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2782 A EMERGÊNCIA DO PLURALISMO JURÍDICO: REFLEXÕES SOBRE AS LUTAS E PRÁTICAS JURÍDICAS DO POVO CAIANINHO * ** LA EMERGENCIA DEL PLURALISMO JURÍDICO: REFLEXIONES SOBRE LA LUCHA Y LA PRÁCTICA JURÍDICA DEL PUEBLO CAIANINHO João Carlos Bemerguy Camerini RESUMO A chamada crise do positivismo jurídico é apenas uma das faces da situação de risco global que assola o Estado social. Pode-se definir esta crise como resultante do atual descrédito geral da sociedade quanto à capacidade do Estado centralizado atender suas demandas cada vez mais complexas através de seus programas jurídico-normativos. O pluralismo jurídico emerge, nesta encruzilhada a que chegou o direito moderno, como um modelo alternativo capaz de oferecer respostas. Após uma breve exposição desta crise do monismo jurídico, este artigo procura apresentar o caso concreto das práticas jurídicas dos caianinhos, que torna evidentes os paradoxos do direito estatal perante as práticas dos novos sujeitos sociais coletivos, especialmente na Amazônia. O pluralismo jurídico parece oferecer, após a análise desenvolvida, soluções mais adequadas para o tratamento de conflitos jurídicos complexos envolvendo direitos à diferença étnica e cultural. PALAVRAS-CHAVES: CRISE DO ESTADO SOCIAL, MONISMO JURÍDICO, PLURALISMO JURÍDICO, NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS. RESUMEN La crisis del positivismo jurídico es sólo una dimensión de la situación de riesgo que afecta al Estado de bienestar. Se puede definir esta crisis como consecuencia de la incredulidad generalizada de la sociedad acerca de la capacidad del Estado centralizado conocer sus demandas cada vez más complejas a través de sus programas normativos. El pluralismo jurídico surge, en esta encrucijada que ha alcanzado el derecho moderno, como un modelo alternativo capaz de proporcionar respuestas. Después de una breve exposición de la crisis del monismo jurídico, este artículo presenta el caso de las prácticas jurídicas de los caianinhos, lo que pone en evidencia las paradojas del derecho estatal ante de las prácticas de los nuevos grupos sociales, especialmente en la Amazonía. El pluralismo jurídico parece ofrecer, después del análisis desarrollado, soluciones más adecuadas para el tratamiento de los complejos conflictos jurídicos relacionados con los derechos a la diferencia étnica y cultural. PALAVRAS-CLAVE: CRISIS DEL ESTADO DEL BIENESTAR, MONISMO JURÍDICO, PLURALISMO JURÍDICO, NUEVOS MOVIMIENTOS SOCIALES. * Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo – SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009. ** Trabalho indicado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Estado do Amazonas.

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A EMERGÊNCIA DO PLURALISMO JURÍDICO: REFLEXÕES SOBRE AS LUTAS E PRÁTICAS JURÍDICAS DO POVO CAIANINHO* **

LA EMERGENCIA DEL PLURALISMO JURÍDICO: REFLEXIONES SOBRE LA LUCHA Y LA PRÁCTICA JURÍDICA DEL PUEBLO CAIANINHO

João Carlos Bemerguy Camerini

RESUMO

A chamada crise do positivismo jurídico é apenas uma das faces da situação de risco global que assola o Estado social. Pode-se definir esta crise como resultante do atual descrédito geral da sociedade quanto à capacidade do Estado centralizado atender suas demandas cada vez mais complexas através de seus programas jurídico-normativos. O pluralismo jurídico emerge, nesta encruzilhada a que chegou o direito moderno, como um modelo alternativo capaz de oferecer respostas. Após uma breve exposição desta crise do monismo jurídico, este artigo procura apresentar o caso concreto das práticas jurídicas dos caianinhos, que torna evidentes os paradoxos do direito estatal perante as práticas dos novos sujeitos sociais coletivos, especialmente na Amazônia. O pluralismo jurídico parece oferecer, após a análise desenvolvida, soluções mais adequadas para o tratamento de conflitos jurídicos complexos envolvendo direitos à diferença étnica e cultural.

PALAVRAS-CHAVES: CRISE DO ESTADO SOCIAL, MONISMO JURÍDICO, PLURALISMO JURÍDICO, NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS.

RESUMEN

La crisis del positivismo jurídico es sólo una dimensión de la situación de riesgo que afecta al Estado de bienestar. Se puede definir esta crisis como consecuencia de la incredulidad generalizada de la sociedad acerca de la capacidad del Estado centralizado conocer sus demandas cada vez más complejas a través de sus programas normativos. El pluralismo jurídico surge, en esta encrucijada que ha alcanzado el derecho moderno, como un modelo alternativo capaz de proporcionar respuestas. Después de una breve exposición de la crisis del monismo jurídico, este artículo presenta el caso de las prácticas jurídicas de los caianinhos, lo que pone en evidencia las paradojas del derecho estatal ante de las prácticas de los nuevos grupos sociales, especialmente en la Amazonía. El pluralismo jurídico parece ofrecer, después del análisis desarrollado, soluciones más adecuadas para el tratamiento de los complejos conflictos jurídicos relacionados con los derechos a la diferencia étnica y cultural.

PALAVRAS-CLAVE: CRISIS DEL ESTADO DEL BIENESTAR, MONISMO JURÍDICO, PLURALISMO JURÍDICO, NUEVOS MOVIMIENTOS SOCIALES.

* Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo – SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009. ** Trabalho indicado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Estado do Amazonas.

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INTRODUÇÃO

No fim da década de 60, o físico-químico russo Ilya Prigogine (apud CAPRA, 2003, p. 30/31; SANTOS, 2006b, p. 47) elaborava sua teoria das estruturas dissipativas, ou seja, sistemas que conservam sua estabilidade estrutural ao mesmo tempo em que se mantém abertos a fluxos de energia. Um dos componentes centrais desta teoria é o uso do conceito de ponto de bifurcação para referir a um estágio crítico a que chegam tais sistemas em equilíbrio dinâmico quando submetidos a níveis insuportáveis circulação energética proveniente do ambiente, de modo que a mínima flutuação de energia pode modificar a estrutura global do sistema e fazer emergir uma nova ordem. Essa idéia foi assumida por alguns cientistas e filósofos como paradigmática, tamanha a sua capacidade de ampliar o entendimento, e tem sido utilizada para explicar diferentes fenômenos ligados à complexidade em diversas áreas, como a sociologia, a economia e a ecologia.

Se esta idéia for transportada para o nosso lugar teórico, será possível dizer que o direito está hoje diante de uma bifurcação. Mas, se, por um lado, é certo que o sistema jurídico positivista-piramidal-monista-estatal se encontra assolado por uma fortíssima turbulência, por outro, não é possível predizer qual será a estrutura do sistema após a iminente transformação. A hipótese da emergência do pluralismo jurídico é, no entanto, bastante credível, considerando a história recente da relação direito-sociedade.

Num breve esforço de reconstrução da hipótese em questão, a primeira seção deste artigo explicará como a crise e a possibilidade de colapso do Estado social e do direito positivo se relacionam à emergência das idéias do pluralismo jurídico, principalmente após a década de 70, quando a globalização neoliberal atingia seu auge, ao mesmo tempo em que fervilhavam conflitos e lutas sociais protagonizados por novos grupos sociais surgidos a partir da auto-organização da sociedade visando satisfazer necessidades não atendidas pelo Estado.

