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IX ENCONTRO DA ABCP
Pensamento Político Brasileiro
A ESFINGE DESVELADA: O PENSAMENTO POLÍTICO DO BARÃO DO RIO BRANCO
Elizeu Santiago
IESP - UERJ
Brasília, DF 04 a 07 de agosto de 2014
A ESFINGE DESVELADA: O PENSAMENTO POLÍTICO DO BARÃO DO RIO BRANCO
Elizeu Santiago IESP - UERJ
Resumo do trabalho:
Figura inconteste no panteão dos heróis nacionais, José Maria da Silva Paranhos Júnior, o barão do Rio Branco, imortalizou-se pelos anais da história brasileira como o grande consolidador das fronteiras do país. Monarquista convicto, ao longo dos dez anos que esteve à frente do Ministério das Relações Exteriores transformar-se-ia na figura mais popular do regime republicano.
Enquanto chanceler, abundam na historiografia as mais variadas análises sobre o seu pensamento diplomático. Permanece, em segundo plano, no entanto, maiores tentativas de se analisar o pensamento político de Rio Branco, aquele dedicado a compreender as ideias sobre a formação do país, o seu destino histórico e as políticas mais apropriadas à sua consecução.
Sugerimos, aqui, como proposta de trabalho, a reconstrução de suas ideias políticas em conjunto com a análise de sua obra diplomática. Sob a perspectiva histórica do desenvolvimento das ideias políticas, argumentaremos que o pensamento e a atuação de Rio Branco, embora esta última legitimadora da nova ordem política instalada, são tributários da herança política imperial saquarema. Grosso modo, poder-se-ia afirmar que Rio Branco representou a face mais bem acabada da diplomacia e do pensamento saquarema atualizada para o novo contexto republicano.
Palavras-chave: Barão Rio Branco; Pensamento Político Brasileiro; Diplomacia.
Dois projetos de construção estatal estiveram presentes na discussão política brasileira do
século XIX. O primeiro, conhecido na historiografia como conservador ou saquarema,
diagnosticava uma massa territorial infindável, permeada de povoamentos irregulares com elites
provincianas compostas sobretudo por fazendeiros incapazes de forjar a emergência do Estado.
Da ausência de nação e virtude pública, apenas um Estado forte, centralizador e unitário lograria
êxito na tarefa de construção estatal. O Estado brasileiro deveria ser formado de cima para baixo,
em um processo seguro que garantisse prioritariamente a ordem, requisito primeiro e
indispensável à promoção das liberdades individuais.1
O segundo projeto, levado a cabo pelos luzias ou liberais, partia do diagnóstico de um país
onde as liberdades individuais não eram valorizadas; a excessiva centralização impedia o
progresso; e, a sociedade civil era restringida por um arcabouço burocrático fortemente
interventor. No imaginário liberal, era a liberdade a força que desencadearia o progresso e o
aperfeiçoamento do civismo.
Ora, para que um povo se aperfeiçoe e aumente em virtudes, é míster que seja livre. É a liberdade que excita o sentimento da responsabilidade, o culto do dever, o patriotismo, a paixão do progresso. Mas um povo a quem se impuseram os encargos da civilização sem as liberdades correspondentes, é um paralítico: tem escusa para tudo. Exigem que as nossas províncias progridam, e lhes tolhem as mãos; que deixem de repousar na iniciativa do governo central, e não lhes concedem a iniciativa precisa.2
De um lado, os saquaremas representariam “o uti possidetis das posições oficiais”3,
comprometidos com as instituições políticas que haviam garantido a construção da ordem
imperial. Do outro, os luzias pregavam reformas em nome do avanço das liberdades cívicas. Entre
elas, estavam a redução das atribuições do poder moderador, a abolição da vitaliciedade do
Senado e a descentralização administrativa.
Somos de opinião que se deve lentamente republicanizar a Constituição do Brasil, cerceando as fatais atribuições do poder moderador, organizando em assembléias provinciais os Conselhos Gerais de Província, abolindo a vitaliciedade do Senado, e isto desde já.4
O ideário da liberdade deveria ainda ser interposto ao campo das relações comerciais.
Como lembra Barrio, “Tavares Bastos insurgia-se contra a ortodoxia metalista de Rodrigues
Torres e Torres Homem e advogava a liberdade de comércio em sua dura crítica à legislação de
Ferraz que passou a exigir a aprovação governamental para a criação de qualquer
sociedade comercial no Brasil.5 O próprio Bastos lideraria a crítica luzia ao posicionamento
conservador.
[…] direi que contamos muitos exemplos da tutela do Estado sobre as indústrias, primeira face do regime centralizador. Vou apontar alguns, que frisem minha doutrina, desde a simples tutela por meio das prevenções
1 Saquaremas em alusão ao município carioca onde os líderes do Partido Conservador se encontrar, mais precisamente na fazenda do Visconde de Itaboraí nessa localidade. Já luzia se refere aos membros do partido liberal, em lembrança da maior derrota sofrida revoluções liberais de 1842, na cidade mineira de Santa Luzia. 2 BASTOS, Tavares. A Província: Um estudo sobre a descentralização no Brasil. São Paulo: Ed. Brasiliana, 1937, p. 42. 3Nabuco de Araújo. 4TEOFILO OTONI, 1860, apud ARAUJO, Valdei Lopes de. A Instrumentalização da Linguagem. Dossiê, Revista do Arquivo Público Mineiro, 2008, p. 54. 5BARRIO, op. cit., p. 208-209.
regulamentares até ao protecionismo, até à restrição e até ao monopólio. [...] O ato de 22 de agosto de 1860 seria um crime se não fosse uma lei. Em virtude dele, o Estado diz aos mercadores, aos capitalistas, aos banqueiros: O comércio sou eu! — Ao direito de associação: Eu vos modero e vos dirijo, e posso embaraçar-vos! — A todas as ndústrias: Ninguém mais sábio e mais prudente do que eu: segui-me! Meu dedo soberano apontar-vos-á o caminho.6
Um olhar atento à composição dos partidos políticos indicaria desde logo importantes
distinções ideológicas. Foram os magistrados os principais construtores do Estado imperial até a
metade dos anos 1850, via Partido Conservador. Defensores da centralização administrativa e de
um Estado forte que garantisse a ordem, formavam junto com os proprietários rurais da grande
agricultura de exportação a espinha dorsal dos quadros saquaremas. Do outro lado, a composição
do Partido Liberal dava conta para um maior número de representantes da agricultura
comprometida com o mercado local, além de profissionais liberais.7
A tradição luzia encontraria seus arautos mais privilegiados no pensamento de Gonçalves
Ledo, Diogo Feijó, Frei Caneca, Tavares Bastos, Zacarias Góis e Vasconcelos, Teófilo Ottoni. Os
saquaremas em nomes como Bernardo Pereira de Vasconcelos, José Antônio Pimenta Bueno,
José Rodrigues Torres, Paulino José Soares de Sousa, José Maria da Silva Paranhos. Enquanto
categorias analíticas do pensamento político brasileiro, saquaremas e luzias tenderam a se
conformar nos dois grandes partidos imperiais. No entanto, é preciso reconhecer que “no Império,
inexistia uma vida partidária rígida.” Foram constantes as mudanças ideológicas e partidárias,
sobretudo entre as alas mais moderadas dos dois partidos.8
A despeito do provérbio imperial atribuído a Holanda Cavalcanti de que “nada mais
parecido a um saquarema do que um luzia no poder”9, ao menos no plano programático as
distinções ideológicas são claras. Os primeiros tenderiam a ser estadocêntricos, centralizadores,
unitaristas. Os segundos privilegiariam concepções sociocêntricas, federativas,
descentralizadoras. Para os saquaremas, o Brasil seria explicado pelo Estado; para os luzias, pela
sociedade.10
Aos primeiros, à sociedade decaída se faria necessário o Estado forte. Aos segundos, a
sociedade decaída tinha no imenso peso do Estado uma de suas causas. Uma das crenças
centrais à visão de mundo saquaremas era a de que “o Estado tem de crescer para implantar a
ordem e a civilização. Sem um Estado nacional uno e centralizado, não há liberdade”. Aos luzias,
a liberdade é um bem inalienável que historicamente era constrangido por uma burocracia ibérica
ultrapassada.11
A despeito da existência de farta bibliografia sobre distinções e indistinções dos partidos
políticos imperiais, pouca atenção foi dada até o momento à forma como luzias e saquaremas
enxergavam as relações internacionais de seu tempo. Ao nosso ver, embora as elites
6 TAVARES BASTOS, op. cit., p. 46-47. 7CARVALHO, op. cit., p. 225. 8 CERVO, Amado. O Parlamento Brasileiro e as Relações Exteriores (1826 – 1889). Brasília: UnB, 1981. 9 MERCADANTE, 1972, p. 141 apud MENDES, op. cit. 10 LYNCH, Christian. O Império é que era a República: a monarquia republicana de Joaquim Nabuco. Lua Nova (Impresso), v. 85, 2012; e, Saquaremas e Luzias – A Sociologia do Desgosto com o Brasil. Insight Inteligência, out-nov-dez, 2011. 11 LYNCH, Saquaremas e Luzias – A Sociologia do Desgostocom o Brasil. Insight Inteligência, out-nov-dez, 2011, p. 26.
apresentassem considerável grau de coesão e mesmo de homogeneidade de treinamento e
socialização, importantes nuances ainda hão de ser exploradas pelos pesquisadores de política
externa brasileira. Como nota José Murilo de Carvalho, “a unidade da elite não era monolítica”.
Ademais, “as divergências intra-elites eram fontes de conflitos potenciais que se manifestavam em
rebeliões e na constituição e ideologia dos partidos.”12
Em que pese a tese de Amado Cervo quanto à indistinção partidária de liberais e
conservadores na condução diplomática13, nos parece sensato supor que ao menos no campo
ideológico importantes distinções pudessem ser delineadas. É verdade, entretanto, que, até o
presente, poucos pesquisadores se debruçaram sobre o pensamento internacional dos dois
grandes partidos imperiais brasileiros. As teses de “conciliação em política externa”14 ou a de
“nada mais saquarema que um luzia no poder” podem estar nos impedindo de explorar a riqueza
e densidade intelectual do pensamento internacional no século XIX.
Do posicionamento federalista, descentralizador e sociocêntrico dos primeiros,
verificaríamos uma visão de mundo americanista – mais precisamente, norte-americana -,
tendente à valorização do comércio enquanto ferramenta ímpar de política externa, relutante da
herança ibérica brasileira e desejosa da implantação de um sistema político semelhante ao da
federação norte-americana.
Os luzias “eram orientados pelo ideal americano, diferentemente dos saquaremas. O ideal
americano, é claro, era o do progresso baseado no crescimento econômico, no primado da
sociedade sobre o Estado, da economia sobre o político.”15 Os saquaremas viam a herança
portuguesa de forma positiva, tinham no expansionismo argentino o inimigo a ser neutralizado e
tendiam a valorizar o equilíbrio favorável de poder no Prata como um princípio indispensável à
diplomacia.
Como nota Barrio, “Vitoriosos em sua política interna e em sua política externa, os
conservadores haviam conseguido impor a Ordem dentro e fora das fronteiras do Império.” Para
este autor, se o paradigma saquarema de política externa estava assentado sobre as bases
realistas inspiradas em Hobbes e Maquiavel, o pensamento internacional luzia, era tributário da
vertente racionalista que emerge do pensamento de Grotius. “Enquanto a Ordem demandava a
projeção do Estado para dentro e para fora das fronteiras, a Liberdade propugnava sua limitação,
internamente pela imposição das liberdades privadas às prerrogativas públicas e externamente
pela primazia do Direito sobre o Poder.” Assistiu-se, dessa forma, ao embate dialético entre
Ordem e Liberdade; Poder e Direito.
Enquanto paradigmas, a forma saquarema de ver as relações internacionais foi
particularmente preponderante entre as décadas de 1850 e 1860, momento em que o Estado
imperial brasileiro se consolida através da atuação política concertada dos magistrados com a
12 CARVALHO, op. cit., p. 231. 13 CERVO, op. cit., p. 9-13. 14 Idem. 15 LYNCH, op. cit., p. 26.
elite rural. A ativa intervenção no Prata se materializou nas ações contra a confederação rosista e
os blancos uruguaios na década de 1850 e contra o Paraguai na década de 1860. A diplomacia
dos patacões, outrossim, serviu de importante mecanismo interventor ao lado dos interesses
brasileiros durante o período.
Se de um lado do espectro político, havia aqueles favoráveis aos ímpetos interventores, do
outro, havia os defensores de políticas de neutralidade, para os quais a generosidade e esforços
de concessão do lado brasileiro poderiam representar políticas mais frutuosas e mais indicadas
frente ao eventuais custos decorrentes da ação militar e das perdas comerciais.16
Liberais como Tavares Bastos, Visconde de Abaeté, Francico Carlos Brandão, Tito Franco
de Almeida, Martinho Álvares da Silva Campos e Luiz Alves Leite de Oliveira Belo questionariam a
forma saquarema de ver as relações internacionais. Ilustrativas sãos as palavras do Visconde de
Jequitinhonha e de D. Manoel Mascarenhas. Para o primeiro “toda a intervenção naquelle paiz
[o Uruguai] ha de ser infructuosa, não ha de trazer ao Brasil sinão desgostos, odios, ciumes, em
uma palavra, uma constante perturbação da sua marcha politica”.17 D. Manoel completa a crítica
ao pensamento intervencionista: O Brasil está cansado de carregar com algumas republicas do Prata.
Temos derramado o sangue brasileiro, temos despendido grandes sommas; e qual o resultado? Não temos
um amigo nessas republicas, que, se puderem, hão de incommodar o Brasil.18
Se os ideários dos paradigmas saquarema e luzia fossem equacionados em pares
dialéticos, o primeiro, de matriz realista, teria no binômio ordem e poder a fórmula mais próxima
do seu pensamento. O segundo, de inspiração grociana, pregava a limitação da ordem em nome
das liberdades civis e o exercício do direito em contraposição ao poder. O binômio liberdade e
direito representava, pois, a antítese do pensamento conservador.
O paradigma saquarema teria a sua aurora com o movimento conhecido por Regresso
Conservador, “encabeçado por Bernardo Pereira de Vasconcelos em 1837, acompanhado desde
cedo da visão “realista” de mundo” [...] e no bojo do qual forjou-se o paradigma saquarema da
política externa brasileira, na passagem da década de 1840 para a de 1850.”19 Se o Regresso de
1837 marcou o início do tempo saquarema na política nacional, as intervenções dos anos 1850
dão conta do início do “Regresso” na política externa brasileira, momento em que uma ordem
favorável começa a ser instaurada pelo Brasil na região após os fracassos diplomáticos do ano de
1844.20
Sob as mãos de eminentes conservadores como Uruguai, Paraná, Cotegipe e Rio Branco,
esse paradigma se consolidaria com a crença segundo a qual o interesse nacional deveria ser
assegurado mediante ao um equilíbrio de poder satisfatório no Prata. “O uti possidetis na paz; a
16 Discurso de Tavares Bastos na Câmara dos Deputados em 17 de maior de 1862 apud BARRIO, 2011, p. 228. 17 Discurso do Visconde de Jequitinhonha no Senado em 08 de junho de 1858 apud BARRIO, 2011, p. 224. 18 Discurso de D. Manoel em 18 de julho de 1859 no Senado apud BARRIO, 2011, p. 224. 19 LYNCH, Christian. O Império é que era a República: a monarquia republicana de Joaquim Nabuco. Lua Nova (Impresso), v. 85, 2012, p. 34. 20 BARRIO, op. cit., p. 257.
intervenção militar, na guerra,” como nota Lynch. Jaz no paradigma saquarema a matriz realista
da política externa brasileira. 21
Nas décadas de 1850 e 1860, o projeto saquarema de construção estatal e de política
externa seria amplamente aceito pela sociedade política imperial. Vitoriosa em todas as pelejas
pelo Prata, essa forma de ver o mundo seria a que mais influenciaria os agentes estatais de seu
tempo, mediante a cristalização de ideias-base em forma de tradição político-diplomática.
No entanto, sobretudo a partir de finais da década de 1860, “A política externa saquarema
passou a ser contestada pela oposição luzia: os moderados, liberais “clássicos” como Francisco Otaviano e
Martinho Campos, acenaram com o americanismo e a substituição da “política” pelas relações puramente
comerciais”.22
Uma nova oposição liberal emergiria, agora fruto de uma maior diversificação da agência
política brasileira. Com o afastamento dos magistrados do poder – sustentáculos da ordem
imperial e principais representantes do partido conservador -, o partido perderia parte da coesão
de outrora. Ademais, o saquaremismo clássico dava sinais de desgastes decorrentes do seu
próprio êxito.
Olhando retrospectivamente, os anos de preponderância do paradigma saquarema
parecem constituir a “exceção hobbesiana” do pensamento internacional brasileiro, já que nos
anos 1870, a tradição grociana voltaria à tona com o surgimento de uma nova gama de
pensadores liberais, tais como Francisco Otaviano, Joaquim Saldanha Marinho, Tavares Bastos,
José Bonifácio de Andrada e Silva, o Moço. Alguns fatores contribuiriam para a alternância de
paradigmas.
Em primeiro lugar, não apenas os conservadores sofrem mudanças em seus quadros.
Com as mudanças das regras políticas nos anos 1860 e 1870, retiram-se os magistrados da alta
política nacional. Ao mesmo tempo, assiste-se à emergência econômica de províncias
tradicionalmente liberais, como São Paulo e Rio Grande do Sul. Verifica-se ainda uma maior
complexificação da agência política brasileira nos lustros finais do império através do ingresso
maciço do profissionalismo liberal, mormente via Partido Liberal.
Sobretudo a partir da década de 1870, uma versão moderada do saquaremismo emerge
como política de estado preferencial. Consolidado um equilíbrio de poder favorável ao Império do
Brasil, as intervenções de outrora já não mais seriam necessárias, embora a utilização da força
militar fosse sempre mecanismo legítimo de defesa na eventualidade do malogro diplomático. O
Prata – e a manutenção favorável da ordem na região – seguiria sendo o ponto imediato de
atenção desses estadista, verdadeiros herdeiros de Portugal nos trópicos. Dotados de uma
epistemologia francamente positiva quanto ao histórico da formação da nacionalidade brasileira,
previam a eminência de um futuro promissor da jovem nação no concerto internacional.
A este conjunto de crenças, encontraremos a contra-resposta ideacional naquele
paradigma do pensamento político que viemos chamando até aqui de luzianismo. Expressada de
21 LYNCH, op. cit., p. 34. 22 Idem.
forma mais bem delineada no pensamento de Tavares Basto, diagnosticava estar na herança
portuguesa da formação nacional parte dos males a serem corrigidos mediante ao espraiamento
das liberdades, seja ela o liberalismo comercial, o religioso ou a adoção de um sistema federalista
que outorgasse as províncias maiores possibilidades de atuação frente à Coroa.
Ao passado, um presente não menos negativo impor-se-ia à realidade luso-brasileira. “Até
hoje”, nota Bastos, “os movimentos políticos de Portugal revelam periodicamente a existência de
uma voragem que tão cedo se fecha, como logo prorrompe em novas devastações. A história
interna da metrópole aclara a fisionomia da colônia.”23
Na ausência de “espírito público e atividade empreendedora”, fruto, em um primeiro
momento da colonização portuguesa e da continuação equivocada de um sistema educacional no
qual nossos homens públicos seguiram sendo “educados nas trevas de Coimbra”, imperava
“desarraigar a rotina, parasita do movimento; substituir a imobilidade do prejuízo de raça, o
incitamento humano do progresso indefinido [...] e levantar, do meio das nações, o luzeiro
esplêndido dos princípios fecundos.”24
Defensor entusiasta do aprofundamento do relacionamento bilateral com os Estados
Unidos, enxergava no comércio internacional “a mais poderosa alavanca do mundo social.” Ainda
na década de 1860, defenderia o estabelecimento de uma linha de navegação direta entre os dois
países, a liberdade de cabotagem em todo o litoral brasileiro, assim como seria propagandista
entusiástico da abertura do Amazonas ao comércio internacional.
Sob a “bandeira humanitária do comércio”, os povos incultos do imenso território
amazônico, “ajudado pelo colono europeu ou pelo americano, aprenderia a arte da agricultura,
afeiçoar-se-ia à terra, abandonaria os hábitos da vida errante, engrandeceria o Estado e
aumentaria as forças da nação.”25
À “imoralidade tradicional em nossa raça”, apenas o contato com o Norte, mediante “o
cruzamento das raças” e o “estreito contato com as raças viris do norte” através do papel
civilizador do comércio exterior, poderia subverter este atraso no desenvolvimento do espírito
nacional. Daí em nome da busca pela liberdade, proceder à utilização da política externa como
mecanismo viabilizador da aproximação aquele modelo civilizador de excelência. “Queremos
chegar à Europa?”, indaga retoricamente Tavares Bastos. “Aproximemo-nos dos Estados Unidos.
É o caminho mais perto dessa linha curva.”26
Para o desespero do pensamento saquarema, resoluto na manutenção territorial e avesso
à qualquer abertura comercial que pudesse redundar em perda de autonomia decisória ou cessão
de soberania, o luzianismo extremado das décadas finais do Império reconhecia, inclusive, a
possibilidade de perdas, sem grandes prejuízos ao país, de parcelas incultas do território.
23 Idem, p. 25. 24 Idem, p. 30. 25 Idem, ibidem. 26 Idem, p. 52.
Penetrai no leito imenso do Amazonas, assisti à luta gigantesca da pororoca, estudai a fertilidade daquelas margens, a abundância daquelas águas, a multidão daqueles rios, a extensão daquelas províncias, a variedade daquelas florestas; combinai todas essas impressões, e dizei-me de aquilo pode ser um tesouro improdutivo de dois ou três povos somente, se aquela parte de um mundo, que Colombo deitou os pés da humanidade, pode ser a propriedade exclusiva dos comerciantes e dos navegantes de alguns pequenos Estados.
Ao apontar as eventuais incongruências nas políticas de navegação defendidas pelo
Império no Prata e no Amazonas, não demonstrava grandes preocupações frente aos argumentos
conservadores de que tal liberalização pudesse ocasionar a entrega da soberania brasileira na
região: “E, para ficar claro, se a prosperidade futura houver de arrancar-nos o Pará de nossas
mãos débeis e de nossos laços frágeis, acredita-me que nada haverá que tenha a força de
impedi-lo.”27
Se, grosso modo, o Império assistiu à imposição de uma espécie de ordem saquarema em
suas instituições e no pensamento político preferencial de seus estadistas, a Primeira República
será o primeiro momento em que a oposição luzia verá os seus pressupostos ideacionais
materializados na formação de um novo arcabouço estatal e mesmo na implementação de uma
nova política exterior brasileira.
Crenças como a não-intervenção, a retórica em torno do tema do pacifismo, o princípio da
autodeterminação, a solidariedade americana e o poder civilizador do comércio se tornariam
preponderantes nas décadas seguintes. O ideário luzia de política externa se tornará
predominante na forma de ver as relações internacionais entre os anos 1889 – 1902. A jovem
república enxergará na aproximação com os Estados Unidos o caminho identitário-institucional a
ser perseguido. Empreendeu-se, de acordo com a conhecida crítica de Joaquim Nabuco à Carta
de 1891, uma “verdadeira cópia institucional” das instituições do Capitóli.28 No campo diplomático,
o Brasil ausentar-se-ia da participação de eventos internacionais para além do Atlântico, tendo,
inclusive, recusado participar da Primeira Conferência de Haia de 1899.
Em nome da solidariedade americana, não fosse a atuação enérgica de monarquistas no
Congresso, o Brasil quase entregara metade do território de Palmas à Argentina após o Tratado
de Montevidéu, assinado entre Quintino Bocaiúva e EstanislaoZeballos. O apoio à Secretaria de
Estado fora quase irrestrita no campo interamericano e a política externa reduzida prioritariamente
às questões econômico-comerciais. Sob a gestão republicana de então, perdeu-se a crença no
papel protagonista do Brasil no cenário internacional.
O corolário saquarema, no entanto, permanecerá ativo no imaginário coletivo de parte da
elite republicana, sendo recuperado e atualizado às novas circunstâncias políticas a partir de 1902
pela gestão de Rio Branco frente à condução do Itamaraty. A política externa recuperará o seu
sentido político mais amplo e as relações internacionais do país ganhará maior amplitude de
atuação. O país participará de forma autônoma e altiva da Segunda Conferência de Paz de Haia.
27 Idem, p. 43. 28NABUCO, op. cit. 1949.
O caráter ideológico de aproximação com os Estados Unidos será minimizado em detrimento de
um relacionamento mais pragmático.
O uti possidetis, outrossim, substituirá de forma inequívoca a “solidariedade americana”
enquanto mecanismo jurídico preferencial de defesa territorial. Assim como no Império, a atuação
de Rio Branco será marcada pela tentativa de equilíbrio de poder, tentativa esta atualizada às
novas polaridades de poder do momento: ora entre Brasil e Argentina, ora entre América Latina e
Estados Unidos.
O Longo Passo fora da Cadência: Rio Branco e a Correção de Rumos29
Ao longo dos quase dois séculos de história diplomática nacional, poucos foram os
grandes pontos de inflexões na condução da política exterior brasileira. Grosso modo, as linhas
mestras que orientaram a inserção internacional do país guardaram coerência e padrões de
continuidade entre si, embora importantes distinções programáticas e nuances doutrinárias
pudessem ser aqui lembradas. Ao longo do século XIX, a figura do Conselho de Estado - sempre
acompanhada pela figura sapiente do Imperador; e, no século XX, o crescente monopólio por
parte do Itamaraty na formulação e condução da política externa, contribuíram para que esses
traços de continuidade fossem marcas quase constantes das relações internacionais do Brasil.
Amado Cervo e Clodoaldo Bueno lembram em História da Política Exterior do Brasil um
desses momentos de clara alternância de rumos, no que ficou conhecido como “a correção de
1964”. Momento de breve “passo fora da cadência”, a política externa brasileira teria, entre os
anos de 1964 e 1967, “regredido às concepções da nova ordem internacional engendrada pelos
Estados Unidos no imediato pós-guerra, consoante os parâmetros do liberalismo econômico e das
fronteiras ideológicas”. Este breve passo fora da cadência fora rapidamente corrigido já em 1967
quando “o regime militar brasileiro recuperou em pouco tempo as tendências da política externa
brasileira”.30
1889 poderia ser citado como outro ponto de nítida alteração de rumos na condução
diplomática brasileira. Assim como em 1964, uma quartelada apoiada por setores médios da
população desferira um golpe militar que provocaria radical mudança institucional no país. A
política externa, em ambas as circunstâncias, fora utilizada como mecanismo de legitimação
internacional e estabilização interna de apoio ao novo regime. A ruptura institucional provocada
pelo 15 de novembro inaugurou um novo momento na condução diplomática brasileira. Antes
gerida sob a superveniência do Conselho de Estado, a diplomacia entre os anos 1889 e 1902
deixara o sentimento de autonomia e protagonismo internacional de outrora de lado para
concentrar-se em relações mais restritas ao campo americano de atuação.
29 Tomamos emprestado de Amado Cervo e Clodoaldo Bueno as expresses “correção de rumos e “passo fora da cadência”, ambas utilizadas pelos autores para a análise da política externa brasileira compreendida entre os anos 1964 e 1967. In CERVO, Amado Luiz & BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. Brasília, Editora UnB, 2011.
30 Ibidem, p. 367.
Ao longo do Segundo Reinado, as relações exteriores do Império se expandiam do Prata
ao Japão, mantendo inclusive representações diplomáticas em países como Rússia e China. A
Europa, continente com o qual mantínhamos relações umbilicais, haja vista a figura de um
Bragança reinando nos trópicos, figurara como o principal parceiro comercial do país, cenário,
diga-se de passagem, que só será suplantado pela emergência econômica norte-americana às
vésperas da Segunda Guerra Mundial.
Fora o Prata, no entanto, o destino dos principais quadros diplomáticos imperiais. Para lá,
eram enviados diretamente por nomeação do Imperador os melhores nomes da política nacional.
Caxias, Uruguai, Paraná, Cotegipe, Rio Branco pai, Saraiva – todos altos representantes dos
quadros políticos – se engajaram ao longo dos 49 anos do Reinado de Pedro II na manutenção de
uma política de equilíbrio de poder favorável ao Brasil na região. Esta política trazia implícita
consigo a crença na intangibilidade do território brasileiro, este, elemento constitutivo da
nacionalidade e do futuro protagonista que a jovem nação teria no cenário internacional.
A Argentina era o principal ator regional a ser neutralizado. Adotou-se os mais variados
padrões de relacionamento com o governo de Buenos Aires: do conflito armado direto (1854-
1855) a processos amplos de cooperação (1864-1870). Temas sensíveis da agenda bilateral,
sobretudo aqueles oriundos da disputa demarcatória territorial, eram negociadas, quando não
diretamente pelo Imperador, sob a chancela de um Conselho de Estado marcadamente
saquarema, resoluto da preservação territorial.
Meses antes da queda da Monarquia, Pedro II se comprometera com o ministro
plenipotenciário argentino acreditado na Corte a não se engajar em ações que pudessem
desencadear um conflito bélico entre os dois países, tendo, para isso, assinado um dispositivo que
assegurara a sua resolução através de mecanismos diplomáticos, em primeiro lugar, e de
mecanismos jurisdicionais, na falha dos primeiros. O compromisso assumido pelo Monarca era
similar ao tratado assinado, mas não ratificado por Buenos Aires, em 1857, pelo Visconde do Rio
Branco.
Ao primeiro soar da aurora republicana, Quintino Bocaiúva, no entanto, viaja ao Prata e
assina, em tempo recorde, um tratado com EstanislauZeballos retalhando, de forma salomônica, o
que futuramente seria reconhecido como território brasileiro, através da imposição de uma
geodésica partindo da embocadura do Chapecó com o Uruguai em linha reta até a embocadura
do Chopim com o Iguaçu.31
No Rio de Janeiro, a oposição monarquista no Parlamento vetará os arroubos solidaristas
do novo regime. Após ríspidas discussões parlamentares e duros embates na imprensa, o grupo
de republicanos históricos de ascendência luzia foram vencidos pela oposição de uma maioria
favoráveis ao status quo territorial, em sua maioria monarquistas de origem conservadora. Magnoli
31 MAGNOLI, Demétrio. O corpo da patria: imaginaçãogeográfica e políticaexterna no Brasil, 1808-1912. Editora. São Paulo: EditoraUnesp, 1997, p. 263.
menciona que “um grupo de 43 deputados republicanos chegou a se retirar da sessão, em
protesto contra a iminente derrota do tratado de Bocaiúva.”32
Zeballos, o mesmo que entre 1893-1895 enfrentará Rio Branco no arbitramento da
questão e quase desencadeará uma guerra contra o Brasil entre 1909-1910, rapidamente se
mobilizaria “para explicar a docilidade de Bocaiúva”, valendo-se do “argumento da ressurgência
de um separatismo gaúcho, associado à agitação federalista que começava a grassar no Rio
Grande e aos sonhos de grandeza periodicamente atualizados no Uruguai.”33 Argumentos sem
nenhuma comprovação histórica, no entanto.
Ao priorizar a solidariedade americana em nome de um bom relacionamento com o vizinho
platino, o novo regime abrira mão de dois pressupostos saquaremas inegociáveis ao longo do
século passado: a intangibilidade territorial e o uti possidetis enquanto doutrina jurídica
demarcatória. Perdida a região de Palmas, o Brasil ficaria ligado ao restante do território por uma
exígua faixa de 230km, indefensável militarmente segundo os pareceres do Conselho de Estado
emitidos entre 1860 e 1870.34 As diferenças entre os dois países seriam definitivamente acertadas
por obra de Rio Branco – legítimo representante da tradição saquarema na República –, mediante
vitória no arbitramento do presidente norte-americano Grove Cleveland.
A crença de pertencimento ao continente americano, difundida desde o Manifesto
Republicano de 1870 e amplamente disseminada após o 15 de novembro, representou outro
importante ponto de inflexão vis-à-vis a política externa saquarema de outrora. Fora uma
aproximação dotada de forte componente ideológico, nem sempre condizente com o interesse
nacional defendido nos anos derradeiros do Império. Em novembro de 1889, a delegação
brasileira reunida para a Primeira Conferência Americana em Washington fora obrigada a mudar
de posicionamento repentino decorrente da alteração de regime no país. Antes resoluta no veto a
qualquer tentativa de expansão comercial danosa ao interesse brasileiro, as instruções dadas a
Salvador de Mendonça – republicano histórico e cônsul na Filadélfia desde 1876 – eram a de total
apoio à “solidariedade americana”.
Rio Branco, ao assumir a chancelaria em 1902, tornaria o relacionamento com os Estados
Unidos mais equilibrado, revertendo a tendência de alinhamento que passara a ser marca da
atuação do país nos fóruns pan-americanistas. Se entre 1889 e 1902, as delegações brasileiras
acreditadas em Washington viram com simpatia a ideia de uma maior aproximação comercial com
aquele governo, na gestão Rio Branco o país seria contrário a criação da tão propalada união
aduaneira que desde 1889 rondava a imaginação monroísta.
O mesmo pode ser dito com relação a amplitude da atuação da diplomacia brasileira.
Restrita aos fóruns regionais entre 1889 e 1902, a mentalidade paroquial dos líderes republicanos
logo seria alterada. Sintomático nesta direção foi a recusa de Olinto de Magalhães em participar
da Primeira Conferência de Paz de Haia, em 1899. Embora o Manifesto Republicano de 1871
32Idem, p. 264. 33Idem, ibidem. 34Atas do Conselho de Estado, volume VI.
acusasse o Brasil de ser um país “isolado não só no seio da América, mas também no seio do
mundo”, Cardim aponta que “a Proclamação da República não operou um passe de mágica para
modificar a mentalidade enraizada nas elites dirigentes”.35
Em Centenário do presidente Campos Sales, Olinto de Magalhães apresenta as razões
para o não comparecimento à Conferência. “Em 1899 as nossas atenções estavam voltadas para
a América do Sul”, diria o ex-chanceler. Em resposta oficial do governo brasileiro ao governo
russo, Ferreira da Costa alegaria que “a única preocupação da nova administração é a
reconstituição do crédito, a valorização da nossa riqueza e reorganização das nossas forças
militares com um fim pacífico”. Mais adiante, reconhece que o país achava-se “muito afastado e
sem influência alguma nos negócios políticos da Europa”, redundando que “o seu papel na
conferência seria nulo”. 36
Alegando, por fim, solidariedade com os vizinhos latino-americanos que, à exceção do
México não foram convidados por Nicolau II, seria apenas com Rio Branco, representado pela
excelsa atuação de Rui Barbosa, em 1907, que o Brasil daria os seus primeiros passos nos fóruns
globais. Na ausência de conferências globais ao longo século XIX – estas inauguradas apenas no
final dos oitocentos –, o Brasil fora parte ativa nas grandes exposições internacionais. Londres em
1862, Paris em 1867, Viena em 1873, Filadélfia em 1876 e Paris em 1889 contaram com a
participação ativa do país: “era praticamente uma política de Estado que se realizava por meio da
construção do país para o público externo”.37
A mudança de rumos na condução diplomática observada após a Proclamação da
República guarda correlação de forças com as profundas alterações institucionais no plano
doméstico. Cortados os laços simbólicos com o Velho Mundo após o exílio da família imperial,
restaria ao país lançar-se na via americana. O fim da Monarquia inaugurara um período de
grande instabilidade no país. Após uma década de guerra civil, intervenção estrangeira e ditadura
militar, o Brasil se distanciava da imagem projetada pelos próceres do Império de um país estável
e ordeiro, respeitado pelos vizinhos e destinado à grandeza internacional. Este cenário começaria
a ser alterado no governo Campos Sales e, sobretudo, durante a República dos Conselheiros,
momento em que ex-monarquistas são incorporados definitivamente ao serviço diplomático
brasileiro. Impossível não citar Joaquim Nabuco e o Barão do Rio Branco, artífices maiores, ao
lado de Oliveira Lima e Rui Barbosa do pensamento internacional brasileiro do período.
A assunção da chancelaria por Rio Branco, em dezembro de 1902, após sucessivas
insistências de Rodrigues Alves, trouxe consigo amplas correções de rumo na politica externa do
país. A política americanista perderia o seu componente ideológico em prol de uma atuação
pragmaticamente orientada. A consolidação territorial e a defesa da autonomia de atuação seriam
marcas indeléveis a ter na aproximação com Washington a sua mais conhecida consecução.
35 CARDIM, Carlos Henrique. A Primeira Conferência de Paz da Haia, 1899: por que a Rússia? In MRE. Barão do Rio Branco: 100 anos de memória. Funag: Brasília, 2012, p. 369. 36 Idem, p. 372. 37 FERREIRA, Gabriela N.; FERNANDES, Maria F. L.; RESI, Rossana Rocha. Le Brésile Le Brésil en 1889: o Brasil dos monarquistasàsvésperas da república. 35º Encontro Annual da ANPOCS. GT 35: Teoriapolítica e pensamento politico brasileiro.
Situação similar ao reduto platino, onde os excessos anteriores houvera colocado em xeque o
tradicional equilíbrio de poder favorável ao Brasil.
O Prata voltara a ser alçado ao primeiro posto de atenção da diplomacia. Para lá, Rio
Branco enviaria em seus momentos mais turbulentos o seu fiel e eficiente escudeiro, Domício da
Gama, com quem compartilhava a ideia de uma política externa pacífica mas que não
prescindisse do eventual acionamento militar em último plano. Traços herdados do saquaremismo
moderado da gestão Rio Branco entre 1871 e 1875.
“É preciso que nos mostremos fortes e decididos a tudo”, afirmaria quando das
negociações em torno da difícil questão acreana. Para ele, era preciso ter forças armadas sempre
preparadas na iminência do malogro diplomático. “[...] o nosso amor à paz”, diria em 1903, “não é
motivo para que permanec�amos no estado de fraqueza militar a que nos levaram as nossas
discórdias civis e um período de agitac�õespolíticas”. Embora ministro das Relações Exteriores,
Rio Branco detinha também o controle militar em torno das negociações que precederam o
Tratado de Petrópolis. Ao verificar a ameaça de adiantamento das tropas bolivianas em direção ao
Acre, não tardou em enviar telegrama ao Presidente Pando comunicando-lhe medida semelhante:
“O senhor presidente Pando entendeu que é possível negociar marchando com as tropas para o
norte. Nós negociaremos fazendo adiantar forças para o sul”.38
Com relação a essas negociações, abra-se parêntese, Rio Branco valeu-se de um
expediente comumente utilizado no Império quando do trataemento desfavorável de tratados
fronteiriços: a mudança de políticas. Em carta a Hilário de Gouveia, o Barão com toda a sua
franqueza anunciaria as suas intenções: “Podíamos perfeitamente mudar agora de política, como
já uma vez mudamos”. Ricupero menciona que “Ao contrário da retórica oficial, que se comprouve nas
proclamações pomposas de que, nessas matérias, a linha brasileira havia sido sempre invariável e
coerente, dispomos, na carta, da admissão das oscilações na política territorial, na palavra do mais
cauteloso e reservado dos diplomatas.39
Conclui, afirmando que [...] o comportamento do barão diante do desafio do Acre teve
muito mais a ver com o do advogado que escolhe a doutrina e os argumentos mais propícios à
defesa do que com a atitude do puro intelectual, jurista ou historiador, empenhado na busca
socrática da verdade.40
A “solidariedade americana” dos anos 1889-1902 logo seria posta em segundo plano. A
Argentina, à semelhança do Império, voltaria a figurar no rol da principal preocupação geopolítica.
O Prata, mais uma vez, transformar-se-ia no centro nevrálgico da diplomacia brasileira, local em
que a ordem imposta pelo Império do Brasil fora tradicionalmente favorável aos interesses
nacionais.
[...] sem esquadra, sem exército, sem torpedos, quando os nossos vizinhos te�m tudo isso... Entendo que a
nossa situação é gravíssima, e que se os argentinos aproveitarem agora o ensejo que a criminosa
38 RICUPERO, Rubens. Acre: o momento decisivo de Rio Branco. In MRE. Barão do Rio Branco: 100 anos de memória. Funag: Brasília, 2012, p. 131. 39 Idem, p. 136. 40 Idem, ibidem.
imprevide�ncia de nossos governantes lhes oferece, teremos de passar por grandes vergonhas e humilhac�ões [...] A nossa esquadra não faz evoluc�ões, como nosso exércitonão faz manobras de campanha. Daí uma ignora�ncia espantosa. Entende-se entre nós que só depois de começada a guerra deve-se comec�ar a aprender a guerra. 41
Em carta a Domício da Gama, já ministro plenipotenciário em Buenos Aires, Rio Branco
demonstra, em sincero desabafo, a sua insatisfação com os estados deploráveis das forças
armadas e a preocupação com uma eventual agressão argentina:
[...] Quanto ao nosso estado de defesa: é o mais lastimávelpossível. Há dias verificou-se que a nossa fraquíssima esquadra está quase sem munic�ões para combate. Telegrafou-se pedindo à Inglaterra com urge�ncia esse elemento indispensável para alguma honrosa, ainda que inútilresiste�ncia. Por terra não estamos em menos deploráveiscondic�ões.42
O êxito diplomático capitaneado por Rio Branco nas negociações lindeiras não pode
ocultar a predisposição do seu pensamento em valer-se da ação militar como mecanismo legítimo
de defesa do interesse nacional em casos em que a diplomacia se mostrasse demasiadamente
incapaz de fazer jus a suas atribuições. Embora possuir um aparato militar bem equipado seja
diametralmente oposto à predisposição de sua utilização, para Rio Branco era preciso estar
preparado para repelir uma eventual agressão externa, seja ela decorrente de uma ação
imperialista europeia, seja em decorrência dos excessos propalados pela imprensa portenha
alimentada pelo ímpeto confrontacionista de Zeballos. Em outras palavras, si vis pacem, para
bellum.
Quando da negociação com os peruanos pelo acerto definitivo da área amazônica, seria
categórico:Fui ter com o Presidente para lhe manifestar a minha contrariedade diante de tantos adiamentos, quando
desde tanto tempo, no interesse da paz, eu pec�o e insisto que nos mostremos fortes e prontos para dar um golpe que
impressione os Peruanos. (grifo nosso)
O relacionamento com o Velho Mundo também passaria por reconsiderações na gestão
Rio Branco. Se a diplomacia brasileira assentada na Europa fora, entre 1889 e 1902,
primordialmente orientada a ater-se às questões econômico-comerciais, mormente aquelas
diretamente relacionadas à renegociação da dívida brasileira nas praças da City, a Europa
ganharia maior capilaridade temática na agenda brasileira pós-1902. Para além dos assuntos de
ordem comercial, a aproximação militar com Inglaterra, Alemanha e Itália foram relevantes para se
compreender as concepções militares da política externa brasileira. Do primeiro, viria a esquadra
de 1910 – dois dreadnoughts, dez contratorpedeiros, dois cruzadores de escolta e um rebocador -;
do segundo, a vinda de Missão Militar alemã ao Brasil e o envio de três turmas de oficiais para
estágio em Berlim; do terceiro, os primeiros submarinos do país. Some-se à aproximação militar, a
participação exitosa da delegação brasileira na Segunda Conferência de Haia, momento de
aproximação sobretudo com potencias médias europeias e estados latino-americanos.
Grosso modo, poder-se-ia afirmar que os arroubos diplomáticos do período 1889-1902
seriam corrigidos já a partir de 1902, mediante a renovação das credenciais saquaremas da nossa
41 BITTENCOURT, Armando de Senna. O emprego do poder militar como estratégia de Rio Branco. In MRE. Barão do Rio Branco: 100 anos de memória. Funag: Brasília, 2012, p. 60. 42 Idem, p. 64.
política externa. A amplitude da atuação diplomática brasileira seria novamente estendida para os
tradicionais fóruns circunscritos para além dos contornos regionais. O componente ideológico da
aproximação com os Estados Unidos seria minimizado em detrimento de um relacionamento
pragmaticamente orientado a cumprir metas mais amplas ao interesse nacional, sobretudo
aquelas relacionadas à preservação da soberania e a manutenção territorial. O Prata voltaria a ser
o principal palco de ação da política externa, acompanhado da possibilidade de se utilizar a força
na eventualidade do fracasso diplomático. O longo passo fora da cadência, materialização de uma
agenda diplomática ultra-luzia, daria lugar, na era Rio Branco, à reatualização política dos
principais pressupostos saquaremas. Daí, em trabalho recente, Christian Lynch ter chamado Rio
Branco de o último saquarema do Itamaraty”.43
O Último Chanceler do Império
Rio Branco é majoritariamente retratado pela literatura de Relações Internacionais como o
fundador da moderna diplomacia brasileira, embora pouco se saiba a respeito do que o adjetivo
moderno de fato represente na história do pensamento político brasileiro. Espécie de diplomata
tipo-ideal a ser seguido pelas gerações egressas do Instituto Rio Branco, o Barão tende a ser visto
como o inaugurador de uma nova fase da diplomacia pátria.
Anti-monroísta nos anos 1890, se tornaria um dos responsáveis pela aproximação dos
Estados Unidos na década seguinte. Monarquista convicto, o filho do Visconde do Rio Branco
serviria a República tornando-se através da sua atuação externa um dos pilares de sua
legitimação. Ao nosso ver, compreender o pensamento internacional do Barão pressupõe a
necessidade de se familiarizar com a cultura política imperial da qual fora parte. Filho do primeiro-
ministro do Império que mais tempo ocupou o cargo, o jovem Juca crescera à sombra dos
próceres saquaremas do Segundo Reinado.
Ao ingressar na vida diplomática republicana, de forma tardia com mais de 40 anos, o
fizera sob responsabilidade de defender os interesses territoriais brasileiros frente à possibilidade
de perda, primeiro para a Argentina, e depois para a França. Era, pois, para ele, uma questão de
Estado que se sobreporia aos interesses localizados de determinado regime político. Ao ingressar
na chancelaria, beirando os 50 anos, Rio Branco ainda mantinha de forma convicta suas crenças
monárquicas. Eram constantes as referências que ordinariamente fazia aos locatários do Palácio
São Joaquim.
Recorrentemente, essa mesma literatura faz menção à maior das inovações supostamente
trazida pelo novos tempos republicanos como sintomático de uma eventual ruptura da gestão Rio
Branco frente ao Império: a mudança do eixo europeu pelo atlântico, ou, mais precisamente, pela
opção monroísta.44 A despeito do mérito em aprofundar o relacionamento com o gigante do norte,
43 LYNCH, op. cit., passim. 44 Algumas obras poderiam ser citadas, como FONSECA Jr., Gelson. Alguns aspectos da Política Externa Brasileira Contemporânea. In: FONSECA Jr., Gelson. A Legitimidade e outras questões internacionais. São Paulo: Paz e Terra, 1998. RICUPERO, Rubens. Rio Branco: o Brasil no mundo. Rio de Janeiro: Contraponto/Petrobrás, 2000 e Visões do Brasil: Ensaios sobre a história e a inserção internacional do Brasil. São Paulo: Editora Record.
a aproximação com os Estados Unidos é anterior à assunção da chancelaria por Rio Branco.45
Desde pelo menos a década de 1870, os fluxos comerciais com aquele país seguiram em
perspectiva ascendente.
O convite para o estabelecimento de colônias de agricultores americanos em território
brasileiro – do qual a cidade de Americana em São Paulo é ainda uma prova viva -, assim como a
viagem do Imperador às comemorações do centenário daquele país, são indicadores desta
aproximação que remonta anos antes do sucesso diplomático de Rio Branco. A título de
curiosidade, a admiração de Pedro II pela produção agrícola e industrial daquele país era de tal
monta que o imperador foi o primeiro a comprar ações da companhia Bell TelephoneCompany,
notória por comercializar o primeiro telefone de Graham Bell.46
A propósito, Dom Pedro II seria convidado por Estados Unidos e Inglaterra a ser o árbitro
da questão Alabama, litígio remanescente da Guerra de Secessão. O laudo, elaborado pelo
Visconde de Itajubá, acabaria por dar vitória aos Estados Unidos.47
A emergência econômica dos Estados Unidos só suplantaria os britânicos como o principal
parceiro comercial brasileiro às vésperas da Segunda Guerra Mundial, abra-se parêntese.
Inegavelmente ator emergente nas relações internacionais no final dos oitocentos, a viagem por
meses de Pedro II àquele país ilustra a percepção das elites imperiais quanto à crescente
importância que adquiria nas relações internacionais o gigante do norte.
Ao aprofundar o relacionamento com o governo de Washington, Rio Branco o fazia
ancorado na percepção da mudança na polaridade do sistema internacional. Era, pois,
conveniente aos desafios internacionais brasileiros, a aproximação pragmática por parte de um
país que emergia em um cenário internacional conturbado pelos ímpetos imperialistas europeus.
Fizera-o, no entanto, sem a pretensão de alinhamento ou mesmo sem o intuito fundacional de
uma nova política, aproximação esta que insistia em reforçar enquanto continuador histórico dos
tempos imperiais.
Com as finanças nacionais mais bem saneadas quando comparadas com os lustros
anteriores e equacionada a parte mais problemática dos contornos lindeiros, Rio Branco guardaria
maior distância daquele país já a partir de 1906, ajudado pela percepção negativa do
posicionamento norte-americano durante a Segunda Conferência de Haia. A célebre tese em
torno da existência de uma “aliança não escrita”, tacitamente celebrada entre Brasil e Estados
Unidos por obra de Rio Branco parece-nos deveras problemática.
De fato, a aproximação bilateral representou importante ativo diplomático a ambos os
lados. Aos Estados Unidos, o apoio do Brasil o retirava de certo isolamento na região após a
deterioração de sua imagem frente às intervenções no Caribe, conferindo, portanto, maior
legitimidade à política de policiamento continental empreendida por Washington. Se, na visão de
1995. CERVO, Amado Luiz & BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. Brasília, Editora UnB, 2011. DANESE, Sérgio França. "A diplomacia da República Velha: uma perspectiva". Revista Brasileira de Política Internacional, n° 105/108, ano XXVII, 1984. 45 PINHEIRO, Letícia. PolíticaExternaBrasileira. Zahar, 2007. 46 LIBRARY CONGRESS. Dom Pedro II andAmerica. Disponível em http://international.loc.gov. Último acesso em abril de 2013. 47MARTINS, Pedro A. Batista. A arbitragem no Brasil. Disponível em http://www.tradutoresjuramentados.com/pbm/artigos/arbbra.pdf. Último acesso em abril de 2013.
Rio Branco, o Brasil estava acima dos países vizinhos em uma matriz escalar de potências, não
haveria o que temer frente ao Corolário Roosevelt. Seguíamos, a despeito das dificuldades
internas na década anterior, sendo uma nação favoravelmente distinta dos vizinhos hispânicos,
graças ao histórico de padrões civilizatórios aqui instalado pelos Braganças e pela dimensão
territorial, atributo geográfico que credenciava o país a um futuro protagonista.
Ao Brasil, por seu turno, o apoio americano representava a garantia de proteção contra
eventuais ameaças imperialista oriundas do Velho Mundo em um momento de reestruturação da
ordem doméstica. Some-se a tal fato a importância comercial adquirida pela introdução do café e
do látex brasileiros na economia norte-americana, neste momento o principal importador de
commodities do país.
Fora, portanto, uma aproximação francamente orientada por interesses diretos e sem
pretensões universalistas. A partir de 1906, as discordâncias na agenda bilateral começariam a
mudar a tonalidade do relacionamento. Em Haia, os Estados Unidos apoiariam a classificação do
Brasil na categoria de potência de terceira ordem, o que levaria o país a atuar de forma autônoma
e contrária aos interesses americanos. Um exemplo inequívoco da inexistência de qualquer
aliança. Seria no mínimo de se imaginar que evento de tal grandeza, preparado por meses e
aguardado com expectativa pelos maiores juristas da época, tivesse sido precedido ao menos
pelo diálogo entre as duas delegações, ou mesmo o entendimento prévio na existência de
qualquer pacto ou aliança, seja ela expressa ou alimentada pela cordialidade.
Vários outros episódios demonstram o caráter momentâneo e pontualmente pragmático da
aproximação bilateral em detrimento da tese divulgada por Bradford Burns.48 Rio Branco recusaria
terminantemente as sugestões de visita à Washington em diversos momentos proposta por
Joaquim Nabuco, ato considerado simbolicamente excessivo pelo Barão. Os diários de Nabuco, a
propósito, revelam a angústia do embaixador brasileiro com a falta de instruções, tendência
crescente a partir de 1906. Um ano antes, inclusive, Nabuco fora repreendido por Rio Branco ao
pedir consulta junto a Root na tentativa de buscar apoio daquele país na controvérsia então
desencadeada pelo incidente da canhoneira Panther, no que poderia ser interpretado, ao ver do
Barão, como um sinal de fraqueza. Fonseca Jr. menciona que “o episódio teria desgostado Rio
Branco, que criticou formalmente Nabuco e o obrigou a explicitar junto ao Departamento de
Estado o sentido do encontro, para descaracterizá-lo como gestão.”49
Ademais, no campo comercial, o Brasil fora contrário à expansão imperial dos interesses
norte-americanos pelo continente. Lembremos do veto à criação aduaneira, às medidas na área
de proteção à propriedade intelectual, à uniformização dos procedimentos aduaneiros e mesmo
da criação de um ferrovia transcontinental. Do lado americano, a atitude daquele país no caso
envolvendo a valorização do café, em 1912, levara Afonso Arinos a pontuar que “mesmo
48BURNS, Bradford. Aaliançanãoescrita: o Barão do Rio Branco e as relações do Brasil com osEstadosUnidos. Rio de Janeiro: EMC, 2003. 49 FONSECA Jr. Gelson. Rio Branco diante do Monroísmo e do Pan-Americanismo: anotações. In MRE. Barão do Rio Branco: 100 anos de memória. Funag: Brasília, 2012, p. 578.
Rodrigues Alves, depois de deixar a presidência, manifestou dúvidas sobre a ‘política de
excessivos compromissos com os Estados Unidos’”.50
Moniz Bandeira chega mesmo a mencionar a existência de um ofício da legação em
Washington no qual menciona que a administração Roosevelt escolhera Buenos Aires para
sustentar uma a Doutrina Monroe na América do Sul51, política que por razões de diversas ordens
não teria se consubstancializado. Seja como for, ao menos entre 1908-1910, Washington tentara
manter o equilíbrio de poder entre Argentina e Brasil. Quando das discussões em torno da
modernização da marinha brasileira, em muita defasada frente à argentina, lembra Bittencourt que
“os Estados Unidos da América também pressionaram contra o programa naval brasileiro”.
Segundo este autor eles chegaram “a sugerir a Rio Branco que reduzisse as encomendas e
ofereceram à Argentina a construção de dois dreadnoughts em seus estaleiros, por um preço
inferior ao menor dos preços dos competidores.”52
Note-se, por fim, a intenção do Chanceler em se criar uma espécie de Conselho de Defesa
sul-americano entre Argentina, Brasil e Chile, únicos países “responsáveis” e aptos a exercer
poder em uma eventualidade externa. O malfadado Pacto ABC, corretamente afirma Conduru,
“pressupunha uma nova leitura da Doutrina Monroe. Ao abrir a possibilidade para ações militares
coordenadas entre as forças do ABC, o acordo concebido por Paranhos Júnior em 1909 pode ser
interpretado como uma resposta sul-americana ao Corolário Roosevelt, ao encontro da proposição
de Burns.”53
Curiosamente, tanto a tese de Burns quanto a biografia de Álvaro Lins, ambos defensores
da ideia de “aliança não-escrita” entre Brasil e Estados Unidos foram obras publicadas em um
período particularmente peculiar da história diplomática brasileira, momento em que o “passo fora
da cadência” de 1964 fora seguido por anos de alinhamento ideológico à diplomacia americana.
Da perspectiva do pensamento saquarema de Rio Branco e mesmo dos fatos históricos
posteriores a 1906 é pouco provável que as afirmações segundo as quais “as relações bilaterais
mostram uma intimidade e harmonia uniformes” e que esta tendência “tornou-se um dos principais
objetivos do Barão do Rio-Branco” possam ser consideradas coerentes ainda hoje.54
Poder-se-ia, ainda, apontar uma suposta aproximação brasileira por parte das demais
repúblicas latino-americanas, como ilustrativo da ruptura de Rio Branco vis-à-vis à política externa
imperial. Durante todo o século XIX, é verdade, a nacionalidade brasileira seria construída em
contraposição àquela das repúblicas “anárquicas e desordeiras da América Espanhola”. Embora
nos primeiros momentos imbuídos de certos excessos solidaristas com os vizinhos, o regime
republicano logo voltaria a sua atenção para o norte do continente e, já a partir de 1902, a
América Latina voltaria a ocupar espaço similar àquele que desde o Segundo Reinado ocupara na
50 ARINOS, Afonso. Rodrigues Alves. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973. p. 282, v. 1; p. 675, v. 2. Apud FONSECA Jr, op.cit, p. 573. 51 BANDEIRA, L. A. Moniz. A presença dos Estados Unidos no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 250. Apud FONSECA Jr, op. cit, p. 586. 52 BITTENCOURT, op. cit, p. 66 53 FONSECA Jr, opcit, p. 590. 54BURNS, op. cit, p. 11.
agenda dos nossos formuladores de política externa. Exceto nas questões lindeiras ou nos
momentos de ameaças ao equilíbrio de poder favorável ao Brasil, o relacionamento com os
vizinhos se manteria cordial na medida do possível, embora sem grandes aprofundamentos no
relacionamento.
Os governos brasileiros da Primeira República (1889-1930), como na época do Império,
não demonstravam qualquer interesse pelos “povos da língua espanhola” e pelas “nações latino-
americanas”, com exceção das disputas fronteiriças (geralmente vitoriosas) com seus vizinhos sul-
americanos – como com a Argentina em 1895 e a Bolívia (pelo território do Acre) em 1903, e
também Colômbia, Peru e Uruguai – e das tentativas (menos bem-sucedidas) de estabelecer boas
relações com a Argentina e o Chile no Cone Sul. O Brasil preferia estreitar as relações com a
Europa, mais especificamente a Grã-Bretanha e, de certo modo, com a Alemanha, e cada vez
mais com os Estados Unidos.55
Outrossim, como ressalta Leslie Bethell, a visão de América dos estadistas republicanos
se manteria, grosso modo, idêntica a do Império, “com dois gigantes no hemisfério ocidental, sem
dúvida desiguais: os Estados Unidos e o Brasil. Ambos de proporções continentais; ambos com
recursos naturais abundantes e alto potencial econômico; ambos “democracias” estáveis; e
ambos, acima de tudo, distintos da América Espanhola ou Latina.”56
Sob a liderança de Rio Branco, 10 tratados lindeiros seriam assinados com os vizinhos.
Trabalho de fôlego que nos entregaria o mapa que hoje conhecemos, as negociações por ele
levadas a cabo sempre foram acompanhadas da eventual possibilidade de se demonstrar força na
ocorrência do malogro diplomático. À semelhança de um Caxias, um Uruguai ou Paraná, para ele,
política externa e política de defesa deveriam ser faces de uma mesma moeda. As negociações
com o Acre e a busca pelo equilíbrio de poder com a Argentina no Prata são exemplos ilustrativos
da crença saquarema em torno da imprescindibilidade de se possuir forças armadas sempre
preparadas.
Ao nosso ver, a diplomacia brasileira dos anos 1902-1912 à medida que buscou a
manutenção do equilíbrio favorável no Prata, procurou, por outro lado, manter relações positivas
tanto com a América Latina quanto com os Estados. Não pertencente ao mundo hispânico
tampouco à América anglo-saxônica e impedido temporariamente de aprofundar o relacionamento
com a Europa, caberia ao Brasil proceder ao balanceamento entre os dois polos de poder. Assim,
o apoio ao Corolário Roosevelt foi seguido da tentativa de se criara o Pacto ABC e de
multilateralizar a Doutrina Monroe na IV Conferência Americana, realizada em Buenos Aires. Se
por uma lado, o Brasil não apoiara a Doutrina Drago na Conferência de Haia de 1907, por outro,
se mantivera próximo em quase todas as outras questões substantivas debatidas. No plano
econômico, atuara conjuntamente com os vizinhos na tentativa de se impedir as várias propostas
norte-americana de aproximação comercial. Contrariamente, no entanto, agira na direção oposta
55 BETHELL, Leslie. O Brasil e a Ideia de América Latina em perspectiva histórica. Est. Hist., Rio de Janeiro, vol. 22, n. 44, p. 289-321, julho-dezembro de 2009, página 295. 56 Idem, p. 297.
aos interesses latino-americanos quanto à obrigatoriedade de se adotar a arbitragem compulsório,
posição esta similar ao posicionamento norte-americano.
Ao contrário do que a literatura da área vem produzindo, era baixa a disposição e o
interesse real de Rio Branco em assumir posições que implicassem custos à manutenção do
status quo herdado dos tempos imperiais, tais como o aprofundamento da cooperação continental,
a integração econômica na região ou mesmo a disposição em se avançar na institucionalização
da União das Repúblicas Americanas. Daí, a sua contrariedade em assumir os compromissos
políticos defendidos pelos vizinhos sob a liderança da Argentina, mormente a criação de um
Tribunal Arbitral ou a obrigatoriedade do arbitramento na existência de controvérsias entres os
pactuantes. Único estado sem pendências lindeiras no continente, verdadeiro colosso territorial, a
nós, interessava-nos o equilíbrio favorável no Prata, de um lado, e a não-expansão do poderio
norte-americano para o sul do continente.
Ao ler a infindável literatura produzida sobre Rio Branco, observa-se as mais variadas
apropriações políticas de sua memória. Ora latino-americanista precursor do Mercosul, ora
monroísta convicto fundador da política (norte)americanista. Ele teria sido realista, idealista,
grociano, pacifista, belicista, respeitador do direito internacional e adepto entusiastas do
multilateralismo - embora esta última palavra sequer existisse no início dos novecentos.
Rio Branco, antes de se tornar o grande ícone do imaginário institucional republicano,
reivindicado por todos os lados, fora estadista que se via no dever de concluir a magnum opus do
Império: a formação do Estado brasileiro. Para tanto, tornava-se imperativo recuperar-se uma
política externa autônoma e pragmaticamente orientada. Os resultados por eles obtidos não
deixam dúvida que a consolidação territorial contemporânea e o sucesso na negociação de
tratados de amizade, comércio e navegação com os vizinhos deram à tradição política imperial
termo digno de um grandfinaleem sua obra maior.
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