a evolução do conceito de território, gottman

23
A evolução do conceito de território 1 Jean Gottmann Território é uma porção do espaço geográfico que coincide com a extensão espacial da jurisdição de um governo. Ele é o recipiente físico e o suporte do corpo político organizado sob uma estrutura de governo. Descreve a arena espacial do sistema político desenvolvido em um Estado nacional ou uma parte deste que é dotada de certa autonomia. Ele também serve para descrever as posições no espaço das várias unidades participantes de qualquer sistema de relações internacionais. Podemos, portanto, considerar o território como uma conexão ideal entre espaço e política. Uma vez que a distribuição territorial das várias formas de poder político se transformou profundamente ao longo da história, o território também serve como uma expressão dos relacionamentos entre tempo e política. Definições do conceito O território consiste, é claro, de componentes materiais ordenados no espaço geográfico de acordo com certas leis da natureza. Entretanto, seria ilusório considerar o território como uma dádiva divina e como um fenômeno puramente físico. Os componentes naturais de qualquer território dado foram delimitados pela ação humana e são usados por um certo número de pessoas por razões específicas, sendo tais usos e intenções determinados por e pertencentes a um processo político. Território é um conceito gerado por indivíduos organizando o espaço segundo seus próprios objetivos. Na teoria política, o território parece ter sido um termo utilizado nas línguas europeias desde o século XIV para definir primeiramente a jurisdição ou até mesmo a órbita econômica de unidades governamentais, tais como cidades livres, feudos ou reinos. O papel do conceito de território alterou-se ao longo dos séculos. De certa forma, pode-se afirmar que o conceito existiu desde muito antes do século XIV e adquiriu mais significado desde então. No tempo em 1 Texto originalmente intitulado “The evolution of the concept of territory”, traduzido de versão publicada no periódico Social Science Information, v. 14, n. 3, ago. 1975, p. 29–47. Tradução: Isabela Fajardo e Luciano Duarte. Revisão: Fabricio Gallo. 523 B o l e t i m C a m p i n e i r o d e G e o g r a f i a , v . 2 , n . 3 , 2 0 1 2 .

Upload: danilo-amorim

Post on 25-Nov-2015

126 views

Category:

Documents


8 download

TRANSCRIPT

  • A evoluo do conceitode territrio1

    Jean Gottmann

    Territrio uma poro do espao geogrfico que coincide com a extenso espacial da jurisdio de um governo. Ele o recipiente fsico e o suporte do corpo poltico organizado sob uma estrutura de governo. Descreve a arena espacial do sistema poltico desenvolvido em um Estado nacional ou uma parte deste que dotada de certa autonomia. Ele tambm serve para descrever as posies no espao das vrias unidades participantes de qualquer sistema de relaes internacionais. Podemos, portanto, considerar o territrio como uma conexo ideal entre espao e poltica. Uma vez que a distribuio territorial das vrias formas de poder poltico se transformou profundamente ao longo da histria, o territrio tambm serve como uma expresso dos relacionamentos entre tempo e poltica.

    Definies do conceito

    O territrio consiste, claro, de componentes materiais ordenados no espao geogrfico de acordo com certas leis da natureza. Entretanto, seria ilusrio considerar o territrio como uma ddiva divina e como um fenmeno puramente fsico. Os componentes naturais de qualquer territrio dado foram delimitados pela ao humana e so usados por um certo nmero de pessoas por razes especficas, sendo tais usos e intenes determinados por e pertencentes a um processo poltico. Territrio um conceito gerado por indivduos organizando o espao segundo seus prprios objetivos. Na teoria poltica, o territrio parece ter sido um termo utilizado nas lnguas europeias desde o sculo XIV para definir primeiramente a jurisdio ou at mesmo a rbita econmica de unidades governamentais, tais como cidades livres, feudos ou reinos. O papel do conceito de territrio alterou-se ao longo dos sculos. De certa forma, pode-se afirmar que o conceito existiu desde muito antes do sculo XIV e adquiriu mais significado desde ento. No tempo em 1 Texto originalmente intitulado The evolution of the concept of territory, traduzido de verso

    publicada no peridico Social Science Information, v. 14, n. 3, ago. 1975, p. 2947.Traduo: Isabela Fajardo e Luciano Duarte. Reviso: Fabricio Gallo.

    523Bole

    tim

    Cam

    pin

    eiro

    de

    Geo

    gra

    fia,

    v. 2

    , n. 3

    , 20

    1 2.

  • Jean Gottmann

    que vivemos, esse conceito est passando por uma modificao substancial que deve expressar alteraes mais profundas que vm ocorrendo nas questes da poltica. Cientistas polticos e gegrafos ainda despenderam pouco tempo analisando esse conceito: o territrio foi presumido como um atributo por si s evidente das instituies governamentais estabelecidas. Uma vez que nossas disciplinas esto se tornando cada vez mais preocupadas com a teoria geral e com o significado abstrato das noes com as quais estivemos mexendo brincando, o momento parece oportuno para examinar o que esse conceito significou. Entretanto, vale apontar que a pesquisa sobre a natureza do conceito de territrio tem preocupado os juristas, particularmente aqueles especializados em Direito Internacional e Constitucional. De fato, a noo moderna de soberania dificilmente pode ser compreendida e aplicada sem a definio de seu sustentculo territorial. Os juristas tm considerado o territrio como um conceito conveniente, apesar da difcil definio. Advogados internacionais normalmente concordam que o exerccio de um direito tal como o da soberania territorial no pode ser presumido sem manifestaes concretas (HUBER, 1928), e que estas devem acontecer no espao geogrfico. Charles de Visscher escreveu que a configurao consistente do territrio oferece ao Estado uma disposio legtima para o exerccio de seus poderes soberanos (VISSCHER, 1957). R. Y. Jennings notou que a misso e o propsito tradicional do Direito Internacional foram os de delimitar o exerccio da soberania numa base territorial (JENNINGS, 1963).

    Enquanto presumiam a funo essencial do territrio, os juristas encontraram considerveis dificuldades em definir no que exatamente consiste o territrio e a qual funo ele deve ser designado no reconhecimento e no funcionamento de um Estado nacional, para no mencionar os demais aspectos que envolvem as unidades administrativas menores. Georges Scelle expressou uma opinio comumente tida ao se listar o territrio como um dos pr-requisitos para a existncia de um Estado (isto , ltat). No entanto, o territrio no o corpo poltico. Um Estado precisa de trs lments corporels: povo, territrio e organizao governamental (SCELLE, 1951). Mas ento no que consiste o territrio para o jurista? Ian Brownlie, analisando a soberania territorial, concluiu: por ltimo, para determinados efeitos no se pode distinguir o territrio da juridio (BROWNLIE, 1966). Enquanto Verzijl, ao buscar uma definio mais precisa e concreta, observou: o ncleo do territrio estatal permanecer sempre como uma poro definida da superfcie da Terra. Todos os outros elementos dele dependem, e so inconcebveis sem, de tal substrato territorial bsico. Mas ele reconhece que, com os recentes desenvolvimentos tecnolgicos, a extenso do territrio estatal foi expandida para um corpo tridimensional extremamente irregular e de formato complicado (...)

    524 Bole

    tim

    Cam

    pin

    eiro

    de

    Geo

    gra

    fia,

    v. 2

    , n. 3

    , 20

    1 2.

  • A evoluo do conceito de territrio

    uma imensa e mais ou menos amorfa estrutura estereomtrica e polidrica (VERZIJL, 1970).

    A definio e o conceito em si obviamente estiveram se alternando no espao e no tempo, com as ferramentas tecnolgicas disposio da sociedade organizada. Foi fascinante observar as rpidas mudanas da doutrina de soberania que ocorreram no comeo da dcada de 1950, na opinio dos advogados internacionais especializados em espao areo. Quando avies U2 comearam a voar e a era dos misseis balsticos intercontinentais despontou, eles questionaram a validez da estabelecida doutrina de soberania sobre a coluna de espao estendida ao infinito, acima do territrio em terra firme. Houve opinies de que a jurisdio soberana se estendia em altura o quanto fosse possvel o exerccio de controle de cada Poder. A definio de controle permaneceu vaga; deve ter sido aceita como a funo da potencialidade de cada Poder de destruir objetos que penetrassem seu espao areo (COOPER, 1947, 1951). Agora os esquadres de satlites orbitais e outros veculos interplanetrios complicaram o problema acima da superfcie terrestre e outras conquistas tecnolgicas passaram a compor a complexidade para se definirem direitos territoriais acima e abaixo dos oceanos.

