a estatística do corpo

22
283 Etnográfica, Vol. VII (2), 2003, pp. 283-303 Em 11 de Junho de 1902, uma mulher dá entrada na cadeia da Relação da cidade do Porto. Tem 25 anos, é solteira e sabe que no dia seguinte não vai estar na praça a vender legumes e frutas porque foi apanhada a roubar. Permanece sentada enquanto espera que a conduzam à cela onde vai passar a noite. O guarda vem buscá-la, mas não a leva para junto de outros presos, antes a conduz no sentido oposto, abrindo a porta de um gabinete. Lá dentro estão dois homens. Pelo aspecto e pelo vestuário, é fácil perceber que não são guardas nem polícias. A mulher olha em volta horrorizada. As janelas, a todo o comprimento da parede, são atravessadas por uma luminosidade intensa que contrasta com o resto da prisão. O mobiliário da sala é constituído por aparelhos e instrumentos que nunca tinha visto: uma espécie de tenaz formada por duas varetas de ferro em forma de semicírculo; uma balança quase do tamanho de um homem; um espaldar térreo com uma haste comprida cravada na extremidade anterior, onde se vê uma sucessão de números e pela qual desliza uma peça de madeira e ferro; um sem-número de outros objectos desproporcionados e esquisitos. Um dos homens faz-lhe perguntas e preenche um formulário de papel. De seguida, o outro levan- ta-a e leva-a para junto de uma das paredes. Vai ditando coisas, enquanto a passa pelos aparelhos: estatura: 1,585 metros; comprimento dos braços abertos em cruz: 1,530 metros; altura sentada ou busto: 0,818 metros; com- primento da orelha direita: 0,059 metros; dedo médio esquerdo: 0,103 metros; dedo mínimo esquerdo: 0,082 metros; antebraço esquerdo: 0,411 metros; comprimento do pé esquerdo: 0,229 metros. Depois fazem-lhe ainda três medições diferentes da cabeça e anotam a cor da pele e dos olhos. No final, os homens parecem satisfeitos e a mulher está menos receosa, embora se sinta confusa e diminuída. 1 A ESTATÍSTICA DO CORPO: ANTROPOLOGIA FÍSICA E ANTROPOMETRIA NA ALVORADA DO SÉCULO XX Nuno Luís Madureira Neste artigo procede-se à análise das diferentes tradições científicas da antropometria portuguesa, elucidando o aparecimento de uma estatística do corpo que permite, nos finais do século XIX, fixar as imagens do criminoso-tipo, do criminoso-indíviduo e do criminoso-grupo. O conceito de esvaziamento dos saberes é de seguida introduzido para dar conta do modo de assimilação destes conhecimentos por parte do estado e da transformação de concepções teóricas em procedimentos utilitários e burocráticos. Graças a esse esvaziamento dos saberes, a antropometria deixa de registar as diferenças dos criminosos para passar a descrever a igualdade civil dos cidadãos. 1 Baseado na ficha n.º 814 do Posto Antropométrico da Cadeia da Relação do Porto, publicada em AA.VV. 1998: 48. Existem reproduções fotográficas da sala do Posto Antropométrico de Lisboa publicadas pelo médico antropólogo Xavier da Silva (1916).

Upload: nonnebio

Post on 17-Sep-2015

224 views

Category:

Documents


8 download

DESCRIPTION

texto

TRANSCRIPT

  • A Estatstica do Corpo

    283Etnogrfica, Vol. VII (2), 2003, pp. 283-303

    Em 11 de Junho de 1902, uma mulher d entrada na cadeia da Relao dacidade do Porto. Tem 25 anos, solteira e sabe que no dia seguinte no vaiestar na praa a vender legumes e frutas porque foi apanhada a roubar.Permanece sentada enquanto espera que a conduzam cela onde vai passara noite. O guarda vem busc-la, mas no a leva para junto de outros presos,antes a conduz no sentido oposto, abrindo a porta de um gabinete. L dentroesto dois homens. Pelo aspecto e pelo vesturio, fcil perceber que no soguardas nem polcias. A mulher olha em volta horrorizada. As janelas, a todoo comprimento da parede, so atravessadas por uma luminosidade intensaque contrasta com o resto da priso. O mobilirio da sala constitudo poraparelhos e instrumentos que nunca tinha visto: uma espcie de tenazformada por duas varetas de ferro em forma de semicrculo; uma balanaquase do tamanho de um homem; um espaldar trreo com uma hastecomprida cravada na extremidade anterior, onde se v uma sucesso denmeros e pela qual desliza uma pea de madeira e ferro; um sem-nmerode outros objectos desproporcionados e esquisitos. Um dos homens faz-lheperguntas e preenche um formulrio de papel. De seguida, o outro levan-ta-a e leva-a para junto de uma das paredes. Vai ditando coisas, enquanto apassa pelos aparelhos: estatura: 1,585 metros; comprimento dos braosabertos em cruz: 1,530 metros; altura sentada ou busto: 0,818 metros; com-primento da orelha direita: 0,059 metros; dedo mdio esquerdo: 0,103 metros;dedo mnimo esquerdo: 0,082 metros; antebrao esquerdo: 0,411 metros;comprimento do p esquerdo: 0,229 metros. Depois fazem-lhe ainda trsmedies diferentes da cabea e anotam a cor da pele e dos olhos. No final,os homens parecem satisfeitos e a mulher est menos receosa, embora se sintaconfusa e diminuda.1

    A ESTATSTICA DO CORPO:ANTROPOLOGIA FSICA

    E ANTROPOMETRIANA ALVORADADO SCULO XX

    Nuno Lus Madureira

    Neste artigo procede-se anlise das diferentestradies cientficas da antropometriaportuguesa, elucidando o aparecimento de umaestatstica do corpo que permite, nos finais dosculo XIX, fixar as imagens do criminoso-tipo,do criminoso-indviduo e do criminoso-grupo.O conceito de esvaziamento dos saberes deseguida introduzido para dar conta do modo deassimilao destes conhecimentos por parte doestado e da transformao de concepes tericasem procedimentos utilitrios e burocrticos.Graas a esse esvaziamento dos saberes, aantropometria deixa de registar as diferenas doscriminosos para passar a descrever a igualdadecivil dos cidados.

    1 Baseado na ficha n. 814 do Posto Antropomtrico da Cadeia da Relao do Porto, publicada em AA.VV. 1998: 48.Existem reprodues fotogrficas da sala do Posto Antropomtrico de Lisboa publicadas pelo mdico antroplogoXavier da Silva (1916).

  • Nuno Lus Madureira

    284

    Todos os presos que do entrada nas cadeias de Lisboa e do Porto, noprincpio do sculo XX, passam por esta nova experincia. Algumas partesdos seus corpos so medidas com preciso milimtrica e os seus caracteresfsicos anotados com rigor cientfico, submetendo-se a um exame que, porsua natureza, parece ser ou faz bem de pena infamante e certamente maisrepugnante que a prpria condenao (Vieira 1904: 70).2

    Antropometria a designao atribuda estatstica do corpo.A adopo desta tcnica como mtodo de identificao criminal apre-senta uma histria complexa onde se cruzam vrias influncias. Quando asautoridades decidem fazer da antropometria um mtodo oficial e obri-gatrio nas cadeias portuguesas h um manancial prvio de estudos,experincias e dados acumulados que garante a fiabilidade dos proce-dimentos, pois h muito que os cientistas testam e comparam resultados demensuraes do corpo. Estamos assim perante um momento singular datransposio de saberes cientficos para tcnicas de vigilncia utilizadas peloestado para melhorar o controlo sobre populaes perigosas, um tpicoanalisado por Michel Foucault sob a perspectiva das condies de emer-gncia de prticas de saber-poder. Segundo este autor, trata-se de percebercomo a segurana e a vigilncia se tornam componentes fundamentais daracionalidade do estado contemporneo, instaurando um vnculo entre aconstruo dos objectos da cincia e a construo dos objectos de governo(Foucault 1979 e 1991: 53-72).

    medida que passamos das grandes mudanas histricas para osentido dos acontecimentos na reflexo e na aco dos indivduos, a relaoentre conhecimento e administrao torna-se porm mais problemtica. Nesteartigo, interrogam-se as modalidades de exerccio de ambas as prticas,procurando mostrar, ao nvel das cincias antropomtricas, que a transposiode saberes para a lgica do estado envolve o seu esvaziamento, a neutra-lizao de pressupostos tericos, o corte com vises particulares do mundoe a reduo da actividade cientfica a rotinas burocrticas.

