a evolução doutrinária do contrato - gisele leite

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  • 7/24/2019 A Evoluo Doutrinria Do Contrato - Gisele Leite

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    Rev. Jur., Braslia, v. 9, n. 86, p.01-10, ago./set., 2007 1

    A evoluo doutrinria do contrato

    Gisele Leite

    Professora universitria, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, Doutora em Direito,Professora de FGV, EMERJ, Conselheiro-Chefe do Instituto Nacional de PesquisasJurdicas, Articulista dos sites www.jusvi.com/, www.lex.com.br, www.mundojuridico.com.br,www.estudando.com, www.netlegis.com.br e [email protected] .

    Resumo:Traa a evoluo do contrato desde direito romano, direito medieval, Cdigo CivilNapolenico at o Cdigo Civil Brasileiro de 2002. Os princpios aplicveis ao direitocontratual e, a transformao em instrumento mais justo e democrtico de circulao deriquezas.

    Palavras-chave:direito civil brasileiro; contrato; pacto; princpios jurdicos; direito

    comparado

    Sumrio:1 Introduo - 2 Desenvolvimento - 3 Concluso - Referncias

    1 Introduo

    Na verdade os contratos verteram-se em pactos, ou seja, perderam o formalismo ritualsticoromano que era fonte da obligatio, vnculo pessoal que subordinava a prpria personalidadedo devedor recaindo sobre o corpo deste. Para se tornarem pactos do qual decorria o dbitoque s operava efeitos de ordem patrimonial.

    E, esse primeiro passo podemos perceber com a Lex Poetelia Papiriaque deixa o devedorlivre (pois no mais seria escravizado ao seu credor quando se tornasse inadimplente) paraincidir sobre o patrimnio do devedor.

    Perozzi e Bonfante como romanistas esclarecem que o contrato primitivo que sematerializava pelo nexumque originalmente constitua-se pelas palavras solenes1(contratosverbais) passa para a forma escrita e pela entrega da coisa (respectivamente contratosliterais e reais) e, por fim, pelo consenso (contratos consensuais).

    Com a influncia germnica e do cristianismo ressalta-se a importncia da palavra dada, dojuramento feito libertando o contrato de seu formalismo primitivo. Assim o contrato deixa deser ritual e formal para ser livre e informal.

    1O pacto romano para se transformar em contrato dependia no direito antigo de formalidades que poderiam serde trs espcies:a.per aes et libram, pelo bronze e pela balana, a mais antiga solenidade conhecida e da qual deriva o nexum.Tal figura muito similar com a mancipatioe coloca o devedor em situao das mais penosas, posto conformeteoria predominante, o vendedor d-se em venda (auto-mancipao) ou em penhor (auto-empenhamento) aocredor para garantir o cumprimento de uma obrigao, que pode abranger no s o nexum, devedor, mastambm sua famlia;b. actum verbis, ou seja, atravs das palavras solenes proferidas entre credor e devedor se caracterizava aconveno, como na stipulatio.c. actum litteris, vale dizer pela forma escrita ou literal. O credor faz uma inscrio num registro privado e, dessamaneira, igualmente, concretiza-se a conveno.

    Artigos

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    Sob a influncia dos brbaros temos o Edito do Rotrio e a legislao de Liutprand(lombardos) que nas palavras dos glosadores e ps-glosadores j aponta a idia de que,atendendo-se a boa f, o contrato obrigatrio entre as partes e vige como lei fosse.

    Mxima no s dapacta sunt servandaque foi difundida por Beaumanoir e imortalizada porPothier a quem se atribuiu a crena dominante naquela poca de que a conveno lei

    entre as partes.

    O mundo evoluiu parra o individualismo e para o mercantilismo que consagrou a divinizaodo contrato. E nessa poca o pragmatismo chegou a considerar o direito comercial comofator de unio dos povos, como espcie de direito natural.