    As constantes dificuldades experimentadas pelos juristas demonstram a necessidade de se aceitar que o territrio um conceito, e um conceito mutvel. Como gegrafo, sinto que seja indispensvel definir territrio como uma poro do espao geogrfico, ou seja, espao concreto e acessvel s atividades humanas. Como tal, o espao geogrfico contnuo, porm repartido, limitado, ainda que em expanso, diversificado e organizado. O territrio fruto de repartio e de organizao. Tal como todas as unidades do espao geogrfico, ele deve ser, em teoria, limitado, embora seu formato possa ser modificado por expanso, encolhimento ou subdiviso.

    Basicamente, ele deve ser acessvel; a acessibilidade, pretendida pelo homem e amplamente controlada por ele, umas das razes essenciais para a interveno poltica regular, de algumas formas restringir e de outras melhorar a capacidade de acesso por vrias categorias de pessoas (GOTTMANN, 1973).

    Obviamente, acessibilidade um pr-requisito e um fator de controle da jurisdio. Tanto a acessibilidade como a jurisdio, mesmo que se mantenham baseadas nos mesmos princpios morais, so destinadas a evoluir com os avanos das tecnologias de transporte e comunicaes. A segurana militar assume uma imagem na era da navegao area diferente daquela da era da artilharia de longo alcance, e ns podemos elaborar essa imagem para trs, na histria, ou para frente, num futuro hipottico em que a capacidade de intimidao nuclear possa chegar

    525Bole

    tim

    Cam

    pin

    eiro

    de

    Geo

    gra

    fia,

    v. 2

    , n. 3

    , 20

    1 2.

  • Jean Gottmann

    aos pequenos Poderes. Enquanto modifica o sentido da segurana e da oportunidade econmica oferecida por qualquer territrio dado, a tecnologia no fornece nem o posicionamento do problema e nem as respostas s questes tericas e prticas.

    Territrio um conceito poltico e geogrfico, porque o espao geogrfico tanto compartimentado quanto organizado atravs de processos polticos. Uma teoria poltica que ignora as caractersticas e a diferenciao do espao geogrfico opera no vcuo. Se as ideias no so necessariamente enraizadas ou situadas no espao, o fenmeno material e a ao poltica aos quais essas ideias concernem devem ser localizados em algum lugar do espao geogrfico. Somos lembrados da observao de Aristteles, em sua obra Fsica, que o que no est em nenhum lugar no existe. Essa alegao amplamente apoiada pela histria do conceito territorial. Para os propsitos dessa discusso, proponho que a definio de territrio oferecida no primeiro pargrafo deste artigo possa ser aceita, desde que o espao geogrfico seja descrito conforme sugerido. Muita histria poltica evoluiu em torno da interpretao de qual deveria ser o melhor uso e extenso de territrio possvel atribudo aos vrios povos.

    O antigo debate: isolamento versus cosmopolitismo

    No h dvida de que o debate acerca do tamanho, da estrutura e do uso do territrio de uma comunidade to antigo quanto as primeiras formas de vida poltica. Para nosso propsito, ser suficiente revisitarmos os filsofos gregos, que formularam os fundamentos bsicos da teoria poltica ocidental. Plato discutiu em sua obra Leis os atributos geogrficos de uma polis ideal. Ele a queria isolada, especialmente do mar, para evitar a influncia estrangeira. A populao estaria agrupada no centro do territrio e as relaes exteriores e trocas seriam responsabilidades de um pequeno nmero de funcionrios pblicos especialmente treinados, que seriam um anteparo da vida poltica interna ao envolvimento ou influncia estrangeira. Se a populao estivesse em crescimento, o excedente seria realocado numa outra ilha similarmente planejada. Sua teoria alegava que um alto grau de isolamento promoveria uma poltica melhor e mais estvel. Ela pressupunha um povo bem satisfeito com suas prprias situao e liderana; e, para aliviar as presses do crescimento populacional, ela pressupunha um abastecimento ilimitado de territrio vazio para ser colonizado novamente (Leis, 4.704-5.737).

    A afirmao de Plato de que o territrio deve ser grande o suficiente para a manuteno de um certo nmero de homens de ambio modesta e no maior do que isso a mais antiga precursora da maioria das doutrinas de isolamento,

    526 Bole

    tim

    Cam

    pin

    eiro

    de

    Geo

    gra

    fia,

    v. 2

    , n. 3

    , 20

    1 2.

  • A evoluo do conceito de territrio

    conteno poltica e econmica e autossuficincia. A histria revela que seu conselho raramente foi seguido; at mesmo o melhor aluno de Plato, Aristteles, comeou a divergir dele, conforme discutiu em sua obra Poltica os preceitos de Leis de Plato. Embora concorde com o mestre acerca do desejo da autossuficincia e da limitao do tamanho do territrio, Aristteles se compromete, no Livro VII, com uma rgida interpretao: ele deseja um territrio que seja de difcil acesso para o inimigo e de fcil egresso para os habitantes, pois algumas atividades martimas e de comrcio exterior devem ser encorajadas; e sugere que a raa Helnica a nao melhor governada, e se pudesse formar um nico Estado, seria capaz de comandar o mundo (7.1327b).

    Estas ltimas propostas so geralmente explicadas como uma instruo assaz ambiciosa ao pupilo de Aristteles, o jovem prncipe Alexandre, que certamente colocou-a em prtica com algum sucesso. A filosofia poltica e o planejamento de um imprio construdo por Alexandre, o Grande mal precisam ser descritos aqui. Podem ser brevemente caracterizados como muito mais cosmopolitas e pluralistas do que Aristteles jamais desejou (SABINE, 1957). Em duas breves geraes, o clima poltico se transformou imensamente em relao ao ateniense, que promovia o isolamento, pela frustrao de ser uma grande cidade derrotada na Guerra do Peloponeso, para a tentativa macednica de unir um imprio vasto e diverso que seria estruturado por uma rede de grandes cidades comerciantes e pelo expansionismo econmico e cultural dos gregos (TARN, 1948).

    O debate entre os dois pontos de vista, que pode ser chamado de isolacionismo platnico versus cosmopolitismo alexandrino, continuou ao longo da histria. Roma deu ideia de imprio universal uma marca duradoura. Nesses conceitos imperiais, a noo de territrio recua ao plano de fundo; a organizao territorial, em termos administrativos, militares e econmicos, importante; mas a vida poltica razoavelmente divorciada da localizao e da compartimentao geogrfica, ao ser trazida esfera da organizao da sociedade por meio da lealdade das pessoas. A repartio poltica do espao permaneceu por muito tempo baseada essencialmente em sistemas de lealdade, seja esta relacionada f religiosa, como nas divises entre mundo cristo e islmico, seja ligada s relaes entre indivduos, numa escala local, especialmente no sistema feudal. Somente aps o sculo XIV, em meio a lutas dinsticas na Europa Ocidental, e especialmente na Frana, que vemos o reconhecimento da soberania sobre um territrio nacional emergir como uma conveno essencial do poder poltico. Joana DArc anuncia a tendncia, assim como o sistema de partidos polticos em formao nas cidades italianas da Renascena. Para impor a compartimentao espacial sob uma

    527Bole

    tim

    Cam

    pin

    eiro

    de

    Geo

    gra

    fia,

    v. 2

    , n. 3

    , 20

    1 2.

