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1

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I ~

I I J

1 r

A EMERG[NCIA DA CRIANÇA NO BRASIL

Fe~nanda Ro~a Bo~ge~ de Holanda

Dissertação apresentada ao Departamento

de Psicologia do Instituto de Estudos

Avançados em Educação, da Fundação Get~

1 i o Va rgas, pa ra obtenção do grau de Mes

tre em Educação.

Orientadora: Ma~ia Lucia do Ei~ado Silva

Rio de Janeiro

Fundação Getulio Vargas

Instituto de Estudos Avançados em Educação

Departamento de Psicologia da Educação

1 9 9 O

Page 3: A EMER60tcIA DA CRIANÇA li) BRASII{'1

! j 1

1

I l i

I

• a E~a Sevune.ttto da RO.6a BoJtge..6, m-i..nha mãe.: au..óênci.a que.

me. cü.mi.nu.i. ma6, lemb/ta.nç.a que. me. Jz.e.c.u.pe.Jta.;

• a Le.o, SaJz.a e. Paula, c.om quem qu.e.Jz.O pa.Jtti.1.haJz. agoJta. a

ale.gtvta da ob/ta. teJl.m-i..nada;

a AlbeJLUna Rodtvtgue..6 da Silva, a Memem, m-tnha .óe.gunda

mae.;

. a me.U.6 -i..Jz.rnão.6, peta tOJz.ci.da e. pe.lo apo-i..o.

Page 4: A EMER60tcIA DA CRIANÇA li) BRASII{'1

AGRAV EC I IA ENTOS

A Thvz.eza RO.6a BOJtge.6 de Holanda e LeonMdo Cunha, pelo ma-teJtiaf

pJteu0.6o que me env..tMam de BJta..6Wa e Reu6e .

• A MM.ia Luua do E..iAa.do Silva, pua oJt.ientaç.ã.o c.ompe-tente e ~

ga .

• ' A Paulo do.6 Anjo.6 Matia.6, pelo bdo .tJz.a.bafho datifogJtá6..tc.o.

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S U IA ~ R 1 O

I NTROOUÇÃO .••••.•.••••••..•••••••••••.•••..••.•••.•••••.•••.•••.••

CAPTTULO 1 - A FAMTLIA PATRIARCAL E O JOGO VAS VIFERENÇAS •••••••.•

CAPTTULO 2 - O PODER t O INVIVrVUO ............................... .

1 • A V-Ló c.ipüna do-ó COJtpo-ó ..................•.................... 2 A " - d d'" . :7+: o . mae veJt a UM e a c.uança LUAA.. ........................... .

3. A CM.ança PobJte .................•.. -.................•....•....

4. A V-Ló c.ip.e..,i.na E-óc.olM .•....•.....•.•..••...•..••.•.•.•..••.•...

CAPTTULO 3 - A CAPTURA VO VESEJO ................................. .

1 • A" Relação P JL.ÚnoJtcíi.al" .......•..................•...•.........

2. O Tea:tJz.o do Inc.on.6uente ..•.....••..•••..••....•••..•..•.....•

CAPTTULO 4 - FRAGMENTOS VO CAMPO SOCIAL: ANÃLISE DE PRÃTICAS QUE SE

pág.

13

45

45

51

83

93

108

113

115

ARTICULAM NA PRODUÇÃO VE SUBJETIVIVAVE VA CRIANÇA •••• 127

1. ':'\ Relação E-óc.ola- FcuriZlia". . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • . . . . . . . . . . . . 128

2. t-óc.o.ta-ó ExpeJvÚnentai-ó .............•...........•............... 144

3. BJteve-ó no:ta-ó -óobJte a ú.x.uação a:tual da CM.ança PobJte no BltMil. 156

4. A c.Jz-i.a.nça da-ó Jtev-Ló:ta-ó ...••.••.•••.••.•.•.....•.••.....•...••. 159

5 • Tudo pela CJz..iança. . . . . . . . . . . . . . . . . • . . . . . . . . . . . . . • . . . • . . . . . • . . . . 16 1

CONSIVERAÇVES FINAIS .............................................. 164

BIBLIOGRAFIA ••••••••••••••..•••••••••••••••••••••••••••.•••••••••• 167

Page 6: A EMER60tcIA DA CRIANÇA li) BRASII{'1

i t

I

RESUMO

Pretende-se desenvolver aqui uma reflexão sobre como, a

partir do século XIX, no nosso país, a criança passou a ser al

vo de forças que dela se apropriaram para forjar o indivíduo

obediente e, sobretudo, útil.

A submissão ao poder patriarcal foi substituída pela submi~

são a um poder distribuído e organi zado dentro da sociedade que

atravessa os corpos e exerce sobre eles um controle tão forte

quanto discreto, produzindo no final uma multidão de individua

lidades, de "di6e~ença~" ... iguais.

Dentro da família a mulher passou a ocupar um lugar de

destaque pois, como mãe, papel enaltecido a partir de então,

veio a ser a responsável pela formação e educação dos filhos,

futuros cidadãos. Sua função viria a ser reforçada pela esco

la e por outros dispositivos do poder discipl inar, como o enten

de Foucault.

Hoje, o conhecimento do mundo infantil, o atendimento das

necessidaaes da criança, a compreensão dos seus desejos -sao,

n a ver d a de, p r o d u ç õ e s das p r á t i c a s d e c o n t r o 1 e e v i g i 1 ã n c i a da s

crianças.

Pensar sobre essas questões e o começo de uma mudança que

se quer, aqui, estimular. Por contágio.

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1 }

ABSTRACT

The aim of this paper is to reflect upon the child in our country

who, since the beginings of XIX century, have become the target for forces

that took property of her in order to construct the obedient and,above all,

profitable individual.

The submission to patriarchal power was substituted by submission to

an organized and well distributed power inside society which overcomes the

bodies and has as strong as discret control over them producing at the end

a multitude of individualities and equal ... "differences ll•

Inside the family the woman has occupied a prominent place as far as

being the mother - a very important role since then - gives her the respon­

sability for education and formation of children - the future citizens. Her

function would be reforced by the school, and other dispositives of the

disciplinary power as Foucault understand.

Today, the knowledge of child world, the understanding of its

necessities, the comprehension of its desires are nothing but a by-product

of children control and vigilance practices.

To think about these questions is the very begining of the change

this paper is to stimulate. By contagion.

I I

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INTROVUÇÃO

No século XVI, contam os historiadores, foi descoberto o

~rasil. Muito jã aconteceu, muita hist5ria se contou.

Pretende-se aqui contar a história curiosa de como no Bra

sil do século XIX de~cob~~u-~e a c~~ança e, podemos dizer, in

ventou-se a criança c~~ança. O segundo termo ê o atributo que

fez do corpo pequeno um objeto de saber-poder, um alvo de for

ças que dele se apropriaram para tornã-lo um corpo obediente e

útil .

Nos primeiros tempos da colonização, onde estava a c~~an

ça? Inutil era procurar por aquelas matas onde se paria para

povoar a colônia. Inutil era tambem procurar pelas Casas-Gra.!:!.

des e senzalas onde apenas o branco e o negro falavam da sua

diferença. No Brasil do seculo XIX alguma coisa aconteceu. Mis

turas de gente e costumes, de idéias e neg5cios produziram al

go, fizeram acontecer a c~~ança. Mas o que significa tudo is

so?

Significa que a criança emergiu de dentro de um campo s~

cial determinado e historicamente marcado. Relações de poder

estrategicamente articuladas investiram na criação de um "obj!

to" que se constituiu, a partir de então, como objeto de saber

e como corpo politico, dando, por sua vez, existencia, e man

tendo em funcionamento, na sociedade, mecanismos os mais diver i

I

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2

sos (instituições, produção de saber, propaganda, etc, etc).

A ckiança e uma 60kma (aqui se reverte o mundo plat~nico

das idéias) produzida aqui, do encontro dos corpos, no campo

social. t uma forma da qual se apropriaram forças várias num

jogo de poder-saber extremamente produtivo e criativo.

Para entendermos esse jogo e preciso pensarmos na questão

do poder como Foucault nos faz pensar.

As relações de poder sao relações de força contra força;

nao relações de dominadores sobre dominados; não exploração de

uma classe social, que detém o poder, sobre outra desprovida de

p o d e r ; não v i 01 ê n c i a o u i d e o 1 o g i a mas, r e 1 a ç õ e s s u tis, di re tas,

físicas, que se dão nos fios capilares da grande rede do campo

social; relações positivas, porque produtoras de .6abe.k; não de

um saber do "obje.to natuka(", fixo na história sobre o qual com

o passar do tempo, aprofundamos mais e mais nosso conhecimento

mas, o saber de um objeto inventado, localizado e datado, efei

to das relações de poder.

o poder não ê uma propriedade mas um exercício; nao e o

poder do Estado ou da lei. t a força que atravessa, investe os

corpos e, neles se apóia, convocando-os a uma batalha perpétua.

O Estado a ele recorre, utiliza ou impõe algumas de suas táti

cas e os indivíduos, no corpo-a-corpo travam a sua luta que não

deve ser entendida como reflexo das formas da lei e do governo.

Como força positiva e produtiva, o poder gera saber e e~

te não p o d e c o n s t i t u i r - s e em" c a m p o H e. ut k o " . F o r a da b a tal h a

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I

3

o saber nao é possivel porque lhe faltaria o objeto. O objeto

do saber é o objeto do qual o poder se apropriou (o que e o sa

ber sobre a criança, senão o conjunto de informações que o co~

trole e a vigilância possibilitaram?) "Não há 1Le.laç.ão de. pode.1L

~e.m con~tituiç.ão cOILILe.lata de. um campo de. ~abe.lL, ne.m ~abe.1L que.

nao ~uponha e. não con~titua ao me.~mo te.mpo 1Le.laç.õe.~ de. pode.IL" 1 ,

disse Foucault. Igualmente, não há o sujeito do conhecimento,

de um lado, e o objeto do conhecimento, do outro a espera de

que aquele o descubra e passe a conhecer sua estrutura, suas leis

fundamentais, sua essência; antes, sujeito e objeto são efeitos

do poder-saber que os gera e determina.

Não há "obje.to.6 natulLai~" (a "clLianç.a e.te.lLna" , por exem

plo) mas, obje.tivaç.õe.~ de práticas muito bem datadas. Entre a

criança de hoje e a criança dos primeiros tempos da coloniza

çao no Brasil, apenas o nome é comum e não tem sentido julga!

mos que as práticas atuais em relação ã criança estão mais cor

retas porque mais próximas da verdade. Não há um alvo a ser

atingido, nem uma "matilLia" (a criança verdadeira). O objeto ê

determinado pelas práticas, pelas relações que o envolvem, pelas

forças que dele se apropriam. "A" clLianç.a não existe. Existem

c r i a n ç a s que são p r o te g i das o u c r i a n ç a s que s a o aba n do n a da s • . . ,

devendo-se entender que as crianças são protegidas porque al

guem as protege ou abandonadas porque alguém as abandona ... A

clLianç.a é apenas uma palavra e as palavras nos enganam porque

nos distanciam das práticas.

1 FOUCAULT, Michel. Vigialz. e. Pu~. Petrópolis, Vozes, 1987, p.30.

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I

4

Em seu livro "Hi.6tóltia Soc.ial da Cltiança e da FamZlia",

Philipe Aries mostra-nos como se formou, a partir do século XVII,

na Europa, uma concepção diferente da criança e da família, a

partir de práticas que dominaram os velhos costumes medievais

e inauguraram uma sociedade onde a criança veio a ter um lugar

especial.

Na sociedade medieval, a criança só era mantida sob os

cuidados maternos até sete anos de idade quando, então, julg~

da capaz de desembaraçar-se sozinha e adquirir sua independe~

cia, era misturada aos adultos partilhando com estes de seus

trabalhos e jogos. Crianças e adultos, das mais diversas condi

ções sociais, se misturavam nas ruas, nas praças e nas festas.

Vestiam os mesmos trajes e participavam das mesmas brincadei

raso A sexualidade não constituía assunto proibido: "E.6.6a au

.6ênc.ia de lte.6eltva diante da.6 c.ltiança.6, e.6.6e hábito de a.6.6oc.iá-

la.6 a bltinc.adeilta.6 que giltavam em toltno de tema.6 .6exuai.6 palta

no.6 ê .6 ultplte endent e: ê 6 ác.il imaginalt o que diltia um p.6ic.an~

ta modeltno .6oblte e.6.6a libeltdade de linguagem e, mai.6 ainda, e~

.6a audác.ia de ge.6to.6 e e.6.6e.6 c.ontato.6 6Z.6ic.o.6. E.6.6e p.6ic.anali.6

ta poltêm, e.6taltia eltltado. A atitude diante da .6exualidade,

.6em dúvida a pltópltia .6exualidade, valtiam de ac.oltdo c.om o meio,

e, pOIt c.on.6eguinte, .6egundo a.6 êpoc.a.6 e a.6 mentalidade.6.,,2 As

proibições só começavam a surgir quando a criança atingia a p~

berdade. Até lá, ela era tida como indiferente ã sexualidade.

2 ARItS, Philipe. H..i...6tóltia Soc...i..al da Cltiança e da FamItia. Rio de Janei ro, Editora Guanabara S.A., 1978, p.129.

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5

Tambem nao se acreditava numa inocência infantil que devesse

ser preservada.

Inserida no mundo dos adultos e. com eles misturada, tudo

o que a criança viesse a aprender era fruto desse convívio am

p10, fora do controle da família. A educação era, portanto,e~

sa aprendizagem da criança no meio social, atraves da prática,

ajudando os adultos em seus serviços.

No período inicial (de O a 7 anos), durante o qual era

mantida no seio da família, nutria-se em relação ã criança um

sentimento superficial que Ari~s chama de "papa~icaçio": a crian

ça era uma "coi4inha eng~açadinha" que divertia muito os adul

tos. Sua morte apesar de poder desolar alguns não era motivo

de desespero pois, logo poderia ser substituída por outra. Ate

o fim do seculo XVII havia casos de infanticídio que, apesar

de considerado crime passível de punição severa, era praticado

em segredo: as crianças morriam asfixiadas na cama dos pais o~

de dormiam ... As pessoas deixavam morrer ou ajudavam a morrer

as crianças que não queriam conservar. "O 6ato de ajuda~ a na

tu~eza a 6aze~ de4apa~ece~ c~atu~a4 tio pouco dotada4 de um

4e~ 4u6iciente nio e~a con6e44ado ma4, tampouco e~a con4ide~a

do uma ve~gonha. Fazia pa~te da4 coi4a4 mo~almente neut~a4,

condenada4 pela etica da Ig~eja e do E4tado ma4, p~aticada4 em

4eg~edo, numa 4emi-con4ciência, no limite da vontade, do e4qu~

cimento e da 6alta de jeito".3 No mesmo seculo XVII, entretan

to, sob a influência de reformadores e moralistas, a vida da

3 Ibid., p.17.

t

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6

criança passou a ser preciosa e os pais passaram a lutar para

conservá-la.

Atingida a idade da independência (sete anos), o comum era

que a criança saísse de sua casa, sendo confiada a uma outra

família que se tornaria responsável por sua educação. Sua famí

lia original, por sua vez, se responsabilizaria pela educação

de outras crianças.

A partir do fim do seculo XVII, por pressao de moralis

tas e reformadores religiosos, a escola substituiu a aprendiz!

gem como meio de educação. A criança foi retirada do convívio

com os adultos para dentro da escola onde ficaria salva das

"mi~ in6lu~neia~" e dos "mau~ eo~tume~" ... "Começou um longo

p~oee~~o de enelau~u~amento da~ e~iança~ (eomo do~ loueo~, do~

pob~e~ e da~ p~o~tituta~) que ~e e~tende~ia até no~~o~ dia~ e

ao qual ~e di o nome de e~eola~izaçã.o".4

Essa escolarização da criança teve a cumplicidade da fa

mília no seio da qual nasceu o novo sentimento da infância que

se exprimiu na importância que se passou a atribuir ã educação.

A criança passou a ser o centro das atenções, insubstituível e

era necessãrio que se passasse a cuidar melhor àela (o contr~

le da natalidade observável no seculo XVIII, tem aí suas raí

zes). O comum, entretanto, era que a criança estudasse sob r~

gime de internato em colegios ou na casa do seu mestre com quem

pa s s d va a mora r.

4 Ibid., p.ll.

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1

I

7

Aries observa que a infância começou a ser reconhecida a

partir do século XV e durante o XVI, como mostra a análise da

iconografia, o aparecimento do colégio e a modificação do esp~

ço em direção a uma organização das casas que protegia e priv~

tizava mais a família e que favorecia o surgimento de um senti

mento novo entre os membros da família e, mais p a r t i cu 1 a rm e.!!.

te, entre a mãe e a criança. A ausência desse reconhecimento,

até então, pode ser constatada, por exemplo, na nao aceitação

da morfologia infantil, na arte, onde a criança era represent~

da como um adulto de tamanho reduzido. O seculo XVII, entre

tanto, é o marco principal do surgimento do sentimento da infân

cia, entendendo-se este como consciência da particularidade in

fantil e a arte é o seu principal testemunho.

O sentimento da infância trouxe consigo o interesse ps~

colõgico pela criança e a preocupaçao com sua saúde, higiene e

formação moral: agora era preciso conhecê-la para melhor cor

rigí-la e a preocupação com sua educação e disciplina se tor

nou evidente.

"A 6amZlia e. a e.4c.ola lLe.tilLalLam junta4 a c.lLianç.a da 40

c.ie.dade. d04 adult04. A e.4c.ola c.on6inou uma in6ânc.ia outlLolLa li

C.Ul04 XVIII e. XIX 1Le.4ultou no e.nc.lau4ulLame.nto total do inte.lLna

to" ... "Ma4 e.44e. lLigoJt tlLaduzia um .6e.ntime.nto muito di6e.ILe.nte.

da antiga indi6e.ILe.nç.a: um amOIL Ob4e.44ivo que. de.ve.lLia dominalL a

40c.ie.dade. a palLtilL do 4ic.ulo XVIII".5

5 Ibid., p.277.

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8

A burguesia ocupou uma posição de vanguarda em todo esse

processo. A alta nobreza e o povo conservaram por mais tempo

seu modo de vida tradicional.

o sentimento da infância, em todos os pontos em que sur

giu (jogos, trajes, educação) trouxe consigo a marca do senti

mento de classe. A criança entrou em evidência na mesma medi

da em que os grupos sociais se distanciaram.

Os jogos abandonados às crianças (nas classes burguesas)

continuaram de costume entre adultos e crianças das classes PE

pulares. Quando as crianças passaram a usar trajes diferentes,

nas classes populares a identidade dos trajes se mantinha. Qua.!!.

do começaram a frequentar a escola, somente tardiamente as da

alta nobreza e as das classes populares passaram a frequentá-la.

Quando a criança se tornou o centro das atenções, os criados

tambem foram colocados em evidência e de uma relação anterior

de amizade passou-se a uma relação de severa vigilância.

J. Donzelot, em seu 1 ivro "A Pol1.c.ia da.ó Fam1.lia.ó", no ca

pitulo que dedica à "Con.óelLvaç.ão da.ó ClLianç.a.ó" anal isa todo um

processo de mudança, desencadeado no seculo XVIII (França), em

torno da criança, mostrando como o problema repercute de formas

diferentes nas diferentes classes sociais. Como consequência de

ferrenhas criticas que surgiram na epoca às instituições para

menores abandonados (crianças pobres) e à entrega de crianças

aos cuidados (ou "de.óc.uidado.ó") de nutrizes contratadas (cria.!!.

ças mais favorecidas), a imagem da infância mudou. Nas classes

burguesas, a difusão da medicina domestica muniu os pais de co

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9

nhecimentos e tecnicas que lhes possibilitaram tirar seus fi

lhos da "inóluênc.ia negativa" dos serviçais cujo trabalho pa~

sou a submeter-se a rigorosa vigilância. Do outro lado, surgiu

a filantropia como forma de direção da vida dos pobres, com o

objetivo de diminuir o custo social de sua reprodução (nas in~

tituições). No interior das famílias burguesas uma nova alia~

ça entre medico e mãe concedeu a esta um papel fundamental (o

novo "4tatu4" de mãe). A educação assumiu uma importância bi

sica e toda uma literatura sobre os cuidados com a criança foi

produzida com recomendações específicas relativas aos jogos i~

fantis, histórias, regularidade da jornada, espaço fisico rese!

vado ã criança e vigilância. A mãe garantiria a efetivação de

tais cuidados.

Essa nova natureza de preocupaçoes relativas ã educação

nao penetrou no interior das famílias pobres da mesma maneira.

Aqui, a penetração dos novos preceitos se deu sob a forma de

diminuição da liberdade (controlada pelo Estado). A proteção

discreta no seio das famílias burguesas aqui seria vigilância

direta. O novo "4tatu4" da mãe pobre seria o de nutriz: o Esta

do passou a dar-lhe uma assistência financeira pagando-lhe uma

quantia equivalente ao gasto que se tinha nas instituições,com

nutrizes. A assistência domiciliar desencorajaria o abandono

do filho. A criação dos filhos da família pobre passou a ser

control.ada por uma assistência medica fornecida pelas prime.:!..

ras sociedades protetoras da infância que surgiram, então, em

Paris e, posteriormente, em Lyon as quais tambem funcionavam

como órgãos de vigilância sobre as crianças das classes popul~

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10

res. A mae pobre era irremediavelmente incompetente para cui

dar do seu filho. Desenvolveram-se várias estratégias de "n~

m-i...f..-i..aJt-i..zaçã.o" das camadas populares (promoção do casamento,pr~

paração da mulher para a vida domestica, etc) que visavam, prl

mordialmente, a diminuição dos encargos de assistência. Ate a

habitação popular passou a ser discutida e planejada com o ob

jetivo de se fechar o círculo familiar, controlar a moralidade

e facilitar a vigilância. Controlada por vários meios,qualquer

deslize ocorrido nas famílias pobres seria tido como culpa da

mae.

Donzelot mostra como a centralização da família está pr~

sente nas duas classes mas ressalta o sentido diferente que o

processo teve para cada uma delas: na família burguesa houve

um "Jte..tJta-i..me.n.to .tã..t-i..c.o" dos seus membros cujo objetivo era man

ter os serviçais sob controle. Mais coesa internamente, ela

se torna mais forte tambem no campo social. A mulher dentro da

família se fortalece atraves da aliança com o médico. Na famí

lia pobre, seus membros sofrem um processo de "Jteduçã.o" de uns

aos outros, numa relação de vigilância cujo objetivo principal

era evitar os "pe.Jt-i..gO.6" exteriores (o cabaré, para o marido, a

rua, para os filhos). A coextensividade com o campo social se

perde e seu isolamento facilita a vigilância por parte do Esta

do.

Q u a n t o a s p o s i ç õ e s t á t i c a s da m u 1 h e r b u r g u e s a e da m u 1 h e r

pobre dentro desse jogo da revalorização das tarefas educati

vas, acrescenta que para a primeira se estabelece uma nova con

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11

tinuidade entre suas atividades familiares e sociais enquanto

que a segunda passa a velar por uma retração social de seu ma

rido e de seus filhos.

Quanto a criança, Donze1ot conclui: na fami1ia burguesa

ela tem uma ".f..ibelLação plLotegida". "Em tOlLno da c.tu:.ança, a 6~

mZ.f..ia bUlLgue~a tlLaça um c.olLdão ~anit~lLio que de.f..imita ~eu c.am

po de de~envo.f..vimento: no intelLiolL de~~e pelLZmetlLo, o de~envo.f..

vimento de ~eu C.OlLpo e de ~eu e~pZlLito ~elL~ enc.olLajado pOIL to

da~ a~ c.ontlLibuiçõe~ da p~ic.opedagogia po~to~ a ~eu ~elLviço e

c.ontlLo.f..ado pOIL uma vigi.f..ânc.ia di~c.lLeta. No outlLo c.a~o,

mai~ ju~to de6iniIL o mode.f..o pedagógic.o c.omo o de '.f..ibelLdade vi

giada'. O que c.on~titui plLob.f..ema, no que .f..he diz lLe~peito, nao

ê tanto o pe~o da~ plLe~~õe~ c.aduc.a~, ma~ ~im o exc.e~~o de .f..i

belLdade, o abandono na~ lLua~ e a~ têc.nic.a~ in~taulLada~ c.on~i~

tem em .f..imitalL e~~a .f..ibelLdade, em dilLigilL a c.lLiança palLa e~pa

ço~ de maiOIL vigi.f..ânc.ia, a e~c.o.f..a ou a habitação 6ami.f..ialL".6

Dos livros de Aries e Donze1ot, acima citados, depreend~

mos o processo pelo qual a criança ganhou um lugar na socieda

de e foi colocada em evidência; tornou-se, enfim, individuo,

uma produção do poder e do saber, alvo de forças que dela se

apropriaram para conhecê-la, controlá-la e transformar sua p~

tência em força útil. As novas práticas que tiveram a criança

como objeto (os cuidados com o seu corpo, a proteção, a vigl

1ância, a escola, a disciplina) traziam consigo um novo tipo de

relações sociais, caracteristico de uma sociedade que funciona

6 DONZELOT, Jacques. A Po.e..Zc.ia ~ FamZ.e....t~. Rio de Janeiro, Graa1, 1980, p.48.

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1 2

com mecanismos que organi zam a vi da dos homens, individualizam-nos

para melhor controlá-los e obter deles o melhor proveito possi

vel através de um sistema de aperfeiçoamento contínuo de suas

capacidades.

No Brasil do século XIX, essas práticas tiveram lugar e

produziram, também aqui, essa criança que hoje conhecemos, obe

diente e objeto de investimento, futuro, enfim, da nação. Tam

bém aqui, alianças foram feitas, dentro e fora da família para

que tudo fosse produzido com eficiência máxima. A criança, e~

fim, nasceu. E nasceu muito bem; quem fez o parto foi o médi

c o ...

A criança cresceu e muita coisa cresceu junto: a produção

de saber, a escola, as especializações, as instituições, a in

dústria, etc, etc, etc.

E a criança sustenta tudo isso; é ela que mantém funcio

nando. Parece, entretanto, que alguma coisa se perdeu ... , a

singularidade, talvez. A criança que nasceu e na verdade um

modelo (burguês) a partir do qual se pensa a saúde e a doença,

a normalidade e o desvio.

Page 20: A EMER60tcIA DA CRIANÇA li) BRASII{'1

I i

I j

CAPrTULO 7

A FAMrLIA PATRIARCAL E O

JOGO VAS VIFERENÇAS

Quando chegaram os portugueses ao Brasil, no século XVI,

aqui viviam os índios. A criança indígena vivia e crescia nu

ma comunidade de princípios e costumes bem definidos. Era edu

cada através de rituais da tribo, que desde cedo impunham as

regras que regulariam seu comportamento. O "JuJtupaJt-i" , figura

demoníaca de um bicho representada por um dançarino com masca

ras, cabelo de gente, pele e penas de bicho, era figura central

desses rituais pedagõgicos indígenas que através do medo pass!

vam seus ensinamentos e preparavam a criança para enfrentar a

vida. Seu corpo era desfigurado para espantar os espíritos

maus: pintava-se-lhe a pele, perfuravam-se-lhe os lábios,septo

e orelhas, com fusos ou penas, penduravam-se dentes de animais

no seu pescoço. Com muito medo e muita dor a criança selvagem

crescia trazendo no corpo as lições de seus ancestrais e a for

ça necessária para enfrentar os perigos e a beleza da vida. Não

se penalizavam os índios com o "c.oJtpo óJtág-il" da criança isso

é "c.o-i.6a nO.6.6a". Também os ri tuais de medo e de dor nao tinham

nada de ".6ad-i.6mo". Traduziam, sim, uma pedagogia de alto sign.!.

ficado cultural que incluía a criança em seu grupo e fazia-a

identificar-se com ele. A criança sofria, não castigos corp~

rais corretivos, impostos por pais disciplinadores mas, o fla

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I 1 1

14

gelo que lhe ensinava o uso e dominio de suas forças, que lhe

ensinava a ser valente. Brincava livre, solta, mas, para tor

nar-se cona de sua vida tinha que sofrer. Na puberdade pass~

va por provas tão dificeis e rudes que em alguns casos não su

portava e morria. Desses rituais, entretanto,salam o homem ou

a mulher livres, donos de suas forças e identificadas com o seu

grupo, porque para o homem primitivo não há como educar sem dor:

n.i..6 :t o

urna an:t.i.ga ve4dade 'humana, dema.6.i.ado humana', i qual :talvez

.6ub.6C4eve.6.6em 0.6 macaco.6, p04que de na:to, d.i.z-.6e que com a ~n

vençio de ce4:ta.6 b.i.za44a.6 c4ueldade.6 anunc.i.avam j~ o homem e

p4eced.i.am a .6ua v.i.nda. Sem c4ueldade nio hi gozo, e.i..6 o que

no.6 en.6.i.na a ma.i..6 an:t.i.ga e 4emo:ta h.i..6:tô4.i.a do homem; o ca.6:t.i.go

é urna ne.6:ta."l A razao, o dominio das paixões, ":toda e.6:ta ma

qu.i.naçio .i.nne4nal que.6e chama 4enlexão",2 diz Nietzsche, ins

talaram-se no homem primitivo ã custa de muito sangue e muita

dor. A criança indlgena, enfim, aprendia o que tinha que apre~

der para viver e para .6e4 com os velhos da tribo. Não era com

seus pais. Tampouco era com castigos corretivos, com punições

pelo que fizesse de errado. Os primeiros cronistas, lembra Gil

berto Freyre em "Ca.6a G4ande e Senzala", 3 ficaram impression~

dos com a liberdade de ação da criança entre os índios. E pr!

ciso aprendermos com Nietzsche a pensar e compreender essas col

sas para que possamos também entender a 4azão do homem moderno

1 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A Genealogia da Moral. são Paulo, Moraes, 1985. p.36. 2 Id. ibid., p.32. 3 FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro, Jose Olimpio Edi tora, 1987. p.137.

I I

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1 5

e os valores de uma psicopedagogia que pretende hoje ter a ver

dade sobre a criança que deve, enfim, ser protegida, vigiada,

corrigida, controlada e ao mesmo tempo, estimulada, compreendi

da, tolerada, conhecida, etc, etc, coisas, enfim, que, apare~

temente incoerentes, se completam e se reforçam num processo

que antes de mais nada 6~a9iliza a criança para depois fazi-la

produtiva para uma sociedade capitalista.

Quando os jesuítas chegaram ao Brasil a criança indígena

foi seu principal instrumento na transmissão dos valores do ca

tolicismo. O "Ju~upa~i" foi transformado em figura cômica. A

ridicularização do complexo indígena serviu ã implantação da

moral cristã. A criança foi idealizada, transformada em anjo

catõlico - dessa forma sua morte podia ser motivo de alegria.

Esse sentimento em relação a criança pequena generalizou-se no

Brasil, nos primeiros tempos da colonização. Nasceu da cate

quese, do trabalho dos jesuítas junto aos índios,especialmente

junto ã criança que seria mais tarde o mais forte aliado notr~

balho de conversão de seus pais, os velhos da tribo. Ensinada

e alfabetizada pelos jesuitas, passava a encantar seus pais,

atraindo-os dessa forma para uma nova vida orientada pela mo

r a 1 c r i s t ã . Seu p a t r i m ô n i o c u 1 tu r a 1 i a se n d o d e i x a d o p a r a t rã s

e se tornava ridiculo quando a distância aumentava. A criança

selvagem, livre, passou a ter com os jesuítas um lugar e uma

função: devia educar seus pais e converti-los ã fé catõlica. In

vestida de poder deixaria de ser livre. De aprendiz a mestre,

de pequena a grande, do presente ao futuro, da liberdade ã dis

cipl ina, da vida ã moral: tais foram as passagens forçadas a

f

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1 6

criança indígena pelos jesuítas, nossos grandes educadores dos

primeiros tempos da colonização. Não tardou tamb~m a passar

da mata aos col~gios onde, já a partir do s~culo XVI, mistu

rou-se aos filhos de portugueses para, na mais perfeita "demo

c.lLac.,[a", i senta de preconcei tos contra raça, receber educação.

Na criança indígena brasileira plantou-se a semente da

quase destruição de sua raça. Mais tarde, em consequência da

implosão da máquina jesuítica, a comunidade indígena do Brasil

sofreu intenso processo de desagregação dada a falta de condi

ções para enfrentar a vida: separados de seu modo de vida ori

ginal e sem as mínimas condições materiais de sobrevivência dis

punham então os índios de uma bagagem de valores e escrúpulos

que não lhes serviam para nada, a nao ser para eliminar o po~

co de vida que lhes restara.

Os índios brasileiros foram utilizados tamb~m para acel!

rar o povoamento da colônia. Houve a mais completa mistura de

raças que tinha na mul her indígena o ",[nglLed,[ente" fundamental.

Povoado o pais, contudo, o que se constituiu foi uma sociedade

de cores e raças bem definidas e de modos de vida bem diferen

tes, embora costumes de uns e de outros se tenham trocado e in

terpenetrado.

Já a partir do seculo XVI foram trazidos para o B ra s i 1

escravos africanos. O filho de escravos era nada mais que o

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l J

1 7

"maleque" ou, no sentido da mentalidade da ~poca, a "c~ia" de

que se necessitava em grande número para suprir a mão-de-obra

escrava. A menina negra, al~m de escrava, servia, já a partir

rie doze, treze anos, à iniciação sexual dos meninos das Casas-

Grandes, filhos do senhor de escravos, ou ao tratamento de ho

mens sifilíticos que acreditavam na cura dessa doença pelo in

tercurso sexual com meninas púberes. O menino filho de escra

vos era, na expressão de Gilberto Freyre,4 o "leva-pancada.6" do

menino branco. Era como seu brinquedo e, na verdade, usado co

mo tal. Muitos, meninos ou meninas, subiam às Casas-Grandes e

aí eram criados como se fossem da família (e muitas vezes o

eram: o senhor com a escrava ... ). Correndo, brincando ou sen

tados a mesa de refeições com os demais, quadriculavam de pr!

to e branco as Casas-Grandes. Recebiam o mesmo tratamento, os

mesmos dengos e mimos que eram dados aos filhos do senhor, com

partilhando da casa, dos programas, dos passeios, etc. Esse

costume estendeu-se até o século XIX. Em 27 de setembro de 1837,

o Padre Lopes Gama escreveu no seu jornal "O Ca~apucei~o" algo

sobre a má educação dos filhos e das "c~ia.6" dentro de casa.

Tomados para criar por solteironas ou senhoras já velhas que

os mimavam em excesso e faziam-lhes todas as vontades,esses fi

lhos de escravos, nascidos nas Casas-Grandes, cresciam sem no

ção de limites, quebrando tudo dentro de casa, dormindo sobre

as pernas da "yayã" gorda antes de i r para a cama, já com sete,

oito anos de idade. Padre Gama escreveu: "Eu conheço huma ~e.6

4 FREYRE, Gilberto. Op. cit., p.336.

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18

peitavel Sybilla que c~eando huma neg~inha, que hoje te~~ 04

4eu4 14 al1n04, e4ta não vai de noite pa~a a cama 4em que p~imei

~amente 4e deite no ~egaç.o da 4ua "yãyá go~da", que e4ta lhe vá

dando t~inco na ca~apinha (que he huma g~axa de pomada) e 6~

zendo mecha4 do ve4tido da pateta, e chupando-a4 até ado~me

ce~~ Aqui Ira po~ca~ia, má c~iaç.ão, e de.6a60~0."

Muitos autores se referem ã suavidade da escravidão no

Brasil, especialmente quando comparada ã de outros países do

norte. John Luccock pôde testemunhar escravos recusarem vol

tar para a .n:frica ou receberem alforria no Brasil. "Vua4 meni

na4, e4pecialmente, além di440 ~eCU4a~am i~ pa~a a Inglate~~a,

ob4e~vartdo: "Vi44e~am-n04 que a Inglate~~a é muito 6~ia e n04

não g04ta~em04 de l~; e o que 6a~em04 nÓ4 da libe~dade aqui?

Temo4 tudo aquilo que podem04 de4eja~, o 4enho~ n04 60~nece ~ou

pa4 e comida e, 4e adoecem04, o 4enho~ n04 d~ ~emédi04 e n04

cu~a; ma4 4e 6ica~m04 libe~ta4, ninguém cuida~á de nÓ4.,,5

Charles Expilly que esteve no Brasil no início da segu~

da metade do seculo passado, narra na dedicatória do seu livro

"Mulhe~e4 e CO.6tume.6 do B~a.6il", o discurso de despedida da

mãe-preta de sua filha, nascida no Brasil. Antes de separar-se

da família que naquele momento voltava para a França, murmurou

ao ouvido da criança, pedindo entre lãquimas, que nunca esqu~

cesse daquela que todos os dias a embalara nos braços e a fize

5 LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes Meridionais do Bra­sil, tomadas durante uma estada de dez anos nesse pais, de 1808 a 1818. Sao Paulo, Biblioteca Ristorica Brasileira, X, Llvrarla Martlns, 1942. p.392.

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1 9

ra adormecer no seio. E se algum dia fosse rica que a compra~

se para somente a ela pertencer.

Não se pode, contudo, imaginar que ser escravo no Brasil

era sempre suavidade. Os horrores e crueldades da nossa escra

vatura impressionaram o mesmo Expilly. Não era sempre que o

negrinho, filho do senhor com a escrava vivia na Casa-Grande,

feliz a correr e brincar com os irmãos brancos. Muitos eram vendi

dos como "c.abe.ç.a.6 inúte.i.6 ou noc.iva.6 do Jte.banho humano,,;6 ou

tros, chicoteados pelo feitor, como os demais escravos; outros

eram simplesmente desprezados, mesmo livres. Expillyescreveu:

"A le.i Jte.c.onhe.c.e. a.6 aptidõe..6 do home.m de. c.OJt paJta pJte.e.nc.he.Jt 0.6

e.mpJte.go.6 do gove.Jtno. No.6 mai.6 mai.6 alto.6 c.aJtgo.6 e.nc.ontJtam-.6e.mu

lato.6, ê ve.Jtdade.. Ma.6 a le.i e. o pJte.c.onc.e.ito .6ão doi.6 pode.Jte..6

be.m di.6tinto.6, que. ê pJte.c.i.6o não c.on6undiJt.,,7 O preconceito no

nosso Brasil escravocrata mantinha de pé uma barreira que a

própria constituição, no século XIX, procurava eliminar. O mes

tiço rico, general, deputado, comendador era reconhecido por

todos mais não desejado como genro nunca! Irmãos de cor dife

rente tinham os mesmos direitos perante a lei mas, entre si,

ma n t i n h a m r e 1 a ç õ e s de s u p e r i o r p a r a i n f e r i o r . A 1 é m d i s s o ornes

tiço tinha que suportar sentimentos de aversão da esposa legi

tima do seu pai que não tolerava o fato de seus filhos legíti

mos terem que dividir com "iJtmào.6 tOJttO.6" a herança do patria.!:.

ca. Quando a cri ança era fruto da rel ação de uma mul her branca

6 EXPILLY, Charles. Mulheres e Costumes do Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1935.

7 I d. i b i d ., p. 279 .

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20

com um escravo era pior ainda. Prova de um escândalo, seu des

tino era a morte ou a escravidão. Expilly conta que, num des

ses casos, a criança foi jogada num chiqueiro pelo marido (trai

do) e a mae morreu três dias depois entre os escravos. Em ou

t r o c a s o, a m u 1 h e r deu ã 1 u zum f i 1 h o m o r t o (d e ta n tas urra que

levou do pai) e o escravo morreu lentamente sob o chicote. Al

gumas mulheres (de famílias mais "c.ompJte.e.n.6..tva.6") guardavam sua

reputação após gerar uma criança mulata: o filho era entregue

ã escravidão, a maternidade era atribuiàa a uma negra e a famí

lia livrava-se do escândalo e mantinha a filha honrada. 8

A escravidão no Brasil, enfim, nao deve ser pensada sem

que se considerem seus diferentes efeitos. A criança filha de

escravos pOdia ser feliz e mimada, criada pela "ljãljã gotuJ.a" co

mo ter triste destino quando fruto das relações entre brancos

e negros ou mesmo quando nascida nas senzalas onde muitas vezes

era largada pela mãe, no berço, esteira ou rede quando tinha

que amamentar o filho da sinhã. Algumas crianças largadas nas

senzalas, quando ainda muito novas, terminavam por ter a forma

ção craneana deformada por permanecerem muito tempo na mesma

posição. Gilberto Freyre cita um fato, contado por Brandão J~

nior, a respeito de um fazendeiro no Maranhão "que. obJt..tgava a.6

ma, no 'te.jupabo', me.tido.6 at~ o me.io do cOJtpo e.m bUJtaco.6 paJta

e..6.6e 6im cavado.6 na te.JtJta",9 de modo que, imobilizados não p~

dessem engatinhar para locais perigosos.

