre a formação dalocalidade, percebemos que algumas pessoas são aceitas e os líderesatuantes nas associações de moradores, comércios, escolas, igrejas,postos de saúde, dentre outros.

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A escolha dos entrevistados para fazerem parte do “hall”que se apresenta neste trabalho se deu a partir da relação surgidaentre o pesquisador e os moradores do Terceiro Eixo, na etapa depesquisa de campo produzida para a realização da monografia deconclusão do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Cultura,Natureza e Movimentos Sociais na Amazônia, onde foram aplicadas161 questionários, colhidas entrevistas orais e analisados documentos.Após alcançados os objetivos do estudo, que resultaram nas obrasSobre Terras e Gentes1, Habitantes e Habitat2 e Habitantes e Habitat:a expansão da fronteira3, traçamos objetivos outros, dos quais surgiuum projeto de pesquisa bidirecionado e complementar, na relaçãopesquisa documental e história oral, que se orientou por acompanharas trajetórias de vida de dois habitantes de cada bairro do TerceiroEixo, a partir do que a pesquisa temática de estudo da “formação dalocalidade” se funde, infunde e confunde com suas trajetórias de vida.

Dentre os 16 entrevistados, percebemos o fato de nosdepoimentos colhidos algumas das trajetórias serem muito parecidas,embora parte destas não se relacionasse com o ambiente em suaformação. Também outras falavam muito do ambiente, falhando noviés das trajetórias a serem analisadas e comparadas com a localidade.Relacionando os critérios de estudo com as práticas nos relatoscolhidos, verificamos que todas as entrevistas eram de riquezaabundante de vida ou de história temática para a “construção deidentidades”. Embora o “leque de possibilidades” fosse muito amplo,para não nos perdermos com três motivos diferentes: trajetórias,temáticas ou trajetórias e temáticas, escolhemos ficar apenas com asentrevista que tinham na essência de seus relatos as trajetórias etemática em concomitância, sem prejuízo de uma em privilégio deoutra. Assim, apenas 10 das entrevistas foram escolhidas para aanálise.

Vale ressaltar que as outras seis entrevistas não utilizadasficaram de fora por não abranger os dois fatores escolhidos de formaaproximada. Essas seis privilegiavam de forma contundente a riquezada temática escolhida de formação do Terceiro Eixo ou privilegiavamas trajetórias de vida dos sujeitos lembrantes. Embora sejam muito

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importantes, seria muito difícil estabelecer três vieses de estudo emuma única obra. Esse foi o motivo principal da escolha de apenas 10para análise, apesar de inicialmente terem sido colhidos 16 relatos.

Com a classificação do material ideal para fazer ascomparações que destaquem os conteúdos convergentes e divergentes,que pudessem contribuir para a construção de evidências,estabelecemos contato com os entrevistados acerca da permissão deuso de seus relatos nos trabalhos aqui apresentados.

Os entrevistados, que voluntariamente haviam assinadouma “carta de cessão de direitos sobre imagem e som”, foram postosa par do “termo de consentimento livre e esclarecido”, em que, apósexplanação detalhada, ratificaram o ato de permissão de utilizaçãodos relatos para uso na pesquisa e outras formas de divulgação, comoa possível publicação dos mesmos. Ainda que todos eles tenhamaberto mão do anonimato, seus nomes, os nomes de seus filhos equalquer outro sinal que os pudesse veementemente identificar forampropositadamente trocados por correlatos próximos. A título deexemplo, poderíamos citar que um pretenso entrevistado com oprimeiro nome de Cosmo seria chamado de Damião, ou uma Mariadas Graças seria Maria Aparecida, seus filhos Tiago e João (filhos deZebedeu) seriam Pedro e André (filhos de Jonas). O porquê danecessidade de permanência dos nomes se dá principalmente por maisde três quartos dos entrevistados, familiares e conhecidos teremnomes4 bíblicos ou de santos católicos. Além do fato de a mudançanão implicar possível reconhecimento, uma vez que há mais de milnomes na Bíblia e outro milhar de santos. Pretendemos demonstrar areligiosidade presente nos atos desses sujeitos lembrantes e o fato deos identificarmos apenas pelas letras iniciais do nome implicariaperdas consideráveis à pesquisa e aos traços aqui abordados.

Mas não apenas de promessas se constituem os nomes nalinhagem dos católicos entrevistados para este trabalho. Muitos dos“chefes de família” eram devotos de algum santo porque seus pais eavós o foram primeiramente. É como se fosse uma espécie de gratidãopor uma benesse advinda à família nos tempos passados. Desta forma,

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é comum aparecer nomes como Maria Aparecida, Maria das Dores,Maria das Graças, Maria de Lourdes, Maria da Conceição, dentre outrasMarias. É comum ter oito filhas e todas se chamarem Maria.

Sistematicamente, cada capítulo e sub-capítulo tratam deassuntos que se correlacionam uns com os outros, abordando váriasfaces da mesma temática de trajetórias de vida pautadas nas lembrançasconstituintes da memória.

Na introdução deste trabalho, elaboramos os procedimentosbásicos de apresentação da pesquisa. Descrevendo de forma sucinta atemática os seus recortes, bem como as problemáticas levantadas e aspossíveis hipóteses que fazem parte do projeto de pesquisa que embasaeste trabalho. Da mesma forma, fizemos uma exposição dos objetivos,bem como revisão das referências e da metodologia, para, por fim,fazermos a exposição de cada um dos capítulos da dissertação.

No capítulo um, intitulado Traços da memória e substratosde identidades, buscamos atender ao objetivo específico de analisar aflutuação de conjunturas resultantes do processo de transformaçãoocorrido no Terceiro Eixo durante o período de formação (1971 –1982). Para que esse objetivo seja alcançado subdividimos o capítuloem quatro itens:

No primeiro item, intitulado Reflexões sobre a velhice, éanalisado o conceito de velhice na sociedade ocidental, bem como aânsia desses sujeitos que se auto-intitulam velhos em buscar seremrespeitados como seres humanos. Através de suas reminiscências elespresentificam o passado e refletem na memória as vivências passadas.Foram analisados os relatos dos sujeitos lembrantes e suas interações,buscando pontos de convergência e pontos que se diferenciam nodiscurso proferido a partir da memória produzida dentro do contextode sociabilização das comunidades que fazem parte do Terceiro Eixo.

No segundo item, intitulado A Constituição social damemória, as implicações das temporalidades estão presentes nos relatosdas memórias dos velhos, formulando substratos de identidades pelosmúltiplos conceitos de temporalidades. A memória é descrita de forma

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presentificada e presentificadora, sendo, a partir dela, construídas asbases das identidades desses sujeitos narradores. Buscamos discutir,por meio dos relatos, a luta pela sobrevivência das populaçõesmigrantes expropriadas da periferia de Rio Branco e sua conseqüenteconstrução identitária com e no local. Para tanto, trabalhamos comquatro itens que auxiliam no desenvolvimento dessas idéias. Foramestudados os traços presentes na relação dos sujeitos lembrantes coma sociedade em que vivem. Desta forma, as identidades são constituídasnão apenas pelo viés da memória presentificada, mas pela reformulaçãodas interações sociais estabelecidas e revisadas pelos narradores.

No terceiro item, intitulado O Velho, a Vida e o Mundo,foram trabalhados os traços identitários e sua apresentação na memóriapresentificada dos sujeitos lembrantes, para, a partir deles, produziruma correlação entre a memória do que eles dizem que aconteceu e amemória em que afirmam que teria sido melhor se tivesse ocorridodaquela forma como narram o pretenso fato. De mesma forma,observamos como repercute na fala das mulheres lembrantes o fato dedesde cedo terem precisado trabalhar para sustentar seu lar, e maisque isso, em muitos dos casos se tornaram as chefes das famílias. Naausência dos homens, ou quando esses partem para outro lugar, duranteanos, essas mulheres cuidaram de suas famílias, estabeleceram vínculosde confiança e reciprocidade com os seus filhos e netos. Estudamos arelação antrópica existente entre os sujeitos e a localidade em queestão inseridos, sendo eles interlocutores uns com os outros e com aprópria localidade, constituindo laços identitários que os une oudistancia, conforme as vivências dos grupos envolvidos.

Por fim, foram produzidas as considerações finais que, deforma breve e sucinta, fazem uma exposição das idéias contidas e dasperspectivas que envolveram as memórias dos sujeitos lembrantes.

Acreditamos ser necessário fazer uma última afirmativa:este trabalho não é sobre memória, nem é sobre velhos. No intuito deverificar a relação entre as vivências e a constituição do lugarescolhemos estudar a “memória de velhos”.

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CAPÍTULO I:

TRAÇOS DA MEMÓRIA E SUBSTRATOSDE IDENTIDADES

1.1 Técnicas de registros de relatos oraisA comunidade acadêmica vive um momento de

descobertas das técnicas de registro e análise da oralidade; mais queentrevistas, as situações envolvem possibilidades de investigação eelaboração de experimentos. Há um pequeno exército depesquisadores ansiosos por “dar voz aos vencidos”, embora sejapreciso estar atento a esse conceito e suas implicações filosóficas. Anecessidade de relacionar o conhecimento com a realidade políticanão pode ser posta de lado. Por isso, os métodos e os procedimentosde trabalho precisam ser discutidos a fim de se esclarecer os trajetosdesta pesquisa e explicar as atitudes do procedimento envolvido.

Mesmo ansiando por um trabalho que se ponha àdisposição de um público mais amplo, que possa ir além do ambienteuniversitário, pretendemos que este trabalho também supere as merasconstatações de praxe, que seja aberto, de leitura agradável, mas que

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exponha de forma penetrante as narrativas dos sujeitos lembrantes.Por assim pensar, consideramos a tomada de decisões sobre o sentidode conhecimento, mediada pela ação metodológica como defundamental importância para distinguir o trabalho de pesquisa comfontes orais, do trabalho jornalístico. Enquanto este lança ao públicosituações de imediata transparência, sem enveredar reflexivamentepor técnicas complexas na determinação dos motivos geradores detal ato; o trabalho com fontes orais reflete cautelosamente a situaçãoposta, ponderando os fatos e se propondo a interferir na transformaçãosocial.

Coube-nos “ordenar” os depoimentos que nem sempresão lineares, e contribuir para o esclarecimento das questões propostaspara que se possa conferir as hipóteses e alcançar as metas.

Na pesquisa, é necessário tornar claro o fato de a memóriaser do tempo presente, ainda que represente o passado, sendofascinante em muitos casos, resultando na necessidade de tomarcuidados especiais para não se tornar refém dos relatos coletados ouser prejudicado em sua capacidade de análise. Direta ou indiretamente,voluntariamente ou não, dentro das possibilidades apresentadas, é opesquisador quem “comanda” a fase inicial do processo deconhecimento, perpassa todo o processo de conhecimento, atravessatodo o processo de seleção de depoentes e depoimentos, recortes efissuras. É ele quem reescreve as falas, reconstruindo asinterpretações. Assim, Montenegro (2003) afirma que muitosdepoimentos fascinam e instigam por reconstruir vivências,acontecimentos e experiências, ou, ainda, pela inexplicabilidade ouinusitado. Entretanto, é o pesquisador quem deve analisar e interpretar,porque só assim estará produzindo um conhecimento crítico – o quenão implica em esse conhecimento ser uma “verdade absoluta”, antes,propicia uma possibilidade de verossimilhança com as relaçõesestabelecidas pelos seres humanos em suas vivências.

Devemos ter consciência de que a memória está envoltaem poder, indistintamente de ser memória individual ou coletiva:

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poder de lembrar, poder de esquecer, poder de omitir, poder desilenciar, e poder de lembrar de forma nostálgica. Em cadadepoimento, percebemos o que Neves (2001) afirma: “cadadepoimento é único e fascinante em sua singularidade e potencialidadede revelar emoções e identidades”, buscando contribuir para que aslembranças permaneçam vivas e atualizadas, não por questão deexaltação ou crítica pura e simples do passado, mas pela procurapermanente de escombros do diálogo do presente com o passado.

Antes de ir ao campo de pesquisa e estudo, é necessáriorevisar a metodologia, delimitar os espaços a serem visitados erevisitados, reestudar os referenciais teóricos e críticos, cercar-se deartigos e textos que sejam pertinentes à análise que se propõe a fazer.Destarte, pode se dirigir ao campo de pesquisa com seu relógio prontoa ser utilizado, gravador de voz6, pequeno, mas potente, para o casode a câmera filmadora falhar, e à mão máquina fotográfica de bolso.

A pesquisa foi feita nos bairros que compõem o TerceiroEixo Ocupacional de Rio Branco, que atualmente a Prefeiturarenomeou como Baixada do Sol7. Ao chegarmos ao local, conhecidode antemão, percebemos casas e gentes amistosas. “Íntimosdesconhecidos”, que ao ver uma declaração com o símbolo da UFAC,e letras miúdas atestando a veracidade da pesquisa, nos receberamde portas abertas. Em seguida, éramos conduzidos ao “dono” da casae esse insistia em dizer a história do bairro e contar um pouco maisde sua vida.

Após alguns meses de entrevistas, concluímos a segundafase do trabalho de pesquisa, que se originou durante a realização dePós-Graduação em Cultura, Natureza e Movimentos Sociais naAmazônia/UFAC, intitulado Sobre Terras e Gentes, do qual estetrabalho é continuação. Percebemos que alguns homens e mulheresidosos, ou velhos como se auto-intitulavam, eram considerados líderesna comunidade, saudados e respeitados pelos habitantes que chegaramdepois ao lugar. Dentre esses velhos, escolhemos dezesseis para fazerum novo processo de entrevistas, com os quais iniciamos umaprofundamento de estudos.

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As entrevistas foram pensadas para se realizar em critérios“normais” de ambiente livre de ruídos e com privacidade para a fluidezdo diálogo de uma pessoa para outra (THOMPSON, 1992), pensamosem condições favoráveis como espaço privativo, não-interferência,silêncio, contudo, o que vimos na localidade foi bem diferente. Oambiente do lar favorecia ao entrevistado, agora “já conhecido” doentrevistador, um ambiente de conforto e segurança “por estar noque é seu”. Mas, ao mesmo tempo havia uma recepção familiar muitodinâmica de querer participar e contribuir, causando dificuldades narelação metodológica da pesquisa em ação. Dificuldades essas quelogo foram transpostas.

Em vários dos lares “visitados”, as condições de habitaçãoeram precárias, falta de água, de esgoto, de pavimentação e até decomida. Alguns dos entrevistados chegaram a cogitar recebimentode dinheiro para poderem prestar entrevistas, como afirmou uma dasentrevistadas: “Vocês sempre vêm aqui, gravam o que a gente diz, aívão embora. E a gente continua sem nada. Isso deve dar dinheiroporque você é bem o quarto que vem em minha casa... Já que vocêstão ganhando, eu também quero o meu... É justo, não é?!”. Essa falamostra que alguns pesquisadores vão às localidades e não dão retornodo resultado das pesquisas, uma vez que a idéia de dinheiro estápresente. A realidade da maioria absoluta dos pesquisadores é maisde estudos e realização acadêmica que a de recompensa financeira.Essa, quando acontece, em grande medida, é a médio e longo prazo.

Uma outra senhora afirmou: “Olha, pra mim falar temque dá dez reais! ... Vocês vêm aqui no sol quente, andando de pé...um ano depois aparecem com carrinho, celular novo... Eu tambémquero ganhar algum com isso”. E, ainda, um outro entrevistado: “Olharapaz... eu vou dizer uma coisa... dinheiro eu não quero não, mas setivesse uma coquinha (coca cola) com um bolinho pra gente, erabom”. A idéia de troca ou ganho pelas memórias a serem comparti-lhadas esteve presente em alguns dos entrevistados, tanto que, pelanossa insistência em afirmar não estar autorizado a conceder

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proventos ou favores erários pelos diálogos a serem estabelecidos,alguns moradores antigos na localidade se recusaram a fazer partedo grupo de entrevistados voluntários.

Após explicada a função da entrevista, de coletar infor-mações sobre a temática da constituição do bairro e das trajetóriasdeles até aquele momento na localidade, ressaltando o caráter volun-tário das entrevistas, continuamos a coleta de relatos orais em umambiente bem diferente do projetado.

As lembranças, as narrativas, os contos e rezas nos leva-ram a um fascínio, um ambiente que torna fortuito o papel de quemensinava e de quem aprendia. Em meio a latidos de cachorros, pro-pagandas em auto-falantes móveis, choro de meninos, gritos de vizi-nhos, e meia dúzia de familiares vendo/ouvindo/falando, interferin-do, realizamos as entrevistas. Todavia, o que mais incomodava e nosdeixava perplexo era a naturalidade com que os narradoresvivenciavam aquilo. Era como se aquele turbilhão de acontecimen-tos não estivesse ocorrendo ali.

O prazer da mera conversa com a vontade de fazer asentrevistas era aquilatado pelas interferências familiares. Ora a es-posa corroborava com o marido, dando detalhes sobre o fato recémnarrado, ora os filhos interferiam acrescendo outras informações.Também quando a esposa era entrevistada, o marido ratificava suafala, demonstrando querer participar das narrativas. Em alguns mo-mentos, precisamos lembrá-los que estávamos gravando e asobreposição de voz – falavam até quatro pessoas ao mesmo tempo– causaria dificuldades na transcrição.

Nesse ritmo contemporâneo, sem rígida condução, segui-mos as entrevistas. Percebemos também uma maior “naturalidadeao falar” ou uma diminuição de receio por volta do terceiro encontrocom o entrevistado, ou, em alguns casos, quando no fluxo contínuode pessoas que entravam e saíam das casas, percebíamos conhecidosem comum, parentes ou vizinhos dos entrevistados. Esses conheci-dos faziam questão de nos cumprimentar – ao entrevistador e ao en-

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trevistado, mesmo sabendo que a filmadora estava ligada – e o entre-vistado ficava mais à vontade após esse contato.

O nosso intento era ouvir, contudo, alguns entrevistados,com receio de não estar atendendo às expectativas, esperavam denós perguntas sobre temas para que os abordassem. Então trabalhamoscom as técnicas de prosseguimento do diálogo (MONTENEGRO,2003), do tipo: é mesmo?! Puxar! Hunrum! Ahh! E, então?! E depois?!

Foi preciso abandonar a noção de tempo cronológicobaseado em horas. Alguns entrevistados preferiam nos receber cedo,pela manhã, outros ao meio dia, e ainda outros ao entardecer. Adificuldade não se apresentou no fator horário inicial, todavia algumasconversas se prolongavam por várias horas, às vezes, cinco ou seis, eos entrevistados não queriam parar. Preparavam de surpresa almoços,jantares, “dois dedos de café” que mais pareciam cinco. E sentiam-se extremamente ofendidos com a possibilidade de não aceitarmosos convites quase intimatórios. Ofereciam-nos o melhor que tinham.E mais ainda as vozes dos parentes integravam o discurso do narrador.

Surgiram as indagações: O que fazer com o discurso, comas interações familiares, com os detalhes proferidos pelo cônjuge,com as informações pertinentes acrescidas pelos filhos? O que fazercom essas interferências? Quanto à possibilidade dessa “interferência”no discurso, Paul Thompson já havia alertado:

Um velho casal, ou um irmão e uma irmã,freqüentemente proporcionarão correções de informaçãopositivamente úteis. Pode ser também que cada umestimule a memória do outro. Esse feito acentua-se aindamais quando se reúne um grupo maior de pessoas idosas.Nesse caso, haverá uma tendência muito mais forte, doque privadamente, de que se apresentem generalizaçõesa respeito dos velhos tempos; mas como eles discutem etrocam histórias uns com os outros, podem surgir algumasinsights fascinantes (Thompson, 2002, p. 266).

Ao captar as problemáticas, através das histórias dastrajetórias de vida nas vozes plurais de cada lar, decidimos, depoisde um árduo trabalho de edição, fazer a integração desses discursos à

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história central narrada pelo “chefe” ou pela “chefe” da família.Aprendemos que a voz desses velhos e velhas não é solitária, que elasó pode ser ouvida se os interlocutores estiverem fazendo coro. Nessarede de narradores, percebemos que muitos dos entrevistados seconhecem, mesmo morando a quilômetros de distância um do outro.

1.2 Contextualizando o Terceiro Eixo Ocupacionalde Rio Branco

Nas décadas que sucederam a Segunda Guerra Mundial,são vistas as muitas facetas dos interesses políticos e econômicos doCentro-Sul para com a Amazônia, e para com o Acre8. O sistema decomunicações foi melhorado, as rodovias abertas, o Território Federaldo Acre foi transformado em Estado, no ano de 1962, o que deu maisautonomia a ele.

Em fins da década de 1960 e seguintes, as terras acreanasestavam ganhando ares de mercadoria. O novo modelo de ocupaçãoproduzido pela expansão da pecuária retirava os trabalhadores dafloresta e lhes negava as mínimas condições de sobrevivência. Aprópria política de colonização oficial, na década de 1970, produziuimpacto decisivo sobre o “isolamento” em que o Acre ainda seencontrava, dando continuidade a uma política de “integração”, parabeneficiar o capital que estava se estabelecendo no Acre. As decisõesda justiça estavam comprometidas com o modelo de desenvolvimentodos governos militares para a Amazônia. A própria imprensa e osmeios de comunicação eram extensões do poder oficial, omitindo-seacerca das questões agrárias e fazendo absoluto silêncio sobre ascontradições no meio rural.

O propagandeado “futuro fator de desenvolvimento doAcre”, a pecuária extensiva, não alcançou seu objetivo, o governadorWanderley Dantas e seus auxiliares não conseguiram enriquecer oAcre com o progresso e o desenvolvimento. Antes, a concentraçãode terras nas mãos de uns poucos, a crescente derrubada das florestaspara serem transformadas em pastos, a venda das toras por madeireirasvindas ao Acre e o êxodo rural, são mais visíveis como conseqüência

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da política implementada e do capital especulativo que, propriamente,do ostentado progresso acreano. Por conseguinte, as gentes forammigrando na direção campo-cidade, e assim se formaram os “bolsões”populacionais ao redor das cidades e às margens das rodovias.

Rio Branco já havia passado por dois eixos de expansão.O primeiro quando a cidade se expandiu de Volta da Empresa paraPenápolis, atualmente conhecida como Centro de Rio Branco. Osegundo eixo de expansão se deu nas adjacências de Volta da Emprezae Penápolis, constituindo bairros como Triângulo Velho e Novo,Cidade Nova, Papouco, São Francisco, Jardim Tropical, Aviário,Cerâmica, Estação Experimental, e as diversas Cohab’s (Habitasa,Bosque, Castelo Branco, Bela Vista), dentre outros.

Um Terceiro Eixo Ocupacional de Rio Branco ocorreuna área que sai do núcleo central da cidade, que até o fim da décadade 1960 era habitado de forma intensiva somente até a Secretaria deEstado de Educação – antigo Centro de Treinamento – indo em direçãoao Aeroporto Velho. Limita-se ao norte com os bairros NovoHorizonte, Castelo Branco e Volta Seca; a leste e a sul com o RioAcre; a oeste e a sudoeste com a Estrada da Floresta. Os bairrospobres dessa área foram formados a partir de três perspectivas:loteamentos, ainda que não totalmente estruturados, invasões eocupações.

Ao falar de Eixo Ocupacional em Rio Branco, precisamoster em vista que “a compreensão do movimento de formação etransformações da cidade, em sincronia com as etapas e contradiçõesda economia mercantil da borracha, torna-se, então, uma das chavespara desvendar os problemas e conflitos surgidos agora com aaceleração do crescimento urbano” (Oliveira, 1982, p. 32).Nesse aspecto, identificamos a formação, ainda que parcial, de umalocalidade extensiva aos habitantes do que se chama Terceiro EixoOcupacional de Rio Branco. Esse se constituiu na área próxima aoCentro de Treinamento, atual Secretaria de Educação, envolvendo

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os 08 bairros formados a partir da expansão da cidade ocorrida nadécada de 1970 e início de 1980. Quanto à temporalidade, é certoque não se pode definir uma data-marco de formação específica,também não tem uma data final de andanças populacionais. O quepercebemos é que a área que compreende o Terceiro Eixo teve oinício de sua formação “urbana” aproximadamente em 1971, e odesenvolvimento espacial com uma definição básica próxima ao queé atualmente, por volta de 1982. Também observamos, nesse mesmoterritório, uma pluralidade de identidades coletivas, envolvendodiversidades em relação às origens, aspectos culturais, trajetórias devida, que aproximam e distinguem grupos de indivíduos entre si. Em1982, em sua obra “O Sertanejo, o Brabo e o Posseiro”, Oliveiracitou o Terceiro Eixo, afirmando:

Um Terceiro Eixo de crescimento da cidade éaquele que segue o caminho em direção ao antigoAeroporto, desde o núcleo central através da Rua RioGrande do Sul, a qual até 1970 era habitada sóparcialmente, até o chamado Centro de Treinamento. Estaparte, inclusive, se estendia por uma grande superfíciede áreas verdes naturais, as quais foram inteiramentederrubadas durante a década passada. (...). Nessa áreapontificam os bairros do Aeroporto Velho, Terminal,Bahia e Palheiral, habitados pela população pobre deorigem rural e que já somam [em 1982] mais de 15.000pessoas. Todavia, a invasão e a ocupação de áreas aindaprossegue (sic) nesse eixo e os novos bairros vão seformando, como o bairro João Eduardo (...) (Oliveira,1982, p. 39).

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Cidade de Rio Branco com Terceiro Eixo em destaque

Fonte: Setor de Georeferenciamento da PMRB.

A vivência dos ex-seringueiros e ex-posseiros rurais é ofoco constituinte de interesse deste estudo, como matéria deinvestigação pertinente à compreensão específica das característicasassumidas à acentuação urbana.

Ao compararmos o momento anterior com o atual, levandoem conta o Terceiro Eixo na Cidade de Rio Branco, percebemos quea cidade possui atualmente 154 localidades cadastradas pela Prefeitura– ainda que alguns digam que o número pode chegar a 187 – que osmoradores chamam de bairros, embora haja a estimativa que o númerodos mesmos seja maior, tendo em vista as recentes áreas de ocupaçãoem situação “irregular”. Atualmente, a Prefeitura estuda apossibilidade de formação oficial dos bairros de Rio Branco, fazendouma junção de localidades em um mesmo setor para a formação dos

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bairros. De acordo com dados prévios da Prefeitura, Rio Branco terácerca de 50 bairros oficiais, tão logo seja concluída a demarcação esetorização da Capital acreana.

O IBGE, ao fazer o mapa da malha setorial riobranquense,dividiu a cidade em 83 setores censitários para o recenseamento de2000. Os bairros que formam o Terceiro Eixo Ocupacional de RioBranco permaneceram agrupados em alguns setores. Sabemos queos bairros que atualmente formam a área da “Baixada da Bahia” sãofruto da expansão do Terceiro Eixo, que antes tinha apenas oitobairros, sendo eles: Palheiral, Bahia, Bahia Nova, Glória, Pista,Aeroporto Velho, João Eduardo I e João Eduardo II. Segundo o Setorde Georeferenciamento da PMRB, atualmente essa região tem emsua área a quantidade de dezesseis bairros; além dos citadosanteriormente, foram acrescentados os bairros Boa União, AirtonSena, Sobral, João Paulo II, Plácido de Castro, Boa Vista, Invasão da

Sanacre e Floresta Sul.

De acordo com o IBGE, a área referente ao Terceiro EixoExpandido, ou seja, os dezesseis bairros que compõem a localidade,foi dividida em 09 setores censitários, sendo eles: João Eduardo,Palheiral, Bahia, Pista, Glória, Aeroporto Velho, Ayrton Sena, Sobrale Plácido de Castro. Na pesquisa, foi constatada a quantidade de33.908 pessoas vivendo nesses locais, residindo e convivendo em14.109 domicílios. Portanto, é certo dizer que o Terceiro EixoOcupacional Expandido de Rio Branco representa, na atualidade,14,98% da população urbana riobranquense, e comporta em sua área17,14% dos domicílios da cidade. Assim sendo, é clara a super-povoação do local em comparação com o restante de Rio Branco.Uma área que representa menos de 10% da extensão total urbana daCapital acreana comporta quase um quinto de seus domicílios, e umsétimo de sua população.

É importante lembrar que os habitantes dessas localidadesnão são “coitadinhos”. Eles foram vitimados pelas políticas públicas

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que não os contemplaram, mas também agem dialogando com osoutros e fazendo seus próprios movimentos de resistência e defesada sobrevivência própria e dos familiares. Muitos dos moradores têmnoção dos embates, lutas e expropriações que houve no “campo” edas pelejas que ocorreram nas interações conflituosas e dinâmicasocorridas na “cidade”.

Trabalhar as experiências dos idosos nos permite entenderos percursos vividos e os olhares construídos pelas gentes que fazemparte do processo de ocupação e formação dos bairros que compõemo Terceiro Eixo. Esse é um lugar formado por famílias que têm emcomum suas trajetórias, pois é fruto dos processos econômicos eocupacionais estabelecidos para a região amazônica nos diferentestempos. São famílias que têm suas origens formadas na grande maioriade migrantes nordestinos, que sem grandes recursos deixaram suaterra natal e saíram em busca de melhores condições de vida.

Vir para a floresta amazônica era ir mais além, e isso traduza força de uma gente que não se dá por vencida. Nessa busca,atravessaram rios, percorreram varadouros, indo até o fim de umaprova cheia de perigos, mesmo que não conhecessem os limites. Nessecaminho, muitos não vieram para ficar, mas poucos retornaram paraas terras que habitavam antes de vir para a Amazônia, e a maioriajamais conseguiu sair da região amazônica, como aconteceu comseu Raul Isaías, que atualmente tem 83 anos:

Nasci em 1924, mês 10... nasci em Paripuera,município de Cascavel, pra lá de Fortaleza... Eu saí de lácom 22 anos... A vida lá era boa, porque meu pai era umpequeno fazendeiro, era proprietário, vida boa pra nóslá... Meu pai criava boi, comboio, aquela coisa, coqueiral,terra, tudo nós tinha lá, ainda tem, ainda... Eu saí de lá naatitude de conhecer o Acre. Andar, né?! Não foi por briga,perseguição, nada, nada. Só pra conhecer... ... Euembarquei de Fortaleza com problema de soldado daborracha, né? Fui direto para o rio Envira, passei porMaranhão, passei por Belém, passei por Manaus, diretopro Envira, pro Acre, né?! ... A viagem durou muitosmeses, só em Belém nós passamos mais de 42 dias

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esperando o navio Belém, pra subir pra Manaus e umbarco grande de ferro, navio e motor Belém, é o nomedele, mas ele é grande, era muito grande... Eu vim pra cácontratado pela companhia americana... como é o nomedela?... não lembro o nome... mas, de noite, era proibidofumar... pra não fazer luz de noite no submarino... Elebotava o navio no fundo do mar... submarino alemão... Osubmarino botou um monte de navio no fundo do mar...O navio Siqueira Campos, que ia daqui do Acre pra láfoi afundado... só o que ele levava era a borracha...foiafundado bem pertinho da praia, e ainda tá lá. O açogrosso dele, nunca tiraram, tudo porque o navio é muitogrande, né? Só sabe como era o navio quem conhece...(Raul Isaías, 83 anos).

Seu Raul é um dos milhares de brasileiros que vierampara o Acre em meio à “Batalha da Borracha”. Pelo seu depoimento,percebemos que as mortes não se davam apenas nas terras acreanas,com ataques de índios, de animais, doenças ou desnutrição. A mortetambém vinha em forma de bombas, tiros e torpedos. Eles vierampara o Acre, foram instalados nos seringais para produzir, comosoldados, as pélas de borracha necessárias à guerra, a ser entreguepelo Brasil ao governo dos Estados Unidos da América.

Quando eles pensaram que tinham seu lugar fixo paramorar com a família, foram expulsos pelas políticas de Governo quebeneficiavam o levante da pecuária que se implantava no Acre.Quando esses não mais “brabos”, nem mais “arigós”, agora“seringueiros”, pensavam que haviam encontrado seu lugar, tiveramque reiniciar o percurso, atravessar novos caminhos e perigos embusca de um novo local de moradia.

Quando nós chegamos aqui, as casas do bairro eratudo de palha de ouricuri, cercada de palha... aí a pessoamorava...

Mas aqui teve muita mudança, muito mais dizemque essa rua aqui era só o varadouro, e só lama, quando

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era no inverno. (...) Mas era lama, meu amigo, e mato, sóo varadouro daqui ali pra Bahia; o mato era assim de umlado e do outro.

Quando eu cheguei aqui você contava as casas.Mas, até que construíram muitas depois que eu cheguei...tá beleza (Aldira).

(...) A minha primeira casa, é como eu já falei,foi... era ali no meio da rua, toda coberta de palha...fechadinha de palha, não tinha piso, era só o chão mesmo.Aí nós passamos uns seis meses naquela casa, depoispassaram aí cortando as ruas em lotes, né? Aí a genteteve que sair... Aí aquela casa ali era de madeira...(...)Fomos pra uma casa ali, atrás dessa daqui. Lá, nóspassamos um bom tempo... Aí o dono também vendeu acasa. Aqui tava só coberta... essa parede aqui era só depalha, aquele lado também era de palha... Aqui era tudono aberto... Tudo o que tínhamos aqui era um puxadinhode palha... Aí a gente... Nessa época ele [marido] tavatrabalhando não sei pra onde, e eu ficava só, eu e os doismeninos pequenos (Laura).