  • Jean Gottmann

    jurisdio soberana, o mundo necessitava da motivao fornecida tanto pelas grandes descobertas martimas quanto pela Reforma, por meio das Guerras de Religio. Foi na Europa, entre os sculos XV e XVII, que a doutrina da compartimentao espacial realmente amadureceu: as diferenas religiosas enfatizaram a compartimentao poltica do territrio por meio de comunidades que lutassem por sua autopreservao e segurana; a abertura de novos mundos a serem colonizados e explorados levou s divises polticas em imprios coloniais, comeando com o Tratado de Tordesilhas entre Espanha e Portugal. Divises polticas adicionais se desenvolveram com os Tratados de Westphalia, com o isolamento do Japo sob os Tekugawas e, mais tarde, com a Revoluo Americana e as Doutrinas Monroe e Wilson. A sequncia de atos polticos qual essa enumerao alude ilustra a crescente subdiviso do espao poltico em estados independentes, se protegendo de regulamentos distantes e influncias externas, e a nfase da autonomia em um grande nmero de unidades territoriais.

    No decurso desse processo, o antigo debate entre isolacionismo em um espao restrito e expansionismo a partir de uma base territorial continuou persistente, animando as polticas internas das naes, assim como a arena internacional. A escolha entre o modelo platnico ou o alexandrino para servir ao bem-estar do povo e da moral poltica sobrevive como um dilema no resolvido. A soluo do isolamento em um territrio autocontido pode fornecer alguma estabilidade, mas apenas temporariamente, pois logo provoca relativo atraso e, finalmente, insatisfao popular. Apesar disso, houve pocas em que a nfase na soberania territorial e na relativa separao do externo claramente prevaleceram.

    A era da soberania territorial

    Do sculo XV ao sculo XX, a importncia do territrio como a base e a estrutura essencial da poltica emerge gradualmente no mapa-mndi, paralelamente s ideias polticas de soberania nacional e autonomia. O fator geogrfico na poltica constantemente reforado, medida que a compartimentao se desenvolve, que as fronteiras2 nacionais so chamadas de fronteiras3 naturais e que mais naes aderem independncia por meio da diviso dos velhos imprios. A delimitao territorial adotada frequentemente relacionada a diferenas culturais e, em muitas partes do mundo, uma herana de fronteiras4 administrativas desenhadas por Poderes imperiais anteriores. Isso evidente na frica, nas Amricas e em partes da sia. Uma vez que um sistema

    2 Nota dos Tradutores: Boundaries.3 N. T.: Frontiers.4 N. T.: Boundaries.

    528 Bole

    tim

    Cam

    pin

    eiro

    de

    Geo

    gra

    fia,

    v. 2

    , n. 3

    , 20

    1 2.

  • A evoluo do conceito de territrio

    jurdico funcione por algum tempo sobre uma certa extenso do espao, este parece criar um momentum que lhe permite sobreviver a mudanas de regime poltico, pois a unidade da jurisdio territorial estabelece interesses comuns e um modus vivendi entre os habitantes, mesmo que eles pertenam a povos razoavelmente diversos. O territrio enquanto quadro para um sistema poltico separado geralmente desejado para prover segurana fsica contra invaso ou controle estrangeiro, e como uma plataforma para a oportunidade econmica de desenvolver recursos em seu interior e em possveis redes externas. Devido ao fato de o conceito de territrio ser construdo sobre uma busca dual, por segurana e oportunidade, o processo poltico que se empenha em conseguir o melhor equilbrio possvel para a satisfao geral da populao deve continuar debatendo se prefervel o isolacionismo ou o cosmopolitismo.

    No h dvida, entretanto, de que, nos 500 anos que se sucederam aps o incio das grandes exploraes martimas pelos europeus ocidentais no sculo XV, cada vez mais o territrio adquiria o sentido de um porto seguro s pessoas que procuravam desenvolver seu prprio modo de vida e os recursos internos s suas fronteiras, segundo seus interesses particulares. O Estado nacional, portanto, considerou seu territrio como o sustentculo fundamental da segurana e do bem-estar. Tal doutrina e tal modo de pensar foram compelidos a dar uma importncia particular s feies geogrficas do territrio e de suas fronteiras5. Para algumas naes, a fronteira6 era uma linha no espao a ser fortalecida e mantida; o conceito francs de frontires naturelles provavelmente a melhor ilustrao dessa atitude, e enfatizado por Jean Bodin na filosofia poltica, por Richelieu na prtica poltica e por Vauban na prtica militar e na teoria econmica. Para outras naes, a fronteira7 era uma rea perifrica que gerava mudanas sociais e econmicas, modelando a nao e contribuindo para seu bem-estar poltico (CURZON, 1908; TURNER, 1920).

    Uma relao particularmente direta entre um povo e seu territrio foi estabelecida pelas Revolues Francesa e Americana, no final do sculo XVIII. As duas revolues enfatizaram a unidade e a diviso territorial. Ambas estabeleceram como lei fundamental a unidade do territrio nacional em termos econmicos, como um mercado unido para os bens e um espao de livre circulao para as pessoas. Mas enquanto a Revoluo Francesa objetivava um governo popular e enfatizava a igualdade social, a Revoluo Americana, devido sua localizao geogrfica, enfatizou a diviso poltica e uma organizao poltica federal ao invs

    5 N. T.: Frontiers.6 Idem.7 Idem.

    529Bole

    tim

    Cam

    pin

    eiro

    de

    Geo

    gra

    fia,

    v. 2

    , n. 3

    , 20

    1 2.

  • Jean Gottmann

    da homogeneidade territorial. Esses dois modelos foram seguidos por muitos outros pases e ocasionalmente combinados no processo de proliferao de Estados nacionais independentes. Durante essa evoluo, que parece ter causado, na metade do sculo XX, o triunfo da soberania nacional sobre territrios distintos, uma curiosa alterao ocorreu no conceito real de territrio, em termos de seu sentido prtico. O resultado dessa alterao parece ter feito, nos dias de hoje, naes independentes menos soberanas dentro de seus territrios, e o territrio mais importante como uma plataforma para oportunidade do que como um abrigo para segurana.

    Essas mudanas se desenvolveram gradualmente, num contexto multifacetado. lgico a uma nao em vias de conquistar a independncia preocupar-se primeiramente com a preservao desse status por meios militares. Nesse perodo inicial, fronteiras8 e questes de defesa nacional e coeso interna so predominantes. Uma vez que a perspectiva de invaso militar e a dominao poltica estrangeira recuem, preocupaes socioeconmicas vm para o primeiro plano e tornam-se assunto principal no debate poltico. Nos ltimos dois sculos, quando velhos imprios foram gradualmente dissolvidos e a ascenso do nacionalismo tornou possvel para quase todas as pessoas que ento desejavam se tornarem independentes e possurem um pedao de territrio, o efeito prtico da soberania como um exclusivismo jurdico foi consideravelmente enfraquecido.

    Diversos fatores contriburam para esse fim. O principal foi provavelmente o extraordinrio progresso tecnolgico que se iniciou com a Revoluo Industrial e modificou as relaes entre as diversas sees do espao geogrfico. Por um lado, isso melhorou enormemente a tecnologia de transporte e comunicao; por outro, fomentou a especializao das diversas regies na produo ou no consumo de uma variedade de bens. Assim, a diferenciao se desenvolveu entre pases temperados e tropicais produzindo diferentes conjuntos de bens agrcolas; outras diferenciaes se deram entre reas rurais e urbanas, entre regies ricas em carvo ou petrleo e regies ricas em mo de obra ou capacidade tecnolgica. Essas tendncias favoreceram uma grande complementaridade das vrias partes especializadas do mundo, e essa complementaridade poderia ser mais facilmente tecida em um nico sistema, devido maior facilidade de transporte e comunicao.

    Um primeiro resultado dessa evoluo tornou quase todas as partes do mundo mais dependentes do comrcio de longa distncia, e para a maioria dos pases isso implicou forte dependncia do comrcio internacional. O modelo alexandrino vem ganhando do platnico. Uma segunda consequncia percebida

    8 N. T.: Boundaries.

    530 Bole

    tim

    Cam

    pin

    eiro

    de

    Geo

    gra

    fia,

    v. 2

    , n. 3

    , 20

    1 2.