8 Ibid., p.438-9. 9 FREYRE, Gilberto. Op. cit., p.359.

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21

A reaçao da criança negra ou mestiça contra a Casa-Gran

de ou contra os sobrados das cidades viria a aparecer com fre

quência no decorrer do século XIX, encarnada na figura do mula

to. Menino pobre, nascido em cortiço ou mucambo, filho de ex-

escravos ou imigrantes, desde cedo "ganhava a Jtua" onde apre!!

dia a viver e acumular experiências e onde também expressava a

sua raiva pela condição de pobreza em que vivia, praticando lia

tJtave~~uJta, o Jtoubo de 6Jtuta~ do~ ~Zt~o~ do~ ioJtde~, o ówúo de

doce e de boio do~ tabuie~Jto~ da~ 'ba~ana~' e da~ qu~tanda~do~

poJttugue~e~, a~ pedJtada~ na~ v~dJtaça~ do~ ~obJtado~, a caJt~cat~

Jta de muJto e de paJtede onde eJta, mu~ta~ veze~, o muirnnho, mw

a6o~to que o pJteto, quem Jt~~cava a caJtvão ou me~mo a p~che, ~~

6adeza~, de~enho~ de 5Jtgio~ ~exua~~, caiunga~ ob~ceno~, pai~

vJt5e~II,10 quando nao deixava junto aos muros e umbrais dos por

tões alguns "dep5~~to~". O moleque escravo, nascido e criado

em engenho ou fazendas, envolvido pela relação senhor X escra

vo, em que o convívio próximo e mais íntimo acontecia, não de

senvo1via esse tipo de comportamento, restrito que estava aos

limites da fazenda e do engenho e sem a vivacidade e experiê!!

cia que o mulatinho de rua acumulava.

Nas Casas-Grandes ou sobrados urbanos as crianças eram

criadas praticamente pela negra africana, a mãe-preta, que fez

penetrarem, nas famílias brasileiras de boas condições sócio­

econômicas, muitos dos costumes de sua origem e de sua raça.

O corpo da criança havia de ser protegido não só de doenças mas

10 Ibid., p.607.

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tamb~m de "mau-olhado" para o que se fazia um sem numero de fei

tiços, até hoje não totalmente descartados. A sua educação ti

nha no medo um dos mais importantes recursos. Não faltavam pe.!:.

sonagens terríveis e monstruosos para lembrar ã criança os seus

limites. Surgiam de toda parte - das praias (o homem-marinho), do

mato (o saci-pererê e outros), dos riachos (a mãe-d'água), da

b e i r a dos r i os (o s a p o - c u r u r u ) . 1 1 P o d i a s e r sim p 1 e s me n te" o b:{

cho", legado indígena, derivado, como vimos, do "JuJtupaJt-t". E~

se recurso não parece ter sido eliminado. Continua fazendo pa.!:.

te de uma "pedagog-t~ ma"-g-tnal" muito forte. "Olha que o b-tcho

;te pega" é uma frase que escutamos ainda hoje com muita frequê!!.

cia e que não é privilégio de uma determinada classe social.

Pedagogos, psicõlogos e pais "ilu~;tJtado4" certamente condenam

esse costume tão prejudicial ao bem-estar psicolõgico da crian

ç a ...

A criança branca era amamentada pela mãe-preta (com ra

ríssimas exceções a mãe o fazia) que também cuidava do seu cor

po, sua higiene, ensinava-lhe a falar, contava-lhe histõrias e

ensinava-lhe as coisas da vida (era severamente castigada qua!!.

do ensinava o que não devia). No século XIX, médicos,parlame!!.

tares e educadores trataram de condenar essa intimidade, com

vistas a eleger um novo tipo de relação como a que veremos adian

te neste trabalho.

A criança branca roubava muitas vezes dos negrinhos da

senzala a ternura, o leite e os cuidados maternos (vimos acima)

11 Ibid., p.328.

I

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23

pois ocupavam a escrava o dia inteiro. A amamentação pela es

crava foi um costume trazido de Portugal. Para alguns autores,

as mães brancas brasileiras não amamentavam seus filhos por

questões da moda; para outros, por impossibilidade fisica uma

vez que se casavam muito jovens, algumas sendo mães aos doze

anos de idade. Para alguns higienistas portugueses da epoca a

questão era medica: o leite da mulher negra era mais forte e

mais saudável. O fato era que a criança branca ".6ugava" a mãe-

preta por inteiro.

Os cuidados com o corpo da criança misturavam crendices

e recomendações medicas. Nas senzalas, a negra africana tinha

o costume sagrado de apertar o ventre e amassar o nariz e a ca

beça da criança recém-nascida, coisa que havia de ser vigiada

rigorosamente para que nao fosse praticada nos filhos das si

nhás, nem com os próprios, cuja morte significava perda de cria

e de capital para o senhor de escravos.1 2

A mortal idade infantil era assustadora. As receitas medi

cas da epoca, juntamente com os hábitos e crendices dos negros

e inaios davam sua grande contribuição aos altos indices (de

quase cinquenta por cento): "c.hã.6 de peJtc.evejo.6 e de exc.Jtement:o

de Jtato paJta de.6aJtJtanjo.6 ~nte.6t~na~.6; moela de ema paJta d~.6.6o

lução de c.ãlc.ulo.6 biliaJte.6; uJtina de homem ou de bUJtJto, c.abelo.6

queimado.6, pÔ.6 de e.6teJtc.o de c.ão, pele, 0.6.60.6 e c.aJtne de .6apo,

lagaJtt~ x.a, c.aJtang uej 0.6, etc.". 1 3

12 Ibid., p.362. 13 I b i d ., p. 364.

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24

Muitas crianças morriam, escreveu John Luccock, "pOI!. c.a~

~a demalle.il!.a~.impl!.ópl!..ia~detl!.atal!..denegl.igênc..ia. ou .indul

gênc..ia dano~a, 61!.equentemente m.i~tul!.ada~ uma c.om a outl!.a. Veve

-~e levaI!. tamb~m em c.onta a .idade pl!.ematul!.a em que a~ pe~~oa~

nova~ de.ixam j~ de ~el!. c.on~.idel!.ada~ c.omo c.1!..iança~. E, ~ d~

lol!.o~o ac.l!.e~c.ent~-lo, u~a-~e do~ me.io~ da ma.i~ ba.ixa e~p~c..ie a

6.im de .imped.il!. o na~c.imento de c.1!..iança~, ~endo que o .in6ant.ic.I

14 d.io não ~ de 6ol!.ma alguma I!.al!.o." A morte da criança pequena,

contudo, não tinha, no Brasil colonial, o sentido que para nós

tem hoje. Derivado de uma idealização da criança, identifica

da com o anjo católico (fórmula que, como vimos, foi inventada

pelos jesuitas) havia-se generalizado o sentimento de que era

uma felicidade a morte de uma criança pequena. John Luccock re

latou o seguinte fato: num funeral de uma criança ouviu-se a

mae exclamar: "O como e~tou 6el.iz! O c.omo e~tou 6el.iz, po.i~

que mOl!.l!.eu o últ.imo do~ meu~ 6.ilho~! Que 6el.iz que e~tou~ Qu.a.~

do eu mOl!.l!.el!. e c.hegal!. d.iante do~ pOl!.tõe~ do céu, nada me .imp~

d.il!.~ de entl!.al!., po.i~ que al.i e~tal!.ão c..inc.o c.1!..ianc.inha~ a me I!.o

deal!. e a puxal!.-me pela ~a.ia e exc.lamando: entl!.a mamae, entl!.a!

O que 6el.iz que ~ou!,,15 Como se tratava de uma concepçao gen!

ralizada, a exclamação dessa mãe não podia, segundo Luccock,

ser intepretada como um desequilibrio mental passageiro. Horr~

rizado, o viajante inglês acrescentou: "não po~~o tel!. uma opi:

n.ião boa ~obl!.e o 6utul!.o de um e~tado onde a~~.im ~e

14 LUCCOCK, John. Op. cit., p.29. 15 Ibid., p.80. 16 Ibid.

Na Inglaterra

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1

25

do século XVIII em que nasceu, já nao pôde Luccock observar coi

sas parecidas. Foi preciso que Phi1ipe Aries viesse nos mos

trar que esses "ma.t.6 bOJtte..6 laç.o.6 do.6 .6e.Jte..6 de..6te. mundo" têm

também a sua história, o seu nascimento, não sendo portanto eter

nos, como pensava Luccock, natural de um pais em que, na sua

época, esses laços já existiam com a força e o sentido que, no

Brasil, só viriam a possuir mais tarde, quando não mais pod~

ria testemunhar.

A higiene infantil, no Brasil colonial, era marcada por

grande influência dos costumes indígenas e africanos. rndios e

escravos, bem adaptados ao clima, tiveram muito o que ensinar

aos portugueses. Destes, nos primeiros tempos da colonização,

muitos levavam os filhos ã morte, cobrindo-os inconvenientemen

te de agasalhos ou privando-ps de banho e ar livre. A pa rt i r

da segunda metade do século XVI os índices de mortalidade in

fanti1 diminuíram mas não deixaram de ser altos. A partir do

século XVIII começaram a preocupar mas so no final do século

XIX a mortalidade infantil foi objeto de estudo medico rigor~

so, como veremos adiante. Medicos e higienistas foram os pr1

meiros a se preocupar com a morte prematura das crianças poiS

os pais não se alarmavam uma vez que, como vimos, era uma fe1i

cidade a morte das crianças. Somente quando mãe e filho se li

garam para viver uma relação orientada por medicos e higieni~

tas do século passado, relação em que a criança ficou em evi

dência para ser conhecida, protegida e controlada, e preparada

p a r a um f u t u r o p r o m i s s o r e p r o d u t i vo, e que a se p a r a ç ã o po r mo..!:

te ou outras causas, passou a doer tanto quanto nós sabemos (e

sentimos).

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26

Sobre a vida das crianças dentro de casa, Luccock obser

vou, no início do século XIX: ... "tanto men.ino.6 C.01lJ0 men.ina.6

v.ivem a tkançak nu.6 pela c.a.6a, at~ que at.injam c.ekc.a do.6 c..inc.o

ano.6, e dUkante tk~.6 a quatko a.inda, ap5.6 e.6.6a .idade, nada ma.i.6

U.6am do que a koupa de ba.ixo. t vekdade que ne.6.6e e.6tado .60

a.6 veem a.6 pe.6.6oa.6 de c.a.6a ou 0.6 am.igo.6 Znt.imo.6; quando, em ka

toda a eleg~nc..ia kZg.ida de uma epoc.a que ji pa.6.6ou; n~o hi d.i

6ekença, .6alvo na.6 d.imen.65e.6, entke 0.6 tkaje.6 de um kapaz que

6az POUc.o adqu.ik.iu o gakbo v.ik.il e 0.6 de .6eu pa.i, entke 0.6 de

. d . t - ,,17 uma men~na e 0.6 e .6ua maje.6 O.6a mae. E extremamente inte

ressante observar mais uma vez a semelhança dos costumes brasi

1 e i r os d e e n tão c o mos c o s t um e seu r o p e u s r e 1 a t i vos a o t ra to da s

crianças antes da era clássica, como nos mostrou Philipe Aries.

Por isso, o espanto do inglês.

Ate a primeira metade do século passado, as crianças bra

sileiras de boas condições econômicas, em geral, não frequent~

vam escolas, ou por falta destas ou pela idéia de que não eram

apropriaàas ã criança altiva e delicada ... Sua e d u·c a ç ã o e r a

dada dentro de casa, por sua mãe ignorante e pelos escravos,

restringindo-se basicamente aos hábitos da cerimônia e do for

malismo que escondiam, por sua vez, toda espécie de vilanias que

praticava. Muitas crianças foram alunas de professores port~

gueses que vieram para o Brasil e aqui trabalharam como caixei

ros, tomando os filhos de seus fregueses como alunos. Quando,

17 Ibid., p.79.

f i I i I I

I ! I i

I I I

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I I I t I I I

27

na segunda metade do século, as crianças foram mandadas a esco

la em maior número, Fletcher, viajante norte-americano, escre

veu: "A mãe. bILa..6-i.le.-i.ILa. qua..6-i. -i.nva.IL-i.a.ve.lme.nte. e.ntILe.ga. .6e.u 6-i.lho

a. uma. pILe.ta. pa.ILa. .6e.IL eIL-i.a.do. A.6.6-i.m que. a..6 eIL-i.a.nça..6.6e. tOILna.m

mu-i.to -i.ne5moda..6 a.o eon60ILto da. .6e.nholLa., .6ão de..6pa.eha.da..6 pa.ILa.

a. e..6eola.; e. eo-i.ta.do do poblLe. pIL06e..6.6oIL que. te.m de. -i.mpOIL-.6e. a.

e..6.6e. e..6p~e-i.me. -i.ILILe.qu-i.e.to do g~ne.ILo huma.no! Aeo.6tuma.do a. dom-i.

pa.-i..6, me.te.-.6e. na. ea.be.ça. tudo pode.1L e. de.ve.IL 6a.ze.IL pa.ILa. 6ILU.6tILa.IL

1 1 . + d" O' - o ,,18 Ch 1 E . 11 0.6 e..6 DOILÇO.6 ue.~~O.6 pa.ILa. ~.6e~p~~na.-~o. ar es Xpl y es

creveu sobre o caso de uma menina de gênio insuportável, mima

da pela mãe viuva e principalmente pelo avô. Era filha única

e estava acostumada a ter suas vontades satisfeitas de pronto.

Um dia quis um coco e exigiu que seu avô subisse no coqueiro

para tirá-lo. -Como o avo negou, teve um acesso de cól era,

seguido de convulsões, até que ficou em estado de p ros t r~

ção completa. O coração e o pulso pararam. O médico deu-a

por morta. O funeral foi feito na ausência da mãe que desmai~

ra e não havia admitido a morte da filha. A noite, acompanh~

da da mucama e escondida de todos, foi ã Igreja onde estava o

corpo da filha; tirou-o do ataúde e manteve-o nos braços. O avô

que em dado momento percebera a fuga da filha,surpreendeu-a na

Igreja agarrada ã criança. O escravo que o acompanhava tentou

arrebatar o corpo da menina; a mucama enfiou-lhe as unhas no

rosto. O sangue escorreu pela face do escravo que de repente

largou a criança, recuou e caiu de joelhos - a menina abrira os

18 KIDDER, D.P. & FLETCHER, J.C. O BILa..6-i.l e. 0.6 B!La..6-i.le.-i.ILO.6. são Paulo, Com panhia Editora Nacional, 1941, p.180-l.

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I 1

28

olhos! Havia tido um ataque de catalepsia. A mãe esclamava:

"Eu Linha c.e.Jt.te.za de. que. Nhanhã não e..6.tava mOJt.ta! E me.6mo que

o e..6.tive.6.6e a San.ta ViJtgem ma Jte.6.ti.tuiJtia.,,19 Como terá segui

do o curso de vida dessa criança? Se era mimada antes, como

terão respondido, após esse drama, aos seus novos caprichos?

A professora alemã Ina Von Binzer que esteve no Brasil

nos anos de 1881 a 1883, trabalhou em são Paulo, em 1882, na

casa de uma fami1ia brasileira cujos meninos tinham a fama de

serem os mais mal educados da cidade. Escreveu a professora um

dia: "Se um de.f..e.6 dá. uma Jte.6po.6.ta eJtJtada o ou.tJto in.tJtome.te-.6e

c.oJtJtigindo-o c.om vivac.idade, ao que o pJtimeiJto Jteage mai.6 Jtá.P:5::

do que um Jtaio, a go.f..pe.6 de Jtigua; e a.6.6im, inic.ia-.6e uma .6e

Jtia de.6avença e não uma .6imp.f..e.6 Jtu.6ga que, paJta mim, .6eJtia 6ª c.i.f.. de apaziguaJt, .6e nao .6e man.tive.6.6e .6empJte a me.6ma

dia en.tJte 0.6 iJtmão.6. Ou.tJto dia c.Jtiei c.oJtagem e pU.6 .6imp.f..e.6men

.te o mai.6 moço 60Jta da .6ala, o que me paJtec.e a.f..iá..6 o meio mai.6

pJtá..tic.o. FaJtei o pO.6.6Zvel paJta c.on.tinuaJt aqui; vou ~6oJtçaJt-me

paJta me.f..hoJtaJt e.6.ta.6 pobJte.6 c.Jtiança.6 .ta.f.. ma.f.. educ.ada.6; não 6ic.~

Observou a professora em

outra ocasião que os pais desses meninos não se incomodavam em

absoluto com o seu comportamento, nem mesmo quando almoçavam

em cima, cada um, do seu velocípede, dando voltas ã mesa,entre

um bocado e outro. Um dia, porem, o pai mandou-os para o co1~

gio, para serem educados pelos padres. Houve um motivo: na fes

19 EXPILLY, Char1es. Op. cit., p.54-7. 20 BINZER, Ina Von. Alegrias e Tristezas de uma Educadora Alemã no Bra­sil. São Paulo, Editora Anhembl Ltda., 1956. p.79.

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J

I I 29 i

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I I

ta de são João os dois "anjinho.6" atiraram fogos contra as p!

tas de burros que puxavam bondes, provocando a queda de um de

les que por jsso teve a perna quebrada. O pai teve que pagar

o preço do burro e os meninos foram "de.6pac.hado.6" para o cole

9 i o • I Numa fazenda na Bahia, Charles Expilly teve ocasião de

conhecer dois meninos filhos de um fazendeiro. Viu-os em tra

jes costumeiros (como preparados para um baile na opinião do

autor), de casacas negras e gravatas brancas. O mais moço de

dez anos de idade, cumprimentou Expilly com a maior seriedade,

com ar grave e importante. O francês, já acostumado com o no

vo tipo de comportamento infantil que teve lugar na Europa a

partir do seculo XVII, diante de tanta formalidade, escreveu:

"Como uma blu.6a ou um .6imple.6 c.a.6ac.o te~ia .6ido p~e6e~Zvel pa

~a aquele menino~ Ma.6 eu não o igno~ava: no B~a.6il a c.~iança

é de.6pida da g~aça natu~al da idade, c.ujO.6 enc.anto.6 lhe .6ão ~e

c.u.6ado.6. Ela não c.onhec.e a.6 emoçoe.6 do pião, nem o exe~c.Zc.io

.6aluta~ da.6 ba~na.6. Fic.ania 06endida .6e .6e lhe de.6.6e um pol~

c.hinelo ou um tambon. Em luga~ de bninc.a~ de .6oldado c.om 0.6

.6eu.6 c.ama~ada.6, de de.6envolve~ a .6ua 60~ça em pleno c.ampo, de

negne.6.6a~ ã c.a.6a, muita vez, c.om a c.alça ~a.6gada, o nO.6to a~~a

nhado ou inc.hado ma.6 de 6ac.e.6 c.o~ada.6 e 0.6 olho.6 b~ilhànte.6 de

.6aÚde, vive embuçada numa noupa pneta 6eita ã última moda, en

.6ina-.6e-lhe a c.o~teja~ .6egundo 0.6 ~igono.6o.6 pninc..zpio.6." E mais

adiante: "Vive-.6e em pne.6ença de pequeno.6 man.cquin.6

mente en6atiotado.6 (c.omo 0.6 que .6e enc.ontnam na.6 vitnine.6 do.6

21 EXPILLY, Charles. Op. cit., p.375.

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1 1

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30

alóa~ate~ e no~ ó~9u~~no~ de moda~), boneco~ de mola que u~am

9~avata~ ~~~~a~, que pedem, com uma voz e~tudada, notZc~a~ da

no~~a ~aúde, que ~e mat1t~m adm~~avelmente l1a~ ~ua~ cade~~a,~, em

vez de ~alta~ ao~ no~~o~ joelho~, de ama~~ota~ O~ no~~o~ cha

peu~, e de p~ocu~a~ 9ulo~e~ma~ na~ no~~a~ al9~be~~a~.,,22

E s t e e r a o p r o t ó t i p o dom e n i no b r a n c o no B r a s i 1 Co lo n i a 1 .

Expilly escreveu em seguida que só havia criança entre os ne

gros - por não vestirem casacas, por não terem os hábitos e a

formalidade dos brancos? Afinal, eram os negrinhos b ra s i 1 e i

ros semelhantes às crianças livres da Europa? Expilly não ch~

gou a ver a criança branca ficar rosada no Brasil e fazer tudo

aquilo que ele reivindicou como sendo os direitos da criança

ou sua "9~aç.a natuJz.al". Mas i sso aconteceu ma i s ta rde. E a

nossa criança de hoje; e a criança pobre, negra, descendente

distante dos escravos, continua sendo criança mas,aquela à qual

tudo falta, aquela que e carente, que e diferente, que se dis

tancia do modelo e o modelo e o da criança branca, da família

burguesa da nossa sociedade.

o menino branco, nos tempos da escravidão era, a partir

dos cinco anos o "men~no-d~abo,,23, sádico, malvado, (embora e!

tremamente bem educado nas situações de cerimônia, como vimos).

Suas vítimas preferidas eram evidentemente, os animais, as me

ninas e os moleques, filhos dos escravos, seus companheiros de

a Ibid., p.376.

23 FREYRE, Gilberto. Op. cit., p.368.

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I 1 1 t I j

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31

brinquedo (ou 6eu b~inquedo). Os seus jogos de maldade imita

vam as crueldades dos senhores com os escravos. Eram admirados

pelos pais, por isso; as vezes até estimulados. Mesmo depois

de abolida a escravidão, a prática desses jogos continuou, re

produzindo ainda durante muito tempo as marcas do sistema es

c ra voc ra ta.

Sua atividade sexual era precoce. Iniciada de forma sa

dica com moleques e animais domésticos, encontrava posterio.,!:.

mente o objeto favorito e prazeiroso: a negra ou a mulata. Es

tas foram, geralmente, responsabilizadas "pela antecipaç~o da

vida e~ôtica e pelo de6b~agamento 6exual do ~apaz bka6ilei~0.

Com a me6ma lógica deve~iam ~e6pon6abiliza~-6e 06 animai6 do

me6tic06; a bananei~a; a melancia; a n~uta do mandaca~u com o

6eu vi6go e a 6ua ad6t~ingência qua6e de ca~ne. Que tod06 nOkam

objet06 em que 6e exe~ceu - e ainda 6e exe~ce - a p~ecocidade

6exual do menino b~a6ilei~o"24, escreveu Gi lberto Freyre em "Ca

sa-Grande e Senzala". Na verdade, os pais estimulavam a forma

ção de um "ga~anh~o". A figura do donzelo não alegrava a ne

nhum senhor de escravos que mais queria o seu filho deflorando

e engravidando as escravas - aumentando-lhe, enfim, o capital.

Cercado de dengos e mimos exagerados durante a infância, o me

nino brasileiro quando não ficava efeminado era garanhão. Re

produzia os bens paternos nas ba rri gas da s escravas e era, por

sua vez, o futuro pa tri arca, pai de um sem numero de filhos, fr~

tos de as vezes até q ua t ro casamentos com donzelas de doze anos

de idade. Era menino até os nove, dez anos. A pa rt i r daí e apos

24 Ibid., p.371.

I ( I

1

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I

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I 1 J

32

tirada a foto de primeira comunhão, era rapaz. Vestia-se e agia,

então, como homem. Cedo aprendia a fazer as quatro operações,

a recitar em francês, a declinar em latim (muitos com apenas

sete anos de idade) mas, ate os dez anos não deixava de ser o

"menino-diabo". Juntamente com os moleques aprendia a ler, es

crever, fazer conta e rezar, em salas, para isso reservadas,

dentro das Casas-Grandes. Ensinava-lhe o capelão ou mestre

particular. Onde não houvesse mestre, meninos brancos e escra

vos cresciam analfabetos. Nos colégios dos jesuítas que, no

início da colonização, era o que se tinha de atividade educati

va no Brasil, os negros não tinham vez. No início do

XIX, os colégios que existiam eram mal instalados, mal

s éc u 10

assea

dos e negligentemente tratados; e os meninos dentro deles ...

"nio ap~e~entavam nenhuma ela~ticidade de e~pl~ito, nenhuma cu

~io~idade ~agaz, nenhuma u~banidade de manei~a~ e pouqul~~imo

a~~eio pe~~oal"25 na opinião de John Luccock que visitou o Co

légio de São Jose, perto da Rua da Ajuda, na primeira metade

do seculo passado. Ainda sobre a visita, Luccock acrescentou:

"Examina~am-no~ com um pa~mo e~t~pido, demon~t~ando, ao que W~

pa~eceu, a in6luência da igno~ância de~põtica ~ob~e a~ 6o~ça~

que ela p~etende cultiva~." Ao ~ai~mo~ dali, e~t~vamo~ todo~

p~onto~ a dize~: "nenhum ~aio de ciência jamai~ penet~ou aqui."

Na segunda metade do século XIX, com a construção das es

tradas de ferro, internatos e externatos particulares multipli

caram-se nas cidades e os meninos do campo tambem frequentava~

-nos. Hospedavam-se com comissários do açucar e do café que,

25 LUCCOCK, John. O °t 49 p. C1 ., p ..

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1

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1 1

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33

para muitos, foram o segundo pai. Os internatos, especialme~

te, haveriam de ser alvo dos higienistas da época quando mora

lidade, higiene e sexualidade tornaram-se problema médico, as

sunto para especialista tratar e regular, como veremos

te. Aquela sexualidade solta de outrora, aquela vida

adian

amo ra 1

dos meninos, precoces na atividade sexual, tendo prazer com fru

ta, animal, moleque e mulher, entraria para os livros e have

ria de ser tratada cientificamente, sob a orientação;.hjgiênl

ca.

Nos colégios os meninos aprendiam o que era "~ai~ da li

nha". O professor, verdadeiro senhor de escravos, usava de va

rios recursos para punir os alunos: punha o menino de braços

abertos, ou humilhava colocando chapéu de palhaço na cabeça de

quem desse risada, ou ainda ordenava a um coitado que ficasse

de joelhos sobre grãos de milho. Batia com a palmatória ou e~

petava a barriga da perna do menino com uma vara de marmelo que

tinha, para esse fim, um espinho enfiado na ponta. Beliscava,

puxava as orelhas, dava bordoadas nos dedos, especialmente du

rante os exercícios de cal igrafia que Gilberto Freyre assim de~

creveu: "O me.nino c.om a c.abe.ç.a pa~a o lado, a ponta da l1.ngua

de. 6o~a, numa atitude. de quem ~e. e.~6o~ç.a pa~a c.he.ga~ ã pe.~6e.i

ç.ao; o me~t~e de lado, atento ã p~imei~a let~a g5tic.a que ~a1.~

~e. t~onc.ha."26

Em casa era a mesma coisa. Quando na fase de "me.nino-

diabo", entre os cinco e dez anos, o menino só apanhava menos

26 FREYRE, Gilberto. Op. cit., p.419.

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34

-que o escravo. "EJ!.a c.a.6.:tigado pelo pai, pela mae, pelo avo, p!

la avó, pelo padJ!.inho, pela madJ!.inha, pelo .:tio padJ!.e, pela .:tia

.601.:teiJ!.ona, pelo padJ!.e-me.6.:tJ!.e, pelo me.6.:tJ!.e-J!.égio, pelo pJ!.o6e!

d -. ,,27 F .6OJ!. e gJ!.ama.:t~c.a ,escreveu reyre. Nesta fase, símbolo de

tudo o que nao prestava, o menino era castigado com violência

e crueldade, e os mestres nos colégios tinham total permissão

para "óazeJ!. .6ua paJ!..:te" ... Os jesuítas, desde os primeiros tem

pos da colonização, tentaram apoderar-se, assim como fizeram

com as crianças indígenas, do menino branco das Casas-Grandes,

rivalizando com o pai no poder sobre aquele. O menino era for

jado, então, para ser o adulto religioso que fizesse penetrar,

mais tarde, dentro dos lares, a moral católica e os seus ensi

namentos. Nas mãos dos jesuítas, o menino tornava~se adulto

independentemente de sua vontade e da .6ua idade. O "menino-di!

bo", instintivo, vagabundo, preguiçoso era o alvo certo. Com

palmatória e vara de marmelo entrava na linha e voltava p'ra

casa pronto, homem feito, culto, precoce, estudioso,amante das

letras e, acima de tudo, religioso; vestindo, falando, pensa~

do e vivendo de modo diferente, urbano, "euJ!.opeizado", fazendo

com a família de hibitos rurais um contraste que o século XIX

havia de aprofundar para depois, aos poucos, amenizar, pela vi

tória de um sobre o outro.

Até fins do século XIX a disciplina ferrenha dos colégios

de padre manteve-se. O latim e a gramitica deixaram no corpo mu.:!,.

tas marcas. Além disso, a alimentação era preciria e as condi

27 I b i d., p. 68-9.

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35

çoes de higiene péssimas. Os colégios particulares e oficiais

que surgiram no século XIX nas principais cidades do Império

passaram a oferecer melhores condições de higiene, com apar~

lhos sanitários e banheiros instalados (nem sempre presentes nos

colégios de padre, geralmente isolados nas montanhas).

A menina, no Brasil colonial era criada para o casamento

que normalmente se realizava entre os doze e quinze anos. A

partir dos quinze anos de idade (quando muitas já eram mães)

nao ter casado era motivo para grandes preocupações por parte

dos pais e, aos vinte, sem marido, a moça era considerada sol

teirona. Isso porque, para a mentalidade da época, as mais ve

lhas já não teriam para os homens o mesmo sabor das meninotas

de doze/treze anos. Vale salientar que a idade dos maridos p~

dia variar entre trinta e setenta anos! Cedo esposas, também

muito cedo envelheciam as mocinhas do Brasil, no tempo da Colõ

nia. Já a partir dos vinte anos começavam um processo de deca

dência, e envelhecimento. A vivacidade e beleza das meninotas

de doze/treze anos, que tão cedo eram colhidas pelo casamento,

contrastava com a palidez, moleza e feiúra das mais velhas de

vinte anos. O casamento trazia a responsabilidade dos cuida

dos com a casa e com a prole, substituindo aos poucos o ar de

criança feliz e confiante pelo carãter de matrona corpulenta,

pesadona, mal-humorada. Muitas meninas morriam de parto aos

quinze anos de idade, deixando o filho que haveria de ser cria

do pela mucama.

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1

36

o marido nao era escolha sua mas, do pai que, por crité

rios econômicos e/ou políticos determinava-lhe o noivo, muitas

vezes sem que a filha o conhecesse. Era muito frequente, tam

bém, casamento entre parentes, especialmente entre tios e so

brinhas, cuja finalidade era estreitar os laços da família em

torno do patriarca, concentrar os bens, as propriedades e con

servar a pureza do sangue. Raramente, até a segunda metade do

século XIX (a partir daí com mais frequência), o casamento da

va errado. Gilberto Freyre refere-se a um caso ocorrido em

1860, em Pernambuco, de uma moça que fugiu nas vésperas de seu

casamento. O noivo era ilustre bacharel escolhido pelos pais

que, para remediar a situação, ofereceram a mão de outra filha,

o que foi aceito sem demora. 28

Não tinha problema. Casamento era negócio. Se uma filha

escapava, havia outra para negociar. Se era negócio, o que i~

portava era a mercadoria, não o sentimento. Na falta de uma,

outra, de igual valor. Excetuando-se os raros casos de paixão

que resultavam em fugas ou raptos, até a primeira metade do s~

culo XIX, a menina submetia-se sem problemas e sem questioname~

to. A escolha era feita, ela casava. Para isso caminhava sua

vida, para isso sua infância apontava; era a noiva do futuro,

possibilidade de negócios promissores.

A menina, nos tempos da colônia, devia ser acanhada, hu

milde. Sofria beliscões se respondia ou tinha comportamento

saliente. Não tinha liberdade de brincar, correr ao ar livre,

28 Ibid., p.340.

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! I I !

37

subir em árvores, saltar e pular, enfim, divertir-se e usufruir

da natureza, ultrapassando os limites da casa onde era quase

prisioneira. Quando sinhá, poderia custar-lhe a vida qualquer

insjnuação para o sexo oposto. Era motivo para ser assassina

da a mando do pai ou da mãe, ou ate mesmo pelas maos daquele.

O casamento substitula o tirano; no }ugar do pai, o. marido.

Aliás, o patriarca tinha de fato o poder de vida e morte sobre

esposa e filhos. como Dodemos ver nos relatos de Gilberto Frel

re em "Ca~a-Gnande e Senzala".

Meninas e mulheres, ate o fim do perlodo colonial, eram

muitas vezes colocadas em recolhimentos, onde se hospedavam du

rante a ausencia do pai, ou' marido. Essa prática respondia a

necessidade de alguns que não tinham quem olhasse por suas fi

lhas (ou mulheres), como tambem funcionava como castigo para

aquelas que merecessem corretivos. John luccock observou que

nesses recolhimentos havia uma grande mistura de idades, cara~

teres e objetivos das suas hóspedes, havendo inclusive senhoras

de "c.anâ.ten ..i.na.tac.â.vel" e de posição na sociedade que procur!

vam um lugar onde pudessem ficar durante a ausência do marido,

passando a conviver com "velha~ e moça~, ..i.noc.ente~ e C.OIULU.p.:ta,6,

moça~ de c.ol~g..i.o e pec.adona~ annepend..i.da~". Com indignação, es

c reveu : "Um pa...i. ..i.nglê.~ j ama..i.~ e~ c.olhen..i.a. ~ emelhante lugan pa

na 6..i.lha ~ua, nem ta..i.~ pe~~oa~ pana ~ua~ ccmpanhe..i.na~ e me~

tna~. Um man..i.do ..i.nglê..6 jama..i..6 ac.han..i.a que .6ua e.6po.6a e.6tan..i.a

al..i. ma..i..6 a c.obento de manc.ha monal do que Je entnegue ao pn.Q

pn..i.o ~en.6O daqu..i.lo que ela deve a .6..i. pnôpr~a, ao.6 .6eu.6 am..i.go.6

e ; .6oc...i.edade. Ma~ o~ bna.6..i.le..i.no.6 pO~.6ue~ pouc.a del..i.c.adeza de

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38

~entimento6; i9no~am qua6e que tudo da in6lu~ncia 6o~te e dom&

nante da6 cau6a6 mo~ai~".29 Sob o governo de D. Pedro 11, es

sa prática foi proibida, como observou Fletcher, que esteve no

Brasil entre 1851 e 1865, o que certamente diminuiria a indign~

ção de John Luccock, com a "pouca delicadeza de ~entimento~" dos

b ra si 1 e i ro s .

Histõrias, cançoes e coisas do amor, a menina do Brasil

colonial começava a conhecer através da negra mucama, sua mais

i n t i m a c o m p a n h e i r a, c Ü m p 1 i c e, i n c 1 u s i v e, nas f u g a s p a r a o a mo r ,

quando aconteciam.

A menina deixava de ser criança a partir do dia da prime!

ra comunhão quando então tornava-se sinhá-moça, sendo, a paE

tir de então, obrigada a vestir-se como senhora. Em muitos ca

sos, já no século XIX, crescia sem aprender a ler e escrever.

Quando aprendia, havia de ser com os padres que também ensina

vam-lhe coser, rezar e praticar a religião catõlica. John Luccock

testemunhou, no início do século XIX, o estado de reclusão e

ignorância em que viviam as mulheres: "

o 6abe~ le~ pa~a ela~ não devia i~ além do liv~o de ~eza6,poi6

que i~60 lhe6 6e~ia inútil, nem tão-pouco ~e de6ejava que uc~~

ve6~ em a- 6im- de que não 6ize66 em, como ~abiamente 6 e ob~~vava,

um mau u~o de44a a~te".30 Mesmo quando, na segunda metade do

século, as meninas começaram a frequentar escola, na quase to

tal idade dos casos os pais brasileiros faziam-nas cursar, ap~

29 LUCCOCK, John. O "t 48 p. C1 ., p ..

30 Ibid., p.75.

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39

nas alguns anos, uma escola dirigida por um estrangeiro para d~

pois retirá-las com treze ou quatorze anos, quando então eram

consideradas devidamente educadas e preparadas para a vida e o

casamento. Em 1881, quando se encontrava no Brasil a profess~

ra alemã Ina Von Binzer (sua estada aqui foi entre Rio e São

Paulo), ainda era costume educar as jovens brasileiras (mais

ricas) dentro de casa. Este era inclusive o meio de vida da

professora. Teve ela alunas numa fazenda do Rio de dezenove,

vinte e um e vinte e dois anos de idade, às quais devia diri

gir-se chamando-as de "Vona". Essas jovens já eram considera

das solteironas, o que espantou a jovem professora que tinha

apenas vinte e dois anos de idade. Quando em 1882 lecionou em

um colégio de meninas, Ina Von Binzer teve muitas dificuldades.

Considerava o comportamento das alunas péssimo, chegando a re 31 ferir-se as mesmas como um "bando de ~elvagen~". Sua colega

francesa prendia as mais exaltadas dentro de um armário até que

ficassem mais calmas.

A menina crescia, enfim, no Brasil Colonial, para viver

uma vida de mulher reclusa, que até para tomar ar fresco e sol

devia limitar-se aos jardins internos da casa. Até dentro de

casa ela se escondia, bastando que alguma visita masculina fos

se anunciada. A moça solteira, a vida reservava o convento ou

o quase enc1ausuramento na própria casa. A mulher casada era

o ventre gerador. O seu papel social e econômico era produzir

filhos. Seu corpo era preparado para isso. Fletcher conheceu

em Minas Gerais uma senhora que tinha vinte e quatro irmãos da

mesma mae.

31 BINZER, Ina Von. Op. cit., p.66.

I

I t

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1

40

De franzina e miúda nos tempos da meninice, a menina pa~

sava a gorda e moleirona nos tempos de casada. "PaJta o pJt.<.me.i

Jto t.<.po - o da v.<.Jtge.m pál'<'da - cald.<.nho~ de. p.<.nta.<.nho, água de.

aJtJtoz, conóe..<.to~, banho~ mOJtno~. PaJta o ~e.gundo - a upo~a go!!:

da e. bon.<.ta - ve.Jtdade.'<'Jto Jte.g.<.me. de. e.ngoJtda com mu.<.to me.l de. e.n

ge.nho, mu.<.to doce. de. go~aba, mu.<.to bolo, mu~ta ge.lê~a de. aJtaça,

mu~to pa~te.l, chocolate., toda a ~êJt~e. de. gulo~e..<.ma~ _Jt.{.ca~ que.

o~ cJton~~ta~ da ~oc.<.e.dade. patJt.<.aJtcal no BJta~'<'l notaJtam ~e.Jt Qon

~um~do~ ã laJtga pe.la~ ~e.nhoJta~ bJta~'{'le.~Jta~,,32, escreveu Gilber

to Freyre. A relação com o marido praticamente se restringia

ã relação sexual procriadora. A relação intelectual inexistia.

Nos assuntos de homem não podia meter-se. Os seus assuntos eram

os domesticos; os seus limites, os limites da casa. Para sair

ã rua devia ser acompanhada de um parente do sexo masculino. Era

uma vida de obrigações que contrastava com a vida cheia de di

rei tos dos homens os quais tinham os contatos sociais, as rela

ções politicas, as iniciativas e a liberdade, inclusive, sexual.

A mulher que buscasse o prazer na relação com outro homem jog!

va com a própria vida. Na relação com os filhos, sua influên

cia não ultrapassava os limites do sentimental pois, ignorante,

nada tinha para ensinar e, limitada a uma vida domestica, nao

sabia prepará-los para a vida. A da menina repetiria a vida

da mãe como a do menino continuaria a vida do pai, herdeiro que

era não só dos bens como dos mesmos direitos de liberdade, des

de que atingisse a idade adulta. Na intimidade, a mulher nos

tempos da Colônia mostrava-se desprovida de qualquer vaidade,

32 FREYRE, Gilberto. Op. cit., p.116.

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I 1 ~

1

I

41

em geral descalças ou de tamancos, aparentemente sujas, cabe

los compridos, normalmente despenteados, com fitas ou ramalhe

tes de flores artificiais sobre a cabeça, sem graciosidade nas

suas maneiras (duras) e suavidade na voz (em geral alta e ag~

da). Indolente, seu exercício físico restringia-se aos afaze

res domésticos para o que o esforço exigido era mínimo pois vl

via a dar ordens aos escravos e a ser servida por eles. John

Luccock narrou o que viu (estupefato) no Rio de Janeiro, na ca

sa de uma senhora que fora visitar pela manhã. Estava sentada

sobre uma esteira e ao seu redor havia muitas escravas que te

ciam e costuravam. "Em c.e.Jt.to mome.n..to .-i.n..te.JtJtompe.u a. c.on.ve.Jt-6a.

pa.Jta. gJt.-i..ta.Jt poJt uma. ou.tJta. e.-6c.Jta.va. que. e.-6.ta.va. e.m loc.a.l d.-i.üe.Jte.~

.te. da. c.a.-6a.. Qua.n.do a. n.e.gJta. e.n..tJtou n.o qua.Jt.to a. -6e.n.hoJta. lhe. d.-i.-6

-6e.: 'Vê.-me. o c. a. n.g.-i.Jtão , (este encontrava-se ao alcance da sua

mão segundo Luccock). A-6-6.-i.m o üe.z e.la., -6Ua. -6e.n.hoJta. be.be.u e. de.

volve.u-lho; a. e.-6c.Jta.va. Jte.c.oloc.ou o va.-60 on.de. e.-6.ta.va. e. Jte..t.{.JtOU--6e.