    Os criminosos: identidade, identificao e comparao

    Antes de comearem a ser aplicadas a seres vivos, as mensuraes siste-mticas do corpo so feitas, em Portugal, a partir de exumaes de cadveresno mbito da arqueologia e no mbito da paleontologia. A fundao daComisso de Trabalhos Geolgicos, no ano de 1857, aglutinando Pereira daCosta, Carlos Ribeiro, Nery Delgado e outros investigadores, com o contri-

    2 Na curiosa Revista Amarela, do Posto Antropomtrico de Lisboa, Lopes Vieira discute se legtimo sujeitar um ruao exame antropomtrico antes de ser condenado em tribunal, reconhecendo a natureza infame do exame.

  • A Estatstica do Corpo

    285

    buto de estudiosos estrangeiros, como Emile de Cartailhac, constituiu oncleo impulsionador desta rea de estudos.3

    Na dcada de 1880, assiste-se a um surto de interesse por estes temas.A acumulao de dados antropomtricos tende a concentrar-se progressi-vamente em medies do crnio, consolidando a craniometria como subes-pecializao da antropologia fsica. A anatomia da cabea torna-se o objectoantropolgico por excelncia, pois permite distinguir nitidamente os dife-rentes tipos humanos, descobrir as anomalias biolgicas das raas e, at,revelar grandes linhas da psicologia tnica. Remonta precisamente a estadcada o aparecimento de um conjunto de estudos sistemticos de cranio-metria, onde se distinguem as investigaes de Silva Amado, Arruda Furtado,Aurlio da Costa Ferreira e Ferraz de Macedo. A classe mdica reivindica quea antropologia fsica est dentro da sua jurisdio, devendo ser entendidacomo um prolongamento natural da anatomia descritiva e da osteologia. Nasescolas mdicas de Lisboa e do Porto desenvolvem-se projectos e na Uni-versidade de Coimbra inicia-se o ensino da antropologia geral com umprograma que inclui a histria natural, associando a disciplina ao estudo daspropriedades fsicas da espcie.

    A ideia de descrever os traos morfolgicos que distinguem umdeterminado tipo humano de outro, atravs de mensuraes detalhadas dacabea e dos ossos, torna-se a chave para compreender no s as origens dohomem, mas o prprio homem. Na senda de autores como Saint-Hilaire ePaulo Broca, considera-se que os caracteres fsicos se transmitem relati-vamente inalterados atravs do tempo e que a reconstituio dos tiposhumanos, com o lastro de cruzamentos e mestiagens, a chave para des-vendar os segredos da histria natural. O estudo dos indivduos procuraabstrair as variaes particulares e apreender os traos mais gerais doagrupamento humano, postulando que os tipos naturais, tipos tnicos ouraas configuram uma matriz biolgica estvel. Para detectar essa matrizh que partir da medio dos caracteres fsicos individuais, agregar esta-tisticamente os resultados, apurar uma classificao das populaes e seriaros agrupamentos humanos numa escala ordenada. Por esta via, no s sereconstituem os elos perdidos com o passado como se abrem as portas paraque os sinais do passado possam ser lidos no presente. Segundo o mdicoportugus Baslio Freire, no fundo de toda a experincia individual dor-mitam os resduos organizados de experincias de geraes passadas, umsem nmero de estratificaes sedimentares sucessivas, cuja vegetaoirrompe por vezes superfcie (Freire 1889a: 180).

    3 A obra de referncia deste perodo o estudo de Carlos Ribeiro (1865, Notcia sobre os Esqueletos Humanos Descobertosno Cabeo da Arruda, citado em Marques 1898: 11-12). Sobre a arqueologia e antropologia fsica, ver Tamagnini e Serra(1940: 637-662) e Marques (1898: 10-15).

  • Nuno Lus Madureira

    286

    No momento em que o homem civilizado procura a genealogia daespcie, a constncia dos tipos fsicos naturais, ao longo da histria, introduzum elemento perturbador: a possibilidade de os caracteres dos selvagens, dosseres inferiores e dos homens atvicos sobreviverem na sociedade con-tempornea. A descoberta de uma tal proximidade inquietante. As classi-ficaes comeam a dar grande ateno aos tipos antropolgicos degenerados,isolando, segregando e exorcizando as mais diversas categorias de mar-ginalidade. A filognese positiva redunda numa ontognese alarmante.

    Este ramo de saber sofre assim um forte impulso para estudar os seresvivos patolgicos, os delinquentes e os aberrantes. Tanto mais que o interessepelos tipos antropolgicos anormais beneficia das potencialidades entretantoabertas na rea criminal, criando novas oportunidades de trabalho, de carreirae de pesquisa para os mdicos. Na transio do sculo XIX para o sculo XX,os nomes de referncia e de maior projeco no estudo dos caracteres fsicosdo povo portugus vo por isso prolongar sistematicamente os suas inves-tigaes para a antropologia do subgrupo dos criminosos.4 Os presosapresentam a vantagem de constiturem uma populao laboratorialmenteestvel, uma matria-prima com baixos custos de investigao e um agru-pamento que fornece dados suficientes para produzir concluses de mbitoestatstico. Nesta fase, h, alis, uma forte aposta no trabalho emprico demedio. O prolongamento da observao de esqueletos para a observaode seres vivos permite ampliar o nmero de observaes, incentivando apassagem da abordagem monogrfica para a anlise comparada de colecesde factos. Os mdicos incorporam progressivamente a apresentao dosresultados em tabelas e o uso da mdia aritmtica como meio de sntese.A distino entre dois ou mais agrupamentos humanos passa a ser aferidapela diferena das respectivas mdias, possibilitando, por exemplo, compararos caracteres fsicos dos minhotos e dos aorianos, ou os caracteres dosreclusos e da populao normal. A concentrao das frequncias em tornodos valores mdios tem um sentido epistmico profundo, pois revela que hcausas constantes que asseguram a estabilidade dos dados. De forma inversa,qualquer instabilidade ou diferena entre mdias prova que os agregados soafectados por causas diferentes. Deste modo no s as vrias medies podemser cotejadas entre si, como a mdia se torna o elemento constitutivo dediferenas intergrupais, consolidando o realismo estatstico dos agregados. Asunidades de observao cientfica cristalizam-se consequentemente emagrupamentos funcionais do mundo, transformando as diversas coleces deindivduos em classes biologicamente coerentes, mutuamente comparveis,

    4 Como nomes de referncia simultaneamente da antropologia fsica e da antropologia criminal, destacam-se Ferrazde Macedo, no perodo de 1880 a 1890, Eusbio Tamagnini, no perodo de 1910 a 1940, Mendes Correia, entre 1920 e1930, Lus de Pina, entre 1930 e 1950. Sobre esta ligao, ver Curto (1995).

  • A Estatstica do Corpo

    287

    sociologicamente estveis. A procura de regularidades nos tipos humanossecundariza o problema da disperso estatstica, do mesmo modo que aperspectiva linear da evoluo secundariza a noo de ramificao e devariao aleatria. Os antroplogos descobrem aquilo que querem ver: ahierarquia dos homens na hierarquia dos seus caracteres fsicos.

    Na sequncia destas mudanas, a estatstica comea a produzir nme-ros de sntese que traduzem nveis superiores de abstraco atravs daagregao de vrias mdias. O estudo de cadveres d origem a apuramentoscraniomtricos de esqueletos e surgem as primeiras abordagens sistemticase quantificadas, patentes nas obras Tableau de Capacit Cranienne (1889) e Crimeet Criminel (1892), de Ferraz de Macedo. Paralelamente a estes desenvol-vimentos, o estudo de seres vivos evolui para a construo do ndice ceflicoda populao portuguesa, isto , para a compilao de um valor nico capazde representar a mdia dos ndices de vrias medies feitas cabea(dimetro ntero-posterior, dimetro transverso, capacidade cbica). Com1444 observaes colhidas nas regies de Portugal continental, SantanaMarques est em condies de apresentar, no ano de 1898, o primeiro ndiceceflico por distrito com a correspondente classificao craniomtrica do povolusitano ultradolicocfalos, dolicocfalos, subdolicocfalos, mesaticfalos,sub-braquicfalos, braquicfalos, ultrabraquicfalos (Marques 1898: 40).