    O auge do contrato foi avivado pelo jusnaturalismo e, para os enciclopedistas do sculo XVIIa premissa primeira e fundamental de todos os poderes era liberdade humana. O contratosocial de Rousseau fornece a caracterstica mentalidade da poca para qual a sociedadederivava de um contrato onde os indivduos abdicavam de certos direitos naturais em trocade encontrar maior segurana na vida organizada da sociedade onde outros direitos (dedeveres) lhes eram reconhecidos.

    Na idia do contrato social a influncia do protestantismo, do liberalismo e dos fisiocratasfoi capaz de endossar o lucro, os juros, a ambio com apoio da analogia das cinciasnaturais passando encarar o contrato como fase evolutiva necessria a todos sereshumanos.

    Entre os juristas a concepo de liberdade era aquela que refletia, sobretudo a liberdadeeconmica, poltica, comercial, de produo era a liberdade conceito oposto e reagente aosprivilgios reais e nobilsticos e fechada economia medieval encastelada nas corporaes.

    Foi o movimento consolidado pelos robustes practiciens(profissionais competentes) dendole corporativa que segundo Ripert fez com que finalmente se elaborasse o CdigoNapolenico que representa monumento da classe burguesa intoxicado de alto liberalismo eindividualismo.

    Nessa poca tudo era contrato, o casamento, a adoo, a cidadania. O contrato em vez datradio ou da transcrio tinha amplssimos poderes que podia at meso transferirpropriedade, ao contrrio do que acontecia no direito romano e do que hoje temos no direitobrasileiro que permanece fiel ao seu legado romano-germnico.

    O esprito individualista liberal e eminentemente contratualista do Cdigo Napolenico (1804)se manteve em diversas legislaes que o seguiram e o imitaram. Faz parte da histria dopensamento jurdico francs o romantismo individualista endossado por doutrinadores como

    Demolombe, Laurent, Huc, Aubry et Rau e Baudry-Lacantiere.O sculo XIX foi crucial pois trouxe relevante alterao na vida econmica-financeira epoltica, o que veio modificar o sentido de liberdade. Surgiu a decantada crise do direitoprivado que tanto abalou tradicionais institutos como propriedade, contrato, responsabilidadecivil e at o comrcio.

    Na Alemanha tramavam os pandectistas2(Windscheid e Dernburg) a renovao do direitoromano j arando devidamente e previamente o terreno para o BGB (Cdigo Civil alemo),

    2Ora, o ideal dos pandectistasera resolver o direito dentro do direito, ou seja, dar ao direito respostas surgidassob o ngulo da juridicidade. Uma das coisas que esse cdigo reconhece que o direito no basta a si mesmo,pois ele precisa, para atender as necessidades sociais, ter em conta os valores da tica. Rege-o um valor deeticidade fundamental, conforme se pode ver em alguns dos dispositivos que vou citar, que reputo comomandamentos-chave da nova codificao.

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    para frutificar as idias sociais difundidas em toda Europa que sofria as intempries denovas necessidades.

    A filosofia racionalista (a exceo a de Descartes e o individualismo de Rousseau) foisuperada. E uma nova ordem se avulta pois o social e, no apenas o individual quecomanda a cena do fim do sculo XIX.

    Os juristas que em 1904 comemoravam o primeiro centenrio do Cdigo Napolenicoreconheceram a necessidade de uma reviso de uma releitura completa dos conceitosencerrados e entabulados pelo cdigo civil francs.

    Desta forma, os mestres do direito pblico como Duguit e do direito privado como Josserrande Saleilles exigem uma renovao do direito que teve uma dico potica e no menosverdica de ser a revoluo dos fatos contra o direito assim cogitada por Gaston Morin e osnovos aspectos da socializao do direito que, aps meio sculo, seriam objeto de tantosestudos de Georges Ripert, Pierre de Harven, Savatier entre outros e, at hoje continuamconcentrando esforos para os juristas que se destacam e se dedicam ao direito privado nosmeados do sculo XX.

    Na verdade essa evoluo revelada em forma de crise, redimensionou vrios institutos-chave do direito privado, at mesmo alcanando o tradicional direito de famlia e dassucesses e vem merecendo vrios preciosos estudos como os de Arnoldo Medeiros daFonseca, Arnoldo Wald, San Tiago Dantas e Afonso Arinos.