  • A evoluo do conceito de territrio

    na esfera militar. Topografia e distncia, essas duas grandes caractersticas do territrio, tm perdido muito de seus valores para a defesa, sob as circunstncias do conflito em larga escala. Hoje, o armamento operacional permite que ao menos duas superpotncias atinjam qualquer ponto da superfcie terrestre a partir de qualquer ponto do globo. E, num futuro no muito distante, um crescente nmero de outras potncias ser capaz de alcanar uma capacidade semelhante, em certa medida. A manuteno de uma mquina industrial capaz de tais feitos tecnolgicos requer abastecimento de diversas partes do mundo.

    A diminuio da soberania de uma nao independente realada pela sua incapacidade de se autodefender por meio do controle de suas terras, e isso combinado dependncia econmica de suprimentos vindos de alm de suas fronteiras. A organizao econmica do mundo moderno tem criado, na forma da grande corporao multinacional, outro fator poderoso, levando soberania ameaada9 (VERNON, 1971).

    Recentemente, a exclusividade da soberania jurdica perdeu grande parte de seu impacto. Ao mesmo tempo, a soberania foi estendida para reas do espao que habitualmente eram consideradas livres de tal controle. O aumento da acessibilidade aos recursos do mar e do leito marinho trouxe reclamaes de extenso do controle soberano sobre a plataforma continental, expandindo os mares territoriais para at duzentas milhas a partir da costa e para outros recursos que esto sob o mar. evidente que a liberdade do alto-mar proposta pelos holandeses no sculo XVII um conceito relativamente recente. Atualmente, ele vem sendo hipotecado por uma tendncia poltica que apoiada por muitos Estados, ameaando compartimentar a maior parte do espao martimo em setores que seriam apropriados por poderes costeiros, como acrscimos de seus respectivos territrios terrestres.

    Uma evoluo muito diferente pode ser observada na jurisdio reclamada por naes soberanas sobre a coluna de espao que se estende, em altura, acima de seus territrios terrestres ou martimos. Desde que os homens comearam a voar, e particularmente desde que Bleriot voou sobre o Canal da Mancha, o Direito Internacional reconheceu incondicionalmente a soberania sobre a coluna de espao areo ao infinito (COOPER, 1947). Apesar das convenes internacionais que tomaram tal deciso permanecerem teoricamente vigentes, praticamente todos os Estados aceitaram as recorrentes passagens de satlites e outros foguetes em rbita sobre seus territrios. Estas dificilmente podem ser restritas a passagens

    9 N. T.: Ttulo do livro Sovereignty at bay: the multinational spread of US enterprises, de Raymond Vernon. Trad. Antnio Zoratto Sanvicente. So Paulo: Pioneira, 1978.

    531Bole

    tim

    Cam

    pin

    eiro

    de

    Geo

    gra

    fia,

    v. 2

    , n. 3

    , 20

    1 2.

  • Jean Gottmann

    inocentes, medida que os objetos em rbita possam muito bem carregar tanto instrumentos de sensoriamento remoto para espionagem sobre territrios estrangeiros como bombas nucleares que podem ser lanadas por controle remoto. Essa situao ilustra o fim da funo de segurana do conceito territorial. Tambm ilustra a curiosa contradio entre a extenso simultnea da jurisdio territorial sobre os mares e abaixo deles, por um lado, e a restrio gradual do controle territorial no espao interplanetrio acima do territrio de superfcie terrestre (SELECT COMMITTEE ON ASTRONAUTICS, 1959).

    Se certas funes que costumavam ser consideradas essenciais para o conceito de territrio esto hoje perdendo muito de seu significado, o territrio permanece uma preocupao fundamental da poltica contempornea. a natureza do conceito que est mudando; novos princpios agora norteiam a organizao do territrio.

    Os usos do territrio: um dilema poltico

    Por ser tradicionalmente usado tanto como abrigo quanto como recurso, o territrio cria um dilema bsico para seu povo. Ele pode tentar desenvolver os recursos como um sistema autocontido, tendo em mente o uso como abrigo. Pode tambm adotar uma atitude completamente diferente e usar o territrio para desenvolver os recursos prprios dos lugares, numa grande rede de relaes diversas, com uma mentalidade expansionista. Ter de realizar essa escolha cria um dilema permanente para um pas. No h uma resposta fcil para o problema: teoricamente, a soluo residiria em um consenso balanceado entre isolamento e expanso. A expanso no envolve necessariamente alargamento territorial, mas pressupe confiar poltica e economicamente numa vasta rede de relaes externas.

    Alguns pases experimentaram sucessivamente solues derivadas de uma dessas duas atitudes. As mais espetaculares e severas guinadas nesse tipo de poltica so encontradas na histria do Japo antes e depois de o arquiplago ser aberto ao comrcio externo, sob presso naval estrangeira. Os resultados dessas guinadas nas polticas do Japo so certamente inconclusivos. Esse caso demonstra, entretanto, que o isolamento no necessariamente resiste a longo prazo. Um territrio, sendo uma poro do espao geogrfico, est em risco considervel de se partir com a evoluo generalizada do espao ao seu redor. Ao isolamento dos Tokugawas foi permitido perdurar por 200 anos porque, naquele perodo, o arquiplago japons foi de fato periferia, quase margem do mundo ento usualmente acessvel e trafegado.

    Qual poltica pode ser classificada como a mais benfica para o povo dos

    532 Bole

    tim

    Cam

    pin

    eiro

    de

    Geo

    gra

    fia,

    v. 2

    , n. 3

    , 20

    1 2.

  • A evoluo do conceito de territrio

    pequenos Estados: a empreitada cosmopolita de Cingapura, um intenso entroncamento; ou o isolamento do Buto, um remoto vilarejo montanhoso? Pode-se argumentar que houve uma predeterminao geogrfica resultante da posio de Cingapura em estreitos, entre dois oceanos e em um foco de rotas martimas; isso poderia ser facilmente contrastado com a difcil acessibilidade da bacia do Buto, escondida no corao do Himalaia. Ainda assim, Sua ou Andorra podem ter elegido o destino escolhido pelo governo de Buto, mas no o fizeram, e preferiram ser parte de um cruzamento internacional. Tais polticas mudam, ningum pode garantir que o Buto jamais se tornar o Liechtenstein do Himalaia. Qualquer que seja sua localizao geogrfica, um territrio pode ser politicamente usado de diferentes maneiras.

    Se uma poltica de isolamento aos moldes do modelo platnico no pode ser segura a longo prazo, a participao em uma grande rede internacional tambm vem carregada de alguns riscos. Poucos pases podem alegar que tiveram, em termos de seu uso do territrio e de suas polticas internas e externas, tanto sucesso quanto a Sua teve por mais de um sculo. Mas as mesmas consequncias de seu sucesso causaram mais problemas dentro do territrio, instigando essa campe do internacionalismo a adotar nos anos recentes uma legislao bastante nacionalista, que limita os direitos dos estrangeiros de trabalhar e adquirir imveis. Problemas similares esto sendo vivenciados por diversos pases europeus que aproveitaram a prosperidade e o crescimento na estrutura do mais aberto sistema internacional predominante no mundo ocidental desde 1950.

    Pode ser argumentado que, nessa discusso, eu tomei principalmente exemplos de Estados com territrios bastante pequenos. O tamanho do territrio um aspecto importante e um fator que influencia as decises que seu povo pode tomar sobre seu uso. H considervel literatura devota a essas questes de tamanho dos Estados, e muitos autores tm sido atrados pela categoria particular de micro ou mini-Estado (ROBINSON, 1960; BURTON, 1967; BLAIR, 1967; SANGUIN, 1973). Os micro-Estados, como Mnaco ou Andorra, levantaram questes em termos de sua participao na, ou na excluso das, modernas organizaes internacionais. O tamanho de um Estado deve ser considerado de diversos pontos de vista e o territrio somente um deles; o tamanho das populaes comumente considerado como uma questo muito mais significante, e Cingapura, com dois milhes de pessoas, ser seguramente reconhecida como um Estado separado e um membro da famlia das naes, embora sua extenso territorial no seja muito maior que a de Andorra ou Liechtenstein. Os recursos econmicos so ainda outro fator na determinao do que pode ser chamado de organizao estatal.