-6e.m que. pa.Jte.c.e.-6-6e. .te.Jt da.do pe.la. e.-6.tJta.n.he.za. da. oJtde.m, e.-6.ta.n.do .tal

ve.z a. Jte.pe..t.-i.Jt o que. já ü.-i.ze.Jta. m.-i.lha.Jte.-6 de. ve.ze.-6 a.n..te.-6. Ah~ m.-i.

n.ha.-6 -6e.n.hoJta.-6 pe.n.-6e..-i. e.u, n.ão há ma.Jta.v.-i.lha.Jt que. -6e. .toJtn.e.m c.oJtp~

le.n..ta.-6 e. -6e. e.-6.tJta.gue.m; -6ão e.-6-6e.-6 0-6 e.üe..-i..tO-6 n.a..tuJta..-i.-6 da. oc..-i.o-6.-i.

da.de.".33 As mulheres tinham muito gosto pelo jogo o que, na

opinião de Maria Graham, professora inglesa, era um recurso que

ti nham contra essa vi da ociosa: "Não me. a.dm.-i.Jto de.-6-6a. .te.n.dê.n.ua..

Se.m e.duc.a.ção e. c.on.-6e.que.n..te.me.n..te. -6e.m 0-6 Jte.c.UJt-60-6 do e.-6pIJt.-i..to e.,

n.um c.l.-i.ma. e.m que. o e.xe.Jtc.Ic..-i.o a.o a.Jt l.-i.vJte. ê de. .todo .-i.mpo-6-6Zve.l,

- ... ,,34 e. pJte.c..-i.-60 .te.Jt um e.-6.t~mulo •

33LUCCOCK, John. Op. cit., p.n. 34 GRAHAM, Ma ri a. V.-i.âJt.{.o de. Uma. V.-i.a.g em a.o l3Jta.-6il e. de. uma. E-6;tada. n.e.-6-6 e. Pa.X-6 du.Jtan..te. pa.Jt.te. dO-6 a.n.O-6 de. 1821, 1822 e. 1823. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1956, p.156.

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I 42

Luccock observou também no início do século, o mimo e a

adulação com que os maridos tratavam suas mulheres, vendo nis

so razoes para a impertinência e mau humor daquelas que, acos

tumadas a ver satisfeitos e até antecipados seus caprichos,de~

carregavam sobre os escravos suas raivas, muitas vezes de for

ma violenta e cruel, ocasião em que os musculos . se exe rc i ta

vam ... Suas ocupações em geral consistiam nos atos de fiar

algodão, fazer renda, bordar, fazer flores artificiais, prep~

rar doces e bolos e cuidar dos filhos. (cuidar, não educar).

Maria Graham teve oportunidade de conhecer duas mulheres

que foram objeto de sua admiração: uma do Rio de Janeiro se

nhora muito culta que lia bastante, especialmente filosofia e

política, além de entender de Botânica e pintar flores muito

bem; a outra, Maria Quitéria de Jesus, heroína baiana que se

destacou na guerra do Recôncavo, tendo que, para isso, disfar

çar seu sexo, vestindo-se como homem. Foi condecorada pessoal

mente pelo Imperador que lhe deu o posto de Alferes e a Ordem

d C . 35 o ru ze 1 ro .

Fossem em maior parte e o Brasil seria outro ... !

Quando, no decorrer do século XIX, a mulher começou a ter

uma vida social fora de casa, e a incorporar costumes e hábitos

europeus, sua vida mudou, embora, por muito tempo, apenas supe~

ficialmente. Por volta de 1857, quando aqui esteve o francês

Charles Expilly, apenas roupas e chapéus tornavam a mulher bra

35 Ibid., p.329-31.

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43

sileira diferente. Se soubesse ler e escrever corretemente,f~

zer doces, manusear o chicote, cantar, dançar e tocar piano,

jã se considerava sua educação completa. Suas aspirações nao

iam alénl nem seu marido desejava mais. Expillyescreveu: "O

homem do~ t~~pi~o~ n~o 6az muita que~t~o de en~ont~a~ uma alma

no in~t~umento do~ ~eu~ p~aze~e~. O ~eu ideal pode muito bem

~e en~anna~ na 6igu~a ale~tada de uma boa ama de leite".36 So

mente nos fins do século passado e inlcio deste, a mulher se

transformou por dentro tambem, ganhou nova subjetividade. Mui

to mais do que e~po~a passou a ser m~e e educadora, para isso

fazenao alianças (de que falaremos adiante) e, por isso, rever

tendo o quadro familiar brasileiro em que relações de poder in

teiramente novas tiveram lugar.

Com essas novas relações de poder, nasceram no Brasil a

família e a sociedade que conhecemos, em que a criança é pedra

preciosa, objeto de investimento, futuro da nação. Essa crian

ça, entretanto, emergiu das famílias abastadas do Brasil anti

go que puderam dar lugar aos mecanismos de proteção e vigilâ~

cia, tão caracterlsticos dessa nova ordem famil iar e social.

Sob esse modelo, que hoje procura-se impor como "objeto natu

~aR:.", a criança pobre, neg,ra ou a criança indlgena, o "~ulum,[n",

sao "~a~o~", objetos de estudo especial que procura semprede~

c o b r i r o que 1 h e s f a 1 ta. A c r i a n ç a p o b r e p as sou a o c u p a r na nos

sa sociedade o lugar da carência ou da marginalidade e a crian

36 EXPILLY, Charles. Op. cit., p.403.

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ç a i n d r 9 e n a o 1 u 9 a r d e e s p e c i e e m e x t i n ç ã o, p r o c e s s o que obra n

co procura acelerar invadindo suas terras e contaminando o seu

corpo.

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CAPTTULO 2

o POVER E O INVIVTvuO

1. A V~~~~pl~na do~ Co~po~

No século XIX, a sociedade brasileira assistiu a uma ver

dadeira revolução de costumes e idéias que, durante muito tem

po, contudo, conviveu com os velhos costumes da antiga socieda

de. No final do século, as coisas foram ficando mais c 1 ara s

de nlo do que se pô de di s t i n g u i r o ve 1 h o do n o voe c o n h e c e r as

idéias que haviam de dominar na nossa sociedade e que haviam

de penetrar profundamente na família, em cujo interior as rela

ções se reverteriam a favor de um novo jogo de poder em que a

figura do patriarca deu lugar ã figura de um pai mais afetivo

do que poderoso, mais responsável do que mundano. Nessa nova

c o n f i g u r a ç ã o f a mil i a r, a e m e r g ê n c i a d a c r i a n ç a e deu ma n o va mu

lher é fundamental.

As mudanças no interior da família brasileira respondiam

a novas estratégias de poder que inauguravam a ~o~~edade d~~~~

pl~na~ no Brasi 1. Assim entendeu Foucaul t a sociedade que eme.!:

giu, a partir do século XVII, das transformações nas relações

de poder: uma sociedade sobretudo de ~nd~vlduo~ que a discip11

na ou o poder disciplinar "6ab~~~a". Diz Foucault que o poder

disciplinar Irem vez de dob~a~ un~6o~memente e po~ ma~~a tudo o

que lhe e~tã ~ubmet~do, ~epa~a, anal~~a, d~6e~en~~a, leva ~eu~

p~o~e~~o~ de de~ompo~~ção até a~ ~~ngula~~dade~ ne~e~~ã~~a~ e

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~~p~~Z6i~a d~ um pode~ que toma o~ i»divZduo~ ao me~mo

~omo obj eto~ e ~omo i»~t~ume»to~ d~ ~ ~u ex~~~Z~io." 1

46

t~mpo

Esse poder que individualiza é um poder modesto, é um mi

cro poder que, entretanto, funciona de forma permanente, nos

fios capilares da rede social e usa de instrumentos muito sim

ples como o olhar hierárquico e a sanção normalizadora.Objetos

e instrumentos do poder disciplinar, os individuos ao mesmo

tempo em que são controlados, vigiados e avaliados são utiliza

dos para controlar, vigiar e avaliar, num procedimento especi

fico que e o exam~. As funções são especificadas e os lugares

marcados (pai, mãe, filho, professor, diretor, policia, etc)

dentro de um quadro geral em que esse poder se articula. Sua

forma de atuação (vigilância, normalização, controle) torna s~

melhantes as diversas instituições (familia, escola, hospital,

prisão ... ) e possibilita sua eficácia máxima. Isso porque o

poder disciplinar investe no corpo e chega aos minimos gestos

submete-o mas, multiplica suas forças. Não sendo propriedade

de alguém, ele se auto-sustenta porque é produzido por todos

os elementos e em todos os niveis da rede de relações em que

os individuos estão inseridos. A existência de um chefe numa

instituição ou organização piramidal não confere a este a posse

do poder " ... ê o apa~e.tho i»tei~o que p~oduz 'pode~' e di~t~i

1 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis, Vozes, 1987. p.153.

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bu~ o~ ~nd~vZduo~ n~~~~ campo p~~man~nt~ ~ contInuo. O qu~ p~~

m~t~ ao pod~~ d~~c~p~~na~ ~~~ a~tam~nt~ ~nd~~c~eto, po~~ e~tá

~m toda pa~t~ e ~emp~e a~~~ta, po~~ em p~~ncIp~o não d~~xa ne

nhuma pa~te à~ e~cu~a~ e cont~o~a cont~nuam~nte o~ me~mo~ qu~

e~tão enca~~egado~ de cont~o~a~; e ab~o~utam~nt~ 'd~~c~eto',

poL!l 6unc~ona p~~manentem~nt~ e em g~and~ pa~te em ~~~ênc~o.,,2

o Estado opera com leis. As instituições disciplinares

operam com a no~ma, control e "ba~xo" de comportamentos sutis

que se dão a níveis não penetráveis pela lei, que se dão ao ní

vel dos corpos, dos seus gestos, da sua fala, do seu desemp~

nho, etc. A norma opera com micropenalidades, caracterizadas

por mecanismos de punição singulares, produzidos, autonomamen

te, no interior de cada instituição. Na sociedade disciplinar,

no interior da família e da escola, o castigo muda de sentido:

não mais a resposta violenta do adulto aos atos intoleráveis

da criança - o castigo agora é medido, pensado, e faz parte do

processo educativo. A criança deve ser castigada nao apenas

pelo confronto às regras e pelos danos causados mas também (e

principalmente) pelo não cumprimento de tarefas ou simplesme~

te pelo fracasso, pela lentidão, pela incapacidade, enfim, por

nao corresponder ao ideal. Castiga-se pelo que a criança faz

mas também pelo que ela não pode fazer. Castiga-se mais pelo

que a criança é do que por aquilo que ela faz. Castiga-se p~

lo modo mais suave mas também de modo muito mais frequente po~

que pode haver castigo a cada passo. E nesse caminhar para o

ideal castigo e recompensa se alternam. A ultima não é menos

2 I d. i b i d. p. 158.

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violenta, ela faz parte de um processo de sujeição da criança;

seleciona e multiplica suas forças úteis e diminui sua potê~

c i a . Qual a criança mais recompensada nessa sociedade que co

nhecemos e que começou a formar-se no B ra si 1 do s ec u lo XIX? E

-aquela que se expande, que e diferente, que incomoda, que con

testa, que resiste e se rebela ou - aquela obedece, e que que e

"qu-iet-inha" , aplicada e submissa? A recompensa tambem mantem

a criança a redeas curtas; e tambem como o castigo, imediata e,

da mesma forma, impõe modelos e padrões de comportamento. A re

compensa, enfim, e, tanto quanto a punição, d-i-õc.-ip.f.-ina. Por ser

mais agradável ela não sUjeita menos.

Na escola, a criança ê o lugar que ocupa dentro de um

sistema de classificação. Neste lugar está marcado sua dife

rença (mas não sua singularidade); uma diferença, entretanto,

que se quer o tempo todo comparada, relacionada com "outlLa-õ d-i

6elLença-õ " , julgada, medida e avaliada segundo modelos; uma di

ferença, enfim, sujeita a um processo de nOlLma.f.-izaçào. E o que

será a criança que fica fora desses limites senão uma criança

anolLma.f.? Anormal, sim, porque e a nOlLma que responde, a norma

como instrumento de poder que individualiza para medir as dife

renças e torná-las uteis de alguma forma.

o grande ritual dos dispositivos de disciplina e o exame.

Ele ê que permite a classificação, a qualificação e a punição.

Segundo Foucault o exame e uma inovação da era clássica e con~

titui uma tecnica que se generalizou nas ciências humanas, ca

racterizando determinadas relações de poder e ao mesmo tempo

produzindo saber. A que se deve a Pedagogia senão ã formação

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de um saber que se constituiu pouco a pouco, através das obser

vações e avaliações constantes de crianças dentro da escola? O

exame deu ã Pedagogia o seu objeto e, como técnica de poder,

sujeita a criança a um sistema de relações que a individuali

za para fazer dela "um c.a-6o", uma "pa-6ta de. afLqu-i.vo", um "obje.to

c.-i. e. ntZ 6 -i. c. o li •

d-i.v-i.duaf.-i.zada do que. o aduf.to, o doe.nte. o ê ante.-6 do homem -6âo,

o f.OUc.o e de.f.-i.nque.nte. ma-i.-6 que o nOfLmaf. e o nâo-def.-i.nquente.,,3

Neste terreno fértil brotam as ciências do homem como ser psl

cológico cuja história individual passa a ser fundamental, ou

melhor, determinante, para a compreensão do "-6eu c.a-6o", da "-6ua

pefL-6onaf.-i.dade" ou da sua loucura.

A sociedade disciplinar é uma sociedade panóptica. O p~

nóptico, projetado por Jeremy Bentham, é uma figura arquitet~

ral, circular, em forma de anel, cuja face interna tem ao cen

tro uma torre com um vigia. O anel possui celas em toda a sua

extensão que podem ser vistas e vigiadas com toda clareza pelo

vigia localizado na torre. As celas são individuais e o indi

viduo no seu interior é visto mas não vê como também e impossl

bilitado de qualquer contato com os outros vigiados, separados

todos pelas paredes laterais das celas. Consciente de que e

vigiado o tempo todo, o individuo se torna alvo fácil de um p~

der que funciona automaticamente pois não há a necessidade de

uma açao que desencadeie seus mecanismos. O vigia está sempre

lá na torre, vigiando, sem no entanto, ser visto e"o detento

3 Id. ibid. p.171.

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~u~~a deve ~abe~ ~e e~tã ~e~do ob~e~vado ma~ deve te~ ~e~teza

d ~ 4 e que ~emp~e pode ~ e-lo."

o poder panõptico tem sua força no esquema que é montado

para seu funcionamento não no poder de ~m indivíduo que se faz

temer (um soberano). E a correta distribuição dos corpos (e~

tre eles o do vigia), ou seja, o seu "quad~.t~u.lame~to", que lhe

confere a máxima eficácia de modo que o vigia pode ser qualquer

um. E a sua posição na torre que é importante. O poder panõE

tico dispensa o uso da força justamente porque o seu maior re

sultado é a sujeição real dos indivíduos. O panõptico e um

diagrama de relações de poder que independe do tipo da insti

tuição em que seja implantado. Pode ser utilizado em hospitais,

prisões, oficinas, escolas, enfim, em qualquer lugar onde nor

mas de comportamento devam ser estabelecidas ou tarefas especi

f i c a s d e va m s e r r e a 1 i z a das. O p a no p tis mo, c o n t u do, te rm i na p o r

generalizar-se pela sociedade inteira, caracterizando as rela

ções entre os indivíduos e inserindo-os num esquema em que a

disciplina rege o comportamento, não para reprimi-lo mas para

aumentar sua produtividade.

Assim entendeu Foucault a sociedade disciplinar que eme~

giu a partir do século XVII. Suas ideias ajudam-nos a pensar

sobre a sociedade que começou a ser desejada e formada no Bra

sil do século XIX. A higienização da família, a disciplina na

escola, o saber psicanalítico serão pensados aqui como forças

que se articularam para produzir um indivíduo disciplinado e

4 I d. i bi d. p. 178.

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51

útil à sociedade capitalista, para o que investiram, maciçame~

te, no corpo da criança.

2. A "mãe. ve.tc..dade.-itc..a" e. a c.tc..-ianç.a ú..t-il

Em 1808 a familia real portuguesa transferiu-se para o

Brasil e, no mesmo ano, abriram-se os portos brasileiros aos

navios estrangeiros. Foi grande então o número de imigrantes

que para cá vieram, para servir a familia real, para fazer co

mercio ou simplesmente para aventurar. O Rio de Janeiro, cap1

tal da Colonia, foi a sede das grandes novidades. Aqui se ins

talaram a Corte e grande parte dos estrangeiros que tambem se

distribuiram pelo interior do pais, neste último caso, agricul

tores, que contaram com privilégios importantes concedidos p!

lo governo para que tivessem sucesso nos seus empreendimentos.

A população cresceu magnificamente assim como a variabilidade

da indústria. O conforto aumentou, o número de residências mul

tiplicou, especialmente nas cidades. Teve inicio um longo pr~

c e s s o de" utc.. b a n-i z a ç. ã o" do p a i s, a s c i da de s a o s pau c o s c e n t r a 11

zando a vida brasileira, fervilhando de novidades e dando lu

gar a grande número de mudanças, sociais, econômicas e polit1

cas que enriqueceram de detalhes um caleidoscópio até então qu~

se retrato da vida rural com suas relações definidas basicame~

te em termos da relação entre senhor e escravos. No interior

das casas brasileiras a mobilia se modernizou, as mesas fica

ram mais fartas. As pessoas mudaram aos poucos seu vestuário

e passaram a sair mais às ruas, especialmente na Capital, para

usufrui r das novas ruas que se abri ram, proporcionando passeios

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agradáveis, e para frequentar ou assistir as festas da Corte.

A rua foi aos poucos vencendo a reclusão das faml1ias brasilei

raso As casas abriram suas portas e janelas e o exterior se

tornava cada vez mais atrativo. Até que já próximo ao final do

século, a vida enchia muito mais as ruas que o interior das ca

sas. Sobre isso, em dezembro de 1881, a professora alemã Ina

Von Binzer escreveu: "CompfLeendo a.g OfLa. , a. fLa.zão de não pO-6-6Ul

fLem a.~nda. 0-6 bfLa.-6~le~fLo-6 nenhuma. ObfLa. notável -60bfLe a.-6-6untO-6

neQe-6-6áfL~o um e-6pa.ço 6eQha.do, onde na.o -6e pa.-6-6em m~lha.fLe-6 de

(BINZER, 1956, p.56). Depois de três séculos de vida reclusa e

c a s a s f e c h a das, só me s m o uma a 1 em ã p o d e r i a e s c r e ver ta 1 c o i s a

Os brasileiros estavam experimentando uma nova forma de vida.

As crianças haviam ganho a rua, onde passavam o dia inteiro. As

conversas nas calçadas eram intensas e os olhares nas janelas

sempre presentes. O racioclnio lógico, não sei ... mas o pe~

sarnento livre precisa de experiências diversificadas para se

fortalecer. Se não produzimos nada, foi por falta de ferti1ida

de do solo.

Quando tudo apenas começava, no inlcio do século, houve

grande estlmulo às iniciativas individuais, o sucesso de cada

um podendo ser revertido em proveito próprio, não mais sendo

sacrificado aos interesses e proveitos de Portugal. Os interes

ses, as experiências, os modos de agir diversificaram-se,fazen

do aparecerem os talentos e engenhos peculiares. O sucesso de

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53

alguns estimulava os demais. Costumes burgueses começaram a

penetrar na sociedade brasileira trazidos por estrangeiros re

cem-chegados de uma Europa que se industrializara e já encarna

ra tipos humanos próprios a uma sociedade fundada nos valores

individuais. Começou a tomar corpo um novo sistema social que

haveria de concentrar nas cidades, especificamente nos bancos,

as transações financeiras da vida urbana e rural, esta, penall

zada agora por uma instituição que não perdoava e nem concedia

favores (FREYRE, 1985, p.15). Foi se "e.u.Jr.ope.izal1do" na expressa0

de Gilberto Freyre) o Brasil no século XIX. Os filhos das fa

mil ias abastadas partiam para estudar na Europa e voltavam nao

so com seus diplomas de bacharéis, médicos, matemáticos mas,

também, com pensamentos e idéias na cabeça. Tornavam-se alia

dos do governo na luta contra o "pate.Jr. 6aml.iia-6" rural o que

significava lutar contra o próprio pai ou contra o avô. O jE.

vem médico desprestigiava a medicina caseira desqualificando o

saber da sua mãe ou da sua avo. O governo e os jovens doutores

eram os "a.iiado-6 da Cidade. c.ol1tJr.a o El1ge.l1ho. Da PJr.aça c.ol1tJr.a

a Roça. Do E-6tado c.ol1tJr.a a Faml.iia" (FREYRE, 1985, p.18). O fi

lho, a mulher e o negro cresciam na mesma medida em que o PE.

der patriarcal se despedaçava. Fabricas, oficinas, escolas,

tomaram cada uma o seu pedaço e nelas cresceram e se educaram

os individuos que haviam de se aliar ao Estado contra a famí

lia patriarcal, a favor de um novo tipo de família, nuclear,p~

quena, burguesa.

A promoçao da saude e bem-estar da população tiveram lu

gar no programa do governo. Cresceu a preocupação com a educa

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çao das classes populares. John Luccok leu a 9 de julho de 1814,

na Gazeta do Rio, o seguinte anuncio: " Q u e.m q u -<-.6 e.f1. mandaJt.6 UM

ô-<-lha.6, ~f1.-<-ada.6 e. e..6~f1.avo.6 apf1.e.nde.f1. a le.f1., e..6~f1.e.ve.f1., ~ontaf1.,

e.t~, pode. dú1.-<-g-<-f1.-.6 e. a uma pe..6.6oa f1.e..6-<-de.nte. na Rua do Lavf1.ad-to"

(LUCCOK, 1942, p.376). Pode-se ver que filhas, criadas e escravas

eram mantidas num mesmo patamar de ignorância.

o numero de escolas aumentou. A leitura e a curiosidade

intelectual foram estimuladas, com a fundação de uma Gazeta re

gular. Faltava formar caráter e sentimento nacionais,experiê.!!.

cia até então ausente do espírito dos brasileiros. O grande e~

tímulo para isso teve lugar em dezembro de 1815 quando oBra

sil foi elevado ã categoria de Reino, passando a ter privil~

gios e honras, em pé de igualdade com Portugal. Para o povo

isso teve um significado especial, podendo-se vislumbrar, no

futuro, o Brasil como uma nação entre outras, independente. O

sentimento que começava a se formar vinha de encontro a um Bra

sil dividido em províncias, sem relações umas com as outras,

muitas vezes até rivais ou de interesses opostos, o que não dei

xava de constituir uma ameaça de esfacelamento do país. ~ famí

lia real interessava o país unido em torno do governo e do Rio,

a Capital, esta podendo representar para todos os brasileiros,

o centro da sua unidade. A proclamação do Brasil como Reino

fez nascer esse sentimento nacionalista que pôde fortificar-se

cada vez mais na medida em que o povo tinha um soberano em ter

ras brasileiras a quem render homenagens e manifestar gratidão.

A maior comunicação entre as províncias fazia-se também extre

ma nl e n te n e c e s s ã r i a p a r a a uni ã o d e s s e i me n s o p a ; s. E s t r a das 1 i

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gando o litoral ao interior abriram-se podendo assim os brasi

leiros conhecer melhor seu próprio pais e conhecer melhor uns

aos outros.

Cresceram, contudo, também, os movimentos orientados p~

ra a independência do Brasil. Os jornais, porem, não divulg~

vam: "Sua.6 coluna.6 6..telmente fLeg..t.6tfLavam pafLa o públ..tco bfLa.6..t

le..tfLO o e.6tado de .6aúde de todo.6 0.6 pfLlnc..tpe.6 da EUfLopa. E.6ta

vam che..ta.6 de ed..tta..t.6 do GovefLVI.O, ode.6 natallc..ta.6 e paneglfL.{.c0.6

da 6amIl..ta fLeal; pOfL~m .6ua.6 p~g..tna.6 COn.6efLVavam-.6e ..tmaculada.6

pela.6 ebul..tçõe.6 da democfLac..ta e pela expo.6..tção de .6eu.6

VO.6" escreveu Fletcher 5 sobre o Brasil.

A independência foi inevitável como tambem o crescimento

cada vez maior do sentimento nacionalista. Para José Verissi

mo, contudo esse sentimento foi breve. Em 1890 reclamava ojo~

nalista da falta de patriotismo e sentimento nacionalista nos

brasileiros. Os estudos realizados fora do pais, a falta de

informação sobre o Brasil nas escolas públicas e até nos jo~

nais, a falta de museus, monumentos e celebração de festas na

cionais, a não divulgação dos trabalhos de artistas brasilei

ros, a falta de livros e revistas brasileiras, enfim, o dominio

de tudo o que era estrangeiro impedia a formação de um senti

mento patriótico, de uma unidade nacional, de um espirito bra

sileiro. Jose Verissimo se queixava: "Sejamo.6 bfLa.6ilufL0.6 com

todo o afLdofL do no.6.6O tempefLamento, ma.6 .6em 0.6 langofLe.6 e de.6

6alec..tmento.6 que o neutfLal..tzam. Não cop..temo.6 n..tngu~m, ma.6 e.6

5 KIDDER, D.P. & FLETCHER, J.C. panhia Editora Nacional, 1941.

O Brasil e os Brasilei ros. são Paulo, Com p.'3.

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tudemoJ.J tudo e. todoJ.J, e pJt~nc.~pafmente e.J.Jtudemo-noJ.J a noJ.J rneJ.J

mOJ.J.,,6 Igual apelo fazia o medico Luiz Correia de Azevedo em

1871 : "Não c.op~emoJ.J; 6açamoJ.J o que noJ.J d~c.ta a ,- , ,,7 c.o nJ.J uenc..ta.

As transformações por que passou o Brasil a partir do in;

cio do seculo passado constituíram um processo lento que se ar

rastaria por todo o seculo. Durante muito tempo a vida nas ci

dades repetiu, dentro de casa o modelo da vida familiar rural

em que mul her e fi 1 hos eram manti dos sob o control e absoluto do

patriarca, a mulher só saindo ã rua para ir ã missa ou a gra~

des festas e os fi 1 hos - "b~c.h~nhoJ.J de eJ.Jt~mação"

dendo ã "c.ond~ção humana" quando adul tos.

so ascen

E, porem, ainda no seculo XIX que a mulher e a criança

vao emergir dentro de uma nova sociedade que lhes designaria

lugares e papeis fundamentais no espetáculo da vida brasilei

ra. Quando a mulher começou a sair ã rua, ir a teatro, festas,

a ler romances, estudar piano, francês, inglês, dança, quando

enfim começou a aproximar-se de um tipo de mulher burguesa, a

vestir-se ã europeia, decorreu ainda algum tempo ate que pude~

se enlergir tambem no plano intelectual, participando, opinando

e interferindo nos "aJ.JJ.JuntoJ.J de homem". O Padre Gama escreveu

no seu jornal "0 CaJtapuc.e.~Jto", de 18 de abril de 1838, n9 22,0

que na sua opinião era e o que não era "aJ.JJ.Junto de mufheJt". Po

deria falar de costuras, rendas bordados, moda, penteados, ma

6 VERISSIMO, Jose. A Educação Nacional. Rio, 1906. p.LXVI-VII. 7 AZEVEDO, Luis Correia de. Concorrerá o Modo por que são dirigidos entre nós a Educação e Instrucção da ~10cidade para o Benefico Desenvolvimento Physico e f.loral do Homem? Annais Brasilienses de Medicina. Rio deJaneiro, abril, 1872, tomo XXIII, n.ll, p.435.

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ri do, fi 1 hos, "ma.6 que. huma .6 e.nhofLa a;C'<'fLe.-.6 e. a dafL alv.<.;CfLe..6 .60

bfLe. a PolZ;C'<'ca, a qUe.fLe.fL que. o ImpêfL.<.o .6e. gove.fLne. a.6.6.<.m, ou a.6

.6ado, he. e.m ve.fLdade. '<'n;Colle.fLave.l". A depender da opinião de

um dos maiores crfticos da sociedade brasileira, no seculo XIX,

a ".<.n;Ce.le.c;Cual'<'dade." da mulher não passaria de decisões sobre

como costurar, bordar, vestir, etc ....

As mudanças que foram ocorrendo na vida da mulher a pa~

tir das primeiras decadas do seculo XIX relacionavam-se com uma

aliança estabelecida com uma figura que não só favoreceu o seu

fortalecimento mas tambem chamaria a mulher a ocupar um honro

so lugar na sociedade, o de responsável pela criação e forma

ção dos filhos: o medico. Até, então, a unica figura extra-do

mestica com quem a mulher podia relacionar-se havia sido o p~

dre, o confessor, com quem repartia um pouco sua vida, fora do

controle do marido, do pai ou do avô. O seculo XIX testemunhou

a supremacia do medico sobre o confessor. Uma relação nova e

fntima se configurou. A mulher passou a confiar problemas e

segredos do seu corpo a alguem que, nem marido, nem pai, nem

confessor, tornou-se, sobretudo, um aliado (quando não amante).

Ao médico coube uma fatia do poder patriarcal esfacelado, qua~

do também mestres, polfticos, polfcia, jufzes, comerciantes,

bispos, governantes, etc, passaram a exercer um poder equaci~

nado, distribufdo, organizado. Nessa nova configuração ascen

deram a mulher, a criança, o escravo e, de modo geral, o jovem

que, sob o Império de Pedro II ascendeu a cargos exclusivos, até

então, aos mais velhos. Bacharéis, médicos, enfim, doutores

formados na Europa (alguns no Brasil), muito jovens,foram pre~

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tigiados, frente a indignação de muitos velhos, enfraquecidos

em seu poder. A sabedoria se deslocou. Agora não mais a ida

de mas, a formação - a formação científica. Ate inicios do se

culo XIX o velho nao só mandava como era respeitado no sentido

quase religioso. A ascendência dos jovens enfraqueceu esse p~

der e diminuiu esse respeito (misturado com medo), substituin

do uma antiga submissão por uma rivalidade que criou raízes no

saber, no saber dos jovens que, com o sacrifício da própria saQ

de (perdida lã nos internatos anti-higiênicos e sobre os livros

que por muito tempo impediram o exercício ao ar livre) podiam

agora confrontar, criticar e negar a sabedoria dos velhos. O

Padre Gama não gostava nada disso. Em 9 de fevereiro de 1839,

escreveu no seu jornal: "0 no-6-6O -6ec.ulo bem -6e pode c.hamaJt O-6e

c.ulo dO-6 joven-6; pOJtque qua-6i tudo he neito e dec.idido pOJt

vilha-6. Em outJta-6 eJta-6 hum c.on-6elheiJto d'E-6tado, hum c.idadão

c.on-6ultado a Jte-6peito da c.on6ec.ção da-6 Lei-6, eJta hum anc.ião de

c.abeleiJta, e e-6padim, eJta hum homem que já tinha oc.c.upado c.om

peJtic.ia e Jtenome 0-6 pJtimeiJto-6 c.aJtgo-6 do E-6tado. Hoje não -6uc.c.e

de a-6-6im: a velhic.e he objec.to de de-6pJtezo, ou de mOna e hum

Legi-6lativo he muita-6 veze-6 hum jovem de 27 anno-6, mui c.a-6qu~

lho, mui pintalegJtete, múi namoJtado, de enoJtme gadelha a huma

banda, tJtemendo pa-6-6a piolho, bigode, peJta, e c.haJtuto -6empJte na

boc.c.a. E venhão c.á dizeJt-me, que o nO-6-6O -6ec.ulo não he o -6ec.u

lo dO-6 joven-6, e da-6 luze-6!". Compara o Padre Gama os seus tem

pos com aqueles tempos idos de seus avos quando o jovem jã ca

sado, com filhos, às vezes avô jã, peoia a benção do seu pai,

conservava-se silencioso em sua frente, limitando-se basicamen

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te a responder perguntas, com circunspecção e comedimento. O

que via agora era o jovem de 15 anos de idade sem mais pedir a

benção, limitando-se a um cumprimento fugaz, quando bem educa

do, porque havia aqueles que passavam pelo pai como por um cao,

desprezavam-no, desafiavam-no, bradavam seus direitos, questi~

navam, fumavam e namoravam na sua presença. O comportamento das

meninas, observava o Padre, também mudava. Já aos 8, 9 anos dan

çavam tocio tipo de dança, "em vez de -6abeJtem c.ozeJt, bOJtdaJt e

pJt~nc.~palmente o PadJte NO-6-6o, a Ave MaJt~a, o CJte~o em Veo-6 Pa

dJte, 0-6 Mandamento-6, etc., etc.". Também já não tomavam a benção

aos pais, nem davam graças a Deus depois das refeições porque

"Veu-6 he c.oU-6a que já não -6e U-6a, e JtendeJt-lhe c.ulto de -6ummo

amoJt, de -6umma gJtat~dão he -6Ô paJta FJtade-6, e PadJte-6, ou paJta

algum velho 6anat~c.o", dizia o Padre Gama revoltado. Nesse Im

perio dos jovens era, contudo, "bom tom" ter constantes probl!

minhas de sa~de. Robustez e corposaldavel era coisa p1ra ge~

te da roça. As mulheres não abriam mão de constantes dores de

cabeça, de dentes, de estômago, de um desmaiozinho de vez em

quando, porque assim deveria ser a mulher frágil e sensível das

cidades. Os homens também. Não podiam gozar saude sob pena de

fazerem o tipo do homem grosseiro dos campos. O menino

ria a seguinte trajetória, nas palavras do Padre Gama em "O c.a

Jtapuc.e~Jto" de 21 de fevereiro de 1840, n9 5: "Qual he hoje o

men~no de 9, 10 anl1O-6 que já não toma -6eu c.haJtuto na pJte-6ença

do pJtopJt~o pa~? AO-6 12 annO-6 tJtaz o bonez~nho á bol~na, e ja

namoJta c.om todo o gaJtbo, e de-6empeno;peJttenc.e a ~nnumeJta-6 -60

c.~edade-6 toda-6 ac.abada-6 em '-<-na'; aO-6 14 e-6tá c.a-6ado, aO-6 16

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ao~ 20 anno~ ealveja, ou eomeça a eneaneee~, ao~ 25 tem 9a~t~~

te~, -<.nte~-<'te~, b~oneh-<.te~, hepat-<'te~, eol-<'te~, eneephal-<'te~,

e mo~~e bem velho na -<'dade de 30 anno~ J". O "eha~me" do corpo

frágil e doente contudo vai dar lugar, no final do seculo, ao

elogio do corpo saudável e robusto, necessário a uma sociedade

em formação, carente de tipos fisica e espitualmente fortes.

No tempo do Padre Gama falava-se em progresso. O Brasil

progredia nos costumes, nas relações, na produção de saber, na

moda, etc. Europeizava-se. Mas, para a cabeça de um moralis

ta as mudanças por que passava nosso pais, a partir do inicio

do seculo passado, eram sobretudo decad~ncia moral e perda de

estabilidade social. E!Ti 1838, escreveu no seu jornal n9 70,de

19 de dezembro: "O~ 6-<'lho~, po~ exemplo, já não que~em obedee~

ao~ pa-<.~: -<'~to me~mo he p~o9~e~~o; o d-<.~e-<.pulo de~p~eza o me~

t~e: -<'~to me~mo he p~o9~e~~o; a mulhe~ ~eeale-<'t~a a~ o~den~ do

ma~-<'do: -<'~to me~mo he p~o9~e~~o; o jovem e~ea~neee e malt~aeta

o ane-<.ao: -<'~to me~mo he pho9~e~~o; o ~ubd-<'to não que~ ~eeonhe

ee~ ~upe~-<.o~: -<'~to me~mo he p~o9~e~~o. Se~á po~ -<.~~o que tam

bêm vão em p~o9~e~~o o~ -<.n~ulto~, a lad~o-<.ee, a~ 6aeada~, o~

t-<'~o~, e out~a~ b~-<.neade-<.~a~ da Moda?". O Padre Gama faz nas

suas palavras o retrato de uma sociedade em verdadeira eb u 1 i

çao. Descontada a indignação de um religioso moralista, temos

na sua critica um testemunho extremamente rico do Brasil doseu

tempo que fazendo estremecer as bases de uma sociedade fundada

nos valores da familia patriarcal prepara a "pa~~agem de um 9.Q.

ve~no da~ 6am-<'l-i.a~ pa~a um 90ve~no at~avê~ da 6arúua" (DONZELOT,

1986, p.86). Isso só será possivel graças ao desenvolvimento de

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um processo que Foucault soube entender muito bem: a no~maliza

Çao da familia, obra de autores m~ltiplos, inspirados pela hi

gi~nizaçao, porta aberta pelo médico para fazer penetrarem na

familia, diversos mecanismos de controle social que procurar~

mos mostrar adiante.

A higienização da familia nao se restringiu ã questão fi

sica dos cuidados com o corpo mas, atacou também questões mais

amplas como educação e instrução. A formação superior e cien

tifica do médico conferia-lhe tais poderes numa sociedade onde

dominava a ignorância principalmente dentro de casa, na pessoa

daqueles que se encarregavam da educação das crianças. Por is

so, o médico Luis Correia de Azevedo fez, em 1872, no Rio, o

seguinte apelo: "VÓ-6, -6~nho~~-6, illu-6.t~~-6 ~ au.to~i-6ado-6 m~di

CO-6, 6az~i p~la ~ducaçao ~ in-6.t~ucçao do Rio d~ Jan~i~o .tudo

QU~ ê humanam~n.t~ pO-6-6Zv~l. Salvai do aniquilam~n.to ~-6.t~ povo

qu~ VO-6 admi~a ~ QU~ c~ê ~m VÓ-6, po~qu~ -6oi-6, mai-6 do qu~ ~li~,

~ducado-6 ~ illu-6.t~ado-6".8 O médico se reserva o direito, en

tão, de comandar a educação no nosso pais e a sociedade irá le

gitimar e obedecer. Por que poderia o médico reservar-se esse

d i r e i to? Nas p a 1 a v r as d e L. C. d e A z e v e do p o de mos e n c o n t r a r uma

resposta: "Nó-6, qu~ a-6-6i-6.timo-6 a .toda-6 a-6 ho~a-6 do dia á-6 agE..

nia-6 ~m QU~ -6~ d~ba.t~ o phY-6ico ado~n.tado ~ mui.ta-6 v~z~-6 .tam

bêm a ~-6-6a-6 dÔ~~-6 mo~a~-6 ~~-6ul.tan.t~-6 d~ má ~ducaçã.o ~ d~ má i~

.t~ucçao, pod~mo-6, poi-6, a6o.u.tam~n.t~ diz~~ qu~ a man~i~a po~

QU~ ~n.t~~ nÓ-6 -6~ dá ~ducaçao ~ in-6.t~ucçao conco~~~ d~ uma ma

n~i~a male.6ic.a pa~a o phY-6ico ~ mo~al dM~nvolvJJ'/'I~n.to do

8 I d. i b i d. p. 440.

9 Ibid., p.437.

9 hom~m. "

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A agonia, o corpo doente, a dor moral - o conforto, o rem~dio,

o segredo fácil tirar dal amplos poderes ... at~ divinos, ou

acima destes: o Dr. Wal demar Lages, um outro De Lamare dos anos

50 (deste s~culo), referindo-se a casos graves de rec~m-nasci

dos que praticamente ressuscitam "c.om a .6imp.te..6 a.time.n.taç.ão do

.te.ite. mate.Jtn.o, c.on.ve.nie.n.te.me.n.te. dO.6ado e. admin.i.6tJtado" conclui:

"c.a.6o.6 de..6.6a n.atuJte.za .6ã.o 0.6 que. c.o.toc.ar'1 o mê.dic.o me..6mo pOJt i~

tan.te..6, ac.ima do pode.Jt divin.o pe.Jtan.te. a tão te.me.JtO.6a . .-op..tn...tao

púb.tic.a" (LAGES, 1957, p.31). Não poderia haver, principalmente

no Brasil do s~culo passado, figura mais adequada para penetrar

e fazer penetrar na famllia as normas de um programa amplo e

profundo para gerir a vida dos indivlduos com a finalidade de

torná-los uteis ao Estado. O alvo principal será a criança e

o rebote, a mulher que, aliada e apoiada pelo m~dico será peça

fundamental nesse processo.