As populações que saíam da “zona rural”, ao chegar nacidade precisavam se dirigir para as periferias, porque não tinhamcondições de adquirir propriedade nos locais “urbanizados” da cidade.Nesse contexto de mudanças territoriais e deslocamentos, tendo emvista a história acreana, percebemos que o projeto de desenvolvimentopecuarista, a partir de 1970, foi a principal política de investimentosno Estado, não sobrando muitas verbas para investir na melhoria dascondições de vida das famílias que se dirigiam para a Capital. Paracumprir esse projeto “desenvolvimentista”, milhares de hectares deterras foram vendidos, outros simplesmente “perdidos” pelos que lámoravam. Quanto ao progresso prometido, ficou para os novos quechegaram, os mesmos responsáveis pela expulsão de milhares detrabalhadores dos seus locais de trabalho e de moradia.

Esse foi um tempo de profundas mudanças. Nesseprocesso de transformações, a cidade de Rio Branco tornou-se uma

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alternativa às populações tornadas migrantes que buscavam moradia,brigavam por um lugar, e, encontraram nas chamadas “terrasdevolutas”, “um pedaço de chão” para construir suas moradias,reconstruir suas vidas e sonhos.

Eu não sabia quase nada sobre o bairro quando eume mudei pra cá. Nós, derradeiro, morava numa colônia...Era afastado da cidade, porque nesse tempo tinha trêscasinhas aqui... (...) quando dava uma chuva... Eu cansei...quando eu vinha do serviço, dava uma chuva de ficar asandália, arregaçar a calça até em cima, era um sacrifíciopra gente andar... Bem ali lavava os pés, que isso aquiera um gapó, que ia até a Semsur... Isso aqui bem aqui,tinha uns paus pra gente passar por cima dos paus...queera pra não se melar.

Essa rua não era alta assim, não... já foi aterrada...Aqui não andava carro, não andava nada, era um gapó,mesmo, isso aí. Aqui ficava só o lugarzinho das casas,quando chovia, a água invadia tudo... Aqui ficava tudocheio de água.

Aqui tinha problema até de alagação, porque nãotinha pra onde a água ir. Chovia, a água ficava toda, nãotinha pra onde ir. Aí, com uns tempo, foi que o pessoalaqui inventaram uma bueirazinha, daculá (Francisco).

As dificuldades de famílias como a de seu Francisco nãocomeçaram no local onde moram atualmente. Muitas das famíliasmoradoras dos bairros que formam o local também passaram pormuitos perigos, atravessaram rios e percorreram varadouros antes dechegar a Rio Branco. São, assim, gentes de várias localidades. Issoocorre de três maneiras distintas: primeiro porque vieram de lugaresdiferentes, ou seja, de várias regiões do Brasil; segundo, porque muitosestiveram por muitos lugares dentro do próprio Acre; e terceiro,porque é intensa a migração dentro dos próprios bairros. A explicaçãopara essa última forma de mudança está provavelmente na época do

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seringal, quando era comum “enjoarem” da colocação e a trocaremcom o vizinho. Prática que muitos no local ainda realizam, agora nãoem relação à colocação, mas em relação às próprias casas.

Nem só de terras vive uma localidade, as gentes são tãoimportantes quanto. Assim, percebemos que as falas dos entrevistadossão reveladoras das muitas transformações, dos muitos problemas ealternativas ocorridas nos bairros ao longo do tempo. Suas lembrançassobre o passado nos possibilitaram o acesso a um “fio condutor”,que possivelmente nos tenha levado a entender um pouco sobre ahistória da “terra” que essas “gentes” requereram para si, e queforam a cada dia reinventando.

A partir da análise das condições em que viviam osmoradores no final da década de 1970 e início da de 1980, segundo orelato dos entrevistados, percebemos a importância dada a valorescomo a honestidade e o trabalho, bem como o extremo apego aolocal, dadas as relações estabelecidas pela vivência e convivência nalocalidade. Valores que, apesar das transformações ocorridas, aindase mantêm nas vidas dos moradores do local.

Foi o movimento dessas transformações que buscamosentender, na medida do possível, no decorrer deste trabalho. Dessaforma, buscamos construir este trabalho não só pelas informações,mas também pela experiência de seus moradores, através do que lhespassou, lhes aconteceu e do que lhes toca. Foi na “ordem e desordem”que orientam o fazer e os saberes cotidianos das pessoas desse lugarque buscamos olhar sem velocidade e sem preconceito, para não terpressa diante do turbilhão que nos foi mostrado.

Embora, em sua maioria, os moradores não sejam maisos mesmos da época de formação do bairro, percebemos que, para osque ficaram, estabelecer novas ligações de comunhão social foifundamental para que aquele espaço representasse mais que um local,representasse um lar. Desse lugar, grande parte dos pioneiros noprocesso de formação do bairro só buscam sair para o cemitério, emuma demonstração que mesmo com várias oportunidades de semudarem para outras localidades, eles mantêm uma relação muitoforte com o lugar, a ponto de as suas histórias não apenas fazeremparte do processo de formação, mas principalmente traduzi-lo,confundindo-se e misturando-se com ele.

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As gentes que habitaram e habitam as terras do TerceiroEixo, como muitos outros homens e mulheres, viveram e vivem suasvidas interdependendo uns dos outros. Eles saíram de seus locais evieram para os bairros, e, em conjunto com outros, formam hoje umlocal, setorizados em um eixo, em uma cidade, em um estado, emuma nação. Se é que essas construções de nomenclatura não sãomeramente políticas. É bem provável que essas gentes não tivessemidéia da dimensão da intensidade dos atos que praticavam, ou podeser que tivessem, porque na construção da memória o que se inscrevenão é apenas o presente, mas também o passado representado.

Atualmente, mais de 30 anos depois do início de seuefetivo processo de ocupação, muitos vestígios dessa época deformação ainda podem ser encontrados. São eles que, somados àlembrança dos moradores, mostram-nos que esse lugar tem umahistória cheia de retalhos deslineares, fissuras, rupturas,descontinuidades e fragmentos.

A cada momento, a cada minuto de conversa transcorrido,um novo pedaço da história do local surge. Quando pensamos queestá para se encerrar, tudo se reinicia, e começamos a galgar mais umdegrau rumo à espiral que delineia as histórias das gentes e das terrasdo Terceiro Eixo Ocupacional de Rio Branco.

1.3 Do planejamento à transcrição, textualização etranscriação

A narrativa das memórias neste texto se dão a partir derelatos orais, coletados nas bases da metodologia da pesquisa oralformulada por Paul Thompson (2002). Para a transcrição dasnarrativas, foram trabalhados conceitos e métodos da pesquisa oralcom autores críticos da metodologia oral, tais quais, Montenegro(2003), Delgado (2006) e Meihy (1991).

Parte da formulação prática da pesquisa realizada, dialogadiretamente com o método de Roland Barthes (1975), no que elechama de “depuração”. No prefácio de uma série de diálogos,apresentados à radio “France Culture”, ele afirma:

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Falamos, fazemos os registros de som, secretáriosdiligentes escutam nossos comentários, depuram-nos,transcrevem-nos, marcam-lhes a pontuação, extraemdeles um primeiro SCRIPT que nos é submetidos paraque os limpemos, agora, nós, antes de entregá-lo àimprensa, transformá-lo em livro, lançá-lo à eternidade.Não será a ‘preparação de um morto’, que acabamos deseguir? Embalsamamos aquilo que dizemos, comofaríamos a uma múmia, de modo a torná-lo eterno. Poisé preciso que duremos um pouco mais que a nossa própriavoz; é evidente que é preciso pela comédia da escritainscrever-nos em algum lugar (1975, p.3).

Segundo Barthes, quando passamos da oralidade para oimpresso, perdemos muito do que somente a oralidade pode propiciar:entoação, ritmo, métrica, sons, silêncios, timbres, empostações, dentreoutros. Se bem que mesmo o ato de fala pensado no cotidiano, ao seapresentar de forma natural, espontâneo, verídico e expressivo, éteatralizado por todo um conjunto de códigos culturais e oratória,usa de táticas e artimanhas – principalmente em atos de fala público.

Ao escrever, apagamos a inocência daquela tática, ainocência exposta, tão explícita a quem sabe escutar quanto um textoa quem sabe ler. E ainda vem a reescrita, na qual muitas vezes, aindaque sem querer, censuramos e riscamos o que foi dito, ascomplacências, hesitações, ignorâncias, tolices e (in)suficiências.

Quando escrevemos o que foi dito, há perdas e ganhos,porque no ato da fala há o imediatismo que impossibilita a retomadado dito, a menos que se suplemente esclarecendo explicitamente,enquanto no impresso há tempo para diversas retomadas.

Quando falamos, é como se uma idéia asseverasse aanterior, legitimando o discurso. Há como que uma ligação nascentenos signos que retomam e denegam explicitamente o que foi ditoanteriormente. Ao transformar a fala em escrito, perdemos o rigor denossas transições de idéias, e na transcrição há a perda do que sechama “resto de linguagem”, do tipo “não é?”. Essas interpelações

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costumam ser relacionadas pelos lingüistas com a função fática dalinguagem, ou a de interpelação.

Para Barthes (1975), na transcrição da fala, perdemos ocorpo exterior do diálogo, chamado contigente, que lança mensagens“intelectualmente vazias”, mas que têm a função de interagir com ooutro, mantendo-o na condição de parceiro.

As práticas da linguagem não se reduzem à fala ou àtranscriação. O escrito torna-se um novo imaginário do pensamento.O discurso transcriado deixa de coincidir com a personalidade, porquemuda de destinatário (MONTENEGRO, 2003). Não é mais umdiálogo de um sujeito e/com outro, mas o próprio sujeito muda. Senão há um sujeito dialogando, logo não há um “diálogo de dois”,mas um monólogo. Quando muito, há um “diálogo” do sujeitotranscritor com o outro sujeito que não é o discursante. Há adesarticulação de continuidades e também o inverso, a articulaçãode descontinuidades. Segundo Delgado (2006), há a mudança detempo e espaço, onde não mais existem contatos de interlocutores,agora são os conectores lógicos que permeiam a fala, retomando-asintaticamente por semantemas lógicos.

Assim sendo, pretendemos estar o mais próximo possíveldos discursos e relatos orais, razão pela qual aceitamos a utilizaçãoda transcrição como ato final de escritura das lembranças, em quecertas “inteirezas” do discurso, presentes na fala, permanecerão nocorpo do texto.

Por mais que a gramática de subordinação (BARTHES,1975) tente dar uma estrutura de ordem às idéias, sutilmente servindo-se dos parênteses e da pontuação, das reticências e interjeições, elanão consegue apreender a forma, os sons, as entonações da fala. Nãohá a anulação do outro, mas a mudança de sujeitos, o outro antesinterlocutor é substituído na transcrição pelo outro leitor.

O pensamento antes teatralizado pela voz e suas formasarticulatórias é substituído pelo script da imagem que se quer dar aoleitor. Conseqüentemente, há um terceiro ato, o da escrita, que implicaprodução textual, a qual chamaremos de transcriação, a criação a

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partir da transcrição textualizada. Diferente da fala, em que o corpodo discurso aparece de maneira histérica, e da transcrição em que ocorpo do discurso aparece castrado, na escrita transcriada o corpodas idéias é sintético, comedido.

No processo de transcriação, utilizamos a metodologiade Meihy (1991), que consiste em transcrever as entrevistas,textualizá-las e, face às condições dadas durante a coleta dasnarrativas, pelas constantes participações e intervenções de pessoasinterferindo nas entrevistas, gerando um contexto de pluralidade.Concordamos e utilizamos a mesma postura de Meihy quandoescreve:

(...) assumimos o caráter coletivo da narrativa,ainda que optássemos pela instauração de um narrador.Por sua vez este passava a ser não um representante dogrupo, mas a sua fala foi assumida como expressão davoz comunitária. Uma fala aliás passível de ser “possuída”por qualquer pessoa do grupo. (1991, p. 29).

Tendo em vista, na maior parte das entrevistas, aexperiência individual ser filtrada da coletiva, escolhemos manterum sujeito-lembrante-narrador, para registrar “sua expressão”.

A fala, o texto transcrito e a escrita transcriada despertampaixão e interesse não só pela sua repercussão cotidiana, mas peladiversidade, diferença e linguagem utilizadas que levam osinterlocutores às idéias e diálogos. Levam a possibilidades.

Ao pensar na relação do sujeito pesquisador com o sujeitopesquisado, é necessário ter em vista a compreensão mutua do porquêe para quê se dá a conversa de registro das memórias. A concordânciade ambos em participar interativamente do trabalho deve ser precedidapela cessão formal dos registros.

O ato de evocar as memórias através de entrevista é uma“arte” que em muito se aproxima da maiêutica socrática. A empatia,o diálogo, a rememoração se posicionam na relação em viés de mão

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dupla do diálogo estabelecido pela presentificação da memória – queestá em constante mudança – e o registro da mesma que se difere daverdade socrática (MONTENEGRO, 2003).

O sujeito entrevistador ao trabalhar com a memória temobrigação profissional de ouvir o que o entrevistado tem a dizer,respeitando sua fala. Cabe ao pesquisador, dentro de suaspossibilidades, procurar conhecer ao máximo a história, o tempo, oespaço em que a memória é reconstruída. Dessa forma, o entrevistadonão tem a obrigação de corresponder às perspectivas do entrevistador,antes, este deve buscar compreender a fala do entrevistado e intervircom perguntas de caráter descritivo nos momentos que considerarnecessário. Não podendo, portanto, intervir com indução a juízos devalores ou atitudes coercitivas.

O que é dito é muito importante, mas não devemos nosprender a isso. As construções da memória lembrada, o espaçamentode tempo entre elas, os gestos, o olhar, a forma como é dita, assimcomo o próprio silêncio devem ser considerados. Os pensamentoscortados, mudanças de assunto ou atitude, os esquecimentos, dentretantos outros traços da memória, precisam ser “convalidados” naconstrução das lembranças.

O que consideramos geral e específico ou universal eparticular não nos ajuda a abreviar o processo de desvendar o realconcreto, já que, nesse movimento de esforços, as especificidades eparticularidades adquirem formas próprias em uma constantereconstrução das narrativas por seres que estão em movimento emrelação uns aos outros, e, às determinações específicas dasrepresentações do vivido e do narrado.

O que é narrado oralmente ou escrito é distinto doacontecido, é uma representação. Ao estudar alguns ângulos dasdiversas dimensões do real, nesse hiato entre o vivido e o narrado,buscamos associar os acontecimentos e fatos, numa relação dinâmicaentre as práticas e os imaginários ficcionais que a realidade colocacomo desafio. Sobre esse quadro apresentado, Berman escreveu:

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A experiência ambiental da modernidade anulatodas as fronteiras geográficas e reais, de classe enacionalidade, de religião e ideologia: Nesse sentidopode-se dizer que a modernidade une a espécie humana.Porém, é uma unidade paradoxal, uma unidade-desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão depermanente desintegração e mudança, de luta econtradição, de ambigüidade e angústia (1978, p. 15).

Nesse sentido de ambigüidades e angústias, entrevistamosvelhos e velhas lembrantes, narradores de lembranças marcadas pelasrepresentações de suas “mentalidades”. Nas marcas da disputa estãocontidas permanências, rupturas, controles das relações, interaçõesdas diversidades, presentes nos registros descortinados da memória.Nesse contexto é que procuramos e/ou aguardamos registrar as formascomo estas atuam na determinação da compreensão do passado, dopresente e do futuro. (MONTENEGRO, 2003).

A partir dos depoimentos gravados, transcritos,textualizados e transcriados, acreditamos ser possível conhecer a visãoque os entrevistados têm de suas próprias trajetórias de vida, emconsonância e/ou dissonância com a temática estabelecida paraabordagem.

Dada a interação inicial entre o sujeito pesquisador e osujeito entrevistado, passamos para as entrevistas que se sucedempela tríade: transcrição, textualização e transcriação. Pautamonos ementrevistas transcriadas que passaram por um longo processo antesde se configurar “corpus” de um estudo. Vamos comentar de formasucinta o processo de interação com o sujeito narrador, memórianarrada, até chegarmos ao texto objeto de análise.

As entrevistas coletadas passaram por três etapas iniciais:a) a transcrição, que é a primeira versão escrita dos depoimentos,nela se busca reproduzir fielmente tudo o que foi dito sem recortesou acréscimos; b) a textualização, na qual se omite o entrevistador ese afere ao narrador a titularidade das narrativas; c) a transcriação,

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em que o texto é recriado a ponto de ser coerente e fazer sentido parao leitor que não teve acesso ao diálogo inicial. Mais à frenteexplicitaremos cada uma das três fases aqui brevemente pontuadas.

Quanto às informações, seguimos a orientação geral dereferência para a transcrição dos relatos, embora não haja consensono seio da comunidade de pesquisadores. O que percebemos de maisconsensual foi descrito por Lucília Delgado (2006), quando fazmenção às transcrições afirmando que:

As passagens pouco claras devem ser colocadasem colchetes; dúvidas, silêncios e hesitações,identificadas por reticências; risos devem seridentificados com a palavra (riso) entre parêntese; onegrito deve ser utilizado para palavras e trechos de forteentoação (DELGADO, 2006, p. 22).

Após ouvir e re-ouvir as entrevistas, refazendo asconversas gravadas, revisando e classificando as transcrições paraver se havia falhas ou erros e corrigi-los, se necessário, algumas dasentrevistas diferenciavam-se da grande maioria. Algumas, porprivilegiarem trajetórias de vida; outras, por darem privilégio àtemática de estudo. Essas entrevistas foram retiradas do “corpus” dotrabalho para serem reutilizadas em tempo oportuno. Não seriaapropriado para uma dissertação de mestrado fazer três tipos distintosde análise de um “corpus com estilos diversificados em seu conteúdo”.Dadas as impossibilidades de análise de todo o material, precisamosrefazer as alternativas de modo a refinar o processo. Por isso, dasdezesseis entrevistas iniciais, o presente “corpus” permaneceu comapenas dez.

Com o intuito de minimizar os prejuízos de conteúdo, nanarrativa inicialmente oral e traduzida para a escrita, demosprosseguimento ao processo de textualização.

A certeza da impossibilidade de escrever como se fala,levou-nos a rever Barthes (1975) e sua transcrição, ao ponto que

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Delgado (2006) também se fez presente. Paul Thompson tambémajudou na tentativa de repensar a metodologia, diante da situaçãoapresentada. No período pós-campo de pesquisa, foram feitos os trêsestágios, passando o maior tempo possível em cada um. Começandocom a transcrição, buscávamos marcar as palavras-chave queexpressassem o sentido da narrativa. Atentando sempre para a“tradução” da fala para a escrita. Essa fase é interessante porque há,por parte dos entrevistados, o reconhecimento de “sua voz” no textoimpresso. Foram mantidos os vícios lingüísticos, os choros, risos,lágrimas, alegrias, silêncios e contradições. As falas inconclusas, assuperposições de relatos, tudo foi mantido no início.

Na segunda fase, ainda de acordo com o processoelaborado por Meihy (1991), foi produzida a textualização. Anulamosa voz do “entrevistador”, para que o diálogo fosse fluente, a ponto denão haver necessidade da presença do “entrevistador”. Com isso,passamos da transcrição inicial para a textualização, na qualreorganizamos o discurso obedecendo a estrutura plausível a um textoescrito. Assim, pela soma das palavras-chave, estabelecemos o corpusinicial, ou seja, os assuntos constituintes dos argumentos.

Pela anulação da voz do entrevistador e a supressão dasperguntas incorporadas no discurso do depoente, buscamos envolvero leitor pela rearticulação das entrevistas, para fazê-las maiscompreensíveis literalmente.

Nessa teatralização da atmosfera da entrevista, ansiandoreproduzir no leitor o mundo de sensações provocadas pelo contatoreal, voltamos a Barthes (1975) ao que ele chamou de “teatro delinguagem”, para nos embasar na fase final de trabalho dos discursos:a transcriação.

Na terceira fase, temos a transcriação que passa pelatranscrição literal dos signos sonoros, atravessando pela textualizaçãoda idéias, e indo além de ambos: a entrevista relatada completamentetransformada em escrito que será lido em um outro contexto. Dessaforma:

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O fazer do novo texto permite que se pense aentrevista como algo ficcional e, sem constrangimento,se aceita esta condição no lugar de uma cientificidadeque seria ainda mais postiça. Com isso, valoriza-se anarrativa enquanto um elemento comunicativo preenchede sugestões. Convém não admitir o sentido pleno dofalso nesta técnica. As entrevistas reeditadas são muitotrabalhosas e para que o “teatro” se realize impõem-sesituações variadas, e não raro complementação depalavras e frases que não foram mais que insinuadas.Neste procedimento uma atitude se torna vital: alegitimação das entrevistas por parte dos dependentes(MEIHY, 1991, p. 31).

Após a transcriação, os relatos foram levados aosdepoentes, que tiveram liberdade para mudar frases, alterar sentidos,subtrair ou adicionar o que acreditassem ser necessário ao conteúdo.

O atestado de veracidade, que certifica a verdade que eledeixa passar, é o que dá credibilidade à textualização do pesquisador.Um bom texto para ficar pronto é editado inúmeras vezes e emborasua “teatralidade” transpareça espontaneidade, não é esse o objetivofinal. É mister ter a aprovação do depoente, para que se possacontinuar a análise das entrevistas, buscando encontrar traçosidentitários em comum nos discursos dos entrevistados.

Não se trata de falsificação. O recriar textos está entredois pólos: o da fala que diz muito, mas omite bastante; e o daescritura, que passa para o impresso o que a voz quis dizer, mas nãofalou. Trata-se de dispor dos mecanismos que a língua dispõe para“teatralizar” as vozes, viabilizando a recriação da aura narrativa. Bastausar instrumentos como reticências, interjeições, figuras de tropos,dentre tantos outros sinais e signos da linguagem.

De Michel Foucault utilizamos as questões referentes àautoria do autor. Há muitas proposições sobre a autoria e, por vezes,não se sabe dizer ao certo quem é o autor, se é o narrador, pesquisador/transcriador ou o leitor. Portanto, vamos utilizar o contexto

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foucaultiano (2001, p. 264) de autoria: “O autor é, sem dúvida, aquelea quem se pode atribuir o que foi dito ou escrito. Mas a atribuição –mesmo quando se trata de um autor conhecido – é o resultado deoperações críticas complexas e raramente justificadas”.

Embora o narrador seja um sujeito lembrante, alguém queconta histórias, relata atividades e expõe experiências ao entrevistador;o entrevistador/transcriador, por sua vez, também trabalhaquestionando. Formula e executa um projeto de pesquisa, conduz edomina os utensílios para a coleta das entrevistas e escolhe osentrevistados. É ele quem decide o que deve ou não ser transcrito,textualizado, transcriado; há também o leitor que tem todo um passadode discussões, leituras e vivências, é ele quem decide se começa a lerpelo início, pelo meio, pelo fim ou se nem inicia a tradução da letrasgrafadas no texto.

O objetivo da transcriação não é creditar autoria a um, aoutro ou a um terceiro, mas evidenciar o narrador em sua essênciamaior. Como em uma construção na qual as sustentações provisórias,os andaimes e as marquises de suplementação devem sair de cena,após a obra completada. No processo de transcriação, o intento échegar ao texto mais depurado possível, transcriar como quem traduz,refazendo o percurso, reintegrando as narrativas, somando as partesenunciadas para que o sentido íntimo da história contada se estabeleça.O intuito é que o narrador apareça e o intermediário permaneça napenumbra, para que o narrador se destaque.

1.4 As vozes da memória

Desde há muito tempo a memória tem sido tema deestudos. As abordagens feitas, em sua maioria, têm como foco ointeragir do indivíduo: cérebro, redes neurais, mecanismos pré e pós-sinápticos. Ainda na Antigüidade, estudava-se a memória. ElizabethBraga resumiu a interação que se faz com a memória do passado:

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Aristóteles (séc. IV a. C.) localiza as funçõesmentais no coração (essa crença é marcada nas expressões“saber de cor”, “decorar”, “recordar”). Os profetasbíblicos consideram os rins e o coração ligados à almahumana. Os anatomistas alexandrinos (séc. III a. C.)sugeriram a localização da função mental no cérebro. Alocalização da memória no cérebro, hoje, é vista comoinquestionável e a procura de loci cada vez maisespecializados, considerados responsáveis pelo processomnemônico, move as pesquisas mais atuais (2003, p. 23).

Assim, a ênfase da memória saiu do coração para océrebro. Vários estudos tratam a memória como algo próprio doindivíduo e a recordação como um processo apenas interno dematerialização da consciência armazenada. De outro modo, emautores como Squire (1986 apud Braga 2000), a memória é vistacomo um comportamento inteiro. O cérebro é o centro dessecomportamento. É a partir dele que há a interação do homem com osoutros indivíduos da espécie, com o ambiente, consigo mesmo e coma cultura em que se insere.

Os gregos imputavam o conhecimento da memória a umadeusa a quem veneravam, seu nome é Minemosyne. O Dicionáriode Mitologia Grega faz uma descrição de quem foi essa deusa tãovenerada por guardar e cuidar da memória:

Mnemósine, filha da Terra e do Céu, é uma dasTiténides. Ela é a deusa da memória e foi durante muitotempo a única a ser considerada capaz de controlar otempo.

A jovem foi, também, uma das esposas de Zeus.Quando a guerra contra os Titãs foi ganha pelosOlímpicos, estes suplicaram a Zeus que criasse divindadescapazes de deleitar os seus tempos livres, celebrandodignamente a sua vitória. Zeus dirigiu-se então junto desua mulher, que residia na Macedônia, e partilhou o seuleito durante nove noites consecutivas. Como resultado,

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Mnemósine irá dar à luz as nove Musas, cujo cororecordará aos deuses, em forma de arte, a lembrança dosseus altos feitos (Dicionário de Mitologia Grega, 2007).

De acordo com Ana Lúcia Enne (2007), “o século XX foimarcado por um ‘boom da memória’ como preocupação das CiênciasSociais e dos homens de um modo geral”. Para Enne muitospensadores têm apontado para a valorização da memória e da tentativade pensar as diversas categorias temporais como uma via de extremariqueza nas análises das ciências sociais e no mapeamento daconstrução das identidades sociais.

Marcel Proust (2003) escreveu uma das mais belaspassagens acerca da memória, ela está contida em seu consagradoEm busca do tempo perdido: “Mas quando nada subsiste de umpassado antigo, depois da morte dos seres, depois da destruição dascoisas, sozinhos, mais frágeis porém mais vivazes, mais imateriais,mais persistentes, mais fiéis, o aroma e o sabor permanecem aindapor muito tempo, como almas, chamando-se, ouvindo, esperando,sobre as ruínas de tudo o mais, levando sem se submeterem, sobresuas gotículas quase impalpáveis, o imenso edifício das recordações”.A busca do “aroma” e do “sabor” de que fala Proust, caminhos paraa busca da memória e do passado, tem sido uma marca da sociedadecontemporânea.

A memória não é algo do passado. Ela é o passadorepresentado no tempo contínuo da lembrança, e somente se lembrano presente, portanto, a memória é a lembrança presente darepresentação do que se supõe ou pressupõe passado (NEVES, 2000).No entanto, ela não morre, porque é atualizada nas lembranças, e éexatamente na atualização dos relatos que trabalha o pesquisador.Nesse local, é que reside o labirinto das possibilidades: algumas dandoem clareiras, outras em cerceamentos e poucas em “saídas”, que emgrande medida são momentâneas e só são saídas dependendo de quemolha ou de onde se olha.

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Delgado (2006) concebe a memória como ato de lembrarem um processo de construção contínua nas condições do tempopresente. Ao explicitar uma série de pensamentos sobre os sujeitos,em sua relação com a história e com a memória, há a construção dealguns pensamentos considerados primordiais em sua obra.

Na construção da memória, para Neves (2000) procuraro que se perdeu em nada é melhor que a falta de busca, porque mesmoque se pense encontrar e se encontre o perdido – o que é um sonhoutópico, em grande medida – ele já não se insere no novo contexto.Esse achado não se encaixa nas conjunturas que se vão tecendo emmeio à dinâmica do processo atual; e nem o será no futuro porquequando o futuro deixa de sê-lo, para tornar-se presente, também estemuda, se modifica e é modificado, não apenas no tempo cronológico,mas também na memória, nas lembranças e nas leituras dessaslembranças.

O foco não deve ser o de buscar o que se perdeu, masprocurar o que pode renascer nesse novo presente (BOSI, 1987). Àsvezes, o que parece mais fácil aos olhos é o “objetificar” as pessoas,torná-los congelados e fazer-se um jogo de cena com um antes e umdepois: dois momentos contrapostos que mais parecem ao espectadormeros objetos de curiosidade. Para Galeano, “a memória é o melhorporto de partida para navegantes com desejo de vento e profundidade”(GALEANO apud NEVES, 2000, p. 109).

A aproximação entre memória e identidade é tratada poralguns autores que, nessas análises, relacionam memória e tempo,ambos de natureza social e em um tempo que também é de naturezasocial. Sendo um sujeito histórico, recordar é um ato coletivo, queestá ligado a um contexto de natureza social e a um tempo que englobauma construção, uma noção historicamente determinada. A lembrançaé a recordação de um tempo revivido.

De acordo com Ecléa Bosi (1987), lembrar significaaflorar o passado, combinando com o processo corporal e presenteda percepção, misturar dados imediatos com lembranças. A memória

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permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmotempo, interfere no processo atual das representações. A autora aindadeclara que cada memória individual é um ponto de vista sobre amemória coletiva, que muda conforme o lugar que algo ocupa e queesse lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outrosmeios.

Édouard Glissant (2005), em sua Introdução a umaPoética da Diversidade, fala da idéia de “lugares comuns”, neles umpensamento do mundo encontra outro pensamento do mundo, quandoele fala da totalidade-mundo explicitando que a literatura provém deum lugar. Isso é interessante por ratificar as vivências e relações seestabelecerem no que o Reboratti (2001) vai chamar de territóriolocal. Também Freire (1992) fala da valorização que se deve àsculturas tradicionais, e que, por não ouvi-las muitas coisas ruinsacontecem com pessoas que poderiam ter a situação-problemaresolvida ou esclarecida pelo conhecimento das populaçõestradicionais.

Stuart Hall (2004) trabalha de forma “mais sistemática”a conjuntura em que se forma e concretiza a identidade cultural dosujeito pós-moderno. Ele afirma que a alteridade tem se mostradocomo necessária para que a nova busca de ver o local não se separedo global, de mesma forma que o global tem sido visto a partir daslocalidade. Porque, para o autor, hoje não existem mais “lugaresfechados em si”, há uma pluralidade de culturas interagindodialeticamente, sendo necessário aprendermos a viver com asdiferenças identitárias. Para Neves (2003), as pessoas em suas relaçõessociais criam e rompem laços de vínculo, vivendo suas vidasinterdependendo uns dos outros.

A autora faz um paralelo desse aspecto com o que ÉdouardGlissant trabalhou em relação às culturas, almejamos trabalhar asidentidades em questão, procurando lembrar e afirmar explicitamenteque a identidade não é una, mas plural.

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Essas identidades e memórias fronteiriças sãoheterogêneas e “totalidades contraditórias” (REBORATTI, 2001) emsi, de si, por si, exatamente por sua mestiçagem, suas pluralidades eturbidez. Podemos dizer como Marli Fantini (2004) que sãoidentidades quebradas porque há os rompimentos, osdesenraizamentos e as descontinuidades presentes na vida, e que tantoaparecem na fala eivada de interdiscursos. Por isso, é tão complexotrabalhar com memórias e identidades.

Segundo Paul Thompson, as pessoas comuns procuramcompreender as revoluções e mudanças por que passam em suaspróprias vidas. A finalidade social da História requer umacompreensão do passado que direta ou indiretamente se relacionacom o presente.

Para trabalhar essas trajetórias de vida e histórias temáticasque, pouco ou quase nada têm de escrito, resolvemos escolher apesquisa com relatos orais como base para registrar os discursosproferidos através da rememoração presentificada das lembranças,por sua possibilidade de “compor e interpretar” as histórias de vidadessas pessoas em seu cotidiano. O estudo dos relatos orais discute adocumentação viva, ainda não aprisionada pela linguagem escrita eincorpora visões subjetivas, sentimentos e observações dos indivíduos(THOMPSON, 1992). Sendo vários os discursos que participam,integram e recontam a realidade, a reconstrução dos fatos e a colagemdas informações podem ter diversas formas.

A atualização das vozes do passado no presentepresenteiam o futuro com a memória. O ato de lembrar está inseridonas múltiplas possibilidades de registro do passado, a partir do qualas identidades são construídas e representadas de forma dinâmica,relacionando-se a inserção social e histórica de cada depoente nosprocessos culturais, comportamentais e hábitos coletivos.

A questão das identidades adquirirem uma dimensãoespecial quando se trata da produção de documentos orais, porque

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pelo afloramento das lembranças representativas do passado há atradução das similitudes e das diferenças. O reconhecimento dadoestá presente nas dimensões dos tempos vivos9.

Tantas vezes ao estudar as identidades não nos damosconta de que elas só existem porque são partes dos homens e mulheres,construtores da dinâmica processual e temporal que constitui atessitura histórica. A história da humanidade tem muitos sujeitosconstrutores de povos, atitudes, idéias, credos pensamentos e origensdiferentes. São heterogêneos em suas interações e plurais em suasrelações. As multiplicidades que lhes são inerentes traduzem seuspensamentos e ações, aumentando o que os seres humanos têm demais rico: a alteridade.