    533Bole

    tim

    Cam

    pin

    eiro

    de

    Geo

    gra

    fia,

    v. 2

    , n. 3

    , 20

    1 2.

  • Jean Gottmann

    Luxemburgo e Kuwait so bastante pequenos em rea e populao, mas possuem uma funo especial, devido aos seus recursos econmicos. Finalmente, a organizao poltica um quarto fator; vrios dos menores Estados da Europa e da sia parecem ter resultado de uma minguante estrutura feudal, e ainda so dependentes dos grandes vizinhos para serem considerados organizaes estatais modernas.

    Em termos da funo de abrigo, um territrio pequeno ter a fraqueza de ser mais facilmente invadido por terra ou de ser destrudo pelo bombardeio do que um territrio maior, todo o resto permanecendo igual. O fato que circunstncias indicadas como todo o resto variam profundamente de um territrio para outro e geralmente tm um papel mais determinante nas polticas prticas, tanto em paz quanto em guerra, do que a rea sozinha. Muitos pases grandes foram invadidos ou diretamente controlados pelo exrcito de Hitler na Segunda Guerra Mundial, enquanto a pequena Sua escapou desse destino. Os exrcitos revolucionrios do Vietn do Norte conseguiram marcar prosperamente um ponto contra a fora de muitos Estados grandes. De fato, o smbolo de Davi e Golias dificilmente precisa de explicao, embora possa nos lembrar que a menor estatura uma fraqueza, ao menos que contrabalanceada por tecnologia e habilidades.

    A tecnologia nos traz de volta aos recursos e desenvoltura. Ambos so produtos do conhecimento e da organizao humana. significativo que, em nossa discusso dos micro-Estados, listamos quatro critrios para a condio de Estado, trs dos quais so reconhecidos pela jurisprudncia como condies de status de Estado (ver os lments corporels de ltat10, de Georges Scelle). O quarto critrio, razoavelmente negligenciado pelos juristas, o dos recursos: a comunidade moderna precisa de um mnimo de recursos assaz substanciais para atuar como um membro da famlia de naes. Isso necessrio na prtica poltica, na paz e tambm na guerra. A total falta de recursos pode relegar um povo em circunstncias modernas ao status de tribo primitiva, independentemente da rea que esse povo pode realmente ocupar, por exemplo nas bacias Amaznica e do Congo.

    Essa nova nfase no desenvolvimento econmico pode ser relacionada crescente tendncia de se tratar o territrio cada vez mais como uma plataforma para a oportunidade do que como um abrigo para a segurana. Num mundo cada vez mais interdependente, a importncia econmica do territrio gradualmente crescente. Nesse quesito, o tamanho tambm de maior importncia, porque o espao na superfcie terrestre conota um potencial de recursos minerais e agrcolas,

    10 N. T.: Grifo do autor.

    534 Bole

    tim

    Cam

    pin

    eiro

    de

    Geo

    gra

    fia,

    v. 2

    , n. 3

    , 20

    1 2.

  • A evoluo do conceito de territrio

    ou at mesmo em termos de direito de circulao. O Saara e os desertos lbios costumavam ser considerados como irremediavelmente vazios e como polos negativos no mapa mundial econmico. Entretanto, o gegrafo E. F. Gautier pde prever que o Saara era uma rea de terra grande demais para ser desprovida de recursos (GAUTIER, 1930). Hoje o Brasil pode alegar ter dois teros da extrao mundial anual de madeira e de minrio de ferro em seu territrio, o que difcil de no se contestar, pois o Brasil um pas muito grande e ns ainda no sabemos muito sobre a grandeza total dos recursos do planeta.

    Todavia, a grandeza absoluta do territrio no pode ser comparada a uma quantidade proporcional de recursos. Recursos so por demais multifacetados. A tecnologia moderna aprendeu a reciclar e a sintetizar diversos materiais. Na dcada de 1930, diversas grandes potncias alegaram no possuir recursos suficientes em seus territrios densamente povoados, e demandavam mais espao para obter uma poro mais justa. Na dcada de 1960, esses mesmos pases, apesar de mais povoados e com territrios razoavelmente reduzidos, gozaram de prosperidade e influncia muito maiores. Os desprovidos11 dos ltimos 25 anos foram as naes menos desenvolvidas, cuja maioria possui abundncia de territrio, porm esparsamente colonizado. De fato, no a extenso do espao, mas sua organizao, que agora o objetivo poltico da maioria das naes. De qualquer ponto de vista que tentemos observar, parece que a civilizao moderna requer polticas para colocar um territrio, qualquer que seja seu tamanho, numa grande e vasta rede de relaes ativas. A ascenso do territrio depende do papel que a nao atribui a si mesma na arena internacional; mas a poltica externa no pode fornecer a resposta completa. A organizao interna do espao tornou-se uma preocupao principal do pensamento e da ao poltica (GOTTMANN, 1952, 1966; SOJA, 1971).

    A organizao do territrio: um acordo interno justo

    A organizao espacial dos pases sempre foi extremamente diversificada, e o jogo poltico frequentemente consistiu na dominao de uma regio ou de um grupo de regies sobre as outras. Isso foi aceito como normal sob condies feudais condies as quais duraram quase at o presente, nas partes mais retrgradas do mundo. Regimes democrticos e parlamentares empenharam-se em chegar a um melhor equilbrio, para obter melhor cooperao interna e unidade nacional. interessante notar a posio concedida nos estudos sobre construo de Estados e naes s relaes entre o centro e as partes distantes ou periferia de um

    11 N. T.: Have-nots.

    535Bole

    tim

    Cam

    pin

    eiro

    de

    Geo

    gra

    fia,

    v. 2

    , n. 3

    , 20

    1 2.

  • Jean Gottmann

    territrio nacional (EISENSTADT; ROKKAN, 1973).As relaes entre centro e periferia na organizao do territrio merecem

    mais anlises. Devo focar em alguns aspectos dessas relaes que aparentam ser assaz permanentes nos velhos e tambm nos novos Estados e que possam ser incorporados na teoria poltica. Pouqussimos Estados alegariam ter um territrio de estrutura monoltica. Isso no seria verdade nem numa cidade-Estado moderna desprovida de reas rurais, tais como Cingapura e Mnaco. A pluralidade de regies , na verdade, a regra, com uma concomitante diversidade de interesses locais e de consequente luta dentro das instituies polticas. Entretanto, poderia se apresentar a hiptese de que quanto maior for a rea, mais periferia haver e, consequentemente, mais complicadas sero as relaes entre o ncleo central e as partes distantes. Se esse o resultado de se ter um tamanho maior, poderia o ser devido distncia?

    A distncia no mais um obstculo efetivo, uma vez que essa facilmente superada pelos meios modernos de transporte e comunicao. Todavia, a presente distribuio de interesses , em parte, herana de um passado no qual a distncia era eficaz em separar comunidades distantes e preservar a diferenciao regional. Os povos separados no passado pela distncia podem muito bem ter permanecido distintos em suas lnguas, sua religio ou outra caracterstica sociocultural. Essa diversidade ser refletida no atual comportamento econmico e na percepo poltica de grupos anteriormente separados.

    Tais diferenas entre comunidades regionais no necessariamente levam a oposio e conflito duradouros, a no ser que haja ressentimento de algum deles contra maior riqueza ou poder concentrado em outro. Assim, as reas mais pobres iro se ressentir das mais ricas; provncias que julgarem terem sido impedidas de participar na administrao do poder iro se ressentir e reclamar ou participao maior no governo ou alguma forma de autonomia. Demandas por um acordo justo para todas as partes de um territrio nacional tero um papel considervel nas polticas nacional e local e ameaaro ocasionalmente romper com o processo poltico. So abundantes os exemplos em todos os pases, uma vez que muito poucos, quando algum, poderiam alegar ter alcanado completa unidade e igualdade em todas as suas regies. At mesmo na Frana, prottipo da nao unificada e Estado centralizado por muitos sculos, existem tais divises internas. Bretanha, Alscia e Crsega so exemplos clssicos de perturbao perifrica, em grande parte devido diferenciao cultural e histrica. A diferenciao cultural minscula no caso da Bretanha, dada a estreita e duradoura ligao com a Frana, e alm disso a populao da Bretanha constitui ao menos um quarto da populao

    536 Bole

    tim

    Cam

    pin

    eiro

    de

    Geo

    gra

    fia,

    v. 2

    , n. 3

    , 20

    1 2.