Mas ela tinha que ser educada. At~ fins do s~culo XIX a

mulher brasileira era exemplo de ignorância e futilidade e sem

condições morais e intelectuais para o exerclcio da mais nobre

das funções: educar, formar cidadãos para a Pátria. A criança

era mimada, não educada. Preocupada tão somente com as -apare.!:!.

cias e dotes físicos, entregue ã vaidade, aos ditames da moda

e costumes europeus que invadiram o Brasil no s~culo XIX a mu

1her deixava de ser "mãi c.omo e..t.ta de.ve.Jr.ia .6e.Jt" para ser "ap!

n.a.6 uma boa mu.the.Jt, ê. ve.Jtdade., ma.6 uma mu.the.Jt n.u.t.ta, e.m c.ujo ~

piJtito, a e.duc.aç.ão e. in..6tJtuc.ç.ão n.e.n.hum .6e.n.tido têm.,,10 Uma mu

1her despreocupada em relação ã educação do filho a quem nao

10 Ibid., p.427.

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mais ensinava "a ,6~n mod~,6to, po..t-ido, att~nc-i060, .rtte.nto

con,6~..tho,6 do,6 pnov~ctO,6 ~ a ouv-in cont~zm~nt~". 11 Filho que

ao,6

aos

19 anos incompletos já era decrépito, uma "nu2na canco m-ida" ,

que vinha do ",6~-io da ama ~,6cnava, da mã-i -indo..t~nt~, -incu..tta ~

da mucama -immona..t". Faltavam-lhe noções como aquelas a que se

referiu José Verlssimo, em seu livro "A Educação Nac-iona..t", es

crito em 1890: "Educan b~m urna cn-iança ê d-i66-ic-i..túna tan~6a.

t um tnaba..tho d~ todo,6 0,6 d-ia,6, d~ todo,6 0,6 -in,6tant~,6; tnaba

..tho d~ ob,6 ~nvação, d~ ~xp~n-iê.nc-ia, d~ p~n~tnação, d~ pau~nua.

N~nhum ponv~ntuna ~x-ig~ ma-i,6 cont-inu-idad~ ~ ,6~qu~nc-ia, ~ corno

~m g~na..t ,6omo,6 -incapaz~,6 d~,6,6a,6 qua..t-idad~,6, c~do cançamo,6 a,6

pn-im~-ina,6 ~ c~nta,6 d-i66-icu..tdad~,6 ~ n~p~t-imo,6 a 6na,6~ hab-itua..t:

O . o ( 00) . -FI 12 A d . . ~.{.xa ~,6tan, a ~,6CO-La ou o CO-L-L~g-io t~ ~n,6.{.nana. gu a v2.

são do jornalista e crltico literário (que tambem foi àiretor

da instrução pública do Pará e posteriormente do Colegio de Pe

dro 11) que em 1890 já se inteirava muito bem do quanto ia p~

lo mundo (havia já estado na Europa duas vezes, participandode

congressos literários e cientlficos) e do quanto a criança era

importante ...

Era preciso que a mulher fosse antes de tudo mae, mas mã~

comp~t~nt~. Era preciso que a mulher fosse ~ducadona. LUls

Correia de Azevedo escreveu: "V~-ixa-i 0,6 anmaz~n,6 da,6 6anta,6t~

ca,6 n~c~,6,6-idad~,6 do ..tuxo qu~ atnoph-ia ou mata; d~-ixa-i 0,6 a..tca

çan~,6 da,6 hanmon-ia,6 ,6~n,6ua-i,6, do,6 capn-icho,6 vo..tuptu0,60,6 ~ v-i,6;

11 Id. Ibid. p.428.

12 VERTsSIMO, Jose. Op. cito

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neve~t~ a muthen da ~~mpt~~~dade de ~eu pudon, da~ ~one~ de

~ua~ gnaça~ natunae~ e de toda~ a~ hanmon~a~ do ~ent~mento que

Deo~ the deu ao 6onma-ta e tene~~ a mã~, a mã~ ~omo deve ~en,

a edu~adona pn~me~na e ne~e~~an~a, a ~anta am~ga que ~eva a

~n~ança da 6am~t~a ~ e~~ota e de~ta ao mundo do~ ~eu~ ~emethan

te~ ~om ~n~ten~o e d~gn~dade". 13 Era preci so estabel ecer que

~en mãe era missão, destino, dom natural da mulher, que os re

cursos artificiais da moda e do luxo e, principalmente, a edu

caça0 dada, na época, ã menina, faziam esquecer. Já em 1832 o

Padre Gama criticava-a severamente. Desde cedo, mal começava

a falar a menina, faziam-se-lhe todas as vontades, atendiam-se-lhe

todos os caprichos e cercava-se-lhe tão somente de objetos de

va i da de. A menina crescia valorizando as aparências,as qu~

lidades do corpo. Em tenra idade era servida em tudo pelas e~

cravas e mucamas, chegando ã idade adulta entregue ã mais com

pleta indolência. Empenhava-se em agradar aos homens já aos

11 anos de idade, usando para isso de todos os recursos da mo

da (francesa especialmente) dos gestos e dos olhares, porque

tinha que arranjar marido, idéia inculcada na sua cabeça desde

pequena. A leitura de novelas europeías já enlouqueciam o Pa

dre Gama na primeira metade do século; novelas que, segundo o

jornalista e professor, viravam a cabeça da menina-moça que se

enchia então de fantasias em relação ao sexo oposto, acredita~

do poder encontrar na vida real amores tais como encontrava em

suas leituras ("at~ ~e en.6~na ~omo huma 6~tha ha de ~ttud~n a

v~g~tan~~a do~ pa~.6 e ~a~n~6~~an-~e ao ~eu amante; at~ até mu~

13 AZEVEDO, L.C. de. Op. cito p.434-5.

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ta.6 veze.6 v-<- bigodeada a .6anc.ta 6ide.tidade. c.onjuga.t!", escreveu

o Padre Gama em "O Cafl.apuc.eifl.o" de 20 de maio de 1837, n9 10,

indignado ... ). Criticava também o Padre Gama outras coisas

que resultavam da má educação da menina no século passado: o

costume das mulheres de passar quase todo o tempo na janela ou

na varanda, trocando os vestidos várias vezes e cuidando ap~

nas em ver e ser vista; o namoro nos teatros e Igrejas (rap~

zes e moças a trocarem olhares, faziam espetáculos e missas -a

parte - "Há .6ujeitinha QUe. e.6tá de joe.tho.6 c.om a.6 mão.6 pO.6ta.6

0.6 beic.inho.6 a movefl.em-.6e, c.omo de Quem fl.e.za, e e.ntfl.etanto ne.6

.6a pO.6tufl.a tão .6ubmi.6.6a e devota e.6tá 6i.tada em hum gfl.ande na

mofl.o; pofl.Que 0.6 o.tho.6 Que Qua.6i .6empfl.e 6a.t.tão vefl.dade, -nao

tifl.ão de c.ima de hum pefl.a.tvi.tho QUe. a.ti e.6tá afl.fl.imado, a.6 ve.zu

- mo ate c.om a.6 c.O.6ta.6 pafl.a o S. Sac.fl.amento, 6azendo tfl.egeito.6 e

gatimanho.6 digno.6 de todo.6 0.6 c.a.6tigo.6 da Po.tic.ia" escreveu

o Padre Gama no seu jornal de 14 de julho de 1832, n9 12); a

submissão da mulher ã moda (" ... a.6 .6enhofl.ita.6 ante.6 Quefl.em ex

pofl.-.6e a mOfl.fl.efl. tizic.a.6, c.aQuetic.a.6, mafl.a.6mada.6, apop.tetic.a.6,

a.66ixiada.6, etc., do Que .tafl.gafl.em pOfl. mão hum atavio da moda,

Que .the.6 e.6tfl.eita a.6 c.intUfl.a.6 e .6em o Qua.t de.ixafl.ião de 6ic.afl.

be.m pintipafl.ada.6 e gafl.bo.6a.6; e não he i.6to .6efl. mafl.tyfl. da.6 mo

d a.6 ?" - em 26 d e a b r i 1 de 1 8 3 7, n 9 3); v í c i os, e n f i m , p r o d u z i

dos pela educação, pois a menina crescia com a idéia de que vi

nha ao mundo para agradar ao homem.

Essa mulher, assim educada na infância, nao se prepar~

va para ser mae. Na puberdade teria o útero afetado pelos ma

1es dos romances, dos enfeites, da sensualidade (a mulher his I I f

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1

1 ,l

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66

terica) - nessa epoca, especialmente, a educação cometia "cri

minoso atentado contra a futura mulher"que Luís Correia de Aze

vedo designava como um "c.omple.xo de. de.6e..-Ltof.J H• Clamava: "No

me..-Lo de.f.Jf.Ja g~ande. .-Lnd.-L66e.~e.nça po~ tudo que. ê f.J~~.-LO e. ê g~ave.,

não paf.Jf.Je. atte.ntado tão g~ande. f.Je.m o ma.-Lf.J f.Jole.mne. p~ote.f.Jto de.

toda a c.laf.Jf.Je. mêd.-Lc.a, que. af.Jf.J.-Lf.Jte. d.-La~.-Lame.nte. a e.f.Jf.Ja de.c.ompof.Ji

ção le.nta, maf.J c.ontZnua, da .-Lnte.g~.-Ldade. da 6 am.-L l.-L a , onde. a mu

lhe.~ ~ a e.f.Jpe.~ança, a 6ê, o amo~.,,14

Era mister produzir a mulher mae, a mulher educadora;era

mister emacipá-la, para isso, dos enfeites, das exteriori dades;

emancipá-la do homem a cujo agrado se destinava; era mister edu

cá-la - e seu primeiro educador foi o medico.

Nada escapou. Regras sobre a higienização das casas, re

gras sobre os cuidados com a criança: vestuário, alimentação,

e d u c a ç ã o; r e g r as sob r e a v i d a a o a r 1 i v r e, re g r as sob r e a f o r

mação moral, enfim, não faltaram regras. O medico ensinava a

viver; a mulher aprendia e educava os filhos. Frimeira recomen

dação: livrá-los da influincia malefica da mãe-preta ou mucama.

O leite da escrava era viciado e causava doenças 'na criança.

Seus costumes eram deploráveis e comprometia a moralidade da

criança. Sua ignoráncia era completa e punha em risco a vida

da criança. A prática da amamentação por escrava era apontada

como uma das principais causas da mortalidade infantil (questão

que s5 preocupou a classe medica brasileira a partir, tambem,

14 AZEVEDO, Luís Correia de. "A Muth~ Pe.Mnte. o Mêd-<-c.o". Annais Brasi­lienses de Medicina. Rio de Janeiro, agosto, 1872, tomo XXIV, nQ 3, p.102

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do s~culo passado). Na Academia Imperial de Medicina, em ses

são de 18 de junho de 1846, as amas foram o alvo privilegiado

de ataques, na discussão sobre as causas da mortalidade das

crianças. 15 Ataques aos escravos não faltaram mesmo fora do

imbito da medicina. Jos~ Bonificio, em sua "Repne~entaç~o -a

A~~emb-tê.ia Gelta-t Con~tituinte", em 1823, perguntou: "que educ.~

ç~o podem telt a~ 6amZ-tia~ que ~e ~envem c.om e.ó~e~ rn6e-tiz~ ~em

honlta, ~em Ite-tigi~o? Que ~e ~envem c.om a~ e~c.ltava~, ,que ~e

plto~tituem ao pltimeilto que a~ pnoc.una? Tudo ~e c.ompen~a na vi

da. Nô~ tynannizamo~ o~ e~c.ltavo~ e o~ Iteduzimo~ a bltuto~ ani

mae~; e-t-te~ no~ innoc.u-tam toda a ~ua immmona-tidade e todo~ o~

~eu~ vic.io~" (Freyre, 1987, p.350). Em "O Caltapuc.eilto" de 27

de setembro de 1837, n9 47, o Padre Gama escreveu: H ••• Eu e~

tou pelt~uadido que â. e~c.ltavaltia que de~gnaçadamente ~e in.tftod~

2-<.0 entlte nô~, he a c.au~ a pltimoltdia-t da no~~ a pe~~ima educ.aç~o

e em veltdade quae~ ~~o o~ no~~o~ pnimeilto~ me~tne~? S~o ~em d~

vida a A6Itic.ana, que no~ amamentou, que no~ pen~ou e n06 ~ubmi

ni~tltou a~ pltimeilta~ noçõe~, e quanto~ e~c.ltavo~ exi~ti~o na c.a

~a pateltHa em a quadfta do~ no~~o~ pnimeino~ anno~. Maneitta.6, u!!:

guagem, vic.io~, tudo no~ innoc.u-ta e~~a gente ~a6ana, e bltuta-t,

que â. Itu~tic.idade da ~a-tvajenia une a indo-tenc.ia, o de~pejo e

~eltvi-ti~mo pnopltio~ da e~c.ltavid~o. Com pneta~, e pneto~ boçau

e c.om o~ 6i-thinho~ de~te~ vivemo~ de~de que abnimo~ o~ o-tho~;

e c.omo podeftâ. ~en bôa ~ no~~a educ.aç~o?". Nos anos em que r~a

ria Graham esteve no Brasil (1821, 1822 e 18~3) pôde ela teste

15 TEIXEIRA, Jos~ Maria. Causas da Mortalidade das Crianças no Rio de Ja neiro. Memoria apresentada a Imperial Academia de Medlclna, a 6 de Julho de 1886.

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munhar o seguinte: numa festa em residência particular no Rio

de Janeiro, estranhou a presença de algumas crianças muito no

vas que, no seu ponto de vista inglês deveriam ãquela hora, es

tar na cama e com suas amas e governantas. Ao fazer tal obser

vaçao a uma das senhoras brasileiras presentes ã festa obteve

a resposta que assim registrou: "Re.-6POVlde.u-me. que. ê.Jtamo-6 be.li

ze.-6 Vle.-6te. pOVltO; ma-6 que. aqui Vlão havia tai-6 pe.-6-6oa-6 e. que. a-6

cJtiaVlça-6 bicaJtiam e.VltJte.gUe.-6 ao cuidado e. ao e.xe.mplo dO-6 e.-6cJta

VO-6, cujO-6 hãbito-6 e.Jtam tão de.pJtavado-6 e. cuja-6 pJtitic~-6 e.Jtam

tão imoJtai-6 que. -6e.Jtia a pe.Jtdição de.la-6; e. que. aque.le.-6 que. amam

-6e.U-6 bilho-6 pJte.ci-6am tê-lo-6 de.baixo da vi-6ta oVlde., -6e. ê. ve.Jtda

de. que. pode.m coJtJte.Jt o pe.Jtigo de. have.Jt e.xce.-6-60 Vle.-6-6e. -6e.Vltido,

ao me.VlO-6 Vlao pode.m apJte.Vlde.Jt Vle.Vlhum mal" (Graham, 1956, p.308).

A mãe preta, a mucama confidente, o moleque companheiro, de r~

p e n t e s e t o r n a v a m f o n t e de de s g r a ç a, e x em p 1 o d e i mo ra 1 i da de, b a U

de vicios; quando o medico entra em cena, essa convivência pa~

sa a ser tratada como uma questão de vida e morte. Era preciso

que a nlãe se responsabilizasse pelos cuidados e pela educação

das crianças. Para assumir, contudo, esse papel, teve tambem

ela que ser, especialmente a partir da segunda metade do secu

lo, alvo de ataques e criticas. O Dr. José Maria Teixeira apo!!.

ta a falta de educação física, moral e intelectual das maes,

como uma das causas da mortalidade infantil e diz, a respeito

de condi ções outras da formação das cri anças: "Pail! e.-6tJtagado-6

pe.la -6yphili-6, pe.lo alcôol, pe.la tube.Jtculo-6e.; mãi-6 e.ducada-6 Vla

e.-6cJtavidão, Vla igVloJtaVlcia e. aVlalphabe.ta-6; Ca-6ame.VltO-6 e.m que. a

hygie.Vle. ê. pO-6te.Jtgada, Vlão -6e. atte.Vlde.Vldo ã-6 idade.-6, COVl-6aVlguiVl~

dade. e. doe.Vlça-6 e.Xi-6te.Vlte.-6, e.i-6 multipla-6 bOVlte.-6 que. e.Vlche.m e.-6

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69

ta Qidade (Rio de JaneinoJ de Qniança~ que, na~Qendo em um e~

tado de 6naqueza digno de lâ~tima, atnave~~am uma vida ~-gen~{

Qwúa e rMh~4âv~. A hygiene da mulhen gnâvida é entne no~ uma

6iQção, e ~eja dito quen na alta, quen na média, quen na baixa

~oQiedade."16 As exigencias da moda (nas classes mais eleva

das), a vergonha ou desespero da mãe solteira (infanticídio),

as paixões violentas das mulheres, o histerismo, a negligencia

na proteção das crianças, a adoção de terapeuticas inconvenien

tes, tambem foram lembrados como fatores causadores de mo rte

nas crianças. Havia muito o que fazer para educar essa mulher,

havia muito o que fazer para se produzir uma mãe de vendade.

Dentre as recomendações feitas pelo Dr. Jose Maria Tei

xeira para diminuir na cidade do Rio de Janeiro a mortalidade

infantil, gostaríamos de ressaltar algumas: li a

eduQação phy~iQa, monal e inteileQtual da~ mulhene~

~e~; ... 6azen diminuin a illegitimidade pon todo~ o~ mUM que

a ~QienQia, a monal e a neligião indiQam; ... 6undan um ho~p~

tal e~peQial pana Qniança~, Qom ~enviço~ médiQo~ Qompletamente

~epanado~ pana alguma~ mole~tia~; ... di~tnibuin gnatuitamente

pequeno~ 6olheto~ Qontendo in~tnuçõe~ hygieniQa~ â~ mãi~ de 6~

milia~ em nelação ao~ neQém- na~ Qido~ e Qniança~. E~te muo tem

dado bon~ ne~ultado~ em muita~ cidade~, ba~tando tnaduzin e

adaptan ao~ no~~o~ habito~ algum do~ muito~ tnabalho~ exi~ten

te~, Qomo o~ de VéQlat, -oonné, Condenau, Sovet, Fon~~agnive~,

etQ ... ; ... negulamentan o ~enviço da~ ama~ de leite e o ~eu

16 TEIXEIRA, J.M. Op. cit., p.497.

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ex~me; ... Q~ea~ a e~peQialidade da hygiene e the~apeutiQa ~n

6anLü; ... e~tuda~ a ~oda do~ expo~to~ (falaremos sobre isso

adiante), 6azendo diminui~ o Qontingente exage~ado que ela 6o~

neQe ~ mo~talidade; ... aQon~elha~ ~emp~e o aleitamento mate~

no ~alva~ ~a~a~ eXQeçõe~, mo~t~ando o~ inQonveniente~ do me~Qe

nâ~io e o~ pe~igo~ do a~ti6iQial; ... Qombate~ pela ~eligião a

Q~ença de que é uma 6eliQidade a mo~te quando ella no~

em ten~a idade." 1 7

Qhega

Como medicina, moral e disciplina se confundiam! A pre~

cupaçao do Or. Jose Maria Teixeira com moralidade não era sin

gular. Estava presente em todos os manifestos e apelos medi

cos da epoca, como temos visto e ainda vamos ver. A última re

comendação nos chama atenção: O Or. Jose Maria Teixeira escre

veu seu livro em 1886 e ainda se refere ã questão da "6 eliQidE;.

de" que era a morte de uma criança nova as ideias e costumes

se misturam, produzem novas formas mas parece que coexistem,d~

rante muito tempo, as velhas e novas maneiras de ser ...

A higienização da familia ia da arquitetura das casas a

vida intima das pessoas. O aleitamento materno e o atendimen

to da criança pela mae constituíram elementos mais fortes da

intervenção medica nas familias. O Or. Francisco de Paula La

zaro Gonçalves, em tese apresentada ã Faculdade de Medicina do

Rio de Janeiro, em 10 de dezembro de 1855, escreveu: "Ninguém

deixa de Qonvi~ que o~ Quidado~ de uma mãi ~ão muito mai~ bem

di~igido~ e a~~iduo~, que de uma ama me~Qen~~ia; o meno~ g~ito

17 Ibid.

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e.xc.ita a ate.nção de. uma ma-<.. paJta. .6\e.u 6i.f..ho, e. .ero ng e. de. .6ati.6 6~

z~-.f..o c.omo obJtigação e..f...f..a o ac.aJtic.ia e. o toma c.om pJtaze.Jt. A.f..~m

do que. a ama e. me.no.6 c.uidado.6a, abandona muita.6 ve.ze..6 a c.Jtian

ça paJta .6 e. oc.c.upaJt de. outJtO.6 tJta.ba.f..ho.6 e. a ouvi-.f..o c.hoJtaJt apJte.~

.6a-.6e. e.m daJt-.f..he. o .6e.io, .6e.m te.Jt tido te.mpo de. de..6c.an.6aJt, a.6

ve.ze..6 me..6mo .6uando, e. agitada, .6 e.ndo i.6.6o, c.omo ~ .6abido, a

d o - 'o +' , ,,18 A t c.aU.6a e. c.onvu~.6oe..6 e. ma-<...6 mq~e..6~-<..a.6 na.6 c.Jt-<..ança.6. es ra

tegia aqui e a seguinte: toma-se como fato natural aquilo que

se quer produzir ... (a mãe terna, dedicada) e como fato gen~

ralizado aquilo que se quer condenar e extinguir ... (a ama

agitada, e pouco cuidadosa).

o discurso medico transformou o aleitamento materno em

problema nacional. Não amamentar os filhos passou a ser uma

infração às leis da natureza e uma manifestação de desamor.

Amamentar, no "dic.ionâ.Jtio higi~nic.o" passou a ser sinônimo de

amar. Essa nova "gJtamâtic.a" fez nascer na mulher um sentirr.en

to ate então não experienciado, o de culpabilidade, trunfo nas

mãos dos higienistas (e fundamento do pensamento psicanalista).

o amor da mulher pelos filhos, perdeu, no seculo XIX a

liberdaae de livre manifestação ou simplesmente a liberdade de

existir ou não existir. Amar os filhos era agora uma questão

moral e politica que se revestiu de uma lei da natureza pa ra

respaldar-se e fortalecer-se. Amar os filhos era, entretanto,

amã-los segundo um conjunto de normas ditados pelos higieni~

18 GONÇALVES, Francisco de P.L. "Que. Re.gime.n .6e.Jtâ mai.6 c.onve.nie.nte. pMa a CJtiação do.6 Expo.6t0.6 da Santa CMa da tfue.Jtic.ôJtdia?" Tese apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, a 10 de dezembro de 1855, p.25.

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72

tas que iam desde a amamentação aos cuidados mais sutis com a

formação moral e intelectual da criança, passando logicamente

pela alimentação rigorosamente orientacia pela medicina higiêni

ca.

o aleitamento materno serviu também a outros objetivos

disciplinadores do poder médico, como o de controlar o tempo

livre da mulher dentro de casa. Para que obtivesse êxito opr~

jeto de uma nova familia, produtora de cidadãos Gteis, era ne

cessãrio que, dentro de casa, a mulher fosse mantida dentro de

certa linha de conduta. Fortalecida pelos novos poderes deque

foi investida, deveria, contudo, nao ultrapassar os limites de

suas obrigações domésticas e não almejar competir com o hpmem+

perseguindo ideais de e,nancipação econômica e social. A fun

çao de amamentar os filhos pela força da sua dignidade (e tam

bém pelo carãter exclusivo de função feminina) substituiria e~

ses ideais, concedendo também ã mulher uma sensação de poder.

Presa ã boca do filho, a mulher ocupava-se de uma nobre função

e nao poria em risco sua moral no convivio com os prazeres ur

banos, como também não concorreria a ocupar o lugar do homem

na produção material e intelectual dentro da sociedade, sob p!

na de esfacelar esse nGcleo familiar que convinha proteger p~

ra que dele pudessem surgir os futuros provedores _do bem so

cial, econômico e politico da nação.

o enaltecimento da função de amamentar serviu também ao

controle da sexualidade feminina. Jurandir Freire Costa1 9 mos

19 COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Familiar. Rio de Janeiro, Graal, 1983.

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73

tra (p.263) atraves de citações medicas da epoca, o empenho dos

h i g i e n i s tas e m de s v i a r o p r a z e r g e n i tal da m u 1 h e r p a r a o pf1.a.Z e/L

~exual do ato de amamentar gerado pelos movimentos da boca e

mãozinhas do bebê no seio. "Ve~c.obeJt.:ta" essa nova fonte de pr~

zer, a mulher se absteria por longos períodos da relação sexual

genital. Dessa forma, sua dedicação aos filhos absorveria ate

sua sexualidade e a criança fixava-se como suporte moral, poli

tico e social da família.

o cuidado com os filhos e a amamentação deveriam ser g~

rantidos pela formação de uma nova mulher, inexistente no p~

ríodo colonial mas que emergia agora das "mão~ c.Jt-iadoJta;.," dos

higienistas. A essa nova mulher estava designado o destino de

ser mãe; mãe higiênica, modelo de dedicação e renuncia.

"A mulheJt bJta~-ile-iJta, c.omo a de ou.:tJta qualqueJt ~oc.iedade

da me~ma c.ivilizaç.ão, .:tem de ~ eJt mãi, e~po~a, amiga e c.ompanhei:

Jta do homem, ~ua alliada na luc..:ta da vida, c.JtiadoJta e pJtimeiJta

me~.:tJta de ~e~ 6ilho~, c.on6iden.:te e c.on~elheiJta na.:tuJtal do ~eu

maJtido, guia da ~ua pJtole, dona e JteguladoJta da ec.onomia da. ~ua

c.a~a, c.om .:todJ~ o~ mai~ deveJte~ c.oJtJtela.:tivo~ a c.ada uma de~.:ta~

6unç.õe~. Nem a~ há, ou pode haveJt mai~ d~66ic.ei~, nem mai~ ~m

no pOJt.:tan.:te~ e c.on~-ideJtavei~, e pOJt.:tan.:to mai~ digna~ e mai~

bJte~, e ~e houve~~em de ~eJt de~empenhada~ na peJt6e-iç.ão 4equ~

.:tê.m _ de que

c.ommum ainda o~ mai~ c.apaze~ c.he6e~ de E~.:tado. Si e~~e ideal,

c.omo .:todo~ o~ ideae~, não pode ~eJt a.:t.:tingido, nem pOJt i~~o de

vemo~ abandona-lo pOJtque, em moJtal, paJta alc.anç.aJtmo~ o m~n~mo

c.ompa.:tivel c.om a impeJt6eiç.ão humana havemo~ de pJte.:tendeJt o ma

\

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74

ximo".20 Os medicos nao careciam de melhor aliado! Que mulher

não almejaria identificar-se com essa de quem nos fala Jose V~

rissimo? Acho que atingimos "0 máximo" e ainda o ultrapass~

mos pois vimos, ao longo do nosso seculo a mulher penetrar ca

da vez em maior numero no mercado de trabalho sem deixar de ser

tudo isso que, no seculo passado, formava o ideal do escritor.

Hoje, alem de mãe, esposa, amiga, companheira do homem, conse

lheira, aliada, etc, etc, a mulher trabalha fora A sua ca

pacidade para chefe de Estado está comprovada ... !

Para Jose Verissimo, a instrução da mulher não precisava

ser muito ampla mas, o suficiente para o digno exercicio de

suas funções, mesmo porque sua inteligência (inferior ã do ho

mem, na opinião do autor) não possibilitaria grandes avanços.

Seis anos de estudo, da puberdade ã juventude seriam suficien

tes pa ra aprender o i ndi spensável "ao exeJtc.Zc.io Jtac.ional e pJt~

veLto-6o da -6ua 6unc.ç.ão -6oc.ial. ,,21

O Or. Luis Correia de Azevedo, já clamara, em 1872 por

uma mulher instruida, unica capaz de dar a seus filhos uma edu

caça0 completa.

Sobre a instrução da mulher cujo destino era ser mae e

governar o lar, escreveu o Padre Gama a 5 de maio de 1832: "Hwna

-6 enhoJta c.a-6ada que pen-6a e educ.a deligentemente -6 eU-6 6ilhinh0-6,

que ec.c.onomi-6a a-6 di-6peza-6, que c.uida dO-6 aJtJtanjo-6 da c.a-6a, he

uma pe-6-6oa muito inteJte-6-6ante, muito Jte-6peitavel, he a mulheJt

20 VERTsSIMO, J. O "t 153 p. C1 ., p. .

21 Ibid., p.155.

t

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75

6o~te da Sag~ada E~Q~iptu~a. A ~oltei~a ap~enda ~ua muziQa,t~

que e Qante, ~aiba ainda mai~ Qoze~, bo~da~ e 6aze~ tO~Qida~;

in~t~ua-~e p~inQipalmente no~ deve~e~ da ~eligião; ap~enda a

t~aduzi~ o F~anQ~z (não pa~a ~e ent~ega~ â leitu~a da~ QO~upt~

ta~ novella~), o Italiano; e~tude a G~amatiQa da ~ua lingoa p~

~a não Qahi~ em SoleQi~mo~ e Ba~ba~i~mo~; e~tude tambem, ~e p~

de~ a Geog~aphia e a Hi~to~ia, e pa~a que mai~? Philo~ophia~ e

PolitiQa~ não lhe pe~tenQem; po~que Veo~ no~ liv~e de mulhe~e~

BaQha~ella~.» A mulher mãe ji tinha, na vida de dedicação ao

marido e os filhos os seus limites, bem estabelecidos, mas a

mulher solteira tambeffi havia de ser mantida sob controle sob

pena de se relativizar o papel da mulher na sociedade!

Referimo-nos acima ao problema da arquitetura das casas,

questão que não escapou ã crítica medica. Em 1872, o Dr. Luís

C o r re i a d e A z e v e d o i n d i g n a va - s e c o rll a s p e s sim a s c o n d i ç õ e s de

higiene nas habitações. Sua preocupação era com a criança que

crescia dentro de habitações fetidas, sem circulação de ar,umi

das, f e c h a das e h a bit a das p o r m i a s mas. » E m um a m â Q a~ a , v i Qi a

da a ~aude da Q~iança, debilitado~ o~ in~t~umento~ do de~envol

vimento o~ganiQo, Qomo ~e pode~á e~pe~a~ uma mOQidade

ta, 6o~te, ene~giQa, uma ~aça, en6im, que ~aiba Qonduzi~ a ~e~

de~tino~ g~andio~ o~ do po~vi~ e~te I mp e~io?» 2 2 A fo rma ção do

cidadão util ao país já deveria começar pela arquitetura das

casas que não escapou ã perspicácia medica no seu empenho, no

d e c o r r e r dos e cu 1 o p a s s a do, em p r o d u z i rum n o vo o b j e t o - a c ri a n

ça.

22 AZEVEDO, L.C. de. »COnQO~eM ... , p.425.

I

J , ! I I

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1 I I

1 j

76

A educação da mulher, as idéias sobre a maternidade, a

critica da arquitetura das casas, do vestuirio, dos hibitos,

etc, tudo enfim que constituia o discurso higiênico no século

passado tinha um alvo certo: a criança. Ela surgia daí mesmo

desse encontro da medicina com a família e havia de ser tradu

zida como "objeto n.aA:unal". Sobre esse objeto estitico um sa

ber seri constituído e relações de poder serão investidas de

modo que áas crianças se extrairi o miximo. As crianças, que

agora serão referidas a uma idéia do que é a cnian.ça, deverão

ser, sobretudo, úteis. Será, inicialmente, dentro dos limites

da família que se concentrarão as estratégias para pro t e g e r,

conhecer e controlar as crianças. Posteriormente"o tnabalho"

será repartido com outras instituições, dentre elas a escola,

de que nos ocuparemos mais tarde.

Na família, como vimos, a aliança do médico com a mãe foi

fundamental para que fosse eficaz a formação e disciplinariz~

ção da criança. O corpo da criança torna-se conpo po.t2ti..co. Seu

desenvolvimento, sua educação e saúde tornam-se problema de e~

tado, porque os laços da família rompiam para dar lugar a uma

formação social controlada pelo Estado, mantida a família como

lugar de passagem de todas as idéias "compatZvei.6" com o contr~

1 e e d i s c i p 1 i n a r i z a ç ã o dos i n d i v í duo s . O s c u i da dos c o m a c ri a n

ça deixam de ser uma questão pessoal, 1 imitada aos compromi~

sos com a família para ser uma questão de ne.6pon..6abilidade .60

No foro da família, os sentimentos alimentados em relação

a criança passam a ser traduzidos dos cuidados com o seu corpo

I

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77

e surge a preocupaçao com o certo e o errado, cujos critérios

consistiam na obediência às normas da higiene.

A familia é reestruturada em novos termos e emerge umsen

timento até então não experimentado, o da privacidade, o senti

mento da intimidade da relação pai-mãe-filho. Mais do que so

bre os sentimentos interindividuais a familia colonial se unia

em torno do seu patrimônio cujo representante máximo era a fi

gura paterna. Retraia-se do convivio social, vivendo no mundo

fechado dos seus lares populosos, abastecida o suficiente para

dispensar os contatos com o exterior. No século XIX, abrem-se

as casas brasileiras; promovem-se festas e recepções. As pe~

soas aparecem em sua individualidade. Expõem suas qualidades.

A mulher se destaca por seu poder de organização e os filhos

por seu poder de sedução, pela fineza dos seus gestos, por sua

educação. As habilidades e os talentos pessoais, contudo, nao

haveriaw. de servir tão somente às estrategias familiares para

conseguir, para os filhos, casamentos vantajosos; haveriam de

servir, sim, cada vez mais, ao fortalecimento do sistema cap~

talista que penetrava na sociedade brasileira. Dentro de casa

a criança se torna o maior investimento da familia e passa a

ser controlada fisica, intelectual e moralmente ao longo de to

do o seu desenvolvimento. Passa a ter uma história e também a

ser enfocada do ponto de vista psicológico.

As experiências da infância passaram a ser determinantes

na formação moral e intelectual da criança. A má amamentação,

a alimentação precária, a falta de exercicio, o vestuário ina

dequado, a experiência de castigos fisicos ou falta de amor p~

I I

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78

terno e materno, os medos, contribuiriam para a formação de um

adulto física e moralmente comprometido. De outro lado, oadul

to equilibrado, com boa formação intelectual e moral seria fru

to de uma infância feliz.

Não so a infância feliz, porem, garantiria a vida nacio

na 1 ... El a ti nha que ser di.6c.ipl..üta.da. A intervenção médi ca

na família não se restringiu às questões da saude mas também

tratava de questões de ordem disciplinar, delineando não ap~

nas o modelo do corpo saudável mas também o modelo do

disciplinado. ~ educação doméstica brasileira faltava

corpo

disci

plina. [mbora fosse muitas vezes severamente castigada,a crian

ça nao era vigiada, controlada. Havia certo desleixo em rela

çao a sua educação. Era punida quando causava danos mas fora

disso vivia solta (a menina não tinha a mesma liberdade dos me

ninos, como vimos, mas o controle sobre ela tinha o caráter de

pura restrição que visava a um objetivo muito claro que era

guardar a virgindade para o casamento). Padre Gama criticava

severamente aqueles pais desleixado em relação a educação dos

filhos. Meninos a brincar pelos telhados, pelas ruas, com to

do e qualquer tipo de companhia, frequentando tavernas para j~

gar a dinheiro, botequins, não eram repreendidos, nem sequer

provocavam algum abalo. No campo, desde cedo recebiam sua fa

quinha de ponta divertindo-se com ela a trucidar aves num exer

cício constante de matança e crueldade.

Era preciso disciplinar a criança. "No pOYl.:to de. vi.6:ta.6o

c.ial, que. mai.6 Yl.O.6 oc.c.upa Yl.e..6:te. :t~abalho, ê u~ge.Yl.:te. Yl.O B~azil

I I f

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I I 1 I

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79

de eduQação, e~tabeleQendo a di~Qiplina dome~tiQa e a e~Qolan,

de~de o en~ino pnimánio ao ~upenion, Qomo o indi~pen~ável tinQ

Qinio pana a di~Q~plina ~oQial, ba~e da ~egunança do E~tado e

laço da ~olidaniedade naQional.,,23 Estado, solidariedade na

cional - novo sentido para a educação, novos objetivos: educar

não mais para a família, para o desempenho de funções clarame~

te definidas no sentido da reprodução dos bens e costumes fami

liares; educar, sim, para o Estado, para a Nação, de modo que

a disciplina se tornou fundamental, a disciplina como a vê Fou

cault, inserida dentro de um programa, guiada por princípios,

a disciplina do cidadão.

Nada escaparia a esse trabalho minucioso: "0 menino bna

~ileino, em Qon~equenQia do Qlima e do~ aQéidente~ da~ lOQali

dade~ em que habita, tem de ~eguin uma hyggiene á pante, ~Ó pa

na elle 6onmulada. No~~a~ Qniança~ não podem e não devem ~en

Qniada~ nem á ingleza, nem á allemã, nem a nu~~a. Filho~ de um

tnópiQo quente, de Qlima ameni~~imo, onde a vida vegetativa ê

~upenabundante e enengiQa, devem ~en guiado~ de uma man~ p~

tiQulan e toda no~~a. O ~eu ve~tuanio deve apena~ n~guandan-lhe

o Qonpo da~ vaniedade~ da tempenatuna. Seu~ alimento~ devem~en

de 6áQil dige~tão e Qom máxima negulanidade pnopinado~. Seu~

ongão~ devem e~tan ~ujeito~ a um exenQiQio dianio nazoavel. De

vemo~ dan-lhe bom an pana ne~pinan, e evitan tudo que po~~aamQ

leQen-lhe o Qonpo. A~ exigenQia~ QapniQho~a~ daquella~ idade~

devem ~en Quidado~amente modi6iQada~.

23 VERrSSIMO, J. Op. cit., p.57-8.

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1

I j

1

80

0.6 .6e.u.6 in..6:tin.c.:to.6 de.ve.;i1 .6e.J1. a:t:te.n.:tame.n.:te. vigiado.6 e. guiE:

do.6, modi6ic.an.do-lhe..6 a.6 g~aduaç~e..6 mai.6 ou me.n.o.6 ac.e.i:tave.i.6

o u d e..6 c. ui p a v e.i.6 •

Ne..6.6a idade., be.m ac.on..6e.lhada.6, pode.~e.mo.6 n.O.6

ma~-lhe..6, mui:ta.6 ve.ze..6, vic.io.6 he.~e.dita~io.6, dan.do-lhe..6 c.o n.v e.

n.ie.n.:te..6 de..6vio.6 ou .6ubme.:t:te.n.do-o.6 a uma c.u~a .6e.n..6a:ta.

Tudo i.6:to ê p~a:tic.ave.l; :tudo i.6:to de.ve. .6e.~ 6e.i:to po~que.

.6e. :t~a:ta da ga~an.:tia da vida n.ac.ion.al,,24 , escreveu o

Luis Correia de Azevedo, que deixaria qualquer criança

medico

"p~o!!.

:ta" para servir ã Pátria com presteza e competência máximas.

A educação fisica passou a ser reclamada por todos que

se ocupavam da educação, vista como complemento indispensável

da educação espiritual (intelectual e moral). O Estado precl

sava de homem "bom, in..6:t~uldo e. 60~:te.".25 A educação fisica,

guiada pelas regras da higiene na verdade deveria começar na

vida intra-uterina atraves dos procedimentos da mãe durante o

periodo de gestação, para seguir depois com os minuciosos cui

dados com o corpo da criança recem-nascida, cuidados relativos

ã alimentação, vestuário, ambiente (objetos, sons, cores que

cercam a criança) e mais tarde com os exercicios corporais ori

entados por pais e mestres (em casa e na escola): "C~e.e.mo.6 n.a

n.o.6.6a moc.idade. :tão 6~ac.a, :tão e..6:tiolada po~ uma pie.ga.6 li:te.~a

:tic.e. p~e.c.oc.e. ~ pe.lo p~e.ma:tu~o e.~o:ti.6mo, i.6.6O que. um e..6c.~ip:to~

24 AZEVEDO, L.C. de. Concorrerá ... Op. cit., p.435.

25 VERfSSIMO, J. Op. cit., p.68.

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81

6fL anc.e.z, tfLatando e..6.6 e..6 a.6.6umpto.6, c.hama "mate.fLia de. e.nthu.6ia/~

mo". Inc.ite.mo.6 ne..t.ta e..6.6e..6 afLbofLe..6 da .tuc.ta phlj.6ic.a, a ve.fL.6e.

.the. ge.fLamO.6 o e.nthu.6ia.6mo que. .the. 6a.tta na.6 .tuc.ta.6 inte..t.te.c.

tuae..6 e. mOfLae..6. Quanto.6 pe.dagogi.6ta.6 e. phlj.6io.togi.6ta.6 têm e..6

tudado e..6ta.6 que..6tõe..6 .6ão ac.c.ofLde..6 e.m fLe.c.onhe.c.e.fL a in6.tuênc.ia

pode.fLO.6a da e.duc.ação phlj.6ic.a .60bfLe. a inte..t.tige.nc.ia, .60bfLe. o c.a

26 fLate.fL, .60bfLe. a mOfLa.t" ,escreveu Jose Veríssimo no seu "A Edu

c.ação Nac.iona.t". Hoje a inteligência, o caráter e a moral dos

brasileiros devem ser exemplares ... O cultivo do corpo e ".te.i".

Multiplicaram-se para alem dos limites da casa e da escola as

"in.6tituiçõe..6" do corpo que ocupam na vida dos indivíduos (pri..!!

cipalmente crianças) um lugar tão importante quanto qualquero~

tra atavidade formativa. Muitos que não se exercitam dentro

de academias (nesse caso adultos) consagram parte do seu tempo

à corrida pelas ruas, praças, parques, ou calçadões. Vinicius

de Moraes, um dia, conversando com Antonio Maria em seu apart~

mento, em Ipanema, viu passar um desses "e.ntu.6ia.6ta.6". Disse:

"Me.u MafLia, e.u qUe.fLO 6aze.fL uma pfLome..6.6a: nunc.a e.m minha vida

6aze.fL um ge..6to inúti.t".* Corre-se para lugar nenhum, pula-se

para nao alcançar nada ... mas a disciplina do corpo ... Nada

melhor do que, para um espírito educado, um corpo disciplin~

do. Há que se garantir a obediência e submissão de todas as

formas, cercando por todos os lados, disciplinando corpo e es

pírito. Hoje, desde cedo encaminham-se as crianças às mais di

versas atividades: natação, futebol, voleibol, ginástica olím

pica, judô, bale, "jazz" (que de jazz não tem nada) e tantas

26 Ibid., p.8l.

* Passagem relatada por Sergio Cabral a Gastão de Holanda.

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82

outras. Quantas crianças nao têm tempo sequer para dizer se

- ? gostam ou nao .... E o pior, muitas vezes são elas que pedem

aos pais que as coloquem. Como conseguir ser diferente a nao

ser quando a pobreza é o real empecilho? Vitória da nossa so

ciedade disciplinar: adultos e crianças cultivam o corpo porque

desejam o desenvolvimento flsico pleno, o domínio dos ge~

tos e dos movimentos, a capacidade de defesa, a beleza, os p~

drões, as medidas, os recordes levam ao domlnio sobre o próprio

corpo mascarando a perda da liberdade do esplrito! Como passar

ao largo das academias e inventar um outro corpo fora dos p~

drões da educação flsica? Adultos e crianças parecem fadados

ã busca incessante do corpo ideal. Como força especial que é,

a criança hoje é o principal alvo desse trabalho disciplinar

que produz precocemente um sujeito obediente e util.

Não foi ã toa que a educação física começou a ser enalt~

cida no momento em que o corpo da criança foi investido, a pa~

tir da segunda metade do século passado, por relações de poder

que objetivavam o seu controle, proteção e vigilância para trans

formá-lo em "6oJtç.a pJtodut-tva".

Na infância, porém, o essencial e que a criança fosse so

bretudo ~Jt-ta~ç.a, com sua individualidade marcada. "Qua~do a

~Jt-ta~ç.a poJtêm, 6ôJt apath-t~a, -t~dole~te ~umpJte de~e~volveJt-lhe

a vo~tade, a qual ~ão ê ~-t~ão uma ma~e-tJta de ~eJt da

-t~~-tta~do-a e pJto~uJta~do de~a6-taJt ~ella o ~e~t-tme~to do bJt-to,

da d-tg~-tdade e da ho~Jta. Ella ~ão queJt bJt-t~~aJt, -t~~-ttae-a a

bJt-t~~aJt, mo~tJtae-lhe a~ outJta~ que bJt-t~~am, bJt-t~~ae ~om ella,

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83

6aze~-lhe ~ent~n o attnact~vo do~ bn~nquedo~, anna~tae-a bnan

damente e pen~ua~~vamente a bn~ncan.,,27

As palavras de José Verissimo são perfeitas. Ser criança

nao e mais que obrigação ... ; tem que brincar, tem que ser igual

as outras. Não é assim que nossas escolas funcionam? E por i~

so que dizemos: quando afinal atentaram para a criança, pa ra

descobri-la, conhecê-la, protegê-la, educá-la, enfim, fazer d~

la um cidadão, quando quiseram convencer de que afinal seria

compreendida e respeitada, aprisionaram-na e montaram-lhe uma

armadura - os direitos da criança ... (ou suas obrigações).

T a r e f a tão a m p 1 a e tão p r o f u n d a c o m o a d e e d u c a r a s c ri a n

ças não pode ser levada a cabo isoladamente pela familia, ou

pela escola mas, cabe também a "toda~ a~ 6onç.a~ e. ongao~ ~o

c~ae~: ã 6 am~l~a, ã~ Re.l~g~õ e.~, ao Go venno, ã Pol~t~ca, ã Sue~

c~a, ã Ante., ã L~tenatuna",28 como mais uma vez coloca com pe~

feição José Veríssimo, profundo defensor da sociedade discipli

nar onde todas as práticas se articulam para aumentar sua com

petência.

3. A Cn~anç.a Pobne.

E a criança pobre? O discurso dos médicos e educadores

se dirigiam a ela também? Parece que não; porque por trás dos

discursos está um modelo de família abastada (provedora dos

futuros mandantes da nação) que pouco ou nada tem a ver com a

27 I b i d., p. 54 . 28 Ibid.

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84

familia da criança pobre. Jacques Donzelot já nos desperta p~

ra o fato de que o poder usa estratégias diferentes para o co~

trole das famflias burguesas e populares. Procurarei aqui apo~

tar para certos aspectos que especificam no Brasil a estratégia

de controle, proteção e vigilância da criança pobre.

No tempo da escravidão, ela era escrava ou filha de es

cravos emancipados ou imigrantes sem sorte, neste caso, habi

tando cortiços pelas periferias das cidades, em condições as

mais precárias para sua sobrevivência e formação. As péssimas

condições de higiene conferiam-lhe um lugar no discurso médico

porque eram ameaça constante ã saude publica. Aliás, parece

que todas as estratégias utilizadas em direção as classes popu

lares são para o bem da comunidade, da sociedade, raramente con

vertendo para uma mudança real em sua condição. O importante

e que as medidas tomadas tenham sempre como efeito a resolução

dos problemas que afetam a sociedade como um todo, como a amea

ça a saude publica e o perigo de convulções sociais.

Por dois séculos no Brasil as crianças pobres abandona

das dependiam da caridaàe do povo. Algumas almás "c.aJc.ido-6a-6"

recolhiam-nas para fazer delas escravos. Algumas crianças fi

cavam em praças e ruas, expostas ao tempo e aos animais. Somen

te em 1693 El Rei ordenou que o governo as assistisse embora

so em 1738 tenha sido fundada, por Romão de Mattos Duarte, em

14 de janeiro, uma casa especialmente designada para o

mento das crianças abandonadas: o Hospital dos Expostos.

atendi

As

crianças eram, contudo, atendidas e alimentadas por amas em es

tado de miséria ou escravidão que muitas vezes maltratavam-nas

Page 92: A EMER60tcIA DA CRIANÇA li) BRASII{'1

85

para serem despedidas ou fugiam para procurar trabalho junto a

particulares. Muitas escravas eram enviadas para o Hospital

dos Expostos por castigo dos seus senhores. Esse hospital era

popularmente conhecido como a Roda porque a criança que se qu~

ria "e.XPOfL" era colocada numa roda, no lugar de uma janela, com

metade para o lado da rua e metade para o lado de dentro, de

forma que, com uma meia-volta, a criança passava para dentro da

instituição e a pessoa que a depositava mantinha-se no anonima

to. Com pouqulssima chance de sobreviver (o lndice de mortali

dade era altlssimo), as crianças eram deixadas na Roda para se

rem alimentadas e cuidadas. Posteriormente eram dadas. As mu

latas muitas vezes salam para serem escravas. As brancas tinham

um futuro incerto pela frente. As pessoas que se propunham a

levar as crianças recebiam pensões para sua alimentação, tão

pequenas porem, que, em condições de pobreza, dificilmente con

seguiam manter a criança viva.

Sobre as crianças "e.xp0.6ta.6", escreveu Fletcher: "Qua.t

.6e.fLia a ~ondição mOfLa.t ou 0.6 .6e.ntime.nto.6 humano.6 de..6.6a.6 nume.fLo

.6a.6 pe..6.6oa.6 que. de..tibe.fLadame.nte. ~ontfLibue.m pafLa e.XpOfL a vida

da.6 ~fLiança.6? Uma ~ifL~Un.6tân~ia pe.~u.tiafL .tigada a e..6.6e. e..6tado

de. ~oi.6a.6 ê o 6ato a.te.gado de. que. muito.6 do.6 e.xpO.6tO.6 .6ão pfL~

du~to.6 da.6 mu.the.fLe..6 e..6 ~fLava.6, ~uj 0.6 .6 e.nhofLe..6, não de..6 e.j ando 0.6

abofLfLe.~ime.nto.6 e. a.6 de..6pe..6a.6 da manute.nção da.6 ~fLiança.6 ou de.

.6e.jando o .6e.fLviço da.6 mãe..6 ~omo ama.6 de. .te.ite., e.xige.m que. a.6

~fLiança.6 .6e.jam e.nviada.6 ã 'Enge.itafLia', onde., .6i ~on.6e.gue.m .60

bfLe.vive.fL, .6e.fLão .tiVfLe..6."

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86

o que era porem a liberdade do pobre? A "Le..<.. do V e. »tJt e.

L'<"vJte.", promulgada a 28 de setembro de 1871, que livrava da es

cravidão os filhos nascidos dos escravos, a partir daquela da

ta, não garantia a estes uma vida de felicidade. A tais crian

ças nada se ensinava porque nada renderiam no futuro, de forma

que cresciam sem habilidades e despreparados para a vida prQ

fissional. A lei determinava que os senhores mandassem ensi

nar a essas crianças ler e escrever, mas isso nao era c ump ri

do, salvo raríssimas exceçoes. Dessa forma os pequenos pretos

livres tinham pela frente um futuro incerto, que haviam de en

frentar sem saber ler, escrever e trabalhar.

o culto da maternidade, que vimos florescer no seculo XIX,

nas palavras dos medicos e educadores, para a mulher pobre era

desgraça. As condições de pobreza, o desconhecimento do -prQ

prio corpo e dos meto dos contraceptivos, pouco difundidos na

epoca, a exploração sexual de que era vítima e a consequente

ilegitimidade do filho transformavam a maternidade em tragedia.

Tinha que livrar-se do filho. Muitas vezes morria na mao de

leigos que faziam o aborto (os medicos se negavam). Muitas ve

zes matava o filho ao nascer. Outras vezes depositava-o na Ro

da. Eram as opções da pobreza e do desespero, da vergonha e

da culpa, porque ser mae, como vimos, era seu destino na terra

mas ser mãe ilegitima era crime, atentado ã moral, porque ocul

to ã maternidade era orientado para dentro dos limites do casa

mento e da família. Esse drama era comum na vida das mulheres

que tinham emprego domestico. Provenientes do interior, eram

exploradas social e sexualmente. Defloradas pelo patrão eaban

donadas ã própria sorte não conheciam soluções diferentes daqu~

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las a que recorriam em desespero. Socialmente sofriam uma ex

ploração marcada pelos resqulcios da escravidão e pela nova or

dem capitalista que se implantava com todo vigor. A mesma mu

lher a quem era proibida a maternidade, porque ilegltima, era

condenada pelo crime de não querer ser mãe. Por questões mo

rais não podia ser mae mas por questões sociais, eCGn6micas e

pollticas não podia se negar a sê-lo.

A Roda era criticada por alguns que a consideravam um es

tlmulo aos atos ilegltimos, ã promiscuidade sexual. Na opinião

do medico Francisco de Paula L. Gonçalves, entretanto, pelo fa

to de oferecer a solução ao desespero feminino, a Roda não li

vrava a mulher de uma punição sereva: o sofrimento. " onde

n~o h~ ho~pZ~io~, urna vez ~onven~ida da ~ua ghavidez, a moça

n~o tem ~en~o um pahtido a tomah, é o ~on6e~~~-fa

te; outhO tanto não a~onte~e enthe nõ~, n~o é ~omente peno~o o

phimeiho momento, effa é obhigada a o~uftah-~e pOh ~in~o, ~ei~

meze~, e dUhante e~~e tempo que de pezahe~, e f~ghima~ n~o de~

hama a in6efiz, e afém di~~o quanto e pezaho~o o momento da ~e

N- -I- - ,,,29 ao, pOh ~eh~O que nao. Como e moral o discurso medico! Atra

ves da opinião procura lançar verdades! A vehdade da ~ufpa p~

lo crime cometido, a verdade da dor da separação do filho. O

o r. F r a n c i s c o de Pau 1 a p o d i a e s t a r c e r to, c o m o p o d i anã o es ta r ;

mas parece que essas verdades produzidas ficaram e acreditou-se

que eram fatos naturais.

29 GONÇALVES, Francisco de Paula L. Op. cit., p.5.

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Os fatores que levavam ã exposição das crianças eram, se

gundo o Or. Francisco de Paula, os seguintes: a concepção fora

do casamento, a imoralidade, a exploração sexual das escravas,

a promiscuidade nos cortiços, o cl ima ("que. tão a.lta.me.nte. a.c.c.e.~

de. o 60go da..6 pa.A..xõe..6 c.oJtpoJta.e..6") e a i mpuni da de dos c ri mes de

infanticídio. "E be.m c.ommum e.ntJte. nó.6 notA..c.A..a.Jte.m 0.6 jOJtna.e..6 o

a.ppa.Jte.c.A..me.nto de. um ou ma.A...6 c.a.da.ve.Jte..6 de. Jte.c.e.m-na..6c.A..do.6 no.6 de.

gJtáo.6 da..6 A..gJte.ja..6, na..6 e..6quA..na..6 da..6 Jtua..6, na..6 pJta.A..a..6 e. a.té, .6e.

nhoJte..6, na. pJta.A..a. da. GlóJtA..a., junto me..6mo do e.dA..6Zc.A..o que. hoje.

.6e.Jtve. pa.Jta. o Jte.c.e.bA..me.nto do.6 e.nge.A..ta.do.6, bOA.., a.A..nda. não há muA..

to te.mpo, e.nc.ontJta.do, não um c.a.da.ve.Jt, ma..6 um Jte.c.e.m-na..6c.A..do a.A..n

da. VA..VO, e. pJte..6te..6 a. .6e.Jt e.ngulA..do pe.la..6 onda..6 a.o e.nc.he.Jt da. ma.

.. - ,,30 'L e. • O Or. Jose Maria Teixeira tambem aponta para a impuni

dade do infanticídio como uma das causas da exposição das crian

ças. Relata no seu livro "Ca.U.6a..6 da. MoJtta.lA..da.de. da..6 CJtA..a.nç.a..6

no RA..o de. Ja.ne.A..Jto" que ouviu de um magistrado de sua epoca ocu

pante do grau mais elevado da hierarquia judiciária, que em qu~

renta anos de tirocínio, havia julgado apenas um crime de in

f t " ~d" 31 an 1C1 10. Não há dúvida de que livrar-se ou matar uma crian

ça ate o seculo passado, no nosso país, não possuía o mesmo

sentido que possui hoje. Para o Or. Jose Maria Teixeira a exis

tencia da Roda favorecia o infanticídio e o abandono pois ti

nha conhecimento de que estes tendiam a diminuir nos lugares

onde a Roda havia sido suprimida. Como vemos a Roda era uma

questão pOlemica, como e hoje todo tipo de instituição em que

30 Ibid., p.21.

31 TEIXEIRA, J.M. Op. cit., p.385.

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!

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89

as crianças pobres sao "guaILdada.6". o problema continua

Quanto ã questão do infanticidio, tornou-se tanto mais grave,

tanto mais criminoso, quanto mais se fortaleceram as id~ias de

que a criança era o maior bem de investimento da nação. Tamb~m

concorriam para a exposição de crianças abusos como o de senho

res de escravos que "expunham" as crianças enfermas de 2, 3 e

a t ~ 4 a nos p a r a n a o a r c a r e m c o mas de s p e s a s d o e n t e r r o (a ma i o r

parte dos engeitados era de crianças pretas) e de maes que ex

punham os próprios filhos para no dia seguinte tomá-los para

criar, COffiO engeitados, para o que eram remuneradas como "cILia

deiILa.6 de óOILa".

A partir da segunda metade do século passado procurou-se

no Rio de Janeiro favorecer a criação externa das crianças co

locadas na Roda, através de uma melhor remuneraçao das amas ex

ternas. Em Campos, Bahia e Pernambuco a estada da criança já

era provisória. Ficava na Roda somente at~ que uma ama de fo

ra aparecesse e a levasse para criar. Com o aumento das cria

ções externas o indice de mortalidade das crianças expostas di

minuiu bastante.

A vida do pobre ~ assim. Parece que nao muda muito. Ho

je os problemas são praticamente os mesmos. O pobre vive na

miséria ou ~ "tiILado de c.iILculaç.ão", guardado em Instituições.

A sua liberdade é o perigo constante da fome, da morte, das ba

tidas da policia. As estratégias usadas para os pobres sao de

vigilância e controle: Em 31 de outubro de 1989, em encontro

realizado na Pontificia Universidade Católica do Rio de Janei

ro - "A CILianç.a e .ó eu.ó ViILeito.ó: E.ótatuto da CILianç.a e do Ado

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le~cente e C5digo de Meno~e~ em Vebate", o Dr. Antonio Fernan

do do Amaral, Juiz de Menores de Blumenau, relatou o seguinte:

... "Lemb~o um out~o ca~o, o de um menino de ~ua que encont~a

va-~e do~mindo no v~o de uma e~cada ou coi~a pa~ecida, e um mau

6ilho de uma boa 6amZlia me joga álcool o u ga~ ol'<' na no me.nino,

de. b~incade.i~a, ma~ in6elizme.nte. le~ionou ba~tante. o out~o, e.

a polZcia, a ~ádio pat~ulha, p~e.ndeu a ambo~ e.m 6lag~ante.. O

advogado compa~e.ce.u, e. como diz o C5digo de Me.no~e~, no a~tigo

59, que na aplicaç~o de~ta le.i o~ inte.~e.~~e~ do meno~ ~ob~ele.

va~ao a qualque~ out~o bem ou inte~e~~e ju~idicamente. tutelado

e que toda medida, diz o a~tigo 73 do C5digo, vi~a~ã, 6undame.~

talmente, a integ~aç~o ~5cio-6amilia~, e que o~ meno~e~ que e!

t~o em ~ituaç~o i~~egula~, em ca~o de doença ~ocial, de patol~

gia ~ocial, p~eci~am de uma te~apia, de um t~atamento, e~te m~

nino 60i imediatamente encaminhado a ~ua ca~a. E~tã integ~ado

na 6amZlia, 60i um ato impen~ado, ~em d~vida, ma~ ... e ele

60i ~ubmetidoa um acompanhamento, enquanto o out~o 6icou p~~

~o. E~ta ê. a ve~dade, p~e~o me~mo, num Cent~o de Ob~e~vaç~o e.

- . d "32 -T~iagem, po~que e um men~no e ~ua. A historia se repete:

o menino pobre é preso; o menino de boa família (boa aqui signl

fica não ser pobre ... ) e encaminhado a terapia - vigilância e

controle para um, proteção para outro (já nos dizia Donzelot

no trabalho que realizou na França! O capitalismo onde emerge,

repete as mesmas estratégias!).

32 "A C~ança e Se~ V~wo~. ~.ta.tuto da C~ança e do Adolucente g c5 digo de. Meno~~". Org. Professora Esther Maria de Magalhães Arantes e Pro fessora Maria Euchaves de S. Motta. PUC/RJ - FUNABEM, 1990, p.16.

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1 1 i I t

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9 1

A emergência da criança no Brasil aponta para duas reali

da d e s: das f a mil i a s a b a s ta das e m e r g e a c.Jt-i. a n ç a, das famílias

pobres emerge o meno~. "O lvan-i.~ d04 Santo4 coloca mu-i.to bem

o p~oblema do que ~ o meno~ e do que ~ a c~-i.ança e o adole4cen

te. Meno~: a -i.ndumentá~-i.a malt~ap-i.lha e tal ... A c~-i.ança: ~

o n04 4 o n-i.lho. M eHo~: ~ o 6Ltho d04 o ut~o4 ... C~-i.a nça: ~ aqu~

la que toma -i.ogu~te. O meno~ natu~almente que não tem ace440

a -i.440."33 O Estatuto da Criança e do Adolescente está tentan

do acabar com isso, fazer sumir a expressão "meno~" que marca

e discrimina a criança pobre. Está tentando acabar tambem com

essa i ilter.nação/pri são, propondo "ga~ant-i.a d04 d-i.~e-i.to4 pe440~

e 4oc-i.a-i.4, at~av~4 da c~-i.ação de opo~tun-i.dade4 e 6ac-i.l-i.dade4 a

6-i.m de 6ac-i.l-i.ta~ o de4envolv-i.mento 614-i.co, mental, mo~al, e4p{

Jútual e 4oc-i.al em CONDIÇVES DE LIBERDADE E DIGNIDADE. ,,34 En

quanto, porem, houver pobreza continuará existindo a criança

c~-i.ança e a criança ca~ente, carente porque carece do que a o~

tra tem; carente porque não e como a outra e. Carente porque

nao brinca de roda, mocinho e bandido ou cabra cega; porque age

"p~at-i.camente 4em ~e4gulc-i.o4 da te~nu~a da -i.nnânc-i.a". ("Po.elúa?

Eu 45 que~-i.a ~ coloca~ um 6acão no pe4coço dele4."135

A realidade da criança pobre está no dia a dia. A reali

dade das crianças favorecidas parece coincidir muito bem com

os discursos cientificas e juridicos.

33 "A C~nça e 4 eM D-i.~eU:.04" tas.

p.6l, fala do Major Altanir N. de Frei

34 Ibid., anexo, quadro sinõptico, p.85. 35 Jornal do Brasil, de 24/06/89 - "Inde-6úúção do Govelr.no pode ap~e44M ~~da de colono4".

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1

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Algumas noticias de jornal podem ajudar-nos a ter uma va

ga ~dê~a sobre essa outra realidade:

"CJz.~anç.a -60óJz.e. agJz.e-6-6ão. Pa~ qua-6e mata a 6~.tha no d~a

ded~cado a e.ta" - fato que ocorreu no morro do Pavão, em COP!

cabana, zona sul do Rio de Janeiro. O pai espancou, cortou o

pulso e feriu três dedos da filha por ter quebrado, na vespera,

ladrilhos de uma obra vizinha, ao brincar de pique-esconde com

o irmão.

"MoJz.adoJz.e-6 cumpJz.e.m ameaç.a-6 e. tJz.uc~dam e.-6tupJz.adoJz. de men~

na" - aconteceu em Serra Dourada, a 700 qui15metros de Salva

dor. Menina de um ano e três meses foi estuprada e morta a p~

nhaladas por dois homens que a tiraram de casa, onde dormia ju~

to aos pais.

"Beb~ de quatJz.o me-6e.-6 ê aóogado pe.to-6 pa~-6 pOJz.que. choJz.a

va mu~to" - aconteceu na vila Campo da Tuca, Zona Leste de Por

to Alegre. O casal afogou o filho no riacho porque "e.te choJz.a

va mu~to li no~te".

"PJz.o óe.-6-6oJz.e.-6 e-6pancam e. matam babá. de. 10 ano-6" - em Curi

tiba, professores universitários espancaram a babá, que acabou

morrendo por causa dos ferimentos. Ela cuidava de dois filhos

do casal, um de três anos e outro de cinco.

"Vome.-6t~ca -6e.m Jz.ecuJz.-6O que.Jz. doaJz. ó~.tha-6" - na periferia

de Belo Horizonte, uma domestica queria doar as três filhas de

7, 5 e 2 anos. Dizia: "pJz.e.6~Jz.o moJz.Jz.e.Jz. a veJz. m~nha-6 ó,Ltha-6 na

FEBEM." I t

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93

"Ca.6a.t .6em empltego anunc..ia 6.i.tha menolt" - um classifica

do de jornal em Brasília trazia o seguinte anuncio: "Vou uma

c.1t.iança .6audáve.t, palta quem t.ivelt cond.içõe.6 6.inanc.e.ilta.6

c.1t.iá-.ta". Mãe e pai estavam desempregados e sem casa.

nhecido hospedou-os. Iam "moltalt" num ponto de ônibus.

palta

Um co

Essas notícias, colhidas no Jornal do Brasil, 36 estão aí

para mostrar que desconhecemos muitas razões da vida. As leis

e as ciências estão aí para regulá-la e conhecê-la mas ela es

capa e suas forças manifestam-se em "e..õtJtanho.6" acontecimentos ...

Será que a Psiquiatria dá conta de um pai querer matar a filha,

de um homem estuprar uma criança, de um casal afogar o próprio

filho? Será que uma mae amorosa e dedicada pode compreender

que se anuncie a filha em classificado de jornal? Não. Não se

consegue entender a singularidade quando o pensamento está oc~

pado com o universal e a subjetividade se constitue para a igual

dade e nao para a diferença.

4. A V.i.6c..ip.t.ina E.6c.o.talt

A partir do século XIX, no Brasil, os colégios adquiriram

grande importância como instrumento de controle e adestramento

das crianças. A família lhes delegou amplos poderes para o d~

sempenho de um papel complementar na educação de seus filhos.

Na verdade, os colégios, com o regime de internato, tinham me

lhores condições de cumprir tal tarefa, uma vez que, afastada

da desordem familiar, a criança mais facilmente se submeteria

36 Jornal do ~rasil de 11/10 e 25/11/88; 21/06/89; 18/01,23/02 e 28/03/90, respecti vamente.

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as forças de adestramento e aprisionamento de sua vontade. Pa

ra isso a disciplina e a ordem eram dispositivos fundamentais.

o espaço físico, o tempo, o corpo, o sexo, o espírito, o pens~

mento, passaram a ser regidos pelas normas disciplinares dos

colégios. A preocupação com os mínimos detalhes caracteriza

ria esse trabalho minucioso. Foucault observa que a preocup~

çao com o detalhe que caracteriza o trabalho disciplinar, tem

uma origem religiosa e que, no decorrer dos séculos XVII eXVIII,

o modelo dos colégios mais conceituados foi, na verdade, o mo

delo do convento. Em tese apresentada ã Faculdade de Medicina

d o R i o d e J a n e i r o, e m 1 8 o 5, i n t i t u 1 a da" E .6 b o ç o d e um a. H y 9 .<. e. n e.

do.6 Colleg.<.o.6 Appl,<,Qa.ve.l a.O.6 no.6.6o.6", José Bonifácio Caldeira

de Andrada Junior mostrou esse tipo de preocupação, procurando

estabelecer, com mínimos detalhes, tudo o que deveria ser lev~

do em conta por aqueles que se dedicassem ã nobre tarefa deedu

caro O local do estabelecimento, sua construção interior, as

condições do ar (dentro e fora dos colégios), a iluminação,te~

peratura ambiente, o vestuário dos alunos, o asseio do corpo

(tipo e duração), os cosmeticos, àS doenças ("em :todo.6 0.6 QOU~

g.<.O.6 de. uma. Qe.Ua. otuiem havelLâ. um mê.d.<.Qo de. palltido que, além dM OQa..6,<,õu

e.m que 6ô~ ~eQla.ma.do pa.~a. Qa..60.6 de. u~gênQ,<,a., ob~gue-.6e. a. .6ub

me.:te.~ a. uma. .6ê.~.<.a in.6pe.çio, a.o meno.6 uma. ve.z po~ .6ema.na., o e..6

:ta.do mo~a.l e. .6a.n'<':t~~'<'o do.6 .6e.u.6 mo~a.do~e..6,,)37, a alimentação,

as bebidas, além de outras questões das quais nos ocupa remos

adiante, foram minuciosamente analisados pelo medico, num "e..6

37 ANDRADA JUIUOR, Jose Bonifácio Caldeira de. E.6boço de. uma. Hyg.<.e.ne. do.6 CoUe.g.<.O.6 Appt.<.Qa.ve.l a.O.6 no.6.6O.6. Tese apresentada a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, a 22 de dezembro, 1855. p.2l.

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60ltço adm.iltáve.t" de criar as condições ideais de formação das

crianças, o que, como nao poderia deixar de ser, tinha que es

tar sob orientação higiênica.

Para seu exercício, a disciplina precisa delimitar o es

paço físico, determinar a distribuição e localização dos indi

víduos (classificá-los) e estabelecer as relações funcionais.

Na escola, uma organização peculiar atenderá a essas questões:

a fila, o alinhamento das classes de idade, a sucessão dos as

suntos ensinados, a hierarquização do saber, a organização se

rial, o controle cio tempo (tanto com relação ã cronometria dos

programas quanto com relação ã cronometria dos gestos e dos m~

vimentos), a correlação entre o corpo e os gestos,a correlação

corpo-objeto (o correto uso do lápis, dos livros e cadernos, a

postura), possibilitam ao poder disciplinar uma açao eficien

te. Nas "V.i~po~.iç~e~ Re.tat.iva~ ao Exteltnato do Impelt.ia.t eo.t.te

g.io de Pedlto 11", de 1874, podemos ler, no que cabe aos profe!

sores: "E~tabelec.elt de tlte~ em tlte~ meze~ entlte a.tumno~ de ~ua

au.ta um c.onc.ult~o pOIt e~c.It.ipto ~oblte algum ponto da matelt.ia que

lec.c..ionaltem. A~ pltova~ de~~e c.onc.ult~o ~elt~o ju.tgada~ pOIt uma

c.omm.i~~~o c.ompo~ta do~ Plto6e~~0Ite~ do Ite~pec.t.ivo anno ~ob a

plte~.idenc..ia do Re.itolt. Em c.ada au.ta o~ ~e.i~ a.tumno~ que ma.i~

~e d.i~t.ingu.iltem ne~~e~ c.onc.ult~o~ e que ma.i~ pltova~ t.iveltem da

do de appl.ic.aç~o, bom pltoc.ed.imento e a~~.idu.idade, tanto na au

la c.omo ó5lta della, telt~o a~~ento em banc.o e~pec..ia.t, que ~e de 38

nom.iHaltâ 'Banc.o de Honlta"'. Os professores tinham também en

38 LIMA, Conego José Joaquim da Fonseca. V~po~.iç~~ Re.e..at.iv~ ao Exteltna to do ImpeJt.ial Colleg.io de Pedlto 11. Rio de Janeiro, Typographia Naciona1~ 1874, capo VI, § 59, p.13.

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(

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tre outras obrigações, que "enthegah todo~ o~ ~abbado~ ao Vice

Reitoh um mappa ~obhe o phocedimento e thabalho do~ alurnnM"39 , o qual era lido solenemente, na sala de estudos, para que o

Reitor e o Vice-Reitor tomassem conhecimento. No capítulo IX,

artigo 37, § 19, podemos ler uma das tarefas do Inspetor de

alunos: "Repahtih a ~ua cla~~e em tanta~ divi~õe~ quanta~ ju!:

gah nece~~~hia~, enthegando a dihecç~o de cada urna dela~ ao

alumno que lhe meheceh con6iança. E~te ~eh~ he~pon~~vel pelo

compohtamento da ~ubdivi~~o a ~eu cahgo."40 Na tese ji citada

de Jose Bonificio Caldeira de Andrada Junior encontramos a preE.

cupaçao com a adequação do ensino às condições individuais de

desenvolvimento dos alunos. Escreveu ele: A lei, ~egundo a

qual tem de ~eh di~thibuida a pOhÇ~O de exehcZcio intellectual

que convem a cada um do~ alumno~, deve deduzih-~e da~ condi

çõe~ de idade, de ~exo e de con~tituiç~o. Pho6e~~ohe~ h~ que

n~o di~pondo de penet~aç~o nece~~~hia paha podehem exigih de

cada um aquillo unicamente e tudo aquillo que e~tiveh comphehe!!.

dido na e~pheha da~ ~ua~ concepçõe~, COhhem o hi~co de e~ma9ah

o talento de un~ e n~o ap~oveitah a~ bella~ di~po~içõe~ de ou

thO~; e o que he~ulta da uni60hmidade de thabalho~ intellect~

paha um g~ande numeho de menino~ que n~o ob~tante mOhahem de

baixo do me~mo tecto, di66e~em enthetanto na idade, no tempe~~

mento, na~ paixõe~, e no de~envolvimento da ~ua intelligencia. "41

Não hi duvida: trata-se de uma eficiência incontestive1 e o

39 Ibid., Art. 27, § 39, p.14. 40 Ibid., p.16.

41 ANDRADA JUNIOR, Jose Bonificio Caldeira de. Op. cit., p.37.

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I 97

poder disciplinar mostra sua positividade - "o momento hi4t5~i

co da4 di4ciplina4 i o momento em que na4ce uma a~te do co~po

humano, que vi4a não unicamente, o aumento de 4ua4 habiüdadu,

nem t50 pouco ap~o6unda~ 4ua 4ujeição ma4, a 6o~mação de uma

~e.e.ação que HO me4mo mecani4mo o to~na tanto mai4 obediente qua!!;

to i mai4 ~til, e inve~4amente"42, diz com profundidade Fou

cault. A criança enfim, a partir do século XIX, é alvo de for

ças que a avaliam, investigam, classificam, separam,controlam,

vigiam, protegem para que sua educação seja eficaz e quanto

maior a adequação daquilo que se ensina, às suas condições de

aesenvolvimento, maior a sua produtividade no final e também

sua obediência, uma vez que todas as suas habilidades são apr~

veitadas e estimuladas no "tempo ce~to", mantidas, enfim, sob

cont ro 1 e.

A punição jamais foi descartada. Os alunos do Colégio

de Pedro 11, no século passado, eram punidos com a reclusão em

quarto preparado para tal fim, apelidado de "ca6uã", de dimen

sões minimas, sem luz e sem circulação de ar e próximo ao lu

gar dos despejos do Colégio. 43 José Bonifácio Caldeira de An

drada Junior não esquece essa questão na sua tese. Clama, p~

rém, por novos métodos: "Vizei-me, 5 V04 que conhecei4 tão p0E;

co 04 ve~dadei~o4 4entimento4 do co~ação do homem, pa~a que d~

tou-n04 a natu~eza com o dom da ~azão e da con4ciincia, de que

n04 4e~ve o amo~-p~5p~io e o ~emo~4o, 4enão pa~a 4e~vi~-no4 de

42 FOUCAULT, Michel. Vigiah e Pu~. Petrópolis, Vozes, 1987, p.127.

43 DORIA, Escragnolle. Memo~ H~t5~ca do Coflegio de Pe~ 11. Rio de Janeiro, Publicação Oficial sob os Auspicios do Ministério de Educação, 1937, p.57.

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9uia~ no e~cab~o~o caminho da~ no~~a~ inclinaç5e~? Que nece~~i

dade poi~ te~emo~ n5~ de, pa~a co~~i9i~ o e~pi~ito, avilta~ a

mate~ia, ~e~vindo-no~ pa~a a educação do homem do~ me.~mo~ -<.n

centivo~ que co~tumamo~ e.mp~e.9a~ pa~a com o~ i~~acio"ai~? Não I ~e~ia mai~ nob~e e. philo~ophico que ent~e9a~~emo~ o no~~o J~

vem educando ao~ ~eu~ juize~ natu~ae~, que p~ocu~a~Zamo~ de~

pe~ta~, ao de~90~to do amo~-p~5p~io 066endido, ao temo~ da p~

blicidade. de uma acção m~ p~aticada, ao ~emo~~o da

cia? Tenho 6ê ba~tante na nob~eza do co~ação humano pa~a a66~

ma~ que o~ ca~ti90~ que 6allão di~ectamente. ~ alma, quando ma

nejado~ com di~ce~nimento, têm mai~ ~ubida in61uencia ~ob~e a

~ua manei~a de ob~a~ do que aquelle~ que ~5 6allão ~ pelle e

- 44 a~ o~elha~." Parece que aprendemos a lição. O amor-próprio,

o temor da vergonha e o remorso são de fato, hoje, os maiores

trunfos da prática disciplinar escolar. A punição distancia-se

cada vez mais da dor para afetar um sujeito culpado e enverg~

nhado de suas açoes; um sujeito que antes de mais nada interio

riza as proibições e aprende a punir-se a si mesmo, o que con

corre para uma eficiência máxima do poder disciplinar.

Na prática pedagôgica a disciplina instala o "tempo e.vo

lutivo". Todo o processo de formação do individuo obedecerá a

uma evolução marcada por 6a~e~. Um acompanhamento constante e

minucioso, a realização de exames no tempo certo, o uso de ma

terial apropriado, possibilitam a devida avaliação que classi

ficará o indivíduo como apto para passar a uma fase seguinte,

44 ANDRADA JUNIOR, Jose Bonifácio Caldeira de. Op. cit., p.2l-2. t

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I • l I

1 1

tendo devidamente amadurecido e superado a fase anterior.

sa forma, atraves da própria prãtica pedagógica o poder

99

Des

a t ra

vessa os corpos e controla-os passo a passo, ao longo do seu

desenvolvimento. As concepções do desenvolvimento da criança

como passagem de um estágio a outro, seja do ponto de vista in

telectual ou afetivo, trazem essa marca do poder disciplinar e

dominam hoje o pensamento psico-pedagógico, não deixando de pr~

var uma alta competência na formação da criança (produtiva e

útil).

A criança entrou na escola para ocupar um determinado l~

gar, desempenhar uma determinada função, aprender determinados

assuntos em sequência e tempo certos, obedecer a horãrios e si

nais, exercitar o domínio do corpo, aprender a usar instrumen

tos e, sobretudo, a obedeQe~.

Em "O~dem Méd-i..Qa e No~ma Fam-i...e..-i..a~", Jurandir F. Costa,ob

serva os vãrios processos de controle sobre a criança levados

a efeito dentro dos colegios no Brasil do final do seculo XIX,

cujas diretrizes fundavam-se em recomendações higiênicas. A ta

refa da escola era preparar o futuro adulto nacionalista para

o que se fazia necessãrio um trabalho minucioso: o tempo era ri

gorosamente controlado, sendo montado um cronograma para as di

versas atividades, desde a alimentação ao trabalho intelectua1.

O tempo ".e..-i..v~e" tambem era controlado, constituindo uma ativi

dade com objetivos bem definidos; o físico era cuidadosamente

trabalhado - devidamente separados por idade e sexo, as crian

ças deveriam cumprir um programa de exercícios físicos, incluin

do a ginástica, de forma a aprenderem a cultivar o corpo que f r

I r

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I I I

I I

I

100

passou a ser uma questão pol ítica e social. José Bonifácio Cal

dei ra de Andrada Junior escreveu na sua tese: "Um exeJl.uc.io C.OIt

poltal, bem c.ompltehend..i.do na .6ua paltte veltdade..i.ltamente hljg..i.eni::.

c.a, i uma da.6 plt..i.me..i.lta.6 c.ond..i.ç&e.6 palta o de.6envolv..i.mento do.6

5ltgao.6 e o apelt6e..i.çoamento de toda.6 a.6 6ac.uldade.6 do C.OltpO e

d ... 't ,,45 o e.6p-<.lt-<. o , eu diria: para o aperfeiçoamento de todas as

faculdades do corpo e do espírito obedientes... Criticou, en

tão, o médico aqueles que julgavam procedor bem encerrando o

jovem estudante entre quatro paredes: "e.6te.6 manc.ebo.6, c.uja ..i.n

tell..i.genc...i.a novel tem-.6e pltoc.ultado elevalt á qu..i.nta potenc...i.a,

.6em c.on.6..i.deltação palta c.om a.6 c.ond..i.ç&e.6 do C.Oltpo em que ella .6e

exeltc.e, quaYldo poltventulta c.heg uem á ..i.dad e adulta, não teMo que

oóóeltec.elt ao.6 .6eu.6 c.onc...i.dadão.6 ma..i..6 do que um talento ga.6to p~

46 lo.6 exc.e.6.6O.6 e a .6omblta de um C.OltpO humano". Recomenda va o

mesmo tipo de exercício para ambos os sexos até a puberdade mas,

àepois disso, as meninas só deveriam fazer a ginástica como t~

rapia, devendo sua atividade física restringir-se aos passeios

a pé ou de carro (puxado a cavalo na época), ã dança, ao canto,

ao piano, etc. t claro, o ventre devia ser poupado ... Como vi

mos em páginas passadas, hoje não mais é necessário que a esco

la assuma todo tipo de atividade física. As academias estão

aí para fazer sua parte e a mentalida,de também já se constituiu

de forma que, como vimos, muitos já dispensam as instituições,

obrigando-se a si mesmos ao cumprimento dos exercícios físicos

constantes.

45 Ibid., p.26. 46 I b i d., p. 26.

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I 1 I I

f 1 ! i

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1 U 1

o sexo nao poderia deixar de ser também objeto de contro

le nos colegios. A masturbação era verdadeiro crime que havia

de ser rigorosamente controlado e evitado. "Vi~ tu e6te pequ!

no e~queleto ambulante, que la vai, olh06 baço~ e memb~o~ de6

6allid06, e6conde~ na 6olidão, a6 angu6tia6 da melancolia que

t~az e~tampada no de~alinho do ~06tO? Não li~ a ve~gonha e a

naquelle6

mod06 timid06 e ~e~e~vado~, a 6~aqueza naquelle~ olh06 ~odea

do~ de um c~~culo livido e como que 6epultado~ na p~06undidade

da6 5~bita~? E uma da~ victima~ de6te odi060 p~ocedimento"47,

c o n de n a va o me d i c o J o s e B o n i f ã c i o C. d e A. J uni o r. E s te" e6 q U!

leto ambulante", como expressava o doutor, poderia, mantendo o

"odio~o p~ocedimento", vir a cair na hipocondria, no idiotis

mo, na mania, no marasmo, na paralisia, na congestão cerebral,

na tuberculose pulmonar, na completa degradação f;sica e moral

ou morrer. Ao educador, nos colégios, cabia a tarefa de evi

tar essa catástrofe. Uma investigação rigorosa e discreta de

v i a s e r f e i t a p a r a 1 o c a 1 i z a r as" v Ztim a6 " . A i n s p e ç ã o d i ã r i a

de roupas e leitos (sobretudo dos suspeitos) devia ser cumpri

da e as disposições morais dos alunos deviam ser avaliados por

questões "a~tucio~amente ~edigida~". Na sua tese, o doutor Jo

se Bonifácio estabeleceu sete regras que deveriam ser adotadas

pa ra "p~eveni~ 06 e6t~ago~ e a di~~ eminação do mal": "19, -nao

amditti~ no 6eio da communidade manceb06 de c06tume~ e h~bil06

6u6peit06; 29, p~ohibi~ ao~ alumno~ a con~e~vação e a leitu~a

de liv~06 e~otic06, a~ pale6t~a~ leviana6, e tudo que p06~a e~

cita~ pa~a mal a ~ua imaginação a~dente; 39, ~epa~ti~ conveMen

47 Ibid., p.30.

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I ! 1 I J

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102

temente 04 do~mit5~i04, de modo que haja completa 4epa~açao de

idade4; 49, p~ohibi~ urna communicaç~o muito liv~e ent~e 04 pe~

4ioni4ta4 e 04 alumn04 exte~n04, quando 04 haj~o de urna ou de

out~a cla44e; 59, p~eveni~ o de4pe~ta~ p~ecoce da 4en4ualidade

po~ meio de exe~cici04 bem di~igid04, pela aboliç~o de alimen

t04 excitante4, etc.; 69, puni~ o culpado ~ep~ehendendo-o a4P!

~amente, ou, 4egundo a g~avidade do c~me*, expellindo-o do

collegio; 79, medica-lo 4e ca~ece~ d04 40CO~~04 da a~te,,~8 Ah,

Foucau1t, o que você acha que o doutor estava prestes a fazer

depois de tanto empenho para ditar essas regras ... !? E os a1u

nos, encerrados dentro dos co1igios fechados, eram des~a forma

reprimidos ou incitados? A sexualidade passou a ser tambim pr~

b1ema de Estado pois a sociedade precisava de um cidadão de for

maçao física e moral irrepreensíveis, a mãe sendo a respons~

vel pela formação moral da criança dentro de casa. A sexualida

de infantil caiu nas armaduras do poder disciplinar (e da mora

lidade), sendo capturada, de sua livre manifestação, como ato

solitário ou não, por mecanismos que lhe deram um sentido, im

puseram-lhe restrições e fixaram-lhe finalidades. Mais tarde o

pensamento científico organizou tudo isso e aprisionou a sexua

lidade da criança ao triângulo familiar. Voltaremos a falar

sobre isso adiante.

A moralidade, já o dissemos. estava embutida no discurso

medico/educativo. A escola devia completar a educação moral

* Grifos meus.

48 Ibid., p.~O-l.

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I f 103

e religiosa iniciada em casa. A moralidade dos candidatos aos

colégios, inclusive,devia ser, na opinião do Dr. Jose Bonifá

cio, condição para matrícula, porque o exemplo era fundamental.

Maus costumes e paixões desordenadas "co~t~o logo ao na~ce~ o~

ptU.me..i..~o~ vôo~ de uma ..i..ntell..i..genc..i..a que apena~ ~e ~evela, e

an..i..qu..i..l~o a~ ma..i..~ bella~ e~pe~ança~ de um 6utu~0 p~ove..i..to~o

pat~..i..a e á. 6am..i..l..i..a,,49, dizia preocupado o medico. Dentro

colégios os bons costumes haviam de ser cultivados para o

-a

dos

bem

dos alunos, da sociedade e da religião, esta última devendo cons

tituir a base de toda educação moral. Jurandir F.Costa, inter

pretando as preocupações moralistas da epoca (segunda metade

do século passado), relaciona-as com a ordem capitalista que

então se constituía: "0 ..i..nd..i..vZduo mo~almente apto a conv..i..ve~

ne~te ~..i..~tema ê aquele que ~e ~egule: em p~..i..me..i..~o luga~, pelo

hâb..i..to c~..i..ado na mecân..i..ca do~ ge~to~ e conduta~; em ~egundo lu

ga~ pela culpa, pelo ~ent..i..mento de de~v..i..o mo~al com ~elaç~o ao

~oc..i..al; em te~ce..i..~o luga~, pelo julgamento de ~eu~ pa~e~ ou

..i..gua..i..~" e que assimile uma ética: "a da ace..i..taç~o do valo~ do

t~abalho e o ~e~pe..i..to ã p~op~..i..edade p~..i..vada". 50 A interpret~

ção acertada nao avança porém até um ponto crítico (no caso "a~

to-c~Zt..i..co") para apontar o comprometimento da psicanálise com

essa moralidade, com essa subjetividade culpada, fortalecendo

a produção desse sujeito submisso ã família, ã sociedade e a

si mesmo.

49 Ibid., p.ll.

50 COSTA, Jurandir F. Op. cit., p.200-1.

I

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104

A f o rm a ç ã o i n t e 1 e c tua 1, c o m o v i mos, a p a r t i r do seculo

XIX, condicionou-se ã evolução da criança. Tambem isso facili

tou o seu controle, permitindo o desenvolvimento de mecanismos

para avaliá-la constantemente e classificá-la a cada momento.

Não existia esse tipo de preocupação no Brasil dos primeiros

tempos da colonização quando a educação consistia no ensino de

um oficio (a partir da puberdade) a ser aprendido com a práti

ca, orientada pelo mestre, no caso da população mais pobre, e

pelos familiares ou pessoa preparada, no caso dos mais abasta

dos. Quando a aprendizagem era em grupo, a idade nao era cri

terio para a separação dos alunos mas, o aproveitamento. Foi

com a penetração do poder medico na prática pedagógica do Bra

sil do seculo XIX que as crianças passaram a ser separadas se

gundo a faixa etária para receberem conteúdos cuidadosamente

preparados e escalonados. Essa prática tinha no fundo,uma pre~

cupação moralista, segundo Jurandir F. Costa, pois a separaçao

das crianças por idade evitava influências negativas de umas

sobre as outras, sob o ponto de vista moral. Argumentando em

defesa da saúde da criança que poderia ser gravemente afetada

por um ensino inadequado ao seu nivel de desenvolvimento, os

medicos conseguiram que fosse implantado um ensino programado

para cada faixa etária 51 e a inocência das crianças foi prese!

vada ... A preocupação com a adequação do ensino ao estágio ev~

lutivo da criança parece, portanto, um problema de ordem moral

e polftica: fixa grupos e informações e permite um controle mais

eficaz dos individuos.

51 Ibid., p.197.

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105

o que se plantou nas escolas, na segunda metade do secu

lo passado, demorou, contudo, a vingar. No final do século, a

educação das crianças dentro das escolas ainda pecava por nao

cumprir as recomendações higi~nicas.

Após um período de grandes mudanças no sistema educacio

nal brasileiro, tanto nas escolas particulares como nas publl

cas, quando professores e diretores eram rigorosamente avalia

dos pela superintend~ncia da instrução publica, as escolas pa~

ticulares eram inspecionadas pelas autoridades e os alunos ri

gorosamente examinados, do que a fundação do Colégio de Pedro

11 foi um exemplo (já em 1837), caiu a educação brasileira nas

maos de negociantes, muitos estrangeiros, que abriam escolas

para ganhar dinheiro. Multiplicaram-se os colégios no Brasil

e o governo relaxou a fiscalização. Em 1842, o Padre Gama de

nunciou no seu jornal de 16 de abril, n9 5, a transformação da

educação brasileira em negócio. O Dr. Luís Correira de Azeve

do escreveu, em 1872, que os colégios, na maioria dos casos,

funcionavam como industria onde se trocava dinheiro por Uhl fra

co saber (o primeiro sempre superior ao valor do segundo) e o~

de a moral e os bons costumes eram esquecidos. Mal ventilados,

superlotados, com más condições de alimentação para os alunos,

sem programas de educação física, esses colégios davam aos alu

nos ampla liberdade e boa bagagem de saber inutil. O Doutor

fez, então, um apelo dramático: "Oh! não; homen-6 da époc.a e do

B~az~i, não c.on-6~nta~-6 que o c.oiie9~o -6eja uma pe~~90-6a banai~

dade ~ndu-6t~~ai! Faze~ deiie um -6e~o de educ.ação e de -6ão-6 p~!!:.

c.~p~O-6 de ~n-6t~uc.ção; 6aze~ dO-6 pequeno-6~ pen-6ado~e-6 ute~-6 e e-6

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I

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106

60~çado~, e da4 menina4 utei~ mulhe~e~, mae~ do 6utu~0, mae~

que ~e~gatem a mate~nidade da c~imino~a indolencia em que jaz.

Vi~~e~te~ um dia que no B~azil, d'ahi em diante, ninguem mai~

na~ce~ia e~c~avo: poi~ bem; ~ide cohe~ente~: ~alvai na pia da

6amilia e na pia da e~cola e~~e~ ch~i~t~o~, e~c~avo~ da ign~

~ancia e da p~ejudiciali44ima 6alta de p~incipi04 4~04 de edu

caç~0.,,52 O apelo medico clamava, contudo, por um terceiro tl

po de escravidão: a escravidão ã utilidade e ã maternidade que

veriamos mais tarde fortalecer-se e forjar a mulher e a crian

ça que conhecemos hoje.

Nos primeiros anos da República, Jose Verissimo criticou,

no seu "A Educaç~o Nacional", a falta de fiscalização nas esco

las públicas a falta de concursos para professores e a incom

petência destes, as regalias das escolas particulares (os seus

alunos tinham entrada facilitada nos cursos superiores) e seu

caráter mercantilista. Sobre estas, em 1906, numa reedição do

seu livro, escreveu: "Uma indú~t~ia de nece44itado~, um -neg~

cio de homen4 pob~e4 i~olado~, muito4 incompetente~, algun4

·"~ate.~" da cultu~a, da~ let~a~ ou da p~õp~ia p~o6i~~~0, que

ab~em uma e~cola, um collegio, como ~imple~ meio de vida, meio

aliã4 me~quinho, ince~to, contingente, pelo que ~ao ob~igado~,

pa~a nao pe~de~em e~4e e~60~ço e ~ecu~~o, a t~an~igi~ com 04

pai~, 04 alumn04, a clientela, em6im, da qual exclu4ivamente 53

vivem." Nas escolas públicas, sem a devida fiscalização do

52 .... "C -AZEVEDO, LU1S Correla de. onco~eM ... , Op. cit., p.431.

53 VERISSIMO, Jose. Op. cit., p.XXIII.

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107

governo nao se levavam a cabo os programas, nao se exigia po~

tualidade dos professores, nenl bom desempenho dos alunos e o

magisterio para a maior parte dos professores da rede pública

passara a ser atividade secundária, muitas vezes desenvolvida

sem nenhuma responsabilidade.

hoje, a precariedade do ensino público está ai; mante

ve-se portanto; e o caráter mercantilista da escola particular

tambem. Não podemos, contudo, dizer que o esforço da classe

medica e religiosa para produzir uma forma de pensar, uma sub

jetividade, foi em vao. Parece justamente que a escola pÚbl l

ca e a escola particular, eomo ~ão hoje, servem muito bem ã pr~

dução desse sujeito idealizado no século passado. A escola p~

blica, salvo rarissimas exceções, não ensina, e provê a mao de

obra da sociedade. A escola particular aliou o negôeio a boa

qualidade de en~ino, provendo a sociedade de um contingente de

intelectuais que assumirão os postos de comando - dos dois la

dos, o sujeito submetido, que se deixa capturar por forças con

servadoras e que contribui para a massificação e para o enfra

quecimento do pensamento.

f

I !

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CAPrTULO 3

A CAPTURA DO DESEJO

Alvo de forças disciplinares no seio da família e da es

cola, a criança brasileira não tardou a ser, também, objeto do

conhecimento científico. A psicanálise de Freud fortaleceu aqui

no Brasil esse movimento que, a partir do século XIX fez emer

gir a criança. Os laços familiares estreitaram-se e foram en

volvidos pela sexualidade: Freud descobriu que a mae e o primei

ro objeto do instinto sexual da criança.

Especialmente nas camadas privilegiadas da sociedade bur

guesa, onde a criança é, acima de tudo, c.tia.nç.a., não só desobri

gada do exercício de atividades relacionadas ao sustento da fa

mília mas, principalmente protegida de encargos tão penosos p~

ra o corpo infantil, mãe e filho caem no laço do desejo inces

tuoso. A família reproduz Edipo na consolidação do triângulo

familiar, na sedução da criança, na minuciosidade dos cuidados

com o seu corpo, no estímulo ao desejo incestuoso e na alegria

de ver suas manifestações.

A psicanálise emerge num momento histórico em que o saber

sobre o sexo se alia a mecanismos de poder e controle dos cor

pos, na sociedade disciplinar. A partir do século XVII, segu~

do Michel Foucault,l o sexo penetra nos discursos e e incitado

1 FOUCAULT, Michel. A Vontade de Sa.be~. Rio de Janeiro, Graal, 1985. I I

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109

ao máximo. E preciso falar dele a toda hora e dos sentimentos,

práticas, desejos e pensamentos que o tenham como objeto. Ini

cialmente enquadrado nos limites da confissão, o discurso sobre

o sexo ultrapassa os limites da prática confessional, instalan

do-se, a partir do protestantismo, da contra-reforma, da ped~

gogia do século XVIII e da medicina do século XIX nas relações

entre pais e filhos, alunos e professores, delinquentes e peri

tos, doentes e psiquiatras, onde sob as novas formas de narra

tivas, interrogativas e consultas, possibilita o registro e a

teorização da sexualidade humana. Relaciona-se o pensamento de

Freud ao caráter repressivo do período vitoriano em que viveu.

Para Foucault, esta hipótese repressiva é uma falsa hipótese.

Para ele, ao invés de reprimido, o sexo foi, na realidade, in

citado, a partir do século XVII, Incitado a partir da abundi~

cia de discursos sobre o sexo e incitado também no seu silêncio:

onde o pretendiam calado, falavam dele os mecanismos

dos para silenciá-lo.

utiliza

No final do século XIX e início deste, um novo discurso

sobre o sexo se apodera do desejo e o eleva ã categoria de ob

jeto ria ciência. O dispositivo familiar possibilita essa estra

tégia e o dispositivo de sexualidade isola o sexo da experiê~

cia total do individuo para colocá-lo dentro dos limites dodis

curso, tornando possível seu conhecimento e controle. No disp~

sitivo familiar, a intimidade da relação mãe-filho, promovida

como vimos, pelas regras da higiene, constituiu condição funda

mental para a formação dessa ciência.

I

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110

A psicanálise nao poderia surgir fora de uma família res

t r i ta, í n t i m a e O e 1 e u z e e G u a t t a r i nos a j u da m a p e n s a r sob re i s

s o •

A privatização da família é um elemento do sistema capl

talista no qual ela passa a ser privatizada justamente para s~

bordinar-se a forma da reprodução econômica. A esta última,in

teressa que a família seja reprodutora de homens iguais que oc~

pem, entretanto, na reprodução social econômica, lugares marcÊ.

dos (o capitalista, o trabalhador, etc) e essas imagens do Ca

p i tal são a p 1 i c a das a f a mil i a - p a i, mãe e f i 1 h o t o r na n d o -s e "o

~,(mui.aCJto dM image.M do Cap.ita1. (Se.nholt Capi:ta1., Se.nhotta Te.ItIta e. ~e.u 6~

lho, o Tttaba1.hadolt) ".2

o investimento do desejo nesses simulacros (papai-mamãe)

e nada mais que a "6oltmação colonial Intima que. Ite.~ponde. ã 60lt

ma de. ~obe.ltania ~ocial".

No sistema capitalista, todas as determinações sociais

encontram ressonância dentro da família e a criança, restrita

ã convivência familiar (burguesa, mais especificamente), cola

d a a p a i e mãe, " d o e. nt e. d e. E d i p o ", a r r a s t a r á p o r o n d e f o r , um

complexo parental que passarã, inclusive, adiante, no futuro,

aos prôprios filhos. O pior: dentro dessa família re s t ri ta ,

privada, a psicanálise elege a criança como o ponto de partida

de tudo e, por isso mesmo, culpada pelas "alt:te.~" do desejo. Do

lado da criança, a culpa, do lado dos pais, a responsabilidade

2 úELEUZE, G. & GUAT1ARI, F. O An:t.<.-EcLi..po. Rio de Janeiro, Imago Editora Ltda., 1976, p.337.

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111

- loucura e razao. Não soube Freud que a criança e edipianiz~

da pelos pais, ressonantes às determinações sociais do sistema

capitalista, com suas imagens e seus valores. "fd..i..po ê. p!t..i..me..i..

!to uma ..i..dê...i..a de pa!tan5..i..eo adulto ante~ de ~e!t um ~entimento ~n - 3 6ant..i..l de neu!tot..i..eo."

A criança, essa máquina desejante desterritorializada (até

que prendam seu desejo a papai-mamãe) que se liga a tudo, que

quer experimentar tudo, que se conecta ao infinito, fácil de

ser afetada, essa potência ... não pode ser edipiana. "O que ê.

ed..i..p..i..ano ê. a abjeta !teeo!tdação de ..i..n6ãneia, a tela".4 Mas ela

se cola a papai-mamãe, como não? Como livrar-se desse jugo i~

p e r i o s o, p a p a i e ma mãe nas u a c a b e ç a o tem p o to do, a reg i s t ra r,

a apontar ("voe~, ~eu ..i..!tmão, ~ua ..i..!tmã, papa..i.., mamãe"), a se c~

lar em tudo o que a criança toca e experimenta ("não pegue n..i..!

~o, ê. do papa..i.., não toque n..i..~~o, ê. da mamãe, não 6aça ..i..~~o, a

mamãe 6..i..ea t!t..i..~te, não 6aça aqu..i..lo, o papa..i.. não go~ta" • •• ) Não

dá. O tdipo pega. E o que parecia uma brincadeira de mau go~

to toma conta do eu. Produz uma subjetividade. Pior: captura

o desejo. Castra o inconsciente. Emperra a máquina desejante.

Freud descobriu o que havia sido inventado e achou que se tra

tava da estrutura fundamental do ser humano ...

Em "O Na~e..i..mento do A~..i..lo,,5 Foucault nos diz que a ps1

canálise trouxe para dentro do consultório do psicanalista o

que a psiquiatria do século XIX, com Pinel e Tuke, montara den

3 I b i d., p. 34 7.

4 Ibid., p.496.

5 FOUCAULT, Michel. A h~t5Jtia da LoueWl.a.. são Paulo, Editora Perspectiva S.A., 1987.

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1 I

11 2

tro do asilo: a loucura entendida como um complexo parental a

ser, portanto, tratada dentro de uma estrutura onde a família

está representada, estrutura alienada e alienante, construída

sobre valores bem especificos (autoridade paterna, fa1ta-casti

go, ordem social). Dentro do consu1t5rio, o midico, ponto de

convergência dos poderes distribuídos pela estrutura asilar, e

partindo do conceito de loucura como ruptura com e~ta ~eal~da

d e ~ o c. ~ al, "c. u ~ a" o s u j e i t o 1 i g a n d o - o d e f i n i t i v a m e n t e a p a p a i

e mamãe, confrontando-o com o mundo da razao e da ordem moral,

fazendo-o, enfim, penetrar em um outro mundo de alienação.

"r i..~~o o ~nc.u~á.vel 6am~l~al~~mo da p~~c.aná.l~~e, enquE!.

d~ando o ~nc.on~c.~ente em rd~po, l~9ando-o de um lado e do ou

t~o, e~ma9ando a p~odução de~ejante, c.ond~c.~onando o pac.~ente

d . -" 6 a ~e~pon e~ papa~-mamae Na verdade, porém, De1euze e Guattari

nos dizem, o triângulo familiar e constantemente quebrado pelos

elementos da situação hist5rica e política que penetram e atra

vessam uma família descentrada: os movimentos sociais, as reli

giões, as guerras, a política, o trabalho, a policia, a buro

cracia, etc, etc, são os reais complexos do inconsciente que

sacodem, dentro de casa, as relações restritas do triângulo f~

mi1iar. rdipo pega mas nao destr5i. Torna as coisas difíceis

para o desejo ...

6 DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Op. cit., p.123.

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11 3

1. A "Relação P~-imo~d-ial"

A pSicanál ise produziu um conhecimento que deu direção as

relações entre as pessoas no interior da família e tornou as

experiências da infância decisivas para o ulterior desenvolvi

mento da personalidade do indivíduo. "E~ta ac.entuac.-iõn de la

-impo~tanc.-ia de la~ expe~-ienc.-ia~ temp~ana~ no Qu-ie~e dec.-i~ Que

de~p~ec.-iemo~ la -inóluenc.-ia de la~ ulte~-io~e~. Pe~o e~ta~ ~on

ya e~t-imada~ e de~c.~-ita~ po~ el m-i~mo enóe~mo, m-ient~a~ Que lM

-inóant-ile~ han de ~e~ bu~c.ada~ y devuelta~ a ~u ve~dade~a ~-ig~

ó-ic.ac.-iõn po~ el mê.d-ic.o.,,7 As experiências infantis tornam-se

decisivas e enigmáticas, possuidoras de um significado e simb~

1 i s mo que s 5 o t e r a p e u ta p o d e i n t e r p r e t a r e e s c 1 a r e c e r. O po de r

médico ê tácito.

As experiências infantis trazem a tona, especialmente, a

vivência da relação primordial da criança com a mãe, a "g~ande

ó-igu~a" desse teatro freudiano, o objeto dos mais intensos e

primitivos sentimentos de amor e 5dio, presença que "deva~ta"

I

e ausência que e fatal. O psicanalista norte-americano, Spitz,

procurou provar, através de pesquisas realizadas em instituições I americanas destinadas ao cuidado da criança precocemente sep! I rada da mãe, que os efeitos dessa separação sao irreversíveis

sobre o desenvolvimento físico e psico15gico da criança. Spitz

quis provar que a Qual-idade da relação do recém-nascido com a

mãe (ou figura substitutiva) é que e fundamental e nao o seu I

7 FREUD, S. "Pegan a un núio", i n Ob~ CompletM de S-igmund F~eud. Ma drid, Editorial Biblioteca Nueva, 3a. edição, tomo 11, p.2467.

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I 1 j

114

caráter quantitativo, referente aos cuidados com a higiene e

alimentação. Em instituições impecavelmente bem montadas e su

pervisionadas, os prejuízos físicos e psicológicos da criança

nao deixavam de existir, o que provaria que o corte do vínculo

com a mãe, em idade precoce, é fatal e não pode ser recuperado

nem pela maior eficiência institucional. O fator decisivo p~

ra o desenvolvimento global da criança seria o vln~ulo dUkadou

kO com uma 6~guka e~tâvel com a qual estabelecesse uma relação

de afeto que definiria o caráter de suas relações com o mundo.

As "cJl..~~e.6 p~~~o~~o~~u~" de Erik Erikson 8 também apontam para

essa "kelação 6atal". O vínculo duradouro e estável com a mae

não definiria, contudo, por si só, as relações positivas com o

mundo e um desenvolvimento equilibrado: a mãe ansiosa,angusti~

da e ambiva1ente não favoreceria o estabelecimento de relações

afetivas fundamentais para a criança sentir-se segura e amada,

com condições de amar e confiar futuramente.

P o r o c a s i ã o de sua p as s a g e fi! p e 1 o R i o de J a n e i r o, em 1972,

quando fez uma série de conferências na PUC, Foucau1t, em diá

logo com o psicanalista brasileiro, Hélio Pe1egrino, sobre as

questões levantadas por Spitz, disse: "Se o ~enhok d~z que o

~~~tema de ex~~tên~~a nam~l~ak, de edu~ação, de ~u~dado~ d~~

-pen~ado~ a ~n~ança, leva o de.6ejo da ~n~ança a ten pon objeto

pn~me~no pn~me~no ~nonolog~~amente - a mãe, a~ho que pO.6~o

~on~ondan. I~~o no~ nemete ã e~tnutuna h~~tõ~~a da 6amIl~a,

da pedagog~a, do~ ~u~dado~ d~~pen.6ado~ ã ~n~ança. Ma~ ~e o .6e

8 RAPPAPORT, C.R. P~~~olog~a do V~envolv~mento. são Paulo, E.P.U. 1982, vo1. 4.

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I 115

nho~ diz que a mae ~ o objeto p~imo~dial, o objeto e66encial,

o objeto 6undamental, que o t~iângulo edipiano ca~acte~iza a

e6t~utu~a 6undamental da exi6t~ncia humana, eu digo nâo". A con

testação do psicanalista brasileiro em que se refere ao fenôm~

no hospitalistico, apontado por $pitz, Foucault responde: "CO!?!

p~eendo. 1660 65 p~ova uma coi6a: nâo que a mâe i indi6pen6ª

vel ma6 que o h06pital nâo i bom". 9

A relação mãe-filho, tal como concebida pela psicanálise,

"encou~aça" a criança nas suas relações com o mundo. O caráter

dessas futuras relações ê determinado precocemente. A criança

nao se deixa a chance de construir seu mundo com a matéria das

experiências vividas nos seus variados encontros com as pessoas,

com o mundo, com a vida. Em tratamento pSicanalitico o probl~

ma do adulto sera sempre interpretado em função da natureza de~

se vinculo primordial infantil onde se poderão encontrar todas

as respostas.

2. O Teat~o do lncon6ciente

A satisfação sexual primitiva da criança disse-nos Freud,

e inicialmente ligada ã alimentação, sendo o peito materno ex

perimentado como parte do próprio corpo, numa relação que a Psi

canálise chama de simbiótica. Quando a criança concebe a mae

como objeto externo total, a sexualidade se torna essencia1men

te auto-erótica até que, posteriormente, volte-se de novo para

9 FOUCAULT, Michel. A Ve~ade e a6 FO~a6 J~dica6. Cadernos da PUC/RJ, n. 16. Pontificia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1979, p. 1 09 .

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116

um objeto externo como fonte de satisfação (fase fálica e, ter

minado o período de latência, fase genital). Daí Freud conclui

"~en la ~ucci5n del ni~o del pecho de la madne modelo de toda

nelaci5n en5tica. fl hallazgo de objeto no e~ nealmente mM que 10 un netonno al pa~~ado". As relações da criança com ou t ra s

pessoas que ao longo de sua infância tenham com ela cuidados

especiais e satisfaçam suas necessidades têm, na verdade, como

modelo, essa relação primitiva com a mãe (ou nutridora), po~

suindo, portanto, e de igual forma, um caráter sexual (pois g~

ra prazer).

Muito cedo, portanto, entre três e cinco anos de idade,

o menino orienta para a mãe o seu desejo sexual e o pai, o qual

percebe como obstáculo â satisfação do seu desejo, será hosti

1izado. O menino desejará suprimí-10 para tomar-lhe o lugar,

constituindo-se aí o complexo de Edipo. A menina, dada a pr1

mitiva relação com a mãe também orientará seus desejos sexuais

para a figura materna, transferindo-os depois para o pai por

razoes específicas: a menina descobre-se desprovida de um pênis

e considera-se, por isso, castrada; entende depois que se tra

ta de uma característica do seu sexo; desvaloriza, por isso,

o sexo feminino e rebela-se contra a mae, culpando-a por tal

desvantagem e por tê-la trazido ao mundo, mulher; volta os de

sejos para o pai, com quem deseja ter um filho, o que simboli

camente realizaria o desejo de ter pênis (substituído aqui p~

la criança, especialmente se for menino). A hostilidade contra

10 FREUO, S. "Tne6 fMayo~ pMa una Teonia Sexual". in op. cit., p.1225.

Page 124: A EMER60tcIA DA CRIANÇA li) BRASII{'1

I 1

1 1 7

a mae e a transferência dos desejos sexuais para o pai, insta

la na menina o complexo de Edipo. No menino sucede o contrã

rio. A visão do órgão genital da menina (que julga castrada)

lhe faz pensar na possibilidade de perder o seu. O medo de ser

castrado (reforçado pelas ameaças feitas pela mãe, pelo pai ou

por outros adultos quando surpreendido em jogos masturbatórios)

encontra um suporte na realidade. O desejo de ter a mãe só p~

ra si e de, para tanto, ver-se livre do pai (o que resulta deum

desenvolvimento natural da sexualidade fãlica) deve ser aband~

nado frente a perigo tão intenso. O complexo de Edipo é dis

solvido, deixando como herdeiro um rigoroso superego, ou seja,

uma identificação com o pai (desfecho normal, no caso do meni

no) ou com a mãe (desfecho normal para a menina), ficando, de~

sa forma, internalizadas todas as advertências e proibições o~

trora externas, carregadas agora sob a forma de uma consciên

cia moral. "No e~ di6icil mo~t~a~ que el ideal dei yo ~ati~6~

ce toda~ aque~la~ exige~cia~ que ~e pla~tea~ e~ la pa~te ma~

elevada dei hO/llb~e. Co~tie~e, e~ calidad de ~u~tituició~ de

la a~pi~ació~ hacia el pad~e, el módulo dei que ha~ pa~tido to

da~ la~ ~eligio~e~. La co~vicció~ de la compa~ació~ dei yo

com ~u ideal da o~ige~ a la ~eligio~a humildad de lo~ c~eye~

te~. E~ el cu~~o ~uce~ivo dei de~a~ollo queda t~a~~6e~ido a

lo~ mae~t~o~ y a aquella~ ot~a~ pe~~o~a~ que eje~ce~ auto~idad

~ob~e el ~ujeto el papel de pad~e, cujo~ ma~dato~ y p~ohibiciE..

~e~ co~~e~va~ ~u e6icie~cia e~ el yo ideal y eje~ce~ aho~a, e~

calidad de co~cie~cia, la ce~~u~a mo~al" .11

11 FREUD, S. "EI yo Ij el EUo", in op. cit., Tomo III, p.2715.

t

I i

I r

Page 125: A EMER60tcIA DA CRIANÇA li) BRASII{'1

118

E todos foram i nfe1 i zes pa ra sempre ...

Está contada a história de Edipo (psicanalítico) em que

se narra o aprisionamento de um desejo ... Está montado o tea

tro do inconsciente, peça eterna, ambulante, que nos faz pe~

der de vista (se quisermos) toda produção maquínica do incons

ciente produtivo, máquina desejante que pode desejar tudo e

qualquer coisa. Está eleita a castração como condição do dese

jo porque só se deseja o que não se tem ou o que não se pode.

Está assentada a resignação da mulher (coitada, não tem pênis,

mas pode ter um filho!) e do homem (condenado a submissão,qua~

do não ao pai, aos seus substitutivos). Está instaurada a cu1

pa, o conflito, a auto-agressão, a neurose. O homem culpado,

inventado pelo "go.tpe. de. gênio do C Jti.ó tia. ni.ó mo " , nas palavras

de Nietzsche, cujos instintos são faltas para com Deus, ("Hi

uma. e..ópêeie. de. de.mêneia. da. vonta.de. ne..óta. eJtue..tda.de.

d d h o d - b - . .. ,,12) E.óta. vonta. e. e..óe. a.e a.Jt eU-Lpa. o e. Jte.pJto o ate. o -lnÔ-<Júto •.• ,

encontra na Psicanálise uma forma de ser culpado

me.nte."; culpado de seu desejo. O superego, instalando dentro

do sujeito, a autoridade e a censura dos pais, cria um sujeito

tomado pela culpa que prescinde de sanções externas para ju!

gar e controlar, não só o seu comportamento, mas seus pensame~

tos e desejos. Prescinde também de punições provindas do exte

rior: já se pune através de mecanismos psicológicos de auto-

agressao e auto-destruição. A mulher que rejeita seu filho se

sente culpada mesmo que nao tenha conhecimento da teoria psic~

12 NIETZSCHE, F.W. A Genea..togia. da. MoJta..t. São Paulo, Editora Moraes,1985, p. 59.

Page 126: A EMER60tcIA DA CRIANÇA li) BRASII{'1

11 9

na1ítica. Não precisa. Na nossa sociedade, a culpa é uma ve~

dadeira instituição. Todos somos culpados por algo que fize

mos ou deixamos de fazer. Freud chegou ao ponto de dizer, so

bre a culpa: "Muc.ho nO-6 ha -6oJtpJte.nd-<'do ha.t.taJt que. e..t -<.nc.Jte.me.n

t:. o d e. e. -6 t:. e. -6 e. nt:.-<.m-<. e. nt:. o -<. n c.. o n-6 c.-<. e. n.:t e. d e. c. u.t pab -<..t-<. da d pue.de. hac.e.Jt

de..t -<.nd-<.v-<'duo un c.Jt-<.m-<.~a.t. PeJto -6e t:.Jtat:.a de un hec.ho -<.nduda

b.te. fn muc.ho-6 c.Jt-<.m-<.na.te-6, -6obJte t:.odo e.n .t0-6 j5ven-6, he.mo-6

de-6c.ub-<.eJtt:.o un -<.nt:.en-6O -6ent:.-<.m-<.ent:.o de. c.u.tpab-<..t-<'dad, que eX-<.-6

t:.-<.a ya ant:.e-6 de .ta c.om-<.-6-<.5n de.t de..t-<.t:.o, y no e.Jta, pOJtt:.ant:.o, una

c.on-6e.c.uenc..-<.a de..t m-<.-6mo, -6-<.no -6U mot:.-<.vo, c.omo -6-<. paJta e.t -6ujet:.o

hub-<.eJta c.on-6t:.-<.t:.u-<.do un a.t-<.v-<.o pode.Jt en.tazaJt d-<.c.ho -6e.nt:.-<.m-<.ent:.o 1 3 -<.nc.on-6c.-<.ent:.e. de c.u.tpab-<..t-<'dad c..on a.tgo Jte.a.t e. ac.t:.ua.t". Quando

até a causa de um crime pode ser um sentimento inconsciente de

culpabilidade, fica praticamente impossivel tentarmos entender

nossas ações, pensamentos e desejos sem escorregarmos para de!!.

tro de uma subjetividade culpada, infantil. Caminhamos sempre

em busca de um passado remoto que, quanto mais distante de nos

sa experiência atual, mais significativo sera para a compree!!.

sao da nossa relação com o mundo.

o teatro montado pela psicanálise faz perder o inconscien

te produtivo (que o próprio Freud descobriu) em favor de um in

consciente representativo, figurativo. Não mais usina, mas

teatro, onàe papai-mamãe-ego estão eternamente representados em

peças infinitas, cada indivíduo transformado num teatro ambulan

te (o único gratuito, às custas, porém, de um alto preço pago

13 FREUD, S. "f.t yo ye.e. EUo", in op. cit., p.2724.

Page 127: A EMER60tcIA DA CRIANÇA li) BRASII{'1

I

I I I I . ~

120

pelo desejo:) A vasta experiência da criança na sua exploração

do mundo, no seu entendimento da vida, afuni1a-se numa experiê~

cia restrita em que os pais estão representados nos brinquedos,

nas peças da casa, nas árvores, nos animais, enfim, em tudo o

que ela toca e experimenta. r interessante transcrever aqui,

a interpretação de Freud da associação de idéias de uma menina

de quatro anos que, ouvindo a prima falar de seu casamento pr~

ximo, interrompeu dizendo: "Si EmilY.6e c.a.6a, tendná. un núio".

A mãe que lhe perguntou, surpresa, como sabia disso, respondeu:

"Cuando alguien .6e c.a.6a, tiene un nino". A insistência da mãe

sobre como ela podia saber tudo isso, voltou a responder: "PUe.6

todavZa .6é muc.ha.6 c.O.6a.6 má..6; .6é también que lo.6 á.nbole.6 c.nec.en

en lá. tienna. sé también que Vio.6 hac.e el mundo". Para Freud,

a menina quer dizer: "sé que lo.6 nino.6 c.nec.en en la madne", po.!:

que a terra estaria simbolizando a mae e "sé también que todo

e.6 obna dei padne", o pai aqui sub1 imado na imagem de Deus. Con

c1ui que a menina queria comunicar seus conhecimentos sobre a

origem das crianças. 14 Fosse qualquer outra associação, Freud

encontraria nela o pai e a mae. A maquinação da criança, 1ig~

da na vida, nas arvores, na origem do mundo, não pode ser vis

ta como uma multiplicidade de elementos distintos, independe~

tes, onde a criança liga seu desejo, sem querer deles nada mais

que a experiência singular. 55 pode ser vista como uma associa

çao cujo vetor s5 pode ser papai-mamãe.

Pai e mãe, de partes entre outras no mundo da criança (não

queremos menosprezar aqui sua importância afetiva para criança)

14 FREUD, 5. "Á.6oc.iac.ión de IdeM de una núÍa de c.uatM ano.6", in op. cit., vo 1. I II, p. 2481 .

l

I

Page 128: A EMER60tcIA DA CRIANÇA li) BRASII{'1

1 21

passam a constituir objetos primordiais para os quais o desejo

e canalizado, as outras partes vindo a constituir meros substi

tutivos perdidos em sua singularidade. No entanto, dizem De-

leuze e Guattari, "o i"con~ciente ~ ;~6~0 e ~e p~oduz a ~i me~

mo na identidade da natu~eza e do homem".15 A psicanilise, con

tudo, quando i"te~p~eta o inconsciente (porque representativo)

não faz mais que uma castração; o inconsciente, miquina dese

jante, só deseja papai-mamãe, perde sua produção maqufnica,di~

persa, para produzir e reproduzir as figuras parentais escondi

das por tris de tudo aquilo que e objeto singular do desejo.

Quando se procura superar o Edipo, fundado no triângulo pai-

mãe-filho em direção a uma estrutura do inconsciente, explic~

da em termos de funções simbólicas, não mais mamãe mas a "6u~

ç~o-mãe", não ma i s papa i, mas a "6unç~o-pai", pa rece que nao se

"ganha" nada, nas palavras de Deleuze e Guattari, "exceto 6u~

da~ a unive~~alidade de Edipo, alim da va~iabilidade da~ ima

gen~, ~olda~ ainda melho~ o de~ejo ã lei e ã p~oibição e leva~

ati o 6im o p~o ce~~ o de edipianização do inco n~ ci ente. " 16

Na verdade, a descoberta do Compl exo de Edi po, por Freud,

veio legitimar o recalcamento do desejo. "Se o de~ejo i ~ecal

cado, não i po~que ele i de~ejo da mãe ou da mo~te do pai; ao

cont~ã~io, ele ~e to~na i~~o po~que ~ ~ecalcado, ele ~Ô to~na

e~~a ma~ca~a ~ob o ~ecalcamento que a modela e nele a coloca" .17

D alvo nao e o incesto, e o desejo, enl sua realidade pura. D p~

15 DELEUZE, C. & GUATTARI, F. op. cit., p.68.

16 Ibid., p.llD. 17 Ibid., p.151.

I I

Page 129: A EMER60tcIA DA CRIANÇA li) BRASII{'1

122

rigo está em de.-óejaJt e nao no que. se deseja, po rq ue o que agi

ta, o que confronta, o que rompe, o que fa z explodir, e o dese -

j o, nao o incesto. r v i ta 1 , portanto, que o desejo s ej a re p ri

mido pela sociedade pa ra que seus mecanismos de exploração e

sujeição possam continuar funcionando. "E -i-ó-óo queJt d-ize./t, não

que. o de.-óe.jo -óeja out/ta ~o-i-óa d-i6e.Jte.nte da -óe.xuai-idade., mM que.

a -óe.xuai-idade. e o amo/t não v-ive.m no qua/tto de. do/tm-iJt de. Ed-ipo,

e.ie-ó -óonham ma-i-ó ~om uma g/tande ampi-idão, e. 6aze.m pa-ó-óa/t e.-ó

t/tanho-ó 6iuxo-ó que. não -óe de-ixam e.-óto~a/t em uma o/tdem e-ótabe.ie.

~-ida. O de-óejo nao 'que/t' a Jte.voiução, e.te e /tevoiuuanált-io po/t

-ó.<. me-ómo e. ~omo que .<.nvoiuntalt-iamente, que/tendo o que que/t" 18

r por isso que o desejo e o inimigo numero um do sistema capi

talista. Ele não e suportado porque e justamente a única ver

dadeira ameaça que pode "6aze/t exp.tod.<./t -óua-ó e-ótJtutuJta-ó de ba

-óe, me.-ómo ao nIve.t da e-ó~oia mate./tna.t".19 Por que tanta ped!

gogia, tanta psicologia em cima da criança, na nossa socieda

de? Não haverá por trás de tanta proteção e investigação do

mundo infantil, justamente o objetivo de controlar? Conhecer,

fazer crescer, para podar? O desejo ... será que podemos achar

verdadeiras manifestações de desejo na escola? Ou melhor: se

ra que o desejo corre livre na escola sem que seja capturado

mal se manifeste e canalizado para objetos e objetivos que in

teressem ã disciplina e o bem de todos? Trataremos disso mais

tarde.

18 Ibid., p.151-2. 19 Ibid., p.481.

Page 130: A EMER60tcIA DA CRIANÇA li) BRASII{'1

123

Não é na escola, porem, que a coisa começa. Nós já vimos,

ela começa muito antes. Para alguns loucos, já na barriga da

mãe. Na sua relação com o feto, a mãe reviveria a sua experiê~

cia infantil, nutrindo em relação a ele sentimentos gerados por

sua experiência com a própria mae (começaria na avó, então,que

tambem foi filha ... !): faria uma identificação com o feto ou

este seria vivenciado como a mãe dentro de si. No primeiro ca

so, "pJwje:ta .6oblte ele .6ua pltõpltia voltac.idade in6an:t-i.l,

de.6ejo.6 da pltimeilta in6ânc.ia de c.omelt a mae. Quando o 6e:to Ite

plte.6en:ta .6ua mâe, c.uja vingança oltal :teme, ~ expeltimen:tado c.o

mo algo angu.6:tian:te e de.6:tltuidolt que ela leva den:tlto de .6i".20

Quando rejeita o feto e tomada por sentimentos de culpa e medo

de que o desenvolvimento emocional da criança traga marcas de~

sa rejeição. Com o nascimento, vêm as experiências que serão de

cisivas para a formação da personalidade da criança ... Se posi

tivas, o desenvolvimento será normal, saudável, equi1ibrado.Se

negativas, o desenvolvimento será afetado e a criança es ta rá

quase que "c.ondenada" a neurose, psicose, ou de1inquência. Só

que os criterios que definem a boa ou má relação são os crite

rios cientificos da "lõgic.a do de.6ejo". Sim, porque, como Fo~

cault nos sugere, a psicanálise constrói uma lógica do desejo

que estabelece trilhas para o instinto sexual como tanDem o seu

objeto. A partir dos três anos de idade, a criança já faria a

20 LANGER, Marie. Ma:teJtnidade e Sexo. Porto Alegre, Artes Medicas, 1986, p.197, citada por MONTEIRO, Vitoria Lucia M. P. M!J.lheJt e PatLto: Itec.tz..<.ando a Iteatidade a:tJtavê.6 do p.6ic.odttama. Rio de Janeiro, Fundação Getulio Var gas, Instituto de Estudos Avançados em Educação, Departamento de Psico10 gia da Educação, 1988. Tese de Mestrado, p.55-6.

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I

124

"e~colha de objeto" que, dependendo de um desenlace final (a

dissolução do Complexo de tdipo) viria definir a normalidade

ou anormalidade do desenvolvimento da personalidade. " el

-i.1lJ.d-i.nto ~ exual del adulto quedaba oJt-i.g-i.nado pOJt la Jteun-i.õn de

muy d-i.veJt~o~ -i.mpul~o~ de la v-i.da -i.n6ant-i.l en una un-i.dad,en una

tendenc-i.a, oJt-i.entada hac-i.a un ~olo y un-i.co 6..i.n". 21 Este fim,

é a organização genital, que, no adulto (com inicio na puberd~

de), deve ter primazia sobre os diversos instintos parciais que,

na vida sexual infantil, são isolados e tendem independenteme~

te para a obtenção de prazer. "fl 6..i.nal del de~aJtollo e~tá co~

t..i.tu..i.do pOJt la. llamada v..i.da ~ exual nOJtmal del adulto, en la cual

la con~ecuc-i.5n del placeJt entJta al ~eJtv-i.c..i.o de la 6unc..i.5n Jte

pJtoductoJta, hab..i.endo 60Jtmado lo~ ..i.n~t..i.nto~ paJtc..i.ale~ bajo la

pJt..i.mac-i.a de una ún..i.ca zona eJt5jena, una 6-i.Jtme oJtgan..i.zac..i.5n pa

Jta la con~ecuc..i.5n del 6..i.n ~exual en un objeto ~exual exteJt..toJt".22

Deleuze & Guattari veêm o desejo como uma máquina de p~

ças distintas, independentes e dispersas. O objeto do desejo é

parcial, fragmentado. O desejo não deseja aquilo que falta aos

objetos parciais, ou seja, a sua unificação, o seu sentido num

conjunto, numa totalidade para a qual eles apontam e sempre lhes

falta. A falta só se dá na estrutura e em relação a um termo

que unifica as partes mas que não faz parte, ele mesmo, do con

junto (o fálus) - um troféu pelo qual "o openã.Jt-i.o convocado paJta

a gueJtJta abandona ~ua~ mã.qu..i.na~ e ~e põe a lutaJt". 23 Mas a rea

21 FREUD, S. "TJte~ f~ayo~ paJta una TeoJt-i.a Sexual", in op. c it., p. 1230. 22 I bi d., p. 1 209 .

23 DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Op. cit., p.410.

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125

1idade do inconsciente nao é estrutural e aos seus objetos pa!

ciais não falta nada. As pessoas globais nao nos falam do in

consciente, do desejo. "O ineon~eiente i9no~a a~ pe~~oa~, o~

eonjwItM e a~ lei~; a~ imagen~, a~ e~t~utu~a~ e o~ ~Zmbo.e.o~. Ele

- - - o - • " 24 1 . d e o~6ao, eomo e~e e ana~qu~~ta e ateu. As tota 1 ades, as

pessoas globais, sõ existem para o desejo edipianizado que pr~

cisa delas para se produzir e reproduzir. A organização genital

não totaliza as pulsões parciais que evoluiriam em sua direção

porque a sexualidade não está a serviço da geração. E a ger~

ção dos corpos que está a serviço da sexualidade. A reprodução

é força do inconsciente, não finalidade dos corpos. A sexuali

dade é auto-produção do inconsciente que o modelo biológico de

Freud condiciona ao desenvolvimento psicossexual do indivíduo,

ao ponto de fundar a primazia da organização genital como con

dição de normalidade no adulto, justamente porque a serviço da

reprodução da espécie.

o pensamento de Deleuze & Guattari reverte tudo. Parece

que eles pensam de cabeça para baixo ... ou com outra coisa que

nao a cabeça Mas parece que isso é necessário. A psicanI

lise é muito racional, muito coerente, muito lógica e

que o desejo não é nada disso ...

pa rece

A crítica da psicanálise é, aqui neste trabalho, a críti

ca da captura do desejo da criança que, presa as malhas da dis

ciplina a partir do século XIX, no nosso país, é hoje também

24 Ibid., p.394.

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126

presa as malhas do conhecimento cientifico, porque a psicanáli

se serve a sua maneira o poder que ai está e que atua por mec~

nismos que envolvem os individuos na sua intimidade, controlan

do seus gestos, sua conduta e seu desejo.

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CAPTTULO 4

FRAGMENTOS VO CAMPO SOCIAL: ANÃLISE VE

PRÃTICAS QUE SE ARTICULAM NA PROVUÇÃO

VE SUBJETIVIVAVE VA CRIANÇA

Procurarei desenvolver aqui uma reflexão sobre algumas

práticas do nosso campo social cujo alvo é a criança. Pela im

possibilidade de realizar um trabalho exaustivo, e também por

questão de interesse, selecionei algumas que se ocupam da edu

cação ou com ela se relacionam direta ou indiretamente.

o objetivo e mostrar que essas práticas visam ã p~odução

de uma hubjetividade, ou seja, ã produção de uma criança que

pense, que goste, que tenha percepções, objetivos e desejos que

interessem ou sirvam para fortalecer os mecanismos de contro

le, de submissão e, ao mesmo tempo, de extração da força dos

individuos em beneficio de um sistema social fundado em valores

de troca, propri eda de pri vada, produção, consumo ...

Faz-se dessa criança, produzida historicamente, um obji

to natu~al que é preciso conhecer, descobrir, compreender

Com isso, os dispositivos de poder, que nada mais sao do que

as mesmas práticas, simulam a "igualdade" entre a criança bur

guesa e a criança pobre o que fundamentará a idéia de que ã crian

ça pobre 6alta aquilo que a outra tem, justificando toda uma

postura assistencialista que procura atender a eh~a~ ~a~ên~~a~

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128

para por fim às desigualdades... O pior e que se produzem no

pobre metas e sonhos burgueses que o levam a uma prática favo

ráve1, no fim, a que tudo conti nue como está.

1 • "A Re.lação E.6 c.ola- FamZLi.a"

Em trabalho elaborado no período de julho de 1979 a dezem

bro de 1981, Marilia Amorim registrou sua experiência como coa.!:.

denadora acadêmica das séries do pré-escolar à 3~ série do pri

meiro grau, numa escola de classe media, na zona sul do Rio de

Janeiro, com o objetivo de levantar questões acerca da relação

família-escola. Para fins de comparação entre dados, Amorim

buscou elementos em escola publica que atende a famílias de bai

xa renda, visando a apontar especificidades nos dois contextos

analisados, quanto à produção do sujeito (criança) e a dinâmi

ca da relação Escola-Família.

Inicialmente, observa a autora que nos dias de hOje a

criança entra na escola muito mais cedo do que entravanl as cria.!!

ças de gerações passadas, sendo com isso delegado à escola um

poder ainda maior do que no passado sobre o processo de sacia

1ização da criança.

Em muitos casos, já a partir do primeiro ano de vida, fa

mí1ia e escola repartem o controle sobre a vida da criança. A

"tia" na escola (na verdade a professora) vai representar "to

da uma p~âtic.a e..6c.ola~ de. 6amZlia~ização de. .6ua.6 ~e.laçõe..6, c.omo

6o~ma de. oc.ultame.nto da.6 ve.~dade.i~a.6 ba.6e..6 que. c.on.6t-i.tue.m e..6

.6a.6 ~e.laçõ e..6 • ,,1

1 AMORIM, Marília. "A Relação E~c.ola-F~a". Cadernos. Laboratório dePsi co1ogia Social Clinica. UFRJ, Ano I, n. 2, outubro 1985, p.g.

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1 29

Da caracterização da escola de classe média,consideramos

digno de nota o quadro de profissionais especializados, compo~

to por: Diretoria (diretora geral, diretora acadêmica, direto

ra administrativa, diretora de admissão e registro, diretora

de integração comunitária), Assessoria Pedagógica Geral, Coor

denação de ~rea (cada área tem seu coordenador), Coordenação

de segmento, Orientação Educacional, Professores. Devidamente

"quadJtA...c.uf..adol.>" os indivlduos (inclusive os alunos, como esqu~

cer?), o poder disciplinar atravessa nesta escala com a máxima

eficiência, não sendo esquecido nenhum detalhe: a criança con

ta com uma equipe perfeita para "pJtomoveJt .6ua .6ouaUzaç.ão". Vale

salientar que psicólogos e/ou pedagogos estão presentes na Di

retoria, Assessoria, Coordenação e Orientação Educacional; co

mo nao poderia deixar de ser numa instituição cujo fim primo~

dial e educ.aJt, onde, por isso mesmo, o saber especializado so

bre a c.JtA...anç.a se faz indispensável. Não será uma servente que

ditará regras de comportar:lento para professores e alunos ouque

estabelecerá a metodologia de ensino por mais brilhante que se

ja na utilização de suas experiências e de suas idéias. O sa

ber sobre a criança, possuem-no os especialistas que dedicaram

anos de suas vidas ao estudo do que até agora se registrou so

bre a criança e se elevou ã categoria de um saber legltimo e

cientlfico.

O problema da adaptação da criança ã escola, principalme!!.

te por ocasião de seu ingresso, parece, hoje, algo generaliz~

do. Os primeiros dias são sempre muito problemáticos e famllia

e escola fazem de tudo para que as dificuldades sejam super~

das. O foco e sempre a criança. E por ela e para ela que pr~

Page 137: A EMER60tcIA DA CRIANÇA li) BRASII{'1

130

v i dê n c i a s e p r o c e d i me n tos s a o d i s c u t i dos e tom a dos . ~1a ríl i a Amo

rim aponta para este problema em seu trabalho, pois ele apar~

ce como uma das principais dificuldades indicadas pelos profe~

sores da escola em questão. O problema de adaptação das cria~

ças que estão indo a escola pela primeira vez caracteri za-se

pela "ILe.6.i.6têYlc..ia da c.IL.iança em eYltILaIL e peILmaYlec.eIL na e.6c.ola.

Tal ILe.6.i.6têYlc..ia .6e c.onc.lLet.iza 6.i.6.ic.ameYlte: a c.IL.iaYlça Yl~O .6e .6!

paILa da m~e e, .6e 6oILç.ada a .i.6to, c.holLa e gIL.ita .6 em paILaIL. ,,2 E

este o inicio dessa grande etapa de socialização fora da fami

lia: choro, grito e em seguida, adaptaç~o. Isso me lembra uma

antiga piada sobre três rapazes que recebiam orientação reli

giosa. Recomendados para que, em determinado dia, praticassem

uma boa ação, todos três, cumprido o dever, comunicaram ao mes

tre a ação praticada: "ajude.i uma velh.iYlha a atILave.6.6aIL a ILua".

Estranhando que todos três tivessem feito a mesma coisa e inda

gando se se tratava da mesma velhinha, o mestre obteve ares

posta - "E que ela Yl~O queIL.ia atILave.6.6aIL . .. ".

Alguém duvida de que colocar a criança na escola é um de

ver, ou mais ainda, um direito da criança? Apenas nos esquec~

mos de indagar se é a vontade dela.

Fui testemunha da seguinte frase de uma criança que se

dirigia a sua mae: "POIL que voc.ê me botou Yla e.6c.ola? Voc.ê pOIL

ac.a.6o peILguYltou .6e eu queIL.ia?"

Comentando o "peILZodo de adaptaç~o" na escola em que re~

lizou o trabalho, Marilia Amorim coloca: "E.6.6a.6 dua.6

2 I b i d ., p. 34.

Page 138: A EMER60tcIA DA CRIANÇA li) BRASII{'1

1 31

~on~i~tem em momento~ de ba~tante tumulto e ten~~o na e~~ola.

PaJta atendeJt a~ diveJt~a~ ~Jtiança~ e m~e~ * ói~am di6porUvW, além

da~ pJtoóe~~oJta~ de tUJtma, outJto~ óun~ionáJtio~: a a~~i~tente a~

mini~tJtativa, a a~~i~tente peda959i~a, o ~e~JtetáJtio, a~ ~eJtve~

te~, a oJtientadoJta edu~a~ional e a ~ooJtdenadoJta. TJtata-~e de

um veJtdadeiJto plant~o e~~olaJt onde o~ pJt5pJtio~ diJtetoJte~ a~ ve

ze~ paJtti~ipam.,,3

E clara a necessidade de "aliado~" nesse empreendimento

tão difícil. Na verdade são forças que se unem para "dobJtaJt"

a criança. Na verdade é a força do poder disciplinar que se

dirige contra a força irracional, desobediente e espontânea da

criança. Não devemos esquecer porem, que nao e com violência

que tudo se processa, pelo contrário, e com "c.aJtinho, dedic.a

çao e muita pac.iin~ia" segundo palavras de uma das professoras

citadas pela autora. 4

Amorim constata que as maes também sofrem a problemática

da adaptação, mostrando dificuldades em separar-se do filho,

atê mesmo chorando em alguns casos. Sociedade interessante es

ta em que mae e filho devem sofrer, ao longo do tempo contínuas

experiências de separação, dolorosas para a mãe, dolorosas p~

ra a criança. Parece, entretanto, que o "laço pJtimoJtdial" en

t r e mãe e f il h o s e f a z n e c e s s á r i o jus ta me n t e p a r a que se pude s se

* Na escola em questão e permitido ãs mães que permaneçam na escola ã espe ra do filho (este ciente) nos dois primeiros dias, podendo este prazo ser estendido ate o final da primeira semana, ou final da segunda semana ouate o final do primeiro mês, conforme a necessidade. 3 Ibid., p.35. 4 I b i d ., p. 34 .

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I

132

mais tarde ".6eque.6tltã.-.to" para dentro das instituições que se

responsabilizam por sua formação específica para um campo so

cial determinado. Tais instituições precisam justamente dessa

criança dócil que na experiência com a mae e sob seus cuidados

tão delicados e minuciosos já se insere numa relação de prot~

ção, controle e vigilância que as instituições tratarão de man

ter e prolongar.

Difícil para a mae, difícil para a criança, a -separaçao

nao é, contudo, por mim entendida como uma experiência em que

mae e filho são espelho um do outro, como coloca a autora na

seguinte passagem: "Embolta não .6eja 6ltequente, e.ta (a c.1t.-é..ança)

pode c.1t.-é..alt uma .6.-é..tuação ta.t que a e.6c.o.ta e a 6amZ.t.-é..a.6e vejam

oblt.-é..gada.6 a de.6.-é...6t.-é..1t pe.ta .-é..mpo.6.6.-é..b.-é...t.-é..dade que aplte.6enta de pe~

manec.elt na e.6c.o.ta. Ne.6.6e c.a.6o, peltgunta-.6e, até que ponto e.6.6e

c.ompolttamento da c.1t.-é..ança e.6plte.6.6a o de.óejo ma.-é...ó 60ltte

de não entltegalt a c.1t.-é..ança ã e.6c.ola?"S

da -mae

Essa interpretação "p.6.-é.." dificulta o entendimento da ex

pelt.-é..~nc..-é..a da c.1t.-é..ança e .óeu de.6ejo que, na minha opinião, nao

deve ser entendido como um reflexo do desejo da mae.

Ao lado do problema de adaptação, a indisciplina aparece

como a outra grande dificuldade apontada pelos professores da

referida escola; só que, apenas é encarada como tal a partir

da primeira serie do 19 grau, podendo já delinear-se a partir

do Jardim 11, uma vez que, nesta escola, (e acredito que pod~

S I b i d ., p. 48 .

I

Page 140: A EMER60tcIA DA CRIANÇA li) BRASII{'1

133

mos generalizar} os problemas na relação professor-aluno prov~

cados pela criança do pré-escolar não são entendidos ou nomea

dos como indisciplina, recebendo outros nomes tais como "de.6.in

te.lte.6.6e, d.i.6pe.lt.6ão, ag.lte.6.6.iv.idade e alL6ênc..ia de .f...tm..tte.6.,,6

As ciências psicológicas, como podemos ver, adoram nomes

e, com isso, as resistências da criança ao poder disciplinar

são, dependendo de ~ua faixa etária ou período escolar, nomea

das e entendidas diferentemente porque o conhecimento científi

co sobre a criança nos ensina que seu desenvolvimento e uma su

cessão de etapas e em cada uma delas a criança é um sujeito di

ferente, com data certa (ou pelo menos com uma certa previsibi

lidade) para se tornar ".lte.6pon.6â.vel" por seus atos. Antes de

indisciplinada ela é dispersa, desinteressada ou agressiva e,

neste caso, cabe ao p.lto6e.6.60.lt 7 resolver o problema em sala e

com os recursos de que dispõe (táticas e materiais). O probl~

ma parece ser ma i s "p.6..tc.olõg..tc.o" que ".6 o c..ial" . Quando "e6et..tv~

mente" indisciplinada (porque mais crescida) o problema parece

ser mais ".6oc...tal" que "p.6..tc.olõg..tc.o" pois, em casos de probl~

mas disciplinares mais serios, professores, funcionários e di

retores se empenham na sua resolução, sendo inclusive realiza

das reuniões em que se colhem "depo..tmento.6,,8 de professores e

funcionários a respeito dos comportamentos indisciplinados. E

inquerito mesmo e, na verdade o problema e mais "pol.ic...tal" que

"p.6.ic.olõg.ic.o". Quando o problema se caracteriza realmente co

mo indisciplina também surge a referência ã família que aparece

6 Ibi d. , p.36. 7 Ib i d. , p.37. 8 Ibid. , p.39.

Page 141: A EMER60tcIA DA CRIANÇA li) BRASII{'1

134

nos depoimentos através das citações de frases das crianças:

"Minha mãe. di.6.6e. que. voc.ê não me. manda", "mamãe. diz que. voc.e..6

.6ão me.u.6 e.mp~e.gado.6 po~que. o papai ~ que.m paga voc.ê.6."g Come

ça-se, então, a fazer referências a fami1ia e especialmente a

mae: "0.6 óUHc.ioná~io.6 diziam que. a ho~a de. maio~ indi.6c.iplina

e.~a de.poi.6 do ho~ã~io de. .6a2da. Ve.poi.6 que. 0.6 p~oóe..6.60~e..6 e.n

t~e.gam a.6 c.~ianç.a.6 a.6 mãe..6, e..6ta.6 óic.am c.onve.~.6ando e. não tomam

ne.nhuma atitude. e.m ~e.laç.ão ao c.ompo~tame.nto do.6 óilho.6, pe.~m{

tindo que e.le..6 6aç.am o que. qui.6e.~e.m."lO

Parece, portanto, que a medida que a criança se torna mais

velha (e também mais forte, e mais experiente) trata-se de, não

sã responsabilizá-la por seus atos (porque assim o exige a que~

tão da idade) mas também de apontar para a fami1ia (especial

mente para a mae, como não poderia deixar de ser) como sendo

fonte de problemas. Na escola em questão, ã responsabilidade da

criança responde-se com sanções (como toda instituição disci

p1inar que se preze) e ã responsabilidade da fami1ia respond!

-se com algumas medidas tais como: "no que. .6e. ~e.óe.~e ao ac.u.60

liv~e. que. a.6 mãe..6 p0.6.6u2am e.m ~e.laç.ão ao e..6paç.o e..6c.ola~*, óoi

c.oloc.ado um po~tão e um po~tei~o de. modo que. a mae. .60 pode.~á

e.nt~a~ na e..6c.ola c.om uma auto~izaç.ão de. um do.6 e.lemento.6 que.

c.omume.nte. a ate.nde: p~oóe..6.6o~a, c.oo~de.nado~a, o~ientado~a ou

di~e.to~a."ll Punição para ambas: criança e mãe, porque deve

9 Ibid., p.39. 10 Ibid., p.39.

* O acesso era livre antes do agravamento de problemas disciplinares que ocorreram no periodo em que Mari1ia Amorim realizava o seu trabalho.

11 Ibid., p.40.

I I

I

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I I

1 35

ficar claro o poder da escola como também a sua isenção. Fren

te ao "de..6.inte.ILe..6.6e." ã "d.i.6pe.lL.6ão" e ã "aglLe..6.6.iv.idade." dos p~

quenos, a psicologia mas, contra a indisciplina, a punição. Con

tra uma força que cresce, uma força maior. As "pe.lL.ipêua.ó" dos

pequenos a escola assume e tudo faz para resolver mas a indis

ciplina dos maiores há que ser combatida e, nos casos mais di

ficei s juntamente com a famíl ia: " ... 0.6 pa.i.6 .6ão c..hamado.6 p~

lLa uma e.ntlLe.v.i.6ta c..om a olL.ie.ntadolLa palLa que. tambêm atue.m na

d.i.6c...ipl.inalL.ização da c..1L.iança. ... Quando oc..OILILe. 0.6 pa.i.6 .6 e.

lLe.m c..hamado.6 v~lL.ia.6 ve.ze..6 e. a.6 me.d.ida.6 d.i.6c...ipl.inalLe..6 do c..olê

g.io nao obte.lLe.m uma mudança de. c..ompolLtame.nto da c..1L.iança, a 6~

mZl.ia ê adve.lLt.ida que., no ano .6e.gu.inte., a matlLZc..ula do aluno

- - d ,,12 nao .6e.lLa lLe.nova a. E a vitória final da escola. A família

leva uma lição, a criança é excluida. Quando esta fica mais

forte, a escola também trata de se fortalecer. Inicialmente

procuranao enfraquecer a criança (mostrando sua responsabilid~

de) depois a familia (acusando-a pelo comportamento do filho)

e posteriormente excluindo-os para o bem da comuniciade escolar.

Não podemos, agora, deixar de explorar as frases das crian

ças ("M.inha mãe. d.i.6.6e. que. voc..ê não me. manda" e "mamãe. d.i.6.6e. que.

voc..ê.6 .6ão me.u.6 e.mplLe.gado.6 pOlLque. o papa.i ê que.m paga voc..u") co

mo elas merecem.

Em primeiro lugar, a criança mostra o .6e.u poder, um poder

de resistência que, apesar de toda máquina institucional (fami

1iar e escolar) não se deixa exterminar, atravessa pelas pequ~

12 Ibid., p.4l.

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136

nas brechas que encontra. A criança nao e boba. Ela sabe que

é um alvo.

Em segundo lugar, a criança ".6ac.a" a disputa, a guerra

na qual está inserida como o objetivo a ser conquistado (pela

escola) ou defendido (pela família) e sabe muito bem como "pOIt

60go na 60gueilta". Na minha opinião, as crianças que disse

ram essas frases nada mais visavam além de colocar família e

escola, uma contra a outra. Conscientemente? r possível que

nao. Não me arvoraria, contudo, a interpretar suas palavras

como expressão de desejos inconscientes reprimidos porque -nao

~ preciso psicanalizã-la para ".6ac.altmo.6" a maneira como entrou

na disputa, que ~, vale dizer, a maneira como pode entrar.

Em terceiro lugar, devemos observar, e aí com tristeza,

o quanto as frases nos informam sobre esse sistema em que viv~

mos que, tão precocemente faz passarem as idéias de "mandalt" ,

de "quem e que paga", de "quem e o empltegado". E o alvo princl

pal é novamente a criança que cresce e faz crescer com ela essas

forças contra a vida.

Sobre as observações da autora na escola pública pa ra

c r i a n ç a s d e f a m íl i a s de b a i x a r e n da (s e g u n d o c a r a c t e r i z ação f e.!.

ta pela autora a partir da observação de dados arquivados pela

escola) chamam-nos a atenção os seguintes dados.

A família participa muito pouco das atividades da escola

e do próprio processo de aprendizagem da criança. Quando pr~

sente em algumas reuniões gerais ".6ua pO.6~ulta e mai.6 de ouvin

Page 144: A EMER60tcIA DA CRIANÇA li) BRASII{'1

I

137

te havendo ttatto.6 ca.6O.6 de pe.6.6oa.6 que pedem a palav.'ta. ,,13 "Acei...

tam o tttabalho do ptto6e.6.6ott e da e.6cola em gettal, .6em tte.6ttti

çõe.6.,,14 ... "em toda.6 a.6 tteuniõe.6 ob.6ettvada.6, patta qualquett

que .6eja o a.6pecto di.6cutido, a pO.6tutta do.6 pai.6 i .6emptte de

total concottdância com a e.6cola e de apelo patta Que e.6ta exett

ça um contttole ttigotto.6o .6obtte o compotttamento da cttiança, attg~

mentaHdo que ele.6 nã.o di.6põem de meio.6 patta 6azê-lo.,,15

Fico imaginando uma reunião dessas, coordenadas pela Orien

tadora Educacional e me pergunto se frente ao dialeto "pedag~

gê.6" os pais das classes pobres de nossa sociedade podem ani

mar-se a dizer alguma coisa. Que língua ê essa? (devem pe~

sar). E a língua do saber especializado que nem mesmo as fam;

lias n.ais abastadas entendem mas tratam logo de aprender po.!:

que têm recursos para isso: (da escola partic~

lar) .601icitam con.6tantemente tteuniõe.6, com a Ottientadotta Edu

cac.ioHal, pott exemplo, cujO.6 tema.6 .6ao, enttte out~O.6, 'A ttela

ção pai.6 e 6ilho.6', 'A .6exualidade In6antil', e a.6.6im pott dian

te. Houve um cu~.60 o6ettecido na e.6cola, com altZ.6.6ima 6ttequê~

cia de mae.6, chamado 'Educaç.ã.o Familiatt,,,.16

Não resta dúvida de que se existem cursos como estes e

porque ê neles que podemos encontrar a "ve~dade". A verdade da

sexualidade infantil, a verdade sobre a relação pais e filhos

13 Ibid. , p.72. 14 Ibid., p.76. 15 Ibid. , p. 77. 16 Ibid. , p.56.

I

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138

e a verdade sobre a Educação Familiar, com todas as suas recei

tas.

o discurso pedagógico está cheio de todas essas verdades

e os familiares de uma criança favelada não só as desconhecem

como não tem meios de acesso a elas. Além disso, tais verda

des estão muito mais próximas de um modo de vida burguês do

qual as camadas populares de baixa renda não compartilham.

A família pobre parece delegar ã escola quase a total ida

de do poder não só de ensinar (este principalmente) mas de edu

caro Apela, como vimos para que a escola exerça "cont~ole ~i

go~0.60 .6ob~e. o c.ompo~ta.mento da. c~ia.nç.a.". Na mi nha opinião, con

tudo, isso não quer dizer que se submetam mais. Parece-me, aliás,

que as famílias privilegiadas são mais submissas pois,

ram até conhecer e assimilar o saber especializado para

proc~

tê-lo

como guia. Pelas informações que nos traz Marília Amorim, no

caso estudado, as famílias da favela ficam imunes ao discurso

psico-pedagógico e levam suas vidas sem se deixar afetar por

ele. Marginalizadas pela sociedade, ligam suas vidas a valo

res e discursos diferentes.

Aqui sugiro uma pesquisa que infelizmente extrapolaos

objetivos deste trabalho: os reais motivos pelos quais a crian

ça pobre vai para a escola. A que visam seus pais? O que es

peram? Eu poderia arriscar a hipótese de que o motivo funda

mental e o desejo de que seus filhos aprendam a ler e escrever.

A sua consciência e experiência de vida são suficientes para

que saibam que tudo o mais que a escola ensina pouco tem a

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139

ver com suas vidas. E apenas uma hipótese, e fica a sugestão

para uma pesquisa que se realizada, certamente nos trará consi

derações valiosíssimas.

Quanto ao problema de adaptação no caso da escola pübli

ca, gostaria de fazer algumas observações a partir do que e co

loca do no tex to: "Ne~~ a comunidade, po~tanto, o pe~Zo do de

adaptação pa~ece ~e~ vivido como um p~oce~~o a ~e ~e~olve~ no

âmbito da ~elação p~o6e~~o~-aluno. Além di~~o, o p~oce~~o -e

~ápido já que a maio~ia da~ c~iança~ não ap~e~enta

cia~ a ing~e~~a~ no e~paço da vivência e~cola~ e, no~ ca~o~ de

di6iculdade, há uma p~e~~ao inten~a, po~ pa~te do~ pai~,

que a c~iança ~e adapte".17 Notamos que a adaptação aí

constitui um p~oblema e muitas razões parecem justificar

pa~a

nao

esse

fato. Uma delas parece ser o modo de vida da criança pobre

que, antes de ingressar na escola já tem uma vida de experiê~

cias as mais diversas, até fora de casa. Ela não vive, desde

muito cedo, no colo da mae ou sob sua proteção. Muito precoc~

mente conhece o mundo de "além do la~" compartilhando com as

outras crianças vizinhas das brincadeiras e das experiências

(agradáveis e desagradáveis) que a vida oferece. Quando entra

para a escola já tem vivido um processo de separação da mae ou

de quem a protege e sua experiência com outras crianças e ou

tros adu1 tos já tem certo peso na sua vi da. O "p~oblellla de adaE.

tação" é pois algo produzido pelo modo de vida da criança que

vive o mundo interior do lar, protegida dos perigos da rua, da

1 7 I b i d., p. 79 .

I I i:

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140

vida, do desconhecido, sob os cuidados e vigilância dos pais

e/ou da babá. Vemos, portanto, que a~ p~át~ca~ fazem emergir

os problemas que, a partir da sua emergência, vão ser e nca ra

dos como "natu~a~~" e vão constituir um objeto de um saber:

"Tamb~m 6e con6~de~a que há p~06e6~0~e~ ma~~ e6~c~ente6 em 60

.e.uc~ona~ o p~ob.e.ema - aque.e.e~ que já t~m expe~~~nc~a em r6aze~

adaptação r (exp~e~~ão u~ada comumente no co.e.ê.g~o I. * O~ que não

t~m expe~~~nc~a 6~cam ma~~ ne~vo~o~ e nunca 6ao co.e.ocado~ pa~a

b o h . h +. . . . " 1 8 A rr d - rr t~a ao\- a~ 60z.{.n o~ ne~6a~ -1..u~ma~ .{.n.{.c.{.a.{.~. a aptaçao ap~

rece, portanto, como um problema natural que há de ser tratado

com muita experiência e sabedoria. Com as crianças pobres a

sua "natu~a.e.~dade" parece desaparecer e, aponta Amorim, "

no~ ca~o~ de d~6~cu.e.dade há uma p~e~~ão ~nten~a, po~ pa~te do~

pa~~, pa~a que a c~~ança ~e adapte". Não há muita escolha. A

criança pobre dificilmente dispõe de alguém que possa dedicar

a ela uma atenção integral e que (muito menos) possa iniciá-la,

no lar, no mundo da escrita e da leitura. No momento de ir p~

ra a escola tem que ir mesmo ou estará selando uma vida de so

lidão e de muitas dificuldades.

o "p~ob.e.ema de adaptação" parece ser bem recente. Não me

lembro de ter passado por um "pe~Zodo de adaptação" na escola,

como também desconheço, daquela época, programas e horários e~

peciais para as crianças que entravam para a escola pela pr1

meira vez. Hoje uma escola que se preze e queira mostrar com

petência, terá fatalmente seu programa para o período de adapt~

* Trata-se aqui da escola particular. 18 Ibid., p.36.

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141

çao e chegamos ao ponto em que: "O pJtoblema da adaptação .óe ma

ni6e~ta paJta o col~gio em gJtau~. Con~ideJta-~e que hi ca~o~ de

cJtiança~ mai~ di{[cei~ - quando a adaptação ~ Jtipida." 1 9

que se trata de justificar um trabalho a todo custo?

Será

A questão da disciplina, seguindo as observações de Mar;

lia Amorim, parece também ter a sua especificidade na escola

frequentada pelas crianças pobres. Mais do que problema de dis

ciplina existe, aqui, o problema da formação de hábitos: "Se

gundo a pJtôpJtia diJtetoJta, con~ideJta-~e que ê 6unção da e~cola

cJtiaJt hibito~ .e e~tabeleceJt Jtotina~ paJta a vida da cJtiança

que, ne~~a comunidade, 60Jta da e~cola, ~ua~ vida~ em geJtal,~ão

ba~tante de~e~tJtutuJtada~. VentJto de~~a peJt~pectiva, ~ con~ide

Jtado nOJtmal JtepJteendeJt a cJtiança .óe ela não e~ti ~entada em

po.ótuJta 'adequada', .óe ~ua cami.óa e.óti de.óabotoada, ~e nao ~e

gue a.ó noJtma~ de compoJttamento paJta andaJt em 6ila e a.ó.óim pOJt

diante. Segundo a.ó pJto6e.ó~oJta.ó, o cumpJtimento de.ó.óe.ó a~pecto.ó

di.óciplinaJte.ó exige pOJt paJtte dela~ um tJtabalho inten.óivo e vi

- - W gilante poi~ e~~a~ cJt.iança~ nao tJtazem de ca~a tal educa.çao."

o que estas crianças não trazem de casa é um modelo de

comportamento burguês que se quer como àominante. Se tal probl~

ma não foi apontado pelas professoras da escola particular da

zona sul do Rio, deve-se provavelmente a que tais crianças,tJt~

zem de ca~a tal educação, pelo menos em sua maioria. Trata-se

pois de um tipo de comportamento eleito em detrimento de um ou

19 Ibid., p.35. 20 I b i d., p. 80 .

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142

tro que passa a ser desqualificado. São as crianças pobres que

devem modificar seus hábitos em função do outro modelo. O modo

de vida burguês que prima pela semelhança entre os indivíduos

(vejam-se os costumes, a moda, os valores, etc) e portanto oe~

colhido por uma máquina de poder que tanto melhor funciona qua~

to menos "e.mpe..IL.lLada" for por produções de diferença que sao

mais visíveis ã meoida que caminhamos para os níveis mais bai

xos da sociedade.

O comportamento indisciplinado, segundo a autora, e raro

nessa escola, tendo sido inclusive observada nos alunos uma ati

tude frequentemente solícita e de pronto atendimento ao que e

proposto ou exigido. Observa,contudo, Marília Amorim que al

guns profissionais da escola e pais têm uma expectativa de seve

ridaàe da escola (que se efetiva na prática) frente a probl~

mas disciplinares (os pais, aliás assim o desejam). Interessan

te esta expectativa nos pais. Não sei se está assentada nos

mesmos motivos pelos quais são severos os professores. Estes

visam, na sua exigência a produção de um sujeito disciplinado,

nos moldes, como vimos, do comportamento burguês; aqueles, o

que visanl quando solicitam ã escola "um c.on:t.ILo.te .IL-tgo.IL0.60 .60

b.ILe. o c.ompo.IL:tame.n:to da c..IL-tanç.a?". Será a mesma coisa? Ou algo

diferente como uma garantia de permanência, ou de não perder

a chance de uma possível melhoria de vida para a criança, para

a fanl íl i a?

Essa hipótese parece ser plausível quando aparece o pr~

blema da aprendizagem. Na escola pública, em questão,as crian

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143

ças apresentam dificuldades, aprendizagem lenta, problema que a

escola "Jte..6o.tve." montando turmas especiais (uma denominada CAD

composta por alunos que "n~o apJte..6e.ntam pJtontid~o paJta .6e.Jte.m

a.t6abe.tizado.6",21 embora ji devessem cursar a primeira s~rie*

e uma out ra que e a pri mei ra s~ri e repetente, pa ra aqueles que

não conseguiram alfabetizar-se). Observa Marília Amorim que

este problema não gera tensão na escola embora o numero de alu

nos nessas turmas seja maior do que nas demais. A dificuldade

de aprendizagem parece ser encarada como fato natural. "PMe.C.e.,

poJttanto, que. a pJte.oc.upaç.~o da e..6c.o.ta e..6tã. muito mai.6 Jte.6e.Jtida.

a 6oJtmaç.~o de. hã.bito.6 - andaJt e.m 6i.ta, te.Jt a. c.ami.6a. .6e.mpJte. ab~

toada, e.tc. - do que. a apJte.ndizage.m pJtopJtiame.nte. dita", conclui

A . 22 mo r1 m.

De fato, parece que a escola funciona para a criança p~

bre muito mais como elemento de contensão do que de promoçao

social. Torni-la igual ã criança burguesa resol ve o incômodo

(e a ameaça) dos comportamentos desajeitados, dos "mau.6" hãbi

tos que muitas vezes são difíceis de tolerar quando o convívio

~ i n e v i t ã v e 1 mas, e n s i n a r a 1 e r e e s c r e ver r e sol ve a p e nas o p r~

blema da criança .,. De posse desse recurso tão valioso na nos

sa sociedade, a criança pob re "inc.omodaJtia" muito mais!

toso? De forma alguma. Não conheço escola ou professor

ne.gue. a ensinar a ler e escrever as crianças da s camadas

1 a re s . O que acontece e que as dificuldades sao muitas

criança não aprende ...

21 Ibid., p.82.

* Na escola publica a alfabetização se processa na primeira série. 22 Ibid., p.86.

E acin

que. .6 e.

pop~

e a

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144

2. E~~ota~ Expe~imentai~

Visitei no Rio de Janeiro "e~~ota~ expe~imentai~" que pr~

curam desenvolver um trabalho anti-tradicional, através de uma

p r á t i c a e d u c a t i va 1 i b e r t a d o r a . A p r e o c u p a ç ã o c om o r e f e r e n c i a 1

teórico nessas escolas pareceu-me relevante e, em alguns casos,

essencial. Piagetianas, Freinetianas ou Montessorianas, tais

escolas se fundam e se definem no seu marco teórico, levando

adiante um trabalho pedagógico com programas e objetivos muito cl~

ros que pretendem na prática, atender às necessidades da cria~

ça as quais, na teoria, já estão descobertas, compreendidas e

explicitadas. O trabalho nao é repressivo porque ê guiado p~

ta expe~iên~ia da ~~iança e o que a experiência da criança mos

tra tem "tudo a ve~" com o que dizem as teorias, bastando que

se organize e conceitue essa experiência e se a enquadre no tra

balho pedagógico. A partir daí a criança vai seguindo a trilha

da liberdade, tal como os autores da pedagogia libertadora e

os educadores anti-tradicionais a entendem. Se a criança "não

qui~e~" trilha nenhuma, se não quiser trabalhar com material

didático "ap~op~iado ao ~eu nZvet de de~envotvimento", tem-se

um problema que as teorias não resolvem e que na prática vai

marcar a diferença.

"Quem que~ 6aze~ e~~ota di6e~ente tem que tida~ ~om a~

di 6 e ~ e n ç a ~ ", d i s s e a o J o r n a 1 do B r a s i 1, de 2 2 . 1 O . 89, o c o o r d e

nador pedagógico de uma escola experimental do Rio de Janeiro.

Como conciliar, entretanto, esse pensamento com a opçao por uma

linha pedagógica, ainda que "tibe~tado~a"? Na teoria todas as

crianças são iguais, mesmo naquelas em que se atenta para as

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145

variantes constitucionais, vivenciais e culturais, porque no

fim o que fica é o modelo, um modelo de desenvolvimento que se

pretende uni versa 1. As di fe renças po rtanto, ".6up0Jt:tada.6" nao

vao além das diferenças sociais e psicológicas. A singularid~

de, esta nao, nenhuma escola está preparada para compreender e

suportar, mas ela existe.

Nem se pode exigir isso da escola. Existem os especi~

listas. E é exatamente a eles que a criança é encaminhada qua.!!.

do o seu problema ultrapassa os limites da intervenção escolar.

Numa sociedade como a nossa, capitalista e disciplinar, para

cada um, sua função! t desonesto e anti-ético serem ultrapa~

sados os limites. A função da escola é educar (hoje esse con

ceito já está bem ampliado, não se restringindo ao en.6ino mas

englobando toda uma série de atividades que procuram formar a

pe.6.6oa, "de.6envolveJt hã.bi:to.6", ensinar a pensar, a ser criati

vo, participante, etc) e para isso existe a pedagogia, aliada

mais tarde ã psicologia, para fundamentar teoricamente a atua

ção da escola. A cada um, sua função. Ao especialista,porta.!!.

to (neurologista, fono-audiólogo, psicólogo, psicanalista ... )

aquela criança diferente que grita sem parar, que tem um olhar

e s t r a n h o, que s e i sol a, e t c . Não p r e te n de mos d e f e n d e r a qui uma

escola super-competente, que resolva dentro de seus limites o

problema de uma criança como essa. Nossa intenção é mostrar

como está organizada uma sociedade na qual os indivíduos devem

ser "enquadJtado.6" e "d-i..v-i..d-i..do.6". O lugar para aprender é a es

cola. O lugar para ".6eJt louc.o" ou "di6eJten:te"é o consultório do

especialista. De dentro da escola, é correta a atitude de en

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146

caminhar a criança problemática; de fora dela, entretanto, e

que podemos recordar que a escola teve uma data de nascimento

e que surgiu para atender as necessidades de um sistema emer

gente que precisava "quadJtic.u,faJt" a sociedade, com instituições

diversas (escolas, prisões, hospitais, fábricas, etc), com li

mites e funções bem definidas (e profundas semelhanças), prep~

radas, enfim, para receber o indivíduo e devolvê-lo a socieda

de apto, útil, produtivo. Nossa intenção aqui, não e desqua1i

ficar a escola e os especialistas. Nossa posição é filosófica

e portanto, nossa preocupação é o entendimento; no caso, o en

tendimento de práticas cujo alvo seja a criança, buscando en

tender suas articulações e a que servem, em última instância.

o que mais diferencia as escolas anti-tradicionais das

tradicionais é a preocupação com a relação que se estabelece

com a criança, fator presente nas primeiras e negligenciado nas

segundas. A criança, na escola moderna é preparada para pe~

s a r, c r i t i c a r, c r i a r, e n f i m, s e r i n te 1 i g e n te. J ã de n t ro d a e s

cola, é estimulada a ter uma atitude consciente e crítica, p~

ra depois, nas relações mais amplas dentro da sociedade,ter um

desempenho semelhante, com participação e atuação critica efe

tivas. O que não entra em questão para os educadores da esco

la moderna é "de que ,fado e-6tã. e-6-6a c.Jtitic.idade", se do-lado-da

liberdade ou do lado das forças conservadoras que tambem atra

vessam pelas teorias pedagógicas e epistemológicas, ainda que

avançadas e conhecidas como libertadoras. A capacidade de ser

crítico nao está necessariamente do lado da liberdade. E possi

vel até mesmo que esteja do lado que a combate mais fortemente.

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1 1 1 I i I i I

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147

A critica racional, lõgica, inteligente, pode ser muito limita

dora, especialmente para a prõpria pessoa cuja formação levou-a

por esses caminhos. O homem não e sõ razão e o privilégio de~

se aspecto empobrece a intuição, a emoção criadora e desprep~

ra~o para entender a nn~o kaz~o", o que foge do lõgico, do ra

cional. Desprepara-o para entender o di6ekente. Dentro de uma

escola piagetiana, por exemplo, na qual tenho pensado ao escr!

ver essas últimas linhas, a preocupaçao com o desenvolvimento

da inteligência e a base do processo pedagõgico. Esse desenvol

vimento tem uma evolução determinada que vai do estágio senso

rio-motor ao pensamento formal (atingido por volta dos 11 a 12

anos), sendo este último o estágio mais avançado do desenvolvi

mento da inteligência e o de maior equilíbrio. A criança que

não atinge este estágio (e Piaget acredita que nem todos o atin

gem) não será capaz de um pensamento mais elaborado, que possa

desprender-se do real e atingir assim sua força máxima. Alguns

autores acham até que a parada do desenvolvimento da inteligê~

cia em estágios anteriores, in~apacita o individuo para uma com

preensão ampla da sociedade e consequentemente para uma atua

ção abrangente que a transforme. O desenvolvimento da inteli

gência caminharia, pois, para algo que poderia estar mais pr~

ximo de uma sociedade democrática onde a força do pensamento

formal combateria os erros de um sistema social injusto. Outras

questões podem ser colocadas entretanto: em primeiro lugar não

constatamos a "pkimazia" do pensamento formal nos grandes mov!

mentos de transformação social, muitas vezes enraizados na lu

ta cotidiana daqueles que nada têm e que se revoltam não sõ com

a inteligência mas com todas as forças do seu corpo, entre elas

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148

as do estômago; daqueles que são "dióe.lLe.n:te..ó" e que se revoltam

com as forças da sexualidade, da criação, da intuição, etc. Em

segundo lugar, o "pe.n.óarne.n:to óOlLrnai" não possibilita por si so

o e n te n d i me n to d e s s a s c o i s as, p o i s, c o m o j á c o 1 o c a mo s a c i ma , e 1 a s

fogem ao que e racional. No máximo ele pode explicá-las segu~

do o seu modelo. Em terceiro lugar, a evolução para o pens~

mento formal não contém muito de democracia pois apesar de, ao

final do desenvolvimento, o indivíduo utilizar os vários níveis

da construção do conhecimento, o pensamento formal deve prev~

1ecer sobre os demais para que se possa falar de fato em equi

1íbrio mental.

Por essas razoes, a criança que tem sua formação numa e~

cola anti-tradicional, cujo referencial teórico seja, por exe~

p10, a epistemologia de Jean Piaget ou outros autores afins,p~

de estar sendo preparada para criticar, sem entender, lutar por

democracia sendo autoritária, produzir sem criar.

o ar de liberdade que se respira nas escolas modernas con

trapõe-se ao clima repressivo das escolas tradicionais. Isso

porque se parte de uma "hip5:te..óe. lLe.plLe..ó.óiva" que desencadeia

processos de luta contra a repressão, no caso, representados por

esses movimentos por uma educação libertadora. A concordarmos

com Foucau1t, trata-se de uma falsa hipótese que entretanto e

necessária para que se reconheça o caráter libertador de tais

movimentos. r preciso acreditar na repressao para que se reco

nheça a ação libertadora. r preciso que "haja" repressao para

que se justifique o movimento pela liberdade. A psicanálise co~

dicionou o desenvolvimento normal do indivíduo ã repressão. O

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149

desenvolvimento psicossexual é levado a cabo através de muitas

repressões a favor do bem estar do individuo no seio da fami

lia e da sociedade. E da dinâmica psicológica decorrente dos

processos repressivos do individuo que dependem sua saúde men

tal e o lugar do analista é garantido por essa hipótese. Sem a

repressão não haveria pSicanálise, nem obviamente, psicanali~

tas. Coisa semelhante ocorre em vários movimentos sociais, e~

tre eles, os movimentos educacionais. A repressão, foi a gra~

de razão da Psicanálise assim como é o grande argumento para a

elaboração de teorias e métodos pedagógicos, que içam a bandei

ra da liberdade enquanto na prática produzem sujeitos altamen

te disciplinados e úteis para o sistema capitalista.

A escola e a educação tradicionais são severamente criti

cadas na forma como passam o conhecimento e, principalmente,na

forma como o apresentam: uma verdade eterna, pronta e acabada

ã qual alunos passivos e sem capacidade de critica são levados

pelo mestre que sabe tudo e que nada tem a aprender com alunos

novos e despreparados. A escola moderna procura reverter essa

situação con~t~uindo o conhecimento numa prática diária da qual

participam conjuntamente professor e aluno. Não mais verdades

prontas e acabadas. Não mais aprendizagem passiva.

A verdade agora é outra. As verdades que eram transmiti

das de forma tão autoritária deixam de existir para dar lugar

ã verdade do conhecimento cientifico que agora, nao como con

teüdo, mas como referencial teórico, guia a prática pedagóg1

ca. Afinal, trata-se da verdade sobre a criança, enfim, desco

berta. (E essa verdade custa bem caro ... ).

I

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150

Descobertas, enfim, as necessidades da criança e o proce~

so do seu desenvolvimento, cabe aos educadores, na prática p~

dagógica, montar uma equipe para trabalhar com a criança. A es

pecialização da equipe é tanto maior quanto mais definida a o~

çao da escola por um referencial teórico e/ou por uma metodol~

gia especifica. Nas escolas experimentais o número de alunos

por turma e bem mais reduzido que nas escolas tradicionais de

forma que a equipe, especialmente o professor, pode dispensar

a criança uma atenção bem maior, quase individualizada. Sobre

a criança, enfim, há vários pares de olhos e ouvidos, atentos

a sua fala, seus gestos, suas atitudes, sua criatividade, seu

progresso, seu grafismo, sua psicomotricidade, seu esquema cor

poral, seu desempenho nas diversas disciplinas, sua capacidade

de concentração, seus hábitos, seu temperamento; atentos ã ma

neira como lida com o material, com as regras, com as situações

conflitantes, com os colegas, com os próprios sentimentos, com

os professores, etc, etc. * A observação de cada um desses itens

é registrada constituindo um "lLe.:tlLa.:tO" da criança, ou podemos

arriscar, um verdadeiro diagnóstico. Nas escolas modernas tudo

é montado de forma a facilitar todas essas observações. o p~ queno numero de crianças por turma é fundamental. As metodolo

gias utilizadas também, pois so quando se opta por um método

que deixe a criança mais livre, que estimule sua participação

e atividade, é que se torna possivel conhecê-la melhor. Aonde

leva, todavia, tudo isso? A formação do adulto critico, part~

* Dados extraídos de um relatório para os pais, com a avaliação semestral da criança, de uma escola experimental do Rio de Janeiro.

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1 51

cipante, como diriam os educadores modernos, ou ã produção de

uma subjetividade útil a uma sociedade disciplinar, dominada

por teorias cientificas que controlam o pensamento, restringi~

do sua força criadora a favor de uma racionalidade que não .sa

be entender a vida?

E dificil para tais educadores entende"r essas questões.

Afinal eles acreditam sinceramente no caráter libertador de

suas práticas e no avanço que pode ter a Educação com a constr~

çao das teorias cientificas sobre o pensamento infantil. Qua~

do, porém, os mecanismos de controle ficam óbvios demais, nao

faltam meios para escamoteá-los. A seleção dos alunos e um

exemplo. O controle já começa antes da entrada na escola. As

experimentais, entretanto, procuram camuflar esse procedimento

criando situações que são batizadas com nomes diferentes e sim

páticos que possam afastar o fantasma da seleção ou procurando

c o n v e nc e r de que não s e 1 e c i o na m mas, e n c a m i n h a m o a 1 uno p a r a uma

turma adequada a seu nivel de desenvolvimento, mesmo que isso

represente a repetição de uma série já superada. Justificam que

é preciso evitar as frustrações áe um ano dificil para a crian

ça que, defasada em relação às demais, por proceder de uma es

cola diferente e não apresentar nos testes realizados um desem

penho satisfatório para ingressar na turma desejada, certamen

te fracassaria. A verdade é que o fracasso da criança é nao

só adivinhado como antecipado. Se quiser entrar na escola enao

tiver tido bons resultados nos testes de avaliação repetirá a

série que acabou de concluir ou não entra na escola. O "6Jtac.a!

.60" que poderia experimentar ao longo de um ano, convivendo com

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1 52

os novos colegas, os novos professores e a nova metodologia (e

que p o d e r i a, i n c 1 u s i v e, nem e x i s t i r, d e f a to) é "d e c. i di do" e m

poucos dias. Não é incrível que as escolas modernas e experi

mentais tenham entrado nesse jogo da seleção, grande bandeira

hoje em dia levantada pelas escolas mais tradicionais e que m!

receria um estudo ã parte? Além de selecionar criança, essas

escolas desqualificam umas as outras pois "nao ac.neditam" no

certificado de aprovação apresentado, não abrindo mao da tes

tagem para avaliar a criança segundo seus próprios métodos. Além

disso, a seleção dos alunos, neste caso, intelectual, vem es

treitar mais ainda os portões de entrada, já estreitados pelo

fator sócio-econômico que deixa de fora dessas escolas a gra~

de parte da população que nao pode pagar por uma formação li

b e r t a d o r a p a r a seu s f i 1 h os. .. O" v e.6 ti b ui an " p a r a c r i a n ç a s e

hoje assunto de jornais. Espero que venha a ser, com a maior

brevidade, assunto de trabalho acadêmico avançado, profundo,

que abra as portas para o entendimento do que a nossa socieda

de foi capaz de inventar no trato com a criança.

A preocupaçao com as 6onma.6, com os arranjos, com as ar

rumaçoes, também ajuda no disfarce do controle. As carteiras

arrumadas livremente, o livre acesso aos materiais coletivos,

o colorido do material atrativo e diversificado, a atitude dos

educadores, muito próximos, co-participantes no processo, en

fim, a valorização do espaço, em geral, tudo condiz com um tra

balho renovador, adequado ãs necessidades da criança, ao seu

modo de ser, e ao seu jeito de viver. Cada detalhe é pensado

e programado. Cada coisa tem um sentido e uma função. Tudo es I i

I

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tá, enfim, de acordo com a metodologia adotada. Tudo está, en

fim, sob controle. Inclusive a criança. Pois o que ela e e

vai ser já está descoberto e explicado pelas teorias que revo

lucionaram o conhecimento do mundo infantil.

E interessante ressaltar também que, especialmente nas

escolas modernas, ~udo ~ pedag5gico. O lanche é pedag5gico, o

descanso é pedagõgico, o recreio é pedag5gico, o "e~co44ega" e

pedag5gico. Nada do que a criança faz escapa às malhas de uma

teorização. A pedagogização, dentro dessas escolas, -tomou con

ta até do ar que se respira.

A pr5pria escola cada vez mais amplia seus domínios. Quer

tomar conta de tudo, até da família. Esta que lhe delegara p~

deres na formação da criança é agora, especialmente, no caso

das escolas experimentais, alvo de uma catequese contínua que

visa enquadrar a família no esquema da escola, que visa, enfim,

criar também a "6amZlia pedag5gica". Começou pela criança qua~

do a velha função de en~ina4 caducou, dando lugar à função mais

elevada de 604ma4. Na escola a criança deve aprender também a

se 1 a va r, a c o m e r, a s e n t a r, a f a 1 a r, a a n d a r, a c o r r e r, a c ri a r

e a pensar ... "E~cola ~ vida", podemos ler na proposta ped!

gógica de uma escola experimental do Rio de Janeiro, porque h~

je ela ensina a viver (como viverão aqueles que nunca freque~

taram escola?!). Da criança, enfim, a escola passa ao contro

1 e da famí 1 i a pa ra que haj a "uma ação in~eg4ada e co e4en~e en

:t4e c.a~a e e~c.ola". Afi na 1 o conheci mento da famil i a não écien

tifico, cabe portanto cativá-la, ouví-la, acatar-lhe algumas s~

gestões ... Aos poucos inteirando-se da metodologia, a família

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1 54

sera a grande aliada. Escola, família, vida, se confundem~ S~

mem as diferenças essenciais. Produzem-se diferenças funcio

nais, de superfície, que visam distribuir papéis e funções p~

ra definir, organizar, delimitar, avaliar, classificar. Produ

zem-se diferenças, para se acabar com a diferença. E o parad~

xo da nossa sociedade disciplinar.

Todas essas questões vistas acima nao sao privilégio de

escolas particulares. Na escola pública, as propostas pedag~

gicas também têm o seu referencial (embora da proposta ã sala

de aula ele se perca, por uma série de fatores específicos); tam

bém têm a preocupaçao com a individualidade do aluno, suas di

ferenças, seu modo de vida (embora os livros didáticos sejam

claramente prenhes de preconceitos e discriminações); igua1me~

te defendem o exercício da crítica, a formação de um saber abra~

gente (embora desqua1ifiquem o saber das classes populares -

" aque.le..6 que. bU.6c.am a e..6c.ola pübLi.c.a c.aILe.c.e.m de. innoJz.maç.õu

e. da vivênc.ia c.om a c.ul~ulLa e. o .6abe.IL de. nO.6.6a pILópILia .6oc.ie.d~

23 - -de. ••• " ); tambem se preocupam com a construçao do conhecime~

to como um processo de interação professor X aluno (embora os

professores limitem-se, na prática, a apenas três estratégias

pedagõgicas: aulas expositivas, imposição de atividades e co

b d . - d -d) 24 -rança e memorlzaçao e conteu os ; apontam tambem para a

23 "VOc.u.me.MO de. TJz.a.balho: A PJWpO.6~a. Pe.dagógic.a". Governo r10reira Franco~ Secretaria de Estado de Educação, março/1988. p.17.

24 "Má. FOJz.maç.ã.o le.va pJW nU .60IL a c.omde.1L eNW.6 ab.6uJz.do.6". Jornal do Bras i1 de 16.03.90. Pesquisa de Maria Lúcia Brandão, concluída em 1984, em diver sas escolas do 19 Grau do Rio de Janeiro, a maioria pública.

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155

importância da competência profissional (apesar de reunir a gra.!!.

de massa de professores limitados e despreparados porque os m~

lhores não se submetem a salários ridículos); também se preoc~

pam com a qualidade de ensino para todas as unidades (embora

mantenham o estigma das escolas publicas exemplares, as quais

o aluno pobre só tem acesso se passar em exames rigorosos que

deixam de fora da escola exemplar um grande numero de alunos

que, igualmente pobres, sonhavam também com a escola "demochi

tica" e de boa qualidade).

Fora das escolas - modelo, quais as características da re

de publica de ensino? "A hede e6ti em phoce66o de 6ucateamen

to", diz o cientista social Heraldo Vianna, da Fundação Carlos

Chagas. 25 As escolas publicas do Brasil têm problemas de ins

talações (a escola Municipal Bernardo Vasconcelos, na Penha,

zona norte do Rio, passou um tempo funcionando em regime de

"hod:tzio de óa.tta6, onde a cada dia thê6 tUhma6 6a.ttavam ã. au

.ta pOh não haveh cahteiha6 6u6iciente6 paha a6 chiança6 6enta

hem."26) Carecem de material pedagógico adequado, e são mal g~

renciadas. Os professores têm baixo nível de conhecimento e

os alunos, de baixa condição econômica e social, revelam atra

so significativo de aprendizagem, apresentando, em séries mais

adiantadas do 19 grau, deficiências que já deviam ter sido su

peradas em séries inferiores. 27

25 Jornal do Brasil, de 22.02.90: "E6tudo Rephova en6ino na6 úco.ta6 púbü Ca6" . 26 "Repe:tente6 en6hen:ta.m a óa.e.:ta de e6:thu:tUha do en6ino". Jornal do Bras i1 de 15.04.90.

27 Ibid.; dados da pesquisa realizada pela Fundação Carlos Chagas, junto a 238 escolas da rede oficial, em 69 cidades brasileiras, avaliando um total de 30 mil alunos.

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1 56

o índice de repetência nas primeiras series dessas esco

las e assustador: cinquenta e quatro por cento na primeira se

rie. Os alunos evadem e apenas quarenta por cento de cada g! - a -. 28 raçao consegue chegar a 8- serle.

o que e isso? Como fica a ideia de criança como futuro

da nação, riqueza do país? E nessas condições que se quer no

Brasil formar o futuro cidadão? Não. E nas escolas particul~

res, onde está a criança de "boa" família, porque o governo bra

sileiro nao "liga a mlnima" para a criança pobre. Repito: a

c~ança e a das f~mílias favorecidas da nossa sociedade. E ela

o futuro cidadão, ê para ela que se fazem os discursos. E de

la que falam as teorias. A criança pobre e a sobra.

3. B~eve~ nota~ ~ob~e a ~ituação atual

da C~iança Pob~e no B~a~il

No Brasil há 30 milhões de crianças vivendo em estado de

- . d d· d 1 d'" 29 miserla, meta e as crlanças e a o escentes o palS. O estu

do realizado pelo Instituto de Planejamento Econômico e Social

(IPEA), do Ministério do Planejamento juntamente com o Fundo

das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) revela que a cada

mil c r i a n ç a s nas c i das no B r a s i 1, s e s s e n t a e s e tem o r r e m po r de ~

nutrição, diarreia e infecções intestinais e respiratórias, fi

cando o Nordeste com a metade dessas mortes. As causas dessa

28 Ibid., dados das pesquisas de Sergio Costa Ribeiro, do Laboratório Na cional de Computação Científica (LNCC).

29 "E~tudo Revela 30 milhõe~ de meno~U CMentu". Jornal do Brasil, de 14 de março de 1990.

I !

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157

mortalidade sao a pobreza, a ignorância e a falta de saneamen

to básico, segundo dados fornecidos pelo estudo que admite ain

da uma forte relação entre o estado nutricional das crianças e

o problema da propriedade da terra. A criança desnutrida fica

com o peso abaixo do padrão de normalidade e baixa estatura.

Quando tem 15, 16 anos de idade aparenta 11 ou 12 anos.

A doença que mais mata a criança brasileira e a pneumonia,

seguida pelas infecções intestinais que ficam com a percent~

gem de 20,6% das mortes. A diarréia é a causa principal, no

d t d t d . d t- . d . d d 30 nor es e, a mor e e crlanças e a e Clnco anos e 1 a e.

Apenas 23% das crianças de até 6 anos de idade frequentam

creche ou pré-escolar e, segundo dados de 1987, fornecidos p!

10 estudo realizado pelo IPEA e UNICEF, pelo menos 4,3 milhões

de crianças brasileiras de 7 a 14 anos permaneciam fora da es

cola básica.

Ao invés de resolverem problemas tão dramáticos na area

de educação e saúde, os governos brasileiros até agora só sou

beram (ou quiseram) tomar medidas de confinamento das crianças

pobres. A FUNABEM e as fundações estaduais para o menor têm se

encarregado disso. Estão confinadas até crianças que apenas se

d f '-1· 31 per eram e possuem casa e aml la. A falta de recursos das

instituições para tentar localizar as famílias dessas crianças

e a i n c o m p e t ê n c i a ou de s i n t e r e s s e do g o ver n o f e d e r a 1 em r e 1 a ç ã o

30 "Via.JVz.úa na. Vila do João impede l.>oYl.ho de CJÚa.Yl.ç.a". Jornal do Brasil, de 04.04.90. 31 "CJÚaYl.ç.a.6 peAcüda!.> doI.> JXU-6 vivem c.oYl.Mna.da.6 na. FEEM". Jornal do Brasil, de 11.02.90.

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1

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158

a o p r o b 1 e m a ma n t é mas i tua ç ã o c o m o e s t á . O 1 i v r o " G a/t o:t 0.6 de

/tua - a me/tce da .6o/t:te", escrito por Maria Lucia do Eirado Si1

va e Gilberto Bore1 trata desse problema.

Nas instituições de menores, as condições de instalação

sao precãrias, hã superlotação e muitas crianças se queixam de

maus tratos e violência por parte dos encarregados. Muitos sao

"abandonado.6" dentro da instituição onde ficam anos quando de

veriam passar apenas alguns meses.

o Juiz de Menores do Rio de Janeiro determinou em port~

ria publicada no Diário Oficial no dia 8 de março deste ano o

recolhimento pela polícia de menores de rua. De acordo com en

tidades ligadas à criança a portaria é anti-constitucional. O

objetivo é recolher as crianças e encaminhá-las a centros de

triagem da FEEM, que não tem condições de atendê-las adequad~

mente. 32 são as alternativas de vida das crianças abandonadas

ou sem família no nosso país. A miseria e mendicância pelas

ruas ou o confinamento em instituições precárias e repressl

vaso As estrategias de poder dirigidas às crianças pobres são

assim, controle, vigilância, violência,enquanto que as dirigl

das às crianças de camadas sociais favorecidas são de proteção,

vigilância cuidadosa, adestramento.

A Fundação Centro Brasileiro para a Infância e Adolescên

cia (FCBIA) que substituiu no atual governo a Fundação Nacional

do Bem-Estar do Menor elaborou um programa que prevê a elimina

32 "Enü.dade.ó vão ã jU,ótiça contJz.a. detenção de Cfl..,,[ançM". Jornal do Brasil, de 01.04.90.

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çao da prática assistencialista do Estado acabando com o inter

namento de crianças em instituições oficiais. 33 O governo pr~

curará criar condições para que as crianças abandonadas sejam

mantidas sob a responsabilidade dos pais ou parentes próximos,

através de ajuda com alimentos, assistência pedagógica e cola

boração financeira. Os reformatórios continuarão existindo p~

ra abrigar as crianças sem familiares e as infratoras. A FCBIA

terá funções normativas, de fiscalização e apoio financeiro,

não realizando, como a extinta FUNABEM, o atendimento d i reto

as crianças, através da prática de internação.

Que programa, nesta linha, pode acabar com o problema da

pobreza e da criança abandonada? A ajuda governamental a fam1

liares e tutores mantém o pobre, pobre. Não muda estruturalme~

te nada. Se as causas da pobreza não são atacadas (pagamento

da dívida externa, concentração de renda e de terras, política

econômica empresarialista), o problema da criança pobre con

tinuará. As estratégias para ricos e pobres se manterão dife

rentes e o futuro continuará plantado nas camadas burguesas da

sociedade.

4. A c~iançada~ ~evi~ta~

Na questão da criança, a revista "Pai~ e. Fi.tho~" e o es

pelho da nossa sociedade atual. Crianças lindas de pele rosa

da, introduzem-nos num mundo rico, colorido, confortável que

33 "CoUo~ anu.nua plano o~ado pa/ta. meno~". Jornal do Bras i 1, de 27 de ma rço de 1990.

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só muito poucos conhecem. Parece que c~~ança ê aqu~fo. A 1 i

existe um modelo, um referencial. Qualquer desseme1hança e des

vio, marginalidade. O que passaria pela cabeça de uma mãe pr!

ta de filhos pretos e pobres que, por obra do acaso viesse a

folhear uma revista dessas? Não sei, mas, certamente, no míni

mo sentir-se-ia num mundo aparte, ou num mundo real em contras

te com esse outro, fictício, ou ainda teria a correta perceE.

çao de que a mae que está a 1 i nao e e 1 a , e tampouco a criança,

seu fil ho : o que a 1 i está nao lhe serve, nem 1 he diz respeito.

Sua vida e tão diferente; e out ra a alimentação dos seus fi

lhos, outros seus programas, suas questões. O seu pa rto, en

tão, o que teria de semelhante com partos tão bem assistidos,

cada qual numa linha, numa orientação, mas todos partos bons,

cercados dos melhores cuidados!? .Medicos, enfermeiras e mari

dos tão dedi cados! Preci samos conhecer mel hor como as mulheres

pobres dão ã luz. Depoimentos colhidos por Vitória Lucia M.P.

Monteiro e relatados em sua tese de Mestrado "Mufhe~ e Pa~to:

Rec~ando a Reaf~dade a.t~avê.6 do P.6~cod~ama" aproximam-nos de~

sa outra realidade; dessa realidade da pobreza, do despreparo,

da desinformação e, sobretudo, da submissão, da falta de condi

~ões de rebelar-se contra a violincia com que são tratadas p!

los medicos. Mas na revista isso não aparece. "Pa~.6 e F~fho.6"

fala de outros pais e de outros filhos. Daqueles que devem ser

o modelo, e que escondem as duras realidades singulares. O mo

delo e branco, saudável e bonito. E quem assim não for deve

submeter-se e orientar sua vida para aproximar-se sempre mais

desse padrão de saúde e beleza que na nossa sociedade nada mais

e que o padrão de riqueza.

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Na "Pai.6 e Fi.tho.6" de janeiro de 1988, Ano 20, nQ 5, ap~

rece, na página 50 a mulher preta de que falamos - mas ela -e

babá ... e é a típica "mã.e-pJz.eta" do Brasil-Colônia. Na report~

gem nao faltam os conselhos: o cuidado com a escolha, as boas.

referências, o bom relacionamento (sem maior intimidade). Mas

fica claro: a babá pode fazer de tudo mas quem educa é a mae.

Tudo é muito parecido com a atitude crítica que no século pa~

sado se formou em relação a criação das crianças: é preciso que

a criança não aprenda a falar com a babá, que não ouça suas e~

tõrias àe medo, que nao fique inteiramente sob seus cuidados.

Afinal educar é muito difícil. E preciso entender psic~

logia, tomar conhecimento do pensamento pedagógico moderno, co

nhecer Piaget, Maria Montessori, aconselhar-se com psicólogos,

psicanalistas, pediatras, advogados de família ... "Pai.6 e Fi

l h 0.6" tem tu d o i s s o . Sua a s s e s s o r i a é c o m p 1 e t a e r e s p o n d e a

um vasto campo de saber especializado sobre a criança. Educar

agora é problema científico e não venham mais falar de experiê~

cia e prática ... isso não vale nada, não é qualificação.

5. Tudo pela cJz.iança

A nossa sociedade está de tal forma organizada que, a

criança está reservado um lugar muito especial. A ela se desti

nam, especificamente, inúmeros programas e atividades de natu

rezas as mais diversas. Na música, no comércio, nos programas

culturais, na televisão, seja onde for, a criança ocupa o seu

lugar, bem demarcado, nitidamente contornado pelos limites da

qui loque chamamos "pJz.ogJz.ama.6 (ou pJz.oduto.61 in6anti.6" que tanto

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mais autênticos serao quanto maior a participação direta da crian

ça na sua realização (ou propaganda).

A televisão dedica-lhe um horário integral com programas

infantis de uma abrangência indiscutível, porque ensinam tudo

o que a c r i a n ç a " pJt e. c.i.6 a" a p r e n d e r (o u q u a s e tu do ... ): e n s i na m

a cantar, dançar, consumir, vestir, ser bonita ... , e a lição

e muito bem aprendida. As crianças (desde tenra idade) execu

tam as tarefas com perfeição. Sabem de cor as letras das (me~

mas) canções, sabem dançar e realizar com exatidão e no tempo

certo, os mesmos gestos; sabem o que devem consumir e a esco

lha do brinquedo ou do produto e sempre certa; sabem, e com mui

to gosto, o que vestir e como ".6e. pJtoduziJt".

A criança aprende que ela é tudo, e o que há de mais im

portante, a razão de ser de tanta alegria, tanto som e tanta

cor. Aprende também que não sendo "baixinho" nada é: se can

tar outras músicas, cantará sozinha; se inventar algum gesto,

errara na dança; se quiser um brinquedo diferente, terá que fa

zê-lo com as próprias mãos.

"A" criança está lá. Ser criança e ter consciência de

que e o alvo: "é. um pJtogJtama in6ant.il ... , é. paJta mim". Como

não? O lugar está ocupado. E protegido.

A identidade da criança está clara e definida. E sobret~

do saber que é. c.Jtiança e que existem coisas que são feitas es

pecialmente para ela. E saber que é frágil, preciosa e esp!

cial; mas é também saber que pode ser inoportuna e as "paqu~

t.a~" estão lá para lembrar. E preciso evitar os imprevistos e

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manter tudo sob controle. Os "baixinho,ó" sao tudo mas nao "man

dam" ..•

No comando de todos esses atos de amor, proteção, cuida

do e controle, "dentJto" ou "óoJta" da televisão, a figura ce.!:.

ta, aquela a quem foi legado o poder maior sobre a educação e

formação das crianças: a mulher, que como mae ou como ídolo re

força sempre o vínculo primordial, que como espelho é constan

te incitação a um retorno espe(ta)cular.

A questão nao para aí. A força de massificação e alien~

çao desses programas é tal que, cada vez mais, os adultos se

deixam encantar por eles ao ponto de se emocionarem publicame~

te quando alguma participação é concedida.* E o máximo. Além

da apropriação da criança, imbeciliza-se o adulto e a dificu1

dade de mais tarde reverter-se esse processo fica decuplicada.

Assusta-nos também outra coisa. Já se reconhece oficial

mente, a nível mesmo do primeiro escalão do atual governo bra

sileiro, o poder de influência de um desses idolos femininos so

bre a criança. O governo tem-se utilizado disso nas suas cam

panhas de vacinação e prevenção de doenças infantis e aciden

teso Sob a bandeira da higiene e da saúde fortalece-se ainda

mais essa influência, reforça-se o ídolo como figura de amor e

bondade, e apertam-se os laços que amarram a criança a fa1sida

de, fraqueza e alienação.

* Já se chegou ao fanatismo. A reportagem do Jornal do Brasil, de 19.9.89, i ntitu 1 ada "Twnu,Uo paJta veJt Xuxa óeJte dez CJt.,Útnç.a..6 em utã.cJ..-i..o de Salva doJt", deve se rvi r como a 1 e rta !

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CONSIVERAÇDES FINAIS

o poder não é propriedade de ninguém. Não é algo que se

detém. E uma relação de força contra força, dissemos atrás. Aí

está a razão para, após tantas frases aparentemente pessimistas,

levantarmo-nos um pouco. Levantarmos para procurar descobrir

com quem estamos aliados, com que forças juntamos nossas for

ças; quais foram e quais são nossos encontros. Eles podem ex

plicar-nos muitas coisas e os que estão por vir podem provocar

mudanças. Façamos novos encontros, experimentemos. Não julgu!

mos que estamos presos a verdades eternas e que o que aí está

e a ordem natural das coisas ...

Não acreditemos que descobrimos a verdade sobre a crian

ça. Nós a inventamos. O homem existe na Terra há cerca de dois

milhões de anos. Por que haveríamos de crer que, finalmente,

a parti r do século passado, a formação de um saber sobre a crian

ça levou-nos a conhecer sua verdade, sua essência eterna? Essa

verdade é descoberta no momento mesmo da sua invenção. Desco

brir e inventar tornam-se aqui a mesma coisa. Não se descobre

nada porque nao existe nada feito (quem o teria?). Quantos anos

mais estará o homem sobre a Terra? Quem sabe não estamos na

pré-história ou muito próximos a ela? Então, temos a verdade?

O que achamos que é o ser e apenas uma manei~a de ~e~. O

men i no 6ilho do ~ enho~ era o ~inhôzinho. O menino 6ilho do uCJta

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vo era o moleque. O 6ilho do Zndio era o culumim. No século

XIX novas maneiras de ser foram inventadas: o 6ilho da mãe (mãe

ver d a d e i r a que a m a e e d u c a seu s f i 1 h os) ê. o ci da dão, o filho sem

mãe ~ o meno~ ca~ente, abandonado. O homem que por obra do aca

so perde todos os seus documentos passa a ser ninguém. Deixa

de ser cidadão. Tomei conhecimento do caso de um homem que,

dado por morto, deixou de receber seu salário. Ele tentava pr~

var que vivia mas nao tinha jeito: Ele estava morto: E se o

menor carente tirar a sorte grande e ficar milionário? (acho

que até mãe ele arranja).

Tudo são puras formas, atributos, enfim. Tudo pode ser

revertido.

Quando nos deparamos, porem, com o saber científico, pe~

samos estar diante da verdade.

Acreditamos que a Psicologia, Psicanálise, Pedagogia e

todos os demais ramos do saber sobre a criança nos dizem o que

a criança ê.. Corremos a estudar ou consultar um especialista

quando falhamos com a criança ou não conseguimos compreendê-la,

porque nas teorias está tudo muito bem explicado ou está tudo

por explicar ... porque é preciso conhecer a criança, seus há

bitos, seu pensamento, suas manias, é preciso conhecer seu pai,

sua mãe, saber de seus irmãos, ~ preciso conhecer os problemas

da família, seus conflitos, suas queixas, ê preciso conhecer

tudo ... para que se diga no final qual ê o problema (e quase

sempre e o mesmo ... ). Em nome da subjetividade, em nome do

respeito a individualidade (cada caso é um caso) penetra-se pr~

!

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fundamente na família e na vida das pessoas. Depois tudo se es

clarece: ê so relacionar uma coisa com outra, tomar uma coisa

po~ outra, falar uma coisa de outra. Para fazer isso, porem,

ê preciso dominar o saber, ê preciso conhecer a verdade (e usar

do poder que ela confere).

o encontro do médico com a mulher e com a criança prod~

ziu uma mãe dedicada, exemplar, que educa e ama seu filho. Não

que r e mos diz e r que se t r a ta deu m a m o r f a 1 s o . Não ~ Na da ê ma i s

real! Só queremos dizer que não ê a. ve~da.de... Antes nao era

assim. No futuro tambê,n serã diferente. A mulher e a criança

se envolverão em novos encontros, em novas relações e uma nova

mulher e uma nova criança emergirão! Como serã? Não sei. O

importante ê sabermos que, aqui e agora, nós não temos a verda

de, nós temos uma. h~~tõ~~a. da. c~a.nça.. Entender isso, muda a

postura, fortalece o pensamento, produz novos encontros. r is

so que se quer aqui. P~oduz~~ a.lgo, fazer acontecer, para re

verter o que aí estão

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Dissertação apresentada aos senhores

Nome dos comp~ Marla LGela do Elrado SlIva

nentes da Ban Esther Marla de Magalhaes Arantes

ca Examinadora -C Kátia Muri y Coutinho

Visto e permitida a impressão

Rio de Janeiro, ~/08/l990

Coordenador Ger de Ensino

/tM~~~();~ Coord~ador Geral de PeSC;ui