Em variadas posições, colocações sociais e/ou profissões,por seu ímpeto criativo representam as realidades e os sentimentosna várias composições de sua prática cotidianas. Anônimos oupúblicos, são seres que deixaram suas marcas no tempo, em algumlugar específico e/ou nas várias atuações plurais. Seus atos epensamentos visíveis ou não nos dias atuais, denotam o ato de ser,não apenas pelas modificações antrópicas no ambiente, mas também,pelas mudanças ocasionadas dentro do próprio ser sujeito da memóriapresentificada.

Os depoimentos recolhidos das fontes orais através doprocedimento de entrevistas, narrativas e relatos visam à contra-generalização relativizante dos pressupostos e conceitos que auniversalizar os processos coletivos. Através de visões particulares,percebemos a profunda ligação das histórias de vida, suas trajetóriase vínculos. Há um número expressivo de potencialidadesmetodológicas e cognitivas no estudo dos relatos orais.

Os tipos de entrevistas mais utilizados no trabalho comrelatos orais são: o depoimento de história de vida, entrevistastemáticas e entrevista de trajetória de vida (DELGADO, 2006). Neles,percebemos que os elementos centrais para a reconstrução de atos,fatos, acontecimentos em diversas épocas e lugares estão

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principalmente na narrativa representada a partir da memória, emuma construção e reconstrução de versões, representações einterpretações da/na experiência histórica dos sujeitos envolvidos.

As histórias de vida são depoimentos aprofundados eprolongados, normalmente orientados por roteiros abertos,estruturados ou semi-estruturados na interação entrevistador/entrevistado objetivando reconstruir a trajetória de vida dedeterminado sujeito desde sua infância mais tenra até os diaspresentes.

Normalmente, os depoimentos se compõem de uma sériede entrevistas com periodicidade pré-determinada, ou, em um segundocaso, se intensifica o número de entrevistas, utilizando-se de umadensamento de tempo e concentração de número de encontros paraentrevistas no período de algumas semanas.

A escolha do primeiro ou segundo caso normalmente estáligada às características de prolixidade do narrador, suas condiçõesde saúde, condições emocionais, idade, situação institucional.

A vinculação dos depoimentos pode se dar pelo ato derecolher biografias ou relatos de caráter geral, vinculados a um projetode pesquisa ou não, sendo identificadas as histórias de vida, de acordocom a biografia especializada, em três tipos diferentes: depoimentobiográfico único, pesquisa biográfica múltipla, e pesquisa biográficacomplementar. Essas histórias de vida atuam como “substrato de umtempo” na reconstrução de ambientes, mentalidades de época, modosde vida e costumes diferentes.

As entrevistas temáticas referem-se a processosespecíficos ou a experiências testemunhados pelos indivíduosentrevistados que fornecem elementos ou informações sobre temasespecíficos, ou ainda podem servir como ilustração oudesdobramentos dos depoimentos das histórias de vida.

Quanto à trajetória de vida, é feita através de depoimentosmais sucintos e pontuais, sem muitos detalhamentos. Costuma ocorrerquando o pesquisador considera importante recolher depoimentos

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sobre a trajetória de vida dos entrevistados que não têm muito tempopara dar entrevistas; embora também possa ocorrer o inverso, quandoo pesquisador, pela distância do pesquisado ou indisponibilidade detempo para recolher depoimento dos entrevistados, necessita ser breveem sua atuação.

O fator predominante nas mudanças da memóriademonstram, nesse trabalho, a ênfase dada às trajetórias de vida e àsentrevistas temáticas, na certeza de que a memória não é ummecanismo de gravação, mas de seleção, que constantemente sofrealterações.

A abordagem dessas histórias foi resgatada, tendo comocontraponto a forma como os sujeitos lembrantes as rememoram.Pelos relatos gravados, buscamos reconstruir as identidades que esseshomens e mulheres têm, em uma relação direta de suas memóriascom as alterações face às novas vivências. Após a transcrição/transcriação das lembranças coletadas, temos o estabelecimento decampos narrativos que possibilitam estudar de forma mais detalhadaas diferenças presentes no mundo da memória e suas identidadesconstruídasa através destes.

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CAPÍTULO II

LEMBRANÇAS DE VELHOS

2.1 Reflexões sobre a velhice

2.1.1 A Velhice e o Corpo

Os seres humanos, sempre ávidos por alcançarlongevidade, ainda não descobriram o “elixir da vida eterna”. E noque concerne às formas de elaborações apresentadas até a atualidade,isso está longe de ocorrer. É natural os seres vivos multicelularespassarem por três etapas interdependentes: o desenvolvimento, areprodução e o envelhecimento. Mesmo não havendo uma separaçãorígida entre as três fases, elas ocorrem em uma seqüência em que asenescência depende da fase reprodutiva, que depende dodesenvolvimento. Explicando as bases biológicas do envelhecimentoMaria Edwirges Hoffmann afirma que:

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Todo organismo multi-celular possui um tempolimitado de vida e sofre mudanças fisiológicas com opassar do tempo. A vida de um organismo multi-celularcostuma ser dividida em três fases: a fase de crescimentoe desenvolvimento, a fase reprodutiva e a senescência, ouenvelhecimento. Durante a primeira fase, ocorre odesenvolvimento e crescimento dos órgãos especializados,o organismo cresce e adquire habilidades funcionais queo tornam apto a se reproduzir. A fase seguinte écaracterizada pela capacidade de reprodução do indivíduo,que garante a sobrevivência, perpetuação e evolução daprópria espécie. A terceira fase, a senescência, écaracterizada pelo declínio da capacidade funcional doorganismo.

O envelhecimento é causado por alteraçõesmoleculares e celulares, que resultam em perdas funcionaisprogressivas dos órgãos e do organismo como um todo.Esse declínio se torna perceptível ao final da fasereprodutiva, muito embora as perdas funcionais doorganismo comecem a ocorrer muito antes. O sistemarespiratório e o tecido muscular, por exemplo, começama decair funcionalmente já a partir dos 30 anos (2007,p.1).

Percebemos que há um efeito cumulativo de alteraçõesfuncionais no qual os organismos vão se desequilibrando por causada degeneração progressiva dos mecanismos que regulam as respostasdas células e dos organismos frente às agressões externas sofridas.De acordo com Hoffman (2007), quanto mais se envelhece, maischances a pessoa tem de não sobreviver. Não são apenas as demências,o estresse, as vivências cotidianas; o próprio processo deenvelhecimento, uma tendência normal dos organismos fisiológicose metabólicos, é comprometedor para todos os indivíduos, pois aocorrência de perdas funcionais é acelerada com o aumento da idade.Quanto mais velho se fica, maior será a progressão do declínio dasfunções fisiológicas.

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Dentre essas perdas de funções, neste momentodestacamos as da memória, principalmente da chamada memóriarecente. Com o avanço da idade e a adaptação do cérebro à novacondição de vida iniciada na velhice, as células que são responsáveispelas atividades menos utilizadas vão sendo desativadas paraconcentrar esforços nas áreas mais utilizadas pelos indivíduos, nessenovo estilo de vida.

Hoffmanm afirma que nascemos com aproximadamente12 bilhões de neurônios e todos os dias perdemos 50 a 100 milneurônios. Percebemos então que o processo de envelhecimento chegabem antes da chamada “velhice”, ele começa ao nascer. Para a autora,não apenas a influência da parte física pode abalar a memória, mastambém a psicológica:

E não só a parte física pode abalar a memória. Paramanter a qualidade de vida, qualquer pessoa, e não sóidosos, conta também com mecanismos psicológicos deesquecimento. É o caso de exilados que esquecem a línguamaterna como forma de evitar recordações que provocamsaudades. “É comum idosos que são maltratados ouabandonados pela família não reconhecerem mais osparentes”, diz a psicóloga clínica Maria Regina CanhosVicentin, que há 12 anos atende pessoas de todas as idades.“É mais fácil ele apagar a pessoa da memória do queconviver com o incômodo da dor”, ressalta.

Entretanto, a memória do idoso não é útil somentepara ele. Sua capacidade de relembrar o passado emdetalhes faz com que os velhos cumpram um importantepapel social. “Na maioria das comunidades humanas, eaté entre chimpanzés, os idosos são reverenciados comofonte de conhecimento e sabedoria”, esclarece oneurologista Benito Damasceno. Como nenhum outroindivíduo - criança, jovem ou adulto - o idoso é odepositário da experiência humana. Os mais velhos sãoos arquivos vivos da história e suas lembranças do passadocostumam ser mais precisas do que as de adultos quetenham vivenciado os mesmos episódios (Hoffmann, 2007).

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O esquecimento é normal em qualquer idade, e conformeas sinapses vão se rompendo ou sendo desativadas por batidas, lesões,doenças ou desuso, outras conexões vão se estabelecendo. BenitoDamasceno appud Hoffmann (2007c) afirma que essas ocorrênciassão necessárias para que não haja interferência das condições velhascom as novas e possamos realizar tarefas adequadamente comagilidade e precisão.

É uma questão de sobrevivência do próprio organismo,privilegiando as áreas que são mais estimuladas na situação em quese encontra.

É fato que todos nós caminhamos para a velhice. O corpovai sofrer modificações, bem como o psicológico e o próprio localonde se vive. Ser idoso não é pertencer a uma classe ou a um grupo,é ser humano na plenitude de sua maturidade.

A velhice não é não poder mais fazer alguma coisa, porcausa dos limites impostos pelo corpo e pela sociedade, antes, é apossibilidade real de uma reorganização das relações afetivas, vidafamiliar, novos espaços de convívio e novas rotinas. Surgindo adisponibilidade para atividades como hobbies, experiências em artese ofícios autônomos sem necessidade de cumprir jornada fixa e densade trabalho.

Não é uma questão de que esses sujeitos ao chegarem navelhice deixaram de ser colaboradores da sociedade formal. Muitosdeles ainda afirmam ter algo, alguma profissão, outros preferem falarde suas vivências de trabalhos realizados utilizando o prefixo “ex”.Eles continuam colaborando a sua maneira, e do seu jeito continuama interagir com o meio sociabilizante.

Os homens e mulheres que se fazem idosos têm direito ausufruir uma vida cotidiana em todos os seus espaços e possibilidades.Os idosos têm direito a seu espaço cultural, não a partir dos demaisespaços, mas de forma intrínseca, fluida e dinâmica na correlaçãodos sonhos, desejos e sensações de pertencimento, na agregação devalores sócio-político-culturais. Seu corpo não é uma desculpa para

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não participar de vivências, antes, é nele que se estabelecem asmesmas, seja no recôndito de seus lares ou na interlocução com acomunidade.

Esses velhos são pessoas reais, com histórias pessoais esociais. As lembranças por eles evocadas tornam fluidas as relaçõesdeles com a sociedade, a ponto de, em seus relatos orais, não se saberonde se inicia e encerra sua história de vida e onde se inicia e encerraa história da sociedade em que vivem.

2.1.2 A velhice e o direito de sonhar

O fenômeno da velhice não é apenas um fator físico, mastambém cultural. A ideologia que estereotipa a velhice no Ocidenteem muito a tem desvalorizado e feito com que pareça pejorativa ounegativa. O desprestígio com que a velhice é tratada está explícitoem muitos dos vieses da sociedade ocidental. Esse desprestígio nãose demonstra pelo excesso de postulações, mas exatamente pelo seucontrário. A falta de terminologias, de literaturas e estudos sobre avelhice não apenas dificulta os estudos, mas demonstram a falta deinteresse e a ênfase com que é tratada.

Não levamos em consideração apenas um ou outro fatorespecífico da velhice. O fisiologismo, a cultura, a sociedade, asinterações entre os sujeitos de nosso estudo estarão sempre presentes:os seres auto-intitulados “velhos”. Eles afirmam que são “idos emdias”, idosos de fato, entretanto, a maioria não aceita dizer quepertence à terceira idade, já que, para eles, não existe primeira, nemsegunda idade. Nas palavras de um dos entrevistados: “terceira idade,eu não sou isso, eu tô é velho... terceira idade... daqui a pouco vão táchamando a gente de arroz de terceira”. Nas palavras desse senhor, otermo terceira idade soa pejorativo.

Em seus estudos sobre a relação da velhice com o mundo,Simone de Beauvoir (1970, p. 19) escreveu que a velhice é como

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“um fenômeno biológico com fenômenos profundos na psique dohomem, perceptíveis pelas atitudes típicas da idade não mais jovemnem adulta, da idade avançada”.

Ecléa Bosi, ao se referir sobre a velhice na sociedadecapitalista, afirma que ser velho “é sobreviver” (1994, p. 23). A velhicenão tem uma data marco inicial, não há como demarcá-la. Ela variade pessoa para pessoa. É certo que nela há a diminuição das forças edas aptidões, carências psicológicas e fisiológicas. Há os queconsideram o início do envelhecimento logo após o nascimento eoutros adotam o marco da senectude por volta dos 65 anos. Hipócratesacreditava que a velhice se iniciava após os 56 anos, assemelhando-se ao inverno no ciclo das estações da vida humana. Para Aristóteles,a velhice ocorre a partir dos 50 anos.

Na Nigéria, uma mulher se torna velha ao ser avó; NaÍndia isso ocorre quando o filho se casa, e em outras culturas, quandoatinge a menopausa. De acordo com a Organização das Nações Unidas(ONU), uma pessoa é considerada idosa, nos países emdesenvolvimento, a partir dos 60 anos de idade (ONU, 1984).

A expectativa de vida aumentou nos últimos dois milênios.Os romanos tinham sua expectativa de vida por volta de uns 18 anosde idade; no século XVII, pouco mais de dez por cento da populaçãovivia além dos 45 anos, a expectativa de vida era de uns 25 anos; noséculo XVIII, vivia-se em média até os 30 anos; no início do séculoXX, a expectativa de vida girava em torno dos 49 anos, e, no decorrerdo século, a expectativa de vida aumentou consideravelmente.

Para Altair Loureiro, há uma série de proposições a seconsiderar na idéias de velhice. Para ela:

A falta de nitidez na constatação dos limites dosciclos da vida, mais precisamente na identificação e nademarcação de suas fases, faz com que não se possaconsiderar a exata idade cronológica expressa emquantidade de anos de vida, de tempo vivido pela pessoa.Mas, para alguns estudiosos, a faixa etária por volta dos

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sessenta anos de vida pode ser considerada como apossível faixa de ingresso do homem na velhice. Há um“sentido outro”, que não meramente cronológico, para ademarcação do início do fenômeno. A tendência doisolamento e a ruptura com os padrões de vida anteriores,bem como os cabelos brancos, a pele flácida, a diminuiçãoda agilidade e a fraqueza (metáfora para designar a perdado vigor sexual) são sintomas a considerar comoevidências do processo de envelhecimento que se inicia.Convém, no entanto, lembrar que a velhice não é apenasuma categoria de idade cronológica, nem dedegenerescência física e mental: é um período de vida,visto por alguns, como derradeiro; há quem acredite navida após a morte (...) é a penas uma fase diferente davida, quem sabe a última, mas ainda vida. (1989, p. 21).

Esse estágio da vida que chamamos velhice não é aceitode bom grado, como algo natural ou espontâneo pelos próprios velhos.A velhice não é algo perceptível ao ser humano quando de suainstalação. Ela é percebida quando do convívio com o outro, comquem se relaciona há muito e nele(a) se nota as marcas e expressõesda velhice. Ela só é vista após longo tempo. Ninguém acorda pensando“hoje eu estou velho, passaram-se os ímpetos varonis”. Pelo contrário,mesmo diante do espelho, é mais fácil imaginar que ele está errado edesacreditá-lo. Às vezes, a velhice não é perceptível aos olhos, porqueestes, cansados pelo tempo, já não vêem tão claramente como antes,ou pelo costume com o próprio visual. Tem que haver distanciamentopara perceber as mudanças.

A expectativa de vida aumentou consideravelmentedurante o último século. Está havendo o envelhecimento gradativoda população. França e Suécia tiveram o número dos seusoctogenários dobrado se comparado o início do século XX com seufinal. Nos países “emergentes”, o número de velhos é cada vez maior.Como esses países ainda não tinham, e muitos ainda não têm, políticaspúblicas voltadas para os velhos, eles acabam por ter problemas nasáreas de educação, transporte, saúde e seguridade.

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Na atual conjuntura sócio-política ocidental, na qual ohomem e sua força de trabalho são tidos como mercadoria, o ato deenvelhecer é tido sócio-culturalmente como desvalorativo aos quepassam do vigor juvenil. Para Ecléa Bosi, nessa sociedade, é “comumo voltar às costas, do jovem que aprendeu, ao velho que ensinou,pois a fonte doadora esgotou seus benefícios. (...) É a lei da superaçãoda geração mais velha pela mais jovem” (1994, p. 13).

Os homens e mulheres mais velhos têm sido relegados adesempenhar papéis subalternos na sociedade em que vivemos. Adesconsideração é estereotipada pela visão de preponderantenecessidade de produção econômica e todo o que não se encontraapto para tal é tido como refugo.

Para o Estado brasileiro, a velhice é um segmentopopulacional, uma faixa etária. Para Loureiro, os velhos no Brasilsão tratados com desrespeito e falta de ética:

É indecente o tratamento formalizado, dispensadoao idoso brasileiro. O trabalhador, que velho se aposenta,vive a tragédia das privações mais elementares, após terpercorrido com o vigor e a força da mocidade, o caminhodo trabalho, do construir coletivo, que nada ou quase nadase devolve oficialmente. Mas é possível que o idoso aindaagradeça a migalha que lhe conferem, sem entender, coma clareza necessária, o aviltamento que sofre. É a nódoaque se imprimiu nele, pela convenção social, fazendo seusestragos, turvando, com esmerada habilidade, acapacidade de discernir, de entender a profundidade dasações e das coisas (1998, p. 31).

Vale ressaltar que os velhos não são problema para associedades ocidentais. Rita Oliveira (1999), afirma que esses idososforam constituídos problemas, uma vez que sua capacidade produtiva,o lucro que cada um propiciou enquanto “trabalhador ativo”, asrendas, os fundos de garantia e seguridade nos quais passaram a vidadepositando seus impostos e investimentos, foram mal administrados

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pelos governantes. Muitos desses proventos e dividendossuperavitários foram tomados como empréstimo e os governantes se“esqueceram” de devolver os bens aos seus reais donos. Por isso, avelhice se constituiu problema para muitas nações.

Seria ingenuidade creditar ao aumento do número develhos as disfunções econômicas nacionais, ao mesmo tempo queem casos isolados como França, Suécia, Alemanha, percebe-se o baixofluxo de natalidade e o aumento da expectativa de vida. Tal fato, amédio e longo prazo, pode acarretar um colapso econômico efinanceiro. Todavia esse não é ainda o caso do Brasil.

No Brasil, obras como a Perimetral Norte,Transamazônica, Ponte Rio - Niterói, Usina de Furnas, Usina deItaipu, a própria Capital Federal – Brasília – foram construídas comrecursos federais retirados dos fundos públicos e esses recursos nuncaforam devolvidos. Esse é um dos fortes motivos para a criseprevidenciária existente no Brasil atual e as constantes proposiçõesdo governo federal em sanar o déficit previdenciário, justamenteatribuindo aos idosos parte da culpa pelos problemas previdenciáriosexistentes no país.

Não somente no Estado se vê o desapreço aos velhos,continua Oliveira (1999), os próprios trabalhos universitários, osestudos sobre sociedade e família – nos quais os velhos sempreestiveram presentes – tendem a falar sobre diversos e variados temas,omitindo quase sempre a velhice. Os velhos são capazes de executarmuitos trabalhos e tarefas, o que existe de fato é a falta de oportunidadee ausência de paciência por parte dos mais jovens, que em sua ânsiapor agilidade e vigor físico, relegam ao ocaso as experiências e astécnicas dos idosos.

Para Oliveira, é necessário tratar o idoso como serhumano. Eles não são mais jovens, porém ainda não estão mortos.Lembram, com ternas saudades, os anos da juventude que se distancia.Mesmo com dificuldades físicas, os desejos, sonhos e vontades aindapermanecem. Eles ainda almejam viver bem, serem tratados comrespeito, consideração e apreço.

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Uma possível resposta para a desconsideração pelohomem velho talvez seja a ilusão do homem moderno que procuraesquecer o fato do envelhecimento de todos, inclusive o seu. O homemestá envolto em ideologias e estereótipos de que o sofrimento davelhice que ele vê ocorrer, no presente, não se aplicará a ele, no futuro.Ele será a exceção. Isso só acontece com os outros. O homem comesse tipo de pensamento engana a si mesmo e se aliena quanto aopossível futuro.

A sociedade atual é cheia de engrenagens, a ilusão emrelação ao problema da velhice está presente no cotidiano dos homensque agem como se não fossem envelhecer, partindo do núcleo dacultura em que vivem, por vezes conscientes, por vezes não.

Engrenagens que fazem do velho um robô, umboneco, um dependente, negando-lhe o diálogo,induzindo-o a comportamentos estranhos, sem atrativos,cadenciados pela repetição. Tolera-se o velho com visívelmá-fé. O velho é banido dos assuntos sérios, édiscriminado. A degenerescência física naturalgradativamente o faz carente, carência que se faz presenteno uso de óculos, e próteses dispendiosas e difíceis deconseguir, oprimido na sociedade capitalista, pela“precariedade existencial”, aqueles (muitos) que não aspodem adquirir (Loureiro, 1998, p. 41).

Com base nesse contexto, podemos comentar a relaçãodo velho com o mundo ao seu redor, nas palavras de Ecléa Bosi:

O velho continua sendo um indivíduo diminuído,que luta para continuar sendo um homem. No plano físico,material, o coeficiente de adversidade das coisas cresce:as escadas ficam mais duras de subir, mais íngremes, asdistâncias mais longas de percorrer, as ruas mais largas eperigosas de atravessar, os pacotes mais pesados decarregar... O mundo fica eiriçado de ameaças, de ciladas.Uma falha, uma pequena distração são severamentecastigadas (Bosi, 1994, p. 37).

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A sociedade narcisista contemporânea não reconhece nadaque não é espelho das fases da vida humana, assim como a infância,a juventude, a vitalidade. A diferença entre as demais fases da vida ea velhice é que esta se encontra fisicamente desgastada, embora como espírito vívido e dinâmico.

As práticas das lembranças dos velhos têm importâncianão somente na construção da cultura da sociedade e do vínculopassado-presente-futuro. O ato de lembrar é um exercício de auto-conhecimento e, de acordo com Souza (1999, p. 19 e 21), pode serutilizado com fins terapêuticos para “resolver dilemas dolorosos davida dos idosos”, uma vez que “para as pessoas idosas, a prática delembrar pode contribuir para fortalecer ou restituir o senso deidentidade e auto-estima”. Esse é um dos mecanismos que as pessoasidosas utilizam para manter sua integridade psicológica. A atitudeagradável de relembrar para um ouvinte solidário faz com que essessujeitos narradores sintam prazer no rememorar e tenham um aumentona auto-estima por saber que existe alguém disposto não apenas aouvir, mas a ouvir se importando com o que está sendo dito.

2.1.3 Velhos em perfil

As entrevistas feitas com os homens e mulheres que jáestão na chamada “terceira idade”, ou como os entrevistados preferemnominar, estão velhos, mostram uma vida de adversidades e anseios.Adversidades por causa das muitas dificuldades passadas nesses anosde vida, e anseios, porque buscam coisas melhores, ainda queremconquistar alguns de seus sonhos.

Seguimos o mesmo roteiro de entrevista para todos eles.Contudo, as respostas e as ênfases foram as mais diversas. Cada umsegundo sua característica que o torna peculiar e que o atrela aoconjunto dos sujeitos narradores que contribuíram com seus relatospara a formação do corpus deste trabalho.

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O roteiro semi-aberto10 com características semi-estruturadas11 contém seis temáticas pontuais. Com a primeiratemática, iniciamos o ciclo de entrevistas procurando conhecer deforma geral as vivências de nossos entrevistados; através da segunda,buscamos que os entrevistados discorram sobre os espaço vivido, olugar cultural e as territorialidades que fazem parte de seu cotidianona atualidade; na terceira, buscamos a percepção, a representação e avisão que eles têm sobre sua experiência com a licalidade em quevivem, enfatizando as significações e as ressignificações dessesespaços para eles; na quarta temática, explicitamos a idéia de cadaum sobre o significado de morar no local tanto na atualidade quantoantes; pela quinta temática, temos uma relação direta da tradição comos novos costumes; e, na sexta temática, os entrevistados falam desuas trajetórias ambientadas e as implicações decorrentes.

As entrevistas dão conta não apenas de trajetórias de vidae territorialidades, mas enfoca principalmente a relação estabelecidaentre a linguagem dos sujeitos lembrantes e a geração desses sujeitos.É certo que para esses sujeitos as relações de linguagem e geraçãonão ficam tão latentes, mas, ao analisar suas vivências, expressadaspelas lembranças, temos acesso a uma necessidade muito forte deserem ouvidos, e mais que isso, de demonstrar que eles tambémtiveram vivências valorosas e que merecem ser registradas. RaimundoMartins, um dos entrevistados, representa bem o perfil dos velhosque ouvimos quando da coleta do corpus do trabalho:

Eu fui lá pra fazer... pagar o IPTU e tava no nomede outro... Foi... Eu vou contar... Mas filma aí, tá bem....O meu IPTU veio um IPTU muito caro, aí eu fui lá naPrefeitura, (...)

(...) Eu trabalhei muito com ele... eu era diarista...Na vida da gente acontece tanta coisa, rapaz... Vou falaruma coisa pra você... Tá filmando?... (...) (RaimundoMartins, 2006).

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Raimundo Martins não é o único a querer atenção. Aslinguagens expressas pelo falar e pelo ouvir tornaram-se cada vezmais constantes no decorrer das entrevistas. Os dados gerais por elesapresentados mais parecem um prelúdio a uma longa história quenecessita de uma identificação futura, para garantir quem, de fato, éa pessoa que vivenciou aquela história.

Histórias como a de Seu Francisco e Dona Nena, quefizeram questão de se identificar, citando, inclusive, seu local denascimento e como encontra-lo. É como se houvesse a necessidadede um vínculo para dizer que se está em um lugar, mas o pertencimentode nascer se deu em outra localidade:

Meu nome é Francisco Monteiro... Tenho 62anos... Eu nasci no Iaco, no seringal por nome Porongaba,a colocação chamava-se Pedrinha. Justamente essaTransacreana, passa mesmo lá, onde eu nasci, Porongaba,no Iaco... Onde ela passa pra beira do Iaco, dá 1 hora, aTransacreana passa justamente... é onde eu nasci.

(...)Meu nome é Maria Lemos Costa, tenho 82 anos.

Eu moro aqui no Palheiral há 38 anos... eu sou de SenaMadureira, nasci lá em cima no Rio Iaco, 10 dias deviagem, subindo de rio acima. Nasci num lugar chamadoJaguari, lá era donde morava mamãe e meu pai, né? Aíeu nasci lá, nasceu eu e outra... Minha mãe separou domeu pai... E meu pai, a outra, ele quis pra ele... e levou...só deixou eu... Aí eu nasci em 25, em 1925, isso aí eunão perco... 25... 9 de outubro de 1925.

Essas vivências não se deram apenas em uma localidade,mas havia diferenciação até mesmo entre irmãos que parecem terseguido o rumo oposto do que o entrevistado gostaria que tivesseocorrido. Dona Nena, ao falar de sua irmã, em momento algum citaseu nome, apenas a trata como “a outra”. Sua fala parece estar eivadade lembranças que não refletem um relacionamento íntimo com airmã, talvez por sua irmã ter morrido precocemente.

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Aí quando eu nasci, um ano e pouco nasceu a outra,a outra tava com três mês de nascida, o meu pai morreu.(...)

(...) Lá, a outra, minha irmã, morreu à míngua(Nena).

Dona Nena não teve a chance de conviver com a irmã.Passou por muitas dificuldades e em seu discurso, ela se apegou àpossibilidade de ter um futuro melhor em uma outra vida. Sua fala estárepleta de citações de práticas religiosas e movimentos sociais em buscade melhorias para a comunidade. Ela demonstra ser uma mulher muitoligada à religiosidade professada – embora, por seu estado avançadode demência, já não tenha a chance de congregar.

Assim como Dona Nena, todos os outros entrevistadosdisseram ter religião, ser praticantes, crer em Deus, mas fica a idéia daconfusão ocorrida entre eles quando se fala das diversas religiõesexistentes. Todos são católicos de nascimento, embora passassemmeses sem ir à igreja e, atualmente, passem anos sem ir a um terço,novena, missa, ou correlatos. Fica evidente que esses homens emulheres que assumidamente muito ajudaram a Igreja Católica notempo das Comunidades Eclesiais de Base, atualmente estão afastadosdos trabalhos religiosos.

É comum ver na casa de quase todos os entrevistadosdezenas de imagens de santos e passagens com textos bíblicosrelacionados à paz, segurança, estabilidade no lar, como o Salmo 23 –onde há a fala explícita do salmista em que Deus é o seu provedor quedele cuida, para que não falte nada – e o Salmo 91 – que explicita quemesmo em meio às adversidades, com lutas, batalhas, a pessoa nãoserá abalada. É como se houvesse um pedido de proteção e socorro aalguém que eles se acostumaram a chamar de Deus.

Esporadicamente aparecem em seus relatos a relação deDeus como um pai cuidadoso. Ele sempre aparece como alguém forte,que cuida, que pode se falar com ele, ainda que seja por intermédio daVirgem Maria, que fala com Jesus, que transmite a mensagem a Ele.

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Um discurso muito atual presente nas teologias daprosperidade, e que não se percebe nas vozes dos entrevistados, é ofato de se pedir e até determinar prosperidade a Deus. Eles não exigemque Deus lhes faça prosperar ou que lhes dê tudo que querem, antes,buscam agradar a Deus e, como em uma troca, receber a graçaalmejada.

E sou católica, mas hoje não posso ir mais praigreja. Sou católica a vida toda, desde que eu nasci, eume batizei. Hoje eu não posso ir pra igreja, mas quandoeu morava em Tarauacá eu ia... Eu não saio de casa. Não.Eu saio de casa só pra ir ao médico.

Tenho saudades do dia da procissão de SãoFrancisco. Lá em Tarauacá a procissão era muito boa,muito animada. E é preciso que eu diga que não era praessa menina não ser crente [a única filha evangélica]. Afilha que falou contigo... porque ela nasceu no dia deSão Francisco... Quando eu ia ganhar ela, o pessoal iapassando pra procissão de São Francisco... quando euganhei ela... E ela tem o nome de Francisca das Chagas...Aí eu tenho devoção em São Francisco. Aí, quando foidepois, eu saí... eu coloquei o nome de FranciscaRamona... Eu coloquei o nome de Francisco... Tudo sãoFrancisco... Eu queria colocar o nome da minha filha deFrancisca também, não coloquei porque já é tudoFrancisca. Não, mas eu quero colocar o nome deFrancisca em todos as outras... Eu fiz promessa a SãoFrancisco das Chagas. Coloquei o nome de São Franciscoem todos os meus filhos, só não em um que eu desobedecia minha devoção... aí ele morreu... (Antônia).

Minha religião é católica, nunca mudei... desdeCeará, tem meu registro, meu pai, minha família é tudoda Igreja Católica, não tem nenhum crente. Crente é modode falar, né?... Mas é difícil eu ir pra igreja. Pra rezar, eurezo daqui mesmo, de noite... (Raul).

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Eu não me aborreço com nada, vou em frente...Graça a Deus, sou uma pessoa crente no Senhor Jesus...Estou com uns trinta anos, mais ou menos, que pediarrependimento e sou feliz no senhor Jesus... Eu falo dosanto evangelho pra toda criatura e me sinto tão feliz...Não sou muito sadia... Também, depois da minha idade...Tenho problema de coluna e problema de coração, mas,graças a Deus, isso aí não me faz ficar com medo... Medode morrer, de adoecer... É, assim são as coisas (Aldira).

Além dessa relação direta de aceitação de uma ou outrareligião, também existem os que, como dona Raimunda, permanecemindecisos sobre o que fazer, e que caminho seguir no que concerne àsua religiosidade.

Sabe que eu nem sei qual é a minha religião queeu tenho. Eu nem ando na Igreja Católica, vou às vez naIgreja Evangélica, mas também não sou evangélica... nãosou católica nem evangélica... mas, eu vou mais na IgrejaEvangélica... Eu sempre vou, em qualquer uma que meder vontade de ir. Eu já passei dois ano na Casa daBenção, passei três na Universal, passei dez na Batista,passei um ano na Quadrangular, mas eu não sou crente,não. Eu não estou preparada pra receber um batismo não...pra mim ser crente é acreditar em Deus, e isso acho queeu sou... Eu só vou ser crente de verdade no dia que Deusme libertar do cigarro, aí eu vou me batizar, que eu vouestar preparada... porque não adianta andar fumandoescondido na minha casa... Eu posso até esconder dosirmãos, do pastor, mas eu não estou fumando escondidadAquele lá de cima... (Raimunda, 54 anos).