    Como a estatstica da capacidade craniana capaz de revelar ospatamares da inteligncia humana, os estudos antropomtricos abrem a porta histria das civilizaes: a estrutura craniana encerra o crebro; o crebro,a inteligncia; a inteligncia, o potencial de desenvolvimento.5 Destaca-seassim um argumento capaz de explicar as diferenas entre raas negras eraas brancas, entre nrdicos e mediterrneos, entre orientais e europeus,entre homens e mulheres, pela justificao de caracteres biolgicos queindiciam diferentes aptides.

    Entretanto, a adopo de mtodos antropomtricos torna-se uma pla-taforma de convergncia de diferentes concepes cientficas. Numa tentativade sistematizao, podemos distinguir trs correntes de pensamento que secruzam com a tradio da antropologia fsica: o determinismo biolgico; ateoria da degenerescncia hereditria; a antropometria policial.

    O determinismo biolgico

    Nos finais de oitocentos, as concepes sobre o crime e a criminalidade naEuropa so profundamente influenciadas pela obra LUomo Deliquente (1876),de Cesare Lombroso, e pela escola de cincias forenses e criminais italianas.

    5 Vrias medies foram sendo tomadas como reveladoras da inteligncia, desde a capacidade do crnio s medidasde certas partes do crnio (por exemplo, as regies anteriores do crtex), numa tentativa de ajustar os caracteresseleccionados para medio s doutrinas previamente existentes. Sobre este assunto, ver Gould (1996: 105-175).

  • Nuno Lus Madureira

    288

    Partindo da observao sistemtica de medies de crnios, Lombroso chega concluso de que h semelhanas entre o crebro dos criminosos e o crebrodos homens primitivos. Baixa capacidade enceflica, retraimento da testa,frontais desenvolvidos, orelhas largas, caninos proeminentes, maxilarprotuberante e outros traos tornam-se caractersticas fsicas identificadorasda predisposio para a delinquncia. Estes sinais fisionmicos demonstrama origem primitiva e a derivao de fases ancestrais de desenvolvimentomental e fsico: o primitivismo e o atavismo fsico do delinquente interpretado como um determinismo biolgico, concluindo-se que as pessoasnascem criminosas, isto , com uma disposio para praticar o mal. Traospsicossomticos, como a epilepsia, a loucura patolgica, a excessiva fealdade(Grofalo), fazem tambm parte da bagagem biolgica dos delinquentes econstituem marcas identificadoras.

    Em Portugal, estas ideias ganham adeptos na dcada de 1880. Atravsde obras publicadas por mdicos como Roberto Frias, Baslio Freire, Jos Joycee outros, difunde-se a ideia de que o crime no um acto consciente e de livreescolha, mas uma herana biolgica patente em certas caractersticas fsicas epsicolgicas (Vaz 1998: 63-92). Muitos destes trabalhos apresentam umaargumentao frgil e um tom de adeso apologtica teoria do criminoso natosem grande suporte demonstrativo, facto que alis denunciado pelos ensastasda poca. Veja-se o caso da obra de Baslio Freire, publicada em 1889, com ottulo Os Criminosos, onde o autor comea por reconhecer a dificuldade nadefinio de um tipo fsico comum a todos os delinquentes ou a diferentescategorias de delinquncia. Freire lamenta que, depois de um improbo trabalhode observao e crtica, a investigao internacional no tenha sido capaz deestabilizar um padro fixo de caracteres vlido para a identificao fisionmicae somtica dos delinquentes. No entanto, estes pressupostos no impedem oautor de concluir, mais frente, que o crnio criminal inferior ao [do homem]honesto, mormente na zona anterior, depositria das actividades reflexivas eponderadoras. Ou seja, no se sabe exactamente qual a craniometria docriminoso nato, mas deduz-se que esse elemento desconhecido deve ser infe-rior ao da restante populao (Freire 1889b: 37-38, 43).

    No obstante os impasses do discurso cientfico, a antropometriatorna-se uma tcnica preventiva de grande utilidade para esta escola depensamento, uma vez que est em condies de poder fornecer o retratocientfico dos indivduos perigosos. O estudo do crime cristaliza-se no estudofsico dos criminosos, epilpticos e prostitutas, e a priso passa a ser olaboratrio antropolgico por excelncia, uma vez que isola grupos biolo-gicamente coerentes. O processo de seleco social, policial e judicial dosreclusos torna-se deste modo um processo natural, aglutinando subpo-pulaes dotadas dos mesmos caracteres psicossomticos. Os antroplogosdefinem o seu objecto de estudo a partir do facto adquirido da priso.

  • A Estatstica do Corpo

    289

    Apesar de esta viso influenciar a criminologia portuguesa nos finaisde oitocentos, ela no unnime na comunidade cientfica. Aparecem crticasque se distanciam do determinismo biolgico para colocar a tnica emfactores sociais e culturais da criminalidade. Ferreira-Deusdato o autor queadopta uma posio mais clara, ao escrever, no ano de 1889, que

    A resoluo do problema da criminalidade no pode vir da anlise fsica doexterior do delinquente, da assimetria facial, do estrabismo, da desproporo,da dynamometria... e outras anomalias somticas. Estes materiais tero valorcomo elemento subsidirio para o estudo da natureza fsica, da sua forma eevoluo (Ferreira-Deusdato 1889: 23).

    Nesse mesmo ano, no 2. Congresso de Antropologia Criminal, reunido emParis, Ferraz de Macedo, expoente dos estudos realizados em Portugal,contraria a ideia da existncia de caracteres especficos do delinquente,demonstrando nomeadamente que os criminosos portugueses tm umacapacidade craniana superior dos homens normais, ao contrrio do queLombroso supunha. Macedo segue a metodologia convencional da antro-pologia criminal italiana, agrupando as observaes antropomtricas emcategorias cujo sentido dado como adquirido: homens normais, ladres,assassinos, negros. A comparao das medies nestas quatro classes deindivduos mostra, no entanto, que no h uma distino fsica entre delin-quentes e pessoas normais. Refutada a teoria em vigor, abre-se um campo deinterrogaes e de hipteses: por que razo que uns homens fazem actosreprovveis e outros no? Perplexo, o prprio Macedo responde: at hojeno h uma resposta clara e satisfatria a esta questo (Macedo 1892: 200).A viso de categorias humanas pr-definidas no permite mudar o ponto deperspectiva e o autor descarta desde incio a hiptese de que o crime umproduto sociolgico, influenciado pelo meio e pelas circunstncias sociais.

    Nos incios do sculo XX, o nmero de crticos da escola criminalitaliana aumenta e o conceito de crime aproxima-se cada vez mais daidentificao de causas sociais e psicolgicas. A rejeio do exclusivismo daescola italiana serve invariavelmente de ponto de partida para novas abor-dagens que salientam o alcoolismo e os efeitos do lcool nos tecidos cerebrais,o desequilbrio psicolgico em relao ao ambiente moral, ou os factoressociais e o egosmo da sociedade. Onde o determinismo biolgico conduzia perseguio e segregao, as teorias psicolgicas e sociais propem umagradao das penalizaes adaptada ao comportamento dos delinquentes.Como afirma Cunha Gonalves, a questo no saber se os criminosos soresponsveis, mas sim se eles so perigosos (Gonalves 1913: 21).6

    6 Sobre o alcoolismo e os factores sociais como causas da criminalidade, ver respectivamente Gonalves (1922-1923:49-75), Costa (1895).

  • Nuno Lus Madureira

    290

    A teoria da degenerescncia dos caracteres hereditrios

    A teoria da degenerescncia dos caracteres hereditrios surge, no terceiroquartel de oitocentos, como um dos muitos desenvolvimentos das ideias deDarwin sobre a evoluo das espcies. A ideia de que a competio pelosrecursos e a sobrevivncia dos mais fortes assegura mecanismos selectivos deadaptao ao meio constitui um paradigma para vrias disciplinas cientficas,sendo complementada pela teoria da pangenesis, segundo a qual a here-ditariedade pode ser explicada em termos da combinao de um nmerofinito de partculas hereditrias. Este o ponto de partida para os estudosde Francis Galton, um mdico ingls (primo de Darwin, em primeiro grau,pelo lado materno) que possui tambm estudos de matemtica na Uni-versidade de Cambridge. Detentor de considerveis meios de fortuna pessoal,Galton canaliza sem parcimnia o dinheiro para financiar investigaes, orapagando a quem lhe fornece dados estatsticos, ora construindo maquinetase dispositivos mecnicos para efectuar novos tipos de medies e de expe-rincias. Dedica-se assim a um exaustivo trabalho emprico de recolha deelementos estatsticos sobre plantas e seres humanos. O estudo da here-ditariedade leva-o a comparar a distribuio estatstica dos caracteres de umagerao progenitora com a distribuio da gerao descendente. Depois desucessivas experincias, chega concluso de que h uma tendncia para aregresso na transmisso dos caracteres geracionais (esta , alis, a origem doconceito matemtico de regresso). Deste modo, a degenerescncia torna--se uma possibilidade efectiva de evoluo e o optimismo que rodeia ahistria do mundo orgnico fica subitamente ensombrado.