A quantidade e peculiaridade – que podem ser sintetizadas na expressão complexidade – das situações submetidas à apreciação do direito pelos movimentos sociais tornou evidente a incapacidade do modelo jurídico monista centrado no Estado e cujo funcionamento se baseia na positivação, por este, de programas normativos abstratos e gerais, de oferecer respostas aos problemas específicos e concretos da sociedade contemporânea, notadamente às demandas por dignidade e identidade cultural dos novos sujeitos sociais.

A segunda parte se destina a estender a compreensão do pluralismo jurídico, partindo de contexto social de surgimento esboçado, através do exame de alguns aspectos de um caso concreto que, acredito, insere-se com perfeição – inclusive na dimensão histórico-temporal – no cenário de crise do direito positivo e da emergência do pluralismo jurídico.

Trata-se do caso do direito do povo caianinho que, conforme hipótese que introduzo e justifico ao longo do texto, constitui uma comunidade tradicional com origem na região amazônica. Dentre os direitos componentes do ordenamento jurídico mencionado, destaco o direito tradicional de beber, em rituais religiosos, o chá denominado Vegetal

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ou Hoasca, por ser um direito imanente ao exercício da liberdade religiosa e cultural desta comunidade e que representa, outrossim, um dos aspectos mais controversos e delicados na relação entre o direito tradicional caianinho e o direito estatal.

Na seção seguinte, terá continuidade a análise das práticas jurídicas dos caianinhos, com enfoque na apresentação, em linhas gerais, do sistema de resolução de conflitos internos à comunidade, em suas dimensões institucionais e funcionais, destacando-se como se constrói o discurso jurídico naquele contexto sociocultural, o tipo de argumentação controlada pelos órgãos jurídicos comunitários e, ainda, os objetos submetidos à justiça caianinha e os tipos de punições aplicadas.

A quarta seção, por fim, promove uma reflexão final, no plano conceitual, por meio da introdução das principais idéias estruturantes da teoria do pluralismo jurídico e da verificação de sua utilidade e precisão para a descrição do fenômeno do direito caianinho como descrito neste escrito.

1 Da crise do monismo jurídico à emergência do pluralismo jurídico

O pluralismo jurídico sempre acompanhou o percurso do Estado moderno e estava presente na sociedade mesmo antes dele. Portanto, quando falo, neste trabalho, das condições sociais que determinaram a sua emergência, o que pretendo é explicitar os fatores que conduziram ao surgimento do pluralismo jurídico na consciência, no discurso e nas reivindicações da sociedade e na ciência jurídica em meados da década de 70, principalmente com a explosão dos “novos movimentos sociais”. Por outras palavras, desejo abordar as tensões e conflitos sociais que naquele período atingiram níveis críticos e que estão relacionados à concepção monista de direito vigente.

Afirmar a existência de problemas sociais decorrentes do império de uma teoria monista do direito equivale a dizer que tais instabilidades refletem a ausência de alguma outra teoria do direito capaz de solucionar os defeitos da primeira. Não é à toa que a emergência do pluralismo jurídico ocorre num contexto de crise da forma exclusivamente estatal de direito.[1]

Deve-se iniciar sublinhando que a crise do monismo jurídico liga-se de maneira indissociável e quase indistinta à crise do Estado que lhe é pressuposto. Trata-se do Estado de bem-estar social (welfare state) ou Estado-providência, noções estas indicativas daquele projeto sócio-estatal constituído sob a égide do princípio da igualdade material, para responder às reivindicações da massa trabalhadora – que desde os fins do século XIX já se organizava em sindicatos e partidos operários – no sentido da diminuição dos problemas sociais gerados pelas injustas relações econômicas capitalistas. Dentre as principais características do Estado social resultante do mencionado projeto, destaco: os direitos sociais de segunda geração, enunciados na Constituição de Weimar (1919) e a prestação de serviços públicos de educação, saúde, moradia e a previdência social; a intervenção no domínio econômico, através de limitações da propriedade privada em favor da ordem social, da instituição de salários mínimos, de regras de segurança no emprego e indenizações trabalhistas; a gestão

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pública da economia orientada para o desenvolvimento, o combate a pobreza e a miséria; a Constituição vinculante e a administração pública dirigida ao bem-estar dos cidadãos, etc. (BONAVIDES, 2001, p. 168ss; SANTOS, 2007, p. 148).

No âmbito deste novo projeto, em que o Estado-providência passa a concentrar em si todas as expectativas populares de realização das promessas da modernidade – liberdade, igualdade, fraternidade, propriedade –, o direito figura como o principal instrumento de atuação do poder político.

Pois bem. Como dizia antes, a compreensão interligada da crise do Estado social e do direito monista se impõe, diante da constatação de que o denominado direito positivo, na prática, nada mais é do que o direito estatal, pois sua autonomia e eficácia foram reduzidas, no decorrer da história, à autonomia e eficácia do Estado (SANTOS, 2007, p. 160/161).

Por trás desta estatização do direito que, ademais, torna-o mais controlável e suscetível às influências dos atores que protagonizam a cena política, sempre estiveram, primeiro, as exigências burguesas de uma sociedade estável regulada por normas gerais e, segundo, a vontade de poder dos governantes interessados na reprodução da enorme burocracia do Estado social.

Deve-se acrescentar, quanto a isto, que a concepção moderna de ciência, traduzida no conceito positivista de direito, introduzido por Max Weber (apud HABERMAS, 1997, p. 193), que defende a legitimação do direito a partir de procedimentos institucionalizados previamente e que, posteriormente, será plenamente desenvolvido na Teoria Pura de Hans Kelsen (2006), teve um papel determinante neste processo de redução da complexidade do fenômeno jurídico-social ao direito oficial.

As idéias kelsenianas de validade formal e da hierarquização piramidal das normas jurídicas, ao mesmo tempo em que criaram a ilusão de um sistema jurídico autônomo e derivado de uma única fonte, garantindo assim o pleno controle do objeto jurídico por uma racionalidade logicista identificada à noção moderna de cientificidade, esvaziaram o direito de qualquer conteúdo prático-moral – exceto, sempre, a propriedade privada – de modo a torná-lo inteiramente disponível aos desígnios de um Estado fantoche do capital.

Nas palavras de Sousa Santos (2007, p. 160), o positivismo jurídico, como baluarte da cientificidade, “funcionou como um espelho que simultaneamente reflectia e dissimulava o estatismo do direito.”

Esta apropriação do direito pelo Estado social gerou três consequências relevantes para o primeiro que ora passo a referir. Em primeiro lugar, o direito utilizado como instrumento de realização dos excessivamente amplos compromissos assumidos foi acompanhado do inevitável agigantamento da burocracia estatal. Esse processo redundou numa enorme sobre-juridicização da sociedade cujos efeitos foram analisados por Habermas (1992, p. 469), com sua noção de colonização do mundo da vida, que pode ser explicada como a destruição das relações sociais comunicativas ancoradas em domínios sociais constituídos por elementos simbólico-subjetivos, como a cultura, a tradição, a religião, etc., devido à substituição destas estruturas de mediação das interações por outras erigidas segundo uma racionalidade auto-referida com respeito a

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fins, notadamente a do Estado (burocracia) e a da economia (dinheiro), sendo características deste processo a uniformização, a coisificação e a mecanização das relações intersubjetivas.

Como segunda consequência, destaca-se o processo que Weber (apud HABERMAS, 1997, p. 195) chamou de materialização do direito, que se desenvolve em estreita conexão com a burocratização e monetarização do mundo sócio-cultural referida acima, pois “o reverso da sobre-juridicização da sociedade é a sobre-socialização do direito” (SANTOS, 2007, p. 158).

Ora, com o advento do Estado social, o enorme espaço social antes (des)regulado e denominado pela lógica das relações privadas, passou a ser preenchido com conteúdos jurídicos concretos para responder as mais diversas demandas das classes trabalhadoras. Esse processo causou fortes impactos nas dicotomias burguesas entre Estado/sociedade civil e direito público/direito privado responsáveis pela separação entre a esfera pública, do sufrágio e da segurança pública, e a esfera privada, da propriedade e das relações de mercado que, segundo o liberalismo, deveriam permanecer entregues à sua própria auto-regulação.

A partir de então, o Estado deixa de adotar uma postura negativa para com a sociedade e passa a estabelecer com ela uma relação de complementaridade baseada na intervenção e na cooperação como, ademais, o próprio nome “Estado-social” sugere.

Além disto, “materialização” se reflete no direito pelo surgimento de novos ramos jurídicos como o direito econômico, o direito do trabalho e o direito previdenciário, “todos eles com a característica comum de conjugarem elementos de direito privado e direito público, esbatendo assim ainda mais a linha de demarcação entre Estado e sociedade civil” (SANTOS, 2007, p. 149).

Finalmente, a terceira consequência da redução científica do campo jurídico ao direito estatal é a crise de ineficácia, que também compõe com as outras uma interface inextricável. A ineficácia designa as várias disfunções derivadas da “sobrecarga” de um direito que já não consegue produzir regularidade e previsibilidade social (WOLKMER, 2001, p. XVII).

A complexidade e a contingência sociais, depois dos anos 70, desafiam cada vez mais a performance da razão jurídico-instrumental e proliferam-se os conflitos sociais não resolvidos, seja por falta de condições objetivas de cumprimento das normas estatais (falta de estrutura, recursos humanos ou financeiros), seja por nem mesmo estarem juridicizados os conflitos surgidos numa sociedade plural em constante mudança (anomia).

Referindo-se às tensões provocadas no direito positivo pelas crescentes e peculiares aspirações dos novos movimentos sociais no cenário amazônico, explica Joaquim Shiraishi (2006, p. 14) que, num ambiente de múltiplas demandas, “fica evidente que as tentativas de adequar as situações vivenciadas aos modelos jurídicos preexistentes são totalmente incompatíveis.”

O movimento de crescimento e penetração do direito nas mais diversas esferas da vida social, ao ensejar tais problemas de ineficácia, torna cada vez menos convincente a

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implicação Estado → direito construída pelo positivismo jurídico, o que abre caminho para a utilização não estatal do direito vigente e até mesmo para seu uso contra o Poder Público. Ao mesmo tempo, a estabilidade do dualismo norma/fato, que é condição da eficácia do direito positivo, se desagrega progressivamente quanto mais baixa se mostra a correspondência entre os dois pólos (SANTOS, 2007, p. 151/152).

Os três aspectos destacados acima confluem para desenhar a crise multifacetada do Estado social que arrasta consigo o direito monista e que pode ser imaginada como uma onda – talvez fosse melhor dizer tsunami – de descrédito a respeito de sua capacidade de produzir transformações significativas (WALLERSTEIN, 1993, p. 46). Para usar a expressão de Habermas (1987), esgotam-se aceleradamente, principalmente depois dos anos 70, as energias utópicas concentradas no Estado social e seu programa de construção de uma sociedade do trabalho.

Dessa maneira o Estado social atravessa a mais grave instabilidade por si já enfrentada na história, à qual muito se duvida se ele sobreviverá. De um lado, ele vê sua soberania ser agredida pelo poderio da economia-mundo capitalista neoliberal. De outro lado, a massa popular trabalhadora se conscientiza de que o “progresso” expresso em elevadas taxas de crescimento do PIB nacional não significa a distribuição desta riqueza. Nos países do Norte, o cumprimento das promessas de distribuição do bem-estar social e de um sistema político mais democrático, que até certo ponto tinham se realizado durante os chamados trinta anos gloriosos, mostrou-se insustentável e a pobreza e a miséria da qual necessariamente se alimenta o capitalismo crescem atualmente como um câncer no tecido social do “primeiro mundo”. Por seu turno, na maioria dos chamados países do Sul, que sempre permaneceram na periferia do sistema mundial, afundados em pesadas dívidas externas e com graves problemas de corrupção, a idéia de crise do Estado-providência é assumida sem jamais terem sido experimentados os seus benefícios.[2]

No mesmo período, assistiu-se ao surgimento de novos sujeitos sociais coletivos “cujas formas de associação e luta escapam ao sentido estrito de uma organização sindical” (ALMEIDA, 1994, p. 23) e que, portanto, não se deixam apreender por meio do esquema de análise tradicional que parte da idéia de sociedade de classes (burgueses e operários). Estes novos grupos, marcados pela reivindicação de alteridade sociocultural e cujas vozes até então permaneciam caladas ou silenciadas, concorreram para pressionar ainda mais um Estado social já abalado com a complexidade das relações econômicas, com suas práticas e demandas centradas em grupos unidos por critérios de etnia, religião, raça, gênero, etc., sendo estas unidades de mobilização frequentemente reunidas sob a designação de “novos movimentos sociais” (SANTOS, 2001, p. 180).

Estes movimentos, seja na forma de movimentos sociais populares e informais ou revestidos como organizações não-governamentais, vêm crescendo e refletem o forte impulso de auto-organização social e o reconhecimento da realidade cada vez mais palpável do que Sousa Santos (1995) chama de “sociedade-providência”.

Em suma, uma onda de “anti-estadismo” perpassa hoje toda a sociedade, sejam os setores de direita, esquerda ou os excluídos do projeto do Estado social. Porém, os dois primeiros continuam a defender uma regulação social centrada na estabilização entre Estado e economia, embora haja divergências quanto à forma desta regulação: em resumo, para os neoliberais, o Estado deve ceder definitivamente ao mercado auto-

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regulado e a esquerda defende a permanência das conquistas do Estado Social e continuidade da utopia da sociedade do trabalho.

Somente os excluídos ou “dissidentes da sociedade industrial”, como lhes denomina Habermas (1987), julgam que a sociedade está ameaçada, na mesma medida, pela mercantilização e pela burocratização, negando tanto a colonização do mundo da vida pelo dinheiro como pelo poder. Prosseguindo com Habermas (idem, p. 111):

Também somente os dissidentes julgam necessário fortalecer a autonomia de um mundo da vida ameaçado em seus fundamentos vitais e em sua tessitura comunicativa. Só eles exigem que a dinâmica interna de subsistemas governados pelo poder e pelo dinheiro seja quebrada ou pelo menos contida por formas de organização mais próximas da base e autogestionárias.

É, pois, sob o marco de uma nova sociedade-providência ou do retorno da sociedade civil de que fala André-Jean Arnaud (1999a, p. 199) – idéias estas que conferem posição central aos movimentos sociais – que introduzo a problemática do pluralismo jurídico.

O princípio da comunidade, teorizado por Sousa Santos (2007, p. 273), que a modernidade suprimiu em nome da expansão do princípio do mercado e depois em favor do Estado social, deve agora ressurgir, trazendo à tona os conhecimentos e direitos nele enraizados e que haviam sido com ele outrora marginalizados.

O princípio da comunidade foi imaginado para representar os espaços sociais onde predomina a obrigação política horizontal e participativa entre os membros da comunidade; espaços em que as ações sociais são orientadas por uma racionalidade solidária, constituindo assim estruturas sociais – como o direito – caracterizadas pela forte presença de elementos simbólicos construídos intersubjetivamente; unidades de prática social cuja coesão é construída a partir de critérios como etnia, religião, povo, enfim, todos eles orientados por uma dinâmica de maximização da identidade cultural; comunidades interpretativas onde a comunicação simbolicamente mediada produz conhecimento tradicional – particularmente conhecimento jurídico tradicional.

Considerando, ainda, que o direito é apenas uma das dimensões da atividade política e epistemológica da comunidade, a reflexão sobre o pluralismo jurídico, quer dizer, sobre os direitos alternativos ao direito estatal, produzidos a partir da auto-organização de esferas autônomas de relações sociais, sobretudo no espaço comunitário, deve caminhar entrelaçada com a consideração de questões como a alteridade, o multiculturalismo, o relativismo, o pragmatismo, a particularização dos espaços e dos tempos, os movimentos sociais como sujeitos coletivos criadores de juridicidade, o terceiro setor como superação da dicotomia Estado/sociedade civil, dentre outros.

Termino aqui a breve exposição da história das condições sociais de emergência do pluralismo jurídico no contexto de crise do Estado social e do direito estatal. Na parte final desta primeira seção, destaquei a importância do ressurgimento do espaço da comunidade nesse processo. O tópico seguinte se destina a abordar o pluralismo jurídico materializado nas práticas da comunidade dos caianinhos, como lhes denominarei doravante, que, segundo a tese a ser articulada, constituem um grupo detentor de uma cultura jurídica própria.

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2 O povo caianinho e sua história de lutas pelo direito à prática religiosa

A afirmação do título desta seção de os caianinhos serem um povo deve ser havida como hipótese. Porém, o caráter essencialmente problemático da fixação das identidades de grupo no atual momento histórico de explosão de uma infinidade de sujeitos coletivos novos, relativiza a necessidade de desenvolvimento pormenorizado desta hipótese neste texto. Sobre isto se manifesta Wallerstein (1993, p. 47), com propriedade:

Os “grupos” são um conceito vago. Tudo pode constituir um grupo desde que os respectivos membros se pensem como tal. Não nos devemos, por isso, surpreender com a crescente variedade de grupos que constantemente se nos deparam à nossa percepção colectiva, nem com a dificuldade cada vez maior de chegar a um consenso sobre quais os tipos de grupo que possuem alguma legitimidade. Esse consenso não irá surgir nos próximos cento e cinqüenta anos. Actualmente temos toda uma panóplia de grupos, que se definem, ora por fronteiras etno-nacionais e/ou lingüísticas, ora pelo sexo, ora ainda pela religião ou pelas respectivas inclinações sexuais. A lista está em constante expansão.

A identidade dos caianinhos – como se auto-definem – se constrói a partir das práticas, crenças, linguagem e valores compartilhados pelos membros da denominação religiosa, de doutrina cristã reencarnacionista, Centro Espírita Beneficente União do Vegetal, doravante UDV. Uma definição formal poderia ser operacionalizada, na medida em que a mencionada entidade religiosa, em 1972, traduziu[3] sua organização interna nos termos do direito oficial, adotando a forma de associação, sendo, portanto, caianinho todo sócio do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal.[4]

A UDV[5] foi criada nos seringais da Amazônia próximos à fronteira entre o Brasil e a Bolívia, no estado do Acre, em 1961, por um seringueiro chamado José Gabriel da Costa ou Mestre Gabriel, como é conhecido na tradição caianinha. Inicialmente restrita às populações caboclas da Amazônia ocidental, a entidade tem se difundido entre as populações urbanas do Brasil país e do exterior, possuindo atualmente mais de 15 mil sócios e unidades administrativas em mais de 100 cidades em todos os estados brasileiros, Estados Unidos e Espanha.

A maior peculiaridade da prática religiosa da UDV e que é um dos pontos mais importantes para esta análise, é a ingestão de um chá de plantas nativas da Amazônia tradicionalmente denominado de Hoasca ou Vegetal, durante os rituais religiosos, preparado a partir de duas outras plantas, o Marirí (banisteriospis caapi) e a Chacrona (psychotria viridis). Segundo o Regimento Interno da associação, que constitui o estatuto jurídico central da instituição, de autoria do Mestre Gabriel, o mencionado chá é utilizado nos rituais da UDV “para efeito de concentração mental” e é “comprovadamente inofensivo à saúde.”

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Não obstante, a história da entidade religiosa tem sido marcada pelas lutas de seus filiados por fazer valer esta disposição legal contra o direito oficial dos Estados nacionais onde a sociedade religiosa está presente.

Consta no sítio da UDV que, ainda na década de 60, o Mestre Gabriel foi chamado a prestar esclarecimentos às autoridades de Porto Velho/RO, sendo, em 1967, preso para averiguações. Foi depois deste acontecimento que o líder religioso da UDV viu a necessidade de registrar a entidade segundo os moldes do direito positivo. No ano de 1970, o Chefe de Polícia do Território de Guaporé novamente proibiu as atividades do centro espírita, o que foi superado com a constituição de um advogado. Tratam-se dos primeiros episódios de conflito entre as duas legalidades em questão.

Mais de uma década depois, em 1984, a Divisão Nacional de Vigilância Sanitária de Medicamentos – DIMED (Ministério da Saúde) publicou a Portaria no 02/85, incluindo as duas plantas componentes do chá religioso como substâncias de uso proscrito, sendo que as determinações deste órgão geravam efeitos criminais, conforme previsto na então vigente Lei de Entorpecentes. Como consta no sítio, naquele momento a Direção da UDV suspendeu as atividades do Centro “por respeito à lei, conforme recomendado pelo Mestre Gabriel, e também para demonstrar às autoridades que o Vegetal não provoca dependência química em seus usuários”.

Desde então as lutas prosseguiram com uma intervenção perante o Presidente do Conselho Federal de Entorpecentes – CONFEN, pedindo a revisão da decisão da DIMED por ausência de provas de que o chá causava efeitos nocivos nos adeptos. A decisão reconheceu a inexistência de estudos registrados no órgão sobre aqueles vegetais, sendo criado um Grupo de Trabalho multidisciplinar para examinar a questão da produção e consumo das substâncias interditadas e apresentar relatórios e recomendações provisórias sobre o assunto, notadamente sobre a conveniência da suspensão provisória da inclusão das plantas nas listas da DIMED (Resolução CONFEN no 05/85). A UDV, desde então orientou suas ações a partir das conclusões daquele Grupo de Trabalho. Após seis meses de investigação, o referido grupo de pesquisa publicou um artigo em que recomendava a revogação provisória da proibição a nível nacional, sugestão que foi acatada pelo CONFEN (Resolução no 06/86).

O antropólogo Edward Macrae (1994, p. 22/23) explica que, entre as razões aduzidas pela equipe multidisciplinar para fundamentar suas conclusões, os pesquisadores argumentaram “que el uso del brebaje no producía daño alguno a la salud. También observaron que los miembros de los diferentes grupos religiosos llevaban vidas ordenadas y pacíficas conforme a los valores sociales vigentes.”

No ano de 1992, a questão obteve parecer final do CONFEN, conforme consta na Ata da 5a Reunião Ordinária do órgão recomendando a retirada definitiva das plantas componentes do Vegetal das listas de substâncias proibidas.

Mas as lutas e as pesquisas prosseguiram até que, em 17 de agosto 2004, o Conselho Nacional Anti-drogas – CONAD, órgão que substituiu o extinto CONFEN, aprovou o parecer de sua Câmara de Assessoramento Técnico-Científico, reconhecendo a legitimidade jurídica do uso religioso da ayahuasca (Resolução no 05/04). Esta última resolução instituiu um novo Grupo Multidisciplinar de Trabalho que, em novembro de 2006, publicou um Relatório delineando a deontologia do uso do chá como forma de

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prevenir seu uso inadequado, no qual, entre outras observações, ratificou-se a não recomendação do uso da bebida fora de rituais religiosos.

Contudo, este relato das dificuldades dos caianinhos diante das autoridades brasileiras não esgota a história de lutas desta comunidade pelo seu direito tradicional de beber o chá Hoasca e que tem sido traduzido para a linguagem jurídico-ocidental como direito de liberdade religiosa dos sócios da UDV. Esta saga possui um capítulo importante escrito em terras norte-americanas.

No dia 21 de maio de 1999, agentes do serviço da alfândega dos Estados Unidos e do Departamento Federal de Investigação apreenderam um volume contendo o chá destinado ao uso da UDV naquele país. Comprovou-se que antes da apreensão a entidade religiosa havia recebido cerca de 14 lotes de Vegetal. Constrangida pelas autoridades norte-americanas, a UDV adotou novamente a política institucional de respeito às leis do país e paralisou suas atividades – assim permanecendo por aproximadamente 5 anos – e recorreu ao Judiciário. A partir disto teve início uma verdadeira batalha entre a UDV e o governo norte-americano, representado pelo então Procurador-Geral do Governo dos Estados Unidos da América, Alberto Gonzales (HAAG, 2006; PÁDUA, 2005).

Conforme explica Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy (2006), em sua excelente análise do caso Gonzales v. UDV, as teses construídas pelas partes indicaram a colisão entre o direito de liberdade religiosa dos filiados da UDV, regulado pelo Religious Freedom Restoration Act (RFRA) e a lei americana de repressão a substâncias alucinógenas, The Controlled Substances Act. A causa principal de o Governo americano litigar pela proibição do uso da Hoasca é o fato de ter sido encontrada na composição do chá a substância DMT (dimetiltriptamina), que está elencada na tabela 1 da lei de substâncias controladas do país.

Os caianinhos obtiveram provimento cautelar favorável em primeira instância, confirmado pelo Tribunal de Apelação do 10o Circuito. O governo americano recorreu à Suprema Corte, mas seu pedido foi julgado improcedente. Segundo a argumentação da decisão, o governo não conseguiu provar a existência de interesse relevante em proibir o uso religioso do Vegetal pela UDV. Ao final, as razões da decisão não destoaram das conclusões das autoridades brasileiras, no sentido de não terem sido verificados danos à saúde dos usuários ou problemas sociais causados pela mencionada instituição religiosa.

Da reflexão sobre esta pequena síntese histórica, desejo, inicialmente, destacar três aspectos. Em primeiro lugar, percebe-se que a identidade caianinha está intrinsecamente ligada à sua prática religiosa, a qual, por sua vez, encontra-se totalmente estruturada sobre a tradição de consumo da Hoasca. Não é por acaso que a comunidade também define a si mesma como hoasqueiros, numa evidente referência ao chá sagrado. Portanto, negar aos filiados da UDV o direito de beber o Vegetal, para além de uma questão de liberdade religiosa, corresponde a violar o direito de uma coletividade de pessoas existirem enquanto comunidade e de praticarem sua cultura. Equivale, pois, a negar o direito de ser um caianinho.

Em segundo lugar, é notável a normatividade atribuída pelos caianinhos às orientações e leis deixadas pelo líder máximo da religião, Mestre Gabriel, reconhecido pelos comunitários como legítimo intérprete e conhecedor profundo das leis e ensinamentos

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cristãos e espíritas. As manifestações da Direção da UDV no sítio da instituição sobre a política de respeito à lei do país – que pode ser entendida como uma “política de não desobediência civil” –, recomendada pelo fundador do centro espírita e sistematicamente cumprida pela comunidade e, ainda, a ênfase nas afirmações de que as vitórias alcançadas pela entidade e o reconhecimento da inofensividade do Vegetal à saúde humana constituem apenas confirmações das palavras proferidas décadas antes pelo Mestre Gabriel, são especialmente relevantes para fundamentar a suposição de que o líder espiritual dos caianinhos poderia figurar, no contexto da UDV, como uma fonte de juridicidade alternativa ao Estado e como uma fonte de conhecimento alternativa à ciência moderna.

A terceira questão diz respeito à colonização – ou tentativa de – do mundo da vida representado pelo espaço comunitário da UDV pelo direito estatal. Tanto no Brasil quanto nos EUA, a tradição milenar amazônica de uso da Hoasca,[6] no contexto da qual a religiosidade caianinha se insere, esteve sob risco de ser destruída pela ciência moderna e pelo direito estatal. O mero fato de ter se traduzir nos termos da cultura ocidental, isto é, expressar-se segundo os cânones do direito e da ciência para poder simplesmente estabelecer o diálogo com as autoridades, já implica na produção de alguma tensão sobre a cultura caianinha.

A cartografia simbólica do direito de Sousa Santos (1988a), teoria que operacionaliza a aplicação de conceitos cartográficos ao fenômeno jurídico a fim de entender como se constroem suas representações sociais do espaço, fornece um instrumental adequado para análise do modus operandi deste processo de juridicização da vida social. Aqui utilizarei o conceito de escala retirado da cartografia como ponte para a analogia entre direitos e mapas. Situando o fenômeno ora estudado no esquema teórico do sociólogo português, o direito caianinho de beber Hoasca seria um direito local produzido em grande escala, enquanto o direito estatal seria uma legalidade de pequena escala. Para os objetivos desta análise, cabe distinguir assim entre os dois tipos de escala do direito, seguindo Sousa Santos (1988a, p. 152):

A legalidade de grande escala é rica em detalhes, descreve pormenorizada e vivamente os comportamentos e as atitudes, contextualiza-os no meio envolvente e é sensível às distinções (e relações complexas) entre familiar e estranho, superior e inferior, justo e injusto. (...) Ao contrário, a legalidade de pequena escala é pobre em detalhes e reduz os comportamentos e as atitudes a tipos gerais e abstractos de acção.

A colonização do mundo da vida, como expliquei, envolve uma homogeneização da diversidade sócio-cultural devido à ação de sistemas baseados em uma racionalidade instrumental abstrata com tendências universalistas, como acontece com o direito estatal de pequena escala. Ao pretender uniformizar e regular as ações sociais, mantendo as possibilidades de interação social dentro de níveis controláveis, ou seja, ao zelar tanto quanto possível pela estabilidade da dicotomia norma/fato, o direito estatal obstrui a emergência de outras formas de vida social ou marginaliza-as ou ainda, como diz Shiraishi (2007, p. 34/35), torna como “invisíveis” os sujeitos de direito que resistem à adaptação desfigurante ao cânone jurídico-ocidental.

Uma confirmação deste esquema de raciocínio pode ser obtida com a observação de que o argumento central do governo americano para proibição do uso do chá sagrado dos caianinhos consistia na alegação em favor aplicação uniforme da lei de substâncias

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controladas, que não admitiria exceções para prática religiosa sincera – pois o governo reconheceu a sinceridade dos propósitos da UDV (GODOY, 2006, p. 22).

Penso que os pontos destacados oferecem uma noção do tipo de problemas ensejados pelo fenômeno do direito caianinho. Contudo, no interior do riquíssimo contexto cultural – político, jurídico, epistemológico – desta comunidade, o direito de beber a Hoasca, embora represente um dos elementos centrais estruturantes da unidade do povo caianinho, cuja identidade se constrói precipuamente com referência ao parâmetro sócio-religioso, não esgota em si a alteridade da realidade sócio-jurídica da comunidade. Esse direito achado na floresta,[7] se assim posso dizer, é tão-somente um dos direitos fundamentais de um ordenamento jurídico mais complexo que contempla a estrutura organizacional da UDV, normas específicas indicando direitos e deveres dos sócios do centro espírita e até um sistema de resolução de conflitos internos. Passarei agora a analisar, em linhas gerais, alguns destes outros aspectos do direito caianinho.

3 A resolução de conflitos internos pelos caianinhos

Além da existência de leis com formato e conteúdo de norma jurídica, outro parâmetro a denotar a organizada prática jurídica dos caianinhos é o processo de resolução de conflitos institucionalizado através das leis do centro espírita. A presente seção terá por objeto uma análise preliminar deste sistema de processamento de litígios, com base nas leis da UDV.

Cada unidade administrativa ou “núcleo” da UDV é dirigido por um Mestre Representante (M.R.), assistido por outros mestres e conselheiros, se houverem, que compõem a Direção do núcleo. Fica sob sua responsabilidade o cumprimento da lei naquela unidade e os desentendimentos entre os comunitários e infringências à lei da UDV, devidamente comprovados, são submetidos à sua sentença. No momento da aplicação da punição, o M.R. pode ouvir a opinião dos outros membros da Direção. Portanto, a administração da justiça na comunidade caianinha está centrada em duas estruturas principais: o espaço físico do núcleo e o papel social do M.R., como autoridade competente para aplicação da lei da UDV.

Quanto aos objetos processados pela justiça caianinha, eles são bastante diversos, sendo comum a apuração de condutas ilícitas como: adultério, problemas familiares, uso de entorpecentes e bebida alcoólica, perturbação da ordem social, não pagamento de dívidas, problemas com a justiça estatal em geral, ofensas verbais, não cumprimento da palavra, dentre vários outros. Não há limitações prévias quanto ao objeto de exame.

As principais punições manejadas pelo direito caianinho são: advertência verbal ou por escrito; afastamento dos graus da hierarquia da UDV – mestres, conselheiros, discípulos e sócios –, o que implica a perda ou restrição de direitos sociais; a perda do direito de beber o chá e, por fim, a própria exclusão do sócio do âmbito do centro espírita por tempo indeterminado – podendo retornar após o cumprimento da sentença, a critério do M.R.

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Chama atenção as semelhanças de alguns aspectos do direito caianinho àqueles observados por Sousa Santos (1980), no início da década de 70, em suas pesquisas sobre o pluralismo jurídico no contexto de uma grande favela do Rio de Janeiro, a que deu o nome fictício de Pasárgada. Assim, para as intervenções que se seguem sobre as características funcionais do direito comunitário caianinho, valho-me da sociologia da retórica jurídica que o autor (SANTOS, 1988b) desenvolveu para o processamento dos dados empíricos que recolheu.

Como primeiro aspecto a ressaltar, tem-se que a argumentação do direito caianinho é guiada por uma racionalidade de tipo moral-prática, o que se deixa visualizar pela forte influência, na interpretação e aplicação das leis do Centro, de topoi[8] de cunho ético como o respeito e o amor ao próximo, a preservação da família, o cumprimento da palavra oral, a retidão moral, a ordem e outros.

Em consequência do baixo grau de colonização do discurso jurídico caianinho pela razão cognitivo-instrumental da ciência moderna, tem-se um discurso jurídico fracamente programado, o que implica numa maior extensão do espaço retórico ou do campo de argumentação deste em relação ao direito oficial. Ao M.R., assistido pela Direção do centro espírita, é reservado, portanto, um amplo espaço dentro do qual o aplicador poderá mover o discurso visando dar concretude às normas jurídicas comunitárias.

Um campo de argumentação alargado está ligado a duas outras tendências, segundo a sociologia da retórica jurídica de Sousa Santos (1988b, p. 61): o nível de institucionalização[9] da função jurídica tende a ser menos elevado e os instrumentos de coerção ao serviço da produção jurídica tendem a ser menos poderosos. As relações inversas também são verdadeiras, pois quanto mais baixos o grau de institucionalização e especialização do direito e quanto menor o poder de coerção,[10] maior deverá ser a extensão do espaço retórico jurídico.

O baixo grau de institucionalização do direito caianinho em relação ao direito oficial pode ser medido por características como: a inexistência de uma complexa e específica divisão do trabalho jurídico – profissionalização – que se deixa notar pela confusão entre os papéis sociais de autoridade religiosa e jurídica no direito caianinho; a utilização de uma linguagem cotidiana que, embora inclua termos técnicos retirados do direito estatal – como lei, sentença, prova –, não os utiliza como meios de “expropriar competências linguísticas”, mas sim de forma a melhorar a compreensão da realidade; o direito caianinho se orienta pela averiguação da verdade real e dos direitos materiais dos envolvidos na lide e não atua de maneira impessoal e padronizada, com excessos de formalismo – prazos processuais e prescricionais, ficções, pressupostos teóricos. A situação particular e concreta de cada sujeito do conflito é examinada (SANTOS, 1988b, p. 45/46).

Por sua vez, a consideração do poder de coerção do direito caianinho é particularmente problemática e dependente de complementação por uma investigação empírica posterior. Antes de tudo, é certo que a Direção da UDV não dispõe de qualquer meio de violência física sobre seus filiados.

Quanto aos problemas de análise do poder de coerção no contexto jurídico caianinho, em primeiro lugar, não se dispõe de parâmetros para entender qual a magnitude da

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violência moral-psicológica representada por uma punição como o impedimento de comungar o sacramento ou mesmo pela exclusão de algum indivíduo do convívio da sociedade. Em segundo lugar, desconsiderando-se o poder de violência moral detido pela Direção da UDV em relação aos associados, ainda restaria a importante questão da eficácia simbólica presente nas leis da UDV, associada à sua origem transcendental e o seu potencial para gerar obediência espontânea.

Penso que se poderia, no entanto, trabalhar com a hipótese de um poder de eficácia relativamente alto das leis dos caianinhos, a partir da constatação da tendência geral para o bom comportamento social dos membros do grupo que figurou, aliás, como um dos argumentos mais fortes para a liberação do uso religioso do chá pelos governos brasileiro e norte-americano (GODOY, 2006; MACRAE, s.d.; PÁDUA, 2005).

Contudo, estou ciente do cuidado que se deve tomar no desenvolvimento desta hipótese, pois sua confirmação pode tornar problemática a equação “maior espaço retórico/menor poder de coerção” formulada por Sousa Santos (1988b, p. 61).

De forma semelhante ao reconhecimento do direito tradicional de beber a Hoasca, a justiça caianinha também contribui para a aproximação entre o direito e as bases culturais da vida, na medida em que constitui um discurso jurídico cuja racionalidade está assentada em valores morais amplamente conhecidos e aceitos pela comunidade e se expressa numa linguagem informal cotidiana, não ocasionando grandes rupturas na comunicação social.

Outrossim, a administração autônoma de conflitos pela justiça caianinha – notadamente de conflitos peculiares à própria comunidade – desonera a justiça estatal de alguns litígios, ao mesmo tempo em que trabalha de maneira paralela e concorrente com o Estado no mister da regulação social – mas nunca contra, de acordo com sua política de respeito às autoridades estatais.

Em consequencia, a justiça caianinha é uma força contrária às tendências de colonização da cultura, de materialização do direito e de ineficácia que sintetizam o cenário contemporâneo de crise estatal e jurídica.

4 O espaço jurídico da comunidade caianinha: introdução do problema e formulação de hipóteses à luz da teoria do pluralismo jurídico

Uma vez apresentados os aspectos da vida comunitária dos membros da UDV com possível relevância para o direito, especialmente diante das perplexidades que este vem enfrentando neste tempo de crise que castiga o Estado e o direito monista, dedico este item final a contrapor a realidade social do direito caianinho com os principais conceitos integrantes da teoria pluralista do direito. Deve-se começar, evidentemente, pelo próprio conceito de pluralismo jurídico, segundo Sousa Santos (1988a, p. 164):

Trata-se (...) da sobreposição, articulação e interpenetração de vários espaços jurídicos misturados, tanto nas nossas atitudes, como nos nossos comportamentos, quer em

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momentos de crise ou de transformação qualitativa nas trajectórias pessoais e sociais, quer na rotina morna do quotidiano sem história.

De acordo com o conceito acima, pode-se afirmar a coexistência e a influência, no dia-a-dia dos caianinhos, das leis da UDV, ao lado de outros ordenamentos jurídicos em circulação no espaço geopolítico brasileiro, notadamente do direito estatal. A compreensão e a medida desta influência é problemática e depende necessariamente de investigação empírica do contexto social caianinho. Contudo, a hipótese mais credível para orientar a investigação, a julgar pelo reconhecimento da UDV como entidade religiosa transformadora de indivíduos (a lei caianinha é rigorosa na punição de condutas como a embriaguez e na defesa da família) e da sociedade (a instituição recebeu o título de utilidade pública federal pelo Decreto Presidencial de 21 de julho de 1999), é a de que as leis do direito caianinho possuem um nível alto de eficácia junto às pessoas a que se referem.

O segundo conceito procura apreender a fenomenologia do pluralismo jurídico, ao romper com a abordagem da antropologia que se concentrava no estudo dos diferentes campos jurídicos como espaços autônomos e geograficamente segregados.

Ao contrário, a observação mostra que frequentemente os ordenamentos se sobrepõem, se complementam, se contradizem, compondo a manifestação básica do pluralismo jurídico que Sousa Santos (1988a, p. 152) designa situação de interlegalidade ou interdireito, ou seja, “de uma relação complexa entre dois direitos.” A interlegalidade procura apreender as condições de coexistência entre dois ou mais espaços jurídicos não sincrônicos, quer dizer, onde há misturas de racionalidades, de escalas e de linguagem.

Quanto à situação de interlegalidade emergida entre o direito caianinho e o direito estatal, pode-se afirmar a existência de uma disposição para o seu tratamento institucionalizada na lei da UDV. Trata-se do que tenho designado de “política de respeito à lei estatal” que estabelece a via consensual para a sincronização entre os dois direitos, atitude que está de acordo com a filosofia da sociedade religiosa assentada no símbolo “Luz, Paz e Amor”. Caberia indagar, todavia, se este pluralismo jurídico não-conflitivo poderia ser mantido em um ambiente anti-democrático e sem reconhecimento dos direitos fundamentais humanos à cultura e a religião.

Porém, não se pode dizer que este movimento unívoco em que somente o direito da cultura política caianinha busca se traduzir aos padrões e exigências dos direitos estatais ancorados na cultura política e científica ocidental reflita uma coexistência adequada entre os dois ordenamentos. Na verdade essa situação de interlegalidade em que somente a lei caianinha se adapta à legalidade pretensamente universal do Estado espelha a ausência de uma concepção multicultural do Estado e de uma democracia do respeito às diferenças. As tensões causadas na cultura caianinha não foram desprezíveis, incluindo períodos mais ou menos longos de obstrução de sua prática religiosa e o desprezo sobre o conhecimento tradicional da inofensividade do chá a saúde, que teve de ser expresso segundo o logos ocidental para ser reconhecido.

O terceiro conceito do pluralismo jurídico é o de policentricidade, realçado por Arnaud (2000, p. 381ss) e se volta para a multiplicidade de fontes capazes de produzir direito válido e eficaz na sociedade. A idéia se constrói em oposição à de monocentricidade, isto é, segue o pressuposto básico do pluralismo jurídico de “negação de que o Estado

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seja o centro único do poder político e a fonte exclusiva de toda produção do direito” (WOLKMER, 2001, p. XV). Nas palavras de Arnaud (2000, p. 382):

Em oposição à imagem tradicional de um direito advindo de um único centro, o estado-nação, a policentricidade designa a multiplicidade de centros de decisão jurídica num dado sistema, o que exclui a estrutura piramidal do direito por Kelsen construída, referencia de muitas de nossas ordens jurídicas contemporâneas.

Como penso ter deixado claro nesta exposição, o contexto social da comunidade caianinha possui um centro de produção e decisão de direito autônomo ao Estado. No que tange à fonte deste direito e suas condições de validade, estão ambas referidas à sua associação ao líder espiritual dos caianinhos, o Mestre Gabriel, que ocupa a posição de intérprete e conhecedor das leis divinas cristãs, espíritas e espirituais de modo geral. Inclusive as disposições emanadas da Direção Geral da UDV são legitimadas, em última análise, por sua referência aos ensinos cristãos e espíritas, segundo as diretrizes da doutrina do Mestre fundador da UDV.

A respeito dos centros de decisão e aplicação jurídica, o direito caianinho possui uma organização centrada nas unidades administrativas ou “núcleos” da UDV espalhados por todo Brasil e por países estrangeiros. A aplicação da justiça fica a cargo do M.R., eleito em um sistema que poderia ser comparado à democracia indireta, pois somente os membros da Direção local têm direito a voto. A hierarquia da UDV, no entanto, possui instâncias mais altas. Os Mestres Centrais são responsáveis pela disciplina dos núcleos integrantes das várias “regiões administrativas” da UDV. A autoridade máxima do centro espírita é o Mestre Geral Representante.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A crise multifacetada em que se encontra o Estado moderno arrasta consigo, como procurei evidenciar, a forma de direito que lhe é inerente: o direito estatal, positivo, monolítico. O “anti-estadismo” e a crise do direito oficial refletem, no fundo, o esgotamento das energias utópicas da população quanto à providência estatal.

As manifestações jurídicas da crise envolvem, como expliquei, a colonização do mundo da vida pelo direito ou sobre-juridicização da sociedade que destrói a diversidade sócio-cultural, a materialização do direito que implica em graves problemas de controle sobre o sistema, bem como a grave crise de ineficácia resultante da incapacidade do Estado cumprir os compromissos expressos na Constituição, tamanha a complexidade da sociedade capitalista e a força com que irromperam no cenário político o grito dos excluídos da Modernidade.

Restringindo minha análise ao pluralismo jurídico associado aos excluídos, marginalizados ou dissidentes da modernidade e do Estado social, representantes do princípio da comunidade como um dos pilares organizativos da sociedade – ao lado do princípio do Estado e do mercado –, demonstrei que eles constituem uma das principais

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forças a pressionar a soberania estatal, do ponto de vista interno e local, com seus reclamos de dignidade e alteridade.

Como consequencia das dificuldades do Estado em atender às suas crescentes e peculiares demandas, ativou-se na sociedade uma intensa dinâmica de auto-organização e ressurgimento do princípio da comunidade fundado na cooperação solidária e participativa que, durante toda a modernidade, tinha permanecido silenciado, reprimido e marginalizado pelas vozes e mãos mais poderosas do mercado e do Estado. Em decorrência da insegurança social gerada pela incapacidade estatal de suprir as necessidades da população, as pessoas buscam a auto-organização em grupos como única alternativa disponível a partir do momento em que se vira as costas para o Estado (WALLERSTEIN, 1993, p. 47).

Esse movimento geral de auto-organização social ou esta nova “sociedade-providência” inclui uma faceta jurídica, denominada pluralismo jurídico, que surge para dar respostas aos fortes ataques da complexidade social sobre a pirâmide de Kelsen. Situa-se, assim, a crise do direito positivo estatal no contexto de uma crise geral da regulação social centrada no Estado.

A segunda parte do trabalho se destinou a apresentar um caso de pluralismo jurídico no contexto de uma comunidade unificada em torno de prática religiosa, designada de comunidade caianinha.

Esta investigação preliminar do fenômeno jurídico caianinho consistiu, primeiramente, na exposição das lutas pelo direito tradicional fundamental de beber o chá Hoasca, bebida sagrada comungada nos rituais religiosos caianinhos. Este direito esteve no centro das mais relevantes situações de interlegalidade até aqui verificadas entre as leis da UDV e o direito estatal, tanto brasileiro como norte-americano. Ponderou-se que o reconhecimento deste direito tradicional não se impõe somente em respeito à liberdade religiosa, mas também como exigência do direito fundamental à cultura, ambos integrantes da noção de dignidade.

Em segundo lugar, apresentou-se uma breve e geral descrição do funcionamento da justiça caianinha e dos principais órgãos e papeis sociais envolvidos na aplicação da lei comunitária. Verificou-se a existência de um direito com extenso espaço retórico e com baixo grau de institucionalização, praticado por pessoas sem formação profissional específica; expresso em linguagem cotidiana, embora se aproprie de conceitos do direito estatal-científico, atribuindo-lhes, porém, um significado técnico “leve” acessível aos membros da comunidade; orientado por uma racionalidade material e pelo princípio da busca da verdade real.

Restaram, contudo, várias questões em aberto e que sugerem a necessidade de uma investigação empírica posterior, notadamente sobre o poder de coerção do direito caianinho sobre as ações da comunidade. Em sendo confirmada a hipótese aqui levantada, de que o direito caianinho possui um alto poder de coerção sobre os membros da comunidade, seriam lançados problemas à fórmula construída por Sousa Santos (1988b, p. 61), no sentido de que quanto maior o poder de coerção, menor a extensão do campo argumentativo do direito.

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Ademais, o próprio pressuposto assumido de que o povo caianinho seja uma comunidade detentora de identidade cultural é passível de questionamento e extensa investigação por métodos antropológicos. Mas para os fins deste artigo, como expliquei, este desafio pôde ser postergado.

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WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura do direito. 3a ed. rev. e atual. – São Paulo: Alfa Ômega, 2001.

[1] Utilizo as palavras em itálico numa referência à Sociologia das ausências e das emergências de Sousa Santos (2006a, p. 93ss). A palavra emergência, porém, possui sentidos múltiplos e justapostos neste escrito. Portanto, ela pode e deve ser entendida também no sentido de Prigogine ou no sentido de uma “necessidade urgente”.

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[2] Para uma descrição do estado da sociedade a partir dos fins dos anos 60, consulte-se a obra A era dos extremos de Eric Hobsbawn (1995, pp. 393-420).

[3] A palavra tradução deve ser lida com a amplitude que lhe conferem a teoria da tradução e a hermenêutica diatópica de Sousa Santos (2006a).

[4] Vale ressaltar, no entanto, que o direito de ser sócio da UDV se adquire aos 18 anos. Por isto, os filhos dos sócios da UDV, embora não sejam sócios, devem ser considerados caianinhos.

[5] As informações aqui mencionadas sobre a UDV e sua Administração podem ser obtidas no sítio da entidade: .

[6] O uso tradicional da Hoasca, cujo nome preferido pela comunidade científica tem sido ayahuasca, por povos indígenas na Amazônia está fartamente documento pela antropologia e remontam, segundo a maioria das aproximações, às civilizações amazônicas pré-colombianas. (VARELLA, 2005; LABATE e ARAÚJO, 2004).

[7] Faço aqui uma alusão à linha de pesquisa desenvolvida na Universidade de Brasília sobre direito achado na rua que resultou num livro que reuniu as reflexões de vários pesquisadores, sob a supervisão de José Geraldo de Sousa Jr. (1993), sob re pluralismo jurídico.

[8] A noção de topos remete àquelas “opiniões geralmente aceitas” de que fala Aristóteles no segundo parágrafo da Tópica (1987), isto é, “aquelas que todo mundo admite, ou a maioria das pessoas, ou os filósofos – em outras palavras: todos, ou a maioria, ou os mais notáveis e eminentes.”

[9] Segundo Sousa Santos (1988b, p. 49), “o conceito de institucionalização está originariamente ligado à idéia de recorrência de um dado padrão de comportamento. Na sua definição mínima aponta para uma multiplicidade estruturada de papéis sociais.”

[10] Entende-se poder de coerção “o conjunto dos meios de violência que podem ser legitimamente accionados para impor e fazer cumprir as determinações jurídicas obrigatórias” (SANTOS, idem, p. 53).