A idéia de precisar fazer algo para merecer a atençãodivina está presente no discurso de quase todos os entrevistados. Elesacreditam que alcançarão a graça e a bênção divina se tiverem umaatitude que possa ser “moeda de troca” da obediência humana pelo

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carisma divino. Mesmo os que assumiram diante da família a mudançade religião, em certos momentos das entrevistas deixam transpareceruma religiosidade embasada no cristianismo professado pelospraticantes da Igreja Católica: apenas dona Nenê foge a essa regra,talvez pelo fato de já ser crente há mais de 30 anos.

Quase todos os entrevistados participaram dosmovimentos sociais nos bairros em que vivem, auxiliando diretamentena atuação da Igreja Católica na comunidade. Alguns deles, comodona Nena e dona Nenê, até incentivavam seus filhos a fazer partede forma mais atuante. Dona Nena relata a atuação de seu filho naComunidade Eclesial de Base do Palheiral:

O meu filho Adolfo trabalhou como monitor dejovens vários anos e em 1978 ficou sendo o coordenadorda comunidade. Era ele quem programava as reuniões efazia as celebrações, só não fazia a parte da comunhão.Mas uma parte daquele jornalzinho [Nós Irmãos] ele liacom o pessoal, fazia encontro do evangelho, colocava opessoal em uma roda e fazia a leitura do evangelho dodia, começava a discussão e aí cada um falava o queentendeu.

Pra ser monitor precisava ter treinamento. Nessetempo quem dava o curso de treinamento era o AirtonRocha com o Nilson Mourão. Eles passava e entrava nasexta-feira de tarde lá na sala paroquial da ImaculadaConceição. E ficava a noite, passava o sábado e odomingo e saía de tarde, estudando o evangelho mesmo,não é? Depois fazia curso de liderança.

O monitor era como se fosse um juiz pra fazer aspaz, cuidar das famílias, das crianças, tudo, tudo era ele...era como se fosse um delegado nesse tempo. Tinha quearrumar o casamento de fulano que tinha brigado com omarido, que tinha batido na mulher, e tinha que ir fazeras pazes. Tudo eles fazia... buscava melhorias pra rua,pro bairro, esses negócios tudo.

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Assim como Adolfo, Ester, filha de dona Nenê, tambématuou nas CEB’s. Sua mãe conta como foi a experiência da filha emfins da década de 1970 e início da década de 1980:

Minha filha, a Ester, quando chegou de Tarauacá,veio mais ou menos evangélica, né? A gente teve na igreja,lá. Visitava a Igreja Batista, mas não assumia nada, não.Depois, ela ficou na Igreja Batista um tempo e saiuquando eu foi freqüentar a Comunidade de Base. Isso euacho que era em ... 82... não, 78. Quando ela começou,já tinha essa igrejinha aí [do Palheiral]. Era de madeira,de tábua.

Aqui tinha o padre João Carlos, depois, veio opadre Máximo, e, depois, o Asfuri. Aí, depois, foi indo,foi aumentando... Nós se reunia no Centro Comunitário,fazia reunião aí, pra um Centro da Diocese.

Minha filha teve uma época que pegou atéesgotamento físico... Passou muito tempo doente. Aí, eu...ficou nessa situação lá no... Tinha um grupo evangélico[CEB] lá no João Eduardo, na casa da Laura. Era umgrupo de evangelização. Dia de sábado, nós ia pra lá e játinha convidado o pessoal... Reunia aquele povo... NoJoão Eduardo tinha muita gente pobrezinha... e nósaprendemos a se envolver com as pessoas, e ter amor pralutar.

Esse João Eduardo que falam aí era um homemdessa mesma luta dela. João Eduardo era um homem queaí morreu, mataram ali, e colocaram esse nome véio nobairro. Era um homem que trabalhava mais ela.

Olha, era assim: o padre passava uma semana...eles pegavam... era tipo reunião... tinha pra ler... elespassavam o que tinham que fazer. Aí ela ia toda semana.

Pois sim, meu irmão... Aí, dali, foi quando ela saiuda Igreja Católica. Passou não sei quantos meses nohospital, tomando soro. Ainda ficou três dias no Distrital,dali foi começando a deixar tudo pra trás.

Teve até uma briga por terra mais ali... prademarcar... Quando, na invasão, teve aquele cara que vailá, cortando, dividindo os terrenos, pra não haver aquele

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tumulto, pra organizar... Ele era organizado... Como eleera do movimento popular, quis esse movimento popular,né?! A Igreja Católica tinha a orla política e o movimentode ajudar as pessoas. Porque tem pessoa que é parada,não sabe pra onde vai, não decida pra onde ir. Então, eleajunta assim, reúne um povo pra ir... Aí o João Eduardo,ele era desse tempo de gente que era mais esclarecido doque os outros... Foi isso que aconteceu.

Minha filha chegou até a diretora. Essa aí, a maisvelha, do rebanho. É pau pra toda obra, qualquer serviço,lutava. Isso aqui não, mas pra qualquer serviço braçal, éigual a um homem. A coitadinha já está derrubada, né,doente, cheia de problema.

No relato de dona Nenê é possível identificar a trajetóriade luta de sua filha, Ester, juntamente com a luta do líder comunitárioJoão Eduardo. Perpassando o recorte do discurso, de uma ponta aoutra, vemos o sofrimento das pessoas, as lutas enfrentadas. Quandodona Nenê cita que havia um grupo de evangelização no Palheiral,esse era o mesmo grupo em que Adolfo, filho de dona Nena, atuava.Quando ela cita o grupo de Evangelização na casa de dona Laura,esse é o mesmo grupo de nossa entrevistada, dona Laura. O grupo deevangelização da Igreja Católica na casa de dona Laura é provenientedas lutas e evangelizações do grupo do Bahia, o mesmo citado porseu Raul Isaías e por dona Raimunda. Dona Ivete congregava nogrupo de evangelização do João Eduardo II, também fruto do grupodo Bahia, trabalhou com João Eduardo e ainda na atualidade temrelações de vizinhança com seu Martins.

A distância entre suas moradias os separou, mas asatividades religiosas os uniu como podemos verificar em seus relatos.A religiosidade está presente em todos eles. Seja em seu Francisco,dona Laura e dona Nena, que têm seus relatos cheios de paralelosbíblicos e versículos citados de cor; seja nas mais de 30 imagens desanto na casa de dona Nena, ou nas mais de 60 imagens na casa dedona Antônia.

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Pessoas que moram distantes da casa uns dos outros ageme interagem em benefício da comunidade. Muitos deles não seconheciam e ainda não se conhecem de nome. Mas em seus relatos,uma vez ou outra os seus caminhos se cruzaram. Mesmo sem saberquem eram os outros sujeitos entrevistados da pesquisa. De certo,nem mesmo o pesquisador tinha noção de que as trajetórias de vidase cruzariam tão entrelaçadamente. Esse entrelaçar deu-seprincipalmente nas relações como líderes de associações de moradorese líderes de grupos de evangelização da Igreja Católica.

2.2 A constituição social da memória

2.2.1 A memória, a identidade e o tempo

As identidades individuais e coletivas têm forte suportena memória, uma vez que a memória é uma construção presentificadado passado, sendo ela renovada no tempo e nas representações deseu processar nos diversos ritmos, individualidades e coletividades.

Uma vez que esses processos não se dão fora do tempoou do espaço, as representações sobre o tempo se referenciam namaterialidade real, que se relacionam com os momentos e movimentoshistóricos, tanto quanto com a interpretação desses momentos.

É certo que existem várias conjunturas da história; a realconstrução dos fatos e acontecimentos envolvidos são imutáveis,contudo, a interpretação que evolve esses processos específicos sãonaturalmente influenciadas pelo tempo no qual as testemunhas e ossujeitos envolvidos estão inseridos. Não é uma questão derelativizações, mas de compreensão das manifestações cognitivas decada ser envolvido que tem seu viver pontuado no tempo e no espaço.

São múltiplos os movimentos da história, muitas vezes,contraditórios entre si; são simultâneos e se integram a uma mesma

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dinâmica histórica; são faces diferentes do mesmo dado, conflituosas,contraditórias com fissuras e diferenças, mas que se integram einteragem em um mesmo “corpo histórico”. Seguindo a mesmaperspectiva em questão, Delgado (2006) afirma que:

Os movimentos da história são múltiplos e setraduzem por mudanças lentas ou abruptas, porconservação de ordens sociais, políticas e econômicas etambém por reações às transformações. Na maior partedas vezes, esses processos, contraditórios entre si,acontecem simultaneamente e se integram a uma mesmadinâmica histórica.

O trabalho com a oralidade está no campo interdisciplinar,utiliza literatura, iconografias, escritos, música, lembranças, dentreoutros, em um diálogo interativo com a psicologia, psicanálise,literatura, historiografia, antropologia e tantas outras área das ciênciashumanas e sociais.

O procedimento metodológico da pesquisa com base naoralidade para a produção de conhecimento, recorre à memória comoprincipal fonte de subsídio e alimento das narrativas que constituíramo documento final, que produzirá a fonte histórica. Esse processopremeditado envolve o entrevistador, o entrevistado, e a aparelhagemde gravação, estimulando a “construção” e interpretação históricanas dimensões de tempo, consenso, conflito, espaço, fatos, lugares,fronteiras, fissuras, intermitências, deslinearidades, dentre outros.Porque com esse procedimento não se almeja a compartimentaçãoda história vivida, mas o registro de depoimentos sobre essa históriavivida.

O tempo da memória e o tempo histórico estão diretamenteinterligados pela experiência ou pelo experienciado. As conexõesque reconstituem essa dinâmica e reproduzem, de forma refletida, opassado no presente, atuam através da dinâmica da vida pessoal ligada

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aos processos coletivos, que põem-se, interpõem-se, sobrepõem-se,intrapõem-se, expõem-se, dispõem-se e também se impõem nasvivências narradas e/ou esquecidas pelo entrevistado.

É válido ressaltar que o tempo da memória vai além dotempo de vida do indivíduo, já que é nutrida pelas interações e inter-relações registradas na psiké, transmitindo as experiênciasconsolidadas ao longo de diferentes temporalidades. Por isso, dizemosque os tempos são múltiplos e essa multiplicidade não apenasaparecerá, mas interferirá nos documentos produzidos.

O tempo do passado pesquisado entra em choque,contraposição e novo posicionamento quando percorre a trajetóriade vida do entrevistado, também o tempo presente que estimula oroteiro e as perguntas do entrevistador interfere na história de vida e/ou história vivida, já que a memória é um leque de infinitaspossibilidades dialógicas, reveladoras de lembranças, principalmente,mas que também velam e ocultam atos, atitudes e acontecimentosque os seres humanos criam inconscientemente para se proteger detraumas, dores e emoções que marcaram sua vida.

O tempo individual, muitas vezes, confunde-se com otempo coletivo na memória. Os substratos do ato de rememorar estãodiretamente ligados aos estímulos para o afloramento de lembrançase sinais exteriores ao sujeito lembrante, em uma “flutuação damemória”, a qual surge sem aparente causa ou “ativação da memória”,a partir de incentivos e estímulos no decorrer do processo de exposiçãoda memória.

“As imagens”, muitas vezes, são disseminadas pelamemória coletiva como uma rememoração de um tempo passadoque foi bom ou aprazível; contudo, muitas dessas memórias não foram“vivenciadas” pelos sujeitos relembrantes, antes são registros legadosde uma geração à outra, em uma representação disseminada pelosenso comum, por familiares e amigos, ou ainda, em muitas vezes,essas memórias foram institucionalizadas e refletem na fala do sujeitorelembrante.

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Dessa forma, o “passado não vivido” se integra a cadapessoa que se identifica com épocas, situações, em uma inserção namemória coletiva.

Portanto, o procedimento da coleta de relatos orais estáintegrado a uma metodologia que privilegia a realização de entrevistase depoimentos com pessoas que participaram de processos históricos.Objetivando a construção de fontes ou documentos que subsidiem oregistro de lembranças e esquecimentos da memória sobre um outrotempo, a partir de narrativas entrecortados por emoções do passado,ressignificadas pelas emoções presentificadas.

Não existe neutralidade em qualquer forma de se abordaro passado, não somos teóricos flutuantes ensejando a verdade pura,abstraída de juízos de valor. É preciso interagir em uma correlaçãode convergências e divergências reconhecendo o dinamismo dopassado, construindo o conhecimento que atua no tempo presente eresguardá-lo como “matéria-prima” para o futuro, uma vez que ahistória e a memória são articuladas pelas relações temporais“fecundas e necessárias para a afirmação da condição humana. Oshomens são agentes da história e sujeitos da memória, doesquecimento e do saber” (DELGADO, 2006, p. 57).

Na dinâmica da temporalidade, a multiplicidade estáinclusive no que é específico, e, por sua vez, é plural, pelosentrecruzares das experiências vividas que não se isolam ou dissociamda totalidade das interações humanas. Uma pessoa pode até escolherse isolar em um lugar por muitos dias seguidos, mas não pode isolaro fato de sua ausência ser sentida, ou seus atos costumeiros não maisestarem por ele sendo praticados, ou ainda, sua voz ausente serpresenciada e notada.

As temporalidades têm suas próprias conjunturas esomente mergulhando nelas o pesquisador logrará êxito na atuaçãoinicial de buscar conhecer o passado. Na turbidez da memória, aamplitude heterogênea do passado é vislumbrada com o interesse dotempo presente. Entretanto, as constantes mutações e movimentostornam mais complexo o passado que de amplo e diversificado torna-

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se inexpurgável em todas as suas dimensões. Por isso, a necessidadede construção e representações e ressignificações sobre o passadopercebido pela memória.

Os conceitos que marcam a espacialidade do tempo e atemporalidade do espaço estão diretamente ligados aos valores eimaginários que as ações humanas lhes conferem. Ao tentaridentificar, analisar e interpretar as ações humanas, suas trajetórias etemáticas, devemos levar em consideração não somente asimultaneidade social mas também quatro elementos que caminhamjuntos: o tempo, a memória, o lugar e a história em suas pluralidadesconjunturais, para a construção, ainda que de forma fragmentada etensa, das identidades desses homens e mulheres sujeitos lembrantes.Delgado (2006) conceitua tempo explicando suas relatividades eprojeções:

O tempo é um movimento de múltiplas faces,característica e ritmos, que inserido à vida humana,implica durações, rupturas, convenções, representaçõescoletivas, simultaneidades, continuidades,descontinuidades e sensações (a demora, a lentidão, arapidez). É um processo em eterno curso e permanentedevir. Orienta perspectivas e visões sobre o passado,avaliações sobre o presente e projeções sobre o futuro(Delgado, 2006, p. 33).

Para Delgado, as análises do passado sempre sãoinfluenciadas pela marca da temporalidade. Há sempre as demandasdo tempo em que se vive e as representações desse tempo. Esse tempoinfluencia diretamente a forma como os olhos vêem o que foi vividoe a reinterpreta, sem modificá-la.

As vozes da memória constroem a dimensão de tecidosocial e das identidades coletivas através de diferentes linguagens. Ainter-relação de temporalidades deve ser buscada como forma decaptar o passado que se constitui como espaço vivificador entre

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relações históricas, as memórias e as identidades, na certeza de queestas são melhor reconhecidas e analisadas a partir dos processoscognitivos incorporados à trajetória de vida dos entrevistados.

São muitas as variáveis das identidades, e estas estão empermante construção. Na integração da tessitura constitutiva dastrajetórias, percebemos as identidades como simbologias, valores,

crenças, hábitos, experiências e tantos outros atributos culturais.As identidades dos sujeitos lembrantes de Rio Branco são

atravessadas por outras identidades, com orientações políticas, sociais,sexuais, de gênero, dentre outras. Elas se mostram na vida cotidiana,na complexidade de muitas frentes e em todos os níveis da cultura.Não há uma identidade una desses sujeitos lembrantes. Antes aconstelação de idéias expostas demonstra as tensões existentes, osconflitos e as similitudes.

As identidades estão intimamente relacionadas com osignificado das experiências das pessoas. É um processo emconstrução de significados que têm como base a cultura e as ações desociabilidade. Existem identidades múltiplas, como afirmou Hall(2004). Identidades e papéis sociais não devem ser confundidos, estesestão envoltos em normas e estruturas de organização das sociedades,enquanto aquelas são fontes de significado para os próprios atores esão construídas pelos indivíduos nos processos por eles vivenciados.

O processo identitário é produzido quando daautoconstrução internalizada pelos atores que atribuem a esse processoum significado. Contudo, em nossa sociedade patriarcal há a confusãoentre o papel dos homens e das mulheres – que estão ligados a funçõesexecutadas socialmente nessas sociedades – e suas identidadesconstruídas.

O que se observa como padrão é que a identidadetradicional outorgada em sociedades patriarcais produzum sentimento de baixa auto-estima nas mulheres. Este éo ponto central. No processo de desconstrução da

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identidade, o quantum de auto-estima se altera, naidentidade reconstruída aprendem a gostar-se e respeitar-se mais, ter autoconfiança, justamente por ter sido capazde romper com o modelo dominante (GARCIA, 2004,p. 9 e 10).

A relação entre homens e mulheres interfere diretamentena identidade forjada sócio-culturalmente. Muitas das tensõesestabelecidas estão centradas não somente nas atividades religiosas,de raça ou de viés político-ideológico – elas também estão presentesnas relações de gênero estabelecidas no seio da sociedade.

A partir das tensões não resolvidas, que em muito influemnas conjunturas históricas, pessoais e estruturais, percebemos que ofluir do lembrar, esquecer, interagir, internalizar, presentificar. Enfim,o rememorar em suas múltiplas faces estão envolvidos com/pelo atomigratório executado, redimensionado e ressignificado pela energiacriativa existente no sujeito da memória.

A idéia de identidade constituída nesse contexto vai alémde um pretenso nomadismo ou uma transitoriedade, em que o querernão fixar raízes é explícito no sujeito da memória. Na implicitude dofluir as memórias, as identidades vão se formando ou mostrando suasformas, no expressar da cultura desses seres humanos ao discorrersuas trajetórias de vida. Quanto a essas identidades culturais, Hallescreveu:

Acho que a identidade cultural não é fixa, é semprehíbrida. Mas é justamente por resultar de formaçõeshistóricas específicas, de história e repertórios culturais deenunciações muito específicos, que ela pode constituir um“posicionamento”, ao qual nós podemos chamarprovisoriamente de identidade. Isto não é qualquer coisa.Portanto, cada uma dessas histórias de identidade estáinscrita nas posições que assumimos e com as quais nosidentificamos. Temos que viver esse conjunto de identidadecom todas as suas especificidades ( Hall, 2006, p. 408).

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Dialogando com Stuart Hall, sentimos a necessidade deformular posicionamentos sobre a cultura popular uma vez que emnosso trabalho temos utilizado a relação da memória a partir dosrelatos de homens e mulheres do povo, ou seja, ele está embasado namemória construída em meio à cultura popular. Por esse diálogo,nos vêm duas questões: O que seria essa cultura popular? Como elase apresenta nas relações sociais vivenciadas?

O termo “cultura popular” é utilizado desde o século XVI,pós Reforma Protestante, passou por diversas implicações ereformulações nos séculos seguintes, em especial no XVIII, quandorevirou a “sociedade refinada” com seus estudos das tradiçõespopulares dos trabalhadores pobres. No século XIX, com a “distinçãocultural”, moral e econômica, providenciada pelas reformaslegislativas e regulamentares, a cultura popular foi apropriada pelaslideranças político-institucionais que estabeleciam “a lei e a ordem”,distinguindo o popular do refinado. O século XX também teve o seumomento ideologizador, a partir do “imperialismo popular”, com areorganização geral da base de capital e da indústria cultural, fazemarremedos de representações populares na tríade. Ver os movimentopopulares, aprimorar-se deles e ressignificá-los, para então, levarnovamente ao povo essa “cultura popular” que as classes maisabastadas consideram concebíveis ao modo de vida da população.

Muitas são as teorias de cultura popular e não é nossofoco trazê-las todas à tona, tampouco asseverar cronologias ouveracidade a qualquer delas. Contudo, há a necessidade de expor oque é popular em nossa concepção. Então, iremos contrapor duasterminologias mais utilizadas na atualidade para podermos explicitara compreensão de popular aplicada neste trabalho.

Há uma variedade de significado do termo popular. Diz-se que algo é popular porque grande número de pessoas o compram,lêem, escutam e apreciam muito. Isto é uma definição mercadológicade popular que está diretamente associada a manipulação do povo ede sua cultura. Uma cultura comercialmente fornecida que levam a

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um estado de “falsa consciência”. Por isso, alguns poderiam pensarque esses são uns “tolos culturais” por se deixarem envolver, semterem adquirido a consciência de que estão sendo alimentados com o“ópio do povo”. E nos satisfaz o fato de podermos denunciar asindústrias culturais capitalistas como agentes de manipulação edecepção dos que por elas são influenciados.

Por outro lado, a tentativa de contrapor a essa cultura umacultura “alternativa”, que seja íntegra e expresse a autêntica “culturapopular” das classes trabalhadoras não é melhor que a primeira.Porque esta não considera as relações de dominação e subordinaçãodo poder cultural. Não apenas pelo fato de as relações de autonomia,coações, rupturas e resistências serem no tempo e no espaço, dentrodo social ou no entorno deste pelas periferias das situaçõescongêneres. Em segundo plano, o poder da inserção social estáintimamente ligado às materializações de atos e pensamentos atuantesnas formulações interativas desses sujeitos. O produzir da dimensãode autonomia é aplicável e sustentável no mundo das idéias, sendosua aplicação na concretude real uma projeção turva e obscura doconceito inicial.

Essas pessoas não são “tolas culturais”, elas são capazesde reconhecer como as realidades de suas classes são reorganizadas,vêem a forma como são constantemente remodeladas, reconstruídase reorganizadas. É certo que as classes que concentram o podercultural acabam por dominar ou ter a preferência. As formas impostasinfluenciam diretamente o agir, porque nenhum grupo social é isoladoem si, por si e para si. As relações de poder cultural, ainda queirregulares e desiguais, demonstram que a cultura dominante tentaconstantemente desorganizar e reorganizar a cultura popular, mastambém pontos de resistências e momentos de suspensão.

No permanente campo de batalha da dialética cultural,não se obtêm vitórias definitivas, o que se têm são posiçõesestratégicas a serem conquistadas ou perdidas (HALL, 2003).

Stuart Hall (2003, p. 243) afirma que “A cultura popularé um dos locais onde a luta a favor ou contra a luta dos poderosos é

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engajada; é também o prêmio a ser conquistado ou perdido nessaluta. É a alma do consentimento e da resistência”.

Ainda tendo por vista o enfoque da cultura popular noviés das identidades, como práticas de resistências, Sayonara Amaral,a tradutora de Stuart Hall para o Brasil, afirma que a cultura popularpara Hall:

É constituída por tradições e práticas culturaispopulares e pela forma como estas se processam emtensão permanente com a cultura hegemônica. Nessesentido, ela não se resume à tradição e ao folclore, nemao que mais se consome ou que se vende; não se definepor seu conteúdo, nem por qualquer espécie de “programapolítico popular” preexistente. Sua importância reside emser um terreno de luta pelo poder, de consentimento eresistência populares, abarcando, assim elementos, dacultura de massa, da cultura tradicional e das práticascontemporâneas de produções e consumo culturais(HALL, 2003. p. 330).

A memória expressa não apenas as identidades, mastambém as multiplicidades de línguas, racismo, particularismos,etnicidades, xenofobias, xenofilias, sexismo, dentre outros processosculturais. Nesse sentido de expressões múltiplas, Antônio Montenegrofaz uma distinção entre o campo da Memória e o da História,afirmando que:

O campo da memória se construiria, dessa maneira,a partir dos acontecimentos e dos fatos que também setransformam em elementos fundantes da história. Mas,enquanto a memória resgata as relações do que estásubmerso no desejo e na vontade individual e coletiva, ahistória opera com o que se torna público, ou vem à tonada sociedade, recebendo todo um recorte cultural,temático, metodológico a partir do trabalho dohistoriador. Os diversos órgãos formadores de opinião –

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rádio, televisão, jornais, revistas ou instituições como oEstado, a igreja, os sindicatos – caracterizam-se comoprodutores de todo um conjunto de explicações/representações acerca da realidade (2003, p. 20).

As identidades estão sempre em curso, é na relação tempo/espaço que se tensiona a memória que almeja conhecer as referênciasfundamentais do passado. As lembranças são sempre tencionadas notripé memória/tempo/espaço. É pelo entrelaçar dessas que aquelaresgata de forma presentificada o passado vivido, ainda que vividocomo substrato parcialmente construidor das identidades.

Paul Thompson (1992) afirma que “A construção e anarração da memória do passado, tanto coletiva quanto individual,constitui um processo social ativo que exige ao mesmo tempo engenhoe arte, aprendizado com os outros e vigor imaginativo”. Isso ficamuito claro na fala de vários entrevistados, quando expressam comoera a vida décadas atrás. Há um ar de veracidade mesclada comsonhos, sonhos que podem ser reais ou imaginários, mas que de fatoocorreram, ainda que na memória deles.

A prática cotidiana retratada pela memória dificilmenteestá ligada à consciência dos fatos e sua vinculação com o imagináriodo passado que transcenda “o mundo das experiências imediatas edas explicações do senso comum” (MONTENEGRO, 2003, p. 23).

Esses elementos expressos na narrativa quase nunca levamem consideração as implicações político-econômico-sociais dos atosvivenciados pelos sujeitos lembrantes, na própria relação vivida.Assim, fica evidente que para muitos entrevistados a vida se resumeàs sua próprias histórias de vida e trabalho. Os entrevistados narramos acontecimentos que perpassam de forma transcendente aquilo quese apresenta de forma mais imediata em suas vidas, ora por aspectoscomuns, ora por experiências do cotidiano.

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2.2.2 Memória autobiográfica e trajetórias de vida

A memória autobiográfica é um construto que se refere àhabilidade de recordar conscientemente de experiências individuaisvividas no passado. Esses episódios experienciados pessoalmenteocasionam registros duradouros na memória de longo prazo a pontode mesmo vários anos após o ocorrido, a recordação desses eventospessoais se fazer presente.

Essas memórias pessoalmente importantes e duradourassão revividas como eventos marcantes, memórias definidoras,episódios nucleares, enfim, eventos marcantes que, a partir dasfunções psicológicas dos indivíduos, são expressas e relacionais nocontexto social. Seu Francisco relata dois episódios de sua vida queparecem ser fatos isolados e distintos ao mesmo tempo que seestabelecem como um construto, uma forma única de ser pelo narrar.O primeiro relato é sobre sua infância e o segundo sobre suaadolescência:

Minha mãe teve vinte e dois filhos, mas só queviveu mesmo, só tinha doze, os outros tinham morrido...Aí, agora, um tempo desse pra cá, morreu um bocado...agora, nós estamos em seis filhos. Naquele tempo, amulher tinha filho, aí, à vontade... Naquele tempo que eufui criado, não tinha esse negócio de leite em pó, isso eaquilo... O leite, fazia ele fraquinho, ainda colocava açúcardentro... A massa era a macaxeira, espremia em um pano,colocava pra secar no sol, aí a gente comia. De primeiro,era criado tudo assim... A minha mãe é uma mulher queteve esses vinte e dois filhos. Ela nunca ocupou a bater,não. Minha mãe era filha de índio.

(...)Alguns homens que moravam nos seringais... eles

atacavam nesse tempo... atacavam os índios pra tomar osseringais... Atacavam os índios, matavam pra ficar com olugar... Eles atacaram uma maloca de índio, aí, matava osíndios... Aí, o meu avô disse que era bem novim... um

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indiozinho bem novinho... Aí, ele teve pena de matar,pegou e levou pra criar. Aí criou ele. Aí, depois que eleficou grande... Aí, diz que quando ele cresceu, o tino deleera na mata... Só que, quando deu fé, ele chegou com ooutro caboco... O velho falava as línguas dos cabocos, aíconversou tudinho... Aí o velho vai, e pega a cachaça, dápro outro caboco. O caboco levou pra maloca. Aí, quandodeu fé, os cabocos chegavam tudo com aqueles caldo pratrocar por bebida. Aí foi quando o velho domou eles. Eeles, trabalhando com o velho, de graça (Francisco).

A construção produzida pelo sujeito lembrante traz apercepção da construção de vivências como se elas fossem lineares,sem fissuras, em uma seqüência. Fato que não ocorre nosrelacionamentos humanos, haja vista os homens se relacionaremmutuamente, construindo várias possibilidades de sociabilizações aomesmo tempo em que se percebem enquanto sujeitos da ação quepela memória se fazem representar.

Se, por um lado, lembrar de eventos altamente emocionais,sejam eles positivos ou negativos, pode ajudar a prevenir situaçõesruins e tomar a direção do sucesso; por outro lado, não dispor detodos os eventos irrelevantes do cotidiano é útil ao funcionamentocognitivo normal, o que propicia um comportamento adequado aoambiente (GAUER; GOMES, 2007). Estudos mostram que muitasdas habilidades de promover lembranças específicas são cerceadasna memória por transtornos específicos, demências, depressões e outrasdoenças.

Mas nem só de Alzheimer, demências e apatias sãoformulados os esquecimentos que interferem diretamente na memória.As memórias de eventos marcantes ajudam no crescimento dos sereshumanos, desde a tenra infância até a velhice, especialmente quandoessas memórias são compartilhadas socialmente. Contudo, é comumque a memória nos pregue peças, seja por um branco na hora da prova,por não lembrar o nome de um conhecido ou porque tivemos umdéja-vu12.

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Assim como temos a capacidade de guardar informaçõesvoluntariamente em nossa memória – ainda que influenciadas porfatores ambientais e emocionais, atenção prestada, relevância dadaao evento e relembranças – também podemos esquecervoluntariamente ao evitar, pensar e não lembrar voluntariamente – oque vai fazer com que o cérebro ao formar um “arquivo”, cheio decaminhos produzidos por associações de acesso a informações, tenhasempre em prontidão o que é mais acessado e em menor quantidadea memória armazenada que não se tem o acesso a ela.

Meus pais trabalhavam na agricultura, plantandofeijão, milho, algodão. A vida lá era mais ou menos, né?!Quando era inverno, não era muito boa não, na seca erauma tristeza... Três anos de seca, né?! Sofria... A seca noRio Grande do Norte, no Ceará, Nordeste todo, sabe, nãochove, seco mesmo de passar três anos sem chover... aíera pecado mesmo. (...)

E a vida era pesada. A vida é assim mesmo, a vidatoda foi batalhada mesmo, muito batalhada.

Lá nós comia caça do mato... que matava... veado,embiara; embiara que a gente chama é galinha, jacu,animal de pena; e mercadoria que era do barracão. A gentepedia pirarucu, era o que vinha, jabá, tabaco... era o quevinha do barracão (...) A vida era daquele jeito. Podeperguntar a todo seringueiro que trabalhou com seringaque ele vai dizer. A vida de qualquer caba que trabalhoucom seringa é a mesma essa história (Zacarias).

Seu Zacarias pontua duas fases de sua vida: sua infâncialigada ao trabalho duro no sertão e sua juventude nos seringais daAmazônia e o trabalho duro na floresta. Em ambos os casos o fato deo árduo trabalho estar presente no discurso de Seu Zacarias demonstraa importância que este dá ao mesmo. A importância de lembrançascomo as do seu Zacarias se apresenta no campo da memóriaautobiográfica quando o sujeito lembrante se demonstra capaz de

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experienciar conscientemente uma representação mental de algoespecífico, real ou imaginado. Gaver (2007), afirma que a memóriaautobiográfica pode ser lida tanto com informações de naturezaepisódica e proposicional, quanto semântica e procedural. Para o autor,o sujeito relembrante pode efetuar uma série de julgamentos mais oumenos reflexivos sobre propriedades dos eventos e das memórias;assim, os eventos lembrados de forma mais vivida e que despertammais emoções, são avaliados como os eventos mais importantes.

Nesse ponto, percebemos os velhos habitantes do TerceiroEixo fazendo parte do sistema reflexivo que atrela a emoção, amemória e o significado pessoal atribuído. A começar pelas festasnas colocações em que viviam, perpassando pelos encontros nosbairros em que vivem.

Lá no seringal Bom Destino tinha festa no centro...tinha aquele pessoal que fazia festa, brincava, bebiacachaça e era aquele rolo, mais tinha aquele divertimento,não é? Agora eu vou explicar uma coisa pra você também,lá brocava o roçado de adjunto, mandava pro outro, fazera festa, dá de comer àquele pessoal... O pessoal trabalhava,bater terçado o dia todo só pra essa festa, aquela rapaziada,tinha cara... tinha homem lá que era boa pessoa, carregavaaté de 60 homens, brocava o roçado, derrubava todinho,o roçado era grande... Aí, de noite, tava aquela festa, né?Aí, tinha festejo de dia de ano, tinha festejo de tudo, todosos anos tinham, né? Agora só tinha naquela época, gostavade matar os outros, nera? Naquele tempo era o revolve dolado, nera? Faca do outro lado, era o ideal deles, lá eutinha até medo daquilo, cada qual tinha uns 38 do lado,facona. Aí tomava cachaça, deu muita briga por lá também.Foi o tempo que eu cheguei lá, me assombrei, iche! Aí, lá,eles não tiravam a mão da cintura, não. Mas, eles faziamfesta e festa boa, tinha festa de São João, de São Pedro eSanto Antônio, aí era festejo, ichi, tocado de Porto Acre,Venceslau, vinha tocar naquelas festas tudo... Tudo erafesta, naquele centro, agora só dava mais era homem,mulher era pouca que naquele tempo quase não tinha... Epra dançar era só... dançava só, nera? Não vi dançarhomem com homem, não... mas dizem que dançava,antigamente (Raul Isaías).