    Num perodo em que se sentem as mudanas introduzidas pelaindustrializao e pela modernizao tecnolgica, a descoberta de que asociedade moderna no acarreta necessariamente um progresso em todas asesferas de actividade humana, antes podendo ter consequncias degenera-tivas para a espcie, alcana um profundo impacte poltico e cultural. O receioda degenerescncia leva promoo de programas activos para assegurar asade fsica e mental das populaes e evitar a reproduo de elementosbiologicamente perniciosos, movimento que ficar conhecido por eugenismo.Os mecanismos de transmisso hereditria so assim assumidos como umfactor que se sobrepe s condies econmico-sociais na determinao daqualidade biolgica dos povos. Uma das figuras mais destacadas doeugenismo, colaborador de Galton e por ele financiado, Karl Pearson, torna--se um nome de referncia da estatstica matemtica internacional, encon-trando-se na origem de uma nova cincia, a biometria, cujo objectivo comeapor ser a comparao estatstica dos caracteres das populaes.

    Em Portugal, tanto o eugenismo como a biometria matemtica tmuma aceitao relativamente restrita nas comunidades intelectuais. Segundo

  • A Estatstica do Corpo

    291

    Ana Leonor Dias, a doutrina eugnica subordina-se ao esprito do higienismoe incide sobretudo na questo da manuteno da higiene fsica e mental dopovo portugus atravs de propostas para controlo dos casamentos e dareproduo (Dias 1997: 673-674). A unidade onde deve incidir a seleco acomunidade de indivduos, sem existir qualquer transposio para pro-gramas de apuramento biolgico da nao, como acontece no movimentoalemo de higiene racial da dcada de 1920 e no programa de depuraogentica do nazismo (Proctor 1988: 138-179).

    Na fase inicial de difuso destas ideias, que corresponde s duasltimas dcadas do sculo XIX, detecta-se contudo um centramento nosmecanismos de seleco negativa (o chamado combate reproduomrbida) associado a um darwinismo social elitista e dramatizao dosefeitos da degenerescncia. Esta postura traduz-se em propostas de discri-minao social dos menos aptos e de excluso obsessiva dos marginais.Enquadram-se nesta orientao as ideias do subdirector da Penitenciria deLisboa, Antnio Azevedo Castelo Branco, para segregar perpetuamente oscriminosos (1888), e os projectos desenvolvidos em torno do Laboratrio deAntropologia do Porto, instalado no Hospital Conde Ferreira, sob a direcode Antnio Maria de Sena, com a participao de Jlio de Matos e deMagalhes Lemos. Dedicando-se investigao das relaes entre a crimi-nologia e a anormalidade psicomoral, os mdicos portuenses advogam nosseus trabalhos medidas como o isolamento dos alienados relativamente sociedade e a proibio da reproduo dos delinquentes (Barbedo 1960:38-39, Dias 1997: 670-715).

    No sculo XX, o eugenismo abandona progressivamente esta matrizseleccionista e elitista, a favor de solues preventivas e de um maior opti-mismo em relao s possibilidades de degenerescncia. A ideia de que osdelinquentes so seres antropologicamente aberrantes claramente rejei-tada e autores como Mendes Correia e Joo Porto defendem, por exemplo,que no h qualquer confirmao cientfica de que um criminoso apresentecaracteres fsicos diferentes dos das outras pessoas (Correia 1924: 287-331, e1931: 270-289, Porto 1941: 7-21). Mesmo na vertente mais elitista e discri-minatria, o eugenismo desconfia do exclusivismo lombrosiano: se oscriminosos formam uma unidade funcional do ponto de vista antropomtrico,a particularidade dos seus traos fsicos tem de ser aferida num quadrocomparativo com outras populaes. A antropometria uma disciplina decontrolo e de preveno que toma como unidade de estudo a estatstica daspopulaes e a estatstica geracional, sem recorrer necessariamente aosconceitos de tipos humanos da antropologia fsica, ou aos conceitos detipos primitivos do determinismo biolgico.

    exactamente nas correntes de pensamento mais influenciadas peloeugenismo e pela higiene reprodutiva que vamos encontrar uma sofisticao

  • Nuno Lus Madureira

    292

    dos procedimentos cientficos, com a denncia dos mtodos estatsticos umtanto simplistas (Tamagnini e Serra 1940: 642, 644) do passado e com a intro-duo de medidas de disperso, como meio de controlo da significaoestatstica das sries. Onde a mdia era o nico meio de anlise, surge agora aestimativa de outros parmetros, nomeadamente o desvio-padro e o erroprovvel.7 Este desenvolvimento traduz-se numa crtica mais consistente dosdados directamente recolhidos das observaes. No universo das cinciassociais e humanas portuguesas, os eugenistas so alis precursores de umaatitude de desconfiana em relao ao agrupamento realista de indivduosem classes, justificado pelo sentido sociolgico da distribuio normaldas categorias em torno de uma tendncia central (mdia, mediana, moda).A perspectiva da variao individual torna-se relevante e pe em causaa coerncia apriorstica dos agregados estatsticos. Estamos perante umamudana nas formas de percepo, na qual a representao matemtica dadisperso das distribuies esbate a oposio entre o grupo biologicamentecoerente de criminosos e o grupo biologicamente coerente de homens normais.

    A antropometria policial

    Para reconhecer um cadver, localizar um desertor, encontrar um foragido ouidentificar a vtima de um acidente, as autoridades tm de confiar nafiabilidade de um desenho e na obteno de informaes provenientes detestemunhas e informadores. Na segunda metade do sculo XIX, AlphonseBertillon, um especialista da polcia de Paris, inventa novos sistemas deidentificao que vo ampliar tremendamente as capacidades de vigilncia,localizao e dissuaso por parte das autoridades.

    Numa primeira fase, Bertillon acredita que todas as pessoas podem seridentificadas pela orelha direita, desenvolvendo um boletim sinaltico comos tipos de orelhas e a respectiva classificao segundo a disposio de arcose turbilhes. O registo fotogrfico do perfil da cabea, evidenciando bem asformas auriculares, torna-se um procedimento corrente no s das polciasmas tambm dos servios de emigrao. Frana, Estados Unidos, Argentina,Rssia e Tunsia so as primeiras naes a adoptar esta tcnica. Paracomplementar os dados, Bertillon selecciona posteriormente uma lista demedies do corpo (altura, comprimento do p , comprimento do brao e dodedo), da cor dos olhos, do cabelo e da pele, que tanto mais eficaz quantoos nmeros podem ser transmitidos telegraficamente para qualquer ponto do

    7 Toda a mdia deve ser acompanhada do respectivo erro provvel ou do chamado desvio-padro da srie. Soelementos que permitem ajuizar do valor estatstico daquela, da maior ou menor variabilidade do carcter estudado(Correia 1931: 5). Mendes Correia consagra o princpio de usar medidas de disperso como um teste sobre asignificao das mdias, numa altura em que no h ainda qualquer referncia s medidas de disperso nos manuaisde estatstica da poca.

  • A Estatstica do Corpo

    293

    pas, ao contrrio do que acontecia com as fotografias. Este esquema deseguida aperfeioado, na tentativa de encontrar uma combinatria de me-didas antropomtricas capaz de fornecer uma chave nica para a identi-ficao dos indivduos.8 Algumas polcias passam a acumular informaesem arquivo, desenvolvendo novas capacidades de investigao de ficheirosonde passam a constar os delinquentes j conhecidos.

