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214 Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) A Ética Samurai e a construção de uma Nação: a apresentação da Ética Oriental Moderna na obra de Inazo Nitobe Gabriel Pinto Nunes * RESUMO Este texto tratará brevemente sobre o surgimento de uma ideologia baseada em uma releitura de um antigo código de conduta dos samurais conhecido como bushidô, que serviu de base para a criação de uma utopia de nacionalista nipônica decorrente da construção de uma identidade nacional. A primeira versão do bushidô a chegar ao ocidente surgiu durante o Período Meiji (1868-1912) pelas mãos de Inazo Nitobe (1862-1933) por meio da obra Bushido The Soul of Japan (1900), na qual associava valores cristãos com a cultura japonesa com o intuito de viabilizar a aproximação cultural entre ocidental e Japão, além de fornecer uma identidade nos moldes dos padrões europeus. O processo pelo qual o Japão passou é similar ao que os povos europeus passaram para construir a ideia de tradição. A linha de raciocínio traçada por Nitobe, mesmo não ficando muito clara na obra, é sustentada pela vertente do confucionismo Oyômei com traços do Zen Budismo e do xintoísmo estatal. Também conta com interpolações do pensamento ocidental, como o evolucionismo social de Herbert Spencer, desempenhando o papel de garantia da evolução da espécie por meio da vida regrada por um ideal ético, o idealismo romântico de Carlyle, o qual forneceu a base para a construção do herói nacional corporificado pelo samurai, e o conservadorismo histórico de Burke, tendo em vista que a obra de Nitobe se assemelha a obra Reflexões sobre a Revolução em França. PALAVRAS-CHAVE: bushidô; confucionismo; ideologia; Japão. * Aluno do Programa de Pós-Graduação em Língua, Literatura e Cultura Japonesa da Universidade de São Paulo. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected].

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Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011)

A Ética Samurai e a construção de uma Nação: a apresentação da Ética Oriental

Moderna na obra de Inazo Nitobe

Gabriel Pinto Nunes*

RESUMO

Este texto tratará brevemente sobre o surgimento de uma ideologia baseada em uma releitura

de um antigo código de conduta dos samurais – conhecido como bushidô, que serviu de base

para a criação de uma utopia de nacionalista nipônica decorrente da construção de uma

identidade nacional. A primeira versão do bushidô a chegar ao ocidente surgiu durante o

Período Meiji (1868-1912) pelas mãos de Inazo Nitobe (1862-1933) por meio da obra Bushido –

The Soul of Japan (1900), na qual associava valores cristãos com a cultura japonesa com o

intuito de viabilizar a aproximação cultural entre ocidental e Japão, além de fornecer uma

identidade nos moldes dos padrões europeus. O processo pelo qual o Japão passou é similar ao

que os povos europeus passaram para construir a ideia de tradição. A linha de raciocínio

traçada por Nitobe, mesmo não ficando muito clara na obra, é sustentada pela vertente do

confucionismo Oyômei com traços do Zen Budismo e do xintoísmo estatal. Também conta com

interpolações do pensamento ocidental, como o evolucionismo social de Herbert Spencer,

desempenhando o papel de garantia da evolução da espécie por meio da vida regrada por um

ideal ético, o idealismo romântico de Carlyle, o qual forneceu a base para a construção do herói

nacional corporificado pelo samurai, e o conservadorismo histórico de Burke, tendo em vista

que a obra de Nitobe se assemelha a obra Reflexões sobre a Revolução em França.

PALAVRAS-CHAVE: bushidô; confucionismo; ideologia; Japão.

* Aluno do Programa de Pós-Graduação em Língua, Literatura e Cultura Japonesa da Universidade de São Paulo.

Bolsista CAPES. E-mail: [email protected].

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Introdução

O processo descrito na obra de A Invenção de Tradições (2008) de Hobsbawm no qual a

tradição assume o papel de motor na construção da identidade entre os membros de uma

sociedade ou grupo humano não é um privilégio dos povos europeus na virada do século XIX

para o XX. Após o fim da política isolacionista (Sakoku) que perdurou por aproximadamente

duzentos anos no Japão e o estabelecimento do contato com as nações do mundo inteiro,

percebeu-se a necessidade de mudanças para evitar que o país viesse a se tornar uma colônia

ou protetorado de alguma nação europeia. A mobilização política foi seguida pelo esforço de

intelectuais para conceber um modelo que pudesse ser instituído no Japão a fim de concretizar

a posição política do país na região. Entre os intelectuais mais atuantes nesta época dentro do

Japão, podemos destacar Inazo Nitobe (1862-1933) que se preocupou em apresentar ao

ocidente os valores japoneses com o intuito de fomentar o estabelecimento de relações

comerciais e culturais entre o Japão e as nações ocidentais.

Se externamente a preocupação de Nitobe era estabelecer vínculos com outros povos,

internamente sua preocupação era incentivar a assimilação da cultura ocidental pelos

japoneses, ao mesmo tempo em que construía uma imagem ideal do japonês. Tal idealização

do cidadão seria apresentada formalmente ao público estrangeiro e ainda seria aproveitada

para estabelecer a unicidade nacional entre todos os povos do arquipélago. Podemos

considerá-lo como um dos primeiros intelectuais a pensar uma identidade como uma

amálgama do pensamento ocidental e oriental para o Japão moderno.

Segundo Reitan (2010) em sua obra Making a Moral Society, nos é mostrado que após o

contato com os europeus na abertura dos portos, uma parte dos intelectuais tomavam aquilo

que até então era entendido como ser japonês – os costumes, vestimentas e inclusive a língua,

como algo bárbaro sendo necessário assimilar o mundo ocidental por entendê-lo como mais

desenvolvido como civilização. Não tardou para que surgissem movimentos contrários que

buscavam dentro da própria cultura japonesa elementos que mostrasse o erro dos que

afirmavam serem os ocidentais mais evoluídos que os japoneses.

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Nesta briga de intelectuais do começo do século XX Nitobe se situava em uma posição

delicada, tendo em vista que tentava unir o melhor dos dois mundos para criar uma identidade

japonesa autêntica, que sempre esteve lá, mesmo que não fosse vista pela maioria. Notamos

em seus textos que evitava a disputa de poder de superioridade entre a cultura japonesa e

ocidental, optando por um discurso conciliatório que mostrava as similaridades dos povos. Seu

tom somente se modificou ao fazer a defesa da religião, pois como havia se convertido ao

cristianismo ainda na juventude, entendia que ela era a verdadeira religião para todos os povos

do mundo, rebaixando as demais religiões dos japoneses a um segundo plano.

Inazo Nitobe e seu tempo

Inazo Nitobe nasceu em 1862 na província de Mutsu, atual prefeitura de Iwate ao norte

de Honshu no Japão e faleceu em 1933 em Banff, Canadá. Era o terceiro filho de um samurai

que servia ao clã Nambu e desde cedo teve contato com a cultura e a arte dos guerreiros

japoneses. Aos 5 anos de idade, após o falecimento de seu pai, mudou para Tóquio para viver

com o tio e foi matriculado em uma escola mantida pelo governo com professores estrangeiros.

O modelo educacional adotado nesta escola fazia parte do esforço de modernização do país

pelo Governo Meiji, o qual contratava especialistas estrangeiros para lecionarem em escolas e

faculdades com o intuito de inserir rapidamente a ciência ocidental dentro do arquipélago. A

presença de tantos estrangeiros no país possibilitou a proliferação de novas ideias em uma

sociedade acostumada apenas com o pensamento confucionista, além de novas religiões em

um cenário dominado por crenças budistas e xintoístas. O Período Meiji (1868-1912) foi

caracterizado como uma época de transição no Japão, no qual há o abandono do sistema feudal

de produção para a adoção do sistema capitalista liberal. Porém, mudanças tão radicais do

ponto de vista econômico, em um curto espaço de tempo, contrasta com a quase imutabilidade

do sistema político e social do Japão. Mesmo com a volta do poder político às mãos do

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Imperador e com o fim da classe dos samurais, notamos que a Restauração Meiji possuía forte

caráter conservador.

Por causa do contato precoce com os estrangeiros, Nitobe se converteu ao cristianismo

e desenvolveu uma atração pela cultura ocidental, tornando-o grande leitor de obras

ocidentais. Na adolescência estudou economia, mas nunca abandonou seus estudos sobre o

pensamento ocidental. Era comum na época que o governo japonês enviasse jovens para

estudarem em renomadas universidades nos Estados Unidos e Europa como meio de acelerar a

inserção do conhecimento científico ocidental e diminuir a dependência da mão-de-obra

especializada e estrangeira no arquipélago, mas Nitobe por não conseguir o financiamento

governamental acumulou recursos próprios para viajar e estudar no exterior, estabelecendo

contato com personalidades tanto do campo científico quanto político.

Após retornar de suas viagens de estudo, Nitobe se incorporou a máquina estatal

japonesa, ocupando diversos cargos tanto na administração pública como no mundo

acadêmico. Na década de 1920 foi representante do Japão na Liga das Nações e posteriormente

foi nomeado senador na Câmara Alta do Parlamento Japonês.

A Ética Samurai

Ao nos referirmos à ética oriental, mais especificamente a japonesa no período Meiji, e

ocidental devemos ter em mente um divisão necessária para podermos entender as diferenças

entre as escolas de pensamento sem cairmos nos mesmos erros que outros pensadores tiveram

quando se depararam com as novas escolas orientais. Nishi Amane (1829-1897) percebeu essa

diferença entre o modo de pensar a ética dos ocidentais e dos japoneses. Ao pensamento

ocidental, a conhecida filosofia, chamou de Tetsugaku e ao segundo de Rinrigaku. O Tetsugaku

era a filosofia do modo entendido pelos ocidentais, nascida com os gregos e estudada nas

universidades européias, na qual a razão é posta como instrumento para a busca da verdade. Já

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o Rinrigaku é a ética assumida na sua forma japonesa, a qual não podemos generalizar com as

demais éticas ou sistemas éticos dos povos asiáticos. Pelo olhar ocidental o Rinrigaku estaria

mais próximo a um código de conduta previamente estabelecido que a conceitos surgidos do

costume dos povos.

The academic discipline of ethics (rinrigaku) emerged from within na epistemology, already authoritative by the early Meiji period, which contested Chu His Cunfucianism and aligned itself with “Western knowledge” and “science”. Rinrigaku scholars of the early 1880s claimed to speak from an objective and value-neutral position, a position from which to inquire into and apprehend “the good”. Their methodologies and ethical theories, however, were invariably rooted in culturally and historically specific epistemological presuppositions, that is, in their own perspectival presuppositions about knowledge, knowing, and truth. Indeed, the possibility of “Value-free objectivity” was itself one such presupposition. (REITAN, 2010, p. 23)

O Tetsugaku, ou a filosofia ocidental, entrou no Japão com os imigrantes que

confrontavam o sistema de pensamento usado pelos japoneses com as suas “filosofias”, as

quais buscavam a confirmação científica e metodológica das verdades, algo comum ao

pensamento ocidental que desde os gregos optou pela verdade científica, a qual pode ser

provada seja por experimentos ou racionalmente. Já o Rinrigaku, a ética como os japoneses

começaram a denominar no Período Meiji para diferenciar das novas éticas ocidentais, tinha

lastros com o confucionismo e não havia a preocupação explícita, como a versão ocidental, pela

busca da verdade por uma ciência metodológica. Neste ponto o conhecimento desta ética se

assimila aos pré-socráticos, os quais ainda utilizavam um pouco de mitologia para explicar

aquilo pelo que se indagavam racionalmente. Porém, quando Nishi cunhou os termos

Tetsugaku e Rinrigaku já havia influência do pensamento ocidental em sua proposta, ou seja, tal

diferenciação entre as éticas é fruto do pensamento ocidental que invadia o Japão. O termo

gaku em japonês se refere ao estudo, desta forma a ética japonesa seria o estudo (gaku) dos

princípios, ou razão, (ri) da ética (rin) e poderia ser enquadrada dentro do Tetsugaku.

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The epistemology of rinrigaku was not new in the 1880s. although the writings of Nishi Amane (1829-1897), a student of philosophy with a particular interest in the thought of Comte and J. S. Mill, provided a detailed statement of this epistemology’s key features during the first decade of Meiji, it is possible to locate its antecedent traces in the thought of eighteenth – and perhaps even late seventeenth-century intellectuals. Indeed, a good deal of scholarship exists on the intellectual labor during the Tokugawa period (1600-1868) that enabled the revolution called the Meiji Ishin. A central feature of this revolution was the move away from Neo-Confucianism and other modes of thought toward new (often and problematically called “Western”) ways of apprehending the world. One way to approach this transition is through the shifting meanings of terms central to both periods and epistemologies. Ri (principle), for example, a concept central to Confucian metaphysics, was reconfigured to signify “reason”, “laws of nature”, and even “science”. (REITAN, 2010, p.23)

O confucionismo era a base do pensamento japonês, por isso que o Rinrigaku possui

elementos e concepções proveniente desta escola de pensamento. O ocidente possui certo

preconceito quanto classificar o confucionismo como uma escola de pensamento ou como

doutrina filosófica, devido alguns pensadores a generalizarem como religião ou como forma de

pensamento surgida a partir da religião. Porém, o confucionismo é o nome dado as vertentes

que surgiram das obras de Confúcio (551-479 a.C.) e seu seguidor Mêncio (372-289 a.C.) e não

possuem nenhuma relação com qualquer religião. Ao longo dos anos surgiram diversas

interpretações das obras destes autores e sobre elas se formalizou o pensamento racional dos

chineses e de diversos povos da Ásia influenciados por esta forma de pensar. A grande

diferença do confucionismo para a filosofia ocidental está que a primeira possui maior enfoque

na ética, enquanto que a segunda foca no cientificismo racional.

It fell to the lot of Confucius (b.c.551 to B.C. 479), at the end of the Shu

dynasty, to elucidate and epitomize this great scheme of synthetic labour,

worthy of study by every modern sociologist. He devotes himself to the

realisation of a religion of ethics, the consecration of Man to Man. To him,

Humanity is God, the harmony of life his ultimate. Leaving the Indian soul to

soar and mingle with its own infinitude of the sky; leaving empiric Europe to

investigate the secrets of Earth and matter, and Christians and Semites to be

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wafted in mid-air through a Paradise of terrestrial dreams—leaving all these,

Confucianism must always continue to hold great minds by the spell of its

broad intellectual generalisations, and its infinite compassion for the common

people. (OKAKURA, 1905 p.27)

Das diversas vertentes do confucionismo presentes no Japão podemos destacar duas:

(1) Sorai, difundida por Ogyû Sorai (1666-1728) e baseada nos ensinamentos de Chu Hsi ou Zhu

Xi (1130-1200) e a (2) Ôyômei difundida por Motoori Norinaga (1730-1801) a partir do

confucionismo Wang Yang Ming (1472-1529). Dentro do confucionismo surge uma concepção

que será muito aproveitada durante o Período Meiji, no qual entende que o homem atingiria a

sua plenitude se seguisse uma vida harmoniosa baseada na ética. A presença da ética no

pensamento confucionista nos revela uma preocupação com a vida em sociedade, ou seja,

parte do principio de que o homem é por excelência um ser social que se completa no convívio

com os outros.

A vertente Ôyômei, mais recente e que teve maior influência em pensadores do Meiji

como corrente de pensamento, afirmava que o conhecimento era intuitivo e inato aos homens.

Na construção artificial feita modernamente sobre o samurai, esta vertente possibilitou o

reforço do caráter virtuoso dos homens os quais nasciam conhecendo a diferença entre o bem

e o mal, ou seja, o agir virtuoso não seria algo adquirido pelo hábito. O argumento usado como

fundamento para a crítica aos que agissem imoralmente fazia contraste com os samurais que

tendo conhecimento moral eram obrigados a exercerem atitudes corretas na sociedade, assim

a moral se baseava na garantia incondicional de que todos sempre procurariam agir

corretamente.

Quando nos referimos à ética dos samurais no período Tokugawa (1603-1868) devemos

ter em mente os preceitos familiares que cada clã possuía e impunha aos seus membros. Tais

preceitos, chamados de kakun, tinham em sua estrutura básica conceitos do confucionismo que

eram completados com valores budistas ou xintoístas, dependendo particularmente de cada

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clã. Segundo Navarro (2008) o bushidô poderia ser tomado como um kakun1, isto é, preceitos

familiares que deveriam ser seguidos por todos que fizessem parte do clã ou família. Com o

passar dos anos esses preceitos foram tomados como códigos de condutas que deveriam ser

seguidos por todos os membros do grupo, principalmente pela parte armada, no caso os

samurais. Este código não era escrito e sua transmissão era exclusivamente oral, ou seja, era

passado ao discípulo pelo mestre para garantir que o domínio na interpretação que o discípulo

viesse a ter .

Com o passar dos anos e com a degradação da classe dos guerreiros e da própria

sociedade japonesa, a qual mostrava desgastes pelos longos anos do feudalismo (SONODA,

1990), os códigos de condutas estavam em desuso, tendo em vista que boa parte dos samurais

estavam em situação de miserabilidade em um país com excesso de mão-de-obra especializada

nas artes bélicas, mas com deficiência de inclusão destes em um mercado de trabalho

incipiente. Com as mudanças sociais e políticas que ocorreram com a Restauração Meiji – Meiji

Ishin, a classe dos guerreiros japoneses foi abolida com a alegação de ser ultrapassada e

incompatível com os novos tempos no qual o Japão adentrava, mas todos os novos excluídos

receberam uma pensão do governo até o final da Segunda Guerra Mundial. Um dos motivos da

extinção dos samurais da sociedade japonesa se deve à tentativa de eliminação do poder

políticos deles, tendo em vista que até o início da Restauração Meiji o Japão era governado pelo

Xogum, ou seja, era a classe militar que detinha todo o poder político.

Nitobe ao trabalhar o bushidô, uma releitura do código de conduta dos samurais,

buscava um elemento que pudesse ser genérico em toda a sociedade japonesa, ou seja,

buscava um ideal universal aos povos que compunham a nova nação japonesa com o intuito de

desenvolver uma identidade nacional que viabilizasse a colocação do Japão diante as nações

estrangeiras, em especial as ocidentais, de modo a evitar a fragilidade política e econômica

1 O uso do kakun é expressada por Navarro:

“El Bushidô al comienzo fue un código de transmisión oral y más tarde sus valores e instituciones se recogieron por escrito. En un principio eran códigos secretos (kakun) de los diferentes clanes o familias samuráis, y posteriormente – en la Época de Edo- se comenzaron a recopilar y difundir en obras como Hagakure (titulado en español como “libro secreto del samurai”) de Yamamoto Tsunemono (1659-1719) y Bushidô Shoshintsu (titulado en español como “código del samurái”) de Taira Shigezuke (1639-1730), entre otras.” (NAVARRO, 2008, pp. 243).

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para que não viesse a se tornar uma colônia estrangeira. Das diversas identidades dos povos

japoneses, Nitobe construiu uma idealizada na qual colocava o samurai como um herói nacional

idealizado, um modelo a ser seguido por todos os cidadãos. Ele buscou em um passado

mitológico os elementos para construir uma tradição que respaldasse a sua proposição

conservadora de identidade nacional.

A principal obra de Nitobe é Bushidô – The Soul of Japan (1900), obra escrita em língua

inglesa enquanto ainda vivia nos Estados Unidos, concebida como resposta a conversa que teve

com o jurista belga Laveleye sobre o ensino da moral no Japão sem o uso da religião. Nela

encontramos a exposição sobre o bushidô no Japão nos tempos modernos, a sua função e

papel dentro da sociedade segundo a visão do autor.

About ten years ago, while spending a few days under the hospitable roof of

the distinguished Belgian jurist, the lamented M. de Laveleye, our conversation

turned, during one of our rambles, to the subject of religion. "Do you mean to

say," asked the venerable professor, "that you have no religious instruction in

your schools?" On my replying in the negative he suddenly halted in

astonishment, and in a voice which I shall not easily forget, he repeated "No

religion! How do you impart moral education?" The question stunned me at

the time. I could give no ready answer, for the moral precepts I learned in my

childhood days, were not given in schools; and not until I began to analyze the

different elements that formed my notions of right and wrong, did I find that it

was Bushido that breathed them into my nostrils.

The direct inception of this little book is due to the frequent queries put by my

wife as to the reasons why such and such ideas and customs prevail in Japan.

In my attempts to give satisfactory replies to M. de Laveleye and to my wife, I

found that without understanding Feudalism and Bushido, the moral ideas of

present Japan are a sealed volume. (NITOBE, 1972a, p.7)

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A versão do bushidô de Nitobe se difundiu no ocidente principalmente pela presença da

imagem do samurai, servindo de modelo a uma identidade artificial voltada à unificação de

todos os povos do arquipélago nipônico. Recebeu algumas críticas ao longo dos anos a qual

podemos destacar o filólogo Basil Hall Chamberlain (1850-1935) o qual acusava Nitobe de

inventar o termo bushidô, pois se tratava de um termo que não existia na literatura japonesa

do Período Tokugawa e anterior. Evidentemente que a crítica do filólogo não levou em

consideração a intensão original do autor nem o contexto social e histórico em que se

encontravam. A obra de Nitobe é uma exteriorização do movimento intelectual que procurou

inventar a tradição japonesa para concretizar a busca da identidade que afirmou o indivíduo

perante um mundo anterior ao próprio, no qual é obrigatória a autoafirmação perante os

outros para que não seja oprimido por aqueles que já haviam se constituído como sociedade

anteriormente.

Na exposição do bushidô percebemos a aproximação com o idealismo romântico de

Carlyle, pois neste processo de identificação do samurai como um ser iluminado, um homem

superior que tem como objetivo atingir a plenitude de caráter ao mesmo tempo em que

ilumina todas as boas almas2, é comum ao movimento romântico alemão.

Bushido, then, is the code of moral principles which the knights were required

or instructed to observe. It is not a written code; at best it consists of a few

maxims handed down from mouth to mouth or coming from the pen of some

well-known warrior or savant. More frequently it is a code unuttered and

unwritten, possessing all the more the powerful sanction of veritable deed,

and of a law written on the fleshly tables of the heart. It was founded not on

the creation of one brain, however able, or on the life of a single personage,

however renowned. It was an organic growth of decades and centuries of

military career. (NITOBE, 1972a, p.25)

2 “Um homem superior é sempre fonte de viva luz, junto da qual é bom e aprazável estar. Luz que ainda nos ilumina, depois de ter espancado as trevas do mundo; não é mera lâmpada em que arde o fogo de indústria, mas luminária natural brilhando por graça do céu; fonte de luz, como disse, refulgente de original esclarecimento, de humanidade e de nobreza heroica; - fonte de cuja radiação todas as almas se iluminam e aquecem pelo que junto dela se sentem bem.” (CARLYLE, 2002, pp.15-16).

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Não podemos deixar de lado as referências à obra Reflexões sobre a Revolução em

França de Edmund Burke, que inspirou o autor em vários momentos e por haver a defesa do

continuísmo da classe aristocrática japonesa por meio da hereditariedade. Encontramos na

obra de maneira velada a existência da desigualdade entre os homens causada pela existência

de uma estrutura social hierarquizada seria o meio de garantir a continuidade da propriedade.

Este é um ponto de fragilidade do pensamento de Nitobe, pois nos anos posteriores à

publicação da obra Bushido – The Soul of Japan, principalmente enquanto representante

japonês na Liga das Nações sempre pregou a cooperação internacional entre os povos e a

igualdade dos direitos civis entre homens e mulheres, todavia a defesa destes ideais

“revolucionários” ou burgueses não se deve a sua formação política, mas a sua conversão ao

cristianismo dos Quaker, pois como notamos em alguns trechos da obra, havia a preocupação

com questões aristocráticas principalmente referente à propriedade.

“O poder de perpetuar nossa propriedade em nossas famílias é um de seus

elementos mais valiosos e interessantes, que tende, sobretudo, à perpetuação

da própria sociedade.” (BURKE, 1982, pp.83)

A ética dos samurais pela visão de Nitobe não seria apenas a defesa do historicismo

conservador, sendo a sociedade algo imutável e cristalizado no tempo. Nesta abordagem do

bushidô encontramos a influência do evolucionismo social de Herbert Spencer que atuará de

duas maneiras dentro da obra: (1) as virtudes cultivadas pelos samurais deveriam ser

entendidas como indício do contínuo processo de evolução social inclusive dentro da sociedade

industrializada e, (2) o caráter conservador era fruto direto deste processo de evolução,

afastando qualquer interpretação de que a ética, como proposta pelo autor, poderia assumir

aspectos negativos.

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Conclusão

A versão do bushidô de Nitobe foi redigida a priori para o público ocidental. As

interpolações cristãs e referências ocidentais facilitaram o processo de divulgação dos valores

japoneses, favorecendo indiretamente o estabelecimento do contato entre Japão e os países

ocidentais que culminariam com acordos econômicos e políticos. Também foi responsável pela

construção idealizada do samurai e do cidadão japonês, a qual ainda tem influência na versão

hodierna do indivíduo japonês. O samurai é reinterpretado como o herói nacional, aquele que

servirá de modelo às gerações futuras, guiando-os em um caminho de rigor moral rumo ao

estado mais elevado da condição humana e da vida em sociedade.

Podemos resumir o desfecho do bushidô de Nitobe no mundo como uma ideologia

construída artificialmente, marcada por traços de historicismo conservador e nacionalismo

romântico os quais foram utilizados para fomentar a criação de uma identidade nacional,

possibilitando o surgimento de uma nação forte. Infelizmente, notamos haver um

descolamento desta concepção de bushidô do mundo real resultando em um conceito abstrato

que dificilmente foi utilizado pelos samurais japoneses durante a era feudal.

Referências bibliográficas

BENESCH, Oleg. Bushido: The Creation Of A Martial Ethic In Late Meiji Japan. Tese de

doutorado. Vancouver: Universidade da Columbia Britânica, 2011.

BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução em França. Brasília: Editora Universidade de

Brasília, 1982.

CARLYLE, Thomas. Os Heróis. Lisboa: Guimarães Editores, 2002.

HOBSBAWM, Eric. RANGER, Terence. A Invenção das Tradições. São Paulo: Paz e Terra, 2008.

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