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De primeiro eu ia trabalhar e minha família ficavasozinha, só a mulher e os meninos. Os meninos brincavamaí até meia noite, da Bahia até a beira do rio. Quandoalagava ficava a praia, na lua, ia virar cangapé nessa areia,tomava banho no rio de madrugada, ninguém via umhomem, ninguém tinha medo de nada (Zacarias).

Assim como os lembrantes não interpõem em suas falasas agruras cotidianas, antes, relatam a parte boa de voltar para casa evivenciar momentos ternos com a família, de mesma forma váriosoutros sujeitos lembrantes põem em seus discursos os substratos dememórias que estão acessados como de vivências episódicas.

Quando eu nasci, lá no Acural, tudo era muitoalegre, lá... muito alegre mesmo. Era festinha na beira dorio, faziam aquelas festa... Eu ia nas canoas, passava anoite dançando. Eu já era casada e eu ia mais o meumarido. Aí nós dançávamos a noite toda. Lá não tinhaproblema de querer roubar a mulher dos outros. Nós tudoera amigo, as casadas dançavam com os maridos dela, eas solteiras dançavam com os maridos das outras, masnão tinha negócio de ciúme (Antônia).

Fizeram uma igreja pequena, e já desse lado de cáfoi feita uma latada pra todos os sábados e todos osdomingo... a gente tinha venda ali, uma venda praaumentar o tamanho da igreja. A gente tinha aquelavenda... eu era dona da macaxeira, do nescau e do café,os outros tomavam conta do resto (...)Aí tinha os gruposdas mães, o grupo dos pais e o grupo dos jovens. As mãesse reuniam dia de sábado, das duas horas até às cinco. Eradois... era dois... Aí os pais entrava até oito da noite. Aí osdomingos era dos jovens. A gente ainda juntamos setentae... sessenta e três mãe e os jovens ainda juntava quaseoitenta (Nena).

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Essas e outras memórias de velhos parecem ser mediadas,em grande medida, pelas emoções e pelos processos hormonais eneurais, numa consolidação das memórias duradouras que para elesfazem parte de processos significativos.

Gaver e Gomes (2007), citando Conway (1996), afirmamque há três níveis hierárquicos de memórias autobiográficas: oseventos específicos, as memórias gerais e os períodos de vida.Clarificando os contextos dos eventos do nível mais baixo (eventosespecíficos) até o mais alto (período de vida).

A memória autobiográfica é um processo de interaçãoentre a memória episódica (eventos pessoais) e a memória semântica(significado pessoal dado aos eventos), entre cognição e emoção.

A memória, assim como qualquer outra parte do corpo,necessita de exercícios e ambientes que favoreçam conforto esituações nas quais se possa exercer atividades que levem aoprocessamento das informações. Por isso, é necessário manter-sementalmente ativo, reservando um período de tempo contínuo paraaprender, bem como, boas condições de trabalho em ambiente quefavoreça visão, audição, locomoção e outros detalhes práticos, aolidar com a memória. É preciso evitar tensões e manter o contatosocial. O ato de fazer novos amigos e comentar as vivências traz àtona as lembranças há muito guardadas na memória, além depossibilitar nossas perspectivas ao fluir da memória na aplicabilidadeprática do cotidiano.

Eu entrei na Universidade pra trabalhar em 80, 25de fevereiro de 80. Trabalhei até... 2004. Ainda hojequando eu chego na Universidade, os professor diz:“Rapaz, volta pra marcenaria que tu tá fazendo falta”. Eeu digo: “Volto nada, que eu já aposentei”. Mas, graças aDeus, trabalhei muito bom, muitos amigos, muita genteque eu tenho muita consideração. Todos os professoresda Universidade que eu conheço são legal comigo. Osfuncionários daquelas repartição tudinho. Eu nunca mais

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trabalhei não. Depois de aposentar eu fiquei só andandopraqui praculá (...). Eu vou pro centro da cidade, fico láaté 11 horas, aí venho pro almoço. Faço algumasbesteirinha em casa (Zacarias).

É muito provável que o estilo de vida de seu Zacariastenha contribuído diretamente para que sua memória do tempopassado distante e do passado próximo seja tão rica em detalhes eexpressões.

É certo que quando se é idoso, velho ou da “terceiraidade”, como se prefira chamar, as lembranças já não fluem com amesma intensidade e rapidez com que costumavam fluir na juventude.Por isso, há a necessidade de conhecer novos ambientes, aprendercoisas novas, perguntar sobre coisas que não entendeu, comeradequadamente e exercitar-se, sempre com o objetivo de uma vidamais saudável e a possibilidade de uma velhice mais relacional.

2.2.3 Demências e apatia influenciando a memória e oesquecimento

A maioria das pessoas sofre, em algum grau, com o atode esquecer. O que costumeiramente chamamos de “branco”. Écomum não lembrarmos de algumas coisas que temos para fazer ouonde pusemos determinados objetos. Aliás, nunca se cobrou tanto damemória quanto nessa “sociedade da informação”. Há tantas coisasa lembrar: nomes, lugares, situações, que o cérebro não comportatantas informações a serem disponibilizadas a qualquer momento.Entretanto, naturalmente, a perda de memória é, muitas vezes, maisséria do que isso.

O cérebro, como o restante de nosso organismo, passapor modificações com o envelhecimento, o que faz com que, emmuitos casos, a perda de memória seja normal. O psiquiatra SamuelGershon afirmou que

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perdermos cabelo, ficamos grisalho, nossa peleperde elasticidade, não conseguimos manter a velocidadena corrida, nossos olhos não vêem com a mesma nitidez.Tudo isso faz parte do processo normal de envelhecimento.No sistema nervoso central, ocorrem também, mudançascaracterísticas. Células nervosas morrem. Estabelece-semenor número de conexões. Reduz-se o peso do cérebro,em conseqüência da perda de certos tipos de célulanervosas. Tudo isso faz parte do envelhecimento normal.(Gershon appud Defelice, 1989, p.12).

Existem lapsos normais de memória e a perda anormalde memória, como no caso da doença de Alzheimer. Quase tudo emnossa vida envolve um tipo de memória, mesmo o que chamamos debom-senso. Nosso intento não é tipificar ou qualificar a memória,isso os neurologistas, gerontologistas, psiquiatras, sócio-etnólogosdentre outros pesquisadores, já fizeram muito bem. A memória aquiretratada compreende o armazenamento e vitalização prática emdiversas situações do que foi armazenado, enfocando a capacidadeintelectual disposta pelo cérebro para lembrar, contextualizar, recriare recontextualizar, conscientemente ou não, as informações associadasàs vivências cotidianas, ainda que empíricas, dos sujeitos lembrantes.

De acordo com Sonia Brucki (2007), as demências ligadasà memória acontecem se ocorrerem várias pequenos derrames ouum derrame grande em uma área importante do cérebro ou umtraumatismo craniano. Contudo, a demência mais freqüente que atingeas pessoas na velhice é a doença de Alzheimer, onde as informaçõesnovas não são aprendidas, e com a progressão da doença, o pacientevai perdendo a memória recente, até o esquecimento das habilidadescotidianas, sociais e motoras.

Por ser uma doença degenerativa cerebral progressiva, oAlzheimer incide diretamente na perda de habilidades como pensar,memorizar, raciocinar. Essa perda de habilidades se dá pela formaçãode feixes de uma proteína chamada betaamilóide nos neurônios,diminuição da estrutura interna dos neurônios, diminuição do

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neurotransmissor chamado acetilcolina no cérebro e aumento daconcentração de alumínio no cérebro (SONIA BRUCKI, 2007).

As várias experiências com a memória cristalizam osconhecimentos e os tornam fluídos. A capacidade de utilizar oconhecimento acumulado chamamos de “inteligência cristalizada”,enquanto a capacidade de lidar com a informação ou utilizá-la deforma diferente da utilização antiga, comumente agindo emelaboração de juízos e resolução de problemas, chamamos de“inteligência fluida”. Ambas são necessárias em um ou outromomento da vida e, às vezes, em ambos como, por exemplo, ao tentarentender uma notícia de jornal (Defelice, 1989).

Às vezes nos sentimos traídos pela memória, por lapsoscomuns que na quase totalidade, não deveriam nos preocupar. Écomum esquecer o nome das pessoas que foram recentementeapresentadas, ou acordar, pela manhã, e não lembrar do sonho quetivemos, ou, ainda, planejar uma palestra e esquecer de citar pontosque consideramos argumentos fortes.

Para Defelice (1989), nossa percepção sofre com asdeficiências ocasionadas pela distração durante o momento deapreensão da informação, como também pelo estresse ocasionadopela preocupação com a possível perda de memória. Com isso, afalta de interesse pelas situações nos rodeiam, com o álcool que inibetemporariamente o cérebro, o nervosismo ocasionado pela ansiedadeque mina toda a mente, a desorganização, o medo da senilidade, arepreensão a algo que se quer esquecer, excesso de televisão e atéuma vida de desafios. Defelice afirma que:

A perda grave de memória (ou o que chamamoscomumente de “senilidade”) não é necessariamente umadecorrência irreversível da idade (...). As pessoas maisvelhas têm pelo menos a mesma ou talvez mais memóriatotal ou informação do que os jovens, mas lembram-sede coisas diferentes. De modo geral, cada um recuperamelhor a informação que é importante para a sua própria

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vida. Como a vida muda na velhice, assim mudamtambém as categorias de informação que os idosos selembram. E a “sabedoria” – uma espécie de memória quenão tem medida em escalas psicológicas – aumenta como passar dos anos.

É perigosa a crença de que a idade torna inevitávelo declínio mental. Inúmeras pessoas inteligentespermitem que sua mente se reduza àquilo que não passade falta de vontade de viver. (1989, p. 55 e 57).

Marion Perlmutter (1989) afirmou que o cérebro começaa envelhecer no início da idade adulta, embora as pessoas só percebamessa perda bem mais tarde. O fato de associar a velhice com a perdade memória, em muitos dos casos, é exagerada, porque é cercada demuito medo. Muitas pessoas não levam em consideração o fato de aforma de processamento da informação estar intimamente ligada coma fixação da memória ou a falta dela quando do armazenamento dasinformações.

Além da perda de memória considerada comum oureversível, existem as perdas irreversíveis de memória que sãoocasionadas por distúrbios, demências ou doenças que ocasionamperda ou bloqueio permanente de capacidades mentais. Embora nãotenhamos acesso aos exames mentais, a família de dona Nenaconstantemente afirma que ela está doente ou demente. E isso ficaclaro no final do período de entrevistas executadas com ela.

Passamos quatro anos acompanhando o estado de donaNena. Sua memória, sua saúde, seu desejo de viver foramgradativamente sendo tomados pelas demências e doenças que elasofre. Abaixo, colocaremos alguns trechos de entrevistas, algunsproduzidos em 2003, dois períodos em 2004 (quando do agravamentoda demência) e outros em 2007 para compararmos as dificuldadespelas quais ela passa.

Dona Nena falou de suas lembranças em 2003:

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(...) Quando minha irmã morreu eu tinha quatroanos e ela [irmã] tinha três, mas ainda hoje eu me lembroda minha irmã como se fosse hoje (...)

(...) Meu padrasto não me dava uma caixa defósforo, um palito... Aí ela [mãe] foi comprar, um metroe não sei quanto de uma fazenda. Eu ainda me lembro onome dessa fazenda... fazenda ainda vermelha, com umaspintinha branca... (...)

(...) [Durante o inverno] A gente andava pelo meiodo campo pra não ficar atolado. Quando eu cheguei aqui,em 70 ... em 71... alagou, que a água veio até aí a escola.Eu me lembro que meu menino que tava ontem aqui,ele tinha uma canoa.

Quando conhecemos dona Nena, ainda era uma senhoralúcida. Tinha orgulho de “arrumar a própria casa sem precisar deempregada”. Cultivava dezenas de plantas em seu “quintal”. Umasenhora doente e solitária que ainda andava, trabalhava e se orgulhavade ter sua casa limpa e pronta a receber visitas.

O tempo passou e, em fins de 2004, as dezenas de caixasde remédios pareciam não ajudá-la como antes. A casa já não era tãoarrumada. Algumas plantas morreram, o “quintal” já não estavamtão limpo. Não tinha forças para encher uma garrafa de água. Ademência já parecia estar influindo mais incisivamente em seu corpoe sua memória.

(...) A reunião aqui da comunidade era na igreja mesmo.Aí, eu não sei mais... (...)(...) Quando eu cheguei aqui não tinha Igreja, o pessoalse reunia pra ir pro bairro da... aquele bairro que vai prorumo daculá... Eu sou tão esquecida... (...)

A família se aproximou mais dela, mas as doençastambém. No início de 2007, quando do fim da coleta e transcriaçãodo corpus das entrevistas, pudemos perceber frases inteiras como asque se seguem:

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(...) Eu nasci em... Não me lembro o nome dacolocação, sei que nasci em Tabatinga, no Seringal NovoTabatinga, que eu nasci... (...)

(...) Eu não me lembro mais... Olha, depois quepassou pela minha cabeça, aí pronto... (...)

(...) Eu não sei mais em que ano nós começa-mos... Eu não me lembro mais que ano eu chegueiaqui... Eu não me lembro mais de nada, meu filho. Eufiquei assim tão esquecida... (Nena, grifo nosso em to-das as falas).

Como dona Nena, outros entrevistados sofrem de perdade memória irreversível, muitos delas acompanhadas de depressão.

Algumas demências são afetadas e agravadas pelo excessode remédios. Dona Nena afirma que o médico já trocou sua medicaçãovárias vezes porque ela passava mal ao ingerir determinadosmedicamentos. E quando ela ia para o hospital, consultar um médico“que estivesse de plantão”, ele passava mais remédios, nemperguntava o que ela estava tomando “só passava mais remédio”. Oque alguns médicos que atenderam dona Nena e outros sujeitoslembrantes parecem não saber ou não atentar é o que Gershon chamade primeiro erro clínico. Ele afirma que:

O primeiro erro clínico consiste em não verificarquais as drogas que o paciente idoso está tomando. Algunspacientes tomam de dez a vinte remédios diferentes. Éde fato possível que a medicação esteja causandodesequilíbrio cognitivo significativo (Samuel Gershonappud Defelice, 1989).

Perda de memória e depressão acompanham muitosvelhos. Eles geralmente apresentam esses sintomas após seaposentarem. Por ficar somente em casa, pouco saírem, quase nãoreencontrarem os amigos, passarem dias “remoendo” as agruras do

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passado. Ao ficarem ociosos, sem ter com que ocupar a mente, muitosficam entristecidos. Queixam-se de problemas físicos que estão, emgrande parte, relacionados à depressão.

Os sintomas de apatia, desconfiança e desilusão em muitoscasos são disfarçados como demências, não conseguindo as pessoasdeprimidas responder a perguntas feitas pelo pesquisador. Váriasvezes ficam em silêncio; outras, choram; às vezes, compulsivamente.E essas ações são vistas como respostas, embora não verbais, sãorespostas ininteligíveis, respostas que, muitas vezes, não podem sertraduzidas em palavras. Assim, eles agem lenta e reservadamente.

Uma das entrevistadas aparenta ter esse perfil de apatia,embora somente um cientista da saúde ou da neuropsiquiatria possadiagnosticar sua real condição. Contudo, em algumas entrevistas donaLaura já não lembra tão bem coisas que para ela são importantes etrazem felicidade:

Daí eu me casei com, viche nem me lembro maisa idade, tenho nem idéia. Passei trinta anos casada, meumarido morreu em [mil novecentos e] noventa e quatro,deixa eu ver... me ajuda... [treze anos, mais ou menos].É acho que foi isso, por aí assim (Laura – colchetes sãointervenções do pesquisador).

A maior parte das lembranças de dona Laura são tristes.Ao analisar suas falas, percebemos os momentos felizes sendo postosà tona com menor intensidade que os tristes. À frente, teremos umcontraponto de lembranças felizes e tristes em uma mesma fala. Nelapercebemos a ênfase dada às tristezas:

Daí nós tivemos seis filhos, mas criou-se só dois,aí um mataram, né? Tiraram a vida do meu filho, ficousó um que é o pai do Dario. Só criou-se dois, nascia emorria, né? Aí criou-se dois, que era o Jorge, quemataram, e ficou o Ribamar, que é o pai dessa galera.Hoje só tenho um filho.

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Suas tristezas não são apenas pela família, mas pelopróprio lar em que queria transformar sua humilde casa.

Minha casinha era coberta de palha, fechada depalha, não tinha piso, era só o chão mesmo. Só cabia acama, um fogãozinho, era bem pequenininha. Era unstrês por cinco, acho.

Muitos dos velhos entrevistados passaram por váriasadversidades. Alguns têm na lembrança, ainda vivas, as marcas dochamado “Esquadrão da morte”. E isso para eles parece serinsuperável. Dona Laura passou períodos de fome, de doença,depressão, falta de moradia, enchentes, mas sua maior tristeza pareceter sido o assassinato de seu filho.

Aqui, eu tô em paz, né? Não tô pagando aluguel.Apesar de tudo, eu tô na minha casinha e não temperseguição de nada. Graças a Deus, nunca aconteceunada, só a morte do meu menino, né? Que a juventude semistura demais, né? Então, ele... aconteceu isso... Euainda não sei por que e nem me interessa mais, porquemeu menino não vai voltar mais, né? Então eu não querosaber mais de nada. Ele tinha dezesseis anos na época.Mataram ele em 1984 (Laura, entrevista no início de2005).

(...) Mas pensando um pouco na vida... Eu achoque eu sou um pouco feliz, mas a única coisa que não medeixou muito feliz foi a morte do meu menino... Aí nãome deixou feliz... Mas, pelo meu marido, eu não mepreocupo, porque ele morreu com Cristo, graças a Deus.Morreu em casa, na cama dele. Agora, meu menino...Não sou feliz pela morte dele, não. Não me sai dopensamento... O meu menino... bateram muito nele... Ouvidizer que ele tava praticamente morto quando colocaramele em um carro e levaram ele para o Pronto Socorro. E

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no Pronto Socorro ele morreu. Um policial bateu nele. Eesse policial... com o meu menino... já são nove mortesque ele faz de menores. Esse policial dirigia uma casa depolícia, né? Mas, lá só tinha pessoas drogadas, eu acho.Tinha um fulano de tal, chamado Zé, que já morreu, nãofoi ninguém que matou, não, ele morreu mesmo de mortenatural; e o Pequeno, que eu não sei o nome dele, pareciaque ele saiu de dentro do carro e só tinha esses doismesmo.

No fundo, eu não vivo feliz... Agora ele lá deveviver em paz, tá vivo ganhando dinheiro, alegre, sorrindo.Deve viver em paz... Agora, eu também não quero queninguém toque nele, porque o desejo do meu marido é...que Deus o tenha no céu, na presença de Deus, com suasmãos limpas, e graças a Deus. Deus foi indo, tirou dospensamentos dele... O meu menino, às vezes, eu penso...ele, com uma paciência, beijando a mão de Deus, queDeus é o juiz. Eu não tenho notícia desse moço nem nada,que Deus faça sua justiça (Laura, entrevista em fins de2006).

Os sonhos se misturam com os pesares e a depressãoparece envolver os sujeitos lembrantes. As demências que parecemnão ter atingido a memória, atingem o corpo e influenciam diretamenteo modo de pensar e as relações que se têm com as pessoas próximas.É como se um pedido de socorro emanasse de seus corpos cansados.Buscam insistentemente melhorias que, em muitos dos casos, nãovêm. Então, eles choram suas lágrimas vertidas, por seus sonhos nãorealizados e pela possibilidade de melhoria se tornar cada vez maisdistante. Ao ver seu filho e seus netos passarem por dificuldades,dona Laura bem representa os outros sujeitos lembrantes que tentammelhorar a vida de seus familiares. Entretanto, em seu caso específico,ela só consegue prover o básico e, às vezes, nem isso:

Eu queria ter aprendido a fazer alguma coisa assimbordar, costurar isso eu não aprendi. Também, não tive aoportunidade... Agora, também, não adianta mais esperar.

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Não tenho o que esperar mais. Não tem melhora não. Opouco que eu gasto é só pra ajudar meus netinhos aí, pranão ver eles passar muito apuro. Sei que não dá pra muitacoisa, aí eu dou uma ajuda. Meus netos passamnecessidade porque eu ganho pouco, aí não dá pra mantero suficiente... Tem vez que eu vejo algum chorando comfome aqui, dou roupas, porque minha nora, ela não tememprego, meu filho trabalha assim... serviço hoje,amanhã, às vezes... recebe... às vezes, não recebe... Aíaperta...

Eu sou uma mulher que sente mais tristeza quealegria. A gente não consegue o que quer. Eu não tenhomuita felicidade para contar não, você acha que eu tenho?Tenho não. Menino, eu saí da casa dos meus pais, nãotinha nada na vida... fui viver com meu esposo... Nós,também, não conseguimos quase nada... Até hoje, o queeu queria que o meu filho conseguisse era um curso,suficiente... Mas, ele não conseguiu... O outro, que eraum filho muito estimado, alegre, tiraram a vida dele. E omeu salário não dá pra sustentar o suficiente... Aí, tu achaque eu vou viver alegre? Não dá pra viver...

(...) Viver é bom, sofrer não é bom, não (...)(...) Eu tô viva, porque Deus que multiplica, porque

eu mesma não posso fazer nada pra viver. Eu tenho umDeus, que pela misericórdia dEle, Ele me faz viva,conserva as minhas crianças com saúde, meu filho comsaúde, minha nora... É ele quem cuida de nós (Laura).

A esperança de dona Laura está em Deus. Ele é seu socorropresente, embora em sua fala fique demonstrado que esse socorronem sempre é como ela gostaria que fosse. Contudo, fica-nos aimpressão de que a esperança em Deus é uma unanimidade entre osentrevistados. Eles crêem que podem melhorar suas vivências a partirde suas atuações e com a permissão de Deus. Muitos deles têm sofridodemências, depressões e apatias. Muitas de suas doenças sãoconsideradas incuráveis pela medicina moderna, mas elespermanecem com sua fé em Deus como alicerce a partir do qualestabelecem a busca para uma vida melhor.

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2.3 O Velho, a Vida e o Mundo

2.3.1 Ficção e deslocamento

Falamos muito da questão territorial, e junto vem aterritorialidade, outras perspectivas dos vários saberes ligados aosujeito, sua terra, sua especialidade, sua identidade. Há uma certavinculação entre a perda da especialidade do território e a perda oumudança de certas práticas culturais, certas identidades. Percebemos,nesse contexto, a luta pela retomada da terra e, ao mesmo tempo,uma retomada de algumas tradições.

Há uma relação direta entre tradição e tradução. As letra“i” e “u” diferenciam as duas palavras que são provenientes da mesmaraiz: tradição, tradução e traição.

A tradição não se perde no passado, assim como amemória, ela não é estática. Ambas são móveis. A tradição não éalgo instalado no passado imóvel. Ela se recria, transcria, restitui etransforma, é por isso que ela se mantém.

Quando falamos de tradução lembramos que aperformance oral não pode ser traduzida em sua totalidade, ao mesmotempo pode ser repetida, pois é passível de reprodução. Sendoreiterada, transmissível, transportada. É a transcriação dos atos etraduções que fazem a tradição permanecer.

Leda Martins (2006) afirma que a tradução dos discursosorais são constituídos de dupla e simultânea performance e contínuatransfiguração. Segundo Martins, existem dois momentos em que atradução se tornou traição e esses dois estão ligados aos“descobridores”. Nos escritos de Cristóvão Colombo e Pero Vaz deCaminha às suas respectivas coroas, vêem-se dois exemplos clássicosde tradução como traição, pois eles não entendem nada do que ospovos nativos falam, mas traduzem suas falas afirmando que elesdisseram algo e escrevem esse algo. Ou seja, há a superposição davoz do “descobridor” em relação à dos nativos, e mais, o discurso

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produzido que enseja um diálogo é tão somente a voz do“descobridor” e a aferição ao outro de um discurso que não éverdadeiro, mas é tornado como tal, de forma oficializada.

A tradução dos relatos orais, em muitos casos, não podeser “fielmente” executada, não apenas pelas nuances da linguagemoral, mas pela imprecisão da escrita em demonstrar tonalidades,tempos da fala e significações dos olhares durante o discursoproferido. Por isso, neste momento em que nos propomos a trabalharcom ficção e deslocamento, gostaríamos de pensar a transcriação datradição como uma forma de tradução. A tradição em todo e qualquersuporte que se instale é sempre dinâmica, não é imóvel. É como umpergaminho que desenrola o passado e o instala para nós nas váriastemporalidades do presente em que nós habitamos. A tradução, porsua vez, desenrola o pergaminho, no mesmo duplo vetor, tanto dopresente aos pretéritos, quanto da postulação de si mesma comopresente e como futuro.

Alguns dos sujeitos lembrantes traduzem bem o que sefez tradição nas florestas da Amazônia acreana. Eles são capazes deidentificar nomes bonitos dos seringais, nos quais moravam osseringalistas ou os seus gerentes, e os nomes nem tão bonitos dascolocações, em que viviam os seringueiros.

Olhe, eu conheci muito seringal... tinha um monte,tudo com nome bonito... era Novo Brasil, Bom Destino,Nova vista, Catatiá, Bom Jesus, Liberdade, SantaCândida, Igualdade, Cachoeira, Independência,Mauritânia, Lusitânia, Realeza, Boa União, Bela Rosa,São Luiz do Mamuriá, Esperança, Quaquetá, Floresta,Panorama, Glória, viche... um monte de seringal...(Raimundo Martins).

Não foi apenas seu Martins que traduziu esses nomespomposos em suas falas, outros idosos também o fizeram econtribuíram para aumentar a lista dos nomes dos seringais. Eles

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citaram vários nomes, dentre os quais, podemos destacar alguns como:Seringal Novo Tabatinga (Nena), Seringal Rio Novo (Zacarias),Seringal Braça, Seringal Novo Catete, Seringal Filipinas (Ivete),Seringal Porongaba, Seringal do Sacado (Francisco), Seringal FicaBem (Raul), Seringal Triunfo (Raimunda).

Atentando para o relato dos idosos, percebemos que onome dos seringais normalmente traduziam expectativas de boaquerência e de coisas agradáveis aos patrões. Alguns dos nomes queaparecem nos relatos são nomes de embarcações de grande porte quenavegavam pelos rios da Amazônia no início do século XX, como oLusitânia, Mauritânia, Realeza. Outros, expunham ares de grandezacomo Triunfo, Novo Catete, Glória, Novo Brasil, Independência e,ainda havia os seringais que receberam seus nomes em homenagema algum santo ou a alguma situação de destaque na floresta.

É como se as sedes dos seringais precisassem ostentar agrandeza imponente a um local distante das cidades, mas queprecisava se mostrar valoroso e de grandiloqüência em detrimentodas condições de vivências nele estabelecidas. Assim, forjavam-sejá no nome do local onde se morava, os pontos que anunciavam,denunciavam, traduziam e traíam os ambientes em que se vivia.Patrões e empregados estavam separados não apenas pelo jeito deviver, não tão somente pelas relações estabelecidas de mando eobediência. Essa situação de separação e imponência de um emrelação a subserviência do outro é possível de ser avistada mesmonos nomes dos locais onde eram estabelecidas as moradias.

Os nomes das colocações, nas falas de seu Martins, “tinhaum montão de colocações”, dá a entender que dentro das posses dealguém maior, ou alguém em situação mais privilegiada, existiam ascolocações menores e menos privilegiadas, que faziam parte de umalgo maior. Até no nome essas colocações eram menos favorecidas.Ao continuar seu relato sobre os lugares que conheceu, seu Martins,em uma seqüência que para ele pareceu lógica, primeiramente,nominou os mais importantes: os seringais; em seguida, nominou“um monte de colocações”:

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e tinha um monte de colocações em cada umdeles... era Telheiro, Refugo, Café, Limoeiro, Rabo dabesta, Bufador, Feijão Duro, Arraial, Bambu, Difícil,Gavião, Laranjeira, Limão, Ponta da Terra, Maloca,Samaúma, Alegria, Centrinho e Quatipuru... e muitasoutras... era lá que nas colocações que os seringueirosmoravam e o dono do seringal, ou então, o gerente,morava na Sede do Seringal...

Seguindo linha de pensamento próxima a de seu Martins,os idosos citaram vários nomes de colocações que conheceram ounas quais viveram por algum tempo. Colocação Praculá, ColocaçãoJaguari (Nena), Colocação Baixa Verde (Ivete), Colocação Pedrinha(Francisco).

Os nomes das colocações eram muito variados enormalmente estavam relacionados a frutas e fruteiras como: Café,Limoeiro, Laranjeira, Limão. Algumas colocações tinham nomes deárvores nativas ou de situações geográficas que as distinguiam dasdemais, como Samaúma, Baixa Verde, Pedrinha, Ponta de Terra.

Essas vivências dos moradores das colônias amazônicastambém se constituíram quando da vinda para a cidade de Rio Branco,onde estabeleceram moradia e começaram a nominar e a nomear osbairros onde vivem atualmente. É certo, entretanto, que nenhum delesfoi oficializado pela Prefeitura. Em seus relatos estão contidos nomescomo Palheiral, dado a uma área de terra que antes de ser ocupadaera cheia de palheiras; Pista, por causa da pista de pouso do antigoaeroporto Santos Dumont; Aeroporto Velho, por ter se constituídona área do antigo aeroporto mencionado. Esses e outros relatostraduzem a exposição do pensamento desses sujeitos lembrantes,pensamentos esses que estão abarrotados das tradições que essessujeitos têm como suas, ainda que inconscientemente. E isso os faztrair a si mesmos pela proposição de suas falas refletir quase queincisivamente seu pensamento. Foi o que ocorreu em relação ao nome

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da localidade chamada João Eduardo, que deveria ser chamada deNova Bahia; e depois, mudou de nome para Boa União; e, para agradaros políticos, teve o nome de um senador provisoriamente posto nalocalidade; mas, dias depois, o nome do senador foi refutado e obairro voltou a se chamar João Eduardo (Lima, 2007).

Nessas interações do velho com o novo, do passado como presente, percebemos que a tentativa quase desesperada deidentificar o local onde se vive com o local de onde se chegou, é umaconstante nos discursos proferidos pelos sujeitos lembrantes. Elesestão ávidos por um passado cristalizado na memória, que em lápsosde tempo, parecem ainda permanecer igual como era no momento dasaída. Quando começam a relatar, é como se viajassem rumo ao queera, como era, não presentificando o passado mas preterizando opresente de forma a parecer que lá tudo era bom, era legal, valia àpena, era melhor que o estar presente. Contudo, nas fissuras damemória, aparecem interlocuções de que aquilo que foi vivido,narrado como se estivesse sendo novamente vivenciado, estar nopassado, nessas linhas díspares da memória, novamente eles se“afundam nos relatos” e continuam a jornada do “bom e do belo”.Como relata Ivete:

Sabe o que me lembro? Quando eu vim pra cá omato cor verde, sabe? Eu me lembro de quando eu moravano mato, lá no seringal, né? Porque aqui só tinha mato,mesmo... era só o matagal mesmo... era tudo verde...campo verde, assim... Sei lá... Aí eu me lembrei quandoeu vim pra cá, o matagal doido, né, no campo todo... Melembrei quando eu morava lá, porque a gente respiravaaquele ar puro, de fora da cidade... daquela poeira decinza, fumaça de carro, desse tipo de coisa... Então, émuito bom... Quando a gente chegou aqui, que era umlugar novo, era bem fresco, bem à vontade, sabe? Campoverde, mato, sabe?

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Relatos como o de Ivete não são raros. Raros, porém, sãoos momentos que tiramos para ouvi-los, sonhar junto, imaginar oque está sendo verbalizado. Desta feita, há uma pergunta que estápresente quase sempre nos questionamentos sobre as relaçõespropostas na memória com o cotidiano: por que não se contam maishistórias? Talvez não sejam as histórias que estejam em declínio,mas a troca de experiências.

As vivências e convivências da atualidade estão cada vezmais reguladas pelo tempo cronológico que atropela a tudo e a todos.Nesse mundo, onde somos bombardeados por diversas informações,e maior ainda o número de coisas a fazer, em períodos de tempo cadavez mais restritos, acabamos por deixar de lado a troca deexperiências. E por não rememorarmos várias situações, essas ficam“cristalizadas” e “adormecidas” na memória.

As histórias são contadas em menor quantidade que emtempos passados ou, pelo menos, em menor riqueza de detalhes ereconstruções a partir da lembrança, porque é cada vez menor onúmero dos que se interessam por elas.