    A primeira apresentao sistemtica do mtodo de Bertillon em Por-tugal da autoria do professor Bettencourt Ferreira, num conjunto de artigospublicados na Revista de Educao e Ensino. A antropometria policial vistacomo um prolongamento prtico das mensuraes feitas por mdicos earquelogos, um fruto h muito pendente da antropologia fsica:

    Resumindo e apurando factos e investigaes dos antecessores, os antro-pologistas constituram um corpo de cincia devidamente armada paraaquisio de noes e para a verificao acompanhada de longas estatsticascomprovativas (...) As indagaes policiais como at aqui longas, incertas es vezes perigosas no podem sofrer confronto com os novos processosfundados nas observaes e clculos fornecidos pela antropometria (Ferreira1893b: 482).9

    Mas Bettencourt retira ainda uma outra ilao do facto de se proceder a umarecolha sistemtica de medies: com a gloriosa iniciativa francesa pe-sefim especulao terica e inicia-se uma fase de experimentao metdica nacriminologia. Este comentrio direccionado aos adeptos de Lombroso,Grofalo e outros criminologistas italianos, cuja teoria no parece verificadapelas investigaes empricas:

    observao sagaz mas desregrada da escola de Lombroso, sucede ometodismo que mede, compara e calcula, o estudo directo e experimental,livre de pretenses escolsticas de exageros de doutrina que vitimamgeralmente as escolas e prejudicam a legtima aspirao de saber a verdade(Ferreira 1893b: 482).

    No se trata de uma observao isolada: o principal responsvel pelo reco-nhecimento institucional dos postos antropomtricos, Ferreira Augusto,procurador rgio junto da Relao do Porto, tambm um adversrio dasdoutrinas que comparam os criminosos a primitivos atvicos. Deste modo,a antropometria policial entendida como uma alternativa discriminao

    8 Bertillon pensa que as diversas medidas do corpo so de alguma forma independentes, enquanto Galton descobrea redundncia deste sistema, uma vez que as pessoas mais altas tendem a ter ps mais compridos, braos e dedosmaiores. Por outras palavras, as diferentes medidas esto correlacionadas. Um autor pensa a antropometria do pontode vista dos caracteres individualizantes; outro do ponto de vista da anlise das distribuies. Sobre este tema, verHacking (1990: 186-188).9 Ver tambm Ferreira (1893a: 245-251).

  • Nuno Lus Madureira

    294

    biolgica e ao endurecimento da legislao penal. O combate delinqunciapassa essencialmente pela preveno e pela aco eficaz da polcia.

    Como foi acima referido, estas trs correntes de pensamento cruzam--se no caminho da antropologia fsica e da craniometria. O ponto em comum o reconhecimento da necessidade de recolher informaes de tipo estatsticosobre os criminosos. No entanto, o sentido destas estatsticas no o mesmo:para o determinismo biolgico elas servem para confirmar a identidade doscriminosos; para a antropometria policial so uma tcnica de identificao dosindivduos; para a teoria da degenerescncia, um elemento de estudocomparado das populaes. Identidade, identificao e comparao ilustramdiferentes posicionamentos face criminalidade, trs modos de interpretar osnmeros das medies antropomtricas.

    Dum modo geral, pode concluir-se que o segregacionismo recua natransio do sculo XIX para o sculo XX, sendo significativamente acom-panhado pelo reforo da vigilncia. Esta observao remete para o declniodas estigmatizaes biopsicolgicas do criminoso, a diferenciao entre adelinquncia social e as patologias mentais, o centramento no estudo dosfactores sociais e morais em detrimento do estudo dos caracteres fsicos dosreclusos, o reconhecimento de que os criminosos no so uma populaoaberrante e uma perspectiva mais optimista quanto evoluo da espcie. Osviveiros de marginalidade social continuam a suscitar interesse, particular-mente quanto ao exame anatmico, mas as pesquisas j no so motivadaspela obsesso de descobrir traos degenerativos ou de revelar o padrobiopsiclogico subjacente a actos de delinquncia. As medies exercem-sesobre um ser normal, o criminoso normal, e o estudo do corpo (e tambmdos rgos do corpo) visa caracterizar certas tendncias ou hbitos social-mente adquiridos.10

    Se a antropometria surge, no sculo XIX, como um mtodo cientficoque d legitimidade a teorias e a formas de percepo da delinquncia e damarginalidade, no sculo XX o seu mbito torna-se mais lato e passa a seruma tcnica de investigao aplicvel a qualquer comunidade de indivduos.

    A assimilao do saber cientfico dos mdicos antroplogos por partedo estado contribui para o esvaziamento desse saber e para a reduo dosconhecimentos a prticas utilitrias. As vises do mundo sedimentam-se emtcnicas de policiamento e de administrao; a antropometria despojada deimplicaes tericas e das conotaes com qualquer escola de pensamento.As medies servem exclusivamente para efeitos de identificao e portantopassam a ser aplicveis ao pblico em geral, transformando-se num pro-cedimento universal e numa rotina burocrtica.

    10 Criminoso normal o conceito de Mendes Correia (1924: 296). Sobre as finalidades do exame antropomtricono sculo XX, ver Ferreira (1922-23: 4-11).

  • A Estatstica do Corpo

    295

    Os cidados: registos antropomtricos e impresses digitais

    A antropologia criminal preocupa-se em decifrar o cdigo dos delinquentes,fazendo medies dos corpos e registando sinalticas particulares, como astatuagens, uma linguagem secreta, escrita na pele, cujo significado a cinciase prope finalmente revelar, ou as alcunhas e o calo dos presos, um voca-bulrio repleto de segundos sentidos.11 No entanto, a iniciativa de ampliare sistematizar a recolha de dados estatsticos, transformando-a numa prticainstitucional, fica a dever-se tanto aos cientistas como s autoridades policiais.

    A Cadeia Penitenciria de Lisboa parece ter sido o primeiro lugar ondese comeam a fazer observaes antropolgicas dos reclusos, por volta do anode 1885. Dez anos mais tarde, a Penitenciria Central e a Cadeia do Limoeiroinstalam, por iniciativa dos respectivos directores, postos rudimentares demedio antropomtrica. Na cidade do Porto, as diligncias pertencem aoComissariado Geral da Polcia, que monta tambm uma unidade de medi-es, com o objectivo de ampliar os elementos anotados no registo policial.Por falta de meios, esta unidade desactivada e os seus instrumentos soposteriormente reinstalados em anexos das cadeias da Relao, j sob aorientao especializada de um professor da Escola Mdico-Cirrgica doPorto, o mdico antropologista Lus Lopes. A 17 de Agosto de 1899, umdecreto-lei, assinado por Luciano de Castro e Jos de Alpoim, cria doislugares para mdicos antropologistas junto das cadeias civis de Lisboa e doPorto, no que pode ser considerado o primeiro sinal de reconhecimento, porparte do estado, em relao s iniciativas que foram nascendo de formadescentralizada.12 Finalmente, no ano de 1902, so oficialmente inauguradospostos antropomtricos anexos s cadeias de Lisboa e Porto, colhendo-se osboletins dos presos, segundo o sistema de Bertillon. Estes postos no selimitam execuo de rotinas tcnicas, mas so entendidos pelos mdicosantroplogos como laboratrios experimentais, dando origem a publicaesonde o debate da antropometria se mistura com divulgao cientfica epginas de poesia, como o caso da Revista Amarela, de Lisboa, ou da Revistade Antropologia Criminal, publicada pelo posto do Porto, com um perfil maisacadmico. Ambos os projectos editoriais tm porm uma durao efmera.

    Quando a antropometria obtm finalmente a consagrao e se tornauma cincia do estado, a comunidade cientfica comea a interrogar-se sobrea eficcia deste mtodo de identificao. As dvidas surgem no momento deinstalao dos postos: s doze anotaes previstas no decreto de 21 de

    11 Para Lombroso, as tatuagens so um elemento que comprova as afinidades entre os criminosos e os selvagens.O principal estudo desenvolvido em Portugal neste domnio a obra de lvaro Teixeira Bastos (1903).12 Os apontamentos sobre a histria da antropometria criminal limitam-se aqui a uma sntese breve. Para umdesenvolvimento, ver Portela (1903: 59-60), Pessoa (1929 e 1940: 709-722), Pina (1931c, 1938 e 1939), Barbedo (1960),Costa (1993: 174-175).

  • Nuno Lus Madureira

    296

    Setembro de 1901 (estatura, comprimento dos braos abertos, altura sentado,comprimento e largura da cabea, largura bizigomtica, comprimento daorelha direita, cor dos olhos, comprimento do dedo mdio e mnimo esquer-dos [a lei, por equvoco, refere o dedo anular], comprimento do braoesquerdo, comprimento do p esquerdo) sugere-se que seja tambm acres-centado um novo tipo de sinal: as impresses digitais.

    Nas duas dcadas que se seguem, trava-se um debate muito espe-cializado mas que apaixona e divide a comunidade de criminologistas,colocando de um lado os adeptos da bertillonagem e do outro os adeptosda dactiloscopia. Esta ltima tcnica baseia-se na estampagem da marca dosdedos (utilizam-se ento sries com dez impresses digitais, correspondentesa todos os dedos da mo direita e da mo esquerda, prtica igualmenteadoptada em outros servios internacionais de polcia) e posterior codificaosegundo um sistema descritivo dos tipos de desenhos formados pela orien-tao das linhas: por exemplo, a frmula E(10) 2(5) 2(5) ... etc. indica quea presilha externa tem 10 linhas entre o delta e o ponto central, no polegardireito; a presilha externa tem 5 linhas no indicador direito; a presilha externatem 5 linhas no mdio direito, etc.

    Recorrendo anlise de probabilidades, Francis Galton tinha demons-trado, na dcada de 1890, que a probabilidade de a impresso digital de umdedo de uma pessoa ser exactamente igual impresso do mesmo dedo deoutra pessoa era de um para sessenta e quatro mil milhes. Esta demonstraoprobabilstica ser posteriormente adulterada e popularizada na frase: no hduas impresses digitais iguais.13 Apesar de estes trabalhos serem conhecidosem Portugal, permanecem as dvidas sobre a fiabilidade do sistema. O PostoAntropomtrico da cidade do Porto o primeiro a incluir os registos dacti-loscpicos nos boletins, remontando a 1902 o primeiro caso conhecido.

    Os antropometristas conseguem no entanto resistir persuaso dosnovos mtodos e manter posies atravs da portaria de 5 de Junho de 1904,onde se determina que a identificao dos presos do sexo feminino e dosmenores de 25 anos seja efectuada somente pela dactiloscopia, continuando--se a usar as medies para efeitos de reconhecimento de homens adultos.A situao de empate tcnico. Em 14 cidades e vilas localizadas na provncia(todas a norte do Tejo) instalam-se tambm estaes de recolha de dados que,por determinao de 1906, passam a usar apenas a dactiloscopia. Algunsmdicos especializam-se directamente nos trabalhos de identificao legal,deixando cair a tradio da antropologia fsica. Com as impresses digitais,os poderes de vigilncia passam a ser exercidos sem a necessidade de saberestericos, recorrendo-se somente a conhecimentos tcnicos.

    13 No h duas impresses digitais iguais uma frase da autoria de J. A. Larson (1924, em Single Fingerprint System,citado em Stigler 1999: 139). Sobre os pressupostos matemticos do uso das impresses digitais, ver Stigler (1999: 139).

  • A Estatstica do Corpo

    297

    Os sucessos da dactiloscopia portuguesa garantem-lhe entretantoprojeco nacional e internacional. Em 1904, Xavier da Silva identifica pelaprimeira vez um cadver por meio das impresses digitais. O caso publi-citado pelo facto de se pensar que se trata da primeira identificao positivafeita em toda a Europa (descobre-se mais tarde que a Frana pioneira nestedomnio). Posteriormente, o mesmo Xavier da Silva chamado para ajudara polcia num roubo. O ladro tinha esvaziado o recheio da ourivesaria daGuia em Lisboa, conseguindo sair de forma to discreta como entrara. Paratrs ficava uma marca bem ntida do polegar direito sobre a superfcie brancade uma caneca. Sem testemunhas e sem denncias, o ladro preso. Comomeio de prova a polcia apresenta a caneca e a explicao do perito. Asimpresses digitais entram assim nos tribunais e os mdicos guindam-se aopapel de testemunhas cientficas.

    Com a Primeira Repblica, a identificao sai do foro estritamentecriminal para o foro poltico, tornando-se um assunto de segurana colectiva.Em Setembro de 1912, um dos craniometristas da primeira gerao, investidona qualidade de ministro, institui a carteira de identidade para todos osfuncionrios pblicos dos ministrios e direces gerais. Impresses digitais(cinco dedos da mo direita), fotografia e sinais particulares so os traos queAurlio da Costa Ferreira manda registar neste documento. Apesar dasintenes, a iniciativa sofre um retumbante fracasso e so raros os fun-cionrios que chegam a ter a respectiva carteira. Outras tentativas se seguemnos anos subsequentes.

    Em 1918, procede-se a uma reestruturao mais profunda, baseada emduas linhas de fora: em primeiro lugar, aproximar os critrios de duasjurisdies, a identificao civil e a criminal; em segundo, credibilizar o usode um meio de prova civil para todos os cidados, instituindo o bilhete deidentidade e associando-lhe o funcionamento de uma repartio especia-lizada, o Arquivo de Identificao de Lisboa.

    At ao ano de 1927, no so criadas instituies regionais e o arquivode Lisboa fica com a responsabilidade de centralizar informao e emitirdocumentos para todos os pontos do pas. Com o decreto 13.254 de 9 deMaro de 1927, a Repartio de Antropologia Criminal da cidade do Porto eo Instituto de Criminologia de Coimbra assimilam competncias na rea civile constituem-se em arquivos regionais de identificao. Continua-se a adoptarum sistema misto, contemplando quer medies antropomtricas querimpresses digitais e fotografia. Apesar de o bilhete de identidade comeara fazer parte do quotidiano de uma boa parte da populao, a sua progressofora do mbito das reparties do estado parece ter sido lenta.14 Passados

    14 O elenco de situaes em que se exige a posse de bilhete de identidade ir ser sucessivamente ampliado pelodecreto 12.202, de 21 de Agosto de 1926, e pelo Cdigo de Registo Civil, de 22 Dezembro de 1932 (Pinheiro e Oliveira,1995: 16-17).

  • Nuno Lus Madureira

    298

    vinte anos, os especialistas continuam a lamentar que os bancos e as casascomerciais no concedam ao referido documento a importncia que reveste(Costa 1984: 351-352, 361), tirando proveito do meio de prova legalmenteinstitudo para racionalizar servios e prevenir burlas.

    Os processos vlidos para a identificao criminal so transpostos paraa identificao civil, esbatendo o carcter segregacionista das estatsticas docorpo. O estado universaliza meios de prova da personalidade fsica e socialdos cidados, anunciando um sistema onde todos so iguais face administrao e onde o nus da prova se torna uma obrigao individual: omiservel e o descendente da nobreza titular, o campons analfabeto e oacadmico passam a ser oficialmente reconhecidos pelo mesmo tipo dedocumento.

    Depois da antropometria, da dactiloscopia e da fotografia bertillonianaterem dado provas no controlo de subpopulaes de risco, chegada a vezde aplicar estas tcnicas de identificao a toda a sociedade. O outro lado dahistria a instaurao de um sistema de vigilncia sobre o conjunto dapopulao. Embora esta possibilidade fique em aberto, no parece que elatenha constitudo a principal motivao para o aparecimento do bilhete deidentidade. Importa compreender que a identificao civil no apenas umaforma de controlo social. Ela tambm um procedimento que facilita astransaces entre indivduos, atravs da descentralizao e da automatizaodos processos de reconhecimento. O bilhete de identidade liga o cidado aoestado, mas liga tambm os cidados entre si, baixando os custos deinformao da interaco social. Particularmente no universo das transacesfinanceiras, a fiabilidade da identificao uma garantia para as empresasoperarem de forma mais eficiente e com custos mais baixos. Uma explicaoestritamente em termos de tecnologias de poder esquece a vertentecomunicacional das tecnologias e o seu papel na estandardizao, unifor-mizao e credibilizao das relaes entre indivduos. Deste ponto de vista,o bilhete de identidade instaura regras e cdigos no domnio da verificaoda informao, substituindo procedimentos incertos, casusticos e informais.

    Somente no ano de 1936 h indcios de que as autoridades queremefectivamente aproveitar as potencialidades de fiscalizao e disciplinacriadas pelo novo sistema. Com o decreto 27.305, desse ano, repe-se oesprito centralizador na gesto dos arquivos, apontando-se para o estabe-lecimento futuro de um ficheiro dactiloscpico nico, capaz de permitir aidentificao prvia de qualquer indivduo. Ao nvel das subpopulaesperigosas, adopta-se a mesma filosofia (decreto-lei 27.304), operando-se afuso dos servios de registo criminal, a cargo dos institutos de criminologia(herdeiros dos postos antropomtricos de princpio do sculo), com outrosarquivos entretanto criados pela Polcia de Segurana Pblica. Tinha-se naverdade chegado a uma duplicao de funes e de ficheiros nestes dois tipos

  • A Estatstica do Corpo

    299

    de organismos (Pina 1938: 99), o que levava a um funcionamento atabalhoadoe a um controlo pouco rigoroso dos delinquentes e grupos de risco.15

    Num perodo politicamente muito sensvel, o estado salazaristapretende dar um passo em frente tanto no controlo dos cidados como nocontrolo dos criminosos. No se deve porm confundir intenes legislativascom factos adquiridos. A burocracia tem as suas razes de inrcia e a eficciada administrao sob o Estado Novo deixa muito a desejar. Dificuldades deordem tcnica fazem com que a unificao dos registos policial e criminaltenha permanecido letra morta, originando a desorganizao e a perturbaodos servios.16 Sobre a eficcia do processamento de dados no Arquivo deIdentificao Civil, faltam-nos ainda elementos que possibilitem conclusesseguras.

    Com todas estas alteraes, as pesquisas antropomtricas dos antro-plogos perdem utilidade para o estado: alguns regressam ao foro acadmico,outros reconvertem-se exclusivamente s tcnicas de identificao e prticada medicina legal. Desponta entretanto um terreno praticamente virgem deoportunidades na rea dos estudos coloniais. Agrupados em torno de MendesCorreia e da Escola Mdica do Porto, um grupo de acadmicos comea adesenvolver actividade no campo da antropologia fsica dos indgenas e areclamar o financiamento de misses antropolgicas para medir e observaras populaes colonizadas. Em meados da dcada de 1930, o Estado Novo dluz verde a estas aspiraes e as cartas etnolgicas do ultramar portugusvm garantir novos laboratrios para os mdicos antropologistas (Roque2001, Pereira 1987).

    Ao fazer um balano da situao, Eusbio Tamagnini conclui que ocontacto estreito que havia entre as disciplinas de antropologia e de cri-minologia tinha desaparecido, pelo menos em Coimbra (Tamagnini e Serra1940: 646). Um olhar sobre as bibliografias das dcadas de 1930 e 1940confirma que so poucos os resistentes que insistem em cruzar as duastradies. Lus de Pina, um mdico nascido em Lisboa no ano de 1901 edoutorado pela Faculdade de Medicina do Porto, dos raros investigadoresque mantm a dupla carreira e o duplo mercado de trabalho. A colaboraoem vrias instituies do Estado Novo permite-lhe ampliar a formao debase em anatomia descritiva para os domnios da antropologia fsica e daantropologia criminal. Mas ser que o dinamismo e a obra multifacetada deLus de Pina conseguem repor a convergncia perdida entre os vrios

    15 A consulta de correspondncia da PSP exemplificativa das dificuldades de articulao entre as diferentesautoridades e no interior da prpria PSP. Em 23 de Novembro de 1933, a direco do servio de identificao e registopolicial compila uma extensa lista de indivduos referenciados por esquadras de polcia que nunca tinham sidoidentificados aqui e envia esta lista ao comandante da PSP de Lisboa (ANTT, Polcia de Segurana Pblica,correspondncia do Posto Antropomtrico da PSP, caixas 406-417).16 Prembulo do decreto-lei n. 45.754, de 5 de Junho de 1964, citado por Costa (1984: 352).

  • Nuno Lus Madureira

    300

    saberes? Dum ponto de vista global, pode dizer-se que este autor aprofundaas linhas de investigao da medicina oitocentista, prolongando-a para novosdesenvolvimentos. No plano das tcnicas aplicadas, lecciona cursos de dacti-loscopia no Instituto de Criminologia do Porto e esfora-se por criar novosmtodos de identificao, como o caso da desmopapiloscopia palmar, queestuda os caracteres das marcas dos ps. No plano acadmico, compila novosndices ceflicos; analisa a relao entre o desenvolvimento da cabea, a alturae a idade; adapta os antigos ndices ceflicos e nasais a populaes ainda nosujeitas a inqurito, como as crianas, conciliando esta imensa proficuidadeacadmica com a posio de deputado da Assembleia Nacional nas legis-laturas de 1938-1942 e 1942-46. Algumas das suas agendas parecem contudodesfasadas do tempo, uma luta inglria contra a corrente que desembaraoua criminologia da antropologia fsica. Veja-se o estudo de 1931, sobre a orelhadireita dos criminosos portugueses: depois de comparar ndices obtidos pormedies de orelhas dos delinquentes com os ndices da populao dodistrito de Braga, controlando as mdias, medianas e desvio-padro, Lus dePina conclui que os minhotos tm um ndice auricular mais elevado que ondice dos criminosos. Do ponto de vista prtico, pouco se retira deste estudo,pois tanto a orelha-impresso digital de Bertillon como a orelha antro-pomtrica caram em desuso. Do ponto de vista cientfico, tambm a orelhalarga e proeminente dos criminosos de Lombroso est ultrapassada.17O mtodo de identificao das impresses digitais tornou dispensvel estaabordagem; as doutrinas sobre a natureza social e psicolgica do crimeremeteram para segundo plano as informaes sobre os caracteres fsicos dosdelinquentes. A tentativa de trazer de novo a cincia para o campo daaplicao prtica e para o servio do estado parece assim condenada aofracasso.

    O esvaziamento dos saberes

    Vimos como a nova disciplina da estatstica do corpo surge inicialmenteassociada ao estigma da marginalidade e da criminalidade, transformando--se, com o correr dos tempos, numa rotina burocrtica constituinte dasobrigaes da cidadania e dos processos de identificao civil.

    A ideia de registar sistematicamente medies do corpo dos indivduostem subjacente uma inquietao cientfica quanto genealogia da espcie e

    17 Recorde-se que, para Lombroso, as orelhas largas e proeminentes so um trao caracterstico de filiao atvica e,portanto, seria de esperar que os habitantes do Minho tivessem orelhas mais pequenas e delicadas que os criminosos.Como os dados estatsticos revelam precisamente o contrrio, a ilao de Lus de Pina a seguinte: no podemosdeduzir concluses sobre a significao de primitivismo nos indivduos no delinquentes (Pina 1931a: 222). Vertambm Pina (1931b).

  • A Estatstica do Corpo

    301

    sobrevivncia do passado, ao determinismo dos caracteres biolgicos e possibilidade de degenerescncia. Ao procurar saber se todas as pessoas commau carcter revelam a mesma constncia de traos fsicos (fealdade, defor-mao, patologias comportamentais, crnio reduzido, mandbula protube-rante, corpo entroncado, etc.) abre-se a porta segregao daqueles que tmj maior propenso para ser excludos.

    Apesar de estas teorias serem contestadas no interior da comunidadecientfica, elas fixam imagens perturbadoras e influenciam a sensibilidadesocial relativamente a certos grupos de indivduos. A simples hiptese de oscriminosos terem traos fsicos distintos instala a dvida sobre se a relaoinversa ser tambm verdadeira, isto , se os seres anatomicamente diferentesno sero, eles prprios, delinquentes em potncia. Uma tal viso do mundono precisa de ser comprovada nem aceite consensualmente para gerar fobiassociais em relao aos traos fsicos degenerados. Nos finais de oitocentos, opessimismo das correntes de pensamento fabrica os estigmas de margina-lidade, multiplica os sinais de perigo e ergue uma muralha de segurana volta do cidado normal.

    A estatstica do corpo adquire um estatuto securitrio. Atravs damedio e da anlise intensificam-se os procedimentos de objectivao doretrato dos criminosos. Esse retrato pode resultar da pesquisa de um tipoantropomtrico abstracto capaz de resumir os traos comuns dos delin-quentes (identidade); da descrio individual dos caracteres fsicos de pessoasperigosas ou suspeitas, tendo em vista facilitar a sua localizao e controlo(identificao); de parmetros estatsticos de vrias subpopulaes (com-parao). Cada uma destas representaes interessa-se em fixar uma certaimagem: o criminoso-tipo, o criminoso-indivduo e o criminoso-grupo. Emtodas estas vertentes, os conhecimentos e a experincia acadmica daantropologia fsica adquirem uma projeco indita e tornam-se saberesinstrumentais para o estado. No campo da investigao aplicada surgemnovas oportunidades para os mdicos criminologistas e abrem-se portas nacarreira mdica.

    Com o aproveitamento dos saberes para o desenvolvimento de tcni-cas de vigilncia, baseadas na construo de ficheiros com medies antro-pomtricas e impresses digitais, assiste-se contudo a uma mudana deperspectiva. O estado d prioridade ao delinquente-indivduo relativamenteao deliquente-grupo e ao deliquente-tipo. O registo de medies torna-se umafinalidade em si mesma, um instrumento de polcia que independente deteorias e de vises do mundo. No se procura averiguar se a orelha largaou o crnio pequeno para confirmar sinais de delinquncia mas para controlarindivduos perigosos.

    Os estigmas associados estatstica do corpo vo-se diluindo medidaque as teorias cientficas passam a tcnicas instrumentais das autoridades.

  • Nuno Lus Madureira

    302

    Uma vez quebrada a associao entre antropometria e delinquncia, passa aser possvel avanar para a universalizao dos meios de vigilncia e dedescentralizao da informao, criando-se procedimentos obrigatrios deidentificao como o bilhete de identidade. A integrao do saber cientficonos poderes do estado depura a lgica dos conhecimentos acumulados etransforma as vises particulares em dispositivos universais: o registo dadiferena dos criminosos transformado na igualdade da identificao civildos cidados. Cada indivduo passa a transportar consigo um documentoonde esto escritos, de forma simples e abreviada, os sinais do corpo. Essedocumento torna a identificao automtica, em contextos institucionais,poupando tempo e dinheiro. No entanto, de cada vez que preciso renovaro bilhete de identidade e de cada vez que o funcionrio passa um rolo de tintapelo polegar, imprimindo a impresso digital sobre uma folha, um brevecalafrio e uma sensao desconfortvel vem lembrar o tempo das origens eo tratamento dado aos criminosos.

    BIBLIOGRAFIAAA.VV., 1998, Murmrios do Tempo, Porto, Centro Portugus de Fotografia.BARBEDO, Alberto Soares, 1960, A Escola Mdica Portuense na Histria da Criminologia, Porto, Tipografia

    Porto.BASTOS, lvaro Teixeira, 1903, A Tatuagem dos Criminosos, Porto, Faculdade de Medicina do Porto, tese.CORREIA, A. A. Mendes, 1924, Antropologia Criminal Integral: o Normal Delinquente e a Crise Moral,

    Boletim do Instituto de Criminologia, V (2), 287-331., 1931, A Nova Antropologia Criminal, Porto, Faculdade de Cincias da Universidade do Porto,

    Instituto de Antropologia.COSTA, Afonso, 1895, Comentrio ao Cdigo Civil Portuguez: Escolas e Princpios da Criminologia, Coimbra,

    Imprensa da Universidade de Coimbra.COSTA, Antnio Manuel de Almeida e, 1984, O Registo Criminal, Boletim da Faculdade de Direito da

    Universidade de Coimbra, suplemento XXVII, 225-612.COSTA, J. A. Pinto da, 1993, Histria da Dactiloscopia em Portugal, separata de O Mdico, 1469 (93),

    174-175.CURTO, Diogo Ramada, 1995, Crimes e Antropologia Criminal, Revista Lusitana, 13-14, 179-198.DIAS, Ana L., 1997, Darwin em Portugal: Filosofia, Histria, Engenharia Social, Coimbra, Faculdade de Letras

    da Universidade de Coimbra, tese de doutoramento.FERREIRA, Aurlio da Costa, 1922-23, Anatomia e Criminologia de Criminosos Portugueses, Boletim do

    Instituto de Criminologia, I-II, 1-4.FERREIRA, J. Bettencourt, 1893a, Antropometria, Revista de Educao e Ensino, VIII (6), 245-251., 1893b, A Identificao Anthropomtrica, Revista de Educao e Ensino, VIII (11-12), 481-488.FERREIRA-DEUSDATO, 1889, Estudos sobre Criminalidade e Educao (Philosofia e Anthropologia), Lisboa,

    Imprensa de Lucas Evangelista.FOUCAULT, Michel, 1979, Discipline and Punish, Londres, Harmondsworth., 1991, Politics and the Study of Discourse, BURCHELL, Graham, e outros, The Foucault Effect,

    Exeter, Harvester Wheatsheaf, 53-72.FREIRE, Baslio, 1889a, Os Degenerados, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra., 1889b, Os Criminosos, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra.GONALVES, Joo, 1922-1923, Crime, Degenerescncia e Atavismo, Boletim do Instituto de Criminologia,

    I-II, 49-75.GONALVES, Lus da Cunha, 1913, As Causas da Criminalidade Segundo a Nova Escola Psico-Patolgica,

    Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra.GOULD, Stephen Jay, 1996 [1981], The Mismeasure of Man, Nova Iorque, W. W. Norton, 105-175.HACKING, Ian, 1990, The Taming of Chance, Cambridge, Cambridge University Press.

  • A Estatstica do Corpo

    303

    MACEDO, Francisco Ferraz de, 1892, Crime et Criminel, Paris, Belthate & Thomas.MARQUES, Severino de SantAnna, 1898, Anthropometria Portuguesa, Lisboa, Tipografia Minerva.PEREIRA, Rui, 1987, O Desenvolvimento da Cincia Antropolgica na Empresa Colonial do Estado

    Novo, O Estado Novo das Origens ao Fim da Autarcia, vol. II, Lisboa, Fragmentos, 89-106.PESSOA, Alberto, 1929, Guia de Tcnica Policial, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra., 1940, Histria da Introduo em Portugal dos Mtodos Cientficos de Investigao Criminal,

    Congresso do Mundo Portugus, vol. XII, 709-722.PINA, Lus de, 1931a, A Orelha dos Criminosos Portugueses, ndice Auricular, Extracto do Arquivo da

    Repartio de Antropologia Criminal e Identificao Civil do Porto, 1 (3), 198-222., 1931b, Observaes sobre a Morfologia da Orelha nos Portugueses, Arquivo de Anatomia e

    Antropologia, XIV, 225-230., 1931c, Os Servios de Antropologia Criminal e Identificao Civil: Dactiloscopia, Lisboa., 1938, Dactiloscopia: Identificao Policial Cientfica, Lisboa, Livraria Bertrand., 1939, A Antropologia Criminal e o Instituto de Criminologia do Porto, Lisboa, Tipografia da Cadeia

    Penitenciria.PINHEIRO, Alexandre Sousa, e Jorge Meneses de OLIVEIRA, 1995, O Bilhete de Identidade e os Con-

    trolos de Identidade, separata da Revista do Ministrio Pblico, 60, 16-17.PORTELA, Arthur, 1903, O Posto Anthropomtrico Junto da Cadeia Civil do Porto, Revista Amarela, 4,

    59-60.PORTO, Joo, 1941, Eugenismo e Hereditariedade, separata de Semanas Sociais Portuguesas, 7-21.PROCTOR, Robert, 1988, From Anthropology to Rassenkunde, STOCKING, George W. (org.), Bones,

    Bodies, Behaviour, University of Wisconsin, Madison, 138-179.ROQUE, Ricardo, 2001, Antropologia e Imprio: Fonseca Cardoso e a Expedio ndia, Lisboa, Imprensa de

    Cincias Sociais.SILVA, Xavier da, 1916, Os Reclusos de 1914: Estudo Estatstico e Antropolgico, Lisboa, Oficinas Grficas da

    Cadeia Nacional.STIGLER, Stephen M., 1999, Galton and Identification by Fingerprints, Statistics on the Table, Harvard,

    Harvard University Press, 131-140.TAMAGNINI, Eusbio, e J. A. SERRA, 1940, Subsdios para a Histria da Antropologia Portuguesa,

    Congresso do Mundo Portugus, vol. XII, 637-632.VAZ, Maria Joo, 1998, Crime e Sociedade, Oeiras, Celta Editora.VIEIRA, Lopes, 1904, A Anthropometria e os Tribunais Criminais, Revista Amarela, 5, 68-70.

    THE STATISTICS OF THE BODY: PHYSICALANTHROPOLOGY AND ANTHROPOMETRICSIN THE EARLY 20TH CENTURY

    This article examines the different scientific traditionsof Portuguese anthropometrics and the emergence ofstatistical representations of the body that will createcategories such as criminal type, criminal group andcriminal individual in the transition from the 19th tothe 20th Century. The concept of knowledgedraining is introduced to express the process ofassimilation by the state of the perspectives developedby medical anthropology and the reduction of theoriesto utilitarian practices, disconnected from particularvisions of the world and transformed into burocraticroutines of identification, which are used in themonitoring of population. Through this process,anthropometrics evolved from the register of thespecific characteristics of criminals to the descriptionof the equality of citizens.

    Nuno Lus Madureira

    Departamento de Histria do [email protected]