  • A evoluo do conceito de territrio

    total do centro da regio metropolitana de Paris. Mas a Bretanha tem srios problemas econmicos e aparenta ser perifrica nesse nvel, o que envolve o bem-estar de seus habitantes e desperta todas as demais queixas possveis.

    Parece razoavelmente desnecessrio multiplicar tais exemplos; vigorosos regionalismos que at mesmo geraram recentemente novos partidos polticos nacionalistas, como por exemplo na Esccia e no Pas de Gales, ou na Crocia e no Pas Basco, so encontrados por todo o mundo. Aparentemente, a evoluo do conceito de territrio nacional, que vem enfraquecendo o papel da segurana e da soberania, encorajou a ascenso de regionalismos polticos amplamente baseados em queixas econmicas. A riqueza econmica e o poder poltico nem sempre coincidiram em sua distribuio espacial; na verdade, muitos pases viveram em um equilbrio delicado, no qual as autoridades governantes obtiveram seu principal apoio nas sees mais pobres do territrio, dando-as influncia poltica para restringir o frequentemente turbulento dinamismo das sees mais ricas e mais economicamente avanadas. Costumava-se dizer a respeito da Frana que o seu Norte pagava as taxas enquanto o Sul comandava a poltica. Uma frmula similar poderia muito bem ser aplicada aos Estados Unidos, durante um perodo de tempo.

    Todos esses esboos to vastos so vlidos apenas por um perodo de tempo. Hoje, a diviso da Frana em duas metades preferivelmente se daria entre o Leste e o Oeste. O Oeste parece mais perifrico, enquanto as partes orientais da Frana se parecem com componentes do grande cinturo axial transeuropeu, mais industrializado e urbanizado, que se estende da Itlia Setentrional s costas do Mar do Norte. Historicamente, seria possvel tambm contrastar o Norte e o Sul da prpria Inglaterra, deixando a Esccia e o Pas de Gales de lado para esse propsito. Um gegrafo de Oxford, M. A. Busteed, observou que a Inglaterra poderia ser dividida em duas principais metades polticas, com uma linha que, aproximadamente, vai desde Bristol at Humber: antes da Revoluo Industrial, a seo Sul dessa linha era assaz progressiva e cosmopolita, e o Norte mais monarquista e conservador, tal como mostrado, por exemplo, na Guerra Civil do sculo XVII; aps a Revoluo Industrial, o Norte tornou-se mais avanado e interessado na expanso alm-mar, enquanto o Sul tornou-se mais conservador. Posturas nessas duas reas novamente se transformaram recentemente, enquanto o Norte da Inglaterra tornou-se mais abatido economicamente, apesar de industrializado. Na Frana, as regies ocidentais aparentam ser mais abatidas, por serem mais rurais. Em ambos os pases, o planejamento regional est tornando-se cada vez mais preocupado com essas reas atrasadas.

    A ltima metade do sculo assistiu a mudanas considerveis na organizao

    537Bole

    tim

    Cam

    pin

    eiro

    de

    Geo

    gra

    fia,

    v. 2

    , n. 3

    , 20

    1 2.

  • Jean Gottmann

    de quase todos os territrios nacionais, graas grande onda mundial de urbanizao e industrializao. A tendncia provocou uma complementaridade mais especializada, mas tambm maior oposio entre regies que so predominantemente urbanas ou rurais. Maiores concentrao populacional e atividades econmicas desenvolveram-se em grandes cidades e em poucas regies seletas em todos os pases. O gegrafo Mark Jefferson formulou, antes da Segunda Guerra Mundial, uma lei da cidade primria12, demonstrando a ampla concentrao ocorrendo ao redor de um proeminente centro urbano na maioria dos pases do mundo (JEFFERSON, 1940). Descrevendo as enormes megalpoles americanas litorneas do nordeste como um prottipo de concentrao regional e de urbanizao (GOTTMANN, 1961), enfatizei o papel central dessa regio na Amrica do Norte. Mais ou menos na mesma poca, o sudeste da Inglaterra ao redor de Londres adquiriu uma funo similar para as Ilhas Britnicas. No importava, claro, que tais ncleos de grande escala fossem dotados de uma centralidade poderosa, apesar de suas localizaes geogrficas na periferia. No foi a posio geogrfica que possibilitou a centralidade, mas o poder e a riqueza da regio. A concentrao de poder econmico enfatizou o maior papel que os recursos agora tm na organizao territorial.

    Atualmente, a primazia de um grande centro urbano por pas ainda , em geral, verdadeira. ainda mais significativo que, na maioria dos pases, uma ou duas pequenas reas concentram de 15 a 45% da populao em menos de 5% da rea em terra. Tal concentrao usualmente considerada injusta nas reas que esto sendo degradadas; o novo acordo justo supostamente deve redistribuir a populao e a atividade econmica de uma forma mais equalizada por todo o territrio, para alcanar maior justia na geografia do pas (GOTTMANN, 1966). Pouca ateno tem sido dada natureza e ao poder das foras que esto provocando a concentrao, eficincia ou ao dinamismo que isso pode conferir estrutura econmica do territrio como um todo, e a fatores socioculturais que podem tambm ocorrer na migrao s reas mais centrais. Toda regio parece ter adquirido um direito natural e moral igualdade com todas as outras, no que se refere capacidade de atrair ou reter populao e conquistar um padro de vida to bom quanto em qualquer outro lugar.

    A desigualdade obviamente contra a lei moral, quando afeta a estrutura social. Entretanto, a variedade sempre existiu e a sua preservao tem sido normalmente considerada desejvel na natureza e na sociedade. Alm da batalha pelo acesso comum oportunidade, ao qual as regies podem se sentir autorizadas,

    12 N. T.: Laws of primate city.

    538 Bole

    tim

    Cam

    pin

    eiro

    de

    Geo

    gra

    fia,

    v. 2

    , n. 3

    , 20

    1 2.

  • A evoluo do conceito de territrio

    a luta contra as tendncias de concentrao amplamente baseada no desejo natural da maioria dos governos e polticos pela estabilidade poltica. Alteraes na distribuio de populao, cargos e riqueza acarretam mudanas no mapa de comportamento poltico. O poder poltico estabelecido tem notoriamente desconfiado de uma grande e prosperante capital em seu prprio territrio. Plato provavelmente estava certo ao sugerir que a estabilidade poltica era melhor preservada ao evitarem-se o crescimento urbano e o envolvimento com interesses distantes e estranhos. Essa considerao pode ser a razo pela qual tantas autoridades nacionais fortemente estabelecidas transferiram a sede do governo para longe da cidade principal.

    No sculo XVI, um perodo de problemas mas tambm de crescimento urbano e comercial, a corte real francesa passou pouco tempo em Paris, a qual havia se tornando uma cidade muito grande e influente. Os reis frequentemente preferiam castelos no Loire, em Fontainebleau e outros lugares, entre estadias deveras curtas em Paris. Na mesma poca, a corte espanhola tambm era razoavelmente nmade e evitava as principais metrpoles de seus territrios, tais como Anturpia, Toledo ou Sevilha, at que Philip II construiu o Escorial fora de Madri. No sculo XVII, as sedes dos governos de numerosos pases mudaram-se das cidades principais: a capital dos Pases Baixos era Amsterd, mas a corte e o Parlamento eram em Haia; Versalhes foi construda longe de Paris, da qual Lus XIV suspeitava; na Rssia, Pedro I transferiu sua capital de Moscou para a nova cidade porturia de So Petersburgo; no Japo, o shogun governava em Edo, enquanto a capital imperial e a corte permaneceram em Quioto.

    Nos Estados Unidos, por volta de 1800, a capital federal estava estabelecida em Washington, D. C., no apenas para evitar o impacto e rivalidade entre a Filadlfia, Nova Iorque e Boston, mas tambm para acertar um balano entre o Norte e o Sul. A localizao de Ottawa reflete uma preocupao similar em balancear Ontrio e Quebec, Toronto e Montreal. Camberra tambm foi criada para evitar o mesmo entre Melbourne e Sydney. No sculo XX, dois movimentos espetaculares transferiram governos s novas capitais localizadas centralmente na Turquia e no Brasil; Kenial Ataturk escolheu Ancara tanto como um smbolo de uma nao voltada para o interior quanto como uma reao contra o carter cosmopolita e o envolvimento de Constantinopla, a qual foi uma grande capital por muitos sculos. De maneira similar, apesar de num pas muito mais novo e extenso, Braslia foi construda no somente como um polo de desenvolvimento localizado no centro do territrio, como tambm para levar a capital federal para longe do Rio de Janeiro, metrpole cosmopolita demais, para um ambiente onde a maioria dos

    539Bole

    tim

    Cam

    pin

    eiro

    de

    Geo

    gra

    fia,

    v. 2

    , n. 3

    , 20

    1 2.

  • Jean Gottmann

    polticos brasileiros se sentiria segura.No tem havido estudo suficiente da localizao das sedes de governo e do

    processo pelo qual certas reas adquiriram papel de centralidade em diferentes territrios nacionais. Arnold Toynbee ensaiou a tentativa de um esboo histrico a respeito e distinguiu entre capitais de acordo com os fatores predominantes na deciso de suas localizaes: ele as listou conforme prestgio, convenincia ou estratgia; e estudou as caractersticas distintivas das capitais, seus papis enquanto caldeires culturais e barris de plvora13 (TOYNBEE, 1970). Um levantamento sistemtico da tomada de decises envolvendo a localizao das capitais nos tempos modernos deve trazer tona de forma interessante as relaes entre os desejos governamentais e a organizao espacial de seus pases.

    Por conseguinte, parece que no so apenas a periferia e as foras centrfugas que criam problemas para a organizao poltica. Um ncleo dinmico central pode ser to problemtico quanto, embora de maneiras diferentes, por ser muito centrpeto na poltica domstica e muito centrfugo na participao externa. Ainda assim, a periferia que reclama a ateno de gegrafos polticos e de advogados internacionais. Nenhum segmento da Geografia Poltica foi mais trabalhado do que as fronteiras e os limites. Problemas perifricos que possam causar trocas na soberania ou conflitos entre Estados so a preocupao predominante nos trabalhos de juristas (tal como exemplificado at mesmo no volume sobre State territory, por Verzijl, 1970). Em anos recentes, grande ateno foi dirigida expanso de reclamaes territoriais pelo mar e pelo espao areo. Isso tambm perifrico, uma vez que o territrio estatal deve ter um ncleo em terra firme. Ainda assim, a importncia crescente do mar e do ar na poltica territorial requer mencion-los em qualquer esboo de organizao territorial.

    A maior diferena do territrio em terra firme que nem o mar e nem o ar esto na categoria de espaos que podem ser permanentemente ocupados pelo assentamento humano, apesar de ser verdade que plataformas ou ilhas artificiais podem ser construdas bem longe no mar. Parece distante, entretanto, o tempo em que tais estruturas sero habitadas de forma permanente por povos que as reivindicariam como suas principais residncias. Talvez os indivduos possam ser residentes das embarcaes martimas, mas estas estaro se movendo no mar e serviro como lar quando amarradas e registradas num porto. Todas essas embarcaes navegando os mares ou sobrevoando a superfcie da terra podem ser consideradas extenses de terra, mesmo quando temporariamente separadas dela por necessidades de transporte. Todos esses veculos, incluindo satlites no

    13 N. T.: Melting pots and powder kegs.

    540 Bole

    tim

    Cam

    pin

    eiro

    de

    Geo

    gra

    fia,

    v. 2

    , n. 3

    , 20

    1 2.

  • A evoluo do conceito de territrio

    tripulados, devem ser registrados com as autoridades nacionais politicamente reconhecidas localizadas em algum lugar em terra firme. A organizao dos espaos que no podem ser permanentemente assentados e que so usados sobretudo para a circulao de pessoas e bens deve ser estudada como uma categoria especial. Todavia, o mar e o leito marinho so tambm locais para a produo de certos bens, e sua organizao territorial e jurdica como recursos pode conflitar com a regulao da acessibilidade para fins exclusivos de circulao (ALEXANDER, 1967).

    Onde estamos agora?

    O conceito de territrio evoluiu bastante atravs das pocas. Em tempos modernos, e pelo menos desde que Jean Bodin props sua noo de soberania, os conceitos de territrio e de soberania estiveram intimamente conectados. Com a recente proliferao de Estados nacionais, o territrio surgiu como uma definio espacial das jurisdies governamentais e da organizao poltica e militar. Apesar da eroso dos atributos de soberania numa arena internacional cada vez mais complexa e interdependente, os direitos soberanos sobre um territrio, mesmo que este seja muito pequeno, vieram a ser comparados com um tipo de carto de membro no acordo das naes reconhecidas. Em condies de crise, o territrio ainda funciona como um reduto para propsitos estratgicos, apesar de o controle absoluto do espao fornecer atualmente muito menos segurana do que at mesmo meio sculo atrs.

    Com o desenvolvimento da organizao internacional e a emergncia de um pequeno nmero de superpotncias dotado de um domnio mundial por vias militares, o conceito territorial evoluiu na direo de uma funo econmica e cultural. Ele est se tornando principalmente uma plataforma a partir da qual se buscam oportunidades iguais e controle de um sistema domstico de recursos, seja numa escala nacional ou regional. O contedo desse conceito relativo aos recursos especialmente evidente com o recente aumento das reclamaes territoriais sobre o leito marinho, e com o acordo tcito de um limite de altitude pela juridio territorial acima da superfcie terrestre, abaixo do nvel das rbitas dos satlites. A questo mostra-se hoje um tanto acadmica: se a soberania territorial de sobrevoar Estados ou no violada pela passagem de foguetes lanados por um poder em direo a pontos distantes ao redor do globo. A questo da regulao do acesso aos recursos mostra-se muito mais real.

    Enquanto o aspecto econmico das polticas espaciais leva vantagem, a interdependncia econmica das naes tambm se estreita. A maior facilidade com que a informao transmitida e difundida ao redor do planeta por uma variedade

    541Bole

    tim

    Cam

    pin

    eiro

    de

    Geo

    gra

    fia,

    v. 2

    , n. 3

    , 20

    1 2.

  • Jean Gottmann

    de meios tambm diminui a utilidade das fronteiras polticas e coloca a tenso sobre aquilo que o povo faz, sobre o comportamento, mais do que sobre quem possui o ttulo de qual terra. O valor do territrio gradualmente reduzido a questes de organizao territorial pelas pessoas. Enquanto a tecnologia existente apaga muito dos efeitos apartadores da distncia, da topografia ou das reas vazias todos estes fatores foram muito sentidos no passado , ela permite agora que as comunidades possam controlar as habilidades necessrias para remodelar uma considervel extenso dos aspectos fsicos e econmicos de um ambiente regional. O conhecimento dessa capacidade d incentivo s demandas por melhoria e participao no uso de recursos acessveis.

    Finalmente, o territrio aparenta ser um conceito usado para buscar o bem-estar do povo que o ocupa. Por exemplo, recentemente foi possvel aprovar um tratado, em vigor desde 1961, entre os poderes envolvidos com a Antrtica, assegurando paz e cooperao num continente que foi previamente repartido como uma torta de ma por uma srie de reclamaes territoriais conflitantes. Contudo, como pontuado por Edvard Hambro, os nicos problemas econmicos tratados na Antrtica foram a preservao da flora, da fauna e do turismo. Conforme outros problemas possam ser abordados nos campos do uso de recursos, outras srias complicaes e tenses poderiam surgir (HAMBRO, 1974). A Antrtica se torna um interessante laboratrio para a elaborao de possveis novas solues, mas tambm um terreno para confronto.

    O exemplo do continente congelado nos faz entender esse territrio como uma poro de espao geogrfico vazio e de pequena relevncia poltica, a no ser que seja usado com o propsito de exigir sua apropriao. Mesmo naquele Direito tradicional, o conceito incerto: os poderes que exploravam a navegao do continente Antrtico fizeram reclamaes territoriais especficas sobre partes dele, mas os Estados Unidos e a Unio Sovitica no o fizeram e nem reconheceram nenhuma das reclamaes territoriais. O experimento de um acordo internacional usando um continente como um res communis dos interesses gerais da humanidade interessante, mesmo ele estando coberto por uma capa de gelo.

    A evoluo do conceito territorial agora enfatiza o povo e sua organizao como o corpo poltico14, e tambm como legislador. No debate de repartio dos Estados Unidos, a famosa deciso da Suprema Corte no Reynolds vs. Sims (em 15 de junho de 1974) nos relembra que legisladores representam o povo, no 'rvores ou acres'. Em relao a uma opinio minoritria, o juiz Potter Stewart argumenta, no entanto, que legisladores no representam nmeros sem face. Eles representam

    14 N. T.: Grifo do autor.

    542 Bole

    tim

    Cam

    pin

    eiro

    de

    Geo

    gra

    fia,

    v. 2

    , n. 3

    , 20

    1 2.

  • A evoluo do conceito de territrio

    o povo, () com necessidades e interesses identificveis, () que pode frequentemente ser relacionado ao distrito geogrfico. O dilema implcito enuncia um velho conflito construdo na essncia da Poltica e da Geografia.

    Ns chegamos concluso de que o conceito de territrio, com seus componentes materiais e psicolgicos, um dispositivo psicossomtico necessrio para preservar a liberdade e a diversidade de comunidades separadas em um espao acessvel independente. Em termos legais e polticos, ele prov o que, na opinio do Tribunal Internacional de Justia, em 1949, ao definir a nova funo da soberania territorial, o Juiz Alvarez convenientemente denominou uma funo social internacional (HAMBRO, 1963). A funo social ganha nfase na oportunidade econmica, num perodo de consumidores mais exigentes; e pode recuperar a nfase no aspecto de abrigo num perodo de dificuldade e privao. O espao puro, entretanto, dificilmente capaz de recuperar seu significado anterior, com a presena de uma tecnologia que expande a acessibilidade do espao a todos os nveis.

    Esse tem sido, desde tempos imemorveis, um conflito entre circulao e iconografia (GOTTMANN, 1952), cujos os resultados tm moldado a organizao poltica do espao. Ns entramos aqui num caminho que pode nos levar para alm do propsito deste artigo, mas devemos mencionar que, enquanto a circulao se estende e se intensifica e derruba as fronteiras15, as mentes dos homens se reagrupam segundo a lealdade aos sistemas de signos. As fronteiras mais duras atualmente so aquelas da lealdade f ou doutrina. A era aberta 500 anos atrs pode estar se fechando.

    Bibliografia

    ALEXANDER, L. M. The law of the sea: Offshore boundaries and zones. Columbus, Ohio: University Press, 1967.

    BLAIR, P. W. The ministate dilemma. New York: Carnegie Endowment for International Peace, 1967.

    BROWNIE, I. Principles of public international law. Oxford: Clarendon Press, 1966.

    BURTON, B. Problems of smaller territories. London: Institute of Commonwealth Studies, 1967.

    COOPER, J. C. The right to fly. New York: H. Holt, 1947.

    COOPER, J. C. High altitude flight and national sovereigny. Internacional Law Qaurterl, July 1951.

    CURZON, Lord. Frontiers. Oxford: Clarendon Press, 1908.

    EISENSTADT, S. N.; ROKKAN, S. Building statel and nations. Beverly Hills, California/London, Sage., 1973.

    GAUTIER, E. F. La Sahara peut-el tre mis em valeur?. Paris: Acadmie des Sciences Coloniales, 1930.

    GOTTMANN, J. La politique des tats et leur gographie. Paris: A. Colin, 1952.

    15 N. T.: Boundaries.

    543Bole

    tim

    Cam

    pin

    eiro

    de

    Geo

    gra

    fia,

    v. 2

    , n. 3

    , 20

    1 2.

  • Jean Gottmann

    GOTTMANN, J. Megalopolis. New York: Twentieth Century Fund., 1961.

    GOTTMANN, J. Essais sur l'amnagement de l'espace habit. Paris: Mouton, 1966.

    GOTTMANN, J. The significance of territory. Charlottesville, Va.: University Press of Virginia. 1973.

    HAMBRO, E. The case law of the international court. IIIA, Leyden, 1963.

    HAMBRO, E. Some notes on the future of the Antartic Treaty collaboration. American Journal of International Law, 68 (2), 1974.

    HEUBER, M. Arbitration decision in the Island of Palmas case. (Reimpresso em Jennings, 1963, abaixo), 1928.

    JEFFERSON, M. The law of the primate city. Geographical review, New York, 1940.

    JENNINGS, R. Y. The acquisition of territory in international law. Manchester: University Press, 1963.

    ROBINSON, E. A. G. Economic consequences of the size of nations. London: Macmillan, 1960.

    SABINE, G. H. A history of political theory. New York/London, 3rd. ed., 1957.

    SANGUIN, A. L. Les micro-tats d'Europe. Lige. (Tese de doutorado), 1973.

    SCELLE, G. L'tat. In: Introduction l'tude du droit. Vol. 1. Paris: Sirey, 1951.

    SELECT COMMITTEE ON ASTRONAUTICS AND SPACE EXPLORATION. Survey of space law. Washington, D. C.: Government Printing Office (House Document n. 89; 86th. Congress, 1st. Session), 1959.

    SOJA, E. W. The political organization of space. Washington, D. C.: Association of American Geographers, 1971.

    TARN, W. W. Alexander the Great. Cambridge: Cambridge University Press, 1948.

    TOYNBEE, A. Cities on the move. London, 1970.

    TURNER, F. J. The frontier in American history. New York: H. Holt, 1920.

    VERNON, R. Sovereignty at bay: the multinational spread of US enterprises. New York/London: Basic Books, 1971.

    VERZIJL, J. H. W. International law in historical perspectives, vol. II: State territory. Leyden, 1970.

    VISSCHER, C. de. Theory and reality in public international law. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1957.

    544 Bole

    tim

    Cam

    pin

    eiro

    de

    Geo

    gra

    fia,

    v. 2

    , n. 3

    , 20

    1 2.

  • A evoluo do conceito de territrio

    Sobre o autor

    Jean Gottmann (1915-1994): gegrafo francs que, em 1940, se refugiou nos Estados Unidos aps a invaso nazista da Frana. Durante seu exlio, participou do Institute for Advaced Study na universidade de Princeton, lecionou na New School for Social Research e na Johns Hopkins University. Publicou diversos trabalhos nas reas de Geografia Humana, Poltica, Regional e Econmica, alm de estudos sobre a urbanizao dos Estados Unidos. Dentre suas principais obras podem-se destacar L'Amerique (1949), La politique des tats et leur gographie (1952), L'amnagement de l'Espace: Planification rgionale et gographie (1952) e Megalopolis: The urbanized Northeastern Seabord of the United States (1961).

    * * *

    BCG: http://agbcampinas.com.br/bcgTraduo: Isabela Fajardo e Luciano Duarte.

    Reviso: Prof. Dr. Fabricio Gallo (Unesp)

    Copyright 2013 by Maison des Sciences de l'Homme, SAGE Publications.

    545Bole

    tim

    Cam

    pin

    eiro

    de

    Geo

    gra

    fia,

    v. 2

    , n. 3

    , 20

    1 2.