Existem dois tipos de narradores: os que vêm de fora enarram suas viagens e os que ficaram e conhecem seus conterrâneos,suas terras, e as relações pretéritas que se estabeleceram durante asvivências (Bosi, 1994, p. 84). Em ambos os casos, é necessário venceras distâncias. As aventuras vividas podem estar envoltas nodistanciamento espacial ou no distanciamento temporal. De ambasse tira significação das relações sócio-culturais produzidas. Porque“o narrador tira o que narra da própria experiência e a transforma emexperiência dos que o escutam” (Bosi, 1994, p. 85). A fala do seuMartins está eivada dessas experiências:

Olhe, eu vou lhe dizer como foi que eu conheci aMundica [esposa], mas nem as minhas filhas perguntaramisso [nesse momento as filhas param o que estavamfazendo para ouvir o pai]... ela não era bonita não, mas eugostava dela, né? Aí eu vi ela umas duas vezes... então, eufui trabalhar na casa do pai dela, seu Zé Bonifácio... Eu

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trabalhei muito com ele... eu era diarista... Na vida dagente acontece tanta coisa, rapaz... Vou falar uma coisapra você... Tá filmando?... É... a primeira vez que a gentevê a pessoa fica sem graça... se a gente tiver a sorte decasar com aquela pessoa, casa, se não tiver, aí que tá oproblema. Sabe porque que eu vou te dizer? Sabe, a minhaprimeira mulher, ela era pequena, uma mocinha, né? E eume engracei nela... passei 10 anos pra ver ela... no dia queeu vi ela nós se gostemos... Eu tava de viagem, aí eu vi elade passagem... Ela, mocinha, bem miudinha, meninabonita essa... mas, acabou, né? Nós precisamos sair delá... Mas, dez anos depois, tocou de sorte a minha mãe virmorar no mesmo seringal dela, pertinho dela, vice comoé a história? Aí eu vi... Aí, um dia, eu fui na casa da minhamãe visitar ela... nunca deixei de tá perto da minha mãe,sempre tava do lado dela. Aí, fui lá... quando eu chego lá,dô de cara com a menina, ó? [é a primeira vez que todosda casa param tudo só para ouvir]... Aí, eu digo... aí euolhei prali... Aquela menina, quando ela me viu, seengraçou-se pra mim, também. Ali, disse, dona Sebastiana:“Esse aqui é o filho da senhora? Então-se a senhora éminha sogra”. Pensei que tinha sido uma brincadeira., né?Mas, deu certo... Começou. Aí, assim é que se deu daprimeira vez que eu vi ela. E a Mundica, nós se gostamosassim eu comecei a vê ela.... Mas aí, ela morreu... morreujunto com meus filhos... aí eu fui embora... vim pro Acre...Aí eu conheci a Mundica, minha segunda esposa... aí eufui vendo ela lá no Bom Destino, comecemos a conversae tal. Tocou a sorte de trabalhar com o Zé Bonifácio, mas,repara, aí deu certo, né? É assim desse jeito, olha menino...quando a gente começa a gostar, a gente gosta tanto, quea gente gosta até o fim da vida, né? É uma coisa muitodifícil, muito complicada. Eu disse isso pra minha filha,pra qualquer uma pessoa, né? Porque eu tenho experiência,né? Se aí não é experiência que ninguém me deu, eu quetenho. Uma pessoa quando casa, não tem experiência...vai saber como é a vida de casado depois de cinco, dezanos... Tudo é muito novo, né? Agora que tão ajeitandoas coisas.

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Por exemplo... Aí é que você vai entender isso queeu vou falar pra você... você casa com a dona... passa umano, dois, três, quatro... é a mesma coisa de você tá criandoum menino... começa a criar pequenininho e vai crescendo,vai crescendo quando você vê começa a dar trabalho, né?[risos]... É a mesma coisa. Então o casamento é assimdesse jeito, você casa com a mulher, você não vai casarcom homem, né? Vai casar com a mulher, aí você quer tábem, com aquela criatura, trata bem dela – não estoudizendo que é com a sua mulher, mas, muita é assim. Aí,você dá o pé, ela quer a mão... aí, depois, o bicho começaa pegar, meu irmão... é verdade, tô lhe dizendo. Então-se,a gente, pra viver com a mulher... mas, pra viver com umafamília, é preciso ter muito cuidado, pra não fazerbesteira... Eu vou lhe contar uma... lá no Amazonas, essaprimeira mulher que eu tinha, morava assim, embaixo, aíum dia eu vinha do roçado, lá... chegando, comecei aconversar com a menina, lá.... Era longe lá de casa...Quando eu cheguei, a mulher já sabia, né?... Ela não mebatia porque eu não achava graça pra ela, porque ela erauma paraibana, com os braços dessa grossura, macetona,uns 70 quilos. Se ela me pegasse, botava debaixo dosbraços dela, me acertava de chinela. Então, eu respeitavaela. Eu não dava muita trela pra ela, não. Quando eucheguei, ela: Ei, Martins, tu num...” – porque foi assim,ela me pediu milho do roçado... Quando eu cheguei, eudei o milho pra ela... Quando eu cheguei, ela disse: “Ei,Martins, tu trouxe o milho pra gente comer canjica?” Eudigo: “Eu não, você não falou nada”. “E como que tutrouxe pra Raimunda?” Já sabia, né?... Já teve quemcontasse, né? Antes de eu chegar, ela já sábia... Então, aíé, cuide, tá no gancho... Aí, o cara pensa que táescondendo, mas, tá nada. Um macaco escondido comum rabo de fora. [Risos]. Então-se é esse o motivo demuita gente se casar e não dar certo, né? (Martins).

Assim como seu Martins conseguiu chamar a atenção detodos que estavam na casa com sua fala, envolvendo filhas, visitantese o próprio entrevistador em um enredo que ora parecia narrativa,ora a reconstrução momentânea de uma hipotética situação, muitos

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outros entrevistados fizeram essa relação do que vivenciaram com o“aprendizado” para o tempo presente.

Atualmente, somos bombardeados com tantasinformações que não temos tempo para “mastigá-las” e “digeri-las”.A comunicação de massa nos torna desmemoriados, são tantas coisasocorrendo ao mesmo tempo, em um ritmo tão acelerado que acabamospor perder ou, pelo menos, diminuir “drasticamente” a faculdade deescutar.

A narração exemplar foi substituída pelainformação de imprensa, que não é pesada e medida pelobom senso do leitor. Assim, a união de uma cantora comum esportista ocupa mais espaço que uma revolução. Anarração pretende ser diferente das narrações dos antigos:atribui-se foros de verdade quando é tão inverificávelquanto a lenda. Ela não toca no maravilhoso, sequer éplausível. A arte de narrar vai decaindo com o triunfo dainformação. Ingurgitada de explicações, não permite queo leitor tire dela alguma lição. Os nexos psicológicos entreos eventos que as narrativas omite ficam por conta doouvinte, que poderá reproduzi-la à sua vontade; daí onarrado possuir uma amplitude de vibrações que falta àinformação (Bosi, 1994, p. 85 e 86).

Como escrito por Ecléa Bosi, corroboramos com aafirmativa de que a narrativa é uma forma de comunicação que seapresenta de forma artesanal. Ela não intenta transmitir a forma “emsi” do acontecido, mas o vai tecendo até atingir uma forma queconsidere boa. Cada narrador susperpõe de forma transparente umanova camada de memória traçada pela lembrança. A turbidez desituações de esquecimentos e rupturas também deixa suas marcasnos afluente evocados para sustentar a narrativa.

Segundo Bosi (1994), na atualidade, não se costumacultivar o que pode ser abreviado e simplificado. A própria históriade curta duração também foi impressa e abreviada, não permitindoque se conte e reconte. Para a autora.

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Todas as histórias contadas pelo narradorinscrevem-se dentro da sua história, a de seu nascimento,vida e morte. E a morte sela suas histórias com o selo doperdurável. As histórias dos lábios que já não podemrecontá-las tornam-se exemplares. E, como reza de fábula,se não estão ainda mortos, é porque vivem ainda hoje(Bosi, 1994, p. 84).

Por essa velocidade tão grande com que as coisasatualmente nos são apresentadas, não costumamos ouvir muito aspessoas, tampouco valorizá-las em seus relatos. Ao ouvir alguémvelho é dar-lhe a oportunidade de receber atenção, através dapossibilidade de vivências que partem da memória, tornamo-lospessoas que renovam em seus corações o ritmo de viver.

2.3.2 Saudades, sonhos e solidão

Muitas pessoas têm-se acostumado a pensar que todas ascoisas devem acontecer de forma rápida e altissonante. Colocam suafelicidade em coisas que são de difícil acesso, distante de suarealidade. Todas essas situações de notoriedade em grandes conquistasse apresentam na perspectiva como algo que não se assemelha aolugar em que se está. É um projetar para além das potencialidades decada um. É preciso descobrir as potencialidades a partir do lugaronde se vive e da maneira como se vive.

Essa busca de felicidade aparece nos relatos dosentrevistados como “rastros” de suas trajetórias de vida. Atos decoragem, receios, gratidão e temperança parecem medir osacontecimentos vividos não com medidas de tempo, mas como amedida de vida (GOUVÊA, 1999). Uma de nossas entrevistadas falasobre sonhos e felicidade:

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Eu não tenho mais sonho, eu penso, mas eu seique melhor pra mim é não existir mais... Se eu fosse boaainda, eu estaria na minha casa, cuidando da minha casa,do meu quintal, cuidando das minhas plantas e hoje nadaeu faço, os filhos é que agora é quem cuidam de mim.

Eu não sei se eu sou mais feliz não. Porque euvivo todo tempo dependendo das pessoas, de tudo... aípronto... Se não dependesse mais dos outros eu era muitofeliz, olha... Eu era feliz antes de ter essa doença. Eu tenhotanta saudade que eu trabalhava tanto e hoje vivo parada.Às vezes, pra me levantar daqui, é preciso o pessoal mesegurar, me levantar (Nena).

Mas nem todas as memórias de felicidade se dão em meioa reminiscências, várias delas parecem interagir presentificando opassado:

Sou muito feliz, porque eu tenho Deus na minhavida. Se eu penso em fazer alguma coisa, por acaso... medirige, me ajude eu fazer aquilo... Se for, Ele mesmo quemande... Você sente aquele esforço pra fazer... sua mente...seu coração... Não sei... Como ficar batendo naquela tecla,a gente vive... Mas, Deus que nos dirige... É bom demais...Eu sou crente há trinta anos... mais de trinta anos... E soufeliz até hoje. Toda vida o meu sexto é de alegria...

Estou feliz, não tenho tristeza comigo e nemperturbação...” Minha filha, tudo ela se perturba. Crentenão se perturba com nada, entrega tudo nas mãos de Deus:o nosso alvo, os nossos problemas, que Ele esta aí praresolver todos eles (Nenê).

Percebemos nestes trechos que se repetem – com palavrase situações diferentes – nas vozes dos outros entrevistados. A relaçãodireta de perdas consideradas significativas, sejam elas de saúde, deparentes ou de perspectivas de vida tornam os idosos mais tristes, eeles próprios dizem que não são felizes. O que percebemos é que em

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quase todos esses casos não houve um aprendizado com a situaçãoou uma interpretação homilética para ser aplicada ao cotidiano dopresente preterizado; é como se eles ainda “remoessem” as suasinquietações sem saber o que fazer com elas. No momento em queelas estão adormecidas na memória, existem as vivências cotidianase relacionamentos normais a qualquer ser humano, mas ao lembrar,esses são tomados de profunda tristeza – alguns de mágoa – e nãoconseguem transpor as barreiras por essas mágoas estabelecidas:entristecem-se e deprimem-se – involuntariamente.

Por outro lado, percebemos que os sujeitos mais alegres,mais “extrovertidos” também passaram por perdas, contudo, essasparecem ter-lhes proporcionado menos danos que aos outros. Quedizer de tudo isso? Uma possível explicação pode ser o ato de essaspessoas assumirem a perda, ainda que com tristeza, mas buscarem“tirar uma lição” com o ocorrido. Eles afirmam não poder mudar opassado, mas podem agir buscando compensar essa perda com oprosseguir da vida. Para eles, ainda que inconscientemente, a perdafoi real, mas há a necessidade de continuar vivendo. E eles vivem.

Após as lutas e conquistas adquiridas por esses sujeitos,sejam elas sociais, materiais ou sentimentais, eles demonstram umcerto cansaço ao chegar na velhice. Nas entrevistas, ficam claras asmarcas produzidas e adquiridas durante a vida. E, no relembrar essasmarcas, eles buscam a imagem acústica de seu próprio “eu”, jáproduzido, estereotipado, construído e reconstruído nas fissuras damemória.

Essas marcas são como rastros na trajetória de vida decada um. É como se a fluidez do tempo os fizesse transitar na memóriacomo em uma escada que leva cada vez mais para o alto. Essacaminhada é ação ousada e motivada a desvendar o mistério interioronde existem muitos ganhos e coisas boas vividas, mas tambémexistem perdas a serem encaradas como problemas insolúveis oucomo instrumento de crescimento em busca da felicidade.

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Eu realizei muitos sonhos, mas o mais importantesonho que eu tinha, ser funcionário [público] (Zacarias).

Os sonhos que eu não realizei são muitos, pelomenos até agora eu tenho o sonho de fazer a minha casa enão consegui ainda (Laura).

... eu tenho vários sonhos que já foram realizados...Por exemplo, já minha filha, que eu tinha a maior vontadede um filho, consegui... outro, era de ser enfermeira,também consegui... Outro, foi conseguir a minha casa,que eu vivia de aluguel aqui aculá (Ivete).

Eu realizei todos os meus sonhos... por exemplo,eu quero fazer uma casa, tô com dois anos construindo.Aqui, nós começamos, mas a casinha ainda não estáterminada, ainda falta. É um sonho. Mas, vou realizar,gradear, olha... (Raul Isaías).

Eu não sei falar de sonho, não. Eu não sei nemexplicar. O sonho que eu tinha de ser sadio, mas dou graçasa Deus... Eu queria ficar bom da hanseníase, e no dia quea doutora me deu alta do tratamento, eu dei tantoagradecimento à doutora que ela chorou. Mas, eu aindasonho, sonho em realizar a construção de uma área aquina frente da minha casa... esse é um sonho que eu aindanão realizei (Raimundo Martins).

Olha, hoje eu sonhei com uma pessoa que eu nuncatinha visto. Sonhei que ela vinha hoje. E era você [opesquisador]. Eu sonho muito. Eu tenho é sempre...(Antônia).

Grande parte dos sonhos dessas pessoas estão diretamenteligados a situações vividas – ainda que na psiké delas – e a realizaçõesalmejadas, outros, estão envoltos em sensações inexprimíveis. É ocaso de Dona Antônia, que sempre sabe quando o pesquisador vai

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em sua casa e avisa a toda a família que ele vai chegar, mesmo queele não tenha marcado hora, nem tenha avisado de sua pretensa visita.Sonhos não precisam de explicação. Muitos deles sãoincompreensíveis. Mas todos são reais, ainda que na ficção.

Tantas vezes os sonhos se confundem com a saudade.Mesmo acordados, ou no pensar noturno entre o deitar e os momentosem que o sonho não vem. As lembranças e o pensamento voam longe.Não para o desconhecido. Mas para o conhecido. Ainda que esseconhecimento seja de um lugar que já não é como o sonhado. Deuma situação que já não pode se repetir pela debilitação do corpofísico. De um tempo que embora seja fluido, cronologicamente estádistanciado do atual, por mais de meio século. Assim, esses idososse põem a dormir e muitos deles sonham tal qual o seu Raul:

A saudade é grande... quando eu vou dormir, eupenso em tanta coisa... começo a pensar coisas boas, edurmo... só isso... Me lembro do Ceará, no tempo que omeu pai era fazendeiro... boi... aqueles campos... Tudoaquilo já morreu, mas, pra mim, ainda me vejo montadonum cavalo... Eu sonho correndo tudo isso, na beira domar... tomando banho... até já subindo em coqueiro... eujá sonhei subindo pra derrubar côco... Nós tínhamos sitio...mas, agora não temos mais... Tudo eu sonho... Eu pensoem um dia voltar pra lá... tem que me enterrar lá, juntocom meu pessoal, com minha família, com meus avós,bisavós, tataravôs... Todos estão enterrados lá... meusirmãos estão enterrados lá... (Raul Isaías).

Saudades e sonhos permeiam as memórias que teimamem se fazer presentes nos discursos desses sujeitos lembrantes. Agratidão demonstrada por eles em uma conversa amigável de interessemútuo parece levá-los a viver novamente os momentos que marcaramsua alma.

Ao ouvi-los, percebemos que os idosos não sãonecessariamente sábios, mas muitas vezes, seres solitários. Ao ouvi-los, damos-lhes a chance de se descobrirem ou se redescobrirem;

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ouvindo momentos de sabedoria, piadas, casos, histórias de sua vidapassada que se apresentam presentificadas na lembrança.

Muitos desses velhos se sentem sós, não por almejar fazerda vida uma excelente companheira, que faça estar em harmonia como universo, mas amargurados pelo vazio enrugante e cheio de barreirascriadas – algumas dessas barreiras foram criadas pelas pessoas a quemesses velhos querem bem.

Não quero sair daqui. Quando eu saí da CadeiaVelha, eu disse pro Adolfo: “Meu filho, eu vou pra lá,mas, de lá, só pro São João Batista”. Eu gosto, já meacostumei, fiquei viúva, meus filhos já casaram tudo... eeu fui ficando... fui ficando... Aí eu nunca quis sair daqui.

Aí morreu a Ivoneide, o Antônio, o meu marido.Pois era... Eu sei que aí foi... foi... foi... morreu um outrofilho meu, o José... parece que com vinte e seis anos... Elese formou no colégio tinha um ano, quando se formou játava exercendo a profissão... quando morreu. Daí, eu fuificando só... fui ficando só... e foi indo... e foi indo... Edepois que ele faleceu, aí eu criava um neto, quando elefaleceu, foi preciso eu entregar esse neto pra mãe dele,porque ele já tava com outro primo praticando coisa ruim.Aí eu disse: “Quero que leve, eu não tenho mais força...”Aí ela levou... e eu fiquei... aí, eu parti pra ficar sozinhamesmo... Aí o Raimundo disse: “Mãe, vamos vender essacasa?” “Não é porque o meu filho faleceu, que eu vouvender essa casa. Eu fico”. Depois, lá morreu a outrafilha... A outra que morava lá no bairro João Eduardo. Elamorreu, eu não sei de que ela morreu... Tá com cinco anos.Aí eu disse pro Raimundo: Não, eu não vou sair. Eu ficoaqui”. Aí eu fiquei aqui.

Até que eu fiquei aqui e os filhos foram saindo... eeu fui ficando... e fiquei sozinha... só com Deus (Nena).

Nena tem a companhia de alguns dos poucos filhos queainda vivem, mas já não os reconhece. Sofre de Alzheimer. Antessofria de tristeza. Uma mulher feliz, de bem com a vida, que trabalhou

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alegremente durante anos, não suportou o peso de ter que enterrar omarido, vários filhos, e ainda ter que conviver com a depressão, asinúmeras doenças e a demência que a deixou paralisada na cama. Opeso foi grande demais para ela.

Outros idosos, no entanto, demonstram ter a solidão comocompanheira em momentos de harmonia e reflexão interior, é comose desejassem estar só com suas conquistas, emoções, com as belezasacompanhantes de um passado que ensinou a crescer e a enveredarpelas marcas vivas dos rastros na estrada percorrida.

O que eu me orgulho de ter feito é ter conseguidocriar meus filhos sozinha... meu ex-marido saiu de casafaz dezesseis anos... aliás se eu pudesse voltar atrás, nuncatinha me casado... Eu não me arrependo dos meus filhos,mas me arrependo do casamento que tive... casei com apessoa errada... e não penso em me casar nunca mais...porque Deus me deu um esposo, um casamento, mas comoele viu que tudo o que eu passava, eu não merecia e tirouporque que ele me libertou do sofrimento. Por que eu vouvoltar pra procurar a mesma coisa?... Meu casamentodurou 32 anos, mas não foi feliz... não tinha respeito...não tinha fidelidade... como é que tem um casamentofeliz?... O casamento acabou porque não deu mais, hojenós somos bons amigos, ele entra aqui, ele sai, a genteconversa, não passa de um amigo e tem muita mágoa. Eunão perdôo ele nunca... um dia ele chegou em casa e medisse pra não tocar nele porque ele tinha nojo de mim(choro)... ele sentia nojo... ele saía com as putas por aí, eeu não dizia nada (pranto)... ele saía com os amigos,arranjavam mulher, e eu sempre perdoei... mas, ele disseque tinha nojo de mim... e isso eu não consigo perdoar(interrupção da entrevista por pranto de pesar profundo)...Ele vem aqui... vê os filhos dele, mas não toca em mim...eu não deixo... e eu não toco nele, se ele tem nojo, eununca mais deixei ele tocar em mim... e nós nosseparamos... foi o fim.

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A única coisa de bom que ele me deixou forammeus três filhos... eu sinto orgulho de meus filhos...orgulho de mais uma etapa na vida vencida, acabou minharesponsabilidade na vida com eles, já estão todosencaminhados na vida e o que não quiser fazer nada, aquiloque Deus determinou que colocou na minha mão, aquelaresponsabilidade, aquele compromisso, eu lutei muito...Lutar é caminhar na vida... eu fiz meu papel... agora cabea eles escolher seguir o bem ou o mal... Agora qualquerum escolhe o que quiser porque eu não posso maisdeterminar se vai pra lá ou vai pra li, ou vai pra direita ouvai pra esquerda, vai pro lado ruim se quiser... Porque euorientei bem, criei, fiz tudo pra eles estudarem, terem umbom emprego, terem uma profissão... meu filho mais velhoé policial militar, é casado pela terceira vez, mas agoracasou no papel... minha filha tem dois filhos, mas aindanão casou... meu filho mais novo casou outro dia, eleengravidou uma menina, aí o pai dela chamou ele lá praconversar, quando ele voltou já tava de aliança no dedo edata do casamento marcada... (Raimunda)

Tantas vezes esses homens e mulheres choram ao recordardo medo, da dor, da incerteza, da insegurança, da lágrima vertida.Alguns deles se afastam do mundo, com a desculpa de estaremcontemplando algo, ficam horas desenvolvendo diálogos e relaçõessociabilizantes que só ocorrem dentro de sua mente.

Às vezes, quando fico sozinha lá na minha cama,eu penso assim [nos meus netos]... porque eles vão dormire as crianças, eles não se embrulham... Menino não seembrulha. Aquele maiorzinho, amarelinho, que tá pra aula,dorme comigo. Aí eu, de vez em quando, embrulho ele...ajeito... e os outros... Eu fico pensando: “Será que elesestão embrulhado ou estão descoberto? Que ali, se a gentenão embrulhar, eles ficam gelado mas não se embrulham...Se mexe muito, né? Aí eu fico pensando em cada um, maseu não posso fazer nada... A porta lá fica trancada e tudono frio só cuido do que tiver comigo.

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Eu durmo pouco, muito pouco... Eu penso em mim,penso na minha família... Eu penso na irmã aqui, tambémem Acrelândia... Ela é mais velha do que eu, vive sozinhae Deus... Eu tenho medo de acontecer alguma coisa comela, porque o mundo tá cheio de gente maldoso, né? Mas,eu entrego ela todo dia na mão de Deus, pra Deus cuidardela... Até agora, graças a Deus, ela vai bem (Laura).

A maioria desses idosos já não tem mais quem os ouça.Muitos deles são rememoradores tristes. O número de memóriastristes expostos através da verbalização das lembranças é muito maiorque o das memórias felizes. A diluição em palavras de momentosque para os familiares ou pessoas que já conhecem as históriascontadas parecem enfadonhos, ressoa como realizações, dissolvedores, traz alegrias e divertimentos, até revive amores nos velhosque têm um interlocutor interessado em suas histórias.

Vale a pena ouvi-los e experienciar suas vivências, aindaque no campo dos sonhos acordados. Muitas são as reminiscências,tantas outras as recordações autobiográficas, as aspirações de feitose quase feitos que emergem do turbilhão de memórias que seapresentam e representam querendo sair para serem vistas, ouvidas,choradas ou simplesmente vividas.

Pudemos constatar em alguns lares os velhos sendo vistoscomo caducos, “lelés”, “à toas”, alguém que “sempre conta a mesmahistória”. Por isso, muitos resolveram se calar, e pouco falam. Falamapenas o que consideram essencial no começo, quase monossilábicos.No entanto, a partir do terceiro encontro com o pesquisador, quandoeles percebiam que havia alguém disposto a ouvir e, mais que isso, ainteragir, proporcionaram informações muitas, somente possíveis dereproduzir em forma de corpus pela transcriação das entrevistasgravadas.

Todos esses velhos pediram discrição sobre um ou outroassunto. Por isso, esses “segredos” não se encontram no corpus deanálise. Mas não podemos passar à frente em nossa análise sem

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expressar a existência deles. A observância não está em trair ao quefoi pedido sigilo. Mas em traduzir ao que foi pedido sigilo. Pequenoserros cometidos, pecados cotidianos que tiram o sossego de algunsdeles: seduções, lascívias, injúrias, bebedeiras, chocarrices e amoresproibidos. Coisas do cotidiano, que foram informadas ao pesquisadorem confiança.

Se estamos falando de saudades, sonhos e solidão,podemos acrescer mais um “s”: segredo. Segredos que morrerão comesses idosos ou com as pessoas em quem confiaram. Não é possívela tradução de suas falas, seus olhares, suas apreensões, seus temores,suas decepções por não terem sido mais corajosos. A própria traduçãoseria uma traição a esses que ousaram romper com a tradição. Nasconversas de despedida, nas intercessões de falas, nas ausências defamiliares, nas lágrimas de confiança. Eles punham para fora aslembranças que tanto eram sufocadas pela memória. Lembranças queeles próprios não aceitam como suas, como valorosas, no sentido devalor e valer.

Sonhos, saudades, solidão e segredos vêm ao seu encontrocomo um monólogo que um dos sujeitos lembrantes permitiu quefosse citado, embora escolhêssemos, voluntariamente, não identificá-lo. Aqui vamos expor algo que não consta no corpus, mas que foidito, e, meses depois, foi permitido que seu conteúdo fosse analisado.Um dos sujeitos lembrantes, pessoa pacata, recatada, não dada a falarpalavrão, proferiu a seguinte sentença com um namorado de umafilha que queria levar a garota para passear:

Olha rapaz, o que você tá querendo com minhafilha? Você tá pensando o quê? Eu quero deixar bem claroque priquito custa caro... É isso mesmo... hoje em dia ocara tem que ter com que sustentar um priquito... quemnão tem como sustentar, bate punheta... Se for pra ficarcomendo por aí, pra comer priquito custa muito caro...então, não adianta só você sair com minha filha e ficarcomendo ela, você tem como sustentar ela?... Porque vocêquer só comer!!!... Não, porque por aí o pessoal só quer

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dar... a gente cria uma filha... cuida dela... aí, ela cresce...aí, todo mundo quer comer o priquito dela, mas ninguémquer cuidar dela... minha filha já se juntou e separouquatro vezes... Vocês só quer comer ela... tem quesustentar também... oras.

Relatos como o acima reproduzido demonstram que osamores e os temores estão envoltos na memória. Amores e temoresestes, que em muitos casos permaneceram guardados na memóriadurante algumas décadas. Estes relembram algumas situações vividase outras nunca vivenciadas. Anelos de possibilidades que ora seenvolveram em sobriedades, ora se fizeram intemperança. Mas quevaleram a pena. Mesmo que por um único encontro ao pé damangueira com aquele rapaz dos olhos azuis, que por semanasfustigava a jovem casada. Ou pela fuga com aquela moça bonita comquem o pai não queria deixar casar. Tradução, tradição, traição. Amesma raiz para palavras distintas em sua essência, mas próximasem seus fazeres cotidianos. A linguagem e a identidade não permeiamapenas os corpos, mas as interjeições e proposições dos sonhos, dassaudades, das solidões e dos segredos.

As saudades dos tempos ternos trouxeram à tona segredosque poderiam ter morrido com eles, o que não fizeram porqueapareceu alguém disposto a ouvir. Para alguns deles, é como se avida continuasse apenas nas conversas de fim de tarde, ou no cuidarde suas plantinhas. A solidão parece tomar forma mais intensa quandoo sol fica a pino e quando as luzes das casas se apagam, o silêncioparece causar pensamentos e devaneios muitos em seus corações.

Alguns desses velhos diuturnamente ficam reclusos emseus lares. Solitários, introspectivos, sem falar muito, porém, commuito a dizer: apenas necessitando de alguém disposto a ouvir. Outrosdeles preferem não se entregar às tristezas e aos pesares, preferempassear, como seu Francisco, seu Raul e seu Zacarias, que quase todosos dias saem para ficar conversando com os vizinhos de mesma faixaetária, ou de manhã cedo ou de tarde, próximo ao pôr do sol.

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2.3.3 De donas de casa a chefes de família

Neste momento, propomo-nos a estudar de forma maisespecífica as relações de gênero, partindo do foco principal ensejadopelas mulheres lembrantes. O intento que se faz presente é a análisedas conjunturas que levam homens e mulheres a questões que vãoalém dos aspectos físicos e biológicos, de macho e fêmea. O conceitode gênero aqui apresentado foi proposto por Gouveia e Camurça(2000, p. 12), que afirmam que “o conceito de gênero se refere apenasàs pessoas e às relações entre os seres humanos”.

Na identificação das relações entre homens e mulheres, apreponderância para tomada de decisões ou atribuições sócio-culturaisnão deve estar formulada apenas no corpo, mas no todo que rege oser – identidades, desenvolvimentos psicológicos, comportamentos,conjunturas de atividades.

As relações de gênero vão muito além do corpo físico eda sociedade, elas estão presentes em vários lugares de sociabilização,inclusive na linguagem utilizada. Linguagem essa que presenciamosnos discursos dos sujeitos lembrantes. Paul Thompson (2002),criticando a imposição das situações de masculinidade e feminilidadeimpostas à psikè das crianças, desde a mais tenra idade e o simbolismocultural inconsciente do gênero que é embutido na linguagem, afirmaque:

Imediatamente a partir desses momentos iniciaisdo desenvolvimento da consciência social, a meninapequena aprende que é uma fêmea que ingressa numacultura que privilegia a masculinidade e, por isso,privilegia os homens, exatamente como na linguagem aforma masculina tem sempre prioridade como regra, e aforma feminina só entra como exceção. Para assumir umlugar positivo no mundo da cultura, ela tem que lutardesde o início; mas é uma luta desigual (Paul Thompson,2002, p. 203).

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Gouveia e Camurça (2000) explicitam as relações degênero como componentes da constituição das identidades, afirmandoser na subjetividade de cada ser humano que se constroem assimilaridades e diferenças. Em uma interação dos homens e mulherescom a sociedade é que se constroem, mentem ou modificam asrelações de gênero, os símbolos, a maneira de falar e a subjetividadede cada um. Para Gouveia e Camurça:

Um dos elementos fundamentais que nos traz oconceito de gênero é a idéia de que, transformar o modocomo há muito tempo se vem organizando as relaçõesentre homens e mulheres nas sociedades não ésimplesmente trocar os lugares de quem domina e dequem é dominado, nem é achar que se vai acabar commulheres e homens e ficar tudo uma coisa só.

Na verdade, o que precisamos acabar, totalmente,é a idéia de que diferenças nos corpos – sejam elassexuais, raciais ou de idade – justifiquem desigualdades,opressão, discriminação e injustiça.

Podemos ser bem diferentes, e na verdade somos,não há no mundo duas pessoas que sejam idênticas, maso que somos e o que fazemos tem, e deve ter sempre, omesmo valor” (2000, p. 34).

As autoras atuam enfocando as idéias de gênero a partirdos estudos culturais, enfocando histórias de vida. É perceptível ofato de alguns estudiosos não aceitarem o estudo de trajetórias devida como sendo válido para os estudos culturais. Talvez essa faltade aceitação seja dada pelo comportamento irrestritivo de algunsaventureiros que, ao se passarem por pesquisadores, utilizaram deforma tolhedora e cerceante os estudos das trajetórias de vida,relegando-as a uma ortodoxia de “história vista por baixo”. Nãoensejamos aqui desacreditar a historiografia francesa do último quarteldo século XX, mas asseverar a má utilização dos conceitos e métodosda historiografia nova por pessoas que sem compreender os ideais

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de Les Annales, muito influenciaram para o descrédito dos estudosdas histórias e trajetórias de vida que têm suas bases muito além daSorbone ou de sua Escola de Altos Estudos, suas bases vão deFrankfurt a Cambridge, de Praga a Yale, e, destas para o mundo.

Dentro dos estudos culturais, neste momento,pretendemos enfocar o fator Gênero que se mostra altamenteenquadrado a essa finalidade. Especificamente trataremos do gênerofeminino, por perceber as nuances comportamentais e os preconceitoscom que as mulheres entrevistadas se manifestaram, principalmentepor elas serem fragilizadas e menos valorosas, na visão dos sujeitosque as fragilizam e se consideram de maior valor.

O estudo da história de mulheres é uma rupturacrítica com uma História que perpetrou o silencio emtorno das histórias pessoais. O silêncio criado quando osque são objeto da pesquisa têm pouco ou nenhum poderna construção do conhecimento (...) os sem-voz foramsilenciados sem consentimento. São pessoas nãoescutadas porque seus pontos de vista são tidos comonão importantes. Calados devido a um estigma social oustatus inferior: pobres, mulheres, crianças, deficientes,homossexuais, minorias étnicas, religiosos e um eternoetc. (GARCIA, 2004, p. 5).

Nos discursos produzidos pelas mulheres lembrantes,percebemos que, no início de suas vidas conjugais, quase todas elascuidavam da administração da casa, enquanto o sustento do lar eraproporcionado pelo marido.

Mulheres e homens tinham papéis diferentes. Os homensexerciam o papel de mantenedores e provedores do lar perante asociedade em que conviviam, administrando as “negociações” como patrão, comprando comida, vendendo borracha e outros e fazendoas viagens necessárias, para vilas e cidades, com o intuito de resolveralgum tipo de necessidade que se apresentasse, a mulher, cabia cuidarda casa, dos filhos, da educação13, administrar as coisas existentes

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em casa, além de pescar, coletar, fazer atividades que proporcionassemalguma renda para a família14.