    Tantas foram as modificaes sofridas pelo contrato que alguns autores vaticinaram que eraseu fim, e que o conceito original de contrato entre ns talhado pelo Cdigo civil de 1916 nomais existia.

    A regulamentao e simplificao do contrato fizeram com que se transformasse emcontrato de adeso, contrato dirigido, contrato evolutivo e contemporneo. (vide no link:http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/16891 ).

    A prpria doutrina veio obrar distino entre a liberdade de contratar e a liberdade contratualo que podemos verificar positivada nos termos do art. 421 do CC Brasileiro de 2002.

    A liberdade de contratar3 a liberdade de firmar ou no um contrato, enquanto que aliberdade contratual a referente a fixar as normas, clusulas reguladoras do contrato.

    Por influncia dos pandectistas, o cdigo estabelece uma sinonmia entre o jurdico e o lcito. Lcito o que jurdico, jurdico o que lcito. Essa sinonmia foi estraalhada, digamos assim, pelo maior jurista de nosso

    sculo, Hans Kelsen, o qual mostrou que era necessrio ampliar o conceito de norma jurdica. Norma jurdica no a norma sobre o lcito. Kelsen dizia, com ironia: se o lcito fosse sinnimo do jurdico, no haveria lugar para odireito penal. O ilcito tambm faz parte do direito, tanto assim que considerado pelos juzes e pelos advogados,culminando numa deciso, numa sentena, numa sano. Miguel Reale(...) inhttp://www.sescsp.org.br/sesc/revistas_sesc/pb/artigo.cfm?Edicao_Id=133&breadcrumb=1&Artigo_ID=1882&IDCategoria=1946&reftype=1

    3Consta, alis, certa impreciso terminolgica no art. 421 do CC de 2002. A liberdade de contratar ilimitada eeis que se refere ao direito subjetivo de celebrar contrato, e inerente a todo ser humano, por fora de ditamesconstitucionais. O que contingenciada a liberdade contratual que, em face de normas de ordem pblica, sermaior ou menor.Tal liberdade est condicionada lei e por isto determinado contrato poder ser considerado nulo e, noproduzir efeitos desejados pelas partes. Ento a funo social atinge a liberdade contratual, diz respeito aoobjeto e contedo do contrato, mas no a inalienvel liberdade de contratar.Conclui-se que muitas vezes no havia mais liberdade contratual e mesmo a liberdade de contratar sofriaimportantes limitaes. Chega-se ento a era quando se conclui que no existem direitos subjetivos absolutos eilimitados.

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    O nmero crescente de normas de ordem pblica consagrando a efetiva intervenoeconmica do Estado tem sido generalizada, fato que identificamos desde a Constituio deWeimar e, que encontrou abrigo constitucional inclusive no Brasil atravs das Cartas de1934, 1937, 1945, 1967 e 1969 e, finalmente, na redentora Constituio Federal Brasileirade 1988 que se refere explicitamente ordem econmica e social.

    Importante ressaltar que o princpio da dignidade da pessoa humana erigido como um dosfundamentos da Repblica federativa do Brasil que se constitui como Estado Democrtico deDireito (art. 1, III da CF de 1988).

    Cogitam alguns doutrinadores como Georges Ripert em declnio do direito, respondendo-lhes com razo nossos notveis juristas tupiniquins afirmando que no se trata dedecadncia, mas de adaptao s novas necessidades. So novos paradigmas que surgemtanto no direito privado como tambm no direito pblico e, qui no direito internacional.

    Vicente Ra com sua lapidar obra O direito e a vida dos direitos esclarece que atual criseconsiste apenas no reajuste, no realinhamento das normas jurdicas s condies de vida denossa poca. So novas as premissas a guiar o conhecimento jurdico.

    As transformaes sociais, ideolgicas, econmicas e polticas e mesmo at tecnolgicasexigiram do legislador uma preciosa tcnica especial de adaptao das normas de maneira aevitar-se que o direito seja exercido, contrariamente sua finalidade social, contendo-se ecoibindo-se abusos e excessos.

    Da porque o rigor positivista no mais hbil a ser praticado, originando-se uma glebadoutrinria chamada de neopositivistas que so mais flexveis e sensveis aos clamoressociais contemporneos.

    Nesse momento surgem conceitos amortecedores ou vlvulas de escape ou de seguranaque podemos evidenciar atravs das teorias do abuso de direito, da impreviso, daonerosidade excessiva, e outras como a do equilbrio entre os contratantes e a conservaodos contratos. Alm das clusulas gerais da funo social do contrato e a da boa-f objetiva.

    Tais tcnicas permitem manter o tradicional sistema, evitando seus inconvenientes emcertas hipteses especiais.

    As grandes inovaes introduzem e despontam a necessidade humana que a fora motrizda decantada revoluo dos fatos contra o direito de Morim, mas j sabemos que o direitosurgiu e se nutre exatamente dos fatos (ubi jus ibi societas).Da a pertinncia dogmtica datridimensionalidade que sintetiza: fato, valor e norma.

    A clusula rebus sic stantibusoriunda do trecho de uma glosa atribuda a Nercio(Contractus qui habent tractum successivum et dependentiam de futuro rebus sic stantibusintelligentiur). Traduzindo literalmente: Os contratos que tm trato sucessivo ou dependnciado futuro entendem-se condicionados pela manuteno do atual estado de coisas.

    Esta clusula de origem cannico-medieval que vem a inspirar a teoria da impreviso queatua como amortecedor que limita a autonomia da vontade no interesse da comutatividadedos contratos e com a finalidade de assegurar a equivalncia das prestaes doscontratantes, quando, por motivo imprevisto, uma delas se tornou excessivamente onerosa.

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    2 Desenvolvimento

    Prev o Cdigo Civil de 2002 (nos arts 317 e 478) a possvel resoluo dos contratos poronerosidade excessiva nos contratos de execuo continuada ou diferida. Optou o legisladorptrio por atrelar a onerosidade excessiva teoria da impreviso muito embora sejam essasconceitualmente distintas.

    Pressupe-se para a aplicao das teorias que o contrato seja bilateral ou sinalagmtico,oneroso e comutativo. Apesar de que nos contratos aleatrios como o de seguro quepossuem parte comutativa, tambm possam ser aplicadas. Embora muito semelhantes taisteorias no se confundem.

    Surge na Idade Mdia a teoria da impreviso atravs da clusula rebus sic stantibuscomoforma de abrandar o rigor do princpio da obrigatoriedade dos contratos (pacta suntservanda).

    Sua base referencial que o contrato formado de acordo com determinadas condiesfticas que existem no momento de sua formao. Se houver grave, brusca e imprevisvelalterao nas condies fticas vigentes na poca da celebrao e, em razo destas, ocontrato gerar enriquecimento injusto a um dos contratantes, poder o outro contratanteinvocar a clusula rebus sic stantibuspara no cumprir o contrato firmado.

    A teoria da impreviso est vinculada aos fenmenos imprevisveis e extraordinrios queso, por exemplo, guerras ou fortes mudanas econmicas que so capazes de afetar oumesmo romper o equilbrio existente entre as prestaes, a quebra do sinalagmacontratual.

    Por outro lado, para a teoria da onerosidade excessiva basta a mudana da situao fticaque torne insuportvel o cumprimento contratual, no se levando em considerao se aalterao ftica era previsvel ou mesmo extraordinria.

    A importncia da clusula medieval que os doutrinadores modernos transformaram em teoriada impreviso veio crescer principalmente em face das grandes modificaes do valor damoeda, reconhecendo-se a existncia da iluso da chamada moeda estvel no direitocontemporneo que bem preconizou Galbraith quando identificou a Era da Incerteza.

    A Lei Faillot em 1918 (na Frana) marco histrico da clusula rebus sic stantibusposto quemodificou normas contratuais onde uma prestao se tornou excessiva penosa a um doscontratantes em virtude da guerra.

    Origem de relevantes inflaes monetrias foram duas grandes guerras do final do sculo

    XIX que forou o legislador fixar sobre o curso forado da moeda, proibindo clusulas ondeas partes adotariam outro padro, que no a moeda, para calcular seus dbitos.

    Entre ns, h a vedao de pagamento em moeda estrangeira (Dec. Lei 857/69 com asexcees permitidas em lei).

    A jurisprudncia alem integrando o pargrafo 242 do BGB admitiu a teoria da impreviso, elimitava a obrigar o devedor a cumprir a sua prestao de acordo com as normas delealdade e confiana recproca (Treu und Glauben) e na forma de usos admitidos nocomrcio.

    Arnoldo Wald destaca a grande influencia dessa jurisprudncia e de artigo jurdico sobre

    direito brasileiro, notadamente o STF. A inflao no Brasil no pode ser consideradaimprevisvel e nem extraordinria, pois faz parte da cultura nacional. Mesmo quando estadormita de forma controlada e limitada (desde 1994 com a realizao do Plano Real).

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    Desta forma, a alegao de inflao insuficiente e imprprio pra credenciar odescumprimento contratual com base na teoria da impreviso.

    Todavia, se houver uma galopante inflao como ocorrera nos anos 80 que atingiu 80% aoms, h crasso desequilbrio objetivo entre as prestaes pactuadas que pode ser a causade resoluo por onerosidade excessiva.

    Para ser possvel a aplicao da resoluo prevista no art. 478 do CC dever o contratanteprovar: que o contrato nascera equilibrado, com perfeito sinalagma gentico; e um fenmenoextraordinrio (fora do comum) e imprevisvel causou desequilbrio entre a prestao econtraprestao. E, ainda, a extrema vantagem patrimonial que ter o outro contratante porvezes custa da misria do outro, caso seja a avena cumprida literalmente nos exatostermos ajustados originalmente.

    Assim recomenda o Enunciado 17 da CJF que o art. 478 do CC de 2002 deve serinterpretado no somente em relao ao fato que gere o desequilbrio mas tambm emrelao s conseqncias que ele produz.

    No segue o CDC a mesma linha do CC de 2002, ao disciplinar a onerosidade excessiva e anoo da teoria da impreviso, portanto, basta que nas relaes de consumo haja odesequilbrio objetivo das prestaes para que possa o consumidor invocar a resoluo docontrato. No se importa tambm se era ou no previsvel ou ordinrio (art. 6, V).

    Pode o contratante ento beneficiado optar por modificar o acordo com eqidade,reequilibrando o contrato (art. 479 do CC) e, por fora do princpio da conservao doscontratos, manter agora redimensionado o referido contrato.

    Verdadeira construo jurisprudencial alem que prova inequivocamente ser a jurisprudnciauma verdadeira fonte de direito como j havia reconhecido Josserrand e Vicente Ra.

    Por outro lado, a doutrina alem equiparou impossibilidade de cumprir a obrigao, aextino dessa ou reduo do seu montante, no caso de onerosidade excessiva. Essaimpossibilidade subjetiva de carter econmica, oriunda da onerosidade excessiva, outraidia fecunda no direito germnico contemporneo, o que veio dominar os cdigos maisrecentes.

    Deve-se mencionar que outras legislaes j tinham francamente admitido que conforme ocaso concreto, o juiz modificasse as clusulas contratuais para evitar o abuso do direito. Oconceito amortecedor de abuso de direito apesar das severas crticas de Planiol, mereceuprecioso estudo de Josserrand e veio efetivamente influenciar a doutrina civilista da maioriadas legislaes contemporneas ora vigentes.

    Concretos exemplos observamos no direito suo que aps reconhecer amplos poderes aomagistrado que mesmo ante a ausncia normativa quando poder decidir como legisladorfosse, condenando o abuso de direito. O que em minhas aulas, chamo carinhosamente defilhote de urubu, nasce branco, mas acaba preto. Nasce lcito, mas acaba ilcito. O Cdigocivil greco (art. 388) e o Cdigo Civil italiano (art. 1.467).

    Em torno desse tema surgiu vasta literatura e at mesmo um novo ramo de direito, o direitomonetrio face da sua extrema importncia e pertinncia.

    De qualquer forma, recomenda outro enunciado do CJF que em ateno ao princpio daconservao dos contratos, o art. 478 do CC de 2002 dever reduzir sempre que possvel, a

    reviso judicial dos contratos e no resoluo contratual.

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    Assim como o Cdigo Civil francs, o napolenico e nosso Cdigo Civil de 1916 foram decunho liberal e individualista e, surgiu uma sociedade rudimentar que ignorava a questosocial. Lembremos que o Cdigo de Bevilqua fora feito para um pas de moeda dita estvel,onde os contratos no deveriam sofrer maiores alteraes inerentes vontade doscontratantes.

    Na bossa fisiocrata do lassez faire, laissez-passer o nosso cdigo civil nasceu provectopara sua poca, algo assim bem similar ao que se sucedeu com o Cdigo Civil de 2002 quefoi originado por um Projeto de 1975 e, portanto, anterior, a Constituio Federal de 1988.

    Poucos dispositivos legais se preocupam com a impreviso, vide o art. 1.059, nico do CCde 1916 que limitava a responsabilidade aos danos previsveis, o que , explicvel dentro deum sistema que em tese tinha a responsabilidade fulcrada na culpa. Tambm outrosdispositivos legais so os arts. 1.180 e 1.250 do CC. De 1916.

    O erudito e pioneiro Arnoldo Medeiros da Fonseca estudando o problema do caso fortuito ea teoria da impreviso abrindo novos caminhos para doutrina nacional. Naquela poca nossoordenamento jurdico no consagrava a clusula rebus sic stantibus.

    Posteriormente surgiram novas disposies legais depois de 1930 que vieram reconhecer oque j era admitido na legislao brasileira o consagrado princpio da teoria da impreviso.S a guisa de ilustrao citamos: Dec 19.573/31 que permitiu a resciso da locao defuncionrio pblico ou militar, no caso de remoo ou reduo dos seus vencimentos, emvirtude das modificaes decorrentes da Revoluo de 1930; o Dec 23.501/33 que imps anulidade da clusula-ouro significando interveno do Estado e a limitao da autnoma davontade dos contratantes. Entendeu nessa ocasio o legislador que deve intervir sempre queos contratos revelassem o interesse social.

    Como bem descreve Arnoldo Wald, civilista brasileiro de primeira linha, realizou-se assim o

    eclatement (rompimento) dos contratos, a que se refere Savatier em sua magistral obraintitulada metamorfoses econmicas e sociais do direito contemporneo.

    A ruptura do esquema contratual faz com que a lei inclua no contrato clusulas que aspartes no convencionaram, ou ao contrrio, as considere nulas e no escritas pelas partes.

    Em referncia teoria da impreviso temos a Lei de Luvas (dec. 24.150/34) queregulamentou a renovao locatcia dos imveis com fins comerciais e industriais, tendo sidomantida na Lei 8.245/91 que atualmente disciplina matria.

    Tais dispositivos aceitavam implicitamente a clusula rebus sic stantibus, tambm no art. 31da lei locatcia de 1991 h clara aluso a teoria da impreviso no que tange a locao

    comercial. E mesmo na locao residencial permitiu-se a reviso dos alugueres at o limitelegalmente fixado (arts. 68 a 70).

    O Cdigo Civil Brasileiro de 2002 deu relevante nfase, a justia substancial no contratoconforme seus arts. 421 422 que estabeleceram a funo social do contrato e o da boa-fobjetiva, consagrando tambm a teoria da impreviso em seu art. 317.

    ntida a vocao para eticidade e sociabilidade do Cdigo Civil de 2002 onde se reafirma ateoria da reviso como instrumento de readequao contratual. Adotando a tese j entoconsolidada na jurisprudncia (especialmente no tocante aos contratos de empreitada) eseguindo o exemplo do Cdigo Civil italiano.

    A teoria da impreviso considera o contrato no como negcio isolado e, sim, comopertencente a uma realidade contratual que est sujeita s incertezas inevitveis prprias e

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    imanentes do futuro. Esta tese possui o nobre objetivo de tutelar as partes em face daalterao gravosa da realidade que era desconhecida no momento de sua celebrao.

    Ressalte-se que os tribunais ptrios reconheciam o carter excepcional da reviso docontrato com base na teoria da impreviso a fim de evitar a criao de um clima de totalinsegurana jurdica.

    Tambm no direito pblico se fez sentir a necessidade de se aplicar a teoria da impreviso, aCF de 1969 se referia aos dois casos (art. 167, II e art. 102, 1.).

    Tambm leis especiais permitiram a aplicao da teoria da impreviso principalmentequelas ligadas ao BNDES e ao Sistema Financeiro de Habitao.

    A doutrina das dvidas de valor no se trata da incidncia da rebus sic stantibus. As dvidasde valor no importam em pagamento de certa quantia, e sim, em garantir ao credordeterminado poder aquisitivo (deve-se um quid, e no um quantum). o que ocorrecomumente com os alimentos.

    Quem causou dano a outrem no lhe deve quantia, mas sim a quantia representativa dovalor do prejuzo experimentado (Smulas 490 e 560 do STF).

    Apesar de terem finalidades bem anlogas a teoria da impreviso e a das dvidas de valorso distintas, posto que visem reequilibrar o contrato em face das condies existentes nomomento de sua execuo.

    A teoria que se aplica s dvidas de dinheiro exige imprevisibilidade do evento que modificoucancerigenamente as condies existentes. J nas dvidas de valor no plausvel aaplicao da teoria da impreviso.

    Pois mesmo tendo sido previsvel e mesmo de fato prevista pelas partes, mesmo assim caberequerer o reajustamento das prestaes em ateno s finalidades da dvida.

    Podem a lei e a conveno transmutar a dvida de dinheiro em dvida de valor. De sorte, quea incidncia da correo monetria importa em converter a dvida lquida em dvida de valor.

    O STF tem reiteradamente decidido sobre a validade da correo monetria convencional(RTJ 64/386, 69/587, 65/874, 88/325 e 60/553 e 60/867).

    3 Concluso

    Ento resumindo, os contratos evoluram se transformando em pactos, escapando da rigidezdapacta sunt servanda, submetendo-se a rebus sic stantibus, sendo informal e consensual,passando adotar na maioria das vezes o contrato de adeso, ganhando uma necessrialeitura de funo social e requerendo de seus partcipes uma atuao com boa-f objetiva,em respeito ao equilbrio das prestaes avenadas e, ainda, sempre que possvelpleiteando-se pela conservao das avenas.

    Assim, o contrato continua fazendo lei entre as partes, mas com respeito dignidade dapessoa humana e de todas as normas de ordem pblica que o capacitam a ser instrumentode circulao de riquezas mas destinado a ser um instrumento mais democrtico e justo dodireito privado. Eis o novo paradigma de contrato, onde para entend-lo, interpret-lo equi julg-lo necessita-se de recorrer ao dilogo das fontes.

    Rsum : Il trace l'volution du contrat depuis droit romain, droit mdival, du Code CivilNapolonien jusqu'au Code Civil Brsilien de 2002. Les principes applicables au droit

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    contractuel et, la transformation dans instrument plus juste et dmocratique de circulation de

    richesses.

    Palavras-chave:droit civil brsilien; contrat; pacte; principes juridiques; droit compar

    Referncias

    GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. SoPaulo: Saraiva, 2005. v. 3, t. 1.

    GOMES, Luiz Roldo de Freitas. Contrato. Coordenao de Ricardo Pereira Lima. Rio deJaneiro: Renovar, 1999.

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  • 7/24/2019 A Evoluo Doutrinria Do Contrato - Gisele Leite

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    Revista Jurdica

    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/revistajuridica/index.htm

    Artigo recebido em 31/07/2007 e aceito para publicao em

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