Ao estudar questões de gênero Carla Queirós comentacomo eram as relações que envolviam as atividades femininas dentroe fora de casa. Ela escreve sobre o alto-alentejo, mas sua descriçãocabe muito bem às relações produzidas nos seringais acreanos emdécadas passadas, conforme as lembranças descritas pelas mulheresdo Terceiro Eixo em Rio Branco.

A diferenciação sexual era visível desde logo naformação familiar, isto é, os homens eram responsáveispelo sustento da casa e as mulheres pela suaadministração. A mulher desempenhava um papelambíguo nesta sociedade tradicional, na medida em quemanifestava total subserviência ao marido perante asociedade exterior, mas assumia o controle e autoridadeno seu reduto familiar. Com o casamento adquiria umestatuto proeminente, totalmente oposto aquele que lheera conferido enquanto solteira na casa de seus pais. Umavez casada, a mulher tornava-se totalmente responsávelpela administração do lar, que no desempenho das lidasdomésticas, na criação dos filhos, na resolução, nasquestões inerentes ao governo da casa, mas também, nacontribuição para o orçamento familiar dado queexecutava periodicamente algumas atividades agrícolasde onde auferia alguns rendimentos complementares àeconomia familiar (QUEIRÓS, 2004, p. 2).

Mesmo “inferiorizadas” pelos homens, essas mulheresfaziam seus momentos de resistência e aproveitavam as situaçõesadvindas para se rebelar contra as situações a que eram constrangidaspelos homens.

Com sete anos eu comecei a cortar sete seringueira,parece mentira, eu fazia tudo... Carregava água numalatinha assim... numa vertente longe. Aí eu pegava,

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corria... corria... aí corria... aí cortava essas seteseringueira na mata. A tigela era umas latas. Aí na mata...era só dentro da mata... Aí, no meio do verão, eu enchiuma lata desse tamanho com leite. Aí eu enchi, mamãenão sabia que eu cortava, e nem sabia dessa lata de leiteque eu tava enchendo. Aí quando eu enchi, porque elabotava era eu pra varrer debaixo da casa... Aí quando euenchi, o bolão com um pau enfiado assim. Aquilo eu fizpra brincar mais o outro. Aí botei lá de novo, a lata comoutro pau... Aí ela viu eu com aquilo. “Pra que isso aí,Nena?! “Mamãe, isso aqui eu é pra eu brincar mais oRaimundo”. “Me dê isso, Nena!” “Não, mamãe. Nãofique, não, me dê...” Aí quando meu padrasto chegava,deixava o leite lá. Ia ficando lá no defumador pra aquecero leite, acender a fornalha, aí ela ia roubando o leite,passando naquilo e botando lá outros do defumador. Foiindo... foi indo... Com um pouco, ela tava com um bichonaassim... E eu cortando, e enchendo a outra. “Cadê,Nena?!” “Tô não.” “Não?!” Aí ela foi e vendeu. Meupadrasto não me dava uma caixa de fósforo, um palito...Aí ela foi comprar, um metro e não sei quanto de umafazenda. Eu ainda me lembro o nome dessa fazenda...fazenda ainda vermelha, com umas pintinha branca. Deupra fazer uma calça pra mim e um vestido. Daí foi, e nofinal do ano, eu aparecia com a outra. Aí ela disse: “Medê!” E tornou a fazer do mesmo jeito, ela vendeu, aí mecomprou a minha sandália (Nena).

Histórias como essa relatam a necessidade de adaptaçãoa novas realidades, as experiências demonstram o ajustamentonecessário, ainda que sofrido, à nova cultura. Uma mulher nova, viúva,com duas filhas pequenas, não podia deixá-las em casa para ir cortarseringa. Na época em que a mãe de Nena viveu, era comum o fato deas mulheres não saírem de casa sem o marido, a menos que eleestivesse doente ou desse ordem para tal. Ainda assim, percebendo ainiciativa da filha mais velha, a mãe de Nena pega o pau com o “bolão”de látex e começa a pegar do leite do novo marido para concluir a

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péla de borracha iniciada pela filha. Em um tempo em que os donosdos seringais raramente permitiam às mulheres assumirem o comandoe o corte de seringa em uma colocação, uma mulher não cortou, maspreparou a péla para a filha.

Nena cortou seringa até ficar adulta. Quando criança, elacortava seringa e o crédito ia para o pai. Depois de adulta, elacontinuou cortando seringa, mesmo quando o marido não podia maisir fazer a coleta, ainda assim, o crédito era para o marido. Os processosde construção e desconstrução das identidades em um ciclo deaculturação, revelam mudanças que confrontadas demonstram umpapel feminino, em um contexto de socialização diverso.

A história delas demonstra um papel de construçãoidentitária, principalmente no que tange aos papéis sexuais.

Eu aqui já tive momentos difíceis... porque quandome casei, meu marido era desempregado e eu trabalhava,mas tinha que ajudar a minha mãe que ela tinha 07 filhose ajudar o meu pai pagar aluguel, e ainda arrumar dinheiropra comprar comida... dar dinheiro pra minha mãe quenão tinha emprego. Aí, passei dificuldade, mas supereitudo... já faltou comida pra mim... não tinha comida pracomer, não tinha dinheiro pra comprar, não tinhacomércio aqui... Aí, a gente ia passando como podia... àsvezes, a vizinha me dava carne pra comer... e a gente iavivendo... Quando eu tinha uma coisa, ela não tinha, aíeu dava pra ela. Aí ela me dava aquilo que eu não tinha...eu dava feijão e arroz pra ela, e ela me dava a carne...quando eu tinha açúcar, aí ela não tinha pó de café, aí agente ia passando... E meu filho mais velho, quandonasceu, era muito doente... a gente levava ele nos médicosa qualquer hora da noite, atravessava a rua com água nacintura na época da alagação, ali na ladeira do Bola Preta,pra pegar um carro lá em cima... as vezes acordava duashoras da madrugada pra ir pro hospital, ligava a lanternae ia pra lá... só voltava seis horas da manhã... e assim agente vivia... (Raimunda).

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Ser mulher e chefe de família implica reaprender a viver.A vida já não é como elas cresceram ouvindo que seria: o marido, aesposa, os filhos. Às vezes, ser mulher era aprender a negociar deigual pra igual, aprender novos valores e comportamentos, sentir eagir como mantenedora, provedora e cuidadora do lar.

Aí comecei a trabalhar aqui e praculá... Parei deestudar, fiquei mesmo só trabalhando... Aí, trabalhei aquide doméstica e lavando roupa pra fora... lavadeira... Aí,trabalhei... Depois, uma amiga minha arrumou pra mimestagiar no Hospital de Base... depois eu saí. (...).... a gente chegou aqui... era só eu e ela... quando ele veiopra cá... a outra menina, que morava comigo, e ficou maismeu irmão... aí, veio pra cá, só eu e ela [filha].... Ela tinhaum ano... aí veio... só nós duas, pra cá... Daqui, levava elapro trabalho... Do trabalho, levava ela nas costa, né? En-tão, não tinha medo de nada... Depois que desmanchei acasa, lá, e fiz a outra pra aumentar, pra cá, cobri só oassoalho e cobertura sem parede nenhuma, né? Só eu eela... Era bom, sim, eu sinto falta disso, sabe? Daquelatranqüilidade que a gente morava... Eu dormia de portaaberta, janela aberta... Quando eu me lembro, quando eudormia só, eu mais essa criança... a gente... só nós duas...e a casa toda aberta... Tinha vez que o meu irmão vinhade noite... Meu pai morreu lá em Xapuri... fui praXapuri...Quando a gente soube da notícia, ele tinhamorrido... Meu irmão veio me avisar, chegou aqui, só eue ela... Eu tinha chegado do trabalho, né? Tinha dado jan-ta pra ela... Aí eu tava sentada na cama, fumando, porquenesse tempo eu ainda fumava... fumava feito uma caipora...nem vela eu acendia, porque nesse tempo não tinha luz,não tinha nada... aí, a gente usava vela... Aí, quando euchegava, acendia pra fazer o mingau dela, esquentava umacomida pra mim, e tal, né? Jantava, aí, apagava a vela...Aí, ficava só com a claridade da lua... Era tão bonito,aquilo... e eu ficava olhando, em cima da cama, e acasarona aberta... e eu olhando lá pro tempo... pras outrasconstruções, assim, sabe? ...pras casa... pra mata... ...Quan-

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do eu cheguei aqui, que era só o matagal, não tinha luz,não tinha rua, não tinha água, não tinha nada... Hoje emdia, é uma cidade... (Ivete).

A reconstrução do passado na memória produz umalembrança de bonanças e bem-estar. A sensação de estar em um localque se pode chamar de “seu” faz com que os problemas sejamminorados ou deixados adormecidos na memória em detrimento desituações de felicidade e de prazer. Várias das lembranças narradassobre as relações sociais estabelecidas na localidade são felizes.Poucas são as tensões explícitas e as lembranças tristes proferidasvoluntariamente pelos lembrantes. No decorrer nas práticasestabelecidas, de acordo com os relatos, é possível perceber osmomentos de sofrimento, mas os proferidos voluntariamente de formadireta são poucos. Talvez porque em uma relação direta entre anecessidade de sair de onde estavam para vir para o local em queainda residem, tenha pesado mais o fato da necessidade da saída deum local em que se viveu por décadas, que a dificuldade do recomeçoem um local em que se podia viver, dessa vez, como dono do mesmo.

A vida nas colônias não era fácil. As vivências identitárias,por muitas vezes, geraram crises entre homens e mulheres. E quandoestas necessitavam tomar a frente de um trabalho, da casa, da situaçãode controle de algo, havia uma fronteira a ser transpassada: a do “serfêmea” a ser “masculinizada” pelo contexto de interação social queimpactava suas vidas. Ser mulher as fez buscar lugares onde fossemmais aceitas, onde fossem mais valorizadas como, por exemplo, naespiritualidade. Por isso, muitas delas ao chegar em Rio Branco,envolveram-se com Comunidades Eclesiais de Base e com asassociações de moradores, que eram lideradas por integrantes da IgrejaCatólica. Poucas delas assumiram a liderança direta dos movimentosdas CEB’s, mesmo as que tinham encontros de evangelização emsuas residências. Mas sempre estavam presentes e atuantes, algumasaté ensinaram seus filhos e esses tomaram gosto pelo movimento aponto de se tornarem líderes dos mesmos nas comunidades.

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Após o falecimento do marido, nenhuma delas quis secasar novamente e as que se separam, desiludiram-se de forma talcom os homens, que não mais quiseram casar ou mesmo namorar.Elas afirmam que seus maridos as fizeram sofrer muito, e agora quetiveram a chance de “estar só”, não querem mais “ficar presa”. Essecomportamento, segundo elas, é visto com ar de inferioridade poroutras mulheres casadas que as têm como suspeitas uma vez que pornão ter marido, poderiam se agraciar com o marido da vizinha. Maselas têm consciência do que passaram. E isso as fez refletir sobre asvantagens e desvantagens de um novo relacionamento.

Meu casamento foi feliz até uns dois anos, o restonão. Tinha muita briga, ele ficava com raiva, eu moravana casa da minha mãe, eu e ele. Ele foi pra casa do paidele. Ele ficava muito bravo.

Eu tava assando a carne, não tinha brasa. “Tu,também, não procurou lenha e nem nada pra pôr aqui nofogo.” Aí ele veio dizer que eu não assava logo a carne,que ia esfregar a carne na minha cara. Ele não me bateuporque a mãe não deixou.

E pronto, aí me casei com ele, morei trinta anoscom ele. Já depois... já tinha essas menina, aí espatifamostudo, ele veio me bater... Aí eu deixei ele... (Antônia).

As histórias de vida dessas mulheres entrevistadas é cheiade rupturas, descontinuidades e recomeços, como as de qualquer outroser humano. Entretanto, pelo discurso delas, percebemos que nacultura brasileira as mulheres não são ensinadas a exigir seus direitos,a lutar e a se defender. Elas aprenderam isso na prática, após muitosembates que elas mesmas não gostariam de ter travado. No entanto,a sociedade brasileira é sexista, homofóbica, classista, racista eandocêntrica (GARCIA, 2004).

A vida da mulher é referida a outros, prisioneirado seu gênero, sempre vivendo sob ameaça dedegradação, trivialização e descrença por ser mulher. Na

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história de vida das mulheres encontramos momentos dedescoberta que colocam em xeque a identidade atribuída,produzem uma nova consciência sobre si mesma,assumem um novo papel, propicia o nascimento dasolidariedade entre as mulheres, As histórias de vidarevelam como mudaram seus sentimentos, chegando atermos com aspectos da própria personalidade,adquiriram consciência da própria opressão comomembro de um grupo sem poder, e como quebram esteesquema. (...) A instituição patriarcal permeia aorganização interina da sociedade, a política e a cultura.Relações pessoais e personalidade estão marcadas peladominação e violência originadas na cultura e nasinstituições patriarcais. A fêmea natural e biológica étransformada em mulher subordinada. O sexo está para anatureza assim como o gênero está para a cultura,elaborado humanamente com significado atribuídoarbitrariamente (Garcia, 2004, p. 6 e 9).

Nos seringais amazônicos, algumas mulheres casavamporque gostavam dos rapazes. Chegavam até a fugir com eles paraconstituir família, quando o pai da moça não permitia o casamento.Todavia, essa não foi a realidade da maioria de nossas entrevistadas.As vivências de Nena evidenciam como eram os relacionamentos,em muitos casos.

Aí casei perto dos 19 anos, só me casei porque eunão tinha pai, mas não que eu quisesse me casar. Eu nãogostava do noivo, nem nada, aí me casei. Aí eu disse praminha mãe: “Mamãe, agora o meu sofrimento vai dobrar”.Ela disse: “Vai não”. “Porque aí eu vou ter filho, vouficar amarrada dentro de casa, porque eu... se eu só,sozinha, eu ando pra todo o canto... E, casada, pior...”Foi dito e feito. Me casei, e todo ano era um filho, tivedoze filhos e três aborto, que saiu lá pelo seringal (Nena).

A falta de alternativas para obter sustento e garantir asobrevivência diária fez com que muitas mulheres se entregassem

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aos homens, mesmo sem gostar deles. O que nos chama a atenção éque com Nena se repetiu uma história parecida com a de sua mãe.

Aí meu pai morreu e minha mãe foi sofrer comnós duas, porque por lá não tinha nada... O pessoal lá emcima era pobre... Aí minha mãe foi vendendo as coisas...A última coisa que minha mãe vendeu do meu pai foi umrifle e uma caixa de bala. Dizia ela que vendeu pra poderdá comida pra nós. Aí ela ficou na casa da minha avó.Era três viúva, minha bisavó, minha avó e a mamãe. Aífoi indo... foi indo... quando acabou-se tudo. Aí a mamãedisse: “Agora, sim, o que é que eu vou dar pra essas filhascomer?!” Aí minha mãe foi e disse: “Se aparecesse umnegro...” – ela queria”. De repente, apareceu um negrolá. Ela quis. Quis e foi sofrer. Foi sofrer ela e eu... Aí elacasou-se, fomos embora pro centro. Lá, a outra minhairmã, morreu à míngua... Mas, ele era muito ruim pramamãe e muito ruim pra mim... Ele batia na mamãe, eleme açoitava (Nena).

As mulheres foram tratadas com desrespeito, desprezo eaté com inferioridade por homens que se achavam no direito de agircomo bem entendessem, e suas mulheres tinham que obedecer, atémesmo satisfazendo as vontades sexuais do marido, em prejuízopróprio. Recém-operada, Nena foi estuprada pelo marido e teve seuestado de saúde agravado.

Aí eu tava me tratando e o médico disse: “Asenhora vai precisar ir pra outro canto”. Aí me jogou pracá, pra outro hospital que tinha praculá. Aí cheguei lá, eusaía bem cedinho pra chegar lá . Nove horas, cheguei lá.O médico olhou: “Não é causo daqui, você vai pra SantaCasa”. Olha, aí o doutor não passou remédio pra mimnão. Aí, nesse tempo, Maria Raimunda já tinha vindo pracá. Aí vai ser operada aí marcou lá o dia tudo, né? E eufui... Era o doutor... nós dois... doutor bem novinho, nãotinha um sinal de barba. Tava ele e outro lá da Santa

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Casa. Quando eu cheguei lá, tava os dois. Eu disse: “Vocêsvão me matar?” “Não, senhora. Ninguém vai matar, não”.“Vocês não têm nem sinal ou barba, rapaz!” Toda a vidaeu fui assim... Aí, vamos para a sala de cirurgia... Eu nuncative medo de operação... aí, fui operada.

Mal cheguei e o marido me procurou... Aí lá sevem ele, aí me arrebentou toda, eu pegava a casa altaaqui, eu pego ele, descer ele pra lá pro fundo do quintal,atar a rede dele lá nas mangueira. Eu sofri... sofri... atéquando ele morreu. Aí ele morreu... morreu na SantaCasa. Com seis meses ele morreu. Aí eu fique mais osmeninos. Deus me perdoe, mas aí eu melhorei minhavida. Aí deixei de sofrer. Melhorei minha vida (Nena).

As mulheres trabalhavam para obter o sustento da família.Muitas delas trabalhavam sozinhas, sem a ajuda masculina econseguiram criar os filhos.

Porque, meu amigo, é difícil, hoje em dia. Deprimeiro, nós cortávamos seringa. Está aí o meu retrato...Olha a gente defumando o leite... Já, depois, colocava oleite pra apodrecer, colocava veneno... Essa, eu não contonada, não. Agora, de cortar seringa... pra quem cortaseringa... trazer o leite pra bacia, pra defumar nafumaceira, como é que chama? Eu fiz muito e achava erabom.

Cortei seringa no tempo em que nós morávamoslá naquela colocação lá. Sempre estava cortando, não voudizer que eu tomei a frente para cortar parede e estrada.Mas, cortou eu mais esse meu menino que passou aquiagora. Era eu mais o menino lá de casa... Vinha comquatorze lata, com dez... de leite. E eu chegava comquinze. Olha, a borracha bem grandona... A vida da genteera essa... A gente se acostuma com o trabalho... A gentecaçava pra trazer comida pra casa, plantava pé de milho...(Aldira, 86 anos).

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Os relacionamentos fluíam com essas mulheres comofluem com quaisquer outras. Elas também desejavam e eramdesejadas. Produziam-se todas para ir às festas e tocar nos rapazesque por alguns instantes as tocariam, colocariam as mãos em suascinturas e dançariam com elas “uma parte”. Os sonhos juvenis seencontram presentes nos namoros escondidos, nos encontros atrásdas árvores sem que os pais soubessem, no galanteio com outroshomens – inclusive casados – e na tentativa de fuga para uma novavida, ao lado de sua paixão:

Pra roubar é assim: o nego vai de noite, e combinacom ela, ela vai lá pra um certo ponto e tal. E aí, pronto.Vai, pega ela, deixa na casa de um conhecido. Quandoeles querem, aí marcam com o camarada, aí quando elevem aí faz o casamento (Antônia).

Eu conheci minha mulher assim, porque eu vimpra cá, aí quando eu cheguei lá em Bela Vista, aí elamorava encostado de mim. Aí começamos a conversa, aíchegamos a namorar, aí se casamos. Casamos mesmo, opai dela deixou, porque se não deixasse eu roubavamesmo [risos]. Já tava tudo combinado, se ele não desse,ela fugia [risos]. Rapaz, lá quase todo casamento é assim,rouba a mulher e depois faz a desobriga (Zacarias).

Eu namorei com um rapaz que ele me chamou prafugir... E eu arrumei minha bagagem... Mas, não tivecoragem de fugir com ele, porque meu pai era “courogrosso”, não alisava filho, não. Deixei tudo de mão... mas,não joguei minha roupinha pela janela, não... faltoucoragem (Aldira).

Os relatos de dona Antônia e dona Aldira são ratificadospelo de seu Zacarias. Se o casal quisesse ficar junto e os pais nãodeixassem, eles marcavam a fuga. Mas nem todos tinham coragemde fugir. Dona Aldira foi uma dessas mulheres que amaram

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intensamente. Algumas delas foram mais felizes, outras foram menos,mas tiveram seus momentos de sonho e alegria. Algumas delastiveram vários relacionamentos chegando a noivar várias vezes:

Eu vim noiva com outro rapaz, aí o quê que deu?Fui conhecer e tudo... Aí, quando foi num dia, lá tinhaum rapaz por nome Raimundo. Aí, eu conversando, orapaz que era meu noivo foi-se embora pro Acural,trabalhar, não sabe?! Foi arrumar o dinheiro pra nós secasar. Foi, e nada... Custou a aparecer. Quando eleapareceu passava no outro caminho por aculá. Não ia láem casa, ia por lá. Quando meus irmão ia pra rua, via elelá na rua, aí dizia: “Mana, tu viu o primo?!” Era primonesse tempo. Eu digo: “Não!”. “Ele não passou por aqui”.Eu vi ele na rua”. “Viu?” “Vi”. Mas foi um castigo...Quando foi um dia, apareceu um homem que era doAcural, chegou mesmo assim na porta, deu boa tarde. Eudigo: “Suba.” Ele disse: “Não, senhora. Quero subir não”.“Me dê um pouco de água”. “O senhor veio de longe?”Ele disse: “Vim, sim, senhora. Vim do Acural”. “O senhortá com fome?” “Quero, não, senhora”. Ele disse assim:“A senhora não tem notícia de um cara que foi pro Acural,não? O nome dele é Chico Pereira, ele trabalha lá juntocom nós. “Ih, é?!” “Ele agora tá até namorando lá comuma moça. Toda noite, ele vai lá pra casa dessa moça.Vai tocar”. Tocava muito bem, violão. Eu digo: “Émesmo?!” “É”. Aí a mãe saiu lá pra cozinha, meperguntou direito, não diga nada não. Aí a mãe perguntou:“E ele tá noivo?” “Eu acho que tá, parece que vão secasar também”. “Foi bom saber notícia dele, que ele énosso conhecido lá do Envira. Noivei com ele ainda lá,no Envira e tudo...” Não tava noiva com ele ainda não...“Nós conhecemos ele lá do Envira”. “Então, tchau”.“Tchau”. “Eu lá vou mais esperar...” Aí fui com outro,era bonito, baixinho, e tal... A irmã dele gostava de mim,aí pronto... Aí, quando foi um dia que eu fui pra novena,me encontrei com ele... com esse que tava no Acural,que era meu namorado, que eu tava noiva. Me deu boa

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noite, eu não dei mais boa noite, não. Acabou casamento.Pronto. Não fiquei mais com amizade com ele e nem nada,acabou... Aí me casei com o irmão da minha amiga(Antônia).

Essas mulheres também flertavam, amavam e eramamadas.

Fui pra beira do rio, tinha outro lá, bonitinho...que é alvim... O nome dele era Manoel Simão. Aí nos iapra lá chamar ele pra ir tocar em festa lá em casa. Ele erabonitinho... Depois ele casou-se com outra... eu já tinhame casado... Ele trabalhava no Fórum, mas eu namoreipouco tempo... Mas, eu dizia: “Manoel, tu tão bonito, foise casar com aquela moça tão feia!” “Tu não quis casarcomigo”. Eu era feia também, mas todo mundo dizia: “Épreta, mas, é zelosa”. Já tinha ela [apontando para afilha]... Ela tinha um ano a outra tinha sete e a caçulatinha cinco (Antônia).

Dona Antônia teve coragem para flertar, mas não se sentiuà vontade para deixar o marido e ficar com o outro. Ela não traiu omarido, afinal, adultérios, casos e separações, embora praticados nosseringais, não eram bem vistos, principalmente se praticados pormulheres. Entretanto, algumas quebraram as regras e se encontravamnas matas para “conversar” com seus amantes. Algumas dessasmulheres citaram situações várias de fazer amor, citando nomes dosamantes e locais dos encontros, mas que foram contados emconfiança, portanto, não foram gravados, nem incluídos nos relatospara não causar constrangimento às famílias. Alguns dos flertesrecebidos e também praticados por essas mulheres se transformaramem relacionamentos.

Eu saí grávida, mas não casei com o pai damenina... não casei com ele... Ele era casado com outramulher [risos]. Era casado, pai de cinco filhos com a outraesposa lá... Foi só um caso que a gente teve. Eu sabia

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que ele era casado e eu fiquei com ele porque eu quis. Eeu nem cobrei pensão dele. Durante o tempo que elepassou aqui, porque quando ele foi embora daqui... elatinha seis meses de nascida. Durante o tempo que elepassou aqui, ele nunca deixou faltar nada pra ela, não...Mas, aí, foi o jeito de ele viajar, ir embora, porque nãotinha trabalho pra ele aqui... Ele não era daqui, aí ele foiembora pra terra dele, que era Manaus. Ele foi emboracom a família dele, mas ele disse pra mim: “Ivete, eu vouembora, porque não vai adiantar eu ficar contigo. Porqueeu vou precisar trabalhar pra sustentar a minha família esustentar você... E assim, eu tando aqui, eu não tenhotrabalho... Vou deixar passar fome a minha família evocê... E, aí, eu vou embora... Deixo você livre, pra vocêarrumar outra pessoa, que lhe ajude... E, eu, tando aqui,você não vai arrumar...” Eu não ia arrumar mesmo, nãoné? Mas, mesmo assim, eu fiquei só... Aí, eu não quismais ninguém... Eu estou com vinte e dois anos sozinha,só eu e ela (Ivete, 60 anos).

As vivências sociais também se dão no ambiente íntimodas relações extraconjugais. O relato produzido por Ivete, à primeiravista, parece promíscuo para quem “taxativamente” pode acusá-lade tentar destruir uma família. As ideologias contidas no discurso(Foucault, 1996) nos fazem pensar em até que ponto vale a pena umarelação que à primeira vista parece fadada ao fracasso. A ideologiade Ivete parece bem simples, mas nesse recorte de relato específico,propositadamente, o deixamos implícito.

É muito comum nas vivências estabelecidas o fato de aoperceber a linguagem do Outro, na grande maioria das vezes, tentamosinterpretar o Outro por nossa própria linguagem. Não se trata de poderou não, de ser certo ou errado, mas de existirem diversaspossibilidades de diálogos entre os discursos estabelecidos. Comodas diversas vivências proferidas pelas entrevistadas, Ivete assumiuseu querer, demonstrou almejar uma filha e não se arrependeu dasvivências estabelecidas. O que para muitos poderia ser visto e rotuladocomo promiscuidade, pode no próximo recorte de texto ser repensado.

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Eu engravidei nove vezes, e só tive ela... Todos

morreram... O último que eu tive, eu fiz cesário, porqueo médico disse: “Dona Ivete, a senhora tem que ligar

suas trompa, porque a senhora já perdeu... já teve vários

abortos... E a senhora fica fraca, vai findar morrendo...”Então disse: “Nós vamos ligar. Tá legal!” Aí ele ligou...

aí menina morreu... aí ficou só com ela. Ela foi a sétima...

E nasceu de sete meses... E pra segurar dentro, foi umaluta, porque era no remédio, na injeção direto... assim,

pra segurar... Quando eu vejo mães, que tomam remédios,

que dói, que joga no lixo, que joga dentro da água, nãoé? Meu Deus, enquanto eu lutava, maluca pra ter um

filho... segurar assim... sabe? Ela nasceu... foi uma alegria

doida... Eu chorava feito uma coisa doida, de alegria(Ivete).

Se pararmos um pouco para pensar, podemos até tentarentender o que Ivete queria. Ela queria um filho. Teve a chance de serelacionar com um “homem macho” que já havia tido cinco filhossaudáveis. Era a chance de ela tentar novamente, pela sétima vez. Efoi exatamente nessa vez que ela conseguiu. Todos os outros oitofilhos morreram.

Essas e outras vivências das mulheres riobranquenses seconfundem com as vivências das mulheres de modo geral. Elasprecisam lutar duplamente: lutam a luta cotidiana por melhorescondições de vida, em que todos lutam, independente de classe, cor,religião, ideologia ou gênero; e lutam contra o preconceito para seremrespeitadas como seres humanos, independentemente de suasexualidade.

As falas dos sujeitos lembrantes estão cheias decaracterísticas que exprimem suas crenças, seus valores, seus ideais,suas relações familiares e até suas identidades, ainda que cada umadessas características expresse apenas substratos das relaçõesestabelecidas por esses sujeitos.

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Os relatos têm duração total de 152 páginas transcriadase transformadas em corpus. Destas, pouco menos de 50 correspondemaos 04 sujeitos lembrantes de sexo masculino, enquanto mais 100páginas correspondem a 06 sujeitos lembrantes do sexo feminino.Percebemos que mesmo proporcionalmente as mulheres detalharammais suas vivências que os homens, haja vista estes terem sido mais“diretos”.

No decorrer das análises das entrevistas, pudemosestabelecer uma tabela que identifica de forma mais sistemática asrelações entre homens e mulheres. Não se trata da dicotomização dodiscurso, mas das falas expressarem os pensamentos e, com eles, asrelações de vivências estabelecidas.

Comparativo entre os discursos proferidos por homens e mulheres:

Palavras utilizadas Homens Mulheres Eu 1.096 2.387 Mim 42 60 Fiquei 25 33* Trabalhei 31 25 Fizemos/trouxemos 29 81 Eu e [alguém] 10 31 A gente 3 6 Comigo 9 18 Minha mulher/esposa 7 --- Meu Marido --- 30 Meu pai/minha mãe 35 87 Meu filho/minha filha 12 93 Nós 93 180

* Se desconsiderarmos as muitas repetições de dona Nena esse número cai para 12.

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As falas das mulheres são mais marcadas pela tentativade afirmar seu “Eu”, seu valor enquanto parte de um todo maior. Oshomens, sempre que utilizavam o pronome “Eu”, o faziam comoprelúdio a um verbo, não tão marcante como nas vozes femininas.Talvez a quantidade dos pronomes pessoais do caso reto e oblíquoem primeira pessoa do singular tenham se dado em número maior devezes entre as mulheres por suas falas serem em quantidade maiorque as dos homens – duas vezes maior, em média.

Os homens fizeram mais uso dos verbos no imperativo edos pronomes na primeira pessoa que as mulheres. É possível traçarum paralelo que demonstra as mulheres serem mais ligadas às relaçõesfamiliares citando pais, filhos, e cônjuge que os homens quandoresponderam as mesmas questões.

As mulheres quase sempre que se referiam a verbos deação, no âmbito familiar, tinham suas falas precedidas pelos pronomesque indicavam o plural como “nós” e “a gente”, enquanto os homensquase sempre usaram o pronome pessoal, como “eu” e “mim”.

Três dos quatro entrevistados ainda são casados e um éviúvo, contudo, pouco exprimiram em relação a suas famílias ecônjuges se comparado ao número de situações produzidas pelasmulheres. Dentre essas, três são viúvas, duas separadas e uma solteira.Elas têm suas falas marcadas pelos relacionamentos familiares, peloamor aos seus filhos e pela expectativa de dias melhores para todasas pessoas com quem mantêm laços de afeto e amizade.

2.3.4 Terras e Gentes: revisitando o passado

A mobilidade está presente nas lembranças dosentrevistados, mas os objetos que os rodeiam permanecem imóveispara os sujeitos lembrantes. Falar de tempos passados, de conquistase de aspirações é como o fluir de possibilidades, contudo, a quietudeé amada por eles mais que um sentimento estético ou de utilidade,

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proporcionam a sensação do lugar em que se está inserido no mundo, dasprojeções em que estão situadas as identidades. Ecléa Bosi, afirma que

A ordem desse espaço povoado nos une e nossepara da sociedade: é um elo familiar com sociedadesdo passado, pode nos defender da atual revivendo-nosoutra. Quanto mais voltados ao uso cotidiano, maisexpressivos são os objetos. Os metais se arredondam, seovalam, os cabos de madeira brilham pelo contato comas mãos, tudo perde as arestas e se abranda (1994, p.441).

As preciosidades das coisas, dos lugares das vivências setornam presentes na memória quando remodelam as lembranças,presentificando o passado que, pelo contexto em que estão inseridos,ora se enraízam, ora desenraízam. Os deslocamentos espaciaisconstantes fazem-lhes, muitas vezes, rememorar e querer voltar, aindaque temporalmente, a algo que já não existe mais, desagregando,pouco a pouco, as lembranças referentes àquelas vivências do contextoativo da memória.

As trajetórias e migrações desses sujeitos lembrantes,constituem-se em marcos na vida dos indivíduos, à medida queestabelecem mudanças que provocam rupturas e conflitos, ao mesmotempo que apontam para a perspectiva de novos horizontes. É precisoestar atento para o fato de que a mudança espacial implica outrasmudanças na vida das gentes tornadas migrantes, sejam homens oumulheres, brancos ou negros, nordestinos ou nativos do Acre,relacionadas às novas dinâmicas sociais, diferenças culturais ealteração de hábitos no cotidiano, mudanças que também ocorremna esfera das relações interpessoais, além dos rompimentos,distanciamentos e traumas decorrentes de situações desse tipo.

Ao ter em comum situações de mudanças em suas traje-tórias de vida, esses sujeitos passam por rupturas, adaptações e resis-tência aos novos espaços e culturas, modificando no próprio proces-

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so de mudança espacial, cheio de rompimentos, a reconstrução desua identidade individual e coletiva, formando-se gradativamente“uma memória social”. Todo este processo envolve laços afetivos,alegrias, tristezas, conquistas, perdas e, sobretudo, vivências, nãomais da mesma forma que antes, mas em um outro espaço, em umoutro tempo, em uma outra perspectiva, circunstanciados no desen-volver de afinidades e divergências do que se faz no constituir dolocal.

A localidade em que vivem está contida em um lugarmaior que é um setor geo-político-social mais abrangente, e esse passapor proposições políticas, econômicas, interesses mercantis eprojeções de afinidades com fins, ora especulativos, ora cognitivos,mudando conforme os grupos que estão no controle. Devemosressaltar que qualquer atividade conflituosa ou ainda, que conduza aum êxodo, impelindo a uma migração, afeta não apenas o local desaída, através de um esvaziamento da terra e das relações sociaisnela produzidas, mas também, o curso, o motivo, as circunstâncias e

o local de chegada.A ocupação do espaço enquanto território local é resultante

da disseminação da propriedade privada da terra. Contudo, do mesmomodo, esse movimento gera privação dos direitos costumeirosdaqueles que imaginavam tê-los. O processo de expansão se revelaproblemático e violento, uma vez que a imigração não apenasdestinava-se a povoar a terra, mas também expulsava os pioneiros.Toda essa violência pela qual passaram os trabalhadores rurais fezcom que se deslocassem das terras ocupadas, em troca de umapequenina indenização, migrando para a área de fronteira na Bolíviaou “inchando” os centros urbanos, principalmente Rio Branco, onde“estendiam” a fronteira da “periferia”, formando uma paisagem demiséria e ambiência urbano-rural.

Existem duas coisas que precisam ficar claras aos que sepropõem a estudar pessoas vivas em um local em construção. Existem

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pessoas que tentam estudar somente o território, e outras que tentamestudar unicamente os habitantes de um lugar. Quanto a isso, é certodizer que ao se esvaziar o território de seus habitantes, também seesvazia dos significantes. Logo ele é (ou se torna) espaço meramentefísico – quando muito, cartográfico –, como rabiscos em umaestrutura. Também, quando esvaziam os homens de seu territóriocria-se um vácuo, não um vazio, mas uma “falta que não pode serpreenchida”, porque, ao se tirar o fator tempo-espaço de uma situação,ela não se sustenta em si mesma, pode-se mais facilmente cair noviés do simplismo, o que retira a concretude e lucidez dos fatoresenvolvidos, tornando a pesquisa um estudo vulgar (THOMPSON,1992).

Além disso, muitas pessoas se questionam até que pontoo lugar é territorializante ou desenraizante. Não vamos tentar definirnada aqui, no sentido de enunciar atributos específicos demarcativose sentenciantes. O que desejamos é conceituar, buscando representaros objetos pensados e os sujeitos pensantes por meio de suascaracterísticas gerais, globalizando-os em seu território, semgeneralizá-los. Antes de conceituar ou fazer conjecturas, vale ressaltaro que Stuart Hall escreveu:

Como em outros processos globalizantes, aglobalização cultural é desterritorializante em seusefeitos. Suas compreensões espaço-temporais,impulsionadas pelas novas tecnologias, afrouxam os laçosentre a cultura e o “lugar”. Disjunturas patentes de tempoe espaço são abruptamente convocadas, sem obliterar seusritmos e tempos diferenciais. As culturas, é claro, têmseus “locais”. Porém, não é mais tão fácil dizer de ondeelas se originam. O que podemos mapear é maissemelhante a um processo de repetição-com-diferença,ou de reciprocidade-sem-começo (2003, p. 36).

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Em princípio, podemos afirmar que o lugar éterritorializante quando deixa de ser espaço ermo ou fronteiriço paraser território local, onde se estabelecem as fronteiras analógicas edialógicas – no sentido baktiniano – do convívio social. Desenraizantequando faz com aquilo que a pessoa sabe e tem conhecimento pareçabanal, não utilizável na forma intelectual, moral ou valorativo domigrante “em trânsito”, que necessita, em grande medida, se separardas coisas com as quais ele convive e conhece, para se deparar coma nova realidade, em um constante embate entre o tempo da ação e otempo da memória (BOSI, 1987).

A maioria das gentes que teve suas terras expropriadasprecisou aprender a viver em terrenos com pouco mais de duzentosmetros quadrados, trabalhar para adquirir dinheiro e comprar comida,uma vez que já não se podia plantar e colher produtos para asubsistência nessa pequena área.

Assim como o homem modifica o ambiente, este tambémo modifica na interação mútua. Porque o homem precisa de um lugarpara se relacionar com o ambiente e com seu próximo, sendo queambos se modificam nessa interação, e o lugar se modifica a partirda influência mútua do homem com o outro homem e com o ambienteem que vive. Por isso, nessa mudança de ambiente do que antes era“rural” com porções de terras outrora medidas em alqueires e hectares,agora percebemos que são medidos em pouco mais de duzentosmetros quadrados os lotes onde ficam os “pequenos quintais”. Assim,não são vistas grandes plantações nos lotes do Terceiro Eixo, massão comuns plantas, flores, árvores frutíferas e canteiros de hortaliçase leguminosas. Ao passo em que o “ambiente rural” é “urbanizado”pelos reassentados, o mesmo ambiente agora “urbano” – se é quepodemos chamar assim – é “ruralizado” pelas práticas, inserções emodificações tipicamente dos ambientes rurais de onde os migrantessão provenientes.

Ao viver nessas localidades e tentar fazê-las o maissemelhante possível com seu lar anterior, percebemos que esses

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migrantes reassentados têm em sua memória o desejo de retornar aolocal de onde vieram. Mas isso não é viável, ao menos não como elesgostariam. Porque a falta de possibilidade de retorno não se dá apenaspelo viés sócio-econômico. Se assim o fosse, bastaria economizarparte de seus proventos, administrar gastos e embarcar de volta àterra de onde vieram. Não é possível retornar, porque o tempo passou,a vida passou, o espaço mudou, eles mudaram. Gostariam de voltarao que era antes, às casinhas do passado, às festas, amigos, paquerase passeios, mas já não há possibilidade porque a volatilidade do temponão se dá enquanto matéria corpórea de interposição espacial.

Ao retornar ao local de origem, o local não seria o mesmo,os amigos, a relações, os sonhos, eles próprios não seriam os mesmos.O passado – que muitas vezes está associado, em parte, a dificulda-des, limitações, escassez e estagnação, considerando o quadro cris-talizado em seus locais de origem – também representa aspectos po-sitivos, envolvendo laços familiares, hábitos e práticas do cotidiano,tradições e manifestações populares, a vida comunitária, o lazer e adiversão, a riqueza da cultura local.

Como podemos perceber, à luz da experiência dosentrevistados, as questões relacionadas à sensação de pertencimentodesses narradores, já que suas identidades culturais têm em si traçosde unidade essencial, indivisibilidade, unicidade primordial emesmice? Devemos abandonar a idéia de perceber a sensação depertencimento inscrita nas relações de poder e estudar as identidadesisoladas – se é que se consegue tal proeza? Ou ainda perceber asdisjunturas e as diferenças impressas nas identidades culturais dosmigrantes que embora “obrigados” a tal, têm em si a promessa doretorno redentor?

Alguns desses homens e mulheres amam o local em quevivem, contudo, a maioria se acostumou com o local. Estão lá comsuas redes de sociabilizações, entretanto, têm em suas falas traços deagonia, nostalgia e até letargia diante da possibilidade imaginária denão voltar ao seu local de permanência anterior. Isso se torna claroao aferir na circunstância de vida atual um saudosismo bondoso da

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“qualidade de vida” anteriormente vivenciada. No sentido contrário,nessa estrada de mão dupla que é a memória, gostariam de voltar aolocal de vivência anterior, com os amigos de antes, as relações deantes, o amadurecimento das sensibilidades de hoje e a estabilidadeeconômica atual. No entanto, isso apenas é possível nas construçõescognitivas e nos sonhos varonis.

A codificação dos significados pelos sujeitos lembrantesnão é livre em si, mas ancora a decodificação ao conveniente, e opróprio pesquisador envolvido na turbidez do que está posto, pormais que se esforce, em sua imperfeição, apenas sintetiza o que jáestá colocado, analisando, conceituando, definindo, explicando,explicitando, enfim, sem querer, congelando. A necessidade de emmuitos dos casos deixar que o sujeito lembrante fale por si mesmo,vem porque mesmo uma fala retirada do seu habitat, quandocontextualizada, expressa, ainda que parcialmente, o seu intento.Como pudemos constatar na pesquisa predecessora desta, essesentrevistados têm muitas coisas em comum, dentre elas podemosdestacar que:

Em todos esses idosos percebemos o desejo deaprender coisas novas e o anseio por ensinar outras quejá aprenderam. Suas identidades estão vinculadas nãoapenas à memória cultural, mas ao território local emque vivem e convivem. A esperança enraizou grande partedeles, que relembram as festas comunais e o trabalholaborioso que executavam com braços que antigamenteeram fortes e pernas já não tão firmes. A voz cansadapelo tempo ainda faz surgir nos olhos as lágrimascompanheiras das lembranças de tempos nem sempreternos ou calmos, mas vividos com intensidade. Daplataforma de suas cadeiras de balanço ou da sobriedadede seus bancos “rústicos” de madeira de construção,muitos sonham com um mundo onde não precisem sersubstituídos, mas possam interagir com o que é “novo ebelo”. Nas fotos amareladas pelo tempo, vêem-se corpos

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reais, vivos, talvez nem tão vivos como agora, mas quedespertam saudades; saudades de poderem ir à igreja semprecisar “implorar” por companhia, de ter forças paraencher uma garrafa d’água. Saudades de seremrespeitados como seres humanos (Lima, 2006, p. 150).

Para os sujeitos lembrantes, a relação entre o passado e opresente remete a ganhos e perdas em suas trajetórias de vida. São asvivências, as práticas cotidianas, as relações e interações entre esseshomens e mulheres, não mais migrantes, mas ligados ao local, con-cebido, constituído, construído e reconstruído, que permeiam as re-lações estabelecidas de amor e desamor, querer e renegar, estar esair, inerentes aos seres humanos. Nesse caso, as andançaspopulacionais diminuíram consideravelmente para dar lugar a um“fixar raízes” e viver num espaço que se fez lugar, transformando-seo transformador humano e a própria ambiência no que se pode cha-mar de “melhores condições de vida”, “sonho de ter um lugar propri-amente seu” ou simplesmente “casa”.

Os vários idosos reassentados modificaram o espaço po-lítico-geográfico ao expandir a fronteira limítrofe urbana, do mes-mo modo que procuraram naquele local interagir com seus conheci-dos, com as pessoas a seu redor e com o território, havendo ou nãograu de parentesco. Portanto, modificaram também as relações noespaço social, o que diretamente refletiu na constituição de aspira-ções e mecanismos que expressassem um conjunto de atividadessociais na cidade, ou seja, a apropriação do espaço terrestre se pro-cessou como transformação do espaço-lugar e dos próprios indiví-duos, em uma interação contínua e dinâmica.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A necessidade de rememorar é saudável e inerente aosseres humanos, porque parte de um processo universal para areavaliação dos conflitos pelos quais o lembrante passou, pararestabelecer a identidade de si mesmo. Serve também como umaforma de ajudar as pessoas idosas a auxiliarem a si mesmas, seja emum processo de interação coletiva, de discussão em grupo ou nodiálogo (que mais parece monólogo) entre o sujeito lembrante e osujeito entrevistador ou ouvinte.

Assim como os jovens, os idosos têm necessidades deexprimir seus sentimentos, de conversar sobre seus problemas, deelaborar suas tristezas, preocupações, apreensões, medo, insegurança,desgosto, culpa, derrotas, vitórias, temores, satisfações e aspirações.

A rememoração é um processo de recuperação que não érestaurador no sentido stricto, mas enseja ser uma revisão focal devivências conjunturais envoltas na tempolabilidade da memória. Asvivências e o trabalho estão inúmeras vezes destacadas nas lembrançasdos velhos. Esses homens e mulheres, tantas vezes tolhidos como

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não mais úteis, foram e ainda são trabalhadores. No passado,trabalharam mais de forma “braçal”, atualmente, trabalhamprincipalmente com as recordações, porque recordar não se restringea rever ou reviver algo, mas explicitamente é um “re-fazer”. Lembraré quando se reflete no tempo presente a compreensão do que se fezoutrora.

Não apenas as lembranças (representadas pelas palavras),mas os silenciamentos, rupturas e os esquecimentos (representadospelas inúmeras reticências) tornam-se coadjuvantes entre tantas outrasfigurações implementadas nos discursos dos velhos que fizeram atoresprincipais deste trabalho de elaboração.

De igual forma, o dissertar não se faz presente apenas notrabalho de verificações, mas também no texto que compõe o corpus,nas vozes dos que falaram, choraram, sorriram e lembraram, e nointeragir através da leitura do mesmo.

Escolhemos apresentar as memórias como nos foramrelatadas, na seqüência da fala, retirando apenas a fala doentrevistador. O interessante nessas relações estabelecidas é que ospapéis, vez por outra, se invertiam com os entrevistados fazendomuitas perguntas – a maioria delas retóricas – e que o pesquisadorinterferiu nas falas uma vez que todo e qualquer estímulo à memóriaé uma interferência. Mas, ficaram as falas dos “sujeitos da pesquisa”como se apresentaram e foram transcriadas o mais próximo possívela apresentação inicial, embora seja óbvio que a letra não traduz asensibilidade, embora a interprete – e foi isso que buscamos fazer.

As memórias que os idosos têm sobre si, sobre os outrose sobre o lugar onde vivem nos são importantes mais pelo queproporcionaram como lembranças que pelas possíveis e justificáveisomissões. Registramos fragmentos do que compõe a imensa vastidãoda memória e temos uma única certeza: as análises aqui produzidassão apenas fragmentos de um trabalho de possibilidades que envolvemas letras, as falas, os mundos de cada ser humano estudado.

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Esses homens e mulheres que não aceitam o conceito quese tenta aplicar a cada um deles como “terceira idade” ou “melhoridade”, por dezenas de vezes se auto intitularam como velhos, oranegativa, ora positivamente. Eles se vêem e se percebem como velhos,por isso reiteradas vezes utilizamos essas duas expressões. Elescomparam “terceira idade” com “arroz de terceira”, algo não tão bom.Para os sujeitos lembrantes entrevistados a “melhor idade” foi suainfância, por isso não aceitam a aplicação desse termo em seu atualestágio de vida. Vêem o termo “idoso” como representando algo oualguém que já foi e não é mais porque é “ido”, “idoso”. Quanto avelho, ficou a expressão de “velho” é algo ou alguém que chegouantes, que está há muito tempo e ainda permanece; mesmo com odesgaste do tempo “o velho permanece”, ainda tem o seu lugar e oseu espaço de atuação no tempo e na comunidade. O idoso veio e sefoi, passou o seu tempo. O velho veio e permanece até os dias que sefizerem atuais ou até sua morte.

Pelo trabalho com a oralidade percebemos a valorizaçãodo observador, quando, ao descrever a história de vida, pondera sobreas causas e os efeitos do momento em que a história foi contada. É odiálogo entre o observador e o sujeito efetivada na entrevista (“entre-vistas” ou “olho no olho”) de modo a ampliar o discurso em váriossignificados. Assim, a autoria das histórias é fruto da integração entreo discurso, os fatos e a capacidade interpretativa do pesquisador emrecontar a história, desvendadas segundo suas entrelinhas.

Compreendemos que a memória não é algo do passado.Ela é o passado representado no tempo contínuo da lembrança; e sóé possível se lembrar no presente. Portanto, a memória e a lembrançapresente da representação do que se supõe, ou pressupõe passado,mas que na verdade não findou porque é atualizado. E é exatamentena atualização dos relatos que trabalha o pesquisador. Nesse local, éque reside o labirinto das possibilidades: algumas dando em“clareiras”, outras em cerceamentos e poucas em “saídas”, que emgrande medida são momentâneas e só são saídas dependendo de quemolha ou de onde se olha. Porque lembrar é viver e vivemos

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cotidianamente, só que de formas diferentes. Vive-se um dia anteriorde multiformas, por multivontades, a partir de multidirecionamentos,e por múltiplos impulsos dentro de fissuras de tempo que sãodinâmicas e representativas.

Na relação inter-pessoal, bem como, nas interações deindivíduos entre si, percebemos a consciência como uma construçãosocial, em um viés de dupla troca, na qual a vida determina aconsciência e a consciência determina a vida.

Cavalcanti (2001), afirma que “somos personagens de umdrama coletivo, onde o papel de cada autor/ator determina econdiciona o papel do outro”. Assim sendo, o desenvolver dasidentidades humanas se dá pela mediação de indivíduos uns com osoutros e pela construção das funções psicológicas humanas.

O ser humano não é meramente um produto do meio,também não é um ser pensante de natureza não influenciável pelasconstruções culturais a seu redor. Antes, defendemos a posição deque, no ambiente de interação sócio-cultural, o homem constrói suaprópria história e a história da sociedade, concomitantemente ao atode ser construído pela sua própria história e pela história da sociedade.

As visões que aqui apresentamos são partes constituintesdas relações estabelecidas, mesmo sabendo que ocorrem imprevistosquando se vai analisar as relações sociais, porque essas têm múltiplasdimensões ao se mostrar relacionadas às fronteiras do lugar. O sentidodo corpo da memória que surge se constrói através da cultura,apresenta-se de forma fragmentada nas diversas composições da idéiaque se têm do espaço, do indivíduo e da própria cultura. Cultura estaque se estabelece em meio a pressões e coações.

Desta forma, ao apreciar a formação das identidades namemória cultural das gentes do Terceiro Eixo, percebemos que elasestão ligadas à questão local/espacial, sujeito/identidade, território/fronteira. Assim, no tocante a esses pares, podemos afirmar que uminexiste sem o outro, e sua completude apenas se dá nas diferenças emediações inseparáveis aos processos estabelecidos.

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As imagens e vivências, que parecem turvas pelo tempo,calcificadas pela lembrança, às vezes, emergem dos “entulhos” damemória como um resgate do que eles viveram ou pensam queviveram, ou foi vivido, mas não exatamente daquela forma queexplicitam. Embora essa forma explicitada, no momento em que éapresentada na memória, pareça mais prazerosa do que realmente é,e, por isso, quererem tanto ficar com ela.

Em grande medida, eles lembram da recordaçãoconstruída com um sabor adocicado, mais agradável que a vivênciaque tiveram. Muitas vezes, eles têm noção do “real” e assumem,veementemente, que a lembrança prazerosa “do mesmo fato” melhorsatisfaz os anseios. Quanto a isso, Paul Thompson (1992) escreveu:“aquilo que as pessoas imaginam que aconteceu, e também o queacreditam que poderia ter acontecido - sua imaginação de um passadoalternativo e, pois, de um presente alternativo, pode ser tãofundamental quanto aquilo que de fato aconteceu”.

Esses idosos que outrora fizeram parte das populaçõesandantes, ao chegar à localidade, precisavam recomeçar, fazer der-rubadas, cuidar da área, construir o “tapiri”, trabalhar para alimentara família dentre tantos outros afazeres. Contudo, não eram homens emulheres jovens, não em sua maioria. Esses sujeitos, grande partedeles acompanhados por seus cônjuges, tinham os filhos ainda pe-quenos, sendo que os filhos mais velhos os “ajudavam na lida”. O“dono da casa”, muitas vezes, vivia acompanhado por seus pais ousogros, pela esposa, por quatro filhos em média e, às vezes, por no-ras e netos. A maior parte dos entrevistados disse trazer consigo seusparentes, ou eles vieram logo depois. Normalmente, ficavam saben-do do local para morar através de um conhecido, ou em segundoplano, de um parente e, mesmo sem saber de quem eram as terras,iam se instalando no local. A necessidade de ter onde morar e abrigara família era maior que o sentimento de posse do que é alheio ouética de estar adentrando um lugar que não lhes pertencia.

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A identidade desses sujeitos lembrantes que precisaramse mudar e estão em um outro lugar que não é o seu lugar denascimento/crescimento é vista aqui na concepção simbólica dossentidos envoltos em uma materialidade concreta, mas um tantoquanto turva de ser explicitada pelo pesquisador que não a vivenciou.O imaginário está no plano da consciência e embasa a reprodução davida na perspectiva do lugar pela tríade sujeito-identidade-lugar(NEVES, 2000). Em tudo isso, percebemos que a memória dessessujeitos simples da “periferia” está cheia de lembranças, vários delesvenceram o desenraizamento e prosseguiram a vida.

Percebemos, também, que outros estão nos “entre-lugares”, nas fronteiras, nas fissuras da sociedade, ora ensejando olocal de onde vieram, ora permanecendo onde estão. Esses sujeitosconstituídos de vontades, desejos e identificações por diversas vezesenfatizam em suas identidades compósitas o “elo umbilical” que osliga ao “local de origem”. Em seus discursos a idéia perpassante é ade que a segunda e a terceira geração já se identificam com o local,mas eles ainda não se identificaram, não totalmente, talvez nunca ofaçam. Porque em suas múltiplas identidades demonstram a origemespecífica da qual se orgulham, como se houvesse uma forçacentrípeta da qualidade de ser daquele local que os faça querer estaraqui sem desprender de lá.

É certo que alguns já cortaram esse elo e não está emquestão se isso é bom ou ruim. O propósito não é tachar, qualificandoou desqualificando atuações rememoradas ou falta delas com o novolugar. Há a falta do que se foi, e muitos rememoram saudosamente olugar de onde vieram, gostariam de voltar, mas não é possível.

As identidades são construídas não em um ou em outrolugar, elas perpassam pelas fronteiras, independem da oposição rígidado “isso” ou “aquilo”, não estão fundamentadas sobre a concepçãobinária de diferenças em que a fronteira de exclusão interage comum “Outro” e reflete a construção desse “Outro”. Para Hall, essasidentidades culturais são híbridas e se diferenciam umas das outras.O autor comenta o conceito de diferença, relacionando-a a identidadesculturais:

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A diferença, sabemos, é essencial ao significado,e o significado é crucial à cultura. Mas, num movimentoprofundamente contra-intuitivo, a lingüística modernapós-saussuriana insiste que o significado não pode serfixado definitivamente. Sempre há o “deslize” inevitáveldo significado na semiose aberta de uma cultura, enquantoaquilo que parece fixo continua a ser dialogicamentereapropriado. A fantasia de um significado final continuaassombrada pela “falta” ou “excesso”, mas nunca éapreensível na plenitude de sua presença a si mesma (Hall,2003, p. 33).

Podemos concluir que ao mesmo tempo em que elescresceram em um lugar e interagiram com os espaços em volta,precisaram migrar para um outro lugar que não era seu. Aliás, paramuitos ainda não é. Se, por um lado, as vivências passadas dão contada multiplicidade dos espaços, das relações produzidas, das projeçõesconstituintes da identidades de um outro lugar em um outro tempo;por outro lado, as novas experiências pró-migração recheadas devivências exalam a constituição de um lugar em construção.

Mesmo após décadas de distanciamento do lugar ondeviveram, antes de mudar para o bairro em que atualmente vivem,ainda sentem saudades de um tempo que mais parece congelado.Entretanto, pela presentificação da memória, tornam plausíveis asânsias temporãs de retorno a algo que de certo já não é o que foi, nemrepresenta o que projetou.

A sensação de conhecimento obtuso dos lugares exala aexperiência da idéia de não pertencimento. É como se elesconhecessem intimamente um lugar e depois, da mesma forma,vissem intimamente o outro lugar, mas tivessem sensação de nãopertencer completamente a nenhum dos dois. O enigma de uma“chegada” sempre adiada é a sensação de trânsito que perpassa oscorações e mentes desses moradores (Lima, 2006).

As vivências diferentes e o próprio nascimento daconsciência de não pertencimento dão conta de uma lacuna que não

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pode ser preenchida. Porque se estão no local onde hoje habitam,nele formaram vínculos, criaram filhos, projetaram sonhos,constituíram padrões ético/estético/morais para “aquele mundo emque vivem”. As raízes começam a se aprofundar, porém, como emsolo árido de benesses, cultivam os troncos e galhos de árvoresgenealógicas sem as profundezas necessárias das raízes que nãoconseguem vencer o ideário de um mundo que era deles e lhes foitomado. Ou em lugar indeterminado na relação tempo/espaçoprojetada pela memória que lhe tolhe as possibilidades de um fixar-se no presente e no local em que vivem, porque eles mitificam aslembranças afetuosas, fazem com que elas pareçam intocáveis pelotempo e pelo espaço, como se estivessem congeladas. As memóriasreconstruídas parecem mais prazerosas de se lembrar, pela vontadede reviver momentos que pretensamente já aconteceram, sobretudo,porque que muitos deles são frutos de ternas lembranças.

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NOTAS FINAIS

1 LIMA, Reginâmio B. Sobre Terras e Gentes: O terceiro eixoocupacional de Rio Branco. João Pessoa: Idéia, 2006.2 LIMA, Reginâmio B.; BONIFÁCIO, Maria Iracilda G. C. (orgs.).Habitantes e Habitat. 2 ed. Rio Branco: Boni, 2007.3 LIMA, Reginâmio B.; BONIFÁCIO, Maria Iracilda G. C.;ALMEIDA, Lelcia M. M. (orgs.). Habitantes e Habitat: a expansãoda fronteira. Rio Branco, Boni, 2007.4 As populações tradicionais acreanas de crença católica tinham eainda têm o costume de fazer promessas a santos para alcançar algumfavor. E como prova de devoção escolhiam o nome do santo paraque fizesse parte da linhagem da família, não apenas dando o nomedo santo aos filhos, mas também identificando a própria crença dospatriarcas da família em determinados ícones da fé católica, devotandoaos santos o que têm de mais precioso, seus filhos.5 SILVA, Maria do Perpétuo Socorro. Seringueiros: memória, históriae identidade. Rio Branco: EDUFAC, 1997.ESTEVES, Florentina. Enredos da memória. Rio Branco: FundaçãoElias Mansour, 2002.

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ASSMAR, Olinda Batista et al. As dobras da memória de Xapuri.Rio de Janeiro: Papel e Virtual, 2002.BONIFÁCIO, Maria Iracilda G. C.. Ideologia e Poder: uma análisedo discurso dos jornais “O Rio Branco” e “Varadouro” durante aDitadura Militar (1977 – 1981). Rio Branco: Cida, 2007.LOPES, Margarete Edul Prado de Souza. Motivos de mulher naAmazônia: produção de escritoras acreanas no século XX. RioBranco: EDUFAC, 2006.6 É necessário que o pesquisador leve um gravador de voz de reservaporque as entrevistas são únicas e nem sempre se pode voltar àlocalidade para fazer a coleta de um novo dado. Não importa se oequipamento é um K7, JVCD, iPod ou mp7. É preciso estar atentoao fato de que, em se tratando de pesquisa, os imprevistos quasesempre acontecem.7 O local onde atualmente se configura a Baixada do Sol é formadopelos bairros do Terceiro Eixo, a saber, Bahia, Bahia Nova, Palheiral,Pista, Glória, Aeroporto Velho, João Eduardo I e II, além de outraslocalidades adjacentes. Esse local já foi chamado pelo poder públicode Aprendizado, Terminal, Adalberto Sena, Salgado Filho e GinásioCoberto. As populações que moram naquela área ainda na atualidadedenominam aquela localidade como foi chamada desde a formação,ou seja, com os nomes dos oito bairros supracitados.8 Este subcapítulo é um resumo de idéias contidas nos livros SobreTerras e Gentes e Habitantes e Habitat, produzidos por este autor,acrescido de informações pertinentes à nova pesquisa.9 As dinâmicas das trajetórias individuais e coletivas se dão emdiferentes dimensões de tempo. O tempo não é linear, mas torna-sevolátil na lembrança, que por muitas vezes é intermitente, agindocomo preterizador do presente ou presentificador do passado(DELGADO, 2006, p.33).10 Roteiro semi-aberto é aquele em que se anseia respostas paraalgumas temáticas pontuais sem, contudo, delimitar os assuntos emsuas especificações detalhistas.

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11 As características semi-estruturadas se referem a tópicos que secompletam para construção do objeto, sendo que estas apontampossibilidades de encaminhamentos para a fluidez das entrevistas enão cerceiam seu ritmo.12 Aquilo que dá a impressão de já ter sido visto. Sensação de jáhaver estado em determinado lugar ou certa situação quando isto, narealidade, não aconteceu (Dicionário Aurélio, 2000).13 Educação no sentido de comportamento social e ensino das tarefasexecutadas pelos homens. Também, as poucas mulheres que sabiamler se incumbiam de ensinar o “ABC” para os filhos.14 Muitas mulheres faziam o próprio fogão de barro, plantavammelancia e grãos, mandioca, criavam galináceos, costuravam asroupas dos da família e até coletavam látex para aumentar a produçãodo marido. Poucas eram as mulheres que tinham sua própria contano barracão. Em alguns casos de doença do marido por longo tempo,a mulher passava anos cortando seringa, mas a conta, o saldo, asvendas, o arrendamento continuava em nome do marido, mesmo queele não produzisse nenhuma cuia de látex naquele ano.

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GLOSSÁRIO

Colocações: Nome dado as várias localidades em que os seringaiseram subdivididos, que serviam para habitação dos seringueiros.Nelas estavam contidas a residência do seringueiro e as estradas deseringa que necessitavam cortar para adquirir o látex a sertransformado em péla de borracha.Literatura oral: É por o processo de restituição mais ou menos difícil,mais ou menos fiel ao modelo de referencia preexistente, a partir doqual é preciso reproduzir, mas também produzir. Cada versão é aomesmo tempo, reprodução e criação.Primeiro Eixo: Localidade que compõe a primeira fase de expansãoda Cidade de Rio Branco, é o que atualmente se chama de Centro dacidade, que anteriormente se chamava Penápolis.Segundo Eixo: Localidade que compõe a segunda fase de expansãoda Cidade de Rio Branco, incluindo os bairros Floresta, EstaçãoExperimental, Cerâmica, Aviário, Bosque, Conjunto Bela Vista,Conjunto Castelo Branco, Cohab do Bosque, dentre outros.

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Seringal: Designação das matas de seringueiras. Propriedade ondese explora a seringueira e que se encontra mais comumente à margemdos rios.Seringalistas: Proprietários dos seringais que se dedicam aexploração dos mesmos.Seringueiros: Pessoas que extraem o látex da seringueira e com elefazem a borracha.Sujeito entrevistador: Pesquisador responsável pelo trabalho deentrevistas, textualização, transcrição, transcriação e análise.Sujeitos lembrantes: Homens e mulheres que rememoraram suasvivências e concederam as entrevistas que compõem o corpus destetrabalho.Sujeitos narradores: Homens e mulheres que tiveram seus discursostranscriados juntamente com os discursos de suas famílias anexadosa este.Tapiri: Residência feita de paxiúba e coberta de palhas muito comumem meio às populações pobres que habitam os seringais amazônicos.Terceiro Eixo: Localidade que compõe a terceira fase de expansãoda cidade de Rio Branco, atualmente chamada de Baixada do Sobralou Baixada do Sol.Textualização da fala: Escrituração da fala em forma de texto,buscando ser o mais fiel possível aos relatos colhidos.Trajetórias: As vivências pontuais descritas pelas pessoas com finsa demonstrar situações que consideram mais importantes seremdestacadas em suas histórias de vida.Transcriação: Transcriação é um neologismo cunhado por Haroldode Campos para nomear um tipo de tradução que ultrapassa os limitesdo significado e se propõe à fazer funcionar o próprio processo designificação original numa outra língua.

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Os seres humanos têm em suas vidas alguns ciclos que se repetem nas inúmeras gerações: o nascimento, a juventude, a idade adulta e a velhice. Neste livro estudamos não apenas a velhice ou a memória, mas a memória de velhos, que se constituem sujeitos lembrantes de trajetórias de vidas, que ensejam vivências e relações sociais estabelecidas no tempo, no espaço, na memória e/ou nos construtos cerebrais. Apresentamos nossos enfoques e constatações, tendo como ponto de partida um estudo crítico-reflexivo da memória de velhos, pautada em um contexto de geração.

Em nossa abordagem, enfocamos a ocupação dos espaços sociais e suas representações nas memórias ao longo das trajetórias de vida dos sujeitos migrantes que atualmente são considerados velhos, mas que têm muito de vivências e jovialidade em seus espíritos.

Ao perceber a memória como aporte da construção da história e da sociedade, trabalhamos com os autores Ecléa Bosi, Paul Thompson e Stuart Hall.

Tentamos “reconstruir”, com entrevistas, a partir das memórias, lembranças e esquecimentos, uma parte das trajetórias de vida dos sujeitos lembrantes que atualmente são idosos ou velhos, como preferem ser chamados e presenciaram os momentos de lutas, rupturas e soerguimentos nos processos de ocupação de localidades onde vivem.

Dr. Reginâmio Bonifácio de Lima - Acreano de Rio Branco, atua na Diretoria de Ensino da PMAC, como Mentor Proerd. Desenvolve trabalhos como professor visitante na FTBB e no Seminário Teológico Kerigma. Coordena o Grupo de Pesquisa Sobre Terras e Gentes: Amazônia em foco. Publicou vários livros nas áreas de história e teologia, além de diversos artigos em períodicos e congressos.

Financiamento: Apoio: Patrocínio: