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A EMER60tcIA DA CRIANÇA li) BRASII{'1
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A EMERG[NCIA DA CRIANÇA NO BRASIL
Fe~nanda Ro~a Bo~ge~ de Holanda
Dissertação apresentada ao Departamento
de Psicologia do Instituto de Estudos
Avançados em Educação, da Fundação Get~
1 i o Va rgas, pa ra obtenção do grau de Mes
tre em Educação.
Orientadora: Ma~ia Lucia do Ei~ado Silva
Rio de Janeiro
Fundação Getulio Vargas
Instituto de Estudos Avançados em Educação
Departamento de Psicologia da Educação
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• a E~a Sevune.ttto da RO.6a BoJtge..6, m-i..nha mãe.: au..óênci.a que.
me. cü.mi.nu.i. ma6, lemb/ta.nç.a que. me. Jz.e.c.u.pe.Jta.;
• a Le.o, SaJz.a e. Paula, c.om quem qu.e.Jz.O pa.Jtti.1.haJz. agoJta. a
ale.gtvta da ob/ta. teJl.m-i..nada;
a AlbeJLUna Rodtvtgue..6 da Silva, a Memem, m-tnha .óe.gunda
mae.;
. a me.U.6 -i..Jz.rnão.6, peta tOJz.ci.da e. pe.lo apo-i..o.
AGRAV EC I IA ENTOS
A Thvz.eza RO.6a BOJtge.6 de Holanda e LeonMdo Cunha, pelo ma-teJtiaf
pJteu0.6o que me env..tMam de BJta..6Wa e Reu6e .
• A MM.ia Luua do E..iAa.do Silva, pua oJt.ientaç.ã.o c.ompe-tente e ~
ga .
• ' A Paulo do.6 Anjo.6 Matia.6, pelo bdo .tJz.a.bafho datifogJtá6..tc.o.
S U IA ~ R 1 O
I NTROOUÇÃO .••••.•.••••••..•••••••••••.•••..••.•••.•••••.•••.•••.••
CAPTTULO 1 - A FAMTLIA PATRIARCAL E O JOGO VAS VIFERENÇAS •••••••.•
CAPTTULO 2 - O PODER t O INVIVrVUO ............................... .
1 • A V-Ló c.ipüna do-ó COJtpo-ó ..................•.................... 2 A " - d d'" . :7+: o . mae veJt a UM e a c.uança LUAA.. ........................... .
3. A CM.ança PobJte .................•.. -.................•....•....
4. A V-Ló c.ip.e..,i.na E-óc.olM .•....•.....•.•..••...•..••.•.•.•..••.•...
CAPTTULO 3 - A CAPTURA VO VESEJO ................................. .
1 • A" Relação P JL.ÚnoJtcíi.al" .......•..................•...•.........
2. O Tea:tJz.o do Inc.on.6uente ..•.....••..•••..••....•••..•..•.....•
CAPTTULO 4 - FRAGMENTOS VO CAMPO SOCIAL: ANÃLISE DE PRÃTICAS QUE SE
pág.
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ARTICULAM NA PRODUÇÃO VE SUBJETIVIVAVE VA CRIANÇA •••• 127
1. ':'\ Relação E-óc.ola- FcuriZlia". . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • . . . . . . . . . . . . 128
2. t-óc.o.ta-ó ExpeJvÚnentai-ó .............•...........•............... 144
3. BJteve-ó no:ta-ó -óobJte a ú.x.uação a:tual da CM.ança PobJte no BltMil. 156
4. A c.Jz-i.a.nça da-ó Jtev-Ló:ta-ó ...••.••.•••.••.•.•.....•.••.....•...••. 159
5 • Tudo pela CJz..iança. . . . . . . . . . . . . . . . . • . . . . . . . . . . . . . • . . . • . . . . . • . . . . 16 1
CONSIVERAÇVES FINAIS .............................................. 164
BIBLIOGRAFIA ••••••••••••••..•••••••••••••••••••••••••••.•••••••••• 167
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RESUMO
Pretende-se desenvolver aqui uma reflexão sobre como, a
partir do século XIX, no nosso país, a criança passou a ser al
vo de forças que dela se apropriaram para forjar o indivíduo
obediente e, sobretudo, útil.
A submissão ao poder patriarcal foi substituída pela submi~
são a um poder distribuído e organi zado dentro da sociedade que
atravessa os corpos e exerce sobre eles um controle tão forte
quanto discreto, produzindo no final uma multidão de individua
lidades, de "di6e~ença~" ... iguais.
Dentro da família a mulher passou a ocupar um lugar de
destaque pois, como mãe, papel enaltecido a partir de então,
veio a ser a responsável pela formação e educação dos filhos,
futuros cidadãos. Sua função viria a ser reforçada pela esco
la e por outros dispositivos do poder discipl inar, como o enten
de Foucault.
Hoje, o conhecimento do mundo infantil, o atendimento das
necessidaaes da criança, a compreensão dos seus desejos -sao,
n a ver d a de, p r o d u ç õ e s das p r á t i c a s d e c o n t r o 1 e e v i g i 1 ã n c i a da s
crianças.
Pensar sobre essas questões e o começo de uma mudança que
se quer, aqui, estimular. Por contágio.
1 }
ABSTRACT
The aim of this paper is to reflect upon the child in our country
who, since the beginings of XIX century, have become the target for forces
that took property of her in order to construct the obedient and,above all,
profitable individual.
The submission to patriarchal power was substituted by submission to
an organized and well distributed power inside society which overcomes the
bodies and has as strong as discret control over them producing at the end
a multitude of individualities and equal ... "differences ll•
Inside the family the woman has occupied a prominent place as far as
being the mother - a very important role since then - gives her the respon
sability for education and formation of children - the future citizens. Her
function would be reforced by the school, and other dispositives of the
disciplinary power as Foucault understand.
Today, the knowledge of child world, the understanding of its
necessities, the comprehension of its desires are nothing but a by-product
of children control and vigilance practices.
To think about these questions is the very begining of the change
this paper is to stimulate. By contagion.
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INTROVUÇÃO
No século XVI, contam os historiadores, foi descoberto o
~rasil. Muito jã aconteceu, muita hist5ria se contou.
Pretende-se aqui contar a história curiosa de como no Bra
sil do século XIX de~cob~~u-~e a c~~ança e, podemos dizer, in
ventou-se a criança c~~ança. O segundo termo ê o atributo que
fez do corpo pequeno um objeto de saber-poder, um alvo de for
ças que dele se apropriaram para tornã-lo um corpo obediente e
útil .
Nos primeiros tempos da colonização, onde estava a c~~an
ça? Inutil era procurar por aquelas matas onde se paria para
povoar a colônia. Inutil era tambem procurar pelas Casas-Gra.!:!.
des e senzalas onde apenas o branco e o negro falavam da sua
diferença. No Brasil do seculo XIX alguma coisa aconteceu. Mis
turas de gente e costumes, de idéias e neg5cios produziram al
go, fizeram acontecer a c~~ança. Mas o que significa tudo is
so?
Significa que a criança emergiu de dentro de um campo s~
cial determinado e historicamente marcado. Relações de poder
estrategicamente articuladas investiram na criação de um "obj!
to" que se constituiu, a partir de então, como objeto de saber
e como corpo politico, dando, por sua vez, existencia, e man
tendo em funcionamento, na sociedade, mecanismos os mais diver i
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sos (instituições, produção de saber, propaganda, etc, etc).
A ckiança e uma 60kma (aqui se reverte o mundo plat~nico
das idéias) produzida aqui, do encontro dos corpos, no campo
social. t uma forma da qual se apropriaram forças várias num
jogo de poder-saber extremamente produtivo e criativo.
Para entendermos esse jogo e preciso pensarmos na questão
do poder como Foucault nos faz pensar.
As relações de poder sao relações de força contra força;
nao relações de dominadores sobre dominados; não exploração de
uma classe social, que detém o poder, sobre outra desprovida de
p o d e r ; não v i 01 ê n c i a o u i d e o 1 o g i a mas, r e 1 a ç õ e s s u tis, di re tas,
físicas, que se dão nos fios capilares da grande rede do campo
social; relações positivas, porque produtoras de .6abe.k; não de
um saber do "obje.to natuka(", fixo na história sobre o qual com
o passar do tempo, aprofundamos mais e mais nosso conhecimento
mas, o saber de um objeto inventado, localizado e datado, efei
to das relações de poder.
o poder não ê uma propriedade mas um exercício; nao e o
poder do Estado ou da lei. t a força que atravessa, investe os
corpos e, neles se apóia, convocando-os a uma batalha perpétua.
O Estado a ele recorre, utiliza ou impõe algumas de suas táti
cas e os indivíduos, no corpo-a-corpo travam a sua luta que não
deve ser entendida como reflexo das formas da lei e do governo.
Como força positiva e produtiva, o poder gera saber e e~
te não p o d e c o n s t i t u i r - s e em" c a m p o H e. ut k o " . F o r a da b a tal h a
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o saber nao é possivel porque lhe faltaria o objeto. O objeto
do saber é o objeto do qual o poder se apropriou (o que e o sa
ber sobre a criança, senão o conjunto de informações que o co~
trole e a vigilância possibilitaram?) "Não há 1Le.laç.ão de. pode.1L
~e.m con~tituiç.ão cOILILe.lata de. um campo de. ~abe.lL, ne.m ~abe.1L que.
nao ~uponha e. não con~titua ao me.~mo te.mpo 1Le.laç.õe.~ de. pode.IL" 1 ,
disse Foucault. Igualmente, não há o sujeito do conhecimento,
de um lado, e o objeto do conhecimento, do outro a espera de
que aquele o descubra e passe a conhecer sua estrutura, suas leis
fundamentais, sua essência; antes, sujeito e objeto são efeitos
do poder-saber que os gera e determina.
Não há "obje.to.6 natulLai~" (a "clLianç.a e.te.lLna" , por exem
plo) mas, obje.tivaç.õe.~ de práticas muito bem datadas. Entre a
criança de hoje e a criança dos primeiros tempos da coloniza
çao no Brasil, apenas o nome é comum e não tem sentido julga!
mos que as práticas atuais em relação ã criança estão mais cor
retas porque mais próximas da verdade. Não há um alvo a ser
atingido, nem uma "matilLia" (a criança verdadeira). O objeto ê
determinado pelas práticas, pelas relações que o envolvem, pelas
forças que dele se apropriam. "A" clLianç.a não existe. Existem
c r i a n ç a s que são p r o te g i das o u c r i a n ç a s que s a o aba n do n a da s • . . ,
devendo-se entender que as crianças são protegidas porque al
guem as protege ou abandonadas porque alguém as abandona ... A
clLianç.a é apenas uma palavra e as palavras nos enganam porque
nos distanciam das práticas.
1 FOUCAULT, Michel. Vigialz. e. Pu~. Petrópolis, Vozes, 1987, p.30.
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Em seu livro "Hi.6tóltia Soc.ial da Cltiança e da FamZlia",
Philipe Aries mostra-nos como se formou, a partir do século XVII,
na Europa, uma concepção diferente da criança e da família, a
partir de práticas que dominaram os velhos costumes medievais
e inauguraram uma sociedade onde a criança veio a ter um lugar
especial.
Na sociedade medieval, a criança só era mantida sob os
cuidados maternos até sete anos de idade quando, então, julg~
da capaz de desembaraçar-se sozinha e adquirir sua independe~
cia, era misturada aos adultos partilhando com estes de seus
trabalhos e jogos. Crianças e adultos, das mais diversas condi
ções sociais, se misturavam nas ruas, nas praças e nas festas.
Vestiam os mesmos trajes e participavam das mesmas brincadei
raso A sexualidade não constituía assunto proibido: "E.6.6a au
.6ênc.ia de lte.6eltva diante da.6 c.ltiança.6, e.6.6e hábito de a.6.6oc.iá-
la.6 a bltinc.adeilta.6 que giltavam em toltno de tema.6 .6exuai.6 palta
no.6 ê .6 ultplte endent e: ê 6 ác.il imaginalt o que diltia um p.6ic.an~
ta modeltno .6oblte e.6.6a libeltdade de linguagem e, mai.6 ainda, e~
.6a audác.ia de ge.6to.6 e e.6.6e.6 c.ontato.6 6Z.6ic.o.6. E.6.6e p.6ic.anali.6
ta poltêm, e.6taltia eltltado. A atitude diante da .6exualidade,
.6em dúvida a pltópltia .6exualidade, valtiam de ac.oltdo c.om o meio,
e, pOIt c.on.6eguinte, .6egundo a.6 êpoc.a.6 e a.6 mentalidade.6.,,2 As
proibições só começavam a surgir quando a criança atingia a p~
berdade. Até lá, ela era tida como indiferente ã sexualidade.
2 ARItS, Philipe. H..i...6tóltia Soc...i..al da Cltiança e da FamItia. Rio de Janei ro, Editora Guanabara S.A., 1978, p.129.
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Tambem nao se acreditava numa inocência infantil que devesse
ser preservada.
Inserida no mundo dos adultos e. com eles misturada, tudo
o que a criança viesse a aprender era fruto desse convívio am
p10, fora do controle da família. A educação era, portanto,e~
sa aprendizagem da criança no meio social, atraves da prática,
ajudando os adultos em seus serviços.
No período inicial (de O a 7 anos), durante o qual era
mantida no seio da família, nutria-se em relação ã criança um
sentimento superficial que Ari~s chama de "papa~icaçio": a crian
ça era uma "coi4inha eng~açadinha" que divertia muito os adul
tos. Sua morte apesar de poder desolar alguns não era motivo
de desespero pois, logo poderia ser substituída por outra. Ate
o fim do seculo XVII havia casos de infanticídio que, apesar
de considerado crime passível de punição severa, era praticado
em segredo: as crianças morriam asfixiadas na cama dos pais o~
de dormiam ... As pessoas deixavam morrer ou ajudavam a morrer
as crianças que não queriam conservar. "O 6ato de ajuda~ a na
tu~eza a 6aze~ de4apa~ece~ c~atu~a4 tio pouco dotada4 de um
4e~ 4u6iciente nio e~a con6e44ado ma4, tampouco e~a con4ide~a
do uma ve~gonha. Fazia pa~te da4 coi4a4 mo~almente neut~a4,
condenada4 pela etica da Ig~eja e do E4tado ma4, p~aticada4 em
4eg~edo, numa 4emi-con4ciência, no limite da vontade, do e4qu~
cimento e da 6alta de jeito".3 No mesmo seculo XVII, entretan
to, sob a influência de reformadores e moralistas, a vida da
3 Ibid., p.17.
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criança passou a ser preciosa e os pais passaram a lutar para
conservá-la.
Atingida a idade da independência (sete anos), o comum era
que a criança saísse de sua casa, sendo confiada a uma outra
família que se tornaria responsável por sua educação. Sua famí
lia original, por sua vez, se responsabilizaria pela educação
de outras crianças.
A partir do fim do seculo XVII, por pressao de moralis
tas e reformadores religiosos, a escola substituiu a aprendiz!
gem como meio de educação. A criança foi retirada do convívio
com os adultos para dentro da escola onde ficaria salva das
"mi~ in6lu~neia~" e dos "mau~ eo~tume~" ... "Começou um longo
p~oee~~o de enelau~u~amento da~ e~iança~ (eomo do~ loueo~, do~
pob~e~ e da~ p~o~tituta~) que ~e e~tende~ia até no~~o~ dia~ e
ao qual ~e di o nome de e~eola~izaçã.o".4
Essa escolarização da criança teve a cumplicidade da fa
mília no seio da qual nasceu o novo sentimento da infância que
se exprimiu na importância que se passou a atribuir ã educação.
A criança passou a ser o centro das atenções, insubstituível e
era necessãrio que se passasse a cuidar melhor àela (o contr~
le da natalidade observável no seculo XVIII, tem aí suas raí
zes). O comum, entretanto, era que a criança estudasse sob r~
gime de internato em colegios ou na casa do seu mestre com quem
pa s s d va a mora r.
4 Ibid., p.ll.
1
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Aries observa que a infância começou a ser reconhecida a
partir do século XV e durante o XVI, como mostra a análise da
iconografia, o aparecimento do colégio e a modificação do esp~
ço em direção a uma organização das casas que protegia e priv~
tizava mais a família e que favorecia o surgimento de um senti
mento novo entre os membros da família e, mais p a r t i cu 1 a rm e.!!.
te, entre a mãe e a criança. A ausência desse reconhecimento,
até então, pode ser constatada, por exemplo, na nao aceitação
da morfologia infantil, na arte, onde a criança era represent~
da como um adulto de tamanho reduzido. O seculo XVII, entre
tanto, é o marco principal do surgimento do sentimento da infân
cia, entendendo-se este como consciência da particularidade in
fantil e a arte é o seu principal testemunho.
O sentimento da infância trouxe consigo o interesse ps~
colõgico pela criança e a preocupaçao com sua saúde, higiene e
formação moral: agora era preciso conhecê-la para melhor cor
rigí-la e a preocupação com sua educação e disciplina se tor
nou evidente.
"A 6amZlia e. a e.4c.ola lLe.tilLalLam junta4 a c.lLianç.a da 40
c.ie.dade. d04 adult04. A e.4c.ola c.on6inou uma in6ânc.ia outlLolLa li
C.Ul04 XVIII e. XIX 1Le.4ultou no e.nc.lau4ulLame.nto total do inte.lLna
to" ... "Ma4 e.44e. lLigoJt tlLaduzia um .6e.ntime.nto muito di6e.ILe.nte.
da antiga indi6e.ILe.nç.a: um amOIL Ob4e.44ivo que. de.ve.lLia dominalL a
40c.ie.dade. a palLtilL do 4ic.ulo XVIII".5
5 Ibid., p.277.
8
A burguesia ocupou uma posição de vanguarda em todo esse
processo. A alta nobreza e o povo conservaram por mais tempo
seu modo de vida tradicional.
o sentimento da infância, em todos os pontos em que sur
giu (jogos, trajes, educação) trouxe consigo a marca do senti
mento de classe. A criança entrou em evidência na mesma medi
da em que os grupos sociais se distanciaram.
Os jogos abandonados às crianças (nas classes burguesas)
continuaram de costume entre adultos e crianças das classes PE
pulares. Quando as crianças passaram a usar trajes diferentes,
nas classes populares a identidade dos trajes se mantinha. Qua.!!.
do começaram a frequentar a escola, somente tardiamente as da
alta nobreza e as das classes populares passaram a frequentá-la.
Quando a criança se tornou o centro das atenções, os criados
tambem foram colocados em evidência e de uma relação anterior
de amizade passou-se a uma relação de severa vigilância.
J. Donzelot, em seu 1 ivro "A Pol1.c.ia da.ó Fam1.lia.ó", no ca
pitulo que dedica à "Con.óelLvaç.ão da.ó ClLianç.a.ó" anal isa todo um
processo de mudança, desencadeado no seculo XVIII (França), em
torno da criança, mostrando como o problema repercute de formas
diferentes nas diferentes classes sociais. Como consequência de
ferrenhas criticas que surgiram na epoca às instituições para
menores abandonados (crianças pobres) e à entrega de crianças
aos cuidados (ou "de.óc.uidado.ó") de nutrizes contratadas (cria.!!.
ças mais favorecidas), a imagem da infância mudou. Nas classes
burguesas, a difusão da medicina domestica muniu os pais de co
9
nhecimentos e tecnicas que lhes possibilitaram tirar seus fi
lhos da "inóluênc.ia negativa" dos serviçais cujo trabalho pa~
sou a submeter-se a rigorosa vigilância. Do outro lado, surgiu
a filantropia como forma de direção da vida dos pobres, com o
objetivo de diminuir o custo social de sua reprodução (nas in~
tituições). No interior das famílias burguesas uma nova alia~
ça entre medico e mãe concedeu a esta um papel fundamental (o
novo "4tatu4" de mãe). A educação assumiu uma importância bi
sica e toda uma literatura sobre os cuidados com a criança foi
produzida com recomendações específicas relativas aos jogos i~
fantis, histórias, regularidade da jornada, espaço fisico rese!
vado ã criança e vigilância. A mãe garantiria a efetivação de
tais cuidados.
Essa nova natureza de preocupaçoes relativas ã educação
nao penetrou no interior das famílias pobres da mesma maneira.
Aqui, a penetração dos novos preceitos se deu sob a forma de
diminuição da liberdade (controlada pelo Estado). A proteção
discreta no seio das famílias burguesas aqui seria vigilância
direta. O novo "4tatu4" da mãe pobre seria o de nutriz: o Esta
do passou a dar-lhe uma assistência financeira pagando-lhe uma
quantia equivalente ao gasto que se tinha nas instituições,com
nutrizes. A assistência domiciliar desencorajaria o abandono
do filho. A criação dos filhos da família pobre passou a ser
control.ada por uma assistência medica fornecida pelas prime.:!..
ras sociedades protetoras da infância que surgiram, então, em
Paris e, posteriormente, em Lyon as quais tambem funcionavam
como órgãos de vigilância sobre as crianças das classes popul~
10
res. A mae pobre era irremediavelmente incompetente para cui
dar do seu filho. Desenvolveram-se várias estratégias de "n~
m-i...f..-i..aJt-i..zaçã.o" das camadas populares (promoção do casamento,pr~
paração da mulher para a vida domestica, etc) que visavam, prl
mordialmente, a diminuição dos encargos de assistência. Ate a
habitação popular passou a ser discutida e planejada com o ob
jetivo de se fechar o círculo familiar, controlar a moralidade
e facilitar a vigilância. Controlada por vários meios,qualquer
deslize ocorrido nas famílias pobres seria tido como culpa da
mae.
Donzelot mostra como a centralização da família está pr~
sente nas duas classes mas ressalta o sentido diferente que o
processo teve para cada uma delas: na família burguesa houve
um "Jte..tJta-i..me.n.to .tã..t-i..c.o" dos seus membros cujo objetivo era man
ter os serviçais sob controle. Mais coesa internamente, ela
se torna mais forte tambem no campo social. A mulher dentro da
família se fortalece atraves da aliança com o médico. Na famí
lia pobre, seus membros sofrem um processo de "Jteduçã.o" de uns
aos outros, numa relação de vigilância cujo objetivo principal
era evitar os "pe.Jt-i..gO.6" exteriores (o cabaré, para o marido, a
rua, para os filhos). A coextensividade com o campo social se
perde e seu isolamento facilita a vigilância por parte do Esta
do.
Q u a n t o a s p o s i ç õ e s t á t i c a s da m u 1 h e r b u r g u e s a e da m u 1 h e r
pobre dentro desse jogo da revalorização das tarefas educati
vas, acrescenta que para a primeira se estabelece uma nova con
11
tinuidade entre suas atividades familiares e sociais enquanto
que a segunda passa a velar por uma retração social de seu ma
rido e de seus filhos.
Quanto a criança, Donze1ot conclui: na fami1ia burguesa
ela tem uma ".f..ibelLação plLotegida". "Em tOlLno da c.tu:.ança, a 6~
mZ.f..ia bUlLgue~a tlLaça um c.olLdão ~anit~lLio que de.f..imita ~eu c.am
po de de~envo.f..vimento: no intelLiolL de~~e pelLZmetlLo, o de~envo.f..
vimento de ~eu C.OlLpo e de ~eu e~pZlLito ~elL~ enc.olLajado pOIL to
da~ a~ c.ontlLibuiçõe~ da p~ic.opedagogia po~to~ a ~eu ~elLviço e
c.ontlLo.f..ado pOIL uma vigi.f..ânc.ia di~c.lLeta. No outlLo c.a~o,
mai~ ju~to de6iniIL o mode.f..o pedagógic.o c.omo o de '.f..ibelLdade vi
giada'. O que c.on~titui plLob.f..ema, no que .f..he diz lLe~peito, nao
ê tanto o pe~o da~ plLe~~õe~ c.aduc.a~, ma~ ~im o exc.e~~o de .f..i
belLdade, o abandono na~ lLua~ e a~ têc.nic.a~ in~taulLada~ c.on~i~
tem em .f..imitalL e~~a .f..ibelLdade, em dilLigilL a c.lLiança palLa e~pa
ço~ de maiOIL vigi.f..ânc.ia, a e~c.o.f..a ou a habitação 6ami.f..ialL".6
Dos livros de Aries e Donze1ot, acima citados, depreend~
mos o processo pelo qual a criança ganhou um lugar na socieda
de e foi colocada em evidência; tornou-se, enfim, individuo,
uma produção do poder e do saber, alvo de forças que dela se
apropriaram para conhecê-la, controlá-la e transformar sua p~
tência em força útil. As novas práticas que tiveram a criança
como objeto (os cuidados com o seu corpo, a proteção, a vigl
1ância, a escola, a disciplina) traziam consigo um novo tipo de
relações sociais, caracteristico de uma sociedade que funciona
6 DONZELOT, Jacques. A Po.e..Zc.ia ~ FamZ.e....t~. Rio de Janeiro, Graa1, 1980, p.48.
1 2
com mecanismos que organi zam a vi da dos homens, individualizam-nos
para melhor controlá-los e obter deles o melhor proveito possi
vel através de um sistema de aperfeiçoamento contínuo de suas
capacidades.
No Brasil do século XIX, essas práticas tiveram lugar e
produziram, também aqui, essa criança que hoje conhecemos, obe
diente e objeto de investimento, futuro, enfim, da nação. Tam
bém aqui, alianças foram feitas, dentro e fora da família para
que tudo fosse produzido com eficiência máxima. A criança, e~
fim, nasceu. E nasceu muito bem; quem fez o parto foi o médi
c o ...
A criança cresceu e muita coisa cresceu junto: a produção
de saber, a escola, as especializações, as instituições, a in
dústria, etc, etc, etc.
E a criança sustenta tudo isso; é ela que mantém funcio
nando. Parece, entretanto, que alguma coisa se perdeu ... , a
singularidade, talvez. A criança que nasceu e na verdade um
modelo (burguês) a partir do qual se pensa a saúde e a doença,
a normalidade e o desvio.
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CAPrTULO 7
A FAMrLIA PATRIARCAL E O
JOGO VAS VIFERENÇAS
Quando chegaram os portugueses ao Brasil, no século XVI,
aqui viviam os índios. A criança indígena vivia e crescia nu
ma comunidade de princípios e costumes bem definidos. Era edu
cada através de rituais da tribo, que desde cedo impunham as
regras que regulariam seu comportamento. O "JuJtupaJt-i" , figura
demoníaca de um bicho representada por um dançarino com masca
ras, cabelo de gente, pele e penas de bicho, era figura central
desses rituais pedagõgicos indígenas que através do medo pass!
vam seus ensinamentos e preparavam a criança para enfrentar a
vida. Seu corpo era desfigurado para espantar os espíritos
maus: pintava-se-lhe a pele, perfuravam-se-lhe os lábios,septo
e orelhas, com fusos ou penas, penduravam-se dentes de animais
no seu pescoço. Com muito medo e muita dor a criança selvagem
crescia trazendo no corpo as lições de seus ancestrais e a for
ça necessária para enfrentar os perigos e a beleza da vida. Não
se penalizavam os índios com o "c.oJtpo óJtág-il" da criança isso
é "c.o-i.6a nO.6.6a". Também os ri tuais de medo e de dor nao tinham
nada de ".6ad-i.6mo". Traduziam, sim, uma pedagogia de alto sign.!.
ficado cultural que incluía a criança em seu grupo e fazia-a
identificar-se com ele. A criança sofria, não castigos corp~
rais corretivos, impostos por pais disciplinadores mas, o fla
I 1 1
14
gelo que lhe ensinava o uso e dominio de suas forças, que lhe
ensinava a ser valente. Brincava livre, solta, mas, para tor
nar-se cona de sua vida tinha que sofrer. Na puberdade pass~
va por provas tão dificeis e rudes que em alguns casos não su
portava e morria. Desses rituais, entretanto,salam o homem ou
a mulher livres, donos de suas forças e identificadas com o seu
grupo, porque para o homem primitivo não há como educar sem dor:
n.i..6 :t o
urna an:t.i.ga ve4dade 'humana, dema.6.i.ado humana', i qual :talvez
.6ub.6C4eve.6.6em 0.6 macaco.6, p04que de na:to, d.i.z-.6e que com a ~n
vençio de ce4:ta.6 b.i.za44a.6 c4ueldade.6 anunc.i.avam j~ o homem e
p4eced.i.am a .6ua v.i.nda. Sem c4ueldade nio hi gozo, e.i..6 o que
no.6 en.6.i.na a ma.i..6 an:t.i.ga e 4emo:ta h.i..6:tô4.i.a do homem; o ca.6:t.i.go
é urna ne.6:ta."l A razao, o dominio das paixões, ":toda e.6:ta ma
qu.i.naçio .i.nne4nal que.6e chama 4enlexão",2 diz Nietzsche, ins
talaram-se no homem primitivo ã custa de muito sangue e muita
dor. A criança indlgena, enfim, aprendia o que tinha que apre~
der para viver e para .6e4 com os velhos da tribo. Não era com
seus pais. Tampouco era com castigos corretivos, com punições
pelo que fizesse de errado. Os primeiros cronistas, lembra Gil
berto Freyre em "Ca.6a G4ande e Senzala", 3 ficaram impression~
dos com a liberdade de ação da criança entre os índios. E pr!
ciso aprendermos com Nietzsche a pensar e compreender essas col
sas para que possamos também entender a 4azão do homem moderno
1 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A Genealogia da Moral. são Paulo, Moraes, 1985. p.36. 2 Id. ibid., p.32. 3 FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro, Jose Olimpio Edi tora, 1987. p.137.
I I
1 5
e os valores de uma psicopedagogia que pretende hoje ter a ver
dade sobre a criança que deve, enfim, ser protegida, vigiada,
corrigida, controlada e ao mesmo tempo, estimulada, compreendi
da, tolerada, conhecida, etc, etc, coisas, enfim, que, apare~
temente incoerentes, se completam e se reforçam num processo
que antes de mais nada 6~a9iliza a criança para depois fazi-la
produtiva para uma sociedade capitalista.
Quando os jesuítas chegaram ao Brasil a criança indígena
foi seu principal instrumento na transmissão dos valores do ca
tolicismo. O "Ju~upa~i" foi transformado em figura cômica. A
ridicularização do complexo indígena serviu ã implantação da
moral cristã. A criança foi idealizada, transformada em anjo
catõlico - dessa forma sua morte podia ser motivo de alegria.
Esse sentimento em relação a criança pequena generalizou-se no
Brasil, nos primeiros tempos da colonização. Nasceu da cate
quese, do trabalho dos jesuítas junto aos índios,especialmente
junto ã criança que seria mais tarde o mais forte aliado notr~
balho de conversão de seus pais, os velhos da tribo. Ensinada
e alfabetizada pelos jesuitas, passava a encantar seus pais,
atraindo-os dessa forma para uma nova vida orientada pela mo
r a 1 c r i s t ã . Seu p a t r i m ô n i o c u 1 tu r a 1 i a se n d o d e i x a d o p a r a t rã s
e se tornava ridiculo quando a distância aumentava. A criança
selvagem, livre, passou a ter com os jesuítas um lugar e uma
função: devia educar seus pais e converti-los ã fé catõlica. In
vestida de poder deixaria de ser livre. De aprendiz a mestre,
de pequena a grande, do presente ao futuro, da liberdade ã dis
cipl ina, da vida ã moral: tais foram as passagens forçadas a
f
1 6
criança indígena pelos jesuítas, nossos grandes educadores dos
primeiros tempos da colonização. Não tardou tamb~m a passar
da mata aos col~gios onde, já a partir do s~culo XVI, mistu
rou-se aos filhos de portugueses para, na mais perfeita "demo
c.lLac.,[a", i senta de preconcei tos contra raça, receber educação.
Na criança indígena brasileira plantou-se a semente da
quase destruição de sua raça. Mais tarde, em consequência da
implosão da máquina jesuítica, a comunidade indígena do Brasil
sofreu intenso processo de desagregação dada a falta de condi
ções para enfrentar a vida: separados de seu modo de vida ori
ginal e sem as mínimas condições materiais de sobrevivência dis
punham então os índios de uma bagagem de valores e escrúpulos
que não lhes serviam para nada, a nao ser para eliminar o po~
co de vida que lhes restara.
Os índios brasileiros foram utilizados tamb~m para acel!
rar o povoamento da colônia. Houve a mais completa mistura de
raças que tinha na mul her indígena o ",[nglLed,[ente" fundamental.
Povoado o pais, contudo, o que se constituiu foi uma sociedade
de cores e raças bem definidas e de modos de vida bem diferen
tes, embora costumes de uns e de outros se tenham trocado e in
terpenetrado.
Já a partir do seculo XVI foram trazidos para o B ra s i 1
escravos africanos. O filho de escravos era nada mais que o
I
I
I 1
l J
1 7
"maleque" ou, no sentido da mentalidade da ~poca, a "c~ia" de
que se necessitava em grande número para suprir a mão-de-obra
escrava. A menina negra, al~m de escrava, servia, já a partir
rie doze, treze anos, à iniciação sexual dos meninos das Casas-
Grandes, filhos do senhor de escravos, ou ao tratamento de ho
mens sifilíticos que acreditavam na cura dessa doença pelo in
tercurso sexual com meninas púberes. O menino filho de escra
vos era, na expressão de Gilberto Freyre,4 o "leva-pancada.6" do
menino branco. Era como seu brinquedo e, na verdade, usado co
mo tal. Muitos, meninos ou meninas, subiam às Casas-Grandes e
aí eram criados como se fossem da família (e muitas vezes o
eram: o senhor com a escrava ... ). Correndo, brincando ou sen
tados a mesa de refeições com os demais, quadriculavam de pr!
to e branco as Casas-Grandes. Recebiam o mesmo tratamento, os
mesmos dengos e mimos que eram dados aos filhos do senhor, com
partilhando da casa, dos programas, dos passeios, etc. Esse
costume estendeu-se até o século XIX. Em 27 de setembro de 1837,
o Padre Lopes Gama escreveu no seu jornal "O Ca~apucei~o" algo
sobre a má educação dos filhos e das "c~ia.6" dentro de casa.
Tomados para criar por solteironas ou senhoras já velhas que
os mimavam em excesso e faziam-lhes todas as vontades,esses fi
lhos de escravos, nascidos nas Casas-Grandes, cresciam sem no
ção de limites, quebrando tudo dentro de casa, dormindo sobre
as pernas da "yayã" gorda antes de i r para a cama, já com sete,
oito anos de idade. Padre Gama escreveu: "Eu conheço huma ~e.6
4 FREYRE, Gilberto. Op. cit., p.336.
18
peitavel Sybilla que c~eando huma neg~inha, que hoje te~~ 04
4eu4 14 al1n04, e4ta não vai de noite pa~a a cama 4em que p~imei
~amente 4e deite no ~egaç.o da 4ua "yãyá go~da", que e4ta lhe vá
dando t~inco na ca~apinha (que he huma g~axa de pomada) e 6~
zendo mecha4 do ve4tido da pateta, e chupando-a4 até ado~me
ce~~ Aqui Ira po~ca~ia, má c~iaç.ão, e de.6a60~0."
Muitos autores se referem ã suavidade da escravidão no
Brasil, especialmente quando comparada ã de outros países do
norte. John Luccock pôde testemunhar escravos recusarem vol
tar para a .n:frica ou receberem alforria no Brasil. "Vua4 meni
na4, e4pecialmente, além di440 ~eCU4a~am i~ pa~a a Inglate~~a,
ob4e~vartdo: "Vi44e~am-n04 que a Inglate~~a é muito 6~ia e n04
não g04ta~em04 de l~; e o que 6a~em04 nÓ4 da libe~dade aqui?
Temo4 tudo aquilo que podem04 de4eja~, o 4enho~ n04 60~nece ~ou
pa4 e comida e, 4e adoecem04, o 4enho~ n04 d~ ~emédi04 e n04
cu~a; ma4 4e 6ica~m04 libe~ta4, ninguém cuida~á de nÓ4.,,5
Charles Expilly que esteve no Brasil no início da segu~
da metade do seculo passado, narra na dedicatória do seu livro
"Mulhe~e4 e CO.6tume.6 do B~a.6il", o discurso de despedida da
mãe-preta de sua filha, nascida no Brasil. Antes de separar-se
da família que naquele momento voltava para a França, murmurou
ao ouvido da criança, pedindo entre lãquimas, que nunca esqu~
cesse daquela que todos os dias a embalara nos braços e a fize
5 LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes Meridionais do Brasil, tomadas durante uma estada de dez anos nesse pais, de 1808 a 1818. Sao Paulo, Biblioteca Ristorica Brasileira, X, Llvrarla Martlns, 1942. p.392.
1 9
ra adormecer no seio. E se algum dia fosse rica que a compra~
se para somente a ela pertencer.
Não se pode, contudo, imaginar que ser escravo no Brasil
era sempre suavidade. Os horrores e crueldades da nossa escra
vatura impressionaram o mesmo Expilly. Não era sempre que o
negrinho, filho do senhor com a escrava vivia na Casa-Grande,
feliz a correr e brincar com os irmãos brancos. Muitos eram vendi
dos como "c.abe.ç.a.6 inúte.i.6 ou noc.iva.6 do Jte.banho humano,,;6 ou
tros, chicoteados pelo feitor, como os demais escravos; outros
eram simplesmente desprezados, mesmo livres. Expillyescreveu:
"A le.i Jte.c.onhe.c.e. a.6 aptidõe..6 do home.m de. c.OJt paJta pJte.e.nc.he.Jt 0.6
e.mpJte.go.6 do gove.Jtno. No.6 mai.6 mai.6 alto.6 c.aJtgo.6 e.nc.ontJtam-.6e.mu
lato.6, ê ve.Jtdade.. Ma.6 a le.i e. o pJte.c.onc.e.ito .6ão doi.6 pode.Jte..6
be.m di.6tinto.6, que. ê pJte.c.i.6o não c.on6undiJt.,,7 O preconceito no
nosso Brasil escravocrata mantinha de pé uma barreira que a
própria constituição, no século XIX, procurava eliminar. O mes
tiço rico, general, deputado, comendador era reconhecido por
todos mais não desejado como genro nunca! Irmãos de cor dife
rente tinham os mesmos direitos perante a lei mas, entre si,
ma n t i n h a m r e 1 a ç õ e s de s u p e r i o r p a r a i n f e r i o r . A 1 é m d i s s o ornes
tiço tinha que suportar sentimentos de aversão da esposa legi
tima do seu pai que não tolerava o fato de seus filhos legíti
mos terem que dividir com "iJtmào.6 tOJttO.6" a herança do patria.!:.
ca. Quando a cri ança era fruto da rel ação de uma mul her branca
6 EXPILLY, Charles. Mulheres e Costumes do Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1935.
7 I d. i b i d ., p. 279 .
20
com um escravo era pior ainda. Prova de um escândalo, seu des
tino era a morte ou a escravidão. Expilly conta que, num des
ses casos, a criança foi jogada num chiqueiro pelo marido (trai
do) e a mae morreu três dias depois entre os escravos. Em ou
t r o c a s o, a m u 1 h e r deu ã 1 u zum f i 1 h o m o r t o (d e ta n tas urra que
levou do pai) e o escravo morreu lentamente sob o chicote. Al
gumas mulheres (de famílias mais "c.ompJte.e.n.6..tva.6") guardavam sua
reputação após gerar uma criança mulata: o filho era entregue
ã escravidão, a maternidade era atribuiàa a uma negra e a famí
lia livrava-se do escândalo e mantinha a filha honrada. 8
A escravidão no Brasil, enfim, nao deve ser pensada sem
que se considerem seus diferentes efeitos. A criança filha de
escravos pOdia ser feliz e mimada, criada pela "ljãljã gotuJ.a" co
mo ter triste destino quando fruto das relações entre brancos
e negros ou mesmo quando nascida nas senzalas onde muitas vezes
era largada pela mãe, no berço, esteira ou rede quando tinha
que amamentar o filho da sinhã. Algumas crianças largadas nas
senzalas, quando ainda muito novas, terminavam por ter a forma
ção craneana deformada por permanecerem muito tempo na mesma
posição. Gilberto Freyre cita um fato, contado por Brandão J~
nior, a respeito de um fazendeiro no Maranhão "que. obJt..tgava a.6
ma, no 'te.jupabo', me.tido.6 at~ o me.io do cOJtpo e.m bUJtaco.6 paJta
e..6.6e 6im cavado.6 na te.JtJta",9 de modo que, imobilizados não p~
dessem engatinhar para locais perigosos.
8 Ibid., p.438-9. 9 FREYRE, Gilberto. Op. cit., p.359.
21
A reaçao da criança negra ou mestiça contra a Casa-Gran
de ou contra os sobrados das cidades viria a aparecer com fre
quência no decorrer do século XIX, encarnada na figura do mula
to. Menino pobre, nascido em cortiço ou mucambo, filho de ex-
escravos ou imigrantes, desde cedo "ganhava a Jtua" onde apre!!
dia a viver e acumular experiências e onde também expressava a
sua raiva pela condição de pobreza em que vivia, praticando lia
tJtave~~uJta, o Jtoubo de 6Jtuta~ do~ ~Zt~o~ do~ ioJtde~, o ówúo de
doce e de boio do~ tabuie~Jto~ da~ 'ba~ana~' e da~ qu~tanda~do~
poJttugue~e~, a~ pedJtada~ na~ v~dJtaça~ do~ ~obJtado~, a caJt~cat~
Jta de muJto e de paJtede onde eJta, mu~ta~ veze~, o muirnnho, mw
a6o~to que o pJteto, quem Jt~~cava a caJtvão ou me~mo a p~che, ~~
6adeza~, de~enho~ de 5Jtgio~ ~exua~~, caiunga~ ob~ceno~, pai~
vJt5e~II,10 quando nao deixava junto aos muros e umbrais dos por
tões alguns "dep5~~to~". O moleque escravo, nascido e criado
em engenho ou fazendas, envolvido pela relação senhor X escra
vo, em que o convívio próximo e mais íntimo acontecia, não de
senvo1via esse tipo de comportamento, restrito que estava aos
limites da fazenda e do engenho e sem a vivacidade e experiê!!
cia que o mulatinho de rua acumulava.
Nas Casas-Grandes ou sobrados urbanos as crianças eram
criadas praticamente pela negra africana, a mãe-preta, que fez
penetrarem, nas famílias brasileiras de boas condições sócio
econômicas, muitos dos costumes de sua origem e de sua raça.
O corpo da criança havia de ser protegido não só de doenças mas
10 Ibid., p.607.
\
22
tamb~m de "mau-olhado" para o que se fazia um sem numero de fei
tiços, até hoje não totalmente descartados. A sua educação ti
nha no medo um dos mais importantes recursos. Não faltavam pe.!:.
sonagens terríveis e monstruosos para lembrar ã criança os seus
limites. Surgiam de toda parte - das praias (o homem-marinho), do
mato (o saci-pererê e outros), dos riachos (a mãe-d'água), da
b e i r a dos r i os (o s a p o - c u r u r u ) . 1 1 P o d i a s e r sim p 1 e s me n te" o b:{
cho", legado indígena, derivado, como vimos, do "JuJtupaJt-t". E~
se recurso não parece ter sido eliminado. Continua fazendo pa.!:.
te de uma "pedagog-t~ ma"-g-tnal" muito forte. "Olha que o b-tcho
;te pega" é uma frase que escutamos ainda hoje com muita frequê!!.
cia e que não é privilégio de uma determinada classe social.
Pedagogos, psicõlogos e pais "ilu~;tJtado4" certamente condenam
esse costume tão prejudicial ao bem-estar psicolõgico da crian
ç a ...
A criança branca era amamentada pela mãe-preta (com ra
ríssimas exceções a mãe o fazia) que também cuidava do seu cor
po, sua higiene, ensinava-lhe a falar, contava-lhe histõrias e
ensinava-lhe as coisas da vida (era severamente castigada qua!!.
do ensinava o que não devia). No século XIX, médicos,parlame!!.
tares e educadores trataram de condenar essa intimidade, com
vistas a eleger um novo tipo de relação como a que veremos adian
te neste trabalho.
A criança branca roubava muitas vezes dos negrinhos da
senzala a ternura, o leite e os cuidados maternos (vimos acima)
11 Ibid., p.328.
I
23
pois ocupavam a escrava o dia inteiro. A amamentação pela es
crava foi um costume trazido de Portugal. Para alguns autores,
as mães brancas brasileiras não amamentavam seus filhos por
questões da moda; para outros, por impossibilidade fisica uma
vez que se casavam muito jovens, algumas sendo mães aos doze
anos de idade. Para alguns higienistas portugueses da epoca a
questão era medica: o leite da mulher negra era mais forte e
mais saudável. O fato era que a criança branca ".6ugava" a mãe-
preta por inteiro.
Os cuidados com o corpo da criança misturavam crendices
e recomendações medicas. Nas senzalas, a negra africana tinha
o costume sagrado de apertar o ventre e amassar o nariz e a ca
beça da criança recém-nascida, coisa que havia de ser vigiada
rigorosamente para que nao fosse praticada nos filhos das si
nhás, nem com os próprios, cuja morte significava perda de cria
e de capital para o senhor de escravos.1 2
A mortal idade infantil era assustadora. As receitas medi
cas da epoca, juntamente com os hábitos e crendices dos negros
e inaios davam sua grande contribuição aos altos indices (de
quase cinquenta por cento): "c.hã.6 de peJtc.evejo.6 e de exc.Jtement:o
de Jtato paJta de.6aJtJtanjo.6 ~nte.6t~na~.6; moela de ema paJta d~.6.6o
lução de c.ãlc.ulo.6 biliaJte.6; uJtina de homem ou de bUJtJto, c.abelo.6
queimado.6, pÔ.6 de e.6teJtc.o de c.ão, pele, 0.6.60.6 e c.aJtne de .6apo,
lagaJtt~ x.a, c.aJtang uej 0.6, etc.". 1 3
12 Ibid., p.362. 13 I b i d ., p. 364.
I I ! I i
24
Muitas crianças morriam, escreveu John Luccock, "pOI!. c.a~
~a demalle.il!.a~.impl!.ópl!..ia~detl!.atal!..denegl.igênc..ia. ou .indul
gênc..ia dano~a, 61!.equentemente m.i~tul!.ada~ uma c.om a outl!.a. Veve
-~e levaI!. tamb~m em c.onta a .idade pl!.ematul!.a em que a~ pe~~oa~
nova~ de.ixam j~ de ~el!. c.on~.idel!.ada~ c.omo c.1!..iança~. E, ~ d~
lol!.o~o ac.l!.e~c.ent~-lo, u~a-~e do~ me.io~ da ma.i~ ba.ixa e~p~c..ie a
6.im de .imped.il!. o na~c.imento de c.1!..iança~, ~endo que o .in6ant.ic.I
14 d.io não ~ de 6ol!.ma alguma I!.al!.o." A morte da criança pequena,
contudo, não tinha, no Brasil colonial, o sentido que para nós
tem hoje. Derivado de uma idealização da criança, identifica
da com o anjo católico (fórmula que, como vimos, foi inventada
pelos jesuitas) havia-se generalizado o sentimento de que era
uma felicidade a morte de uma criança pequena. John Luccock re
latou o seguinte fato: num funeral de uma criança ouviu-se a
mae exclamar: "O como e~tou 6el.iz! O c.omo e~tou 6el.iz, po.i~
que mOl!.l!.eu o últ.imo do~ meu~ 6.ilho~! Que 6el.iz que e~tou~ Qu.a.~
do eu mOl!.l!.el!. e c.hegal!. d.iante do~ pOl!.tõe~ do céu, nada me .imp~
d.il!.~ de entl!.al!., po.i~ que al.i e~tal!.ão c..inc.o c.1!..ianc.inha~ a me I!.o
deal!. e a puxal!.-me pela ~a.ia e exc.lamando: entl!.a mamae, entl!.a!
O que 6el.iz que ~ou!,,15 Como se tratava de uma concepçao gen!
ralizada, a exclamação dessa mãe não podia, segundo Luccock,
ser intepretada como um desequilibrio mental passageiro. Horr~
rizado, o viajante inglês acrescentou: "não po~~o tel!. uma opi:
n.ião boa ~obl!.e o 6utul!.o de um e~tado onde a~~.im ~e
14 LUCCOCK, John. Op. cit., p.29. 15 Ibid., p.80. 16 Ibid.
Na Inglaterra
I I
,
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1
25
do século XVIII em que nasceu, já nao pôde Luccock observar coi
sas parecidas. Foi preciso que Phi1ipe Aries viesse nos mos
trar que esses "ma.t.6 bOJtte..6 laç.o.6 do.6 .6e.Jte..6 de..6te. mundo" têm
também a sua história, o seu nascimento, não sendo portanto eter
nos, como pensava Luccock, natural de um pais em que, na sua
época, esses laços já existiam com a força e o sentido que, no
Brasil, só viriam a possuir mais tarde, quando não mais pod~
ria testemunhar.
A higiene infantil, no Brasil colonial, era marcada por
grande influência dos costumes indígenas e africanos. rndios e
escravos, bem adaptados ao clima, tiveram muito o que ensinar
aos portugueses. Destes, nos primeiros tempos da colonização,
muitos levavam os filhos ã morte, cobrindo-os inconvenientemen
te de agasalhos ou privando-ps de banho e ar livre. A pa rt i r
da segunda metade do século XVI os índices de mortalidade in
fanti1 diminuíram mas não deixaram de ser altos. A partir do
século XVIII começaram a preocupar mas so no final do século
XIX a mortalidade infantil foi objeto de estudo medico rigor~
so, como veremos adiante. Medicos e higienistas foram os pr1
meiros a se preocupar com a morte prematura das crianças poiS
os pais não se alarmavam uma vez que, como vimos, era uma fe1i
cidade a morte das crianças. Somente quando mãe e filho se li
garam para viver uma relação orientada por medicos e higieni~
tas do século passado, relação em que a criança ficou em evi
dência para ser conhecida, protegida e controlada, e preparada
p a r a um f u t u r o p r o m i s s o r e p r o d u t i vo, e que a se p a r a ç ã o po r mo..!:
te ou outras causas, passou a doer tanto quanto nós sabemos (e
sentimos).
1 I 1 1 I
I
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26
Sobre a vida das crianças dentro de casa, Luccock obser
vou, no início do século XIX: ... "tanto men.ino.6 C.01lJ0 men.ina.6
v.ivem a tkançak nu.6 pela c.a.6a, at~ que at.injam c.ekc.a do.6 c..inc.o
ano.6, e dUkante tk~.6 a quatko a.inda, ap5.6 e.6.6a .idade, nada ma.i.6
U.6am do que a koupa de ba.ixo. t vekdade que ne.6.6e e.6tado .60
a.6 veem a.6 pe.6.6oa.6 de c.a.6a ou 0.6 am.igo.6 Znt.imo.6; quando, em ka
toda a eleg~nc..ia kZg.ida de uma epoc.a que ji pa.6.6ou; n~o hi d.i
6ekença, .6alvo na.6 d.imen.65e.6, entke 0.6 tkaje.6 de um kapaz que
6az POUc.o adqu.ik.iu o gakbo v.ik.il e 0.6 de .6eu pa.i, entke 0.6 de
. d . t - ,,17 uma men~na e 0.6 e .6ua maje.6 O.6a mae. E extremamente inte
ressante observar mais uma vez a semelhança dos costumes brasi
1 e i r os d e e n tão c o mos c o s t um e seu r o p e u s r e 1 a t i vos a o t ra to da s
crianças antes da era clássica, como nos mostrou Philipe Aries.
Por isso, o espanto do inglês.
Ate a primeira metade do século passado, as crianças bra
sileiras de boas condições econômicas, em geral, não frequent~
vam escolas, ou por falta destas ou pela idéia de que não eram
apropriaàas ã criança altiva e delicada ... Sua e d u·c a ç ã o e r a
dada dentro de casa, por sua mãe ignorante e pelos escravos,
restringindo-se basicamente aos hábitos da cerimônia e do for
malismo que escondiam, por sua vez, toda espécie de vilanias que
praticava. Muitas crianças foram alunas de professores port~
gueses que vieram para o Brasil e aqui trabalharam como caixei
ros, tomando os filhos de seus fregueses como alunos. Quando,
17 Ibid., p.79.
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I ! I i
I I I
I I I t I I I
27
na segunda metade do século, as crianças foram mandadas a esco
la em maior número, Fletcher, viajante norte-americano, escre
veu: "A mãe. bILa..6-i.le.-i.ILa. qua..6-i. -i.nva.IL-i.a.ve.lme.nte. e.ntILe.ga. .6e.u 6-i.lho
a. uma. pILe.ta. pa.ILa. .6e.IL eIL-i.a.do. A.6.6-i.m que. a..6 eIL-i.a.nça..6.6e. tOILna.m
mu-i.to -i.ne5moda..6 a.o eon60ILto da. .6e.nholLa., .6ão de..6pa.eha.da..6 pa.ILa.
a. e..6eola.; e. eo-i.ta.do do poblLe. pIL06e..6.6oIL que. te.m de. -i.mpOIL-.6e. a.
e..6.6e. e..6p~e-i.me. -i.ILILe.qu-i.e.to do g~ne.ILo huma.no! Aeo.6tuma.do a. dom-i.
pa.-i..6, me.te.-.6e. na. ea.be.ça. tudo pode.1L e. de.ve.IL 6a.ze.IL pa.ILa. 6ILU.6tILa.IL
1 1 . + d" O' - o ,,18 Ch 1 E . 11 0.6 e..6 DOILÇO.6 ue.~~O.6 pa.ILa. ~.6e~p~~na.-~o. ar es Xpl y es
creveu sobre o caso de uma menina de gênio insuportável, mima
da pela mãe viuva e principalmente pelo avô. Era filha única
e estava acostumada a ter suas vontades satisfeitas de pronto.
Um dia quis um coco e exigiu que seu avô subisse no coqueiro
para tirá-lo. -Como o avo negou, teve um acesso de cól era,
seguido de convulsões, até que ficou em estado de p ros t r~
ção completa. O coração e o pulso pararam. O médico deu-a
por morta. O funeral foi feito na ausência da mãe que desmai~
ra e não havia admitido a morte da filha. A noite, acompanh~
da da mucama e escondida de todos, foi ã Igreja onde estava o
corpo da filha; tirou-o do ataúde e manteve-o nos braços. O avô
que em dado momento percebera a fuga da filha,surpreendeu-a na
Igreja agarrada ã criança. O escravo que o acompanhava tentou
arrebatar o corpo da menina; a mucama enfiou-lhe as unhas no
rosto. O sangue escorreu pela face do escravo que de repente
largou a criança, recuou e caiu de joelhos - a menina abrira os
18 KIDDER, D.P. & FLETCHER, J.C. O BILa..6-i.l e. 0.6 B!La..6-i.le.-i.ILO.6. são Paulo, Com panhia Editora Nacional, 1941, p.180-l.
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28
olhos! Havia tido um ataque de catalepsia. A mãe esclamava:
"Eu Linha c.e.Jt.te.za de. que. Nhanhã não e..6.tava mOJt.ta! E me.6mo que
o e..6.tive.6.6e a San.ta ViJtgem ma Jte.6.ti.tuiJtia.,,19 Como terá segui
do o curso de vida dessa criança? Se era mimada antes, como
terão respondido, após esse drama, aos seus novos caprichos?
A professora alemã Ina Von Binzer que esteve no Brasil
nos anos de 1881 a 1883, trabalhou em são Paulo, em 1882, na
casa de uma fami1ia brasileira cujos meninos tinham a fama de
serem os mais mal educados da cidade. Escreveu a professora um
dia: "Se um de.f..e.6 dá. uma Jte.6po.6.ta eJtJtada o ou.tJto in.tJtome.te-.6e
c.oJtJtigindo-o c.om vivac.idade, ao que o pJtimeiJto Jteage mai.6 Jtá.P:5::
do que um Jtaio, a go.f..pe.6 de Jtigua; e a.6.6im, inic.ia-.6e uma .6e
Jtia de.6avença e não uma .6imp.f..e.6 Jtu.6ga que, paJta mim, .6eJtia 6ª c.i.f.. de apaziguaJt, .6e nao .6e man.tive.6.6e .6empJte a me.6ma
dia en.tJte 0.6 iJtmão.6. Ou.tJto dia c.Jtiei c.oJtagem e pU.6 .6imp.f..e.6men
.te o mai.6 moço 60Jta da .6ala, o que me paJtec.e a.f..iá..6 o meio mai.6
pJtá..tic.o. FaJtei o pO.6.6Zvel paJta c.on.tinuaJt aqui; vou ~6oJtçaJt-me
paJta me.f..hoJtaJt e.6.ta.6 pobJte.6 c.Jtiança.6 .ta.f.. ma.f.. educ.ada.6; não 6ic.~
Observou a professora em
outra ocasião que os pais desses meninos não se incomodavam em
absoluto com o seu comportamento, nem mesmo quando almoçavam
em cima, cada um, do seu velocípede, dando voltas ã mesa,entre
um bocado e outro. Um dia, porem, o pai mandou-os para o co1~
gio, para serem educados pelos padres. Houve um motivo: na fes
19 EXPILLY, Char1es. Op. cit., p.54-7. 20 BINZER, Ina Von. Alegrias e Tristezas de uma Educadora Alemã no Brasil. São Paulo, Editora Anhembl Ltda., 1956. p.79.
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ta de são João os dois "anjinho.6" atiraram fogos contra as p!
tas de burros que puxavam bondes, provocando a queda de um de
les que por jsso teve a perna quebrada. O pai teve que pagar
o preço do burro e os meninos foram "de.6pac.hado.6" para o cole
9 i o • I Numa fazenda na Bahia, Charles Expilly teve ocasião de
conhecer dois meninos filhos de um fazendeiro. Viu-os em tra
jes costumeiros (como preparados para um baile na opinião do
autor), de casacas negras e gravatas brancas. O mais moço de
dez anos de idade, cumprimentou Expilly com a maior seriedade,
com ar grave e importante. O francês, já acostumado com o no
vo tipo de comportamento infantil que teve lugar na Europa a
partir do seculo XVII, diante de tanta formalidade, escreveu:
"Como uma blu.6a ou um .6imple.6 c.a.6ac.o te~ia .6ido p~e6e~Zvel pa
~a aquele menino~ Ma.6 eu não o igno~ava: no B~a.6il a c.~iança
é de.6pida da g~aça natu~al da idade, c.ujO.6 enc.anto.6 lhe .6ão ~e
c.u.6ado.6. Ela não c.onhec.e a.6 emoçoe.6 do pião, nem o exe~c.Zc.io
.6aluta~ da.6 ba~na.6. Fic.ania 06endida .6e .6e lhe de.6.6e um pol~
c.hinelo ou um tambon. Em luga~ de bninc.a~ de .6oldado c.om 0.6
.6eu.6 c.ama~ada.6, de de.6envolve~ a .6ua 60~ça em pleno c.ampo, de
negne.6.6a~ ã c.a.6a, muita vez, c.om a c.alça ~a.6gada, o nO.6to a~~a
nhado ou inc.hado ma.6 de 6ac.e.6 c.o~ada.6 e 0.6 olho.6 b~ilhànte.6 de
.6aÚde, vive embuçada numa noupa pneta 6eita ã última moda, en
.6ina-.6e-lhe a c.o~teja~ .6egundo 0.6 ~igono.6o.6 pninc..zpio.6." E mais
adiante: "Vive-.6e em pne.6ença de pequeno.6 man.cquin.6
mente en6atiotado.6 (c.omo 0.6 que .6e enc.ontnam na.6 vitnine.6 do.6
21 EXPILLY, Charles. Op. cit., p.375.
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alóa~ate~ e no~ ó~9u~~no~ de moda~), boneco~ de mola que u~am
9~avata~ ~~~~a~, que pedem, com uma voz e~tudada, notZc~a~ da
no~~a ~aúde, que ~e mat1t~m adm~~avelmente l1a~ ~ua~ cade~~a,~, em
vez de ~alta~ ao~ no~~o~ joelho~, de ama~~ota~ O~ no~~o~ cha
peu~, e de p~ocu~a~ 9ulo~e~ma~ na~ no~~a~ al9~be~~a~.,,22
E s t e e r a o p r o t ó t i p o dom e n i no b r a n c o no B r a s i 1 Co lo n i a 1 .
Expilly escreveu em seguida que só havia criança entre os ne
gros - por não vestirem casacas, por não terem os hábitos e a
formalidade dos brancos? Afinal, eram os negrinhos b ra s i 1 e i
ros semelhantes às crianças livres da Europa? Expilly não ch~
gou a ver a criança branca ficar rosada no Brasil e fazer tudo
aquilo que ele reivindicou como sendo os direitos da criança
ou sua "9~aç.a natuJz.al". Mas i sso aconteceu ma i s ta rde. E a
nossa criança de hoje; e a criança pobre, negra, descendente
distante dos escravos, continua sendo criança mas,aquela à qual
tudo falta, aquela que e carente, que e diferente, que se dis
tancia do modelo e o modelo e o da criança branca, da família
burguesa da nossa sociedade.
o menino branco, nos tempos da escravidão era, a partir
dos cinco anos o "men~no-d~abo,,23, sádico, malvado, (embora e!
tremamente bem educado nas situações de cerimônia, como vimos).
Suas vítimas preferidas eram evidentemente, os animais, as me
ninas e os moleques, filhos dos escravos, seus companheiros de
a Ibid., p.376.
23 FREYRE, Gilberto. Op. cit., p.368.
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brinquedo (ou 6eu b~inquedo). Os seus jogos de maldade imita
vam as crueldades dos senhores com os escravos. Eram admirados
pelos pais, por isso; as vezes até estimulados. Mesmo depois
de abolida a escravidão, a prática desses jogos continuou, re
produzindo ainda durante muito tempo as marcas do sistema es
c ra voc ra ta.
Sua atividade sexual era precoce. Iniciada de forma sa
dica com moleques e animais domésticos, encontrava posterio.,!:.
mente o objeto favorito e prazeiroso: a negra ou a mulata. Es
tas foram, geralmente, responsabilizadas "pela antecipaç~o da
vida e~ôtica e pelo de6b~agamento 6exual do ~apaz bka6ilei~0.
Com a me6ma lógica deve~iam ~e6pon6abiliza~-6e 06 animai6 do
me6tic06; a bananei~a; a melancia; a n~uta do mandaca~u com o
6eu vi6go e a 6ua ad6t~ingência qua6e de ca~ne. Que tod06 nOkam
objet06 em que 6e exe~ceu - e ainda 6e exe~ce - a p~ecocidade
6exual do menino b~a6ilei~o"24, escreveu Gi lberto Freyre em "Ca
sa-Grande e Senzala". Na verdade, os pais estimulavam a forma
ção de um "ga~anh~o". A figura do donzelo não alegrava a ne
nhum senhor de escravos que mais queria o seu filho deflorando
e engravidando as escravas - aumentando-lhe, enfim, o capital.
Cercado de dengos e mimos exagerados durante a infância, o me
nino brasileiro quando não ficava efeminado era garanhão. Re
produzia os bens paternos nas ba rri gas da s escravas e era, por
sua vez, o futuro pa tri arca, pai de um sem numero de filhos, fr~
tos de as vezes até q ua t ro casamentos com donzelas de doze anos
de idade. Era menino até os nove, dez anos. A pa rt i r daí e apos
24 Ibid., p.371.
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tirada a foto de primeira comunhão, era rapaz. Vestia-se e agia,
então, como homem. Cedo aprendia a fazer as quatro operações,
a recitar em francês, a declinar em latim (muitos com apenas
sete anos de idade) mas, ate os dez anos não deixava de ser o
"menino-diabo". Juntamente com os moleques aprendia a ler, es
crever, fazer conta e rezar, em salas, para isso reservadas,
dentro das Casas-Grandes. Ensinava-lhe o capelão ou mestre
particular. Onde não houvesse mestre, meninos brancos e escra
vos cresciam analfabetos. Nos colégios dos jesuítas que, no
início da colonização, era o que se tinha de atividade educati
va no Brasil, os negros não tinham vez. No início do
XIX, os colégios que existiam eram mal instalados, mal
s éc u 10
assea
dos e negligentemente tratados; e os meninos dentro deles ...
"nio ap~e~entavam nenhuma ela~ticidade de e~pl~ito, nenhuma cu
~io~idade ~agaz, nenhuma u~banidade de manei~a~ e pouqul~~imo
a~~eio pe~~oal"25 na opinião de John Luccock que visitou o Co
légio de São Jose, perto da Rua da Ajuda, na primeira metade
do seculo passado. Ainda sobre a visita, Luccock acrescentou:
"Examina~am-no~ com um pa~mo e~t~pido, demon~t~ando, ao que W~
pa~eceu, a in6luência da igno~ância de~põtica ~ob~e a~ 6o~ça~
que ela p~etende cultiva~." Ao ~ai~mo~ dali, e~t~vamo~ todo~
p~onto~ a dize~: "nenhum ~aio de ciência jamai~ penet~ou aqui."
Na segunda metade do século XIX, com a construção das es
tradas de ferro, internatos e externatos particulares multipli
caram-se nas cidades e os meninos do campo tambem frequentava~
-nos. Hospedavam-se com comissários do açucar e do café que,
25 LUCCOCK, John. O °t 49 p. C1 ., p ..
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para muitos, foram o segundo pai. Os internatos, especialme~
te, haveriam de ser alvo dos higienistas da época quando mora
lidade, higiene e sexualidade tornaram-se problema médico, as
sunto para especialista tratar e regular, como veremos
te. Aquela sexualidade solta de outrora, aquela vida
adian
amo ra 1
dos meninos, precoces na atividade sexual, tendo prazer com fru
ta, animal, moleque e mulher, entraria para os livros e have
ria de ser tratada cientificamente, sob a orientação;.hjgiênl
ca.
Nos colégios os meninos aprendiam o que era "~ai~ da li
nha". O professor, verdadeiro senhor de escravos, usava de va
rios recursos para punir os alunos: punha o menino de braços
abertos, ou humilhava colocando chapéu de palhaço na cabeça de
quem desse risada, ou ainda ordenava a um coitado que ficasse
de joelhos sobre grãos de milho. Batia com a palmatória ou e~
petava a barriga da perna do menino com uma vara de marmelo que
tinha, para esse fim, um espinho enfiado na ponta. Beliscava,
puxava as orelhas, dava bordoadas nos dedos, especialmente du
rante os exercícios de cal igrafia que Gilberto Freyre assim de~
creveu: "O me.nino c.om a c.abe.ç.a pa~a o lado, a ponta da l1.ngua
de. 6o~a, numa atitude. de quem ~e. e.~6o~ç.a pa~a c.he.ga~ ã pe.~6e.i
ç.ao; o me~t~e de lado, atento ã p~imei~a let~a g5tic.a que ~a1.~
~e. t~onc.ha."26
Em casa era a mesma coisa. Quando na fase de "me.nino-
diabo", entre os cinco e dez anos, o menino só apanhava menos
26 FREYRE, Gilberto. Op. cit., p.419.
34
-que o escravo. "EJ!.a c.a.6.:tigado pelo pai, pela mae, pelo avo, p!
la avó, pelo padJ!.inho, pela madJ!.inha, pelo .:tio padJ!.e, pela .:tia
.601.:teiJ!.ona, pelo padJ!.e-me.6.:tJ!.e, pelo me.6.:tJ!.e-J!.égio, pelo pJ!.o6e!
d -. ,,27 F .6OJ!. e gJ!.ama.:t~c.a ,escreveu reyre. Nesta fase, símbolo de
tudo o que nao prestava, o menino era castigado com violência
e crueldade, e os mestres nos colégios tinham total permissão
para "óazeJ!. .6ua paJ!..:te" ... Os jesuítas, desde os primeiros tem
pos da colonização, tentaram apoderar-se, assim como fizeram
com as crianças indígenas, do menino branco das Casas-Grandes,
rivalizando com o pai no poder sobre aquele. O menino era for
jado, então, para ser o adulto religioso que fizesse penetrar,
mais tarde, dentro dos lares, a moral católica e os seus ensi
namentos. Nas mãos dos jesuítas, o menino tornava~se adulto
independentemente de sua vontade e da .6ua idade. O "menino-di!
bo", instintivo, vagabundo, preguiçoso era o alvo certo. Com
palmatória e vara de marmelo entrava na linha e voltava p'ra
casa pronto, homem feito, culto, precoce, estudioso,amante das
letras e, acima de tudo, religioso; vestindo, falando, pensa~
do e vivendo de modo diferente, urbano, "euJ!.opeizado", fazendo
com a família de hibitos rurais um contraste que o século XIX
havia de aprofundar para depois, aos poucos, amenizar, pela vi
tória de um sobre o outro.
Até fins do século XIX a disciplina ferrenha dos colégios
de padre manteve-se. O latim e a gramitica deixaram no corpo mu.:!,.
tas marcas. Além disso, a alimentação era preciria e as condi
27 I b i d., p. 68-9.
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çoes de higiene péssimas. Os colégios particulares e oficiais
que surgiram no século XIX nas principais cidades do Império
passaram a oferecer melhores condições de higiene, com apar~
lhos sanitários e banheiros instalados (nem sempre presentes nos
colégios de padre, geralmente isolados nas montanhas).
A menina, no Brasil colonial era criada para o casamento
que normalmente se realizava entre os doze e quinze anos. A
partir dos quinze anos de idade (quando muitas já eram mães)
nao ter casado era motivo para grandes preocupações por parte
dos pais e, aos vinte, sem marido, a moça era considerada sol
teirona. Isso porque, para a mentalidade da época, as mais ve
lhas já não teriam para os homens o mesmo sabor das meninotas
de doze/treze anos. Vale salientar que a idade dos maridos p~
dia variar entre trinta e setenta anos! Cedo esposas, também
muito cedo envelheciam as mocinhas do Brasil, no tempo da Colõ
nia. Já a partir dos vinte anos começavam um processo de deca
dência, e envelhecimento. A vivacidade e beleza das meninotas
de doze/treze anos, que tão cedo eram colhidas pelo casamento,
contrastava com a palidez, moleza e feiúra das mais velhas de
vinte anos. O casamento trazia a responsabilidade dos cuida
dos com a casa e com a prole, substituindo aos poucos o ar de
criança feliz e confiante pelo carãter de matrona corpulenta,
pesadona, mal-humorada. Muitas meninas morriam de parto aos
quinze anos de idade, deixando o filho que haveria de ser cria
do pela mucama.
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o marido nao era escolha sua mas, do pai que, por crité
rios econômicos e/ou políticos determinava-lhe o noivo, muitas
vezes sem que a filha o conhecesse. Era muito frequente, tam
bém, casamento entre parentes, especialmente entre tios e so
brinhas, cuja finalidade era estreitar os laços da família em
torno do patriarca, concentrar os bens, as propriedades e con
servar a pureza do sangue. Raramente, até a segunda metade do
século XIX (a partir daí com mais frequência), o casamento da
va errado. Gilberto Freyre refere-se a um caso ocorrido em
1860, em Pernambuco, de uma moça que fugiu nas vésperas de seu
casamento. O noivo era ilustre bacharel escolhido pelos pais
que, para remediar a situação, ofereceram a mão de outra filha,
o que foi aceito sem demora. 28
Não tinha problema. Casamento era negócio. Se uma filha
escapava, havia outra para negociar. Se era negócio, o que i~
portava era a mercadoria, não o sentimento. Na falta de uma,
outra, de igual valor. Excetuando-se os raros casos de paixão
que resultavam em fugas ou raptos, até a primeira metade do s~
culo XIX, a menina submetia-se sem problemas e sem questioname~
to. A escolha era feita, ela casava. Para isso caminhava sua
vida, para isso sua infância apontava; era a noiva do futuro,
possibilidade de negócios promissores.
A menina, nos tempos da colônia, devia ser acanhada, hu
milde. Sofria beliscões se respondia ou tinha comportamento
saliente. Não tinha liberdade de brincar, correr ao ar livre,
28 Ibid., p.340.
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subir em árvores, saltar e pular, enfim, divertir-se e usufruir
da natureza, ultrapassando os limites da casa onde era quase
prisioneira. Quando sinhá, poderia custar-lhe a vida qualquer
insjnuação para o sexo oposto. Era motivo para ser assassina
da a mando do pai ou da mãe, ou ate mesmo pelas maos daquele.
O casamento substitula o tirano; no }ugar do pai, o. marido.
Aliás, o patriarca tinha de fato o poder de vida e morte sobre
esposa e filhos. como Dodemos ver nos relatos de Gilberto Frel
re em "Ca~a-Gnande e Senzala".
Meninas e mulheres, ate o fim do perlodo colonial, eram
muitas vezes colocadas em recolhimentos, onde se hospedavam du
rante a ausencia do pai, ou' marido. Essa prática respondia a
necessidade de alguns que não tinham quem olhasse por suas fi
lhas (ou mulheres), como tambem funcionava como castigo para
aquelas que merecessem corretivos. John luccock observou que
nesses recolhimentos havia uma grande mistura de idades, cara~
teres e objetivos das suas hóspedes, havendo inclusive senhoras
de "c.anâ.ten ..i.na.tac.â.vel" e de posição na sociedade que procur!
vam um lugar onde pudessem ficar durante a ausência do marido,
passando a conviver com "velha~ e moça~, ..i.noc.ente~ e C.OIULU.p.:ta,6,
moça~ de c.ol~g..i.o e pec.adona~ annepend..i.da~". Com indignação, es
c reveu : "Um pa...i. ..i.nglê.~ j ama..i.~ e~ c.olhen..i.a. ~ emelhante lugan pa
na 6..i.lha ~ua, nem ta..i.~ pe~~oa~ pana ~ua~ ccmpanhe..i.na~ e me~
tna~. Um man..i.do ..i.nglê..6 jama..i..6 ac.han..i.a que .6ua e.6po.6a e.6tan..i.a
al..i. ma..i..6 a c.obento de manc.ha monal do que Je entnegue ao pn.Q
pn..i.o ~en.6O daqu..i.lo que ela deve a .6..i. pnôpr~a, ao.6 .6eu.6 am..i.go.6
e ; .6oc...i.edade. Ma~ o~ bna.6..i.le..i.no.6 pO~.6ue~ pouc.a del..i.c.adeza de
38
~entimento6; i9no~am qua6e que tudo da in6lu~ncia 6o~te e dom&
nante da6 cau6a6 mo~ai~".29 Sob o governo de D. Pedro 11, es
sa prática foi proibida, como observou Fletcher, que esteve no
Brasil entre 1851 e 1865, o que certamente diminuiria a indign~
ção de John Luccock, com a "pouca delicadeza de ~entimento~" dos
b ra si 1 e i ro s .
Histõrias, cançoes e coisas do amor, a menina do Brasil
colonial começava a conhecer através da negra mucama, sua mais
i n t i m a c o m p a n h e i r a, c Ü m p 1 i c e, i n c 1 u s i v e, nas f u g a s p a r a o a mo r ,
quando aconteciam.
A menina deixava de ser criança a partir do dia da prime!
ra comunhão quando então tornava-se sinhá-moça, sendo, a paE
tir de então, obrigada a vestir-se como senhora. Em muitos ca
sos, já no século XIX, crescia sem aprender a ler e escrever.
Quando aprendia, havia de ser com os padres que também ensina
vam-lhe coser, rezar e praticar a religião catõlica. John Luccock
testemunhou, no início do século XIX, o estado de reclusão e
ignorância em que viviam as mulheres: "
o 6abe~ le~ pa~a ela~ não devia i~ além do liv~o de ~eza6,poi6
que i~60 lhe6 6e~ia inútil, nem tão-pouco ~e de6ejava que uc~~
ve6~ em a- 6im- de que não 6ize66 em, como ~abiamente 6 e ob~~vava,
um mau u~o de44a a~te".30 Mesmo quando, na segunda metade do
século, as meninas começaram a frequentar escola, na quase to
tal idade dos casos os pais brasileiros faziam-nas cursar, ap~
29 LUCCOCK, John. O "t 48 p. C1 ., p ..
30 Ibid., p.75.
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nas alguns anos, uma escola dirigida por um estrangeiro para d~
pois retirá-las com treze ou quatorze anos, quando então eram
consideradas devidamente educadas e preparadas para a vida e o
casamento. Em 1881, quando se encontrava no Brasil a profess~
ra alemã Ina Von Binzer (sua estada aqui foi entre Rio e São
Paulo), ainda era costume educar as jovens brasileiras (mais
ricas) dentro de casa. Este era inclusive o meio de vida da
professora. Teve ela alunas numa fazenda do Rio de dezenove,
vinte e um e vinte e dois anos de idade, às quais devia diri
gir-se chamando-as de "Vona". Essas jovens já eram considera
das solteironas, o que espantou a jovem professora que tinha
apenas vinte e dois anos de idade. Quando em 1882 lecionou em
um colégio de meninas, Ina Von Binzer teve muitas dificuldades.
Considerava o comportamento das alunas péssimo, chegando a re 31 ferir-se as mesmas como um "bando de ~elvagen~". Sua colega
francesa prendia as mais exaltadas dentro de um armário até que
ficassem mais calmas.
A menina crescia, enfim, no Brasil Colonial, para viver
uma vida de mulher reclusa, que até para tomar ar fresco e sol
devia limitar-se aos jardins internos da casa. Até dentro de
casa ela se escondia, bastando que alguma visita masculina fos
se anunciada. A moça solteira, a vida reservava o convento ou
o quase enc1ausuramento na própria casa. A mulher casada era
o ventre gerador. O seu papel social e econômico era produzir
filhos. Seu corpo era preparado para isso. Fletcher conheceu
em Minas Gerais uma senhora que tinha vinte e quatro irmãos da
mesma mae.
31 BINZER, Ina Von. Op. cit., p.66.
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De franzina e miúda nos tempos da meninice, a menina pa~
sava a gorda e moleirona nos tempos de casada. "PaJta o pJt.<.me.i
Jto t.<.po - o da v.<.Jtge.m pál'<'da - cald.<.nho~ de. p.<.nta.<.nho, água de.
aJtJtoz, conóe..<.to~, banho~ mOJtno~. PaJta o ~e.gundo - a upo~a go!!:
da e. bon.<.ta - ve.Jtdade.'<'Jto Jte.g.<.me. de. e.ngoJtda com mu.<.to me.l de. e.n
ge.nho, mu.<.to doce. de. go~aba, mu.<.to bolo, mu~ta ge.lê~a de. aJtaça,
mu~to pa~te.l, chocolate., toda a ~êJt~e. de. gulo~e..<.ma~ _Jt.{.ca~ que.
o~ cJton~~ta~ da ~oc.<.e.dade. patJt.<.aJtcal no BJta~'<'l notaJtam ~e.Jt Qon
~um~do~ ã laJtga pe.la~ ~e.nhoJta~ bJta~'{'le.~Jta~,,32, escreveu Gilber
to Freyre. A relação com o marido praticamente se restringia
ã relação sexual procriadora. A relação intelectual inexistia.
Nos assuntos de homem não podia meter-se. Os seus assuntos eram
os domesticos; os seus limites, os limites da casa. Para sair
ã rua devia ser acompanhada de um parente do sexo masculino. Era
uma vida de obrigações que contrastava com a vida cheia de di
rei tos dos homens os quais tinham os contatos sociais, as rela
ções politicas, as iniciativas e a liberdade, inclusive, sexual.
A mulher que buscasse o prazer na relação com outro homem jog!
va com a própria vida. Na relação com os filhos, sua influên
cia não ultrapassava os limites do sentimental pois, ignorante,
nada tinha para ensinar e, limitada a uma vida domestica, nao
sabia prepará-los para a vida. A da menina repetiria a vida
da mãe como a do menino continuaria a vida do pai, herdeiro que
era não só dos bens como dos mesmos direitos de liberdade, des
de que atingisse a idade adulta. Na intimidade, a mulher nos
tempos da Colônia mostrava-se desprovida de qualquer vaidade,
32 FREYRE, Gilberto. Op. cit., p.116.
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em geral descalças ou de tamancos, aparentemente sujas, cabe
los compridos, normalmente despenteados, com fitas ou ramalhe
tes de flores artificiais sobre a cabeça, sem graciosidade nas
suas maneiras (duras) e suavidade na voz (em geral alta e ag~
da). Indolente, seu exercício físico restringia-se aos afaze
res domésticos para o que o esforço exigido era mínimo pois vl
via a dar ordens aos escravos e a ser servida por eles. John
Luccock narrou o que viu (estupefato) no Rio de Janeiro, na ca
sa de uma senhora que fora visitar pela manhã. Estava sentada
sobre uma esteira e ao seu redor havia muitas escravas que te
ciam e costuravam. "Em c.e.Jt.to mome.n..to .-i.n..te.JtJtompe.u a. c.on.ve.Jt-6a.
pa.Jta. gJt.-i..ta.Jt poJt uma. ou.tJta. e.-6c.Jta.va. que. e.-6.ta.va. e.m loc.a.l d.-i.üe.Jte.~
.te. da. c.a.-6a.. Qua.n.do a. n.e.gJta. e.n..tJtou n.o qua.Jt.to a. -6e.n.hoJta. lhe. d.-i.-6
-6e.: 'Vê.-me. o c. a. n.g.-i.Jtão , (este encontrava-se ao alcance da sua
mão segundo Luccock). A-6-6.-i.m o üe.z e.la., -6Ua. -6e.n.hoJta. be.be.u e. de.
volve.u-lho; a. e.-6c.Jta.va. Jte.c.oloc.ou o va.-60 on.de. e.-6.ta.va. e. Jte..t.{.JtOU--6e.
-6e.m que. pa.Jte.c.e.-6-6e. .te.Jt da.do pe.la. e.-6.tJta.n.he.za. da. oJtde.m, e.-6.ta.n.do .tal
ve.z a. Jte.pe..t.-i.Jt o que. já ü.-i.ze.Jta. m.-i.lha.Jte.-6 de. ve.ze.-6 a.n..te.-6. Ah~ m.-i.
n.ha.-6 -6e.n.hoJta.-6 pe.n.-6e..-i. e.u, n.ão há ma.Jta.v.-i.lha.Jt que. -6e. .toJtn.e.m c.oJtp~
le.n..ta.-6 e. -6e. e.-6.tJta.gue.m; -6ão e.-6-6e.-6 0-6 e.üe..-i..tO-6 n.a..tuJta..-i.-6 da. oc..-i.o-6.-i.
da.de.".33 As mulheres tinham muito gosto pelo jogo o que, na
opinião de Maria Graham, professora inglesa, era um recurso que
ti nham contra essa vi da ociosa: "Não me. a.dm.-i.Jto de.-6-6a. .te.n.dê.n.ua..
Se.m e.duc.a.ção e. c.on.-6e.que.n..te.me.n..te. -6e.m 0-6 Jte.c.UJt-60-6 do e.-6pIJt.-i..to e.,
n.um c.l.-i.ma. e.m que. o e.xe.Jtc.Ic..-i.o a.o a.Jt l.-i.vJte. ê de. .todo .-i.mpo-6-6Zve.l,
- ... ,,34 e. pJte.c..-i.-60 .te.Jt um e.-6.t~mulo •
33LUCCOCK, John. Op. cit., p.n. 34 GRAHAM, Ma ri a. V.-i.âJt.{.o de. Uma. V.-i.a.g em a.o l3Jta.-6il e. de. uma. E-6;tada. n.e.-6-6 e. Pa.X-6 du.Jtan..te. pa.Jt.te. dO-6 a.n.O-6 de. 1821, 1822 e. 1823. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1956, p.156.
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Luccock observou também no início do século, o mimo e a
adulação com que os maridos tratavam suas mulheres, vendo nis
so razoes para a impertinência e mau humor daquelas que, acos
tumadas a ver satisfeitos e até antecipados seus caprichos,de~
carregavam sobre os escravos suas raivas, muitas vezes de for
ma violenta e cruel, ocasião em que os musculos . se exe rc i ta
vam ... Suas ocupações em geral consistiam nos atos de fiar
algodão, fazer renda, bordar, fazer flores artificiais, prep~
rar doces e bolos e cuidar dos filhos. (cuidar, não educar).
Maria Graham teve oportunidade de conhecer duas mulheres
que foram objeto de sua admiração: uma do Rio de Janeiro se
nhora muito culta que lia bastante, especialmente filosofia e
política, além de entender de Botânica e pintar flores muito
bem; a outra, Maria Quitéria de Jesus, heroína baiana que se
destacou na guerra do Recôncavo, tendo que, para isso, disfar
çar seu sexo, vestindo-se como homem. Foi condecorada pessoal
mente pelo Imperador que lhe deu o posto de Alferes e a Ordem
d C . 35 o ru ze 1 ro .
Fossem em maior parte e o Brasil seria outro ... !
Quando, no decorrer do século XIX, a mulher começou a ter
uma vida social fora de casa, e a incorporar costumes e hábitos
europeus, sua vida mudou, embora, por muito tempo, apenas supe~
ficialmente. Por volta de 1857, quando aqui esteve o francês
Charles Expilly, apenas roupas e chapéus tornavam a mulher bra
35 Ibid., p.329-31.
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sileira diferente. Se soubesse ler e escrever corretemente,f~
zer doces, manusear o chicote, cantar, dançar e tocar piano,
jã se considerava sua educação completa. Suas aspirações nao
iam alénl nem seu marido desejava mais. Expillyescreveu: "O
homem do~ t~~pi~o~ n~o 6az muita que~t~o de en~ont~a~ uma alma
no in~t~umento do~ ~eu~ p~aze~e~. O ~eu ideal pode muito bem
~e en~anna~ na 6igu~a ale~tada de uma boa ama de leite".36 So
mente nos fins do século passado e inlcio deste, a mulher se
transformou por dentro tambem, ganhou nova subjetividade. Mui
to mais do que e~po~a passou a ser m~e e educadora, para isso
fazenao alianças (de que falaremos adiante) e, por isso, rever
tendo o quadro familiar brasileiro em que relações de poder in
teiramente novas tiveram lugar.
Com essas novas relações de poder, nasceram no Brasil a
família e a sociedade que conhecemos, em que a criança é pedra
preciosa, objeto de investimento, futuro da nação. Essa crian
ça, entretanto, emergiu das famílias abastadas do Brasil anti
go que puderam dar lugar aos mecanismos de proteção e vigilâ~
cia, tão caracterlsticos dessa nova ordem famil iar e social.
Sob esse modelo, que hoje procura-se impor como "objeto natu
~aR:.", a criança pobre, neg,ra ou a criança indlgena, o "~ulum,[n",
sao "~a~o~", objetos de estudo especial que procura semprede~
c o b r i r o que 1 h e s f a 1 ta. A c r i a n ç a p o b r e p as sou a o c u p a r na nos
sa sociedade o lugar da carência ou da marginalidade e a crian
36 EXPILLY, Charles. Op. cit., p.403.
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ç a i n d r 9 e n a o 1 u 9 a r d e e s p e c i e e m e x t i n ç ã o, p r o c e s s o que obra n
co procura acelerar invadindo suas terras e contaminando o seu
corpo.
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CAPTTULO 2
o POVER E O INVIVTvuO
1. A V~~~~pl~na do~ Co~po~
No século XIX, a sociedade brasileira assistiu a uma ver
dadeira revolução de costumes e idéias que, durante muito tem
po, contudo, conviveu com os velhos costumes da antiga socieda
de. No final do século, as coisas foram ficando mais c 1 ara s
de nlo do que se pô de di s t i n g u i r o ve 1 h o do n o voe c o n h e c e r as
idéias que haviam de dominar na nossa sociedade e que haviam
de penetrar profundamente na família, em cujo interior as rela
ções se reverteriam a favor de um novo jogo de poder em que a
figura do patriarca deu lugar ã figura de um pai mais afetivo
do que poderoso, mais responsável do que mundano. Nessa nova
c o n f i g u r a ç ã o f a mil i a r, a e m e r g ê n c i a d a c r i a n ç a e deu ma n o va mu
lher é fundamental.
As mudanças no interior da família brasileira respondiam
a novas estratégias de poder que inauguravam a ~o~~edade d~~~~
pl~na~ no Brasi 1. Assim entendeu Foucaul t a sociedade que eme.!:
giu, a partir do século XVII, das transformações nas relações
de poder: uma sociedade sobretudo de ~nd~vlduo~ que a discip11
na ou o poder disciplinar "6ab~~~a". Diz Foucault que o poder
disciplinar Irem vez de dob~a~ un~6o~memente e po~ ma~~a tudo o
que lhe e~tã ~ubmet~do, ~epa~a, anal~~a, d~6e~en~~a, leva ~eu~
p~o~e~~o~ de de~ompo~~ção até a~ ~~ngula~~dade~ ne~e~~ã~~a~ e
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~~p~~Z6i~a d~ um pode~ que toma o~ i»divZduo~ ao me~mo
~omo obj eto~ e ~omo i»~t~ume»to~ d~ ~ ~u ex~~~Z~io." 1
46
t~mpo
Esse poder que individualiza é um poder modesto, é um mi
cro poder que, entretanto, funciona de forma permanente, nos
fios capilares da rede social e usa de instrumentos muito sim
ples como o olhar hierárquico e a sanção normalizadora.Objetos
e instrumentos do poder disciplinar, os individuos ao mesmo
tempo em que são controlados, vigiados e avaliados são utiliza
dos para controlar, vigiar e avaliar, num procedimento especi
fico que e o exam~. As funções são especificadas e os lugares
marcados (pai, mãe, filho, professor, diretor, policia, etc)
dentro de um quadro geral em que esse poder se articula. Sua
forma de atuação (vigilância, normalização, controle) torna s~
melhantes as diversas instituições (familia, escola, hospital,
prisão ... ) e possibilita sua eficácia máxima. Isso porque o
poder disciplinar investe no corpo e chega aos minimos gestos
submete-o mas, multiplica suas forças. Não sendo propriedade
de alguém, ele se auto-sustenta porque é produzido por todos
os elementos e em todos os niveis da rede de relações em que
os individuos estão inseridos. A existência de um chefe numa
instituição ou organização piramidal não confere a este a posse
do poder " ... ê o apa~e.tho i»tei~o que p~oduz 'pode~' e di~t~i
1 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis, Vozes, 1987. p.153.
I
47
bu~ o~ ~nd~vZduo~ n~~~~ campo p~~man~nt~ ~ contInuo. O qu~ p~~
m~t~ ao pod~~ d~~c~p~~na~ ~~~ a~tam~nt~ ~nd~~c~eto, po~~ e~tá
~m toda pa~t~ e ~emp~e a~~~ta, po~~ em p~~ncIp~o não d~~xa ne
nhuma pa~te à~ e~cu~a~ e cont~o~a cont~nuam~nte o~ me~mo~ qu~
e~tão enca~~egado~ de cont~o~a~; e ab~o~utam~nt~ 'd~~c~eto',
poL!l 6unc~ona p~~manentem~nt~ e em g~and~ pa~te em ~~~ênc~o.,,2
o Estado opera com leis. As instituições disciplinares
operam com a no~ma, control e "ba~xo" de comportamentos sutis
que se dão a níveis não penetráveis pela lei, que se dão ao ní
vel dos corpos, dos seus gestos, da sua fala, do seu desemp~
nho, etc. A norma opera com micropenalidades, caracterizadas
por mecanismos de punição singulares, produzidos, autonomamen
te, no interior de cada instituição. Na sociedade disciplinar,
no interior da família e da escola, o castigo muda de sentido:
não mais a resposta violenta do adulto aos atos intoleráveis
da criança - o castigo agora é medido, pensado, e faz parte do
processo educativo. A criança deve ser castigada nao apenas
pelo confronto às regras e pelos danos causados mas também (e
principalmente) pelo não cumprimento de tarefas ou simplesme~
te pelo fracasso, pela lentidão, pela incapacidade, enfim, por
nao corresponder ao ideal. Castiga-se pelo que a criança faz
mas também pelo que ela não pode fazer. Castiga-se mais pelo
que a criança é do que por aquilo que ela faz. Castiga-se p~
lo modo mais suave mas também de modo muito mais frequente po~
que pode haver castigo a cada passo. E nesse caminhar para o
ideal castigo e recompensa se alternam. A ultima não é menos
2 I d. i b i d. p. 158.
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violenta, ela faz parte de um processo de sujeição da criança;
seleciona e multiplica suas forças úteis e diminui sua potê~
c i a . Qual a criança mais recompensada nessa sociedade que co
nhecemos e que começou a formar-se no B ra si 1 do s ec u lo XIX? E
-aquela que se expande, que e diferente, que incomoda, que con
testa, que resiste e se rebela ou - aquela obedece, e que que e
"qu-iet-inha" , aplicada e submissa? A recompensa tambem mantem
a criança a redeas curtas; e tambem como o castigo, imediata e,
da mesma forma, impõe modelos e padrões de comportamento. A re
compensa, enfim, e, tanto quanto a punição, d-i-õc.-ip.f.-ina. Por ser
mais agradável ela não sUjeita menos.
Na escola, a criança ê o lugar que ocupa dentro de um
sistema de classificação. Neste lugar está marcado sua dife
rença (mas não sua singularidade); uma diferença, entretanto,
que se quer o tempo todo comparada, relacionada com "outlLa-õ d-i
6elLença-õ " , julgada, medida e avaliada segundo modelos; uma di
ferença, enfim, sujeita a um processo de nOlLma.f.-izaçào. E o que
será a criança que fica fora desses limites senão uma criança
anolLma.f.? Anormal, sim, porque e a nOlLma que responde, a norma
como instrumento de poder que individualiza para medir as dife
renças e torná-las uteis de alguma forma.
o grande ritual dos dispositivos de disciplina e o exame.
Ele ê que permite a classificação, a qualificação e a punição.
Segundo Foucault o exame e uma inovação da era clássica e con~
titui uma tecnica que se generalizou nas ciências humanas, ca
racterizando determinadas relações de poder e ao mesmo tempo
produzindo saber. A que se deve a Pedagogia senão ã formação
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de um saber que se constituiu pouco a pouco, através das obser
vações e avaliações constantes de crianças dentro da escola? O
exame deu ã Pedagogia o seu objeto e, como técnica de poder,
sujeita a criança a um sistema de relações que a individuali
za para fazer dela "um c.a-6o", uma "pa-6ta de. afLqu-i.vo", um "obje.to
c.-i. e. ntZ 6 -i. c. o li •
d-i.v-i.duaf.-i.zada do que. o aduf.to, o doe.nte. o ê ante.-6 do homem -6âo,
o f.OUc.o e de.f.-i.nque.nte. ma-i.-6 que o nOfLmaf. e o nâo-def.-i.nquente.,,3
Neste terreno fértil brotam as ciências do homem como ser psl
cológico cuja história individual passa a ser fundamental, ou
melhor, determinante, para a compreensão do "-6eu c.a-6o", da "-6ua
pefL-6onaf.-i.dade" ou da sua loucura.
A sociedade disciplinar é uma sociedade panóptica. O p~
nóptico, projetado por Jeremy Bentham, é uma figura arquitet~
ral, circular, em forma de anel, cuja face interna tem ao cen
tro uma torre com um vigia. O anel possui celas em toda a sua
extensão que podem ser vistas e vigiadas com toda clareza pelo
vigia localizado na torre. As celas são individuais e o indi
viduo no seu interior é visto mas não vê como também e impossl
bilitado de qualquer contato com os outros vigiados, separados
todos pelas paredes laterais das celas. Consciente de que e
vigiado o tempo todo, o individuo se torna alvo fácil de um p~
der que funciona automaticamente pois não há a necessidade de
uma açao que desencadeie seus mecanismos. O vigia está sempre
lá na torre, vigiando, sem no entanto, ser visto e"o detento
3 Id. ibid. p.171.
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~u~~a deve ~abe~ ~e e~tã ~e~do ob~e~vado ma~ deve te~ ~e~teza
d ~ 4 e que ~emp~e pode ~ e-lo."
o poder panõptico tem sua força no esquema que é montado
para seu funcionamento não no poder de ~m indivíduo que se faz
temer (um soberano). E a correta distribuição dos corpos (e~
tre eles o do vigia), ou seja, o seu "quad~.t~u.lame~to", que lhe
confere a máxima eficácia de modo que o vigia pode ser qualquer
um. E a sua posição na torre que é importante. O poder panõE
tico dispensa o uso da força justamente porque o seu maior re
sultado é a sujeição real dos indivíduos. O panõptico e um
diagrama de relações de poder que independe do tipo da insti
tuição em que seja implantado. Pode ser utilizado em hospitais,
prisões, oficinas, escolas, enfim, em qualquer lugar onde nor
mas de comportamento devam ser estabelecidas ou tarefas especi
f i c a s d e va m s e r r e a 1 i z a das. O p a no p tis mo, c o n t u do, te rm i na p o r
generalizar-se pela sociedade inteira, caracterizando as rela
ções entre os indivíduos e inserindo-os num esquema em que a
disciplina rege o comportamento, não para reprimi-lo mas para
aumentar sua produtividade.
Assim entendeu Foucault a sociedade disciplinar que eme~
giu a partir do século XVII. Suas ideias ajudam-nos a pensar
sobre a sociedade que começou a ser desejada e formada no Bra
sil do século XIX. A higienização da família, a disciplina na
escola, o saber psicanalítico serão pensados aqui como forças
que se articularam para produzir um indivíduo disciplinado e
4 I d. i bi d. p. 178.
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51
útil à sociedade capitalista, para o que investiram, maciçame~
te, no corpo da criança.
2. A "mãe. ve.tc..dade.-itc..a" e. a c.tc..-ianç.a ú..t-il
Em 1808 a familia real portuguesa transferiu-se para o
Brasil e, no mesmo ano, abriram-se os portos brasileiros aos
navios estrangeiros. Foi grande então o número de imigrantes
que para cá vieram, para servir a familia real, para fazer co
mercio ou simplesmente para aventurar. O Rio de Janeiro, cap1
tal da Colonia, foi a sede das grandes novidades. Aqui se ins
talaram a Corte e grande parte dos estrangeiros que tambem se
distribuiram pelo interior do pais, neste último caso, agricul
tores, que contaram com privilégios importantes concedidos p!
lo governo para que tivessem sucesso nos seus empreendimentos.
A população cresceu magnificamente assim como a variabilidade
da indústria. O conforto aumentou, o número de residências mul
tiplicou, especialmente nas cidades. Teve inicio um longo pr~
c e s s o de" utc.. b a n-i z a ç. ã o" do p a i s, a s c i da de s a o s pau c o s c e n t r a 11
zando a vida brasileira, fervilhando de novidades e dando lu
gar a grande número de mudanças, sociais, econômicas e polit1
cas que enriqueceram de detalhes um caleidoscópio até então qu~
se retrato da vida rural com suas relações definidas basicame~
te em termos da relação entre senhor e escravos. No interior
das casas brasileiras a mobilia se modernizou, as mesas fica
ram mais fartas. As pessoas mudaram aos poucos seu vestuário
e passaram a sair mais às ruas, especialmente na Capital, para
usufrui r das novas ruas que se abri ram, proporcionando passeios
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agradáveis, e para frequentar ou assistir as festas da Corte.
A rua foi aos poucos vencendo a reclusão das faml1ias brasilei
raso As casas abriram suas portas e janelas e o exterior se
tornava cada vez mais atrativo. Até que já próximo ao final do
século, a vida enchia muito mais as ruas que o interior das ca
sas. Sobre isso, em dezembro de 1881, a professora alemã Ina
Von Binzer escreveu: "CompfLeendo a.g OfLa. , a. fLa.zão de não pO-6-6Ul
fLem a.~nda. 0-6 bfLa.-6~le~fLo-6 nenhuma. ObfLa. notável -60bfLe a.-6-6untO-6
neQe-6-6áfL~o um e-6pa.ço 6eQha.do, onde na.o -6e pa.-6-6em m~lha.fLe-6 de
(BINZER, 1956, p.56). Depois de três séculos de vida reclusa e
c a s a s f e c h a das, só me s m o uma a 1 em ã p o d e r i a e s c r e ver ta 1 c o i s a
Os brasileiros estavam experimentando uma nova forma de vida.
As crianças haviam ganho a rua, onde passavam o dia inteiro. As
conversas nas calçadas eram intensas e os olhares nas janelas
sempre presentes. O racioclnio lógico, não sei ... mas o pe~
sarnento livre precisa de experiências diversificadas para se
fortalecer. Se não produzimos nada, foi por falta de ferti1ida
de do solo.
Quando tudo apenas começava, no inlcio do século, houve
grande estlmulo às iniciativas individuais, o sucesso de cada
um podendo ser revertido em proveito próprio, não mais sendo
sacrificado aos interesses e proveitos de Portugal. Os interes
ses, as experiências, os modos de agir diversificaram-se,fazen
do aparecerem os talentos e engenhos peculiares. O sucesso de
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alguns estimulava os demais. Costumes burgueses começaram a
penetrar na sociedade brasileira trazidos por estrangeiros re
cem-chegados de uma Europa que se industrializara e já encarna
ra tipos humanos próprios a uma sociedade fundada nos valores
individuais. Começou a tomar corpo um novo sistema social que
haveria de concentrar nas cidades, especificamente nos bancos,
as transações financeiras da vida urbana e rural, esta, penall
zada agora por uma instituição que não perdoava e nem concedia
favores (FREYRE, 1985, p.15). Foi se "e.u.Jr.ope.izal1do" na expressa0
de Gilberto Freyre) o Brasil no século XIX. Os filhos das fa
mil ias abastadas partiam para estudar na Europa e voltavam nao
so com seus diplomas de bacharéis, médicos, matemáticos mas,
também, com pensamentos e idéias na cabeça. Tornavam-se alia
dos do governo na luta contra o "pate.Jr. 6aml.iia-6" rural o que
significava lutar contra o próprio pai ou contra o avô. O jE.
vem médico desprestigiava a medicina caseira desqualificando o
saber da sua mãe ou da sua avo. O governo e os jovens doutores
eram os "a.iiado-6 da Cidade. c.ol1tJr.a o El1ge.l1ho. Da PJr.aça c.ol1tJr.a
a Roça. Do E-6tado c.ol1tJr.a a Faml.iia" (FREYRE, 1985, p.18). O fi
lho, a mulher e o negro cresciam na mesma medida em que o PE.
der patriarcal se despedaçava. Fabricas, oficinas, escolas,
tomaram cada uma o seu pedaço e nelas cresceram e se educaram
os individuos que haviam de se aliar ao Estado contra a famí
lia patriarcal, a favor de um novo tipo de família, nuclear,p~
quena, burguesa.
A promoçao da saude e bem-estar da população tiveram lu
gar no programa do governo. Cresceu a preocupação com a educa
i I ( t I f f
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I
54
çao das classes populares. John Luccok leu a 9 de julho de 1814,
na Gazeta do Rio, o seguinte anuncio: " Q u e.m q u -<-.6 e.f1. mandaJt.6 UM
ô-<-lha.6, ~f1.-<-ada.6 e. e..6~f1.avo.6 apf1.e.nde.f1. a le.f1., e..6~f1.e.ve.f1., ~ontaf1.,
e.t~, pode. dú1.-<-g-<-f1.-.6 e. a uma pe..6.6oa f1.e..6-<-de.nte. na Rua do Lavf1.ad-to"
(LUCCOK, 1942, p.376). Pode-se ver que filhas, criadas e escravas
eram mantidas num mesmo patamar de ignorância.
o numero de escolas aumentou. A leitura e a curiosidade
intelectual foram estimuladas, com a fundação de uma Gazeta re
gular. Faltava formar caráter e sentimento nacionais,experiê.!!.
cia até então ausente do espírito dos brasileiros. O grande e~
tímulo para isso teve lugar em dezembro de 1815 quando oBra
sil foi elevado ã categoria de Reino, passando a ter privil~
gios e honras, em pé de igualdade com Portugal. Para o povo
isso teve um significado especial, podendo-se vislumbrar, no
futuro, o Brasil como uma nação entre outras, independente. O
sentimento que começava a se formar vinha de encontro a um Bra
sil dividido em províncias, sem relações umas com as outras,
muitas vezes até rivais ou de interesses opostos, o que não dei
xava de constituir uma ameaça de esfacelamento do país. ~ famí
lia real interessava o país unido em torno do governo e do Rio,
a Capital, esta podendo representar para todos os brasileiros,
o centro da sua unidade. A proclamação do Brasil como Reino
fez nascer esse sentimento nacionalista que pôde fortificar-se
cada vez mais na medida em que o povo tinha um soberano em ter
ras brasileiras a quem render homenagens e manifestar gratidão.
A maior comunicação entre as províncias fazia-se também extre
ma nl e n te n e c e s s ã r i a p a r a a uni ã o d e s s e i me n s o p a ; s. E s t r a das 1 i
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I
55
gando o litoral ao interior abriram-se podendo assim os brasi
leiros conhecer melhor seu próprio pais e conhecer melhor uns
aos outros.
Cresceram, contudo, também, os movimentos orientados p~
ra a independência do Brasil. Os jornais, porem, não divulg~
vam: "Sua.6 coluna.6 6..telmente fLeg..t.6tfLavam pafLa o públ..tco bfLa.6..t
le..tfLO o e.6tado de .6aúde de todo.6 0.6 pfLlnc..tpe.6 da EUfLopa. E.6ta
vam che..ta.6 de ed..tta..t.6 do GovefLVI.O, ode.6 natallc..ta.6 e paneglfL.{.c0.6
da 6amIl..ta fLeal; pOfL~m .6ua.6 p~g..tna.6 COn.6efLVavam-.6e ..tmaculada.6
pela.6 ebul..tçõe.6 da democfLac..ta e pela expo.6..tção de .6eu.6
VO.6" escreveu Fletcher 5 sobre o Brasil.
A independência foi inevitável como tambem o crescimento
cada vez maior do sentimento nacionalista. Para José Verissi
mo, contudo esse sentimento foi breve. Em 1890 reclamava ojo~
nalista da falta de patriotismo e sentimento nacionalista nos
brasileiros. Os estudos realizados fora do pais, a falta de
informação sobre o Brasil nas escolas públicas e até nos jo~
nais, a falta de museus, monumentos e celebração de festas na
cionais, a não divulgação dos trabalhos de artistas brasilei
ros, a falta de livros e revistas brasileiras, enfim, o dominio
de tudo o que era estrangeiro impedia a formação de um senti
mento patriótico, de uma unidade nacional, de um espirito bra
sileiro. Jose Verissimo se queixava: "Sejamo.6 bfLa.6ilufL0.6 com
todo o afLdofL do no.6.6O tempefLamento, ma.6 .6em 0.6 langofLe.6 e de.6
6alec..tmento.6 que o neutfLal..tzam. Não cop..temo.6 n..tngu~m, ma.6 e.6
5 KIDDER, D.P. & FLETCHER, J.C. panhia Editora Nacional, 1941.
O Brasil e os Brasilei ros. são Paulo, Com p.'3.
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56
tudemoJ.J tudo e. todoJ.J, e pJt~nc.~pafmente e.J.Jtudemo-noJ.J a noJ.J rneJ.J
mOJ.J.,,6 Igual apelo fazia o medico Luiz Correia de Azevedo em
1871 : "Não c.op~emoJ.J; 6açamoJ.J o que noJ.J d~c.ta a ,- , ,,7 c.o nJ.J uenc..ta.
As transformações por que passou o Brasil a partir do in;
cio do seculo passado constituíram um processo lento que se ar
rastaria por todo o seculo. Durante muito tempo a vida nas ci
dades repetiu, dentro de casa o modelo da vida familiar rural
em que mul her e fi 1 hos eram manti dos sob o control e absoluto do
patriarca, a mulher só saindo ã rua para ir ã missa ou a gra~
des festas e os fi 1 hos - "b~c.h~nhoJ.J de eJ.Jt~mação"
dendo ã "c.ond~ção humana" quando adul tos.
so ascen
E, porem, ainda no seculo XIX que a mulher e a criança
vao emergir dentro de uma nova sociedade que lhes designaria
lugares e papeis fundamentais no espetáculo da vida brasilei
ra. Quando a mulher começou a sair ã rua, ir a teatro, festas,
a ler romances, estudar piano, francês, inglês, dança, quando
enfim começou a aproximar-se de um tipo de mulher burguesa, a
vestir-se ã europeia, decorreu ainda algum tempo ate que pude~
se enlergir tambem no plano intelectual, participando, opinando
e interferindo nos "aJ.JJ.JuntoJ.J de homem". O Padre Gama escreveu
no seu jornal "0 CaJtapuc.e.~Jto", de 18 de abril de 1838, n9 22,0
que na sua opinião era e o que não era "aJ.JJ.Junto de mufheJt". Po
deria falar de costuras, rendas bordados, moda, penteados, ma
6 VERISSIMO, Jose. A Educação Nacional. Rio, 1906. p.LXVI-VII. 7 AZEVEDO, Luis Correia de. Concorrerá o Modo por que são dirigidos entre nós a Educação e Instrucção da ~10cidade para o Benefico Desenvolvimento Physico e f.loral do Homem? Annais Brasilienses de Medicina. Rio deJaneiro, abril, 1872, tomo XXIII, n.ll, p.435.
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ri do, fi 1 hos, "ma.6 que. huma .6 e.nhofLa a;C'<'fLe.-.6 e. a dafL alv.<.;CfLe..6 .60
bfLe. a PolZ;C'<'ca, a qUe.fLe.fL que. o ImpêfL.<.o .6e. gove.fLne. a.6.6.<.m, ou a.6
.6ado, he. e.m ve.fLdade. '<'n;Colle.fLave.l". A depender da opinião de
um dos maiores crfticos da sociedade brasileira, no seculo XIX,
a ".<.n;Ce.le.c;Cual'<'dade." da mulher não passaria de decisões sobre
como costurar, bordar, vestir, etc ....
As mudanças que foram ocorrendo na vida da mulher a pa~
tir das primeiras decadas do seculo XIX relacionavam-se com uma
aliança estabelecida com uma figura que não só favoreceu o seu
fortalecimento mas tambem chamaria a mulher a ocupar um honro
so lugar na sociedade, o de responsável pela criação e forma
ção dos filhos: o medico. Até, então, a unica figura extra-do
mestica com quem a mulher podia relacionar-se havia sido o p~
dre, o confessor, com quem repartia um pouco sua vida, fora do
controle do marido, do pai ou do avô. O seculo XIX testemunhou
a supremacia do medico sobre o confessor. Uma relação nova e
fntima se configurou. A mulher passou a confiar problemas e
segredos do seu corpo a alguem que, nem marido, nem pai, nem
confessor, tornou-se, sobretudo, um aliado (quando não amante).
Ao médico coube uma fatia do poder patriarcal esfacelado, qua~
do também mestres, polfticos, polfcia, jufzes, comerciantes,
bispos, governantes, etc, passaram a exercer um poder equaci~
nado, distribufdo, organizado. Nessa nova configuração ascen
deram a mulher, a criança, o escravo e, de modo geral, o jovem
que, sob o Império de Pedro II ascendeu a cargos exclusivos, até
então, aos mais velhos. Bacharéis, médicos, enfim, doutores
formados na Europa (alguns no Brasil), muito jovens,foram pre~
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tigiados, frente a indignação de muitos velhos, enfraquecidos
em seu poder. A sabedoria se deslocou. Agora não mais a ida
de mas, a formação - a formação científica. Ate inicios do se
culo XIX o velho nao só mandava como era respeitado no sentido
quase religioso. A ascendência dos jovens enfraqueceu esse p~
der e diminuiu esse respeito (misturado com medo), substituin
do uma antiga submissão por uma rivalidade que criou raízes no
saber, no saber dos jovens que, com o sacrifício da própria saQ
de (perdida lã nos internatos anti-higiênicos e sobre os livros
que por muito tempo impediram o exercício ao ar livre) podiam
agora confrontar, criticar e negar a sabedoria dos velhos. O
Padre Gama não gostava nada disso. Em 9 de fevereiro de 1839,
escreveu no seu jornal: "0 no-6-6O -6ec.ulo bem -6e pode c.hamaJt O-6e
c.ulo dO-6 joven-6; pOJtque qua-6i tudo he neito e dec.idido pOJt
vilha-6. Em outJta-6 eJta-6 hum c.on-6elheiJto d'E-6tado, hum c.idadão
c.on-6ultado a Jte-6peito da c.on6ec.ção da-6 Lei-6, eJta hum anc.ião de
c.abeleiJta, e e-6padim, eJta hum homem que já tinha oc.c.upado c.om
peJtic.ia e Jtenome 0-6 pJtimeiJto-6 c.aJtgo-6 do E-6tado. Hoje não -6uc.c.e
de a-6-6im: a velhic.e he objec.to de de-6pJtezo, ou de mOna e hum
Legi-6lativo he muita-6 veze-6 hum jovem de 27 anno-6, mui c.a-6qu~
lho, mui pintalegJtete, múi namoJtado, de enoJtme gadelha a huma
banda, tJtemendo pa-6-6a piolho, bigode, peJta, e c.haJtuto -6empJte na
boc.c.a. E venhão c.á dizeJt-me, que o nO-6-6O -6ec.ulo não he o -6ec.u
lo dO-6 joven-6, e da-6 luze-6!". Compara o Padre Gama os seus tem
pos com aqueles tempos idos de seus avos quando o jovem jã ca
sado, com filhos, às vezes avô jã, peoia a benção do seu pai,
conservava-se silencioso em sua frente, limitando-se basicamen
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te a responder perguntas, com circunspecção e comedimento. O
que via agora era o jovem de 15 anos de idade sem mais pedir a
benção, limitando-se a um cumprimento fugaz, quando bem educa
do, porque havia aqueles que passavam pelo pai como por um cao,
desprezavam-no, desafiavam-no, bradavam seus direitos, questi~
navam, fumavam e namoravam na sua presença. O comportamento das
meninas, observava o Padre, também mudava. Já aos 8, 9 anos dan
çavam tocio tipo de dança, "em vez de -6abeJtem c.ozeJt, bOJtdaJt e
pJt~nc.~palmente o PadJte NO-6-6o, a Ave MaJt~a, o CJte~o em Veo-6 Pa
dJte, 0-6 Mandamento-6, etc., etc.". Também já não tomavam a benção
aos pais, nem davam graças a Deus depois das refeições porque
"Veu-6 he c.oU-6a que já não -6e U-6a, e JtendeJt-lhe c.ulto de -6ummo
amoJt, de -6umma gJtat~dão he -6Ô paJta FJtade-6, e PadJte-6, ou paJta
algum velho 6anat~c.o", dizia o Padre Gama revoltado. Nesse Im
perio dos jovens era, contudo, "bom tom" ter constantes probl!
minhas de sa~de. Robustez e corposaldavel era coisa p1ra ge~
te da roça. As mulheres não abriam mão de constantes dores de
cabeça, de dentes, de estômago, de um desmaiozinho de vez em
quando, porque assim deveria ser a mulher frágil e sensível das
cidades. Os homens também. Não podiam gozar saude sob pena de
fazerem o tipo do homem grosseiro dos campos. O menino
ria a seguinte trajetória, nas palavras do Padre Gama em "O c.a
Jtapuc.e~Jto" de 21 de fevereiro de 1840, n9 5: "Qual he hoje o
men~no de 9, 10 anl1O-6 que já não toma -6eu c.haJtuto na pJte-6ença
do pJtopJt~o pa~? AO-6 12 annO-6 tJtaz o bonez~nho á bol~na, e ja
namoJta c.om todo o gaJtbo, e de-6empeno;peJttenc.e a ~nnumeJta-6 -60
c.~edade-6 toda-6 ac.abada-6 em '-<-na'; aO-6 14 e-6tá c.a-6ado, aO-6 16
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ao~ 20 anno~ ealveja, ou eomeça a eneaneee~, ao~ 25 tem 9a~t~~
te~, -<.nte~-<'te~, b~oneh-<.te~, hepat-<'te~, eol-<'te~, eneephal-<'te~,
e mo~~e bem velho na -<'dade de 30 anno~ J". O "eha~me" do corpo
frágil e doente contudo vai dar lugar, no final do seculo, ao
elogio do corpo saudável e robusto, necessário a uma sociedade
em formação, carente de tipos fisica e espitualmente fortes.
No tempo do Padre Gama falava-se em progresso. O Brasil
progredia nos costumes, nas relações, na produção de saber, na
moda, etc. Europeizava-se. Mas, para a cabeça de um moralis
ta as mudanças por que passava nosso pais, a partir do inicio
do seculo passado, eram sobretudo decad~ncia moral e perda de
estabilidade social. E!Ti 1838, escreveu no seu jornal n9 70,de
19 de dezembro: "O~ 6-<'lho~, po~ exemplo, já não que~em obedee~
ao~ pa-<.~: -<'~to me~mo he p~o9~e~~o; o d-<.~e-<.pulo de~p~eza o me~
t~e: -<'~to me~mo he p~o9~e~~o; a mulhe~ ~eeale-<'t~a a~ o~den~ do
ma~-<'do: -<'~to me~mo he p~o9~e~~o; o jovem e~ea~neee e malt~aeta
o ane-<.ao: -<'~to me~mo he pho9~e~~o; o ~ubd-<'to não que~ ~eeonhe
ee~ ~upe~-<.o~: -<'~to me~mo he p~o9~e~~o. Se~á po~ -<.~~o que tam
bêm vão em p~o9~e~~o o~ -<.n~ulto~, a lad~o-<.ee, a~ 6aeada~, o~
t-<'~o~, e out~a~ b~-<.neade-<.~a~ da Moda?". O Padre Gama faz nas
suas palavras o retrato de uma sociedade em verdadeira eb u 1 i
çao. Descontada a indignação de um religioso moralista, temos
na sua critica um testemunho extremamente rico do Brasil doseu
tempo que fazendo estremecer as bases de uma sociedade fundada
nos valores da familia patriarcal prepara a "pa~~agem de um 9.Q.
ve~no da~ 6am-<'l-i.a~ pa~a um 90ve~no at~avê~ da 6arúua" (DONZELOT,
1986, p.86). Isso só será possivel graças ao desenvolvimento de
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um processo que Foucault soube entender muito bem: a no~maliza
Çao da familia, obra de autores m~ltiplos, inspirados pela hi
gi~nizaçao, porta aberta pelo médico para fazer penetrarem na
familia, diversos mecanismos de controle social que procurar~
mos mostrar adiante.
A higienização da familia nao se restringiu ã questão fi
sica dos cuidados com o corpo mas, atacou também questões mais
amplas como educação e instrução. A formação superior e cien
tifica do médico conferia-lhe tais poderes numa sociedade onde
dominava a ignorância principalmente dentro de casa, na pessoa
daqueles que se encarregavam da educação das crianças. Por is
so, o médico Luis Correia de Azevedo fez, em 1872, no Rio, o
seguinte apelo: "VÓ-6, -6~nho~~-6, illu-6.t~~-6 ~ au.to~i-6ado-6 m~di
CO-6, 6az~i p~la ~ducaçao ~ in-6.t~ucçao do Rio d~ Jan~i~o .tudo
QU~ ê humanam~n.t~ pO-6-6Zv~l. Salvai do aniquilam~n.to ~-6.t~ povo
qu~ VO-6 admi~a ~ QU~ c~ê ~m VÓ-6, po~qu~ -6oi-6, mai-6 do qu~ ~li~,
~ducado-6 ~ illu-6.t~ado-6".8 O médico se reserva o direito, en
tão, de comandar a educação no nosso pais e a sociedade irá le
gitimar e obedecer. Por que poderia o médico reservar-se esse
d i r e i to? Nas p a 1 a v r as d e L. C. d e A z e v e do p o de mos e n c o n t r a r uma
resposta: "Nó-6, qu~ a-6-6i-6.timo-6 a .toda-6 a-6 ho~a-6 do dia á-6 agE..
nia-6 ~m QU~ -6~ d~ba.t~ o phY-6ico ado~n.tado ~ mui.ta-6 v~z~-6 .tam
bêm a ~-6-6a-6 dÔ~~-6 mo~a~-6 ~~-6ul.tan.t~-6 d~ má ~ducaçã.o ~ d~ má i~
.t~ucçao, pod~mo-6, poi-6, a6o.u.tam~n.t~ diz~~ qu~ a man~i~a po~
QU~ ~n.t~~ nÓ-6 -6~ dá ~ducaçao ~ in-6.t~ucçao conco~~~ d~ uma ma
n~i~a male.6ic.a pa~a o phY-6ico ~ mo~al dM~nvolvJJ'/'I~n.to do
8 I d. i b i d. p. 440.
9 Ibid., p.437.
9 hom~m. "
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A agonia, o corpo doente, a dor moral - o conforto, o rem~dio,
o segredo fácil tirar dal amplos poderes ... at~ divinos, ou
acima destes: o Dr. Wal demar Lages, um outro De Lamare dos anos
50 (deste s~culo), referindo-se a casos graves de rec~m-nasci
dos que praticamente ressuscitam "c.om a .6imp.te..6 a.time.n.taç.ão do
.te.ite. mate.Jtn.o, c.on.ve.nie.n.te.me.n.te. dO.6ado e. admin.i.6tJtado" conclui:
"c.a.6o.6 de..6.6a n.atuJte.za .6ã.o 0.6 que. c.o.toc.ar'1 o mê.dic.o me..6mo pOJt i~
tan.te..6, ac.ima do pode.Jt divin.o pe.Jtan.te. a tão te.me.JtO.6a . .-op..tn...tao
púb.tic.a" (LAGES, 1957, p.31). Não poderia haver, principalmente
no Brasil do s~culo passado, figura mais adequada para penetrar
e fazer penetrar na famllia as normas de um programa amplo e
profundo para gerir a vida dos indivlduos com a finalidade de
torná-los uteis ao Estado. O alvo principal será a criança e
o rebote, a mulher que, aliada e apoiada pelo m~dico será peça
fundamental nesse processo.
Mas ela tinha que ser educada. At~ fins do s~culo XIX a
mulher brasileira era exemplo de ignorância e futilidade e sem
condições morais e intelectuais para o exerclcio da mais nobre
das funções: educar, formar cidadãos para a Pátria. A criança
era mimada, não educada. Preocupada tão somente com as -apare.!:!.
cias e dotes físicos, entregue ã vaidade, aos ditames da moda
e costumes europeus que invadiram o Brasil no s~culo XIX a mu
1her deixava de ser "mãi c.omo e..t.ta de.ve.Jr.ia .6e.Jt" para ser "ap!
n.a.6 uma boa mu.the.Jt, ê. ve.Jtdade., ma.6 uma mu.the.Jt n.u.t.ta, e.m c.ujo ~
piJtito, a e.duc.aç.ão e. in..6tJtuc.ç.ão n.e.n.hum .6e.n.tido têm.,,10 Uma mu
1her despreocupada em relação ã educação do filho a quem nao
10 Ibid., p.427.
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mais ensinava "a ,6~n mod~,6to, po..t-ido, att~nc-i060, .rtte.nto
con,6~..tho,6 do,6 pnov~ctO,6 ~ a ouv-in cont~zm~nt~". 11 Filho que
ao,6
aos
19 anos incompletos já era decrépito, uma "nu2na canco m-ida" ,
que vinha do ",6~-io da ama ~,6cnava, da mã-i -indo..t~nt~, -incu..tta ~
da mucama -immona..t". Faltavam-lhe noções como aquelas a que se
referiu José Verlssimo, em seu livro "A Educação Nac-iona..t", es
crito em 1890: "Educan b~m urna cn-iança ê d-i66-ic-i..túna tan~6a.
t um tnaba..tho d~ todo,6 0,6 d-ia,6, d~ todo,6 0,6 -in,6tant~,6; tnaba
..tho d~ ob,6 ~nvação, d~ ~xp~n-iê.nc-ia, d~ p~n~tnação, d~ pau~nua.
N~nhum ponv~ntuna ~x-ig~ ma-i,6 cont-inu-idad~ ~ ,6~qu~nc-ia, ~ corno
~m g~na..t ,6omo,6 -incapaz~,6 d~,6,6a,6 qua..t-idad~,6, c~do cançamo,6 a,6
pn-im~-ina,6 ~ c~nta,6 d-i66-icu..tdad~,6 ~ n~p~t-imo,6 a 6na,6~ hab-itua..t:
O . o ( 00) . -FI 12 A d . . ~.{.xa ~,6tan, a ~,6CO-La ou o CO-L-L~g-io t~ ~n,6.{.nana. gu a v2.
são do jornalista e crltico literário (que tambem foi àiretor
da instrução pública do Pará e posteriormente do Colegio de Pe
dro 11) que em 1890 já se inteirava muito bem do quanto ia p~
lo mundo (havia já estado na Europa duas vezes, participandode
congressos literários e cientlficos) e do quanto a criança era
importante ...
Era preciso que a mulher fosse antes de tudo mae, mas mã~
comp~t~nt~. Era preciso que a mulher fosse ~ducadona. LUls
Correia de Azevedo escreveu: "V~-ixa-i 0,6 anmaz~n,6 da,6 6anta,6t~
ca,6 n~c~,6,6-idad~,6 do ..tuxo qu~ atnoph-ia ou mata; d~-ixa-i 0,6 a..tca
çan~,6 da,6 hanmon-ia,6 ,6~n,6ua-i,6, do,6 capn-icho,6 vo..tuptu0,60,6 ~ v-i,6;
11 Id. Ibid. p.428.
12 VERTsSIMO, Jose. Op. cito
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neve~t~ a muthen da ~~mpt~~~dade de ~eu pudon, da~ ~one~ de
~ua~ gnaça~ natunae~ e de toda~ a~ hanmon~a~ do ~ent~mento que
Deo~ the deu ao 6onma-ta e tene~~ a mã~, a mã~ ~omo deve ~en,
a edu~adona pn~me~na e ne~e~~an~a, a ~anta am~ga que ~eva a
~n~ança da 6am~t~a ~ e~~ota e de~ta ao mundo do~ ~eu~ ~emethan
te~ ~om ~n~ten~o e d~gn~dade". 13 Era preci so estabel ecer que
~en mãe era missão, destino, dom natural da mulher, que os re
cursos artificiais da moda e do luxo e, principalmente, a edu
caça0 dada, na época, ã menina, faziam esquecer. Já em 1832 o
Padre Gama criticava-a severamente. Desde cedo, mal começava
a falar a menina, faziam-se-lhe todas as vontades, atendiam-se-lhe
todos os caprichos e cercava-se-lhe tão somente de objetos de
va i da de. A menina crescia valorizando as aparências,as qu~
lidades do corpo. Em tenra idade era servida em tudo pelas e~
cravas e mucamas, chegando ã idade adulta entregue ã mais com
pleta indolência. Empenhava-se em agradar aos homens já aos
11 anos de idade, usando para isso de todos os recursos da mo
da (francesa especialmente) dos gestos e dos olhares, porque
tinha que arranjar marido, idéia inculcada na sua cabeça desde
pequena. A leitura de novelas europeías já enlouqueciam o Pa
dre Gama na primeira metade do século; novelas que, segundo o
jornalista e professor, viravam a cabeça da menina-moça que se
enchia então de fantasias em relação ao sexo oposto, acredita~
do poder encontrar na vida real amores tais como encontrava em
suas leituras ("at~ ~e en.6~na ~omo huma 6~tha ha de ~ttud~n a
v~g~tan~~a do~ pa~.6 e ~a~n~6~~an-~e ao ~eu amante; at~ até mu~
13 AZEVEDO, L.C. de. Op. cito p.434-5.
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ta.6 veze.6 v-<- bigodeada a .6anc.ta 6ide.tidade. c.onjuga.t!", escreveu
o Padre Gama em "O Cafl.apuc.eifl.o" de 20 de maio de 1837, n9 10,
indignado ... ). Criticava também o Padre Gama outras coisas
que resultavam da má educação da menina no século passado: o
costume das mulheres de passar quase todo o tempo na janela ou
na varanda, trocando os vestidos várias vezes e cuidando ap~
nas em ver e ser vista; o namoro nos teatros e Igrejas (rap~
zes e moças a trocarem olhares, faziam espetáculos e missas -a
parte - "Há .6ujeitinha QUe. e.6tá de joe.tho.6 c.om a.6 mão.6 pO.6ta.6
0.6 beic.inho.6 a movefl.em-.6e, c.omo de Quem fl.e.za, e e.ntfl.etanto ne.6
.6a pO.6tufl.a tão .6ubmi.6.6a e devota e.6tá 6i.tada em hum gfl.ande na
mofl.o; pofl.Que 0.6 o.tho.6 Que Qua.6i .6empfl.e 6a.t.tão vefl.dade, -nao
tifl.ão de c.ima de hum pefl.a.tvi.tho QUe. a.ti e.6tá afl.fl.imado, a.6 ve.zu
- mo ate c.om a.6 c.O.6ta.6 pafl.a o S. Sac.fl.amento, 6azendo tfl.egeito.6 e
gatimanho.6 digno.6 de todo.6 0.6 c.a.6tigo.6 da Po.tic.ia" escreveu
o Padre Gama no seu jornal de 14 de julho de 1832, n9 12); a
submissão da mulher ã moda (" ... a.6 .6enhofl.ita.6 ante.6 Quefl.em ex
pofl.-.6e a mOfl.fl.efl. tizic.a.6, c.aQuetic.a.6, mafl.a.6mada.6, apop.tetic.a.6,
a.66ixiada.6, etc., do Que .tafl.gafl.em pOfl. mão hum atavio da moda,
Que .the.6 e.6tfl.eita a.6 c.intUfl.a.6 e .6em o Qua.t de.ixafl.ião de 6ic.afl.
be.m pintipafl.ada.6 e gafl.bo.6a.6; e não he i.6to .6efl. mafl.tyfl. da.6 mo
d a.6 ?" - em 26 d e a b r i 1 de 1 8 3 7, n 9 3); v í c i os, e n f i m , p r o d u z i
dos pela educação, pois a menina crescia com a idéia de que vi
nha ao mundo para agradar ao homem.
Essa mulher, assim educada na infância, nao se prepar~
va para ser mae. Na puberdade teria o útero afetado pelos ma
1es dos romances, dos enfeites, da sensualidade (a mulher his I I f
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terica) - nessa epoca, especialmente, a educação cometia "cri
minoso atentado contra a futura mulher"que Luís Correia de Aze
vedo designava como um "c.omple.xo de. de.6e..-Ltof.J H• Clamava: "No
me..-Lo de.f.Jf.Ja g~ande. .-Lnd.-L66e.~e.nça po~ tudo que. ê f.J~~.-LO e. ê g~ave.,
não paf.Jf.Je. atte.ntado tão g~ande. f.Je.m o ma.-Lf.J f.Jole.mne. p~ote.f.Jto de.
toda a c.laf.Jf.Je. mêd.-Lc.a, que. af.Jf.J.-Lf.Jte. d.-La~.-Lame.nte. a e.f.Jf.Ja de.c.ompof.Ji
ção le.nta, maf.J c.ontZnua, da .-Lnte.g~.-Ldade. da 6 am.-L l.-L a , onde. a mu
lhe.~ ~ a e.f.Jpe.~ança, a 6ê, o amo~.,,14
Era mister produzir a mulher mae, a mulher educadora;era
mister emacipá-la, para isso, dos enfeites, das exteriori dades;
emancipá-la do homem a cujo agrado se destinava; era mister edu
cá-la - e seu primeiro educador foi o medico.
Nada escapou. Regras sobre a higienização das casas, re
gras sobre os cuidados com a criança: vestuário, alimentação,
e d u c a ç ã o; r e g r as sob r e a v i d a a o a r 1 i v r e, re g r as sob r e a f o r
mação moral, enfim, não faltaram regras. O medico ensinava a
viver; a mulher aprendia e educava os filhos. Frimeira recomen
dação: livrá-los da influincia malefica da mãe-preta ou mucama.
O leite da escrava era viciado e causava doenças 'na criança.
Seus costumes eram deploráveis e comprometia a moralidade da
criança. Sua ignoráncia era completa e punha em risco a vida
da criança. A prática da amamentação por escrava era apontada
como uma das principais causas da mortalidade infantil (questão
que s5 preocupou a classe medica brasileira a partir, tambem,
14 AZEVEDO, Luís Correia de. "A Muth~ Pe.Mnte. o Mêd-<-c.o". Annais Brasilienses de Medicina. Rio de Janeiro, agosto, 1872, tomo XXIV, nQ 3, p.102
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do s~culo passado). Na Academia Imperial de Medicina, em ses
são de 18 de junho de 1846, as amas foram o alvo privilegiado
de ataques, na discussão sobre as causas da mortalidade das
crianças. 15 Ataques aos escravos não faltaram mesmo fora do
imbito da medicina. Jos~ Bonificio, em sua "Repne~entaç~o -a
A~~emb-tê.ia Gelta-t Con~tituinte", em 1823, perguntou: "que educ.~
ç~o podem telt a~ 6amZ-tia~ que ~e ~envem c.om e.ó~e~ rn6e-tiz~ ~em
honlta, ~em Ite-tigi~o? Que ~e ~envem c.om a~ e~c.ltava~, ,que ~e
plto~tituem ao pltimeilto que a~ pnoc.una? Tudo ~e c.ompen~a na vi
da. Nô~ tynannizamo~ o~ e~c.ltavo~ e o~ Iteduzimo~ a bltuto~ ani
mae~; e-t-te~ no~ innoc.u-tam toda a ~ua immmona-tidade e todo~ o~
~eu~ vic.io~" (Freyre, 1987, p.350). Em "O Caltapuc.eilto" de 27
de setembro de 1837, n9 47, o Padre Gama escreveu: H ••• Eu e~
tou pelt~uadido que â. e~c.ltavaltia que de~gnaçadamente ~e in.tftod~
2-<.0 entlte nô~, he a c.au~ a pltimoltdia-t da no~~ a pe~~ima educ.aç~o
e em veltdade quae~ ~~o o~ no~~o~ pnimeilto~ me~tne~? S~o ~em d~
vida a A6Itic.ana, que no~ amamentou, que no~ pen~ou e n06 ~ubmi
ni~tltou a~ pltimeilta~ noçõe~, e quanto~ e~c.ltavo~ exi~ti~o na c.a
~a pateltHa em a quadfta do~ no~~o~ pnimeino~ anno~. Maneitta.6, u!!:
guagem, vic.io~, tudo no~ innoc.u-ta e~~a gente ~a6ana, e bltuta-t,
que â. Itu~tic.idade da ~a-tvajenia une a indo-tenc.ia, o de~pejo e
~eltvi-ti~mo pnopltio~ da e~c.ltavid~o. Com pneta~, e pneto~ boçau
e c.om o~ 6i-thinho~ de~te~ vivemo~ de~de que abnimo~ o~ o-tho~;
e c.omo podeftâ. ~en bôa ~ no~~a educ.aç~o?". Nos anos em que r~a
ria Graham esteve no Brasil (1821, 1822 e 18~3) pôde ela teste
15 TEIXEIRA, Jos~ Maria. Causas da Mortalidade das Crianças no Rio de Ja neiro. Memoria apresentada a Imperial Academia de Medlclna, a 6 de Julho de 1886.
I
I I t !
68
munhar o seguinte: numa festa em residência particular no Rio
de Janeiro, estranhou a presença de algumas crianças muito no
vas que, no seu ponto de vista inglês deveriam ãquela hora, es
tar na cama e com suas amas e governantas. Ao fazer tal obser
vaçao a uma das senhoras brasileiras presentes ã festa obteve
a resposta que assim registrou: "Re.-6POVlde.u-me. que. ê.Jtamo-6 be.li
ze.-6 Vle.-6te. pOVltO; ma-6 que. aqui Vlão havia tai-6 pe.-6-6oa-6 e. que. a-6
cJtiaVlça-6 bicaJtiam e.VltJte.gUe.-6 ao cuidado e. ao e.xe.mplo dO-6 e.-6cJta
VO-6, cujO-6 hãbito-6 e.Jtam tão de.pJtavado-6 e. cuja-6 pJtitic~-6 e.Jtam
tão imoJtai-6 que. -6e.Jtia a pe.Jtdição de.la-6; e. que. aque.le.-6 que. amam
-6e.U-6 bilho-6 pJte.ci-6am tê-lo-6 de.baixo da vi-6ta oVlde., -6e. ê. ve.Jtda
de. que. pode.m coJtJte.Jt o pe.Jtigo de. have.Jt e.xce.-6-60 Vle.-6-6e. -6e.Vltido,
ao me.VlO-6 Vlao pode.m apJte.Vlde.Jt Vle.Vlhum mal" (Graham, 1956, p.308).
A mãe preta, a mucama confidente, o moleque companheiro, de r~
p e n t e s e t o r n a v a m f o n t e de de s g r a ç a, e x em p 1 o d e i mo ra 1 i da de, b a U
de vicios; quando o medico entra em cena, essa convivência pa~
sa a ser tratada como uma questão de vida e morte. Era preciso
que a nlãe se responsabilizasse pelos cuidados e pela educação
das crianças. Para assumir, contudo, esse papel, teve tambem
ela que ser, especialmente a partir da segunda metade do secu
lo, alvo de ataques e criticas. O Dr. José Maria Teixeira apo!!.
ta a falta de educação física, moral e intelectual das maes,
como uma das causas da mortalidade infantil e diz, a respeito
de condi ções outras da formação das cri anças: "Pail! e.-6tJtagado-6
pe.la -6yphili-6, pe.lo alcôol, pe.la tube.Jtculo-6e.; mãi-6 e.ducada-6 Vla
e.-6cJtavidão, Vla igVloJtaVlcia e. aVlalphabe.ta-6; Ca-6ame.VltO-6 e.m que. a
hygie.Vle. ê. pO-6te.Jtgada, Vlão -6e. atte.Vlde.Vldo ã-6 idade.-6, COVl-6aVlguiVl~
dade. e. doe.Vlça-6 e.Xi-6te.Vlte.-6, e.i-6 multipla-6 bOVlte.-6 que. e.Vlche.m e.-6
1 t
1 I 1
69
ta Qidade (Rio de JaneinoJ de Qniança~ que, na~Qendo em um e~
tado de 6naqueza digno de lâ~tima, atnave~~am uma vida ~-gen~{
Qwúa e rMh~4âv~. A hygiene da mulhen gnâvida é entne no~ uma
6iQção, e ~eja dito quen na alta, quen na média, quen na baixa
~oQiedade."16 As exigencias da moda (nas classes mais eleva
das), a vergonha ou desespero da mãe solteira (infanticídio),
as paixões violentas das mulheres, o histerismo, a negligencia
na proteção das crianças, a adoção de terapeuticas inconvenien
tes, tambem foram lembrados como fatores causadores de mo rte
nas crianças. Havia muito o que fazer para educar essa mulher,
havia muito o que fazer para se produzir uma mãe de vendade.
Dentre as recomendações feitas pelo Dr. Jose Maria Tei
xeira para diminuir na cidade do Rio de Janeiro a mortalidade
infantil, gostaríamos de ressaltar algumas: li a
eduQação phy~iQa, monal e inteileQtual da~ mulhene~
~e~; ... 6azen diminuin a illegitimidade pon todo~ o~ mUM que
a ~QienQia, a monal e a neligião indiQam; ... 6undan um ho~p~
tal e~peQial pana Qniança~, Qom ~enviço~ médiQo~ Qompletamente
~epanado~ pana alguma~ mole~tia~; ... di~tnibuin gnatuitamente
pequeno~ 6olheto~ Qontendo in~tnuçõe~ hygieniQa~ â~ mãi~ de 6~
milia~ em nelação ao~ neQém- na~ Qido~ e Qniança~. E~te muo tem
dado bon~ ne~ultado~ em muita~ cidade~, ba~tando tnaduzin e
adaptan ao~ no~~o~ habito~ algum do~ muito~ tnabalho~ exi~ten
te~, Qomo o~ de VéQlat, -oonné, Condenau, Sovet, Fon~~agnive~,
etQ ... ; ... negulamentan o ~enviço da~ ama~ de leite e o ~eu
16 TEIXEIRA, J.M. Op. cit., p.497.
r f
I
I 1
I
70
ex~me; ... Q~ea~ a e~peQialidade da hygiene e the~apeutiQa ~n
6anLü; ... e~tuda~ a ~oda do~ expo~to~ (falaremos sobre isso
adiante), 6azendo diminui~ o Qontingente exage~ado que ela 6o~
neQe ~ mo~talidade; ... aQon~elha~ ~emp~e o aleitamento mate~
no ~alva~ ~a~a~ eXQeçõe~, mo~t~ando o~ inQonveniente~ do me~Qe
nâ~io e o~ pe~igo~ do a~ti6iQial; ... Qombate~ pela ~eligião a
Q~ença de que é uma 6eliQidade a mo~te quando ella no~
em ten~a idade." 1 7
Qhega
Como medicina, moral e disciplina se confundiam! A pre~
cupaçao do Or. Jose Maria Teixeira com moralidade não era sin
gular. Estava presente em todos os manifestos e apelos medi
cos da epoca, como temos visto e ainda vamos ver. A última re
comendação nos chama atenção: O Or. Jose Maria Teixeira escre
veu seu livro em 1886 e ainda se refere ã questão da "6 eliQidE;.
de" que era a morte de uma criança nova as ideias e costumes
se misturam, produzem novas formas mas parece que coexistem,d~
rante muito tempo, as velhas e novas maneiras de ser ...
A higienização da familia ia da arquitetura das casas a
vida intima das pessoas. O aleitamento materno e o atendimen
to da criança pela mae constituíram elementos mais fortes da
intervenção medica nas familias. O Or. Francisco de Paula La
zaro Gonçalves, em tese apresentada ã Faculdade de Medicina do
Rio de Janeiro, em 10 de dezembro de 1855, escreveu: "Ninguém
deixa de Qonvi~ que o~ Quidado~ de uma mãi ~ão muito mai~ bem
di~igido~ e a~~iduo~, que de uma ama me~Qen~~ia; o meno~ g~ito
17 Ibid.
I I
I J
71
e.xc.ita a ate.nção de. uma ma-<.. paJta. .6\e.u 6i.f..ho, e. .ero ng e. de. .6ati.6 6~
z~-.f..o c.omo obJtigação e..f...f..a o ac.aJtic.ia e. o toma c.om pJtaze.Jt. A.f..~m
do que. a ama e. me.no.6 c.uidado.6a, abandona muita.6 ve.ze..6 a c.Jtian
ça paJta .6 e. oc.c.upaJt de. outJtO.6 tJta.ba.f..ho.6 e. a ouvi-.f..o c.hoJtaJt apJte.~
.6a-.6e. e.m daJt-.f..he. o .6e.io, .6e.m te.Jt tido te.mpo de. de..6c.an.6aJt, a.6
ve.ze..6 me..6mo .6uando, e. agitada, .6 e.ndo i.6.6o, c.omo ~ .6abido, a
d o - 'o +' , ,,18 A t c.aU.6a e. c.onvu~.6oe..6 e. ma-<...6 mq~e..6~-<..a.6 na.6 c.Jt-<..ança.6. es ra
tegia aqui e a seguinte: toma-se como fato natural aquilo que
se quer produzir ... (a mãe terna, dedicada) e como fato gen~
ralizado aquilo que se quer condenar e extinguir ... (a ama
agitada, e pouco cuidadosa).
o discurso medico transformou o aleitamento materno em
problema nacional. Não amamentar os filhos passou a ser uma
infração às leis da natureza e uma manifestação de desamor.
Amamentar, no "dic.ionâ.Jtio higi~nic.o" passou a ser sinônimo de
amar. Essa nova "gJtamâtic.a" fez nascer na mulher um sentirr.en
to ate então não experienciado, o de culpabilidade, trunfo nas
mãos dos higienistas (e fundamento do pensamento psicanalista).
o amor da mulher pelos filhos, perdeu, no seculo XIX a
liberdaae de livre manifestação ou simplesmente a liberdade de
existir ou não existir. Amar os filhos era agora uma questão
moral e politica que se revestiu de uma lei da natureza pa ra
respaldar-se e fortalecer-se. Amar os filhos era, entretanto,
amã-los segundo um conjunto de normas ditados pelos higieni~
18 GONÇALVES, Francisco de P.L. "Que. Re.gime.n .6e.Jtâ mai.6 c.onve.nie.nte. pMa a CJtiação do.6 Expo.6t0.6 da Santa CMa da tfue.Jtic.ôJtdia?" Tese apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, a 10 de dezembro de 1855, p.25.
72
tas que iam desde a amamentação aos cuidados mais sutis com a
formação moral e intelectual da criança, passando logicamente
pela alimentação rigorosamente orientacia pela medicina higiêni
ca.
o aleitamento materno serviu também a outros objetivos
disciplinadores do poder médico, como o de controlar o tempo
livre da mulher dentro de casa. Para que obtivesse êxito opr~
jeto de uma nova familia, produtora de cidadãos Gteis, era ne
cessãrio que, dentro de casa, a mulher fosse mantida dentro de
certa linha de conduta. Fortalecida pelos novos poderes deque
foi investida, deveria, contudo, nao ultrapassar os limites de
suas obrigações domésticas e não almejar competir com o hpmem+
perseguindo ideais de e,nancipação econômica e social. A fun
çao de amamentar os filhos pela força da sua dignidade (e tam
bém pelo carãter exclusivo de função feminina) substituiria e~
ses ideais, concedendo também ã mulher uma sensação de poder.
Presa ã boca do filho, a mulher ocupava-se de uma nobre função
e nao poria em risco sua moral no convivio com os prazeres ur
banos, como também não concorreria a ocupar o lugar do homem
na produção material e intelectual dentro da sociedade, sob p!
na de esfacelar esse nGcleo familiar que convinha proteger p~
ra que dele pudessem surgir os futuros provedores _do bem so
cial, econômico e politico da nação.
o enaltecimento da função de amamentar serviu também ao
controle da sexualidade feminina. Jurandir Freire Costa1 9 mos
19 COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Familiar. Rio de Janeiro, Graal, 1983.
73
tra (p.263) atraves de citações medicas da epoca, o empenho dos
h i g i e n i s tas e m de s v i a r o p r a z e r g e n i tal da m u 1 h e r p a r a o pf1.a.Z e/L
~exual do ato de amamentar gerado pelos movimentos da boca e
mãozinhas do bebê no seio. "Ve~c.obeJt.:ta" essa nova fonte de pr~
zer, a mulher se absteria por longos períodos da relação sexual
genital. Dessa forma, sua dedicação aos filhos absorveria ate
sua sexualidade e a criança fixava-se como suporte moral, poli
tico e social da família.
o cuidado com os filhos e a amamentação deveriam ser g~
rantidos pela formação de uma nova mulher, inexistente no p~
ríodo colonial mas que emergia agora das "mão~ c.Jt-iadoJta;.," dos
higienistas. A essa nova mulher estava designado o destino de
ser mãe; mãe higiênica, modelo de dedicação e renuncia.
"A mulheJt bJta~-ile-iJta, c.omo a de ou.:tJta qualqueJt ~oc.iedade
da me~ma c.ivilizaç.ão, .:tem de ~ eJt mãi, e~po~a, amiga e c.ompanhei:
Jta do homem, ~ua alliada na luc..:ta da vida, c.JtiadoJta e pJtimeiJta
me~.:tJta de ~e~ 6ilho~, c.on6iden.:te e c.on~elheiJta na.:tuJtal do ~eu
maJtido, guia da ~ua pJtole, dona e JteguladoJta da ec.onomia da. ~ua
c.a~a, c.om .:todJ~ o~ mai~ deveJte~ c.oJtJtela.:tivo~ a c.ada uma de~.:ta~
6unç.õe~. Nem a~ há, ou pode haveJt mai~ d~66ic.ei~, nem mai~ ~m
no pOJt.:tan.:te~ e c.on~-ideJtavei~, e pOJt.:tan.:to mai~ digna~ e mai~
bJte~, e ~e houve~~em de ~eJt de~empenhada~ na peJt6e-iç.ão 4equ~
.:tê.m _ de que
c.ommum ainda o~ mai~ c.apaze~ c.he6e~ de E~.:tado. Si e~~e ideal,
c.omo .:todo~ o~ ideae~, não pode ~eJt a.:t.:tingido, nem pOJt i~~o de
vemo~ abandona-lo pOJtque, em moJtal, paJta alc.anç.aJtmo~ o m~n~mo
c.ompa.:tivel c.om a impeJt6eiç.ão humana havemo~ de pJte.:tendeJt o ma
\
74
ximo".20 Os medicos nao careciam de melhor aliado! Que mulher
não almejaria identificar-se com essa de quem nos fala Jose V~
rissimo? Acho que atingimos "0 máximo" e ainda o ultrapass~
mos pois vimos, ao longo do nosso seculo a mulher penetrar ca
da vez em maior numero no mercado de trabalho sem deixar de ser
tudo isso que, no seculo passado, formava o ideal do escritor.
Hoje, alem de mãe, esposa, amiga, companheira do homem, conse
lheira, aliada, etc, etc, a mulher trabalha fora A sua ca
pacidade para chefe de Estado está comprovada ... !
Para Jose Verissimo, a instrução da mulher não precisava
ser muito ampla mas, o suficiente para o digno exercicio de
suas funções, mesmo porque sua inteligência (inferior ã do ho
mem, na opinião do autor) não possibilitaria grandes avanços.
Seis anos de estudo, da puberdade ã juventude seriam suficien
tes pa ra aprender o i ndi spensável "ao exeJtc.Zc.io Jtac.ional e pJt~
veLto-6o da -6ua 6unc.ç.ão -6oc.ial. ,,21
O Or. Luis Correia de Azevedo, já clamara, em 1872 por
uma mulher instruida, unica capaz de dar a seus filhos uma edu
caça0 completa.
Sobre a instrução da mulher cujo destino era ser mae e
governar o lar, escreveu o Padre Gama a 5 de maio de 1832: "Hwna
-6 enhoJta c.a-6ada que pen-6a e educ.a deligentemente -6 eU-6 6ilhinh0-6,
que ec.c.onomi-6a a-6 di-6peza-6, que c.uida dO-6 aJtJtanjo-6 da c.a-6a, he
uma pe-6-6oa muito inteJte-6-6ante, muito Jte-6peitavel, he a mulheJt
20 VERTsSIMO, J. O "t 153 p. C1 ., p. .
21 Ibid., p.155.
t
75
6o~te da Sag~ada E~Q~iptu~a. A ~oltei~a ap~enda ~ua muziQa,t~
que e Qante, ~aiba ainda mai~ Qoze~, bo~da~ e 6aze~ tO~Qida~;
in~t~ua-~e p~inQipalmente no~ deve~e~ da ~eligião; ap~enda a
t~aduzi~ o F~anQ~z (não pa~a ~e ent~ega~ â leitu~a da~ QO~upt~
ta~ novella~), o Italiano; e~tude a G~amatiQa da ~ua lingoa p~
~a não Qahi~ em SoleQi~mo~ e Ba~ba~i~mo~; e~tude tambem, ~e p~
de~ a Geog~aphia e a Hi~to~ia, e pa~a que mai~? Philo~ophia~ e
PolitiQa~ não lhe pe~tenQem; po~que Veo~ no~ liv~e de mulhe~e~
BaQha~ella~.» A mulher mãe ji tinha, na vida de dedicação ao
marido e os filhos os seus limites, bem estabelecidos, mas a
mulher solteira tambeffi havia de ser mantida sob controle sob
pena de se relativizar o papel da mulher na sociedade!
Referimo-nos acima ao problema da arquitetura das casas,
questão que não escapou ã crítica medica. Em 1872, o Dr. Luís
C o r re i a d e A z e v e d o i n d i g n a va - s e c o rll a s p e s sim a s c o n d i ç õ e s de
higiene nas habitações. Sua preocupação era com a criança que
crescia dentro de habitações fetidas, sem circulação de ar,umi
das, f e c h a das e h a bit a das p o r m i a s mas. » E m um a m â Q a~ a , v i Qi a
da a ~aude da Q~iança, debilitado~ o~ in~t~umento~ do de~envol
vimento o~ganiQo, Qomo ~e pode~á e~pe~a~ uma mOQidade
ta, 6o~te, ene~giQa, uma ~aça, en6im, que ~aiba Qonduzi~ a ~e~
de~tino~ g~andio~ o~ do po~vi~ e~te I mp e~io?» 2 2 A fo rma ção do
cidadão util ao país já deveria começar pela arquitetura das
casas que não escapou ã perspicácia medica no seu empenho, no
d e c o r r e r dos e cu 1 o p a s s a do, em p r o d u z i rum n o vo o b j e t o - a c ri a n
ça.
22 AZEVEDO, L.C. de. »COnQO~eM ... , p.425.
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J , ! I I
1 I I
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76
A educação da mulher, as idéias sobre a maternidade, a
critica da arquitetura das casas, do vestuirio, dos hibitos,
etc, tudo enfim que constituia o discurso higiênico no século
passado tinha um alvo certo: a criança. Ela surgia daí mesmo
desse encontro da medicina com a família e havia de ser tradu
zida como "objeto n.aA:unal". Sobre esse objeto estitico um sa
ber seri constituído e relações de poder serão investidas de
modo que áas crianças se extrairi o miximo. As crianças, que
agora serão referidas a uma idéia do que é a cnian.ça, deverão
ser, sobretudo, úteis. Será, inicialmente, dentro dos limites
da família que se concentrarão as estratégias para pro t e g e r,
conhecer e controlar as crianças. Posteriormente"o tnabalho"
será repartido com outras instituições, dentre elas a escola,
de que nos ocuparemos mais tarde.
Na família, como vimos, a aliança do médico com a mãe foi
fundamental para que fosse eficaz a formação e disciplinariz~
ção da criança. O corpo da criança torna-se conpo po.t2ti..co. Seu
desenvolvimento, sua educação e saúde tornam-se problema de e~
tado, porque os laços da família rompiam para dar lugar a uma
formação social controlada pelo Estado, mantida a família como
lugar de passagem de todas as idéias "compatZvei.6" com o contr~
1 e e d i s c i p 1 i n a r i z a ç ã o dos i n d i v í duo s . O s c u i da dos c o m a c ri a n
ça deixam de ser uma questão pessoal, 1 imitada aos compromi~
sos com a família para ser uma questão de ne.6pon..6abilidade .60
No foro da família, os sentimentos alimentados em relação
a criança passam a ser traduzidos dos cuidados com o seu corpo
I
77
e surge a preocupaçao com o certo e o errado, cujos critérios
consistiam na obediência às normas da higiene.
A familia é reestruturada em novos termos e emerge umsen
timento até então não experimentado, o da privacidade, o senti
mento da intimidade da relação pai-mãe-filho. Mais do que so
bre os sentimentos interindividuais a familia colonial se unia
em torno do seu patrimônio cujo representante máximo era a fi
gura paterna. Retraia-se do convivio social, vivendo no mundo
fechado dos seus lares populosos, abastecida o suficiente para
dispensar os contatos com o exterior. No século XIX, abrem-se
as casas brasileiras; promovem-se festas e recepções. As pe~
soas aparecem em sua individualidade. Expõem suas qualidades.
A mulher se destaca por seu poder de organização e os filhos
por seu poder de sedução, pela fineza dos seus gestos, por sua
educação. As habilidades e os talentos pessoais, contudo, nao
haveriaw. de servir tão somente às estrategias familiares para
conseguir, para os filhos, casamentos vantajosos; haveriam de
servir, sim, cada vez mais, ao fortalecimento do sistema cap~
talista que penetrava na sociedade brasileira. Dentro de casa
a criança se torna o maior investimento da familia e passa a
ser controlada fisica, intelectual e moralmente ao longo de to
do o seu desenvolvimento. Passa a ter uma história e também a
ser enfocada do ponto de vista psicológico.
As experiências da infância passaram a ser determinantes
na formação moral e intelectual da criança. A má amamentação,
a alimentação precária, a falta de exercicio, o vestuário ina
dequado, a experiência de castigos fisicos ou falta de amor p~
I I
78
terno e materno, os medos, contribuiriam para a formação de um
adulto física e moralmente comprometido. De outro lado, oadul
to equilibrado, com boa formação intelectual e moral seria fru
to de uma infância feliz.
Não so a infância feliz, porem, garantiria a vida nacio
na 1 ... El a ti nha que ser di.6c.ipl..üta.da. A intervenção médi ca
na família não se restringiu às questões da saude mas também
tratava de questões de ordem disciplinar, delineando não ap~
nas o modelo do corpo saudável mas também o modelo do
disciplinado. ~ educação doméstica brasileira faltava
corpo
disci
plina. [mbora fosse muitas vezes severamente castigada,a crian
ça nao era vigiada, controlada. Havia certo desleixo em rela
çao a sua educação. Era punida quando causava danos mas fora
disso vivia solta (a menina não tinha a mesma liberdade dos me
ninos, como vimos, mas o controle sobre ela tinha o caráter de
pura restrição que visava a um objetivo muito claro que era
guardar a virgindade para o casamento). Padre Gama criticava
severamente aqueles pais desleixado em relação a educação dos
filhos. Meninos a brincar pelos telhados, pelas ruas, com to
do e qualquer tipo de companhia, frequentando tavernas para j~
gar a dinheiro, botequins, não eram repreendidos, nem sequer
provocavam algum abalo. No campo, desde cedo recebiam sua fa
quinha de ponta divertindo-se com ela a trucidar aves num exer
cício constante de matança e crueldade.
Era preciso disciplinar a criança. "No pOYl.:to de. vi.6:ta.6o
c.ial, que. mai.6 Yl.O.6 oc.c.upa Yl.e..6:te. :t~abalho, ê u~ge.Yl.:te. Yl.O B~azil
I I f
I J
I i I
I I 1 I
I I j
79
de eduQação, e~tabeleQendo a di~Qiplina dome~tiQa e a e~Qolan,
de~de o en~ino pnimánio ao ~upenion, Qomo o indi~pen~ável tinQ
Qinio pana a di~Q~plina ~oQial, ba~e da ~egunança do E~tado e
laço da ~olidaniedade naQional.,,23 Estado, solidariedade na
cional - novo sentido para a educação, novos objetivos: educar
não mais para a família, para o desempenho de funções clarame~
te definidas no sentido da reprodução dos bens e costumes fami
liares; educar, sim, para o Estado, para a Nação, de modo que
a disciplina se tornou fundamental, a disciplina como a vê Fou
cault, inserida dentro de um programa, guiada por princípios,
a disciplina do cidadão.
Nada escaparia a esse trabalho minucioso: "0 menino bna
~ileino, em Qon~equenQia do Qlima e do~ aQéidente~ da~ lOQali
dade~ em que habita, tem de ~eguin uma hyggiene á pante, ~Ó pa
na elle 6onmulada. No~~a~ Qniança~ não podem e não devem ~en
Qniada~ nem á ingleza, nem á allemã, nem a nu~~a. Filho~ de um
tnópiQo quente, de Qlima ameni~~imo, onde a vida vegetativa ê
~upenabundante e enengiQa, devem ~en guiado~ de uma man~ p~
tiQulan e toda no~~a. O ~eu ve~tuanio deve apena~ n~guandan-lhe
o Qonpo da~ vaniedade~ da tempenatuna. Seu~ alimento~ devem~en
de 6áQil dige~tão e Qom máxima negulanidade pnopinado~. Seu~
ongão~ devem e~tan ~ujeito~ a um exenQiQio dianio nazoavel. De
vemo~ dan-lhe bom an pana ne~pinan, e evitan tudo que po~~aamQ
leQen-lhe o Qonpo. A~ exigenQia~ QapniQho~a~ daquella~ idade~
devem ~en Quidado~amente modi6iQada~.
23 VERrSSIMO, J. Op. cit., p.57-8.
1
I j
1
80
0.6 .6e.u.6 in..6:tin.c.:to.6 de.ve.;i1 .6e.J1. a:t:te.n.:tame.n.:te. vigiado.6 e. guiE:
do.6, modi6ic.an.do-lhe..6 a.6 g~aduaç~e..6 mai.6 ou me.n.o.6 ac.e.i:tave.i.6
o u d e..6 c. ui p a v e.i.6 •
Ne..6.6a idade., be.m ac.on..6e.lhada.6, pode.~e.mo.6 n.O.6
ma~-lhe..6, mui:ta.6 ve.ze..6, vic.io.6 he.~e.dita~io.6, dan.do-lhe..6 c.o n.v e.
n.ie.n.:te..6 de..6vio.6 ou .6ubme.:t:te.n.do-o.6 a uma c.u~a .6e.n..6a:ta.
Tudo i.6:to ê p~a:tic.ave.l; :tudo i.6:to de.ve. .6e.~ 6e.i:to po~que.
.6e. :t~a:ta da ga~an.:tia da vida n.ac.ion.al,,24 , escreveu o
Luis Correia de Azevedo, que deixaria qualquer criança
medico
"p~o!!.
:ta" para servir ã Pátria com presteza e competência máximas.
A educação fisica passou a ser reclamada por todos que
se ocupavam da educação, vista como complemento indispensável
da educação espiritual (intelectual e moral). O Estado precl
sava de homem "bom, in..6:t~uldo e. 60~:te.".25 A educação fisica,
guiada pelas regras da higiene na verdade deveria começar na
vida intra-uterina atraves dos procedimentos da mãe durante o
periodo de gestação, para seguir depois com os minuciosos cui
dados com o corpo da criança recem-nascida, cuidados relativos
ã alimentação, vestuário, ambiente (objetos, sons, cores que
cercam a criança) e mais tarde com os exercicios corporais ori
entados por pais e mestres (em casa e na escola): "C~e.e.mo.6 n.a
n.o.6.6a moc.idade. :tão 6~ac.a, :tão e..6:tiolada po~ uma pie.ga.6 li:te.~a
:tic.e. p~e.c.oc.e. ~ pe.lo p~e.ma:tu~o e.~o:ti.6mo, i.6.6O que. um e..6c.~ip:to~
24 AZEVEDO, L.C. de. Concorrerá ... Op. cit., p.435.
25 VERfSSIMO, J. Op. cit., p.68.
81
6fL anc.e.z, tfLatando e..6.6 e..6 a.6.6umpto.6, c.hama "mate.fLia de. e.nthu.6ia/~
mo". Inc.ite.mo.6 ne..t.ta e..6.6e..6 afLbofLe..6 da .tuc.ta phlj.6ic.a, a ve.fL.6e.
.the. ge.fLamO.6 o e.nthu.6ia.6mo que. .the. 6a.tta na.6 .tuc.ta.6 inte..t.te.c.
tuae..6 e. mOfLae..6. Quanto.6 pe.dagogi.6ta.6 e. phlj.6io.togi.6ta.6 têm e..6
tudado e..6ta.6 que..6tõe..6 .6ão ac.c.ofLde..6 e.m fLe.c.onhe.c.e.fL a in6.tuênc.ia
pode.fLO.6a da e.duc.ação phlj.6ic.a .60bfLe. a inte..t.tige.nc.ia, .60bfLe. o c.a
26 fLate.fL, .60bfLe. a mOfLa.t" ,escreveu Jose Veríssimo no seu "A Edu
c.ação Nac.iona.t". Hoje a inteligência, o caráter e a moral dos
brasileiros devem ser exemplares ... O cultivo do corpo e ".te.i".
Multiplicaram-se para alem dos limites da casa e da escola as
"in.6tituiçõe..6" do corpo que ocupam na vida dos indivíduos (pri..!!
cipalmente crianças) um lugar tão importante quanto qualquero~
tra atavidade formativa. Muitos que não se exercitam dentro
de academias (nesse caso adultos) consagram parte do seu tempo
à corrida pelas ruas, praças, parques, ou calçadões. Vinicius
de Moraes, um dia, conversando com Antonio Maria em seu apart~
mento, em Ipanema, viu passar um desses "e.ntu.6ia.6ta.6". Disse:
"Me.u MafLia, e.u qUe.fLO 6aze.fL uma pfLome..6.6a: nunc.a e.m minha vida
6aze.fL um ge..6to inúti.t".* Corre-se para lugar nenhum, pula-se
para nao alcançar nada ... mas a disciplina do corpo ... Nada
melhor do que, para um espírito educado, um corpo disciplin~
do. Há que se garantir a obediência e submissão de todas as
formas, cercando por todos os lados, disciplinando corpo e es
pírito. Hoje, desde cedo encaminham-se as crianças às mais di
versas atividades: natação, futebol, voleibol, ginástica olím
pica, judô, bale, "jazz" (que de jazz não tem nada) e tantas
26 Ibid., p.8l.
* Passagem relatada por Sergio Cabral a Gastão de Holanda.
82
outras. Quantas crianças nao têm tempo sequer para dizer se
- ? gostam ou nao .... E o pior, muitas vezes são elas que pedem
aos pais que as coloquem. Como conseguir ser diferente a nao
ser quando a pobreza é o real empecilho? Vitória da nossa so
ciedade disciplinar: adultos e crianças cultivam o corpo porque
desejam o desenvolvimento flsico pleno, o domínio dos ge~
tos e dos movimentos, a capacidade de defesa, a beleza, os p~
drões, as medidas, os recordes levam ao domlnio sobre o próprio
corpo mascarando a perda da liberdade do esplrito! Como passar
ao largo das academias e inventar um outro corpo fora dos p~
drões da educação flsica? Adultos e crianças parecem fadados
ã busca incessante do corpo ideal. Como força especial que é,
a criança hoje é o principal alvo desse trabalho disciplinar
que produz precocemente um sujeito obediente e util.
Não foi ã toa que a educação física começou a ser enalt~
cida no momento em que o corpo da criança foi investido, a pa~
tir da segunda metade do século passado, por relações de poder
que objetivavam o seu controle, proteção e vigilância para trans
formá-lo em "6oJtç.a pJtodut-tva".
Na infância, porém, o essencial e que a criança fosse so
bretudo ~Jt-ta~ç.a, com sua individualidade marcada. "Qua~do a
~Jt-ta~ç.a poJtêm, 6ôJt apath-t~a, -t~dole~te ~umpJte de~e~volveJt-lhe
a vo~tade, a qual ~ão ê ~-t~ão uma ma~e-tJta de ~eJt da
-t~~-tta~do-a e pJto~uJta~do de~a6-taJt ~ella o ~e~t-tme~to do bJt-to,
da d-tg~-tdade e da ho~Jta. Ella ~ão queJt bJt-t~~aJt, -t~~-ttae-a a
bJt-t~~aJt, mo~tJtae-lhe a~ outJta~ que bJt-t~~am, bJt-t~~ae ~om ella,
83
6aze~-lhe ~ent~n o attnact~vo do~ bn~nquedo~, anna~tae-a bnan
damente e pen~ua~~vamente a bn~ncan.,,27
As palavras de José Verissimo são perfeitas. Ser criança
nao e mais que obrigação ... ; tem que brincar, tem que ser igual
as outras. Não é assim que nossas escolas funcionam? E por i~
so que dizemos: quando afinal atentaram para a criança, pa ra
descobri-la, conhecê-la, protegê-la, educá-la, enfim, fazer d~
la um cidadão, quando quiseram convencer de que afinal seria
compreendida e respeitada, aprisionaram-na e montaram-lhe uma
armadura - os direitos da criança ... (ou suas obrigações).
T a r e f a tão a m p 1 a e tão p r o f u n d a c o m o a d e e d u c a r a s c ri a n
ças não pode ser levada a cabo isoladamente pela familia, ou
pela escola mas, cabe também a "toda~ a~ 6onç.a~ e. ongao~ ~o
c~ae~: ã 6 am~l~a, ã~ Re.l~g~õ e.~, ao Go venno, ã Pol~t~ca, ã Sue~
c~a, ã Ante., ã L~tenatuna",28 como mais uma vez coloca com pe~
feição José Veríssimo, profundo defensor da sociedade discipli
nar onde todas as práticas se articulam para aumentar sua com
petência.
3. A Cn~anç.a Pobne.
E a criança pobre? O discurso dos médicos e educadores
se dirigiam a ela também? Parece que não; porque por trás dos
discursos está um modelo de família abastada (provedora dos
futuros mandantes da nação) que pouco ou nada tem a ver com a
27 I b i d., p. 54 . 28 Ibid.
84
familia da criança pobre. Jacques Donzelot já nos desperta p~
ra o fato de que o poder usa estratégias diferentes para o co~
trole das famflias burguesas e populares. Procurarei aqui apo~
tar para certos aspectos que especificam no Brasil a estratégia
de controle, proteção e vigilância da criança pobre.
No tempo da escravidão, ela era escrava ou filha de es
cravos emancipados ou imigrantes sem sorte, neste caso, habi
tando cortiços pelas periferias das cidades, em condições as
mais precárias para sua sobrevivência e formação. As péssimas
condições de higiene conferiam-lhe um lugar no discurso médico
porque eram ameaça constante ã saude publica. Aliás, parece
que todas as estratégias utilizadas em direção as classes popu
lares são para o bem da comunidade, da sociedade, raramente con
vertendo para uma mudança real em sua condição. O importante
e que as medidas tomadas tenham sempre como efeito a resolução
dos problemas que afetam a sociedade como um todo, como a amea
ça a saude publica e o perigo de convulções sociais.
Por dois séculos no Brasil as crianças pobres abandona
das dependiam da caridaàe do povo. Algumas almás "c.aJc.ido-6a-6"
recolhiam-nas para fazer delas escravos. Algumas crianças fi
cavam em praças e ruas, expostas ao tempo e aos animais. Somen
te em 1693 El Rei ordenou que o governo as assistisse embora
so em 1738 tenha sido fundada, por Romão de Mattos Duarte, em
14 de janeiro, uma casa especialmente designada para o
mento das crianças abandonadas: o Hospital dos Expostos.
atendi
As
crianças eram, contudo, atendidas e alimentadas por amas em es
tado de miséria ou escravidão que muitas vezes maltratavam-nas
85
para serem despedidas ou fugiam para procurar trabalho junto a
particulares. Muitas escravas eram enviadas para o Hospital
dos Expostos por castigo dos seus senhores. Esse hospital era
popularmente conhecido como a Roda porque a criança que se qu~
ria "e.XPOfL" era colocada numa roda, no lugar de uma janela, com
metade para o lado da rua e metade para o lado de dentro, de
forma que, com uma meia-volta, a criança passava para dentro da
instituição e a pessoa que a depositava mantinha-se no anonima
to. Com pouqulssima chance de sobreviver (o lndice de mortali
dade era altlssimo), as crianças eram deixadas na Roda para se
rem alimentadas e cuidadas. Posteriormente eram dadas. As mu
latas muitas vezes salam para serem escravas. As brancas tinham
um futuro incerto pela frente. As pessoas que se propunham a
levar as crianças recebiam pensões para sua alimentação, tão
pequenas porem, que, em condições de pobreza, dificilmente con
seguiam manter a criança viva.
Sobre as crianças "e.xp0.6ta.6", escreveu Fletcher: "Qua.t
.6e.fLia a ~ondição mOfLa.t ou 0.6 .6e.ntime.nto.6 humano.6 de..6.6a.6 nume.fLo
.6a.6 pe..6.6oa.6 que. de..tibe.fLadame.nte. ~ontfLibue.m pafLa e.XpOfL a vida
da.6 ~fLiança.6? Uma ~ifL~Un.6tân~ia pe.~u.tiafL .tigada a e..6.6e. e..6tado
de. ~oi.6a.6 ê o 6ato a.te.gado de. que. muito.6 do.6 e.xpO.6tO.6 .6ão pfL~
du~to.6 da.6 mu.the.fLe..6 e..6 ~fLava.6, ~uj 0.6 .6 e.nhofLe..6, não de..6 e.j ando 0.6
abofLfLe.~ime.nto.6 e. a.6 de..6pe..6a.6 da manute.nção da.6 ~fLiança.6 ou de.
.6e.jando o .6e.fLviço da.6 mãe..6 ~omo ama.6 de. .te.ite., e.xige.m que. a.6
~fLiança.6 .6e.jam e.nviada.6 ã 'Enge.itafLia', onde., .6i ~on.6e.gue.m .60
bfLe.vive.fL, .6e.fLão .tiVfLe..6."
86
o que era porem a liberdade do pobre? A "Le..<.. do V e. »tJt e.
L'<"vJte.", promulgada a 28 de setembro de 1871, que livrava da es
cravidão os filhos nascidos dos escravos, a partir daquela da
ta, não garantia a estes uma vida de felicidade. A tais crian
ças nada se ensinava porque nada renderiam no futuro, de forma
que cresciam sem habilidades e despreparados para a vida prQ
fissional. A lei determinava que os senhores mandassem ensi
nar a essas crianças ler e escrever, mas isso nao era c ump ri
do, salvo raríssimas exceçoes. Dessa forma os pequenos pretos
livres tinham pela frente um futuro incerto, que haviam de en
frentar sem saber ler, escrever e trabalhar.
o culto da maternidade, que vimos florescer no seculo XIX,
nas palavras dos medicos e educadores, para a mulher pobre era
desgraça. As condições de pobreza, o desconhecimento do -prQ
prio corpo e dos meto dos contraceptivos, pouco difundidos na
epoca, a exploração sexual de que era vítima e a consequente
ilegitimidade do filho transformavam a maternidade em tragedia.
Tinha que livrar-se do filho. Muitas vezes morria na mao de
leigos que faziam o aborto (os medicos se negavam). Muitas ve
zes matava o filho ao nascer. Outras vezes depositava-o na Ro
da. Eram as opções da pobreza e do desespero, da vergonha e
da culpa, porque ser mae, como vimos, era seu destino na terra
mas ser mãe ilegitima era crime, atentado ã moral, porque ocul
to ã maternidade era orientado para dentro dos limites do casa
mento e da família. Esse drama era comum na vida das mulheres
que tinham emprego domestico. Provenientes do interior, eram
exploradas social e sexualmente. Defloradas pelo patrão eaban
donadas ã própria sorte não conheciam soluções diferentes daqu~
I 1
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t
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87
las a que recorriam em desespero. Socialmente sofriam uma ex
ploração marcada pelos resqulcios da escravidão e pela nova or
dem capitalista que se implantava com todo vigor. A mesma mu
lher a quem era proibida a maternidade, porque ilegltima, era
condenada pelo crime de não querer ser mãe. Por questões mo
rais não podia ser mae mas por questões sociais, eCGn6micas e
pollticas não podia se negar a sê-lo.
A Roda era criticada por alguns que a consideravam um es
tlmulo aos atos ilegltimos, ã promiscuidade sexual. Na opinião
do medico Francisco de Paula L. Gonçalves, entretanto, pelo fa
to de oferecer a solução ao desespero feminino, a Roda não li
vrava a mulher de uma punição sereva: o sofrimento. " onde
n~o h~ ho~pZ~io~, urna vez ~onven~ida da ~ua ghavidez, a moça
n~o tem ~en~o um pahtido a tomah, é o ~on6e~~~-fa
te; outhO tanto não a~onte~e enthe nõ~, n~o é ~omente peno~o o
phimeiho momento, effa é obhigada a o~uftah-~e pOh ~in~o, ~ei~
meze~, e dUhante e~~e tempo que de pezahe~, e f~ghima~ n~o de~
hama a in6efiz, e afém di~~o quanto e pezaho~o o momento da ~e
N- -I- - ,,,29 ao, pOh ~eh~O que nao. Como e moral o discurso medico! Atra
ves da opinião procura lançar verdades! A vehdade da ~ufpa p~
lo crime cometido, a verdade da dor da separação do filho. O
o r. F r a n c i s c o de Pau 1 a p o d i a e s t a r c e r to, c o m o p o d i anã o es ta r ;
mas parece que essas verdades produzidas ficaram e acreditou-se
que eram fatos naturais.
29 GONÇALVES, Francisco de Paula L. Op. cit., p.5.
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88
Os fatores que levavam ã exposição das crianças eram, se
gundo o Or. Francisco de Paula, os seguintes: a concepção fora
do casamento, a imoralidade, a exploração sexual das escravas,
a promiscuidade nos cortiços, o cl ima ("que. tão a.lta.me.nte. a.c.c.e.~
de. o 60go da..6 pa.A..xõe..6 c.oJtpoJta.e..6") e a i mpuni da de dos c ri mes de
infanticídio. "E be.m c.ommum e.ntJte. nó.6 notA..c.A..a.Jte.m 0.6 jOJtna.e..6 o
a.ppa.Jte.c.A..me.nto de. um ou ma.A...6 c.a.da.ve.Jte..6 de. Jte.c.e.m-na..6c.A..do.6 no.6 de.
gJtáo.6 da..6 A..gJte.ja..6, na..6 e..6quA..na..6 da..6 Jtua..6, na..6 pJta.A..a..6 e. a.té, .6e.
nhoJte..6, na. pJta.A..a. da. GlóJtA..a., junto me..6mo do e.dA..6Zc.A..o que. hoje.
.6e.Jtve. pa.Jta. o Jte.c.e.bA..me.nto do.6 e.nge.A..ta.do.6, bOA.., a.A..nda. não há muA..
to te.mpo, e.nc.ontJta.do, não um c.a.da.ve.Jt, ma..6 um Jte.c.e.m-na..6c.A..do a.A..n
da. VA..VO, e. pJte..6te..6 a. .6e.Jt e.ngulA..do pe.la..6 onda..6 a.o e.nc.he.Jt da. ma.
.. - ,,30 'L e. • O Or. Jose Maria Teixeira tambem aponta para a impuni
dade do infanticídio como uma das causas da exposição das crian
ças. Relata no seu livro "Ca.U.6a..6 da. MoJtta.lA..da.de. da..6 CJtA..a.nç.a..6
no RA..o de. Ja.ne.A..Jto" que ouviu de um magistrado de sua epoca ocu
pante do grau mais elevado da hierarquia judiciária, que em qu~
renta anos de tirocínio, havia julgado apenas um crime de in
f t " ~d" 31 an 1C1 10. Não há dúvida de que livrar-se ou matar uma crian
ça ate o seculo passado, no nosso país, não possuía o mesmo
sentido que possui hoje. Para o Or. Jose Maria Teixeira a exis
tencia da Roda favorecia o infanticídio e o abandono pois ti
nha conhecimento de que estes tendiam a diminuir nos lugares
onde a Roda havia sido suprimida. Como vemos a Roda era uma
questão pOlemica, como e hoje todo tipo de instituição em que
30 Ibid., p.21.
31 TEIXEIRA, J.M. Op. cit., p.385.
I
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!
1 1
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89
as crianças pobres sao "guaILdada.6". o problema continua
Quanto ã questão do infanticidio, tornou-se tanto mais grave,
tanto mais criminoso, quanto mais se fortaleceram as id~ias de
que a criança era o maior bem de investimento da nação. Tamb~m
concorriam para a exposição de crianças abusos como o de senho
res de escravos que "expunham" as crianças enfermas de 2, 3 e
a t ~ 4 a nos p a r a n a o a r c a r e m c o mas de s p e s a s d o e n t e r r o (a ma i o r
parte dos engeitados era de crianças pretas) e de maes que ex
punham os próprios filhos para no dia seguinte tomá-los para
criar, COffiO engeitados, para o que eram remuneradas como "cILia
deiILa.6 de óOILa".
A partir da segunda metade do século passado procurou-se
no Rio de Janeiro favorecer a criação externa das crianças co
locadas na Roda, através de uma melhor remuneraçao das amas ex
ternas. Em Campos, Bahia e Pernambuco a estada da criança já
era provisória. Ficava na Roda somente at~ que uma ama de fo
ra aparecesse e a levasse para criar. Com o aumento das cria
ções externas o indice de mortalidade das crianças expostas di
minuiu bastante.
A vida do pobre ~ assim. Parece que nao muda muito. Ho
je os problemas são praticamente os mesmos. O pobre vive na
miséria ou ~ "tiILado de c.iILculaç.ão", guardado em Instituições.
A sua liberdade é o perigo constante da fome, da morte, das ba
tidas da policia. As estratégias usadas para os pobres sao de
vigilância e controle: Em 31 de outubro de 1989, em encontro
realizado na Pontificia Universidade Católica do Rio de Janei
ro - "A CILianç.a e .ó eu.ó ViILeito.ó: E.ótatuto da CILianç.a e do Ado
90
le~cente e C5digo de Meno~e~ em Vebate", o Dr. Antonio Fernan
do do Amaral, Juiz de Menores de Blumenau, relatou o seguinte:
... "Lemb~o um out~o ca~o, o de um menino de ~ua que encont~a
va-~e do~mindo no v~o de uma e~cada ou coi~a pa~ecida, e um mau
6ilho de uma boa 6amZlia me joga álcool o u ga~ ol'<' na no me.nino,
de. b~incade.i~a, ma~ in6elizme.nte. le~ionou ba~tante. o out~o, e.
a polZcia, a ~ádio pat~ulha, p~e.ndeu a ambo~ e.m 6lag~ante.. O
advogado compa~e.ce.u, e. como diz o C5digo de Me.no~e~, no a~tigo
59, que na aplicaç~o de~ta le.i o~ inte.~e.~~e~ do meno~ ~ob~ele.
va~ao a qualque~ out~o bem ou inte~e~~e ju~idicamente. tutelado
e que toda medida, diz o a~tigo 73 do C5digo, vi~a~ã, 6undame.~
talmente, a integ~aç~o ~5cio-6amilia~, e que o~ meno~e~ que e!
t~o em ~ituaç~o i~~egula~, em ca~o de doença ~ocial, de patol~
gia ~ocial, p~eci~am de uma te~apia, de um t~atamento, e~te m~
nino 60i imediatamente encaminhado a ~ua ca~a. E~tã integ~ado
na 6amZlia, 60i um ato impen~ado, ~em d~vida, ma~ ... e ele
60i ~ubmetidoa um acompanhamento, enquanto o out~o 6icou p~~
~o. E~ta ê. a ve~dade, p~e~o me~mo, num Cent~o de Ob~e~vaç~o e.
- . d "32 -T~iagem, po~que e um men~no e ~ua. A historia se repete:
o menino pobre é preso; o menino de boa família (boa aqui signl
fica não ser pobre ... ) e encaminhado a terapia - vigilância e
controle para um, proteção para outro (já nos dizia Donzelot
no trabalho que realizou na França! O capitalismo onde emerge,
repete as mesmas estratégias!).
32 "A C~ança e Se~ V~wo~. ~.ta.tuto da C~ança e do Adolucente g c5 digo de. Meno~~". Org. Professora Esther Maria de Magalhães Arantes e Pro fessora Maria Euchaves de S. Motta. PUC/RJ - FUNABEM, 1990, p.16.
I
1 i
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I i I I I I
1 1 i I t
1
9 1
A emergência da criança no Brasil aponta para duas reali
da d e s: das f a mil i a s a b a s ta das e m e r g e a c.Jt-i. a n ç a, das famílias
pobres emerge o meno~. "O lvan-i.~ d04 Santo4 coloca mu-i.to bem
o p~oblema do que ~ o meno~ e do que ~ a c~-i.ança e o adole4cen
te. Meno~: a -i.ndumentá~-i.a malt~ap-i.lha e tal ... A c~-i.ança: ~
o n04 4 o n-i.lho. M eHo~: ~ o 6Ltho d04 o ut~o4 ... C~-i.a nça: ~ aqu~
la que toma -i.ogu~te. O meno~ natu~almente que não tem ace440
a -i.440."33 O Estatuto da Criança e do Adolescente está tentan
do acabar com isso, fazer sumir a expressão "meno~" que marca
e discrimina a criança pobre. Está tentando acabar tambem com
essa i ilter.nação/pri são, propondo "ga~ant-i.a d04 d-i.~e-i.to4 pe440~
e 4oc-i.a-i.4, at~av~4 da c~-i.ação de opo~tun-i.dade4 e 6ac-i.l-i.dade4 a
6-i.m de 6ac-i.l-i.ta~ o de4envolv-i.mento 614-i.co, mental, mo~al, e4p{
Jútual e 4oc-i.al em CONDIÇVES DE LIBERDADE E DIGNIDADE. ,,34 En
quanto, porem, houver pobreza continuará existindo a criança
c~-i.ança e a criança ca~ente, carente porque carece do que a o~
tra tem; carente porque não e como a outra e. Carente porque
nao brinca de roda, mocinho e bandido ou cabra cega; porque age
"p~at-i.camente 4em ~e4gulc-i.o4 da te~nu~a da -i.nnânc-i.a". ("Po.elúa?
Eu 45 que~-i.a ~ coloca~ um 6acão no pe4coço dele4."135
A realidade da criança pobre está no dia a dia. A reali
dade das crianças favorecidas parece coincidir muito bem com
os discursos cientificas e juridicos.
33 "A C~nça e 4 eM D-i.~eU:.04" tas.
p.6l, fala do Major Altanir N. de Frei
34 Ibid., anexo, quadro sinõptico, p.85. 35 Jornal do Brasil, de 24/06/89 - "Inde-6úúção do Govelr.no pode ap~e44M ~~da de colono4".
1 I I I
I " ~
I I t
1
92
Algumas noticias de jornal podem ajudar-nos a ter uma va
ga ~dê~a sobre essa outra realidade:
"CJz.~anç.a -60óJz.e. agJz.e-6-6ão. Pa~ qua-6e mata a 6~.tha no d~a
ded~cado a e.ta" - fato que ocorreu no morro do Pavão, em COP!
cabana, zona sul do Rio de Janeiro. O pai espancou, cortou o
pulso e feriu três dedos da filha por ter quebrado, na vespera,
ladrilhos de uma obra vizinha, ao brincar de pique-esconde com
o irmão.
"MoJz.adoJz.e-6 cumpJz.e.m ameaç.a-6 e. tJz.uc~dam e.-6tupJz.adoJz. de men~
na" - aconteceu em Serra Dourada, a 700 qui15metros de Salva
dor. Menina de um ano e três meses foi estuprada e morta a p~
nhaladas por dois homens que a tiraram de casa, onde dormia ju~
to aos pais.
"Beb~ de quatJz.o me-6e.-6 ê aóogado pe.to-6 pa~-6 pOJz.que. choJz.a
va mu~to" - aconteceu na vila Campo da Tuca, Zona Leste de Por
to Alegre. O casal afogou o filho no riacho porque "e.te choJz.a
va mu~to li no~te".
"PJz.o óe.-6-6oJz.e.-6 e-6pancam e. matam babá. de. 10 ano-6" - em Curi
tiba, professores universitários espancaram a babá, que acabou
morrendo por causa dos ferimentos. Ela cuidava de dois filhos
do casal, um de três anos e outro de cinco.
"Vome.-6t~ca -6e.m Jz.ecuJz.-6O que.Jz. doaJz. ó~.tha-6" - na periferia
de Belo Horizonte, uma domestica queria doar as três filhas de
7, 5 e 2 anos. Dizia: "pJz.e.6~Jz.o moJz.Jz.e.Jz. a veJz. m~nha-6 ó,Ltha-6 na
FEBEM." I t
93
"Ca.6a.t .6em empltego anunc..ia 6.i.tha menolt" - um classifica
do de jornal em Brasília trazia o seguinte anuncio: "Vou uma
c.1t.iança .6audáve.t, palta quem t.ivelt cond.içõe.6 6.inanc.e.ilta.6
c.1t.iá-.ta". Mãe e pai estavam desempregados e sem casa.
nhecido hospedou-os. Iam "moltalt" num ponto de ônibus.
palta
Um co
Essas notícias, colhidas no Jornal do Brasil, 36 estão aí
para mostrar que desconhecemos muitas razões da vida. As leis
e as ciências estão aí para regulá-la e conhecê-la mas ela es
capa e suas forças manifestam-se em "e..õtJtanho.6" acontecimentos ...
Será que a Psiquiatria dá conta de um pai querer matar a filha,
de um homem estuprar uma criança, de um casal afogar o próprio
filho? Será que uma mae amorosa e dedicada pode compreender
que se anuncie a filha em classificado de jornal? Não. Não se
consegue entender a singularidade quando o pensamento está oc~
pado com o universal e a subjetividade se constitue para a igual
dade e nao para a diferença.
4. A V.i.6c..ip.t.ina E.6c.o.talt
A partir do século XIX, no Brasil, os colégios adquiriram
grande importância como instrumento de controle e adestramento
das crianças. A família lhes delegou amplos poderes para o d~
sempenho de um papel complementar na educação de seus filhos.
Na verdade, os colégios, com o regime de internato, tinham me
lhores condições de cumprir tal tarefa, uma vez que, afastada
da desordem familiar, a criança mais facilmente se submeteria
36 Jornal do ~rasil de 11/10 e 25/11/88; 21/06/89; 18/01,23/02 e 28/03/90, respecti vamente.
94
as forças de adestramento e aprisionamento de sua vontade. Pa
ra isso a disciplina e a ordem eram dispositivos fundamentais.
o espaço físico, o tempo, o corpo, o sexo, o espírito, o pens~
mento, passaram a ser regidos pelas normas disciplinares dos
colégios. A preocupação com os mínimos detalhes caracteriza
ria esse trabalho minucioso. Foucault observa que a preocup~
çao com o detalhe que caracteriza o trabalho disciplinar, tem
uma origem religiosa e que, no decorrer dos séculos XVII eXVIII,
o modelo dos colégios mais conceituados foi, na verdade, o mo
delo do convento. Em tese apresentada ã Faculdade de Medicina
d o R i o d e J a n e i r o, e m 1 8 o 5, i n t i t u 1 a da" E .6 b o ç o d e um a. H y 9 .<. e. n e.
do.6 Colleg.<.o.6 Appl,<,Qa.ve.l a.O.6 no.6.6o.6", José Bonifácio Caldeira
de Andrada Junior mostrou esse tipo de preocupação, procurando
estabelecer, com mínimos detalhes, tudo o que deveria ser lev~
do em conta por aqueles que se dedicassem ã nobre tarefa deedu
caro O local do estabelecimento, sua construção interior, as
condições do ar (dentro e fora dos colégios), a iluminação,te~
peratura ambiente, o vestuário dos alunos, o asseio do corpo
(tipo e duração), os cosmeticos, àS doenças ("em :todo.6 0.6 QOU~
g.<.O.6 de. uma. Qe.Ua. otuiem havelLâ. um mê.d.<.Qo de. palltido que, além dM OQa..6,<,õu
e.m que 6ô~ ~eQla.ma.do pa.~a. Qa..60.6 de. u~gênQ,<,a., ob~gue-.6e. a. .6ub
me.:te.~ a. uma. .6ê.~.<.a in.6pe.çio, a.o meno.6 uma. ve.z po~ .6ema.na., o e..6
:ta.do mo~a.l e. .6a.n'<':t~~'<'o do.6 .6e.u.6 mo~a.do~e..6,,)37, a alimentação,
as bebidas, além de outras questões das quais nos ocupa remos
adiante, foram minuciosamente analisados pelo medico, num "e..6
37 ANDRADA JUIUOR, Jose Bonifácio Caldeira de. E.6boço de. uma. Hyg.<.e.ne. do.6 CoUe.g.<.O.6 Appt.<.Qa.ve.l a.O.6 no.6.6O.6. Tese apresentada a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, a 22 de dezembro, 1855. p.2l.
.1
95
60ltço adm.iltáve.t" de criar as condições ideais de formação das
crianças, o que, como nao poderia deixar de ser, tinha que es
tar sob orientação higiênica.
Para seu exercício, a disciplina precisa delimitar o es
paço físico, determinar a distribuição e localização dos indi
víduos (classificá-los) e estabelecer as relações funcionais.
Na escola, uma organização peculiar atenderá a essas questões:
a fila, o alinhamento das classes de idade, a sucessão dos as
suntos ensinados, a hierarquização do saber, a organização se
rial, o controle cio tempo (tanto com relação ã cronometria dos
programas quanto com relação ã cronometria dos gestos e dos m~
vimentos), a correlação entre o corpo e os gestos,a correlação
corpo-objeto (o correto uso do lápis, dos livros e cadernos, a
postura), possibilitam ao poder disciplinar uma açao eficien
te. Nas "V.i~po~.iç~e~ Re.tat.iva~ ao Exteltnato do Impelt.ia.t eo.t.te
g.io de Pedlto 11", de 1874, podemos ler, no que cabe aos profe!
sores: "E~tabelec.elt de tlte~ em tlte~ meze~ entlte a.tumno~ de ~ua
au.ta um c.onc.ult~o pOIt e~c.It.ipto ~oblte algum ponto da matelt.ia que
lec.c..ionaltem. A~ pltova~ de~~e c.onc.ult~o ~elt~o ju.tgada~ pOIt uma
c.omm.i~~~o c.ompo~ta do~ Plto6e~~0Ite~ do Ite~pec.t.ivo anno ~ob a
plte~.idenc..ia do Re.itolt. Em c.ada au.ta o~ ~e.i~ a.tumno~ que ma.i~
~e d.i~t.ingu.iltem ne~~e~ c.onc.ult~o~ e que ma.i~ pltova~ t.iveltem da
do de appl.ic.aç~o, bom pltoc.ed.imento e a~~.idu.idade, tanto na au
la c.omo ó5lta della, telt~o a~~ento em banc.o e~pec..ia.t, que ~e de 38
nom.iHaltâ 'Banc.o de Honlta"'. Os professores tinham também en
38 LIMA, Conego José Joaquim da Fonseca. V~po~.iç~~ Re.e..at.iv~ ao Exteltna to do ImpeJt.ial Colleg.io de Pedlto 11. Rio de Janeiro, Typographia Naciona1~ 1874, capo VI, § 59, p.13.
I
(
96
tre outras obrigações, que "enthegah todo~ o~ ~abbado~ ao Vice
Reitoh um mappa ~obhe o phocedimento e thabalho do~ alurnnM"39 , o qual era lido solenemente, na sala de estudos, para que o
Reitor e o Vice-Reitor tomassem conhecimento. No capítulo IX,
artigo 37, § 19, podemos ler uma das tarefas do Inspetor de
alunos: "Repahtih a ~ua cla~~e em tanta~ divi~õe~ quanta~ ju!:
gah nece~~~hia~, enthegando a dihecç~o de cada urna dela~ ao
alumno que lhe meheceh con6iança. E~te ~eh~ he~pon~~vel pelo
compohtamento da ~ubdivi~~o a ~eu cahgo."40 Na tese ji citada
de Jose Bonificio Caldeira de Andrada Junior encontramos a preE.
cupaçao com a adequação do ensino às condições individuais de
desenvolvimento dos alunos. Escreveu ele: A lei, ~egundo a
qual tem de ~eh di~thibuida a pOhÇ~O de exehcZcio intellectual
que convem a cada um do~ alumno~, deve deduzih-~e da~ condi
çõe~ de idade, de ~exo e de con~tituiç~o. Pho6e~~ohe~ h~ que
n~o di~pondo de penet~aç~o nece~~~hia paha podehem exigih de
cada um aquillo unicamente e tudo aquillo que e~tiveh comphehe!!.
dido na e~pheha da~ ~ua~ concepçõe~, COhhem o hi~co de e~ma9ah
o talento de un~ e n~o ap~oveitah a~ bella~ di~po~içõe~ de ou
thO~; e o que he~ulta da uni60hmidade de thabalho~ intellect~
paha um g~ande numeho de menino~ que n~o ob~tante mOhahem de
baixo do me~mo tecto, di66e~em enthetanto na idade, no tempe~~
mento, na~ paixõe~, e no de~envolvimento da ~ua intelligencia. "41
Não hi duvida: trata-se de uma eficiência incontestive1 e o
39 Ibid., Art. 27, § 39, p.14. 40 Ibid., p.16.
41 ANDRADA JUNIOR, Jose Bonificio Caldeira de. Op. cit., p.37.
I 97
poder disciplinar mostra sua positividade - "o momento hi4t5~i
co da4 di4ciplina4 i o momento em que na4ce uma a~te do co~po
humano, que vi4a não unicamente, o aumento de 4ua4 habiüdadu,
nem t50 pouco ap~o6unda~ 4ua 4ujeição ma4, a 6o~mação de uma
~e.e.ação que HO me4mo mecani4mo o to~na tanto mai4 obediente qua!!;
to i mai4 ~til, e inve~4amente"42, diz com profundidade Fou
cault. A criança enfim, a partir do século XIX, é alvo de for
ças que a avaliam, investigam, classificam, separam,controlam,
vigiam, protegem para que sua educação seja eficaz e quanto
maior a adequação daquilo que se ensina, às suas condições de
aesenvolvimento, maior a sua produtividade no final e também
sua obediência, uma vez que todas as suas habilidades são apr~
veitadas e estimuladas no "tempo ce~to", mantidas, enfim, sob
cont ro 1 e.
A punição jamais foi descartada. Os alunos do Colégio
de Pedro 11, no século passado, eram punidos com a reclusão em
quarto preparado para tal fim, apelidado de "ca6uã", de dimen
sões minimas, sem luz e sem circulação de ar e próximo ao lu
gar dos despejos do Colégio. 43 José Bonifácio Caldeira de An
drada Junior não esquece essa questão na sua tese. Clama, p~
rém, por novos métodos: "Vizei-me, 5 V04 que conhecei4 tão p0E;
co 04 ve~dadei~o4 4entimento4 do co~ação do homem, pa~a que d~
tou-n04 a natu~eza com o dom da ~azão e da con4ciincia, de que
n04 4e~ve o amo~-p~5p~io e o ~emo~4o, 4enão pa~a 4e~vi~-no4 de
42 FOUCAULT, Michel. Vigiah e Pu~. Petrópolis, Vozes, 1987, p.127.
43 DORIA, Escragnolle. Memo~ H~t5~ca do Coflegio de Pe~ 11. Rio de Janeiro, Publicação Oficial sob os Auspicios do Ministério de Educação, 1937, p.57.
t
! t
I 1 1 \ ,
98
9uia~ no e~cab~o~o caminho da~ no~~a~ inclinaç5e~? Que nece~~i
dade poi~ te~emo~ n5~ de, pa~a co~~i9i~ o e~pi~ito, avilta~ a
mate~ia, ~e~vindo-no~ pa~a a educação do homem do~ me.~mo~ -<.n
centivo~ que co~tumamo~ e.mp~e.9a~ pa~a com o~ i~~acio"ai~? Não I ~e~ia mai~ nob~e e. philo~ophico que ent~e9a~~emo~ o no~~o J~
vem educando ao~ ~eu~ juize~ natu~ae~, que p~ocu~a~Zamo~ de~
pe~ta~, ao de~90~to do amo~-p~5p~io 066endido, ao temo~ da p~
blicidade. de uma acção m~ p~aticada, ao ~emo~~o da
cia? Tenho 6ê ba~tante na nob~eza do co~ação humano pa~a a66~
ma~ que o~ ca~ti90~ que 6allão di~ectamente. ~ alma, quando ma
nejado~ com di~ce~nimento, têm mai~ ~ubida in61uencia ~ob~e a
~ua manei~a de ob~a~ do que aquelle~ que ~5 6allão ~ pelle e
- 44 a~ o~elha~." Parece que aprendemos a lição. O amor-próprio,
o temor da vergonha e o remorso são de fato, hoje, os maiores
trunfos da prática disciplinar escolar. A punição distancia-se
cada vez mais da dor para afetar um sujeito culpado e enverg~
nhado de suas açoes; um sujeito que antes de mais nada interio
riza as proibições e aprende a punir-se a si mesmo, o que con
corre para uma eficiência máxima do poder disciplinar.
Na prática pedagôgica a disciplina instala o "tempo e.vo
lutivo". Todo o processo de formação do individuo obedecerá a
uma evolução marcada por 6a~e~. Um acompanhamento constante e
minucioso, a realização de exames no tempo certo, o uso de ma
terial apropriado, possibilitam a devida avaliação que classi
ficará o indivíduo como apto para passar a uma fase seguinte,
44 ANDRADA JUNIOR, Jose Bonifácio Caldeira de. Op. cit., p.2l-2. t
I l
I
I • l I
1 1
tendo devidamente amadurecido e superado a fase anterior.
sa forma, atraves da própria prãtica pedagógica o poder
99
Des
a t ra
vessa os corpos e controla-os passo a passo, ao longo do seu
desenvolvimento. As concepções do desenvolvimento da criança
como passagem de um estágio a outro, seja do ponto de vista in
telectual ou afetivo, trazem essa marca do poder disciplinar e
dominam hoje o pensamento psico-pedagógico, não deixando de pr~
var uma alta competência na formação da criança (produtiva e
útil).
A criança entrou na escola para ocupar um determinado l~
gar, desempenhar uma determinada função, aprender determinados
assuntos em sequência e tempo certos, obedecer a horãrios e si
nais, exercitar o domínio do corpo, aprender a usar instrumen
tos e, sobretudo, a obedeQe~.
Em "O~dem Méd-i..Qa e No~ma Fam-i...e..-i..a~", Jurandir F. Costa,ob
serva os vãrios processos de controle sobre a criança levados
a efeito dentro dos colegios no Brasil do final do seculo XIX,
cujas diretrizes fundavam-se em recomendações higiênicas. A ta
refa da escola era preparar o futuro adulto nacionalista para
o que se fazia necessãrio um trabalho minucioso: o tempo era ri
gorosamente controlado, sendo montado um cronograma para as di
versas atividades, desde a alimentação ao trabalho intelectua1.
O tempo ".e..-i..v~e" tambem era controlado, constituindo uma ativi
dade com objetivos bem definidos; o físico era cuidadosamente
trabalhado - devidamente separados por idade e sexo, as crian
ças deveriam cumprir um programa de exercícios físicos, incluin
do a ginástica, de forma a aprenderem a cultivar o corpo que f r
I r
I
I I I
I I
I
100
passou a ser uma questão pol ítica e social. José Bonifácio Cal
dei ra de Andrada Junior escreveu na sua tese: "Um exeJl.uc.io C.OIt
poltal, bem c.ompltehend..i.do na .6ua paltte veltdade..i.ltamente hljg..i.eni::.
c.a, i uma da.6 plt..i.me..i.lta.6 c.ond..i.ç&e.6 palta o de.6envolv..i.mento do.6
5ltgao.6 e o apelt6e..i.çoamento de toda.6 a.6 6ac.uldade.6 do C.OltpO e
d ... 't ,,45 o e.6p-<.lt-<. o , eu diria: para o aperfeiçoamento de todas as
faculdades do corpo e do espírito obedientes... Criticou, en
tão, o médico aqueles que julgavam procedor bem encerrando o
jovem estudante entre quatro paredes: "e.6te.6 manc.ebo.6, c.uja ..i.n
tell..i.genc...i.a novel tem-.6e pltoc.ultado elevalt á qu..i.nta potenc...i.a,
.6em c.on.6..i.deltação palta c.om a.6 c.ond..i.ç&e.6 do C.Oltpo em que ella .6e
exeltc.e, quaYldo poltventulta c.heg uem á ..i.dad e adulta, não teMo que
oóóeltec.elt ao.6 .6eu.6 c.onc...i.dadão.6 ma..i..6 do que um talento ga.6to p~
46 lo.6 exc.e.6.6O.6 e a .6omblta de um C.OltpO humano". Recomenda va o
mesmo tipo de exercício para ambos os sexos até a puberdade mas,
àepois disso, as meninas só deveriam fazer a ginástica como t~
rapia, devendo sua atividade física restringir-se aos passeios
a pé ou de carro (puxado a cavalo na época), ã dança, ao canto,
ao piano, etc. t claro, o ventre devia ser poupado ... Como vi
mos em páginas passadas, hoje não mais é necessário que a esco
la assuma todo tipo de atividade física. As academias estão
aí para fazer sua parte e a mentalida,de também já se constituiu
de forma que, como vimos, muitos já dispensam as instituições,
obrigando-se a si mesmos ao cumprimento dos exercícios físicos
constantes.
45 Ibid., p.26. 46 I b i d., p. 26.
I
I
I 1 I I
f 1 ! i
I
1 U 1
o sexo nao poderia deixar de ser também objeto de contro
le nos colegios. A masturbação era verdadeiro crime que havia
de ser rigorosamente controlado e evitado. "Vi~ tu e6te pequ!
no e~queleto ambulante, que la vai, olh06 baço~ e memb~o~ de6
6allid06, e6conde~ na 6olidão, a6 angu6tia6 da melancolia que
t~az e~tampada no de~alinho do ~06tO? Não li~ a ve~gonha e a
naquelle6
mod06 timid06 e ~e~e~vado~, a 6~aqueza naquelle~ olh06 ~odea
do~ de um c~~culo livido e como que 6epultado~ na p~06undidade
da6 5~bita~? E uma da~ victima~ de6te odi060 p~ocedimento"47,
c o n de n a va o me d i c o J o s e B o n i f ã c i o C. d e A. J uni o r. E s te" e6 q U!
leto ambulante", como expressava o doutor, poderia, mantendo o
"odio~o p~ocedimento", vir a cair na hipocondria, no idiotis
mo, na mania, no marasmo, na paralisia, na congestão cerebral,
na tuberculose pulmonar, na completa degradação f;sica e moral
ou morrer. Ao educador, nos colégios, cabia a tarefa de evi
tar essa catástrofe. Uma investigação rigorosa e discreta de
v i a s e r f e i t a p a r a 1 o c a 1 i z a r as" v Ztim a6 " . A i n s p e ç ã o d i ã r i a
de roupas e leitos (sobretudo dos suspeitos) devia ser cumpri
da e as disposições morais dos alunos deviam ser avaliados por
questões "a~tucio~amente ~edigida~". Na sua tese, o doutor Jo
se Bonifácio estabeleceu sete regras que deveriam ser adotadas
pa ra "p~eveni~ 06 e6t~ago~ e a di~~ eminação do mal": "19, -nao
amditti~ no 6eio da communidade manceb06 de c06tume~ e h~bil06
6u6peit06; 29, p~ohibi~ ao~ alumno~ a con~e~vação e a leitu~a
de liv~06 e~otic06, a~ pale6t~a~ leviana6, e tudo que p06~a e~
cita~ pa~a mal a ~ua imaginação a~dente; 39, ~epa~ti~ conveMen
47 Ibid., p.30.
I
1
1
I ,
1 I 1
I ! 1 I J
I
102
temente 04 do~mit5~i04, de modo que haja completa 4epa~açao de
idade4; 49, p~ohibi~ urna communicaç~o muito liv~e ent~e 04 pe~
4ioni4ta4 e 04 alumn04 exte~n04, quando 04 haj~o de urna ou de
out~a cla44e; 59, p~eveni~ o de4pe~ta~ p~ecoce da 4en4ualidade
po~ meio de exe~cici04 bem di~igid04, pela aboliç~o de alimen
t04 excitante4, etc.; 69, puni~ o culpado ~ep~ehendendo-o a4P!
~amente, ou, 4egundo a g~avidade do c~me*, expellindo-o do
collegio; 79, medica-lo 4e ca~ece~ d04 40CO~~04 da a~te,,~8 Ah,
Foucau1t, o que você acha que o doutor estava prestes a fazer
depois de tanto empenho para ditar essas regras ... !? E os a1u
nos, encerrados dentro dos co1igios fechados, eram des~a forma
reprimidos ou incitados? A sexualidade passou a ser tambim pr~
b1ema de Estado pois a sociedade precisava de um cidadão de for
maçao física e moral irrepreensíveis, a mãe sendo a respons~
vel pela formação moral da criança dentro de casa. A sexualida
de infantil caiu nas armaduras do poder disciplinar (e da mora
lidade), sendo capturada, de sua livre manifestação, como ato
solitário ou não, por mecanismos que lhe deram um sentido, im
puseram-lhe restrições e fixaram-lhe finalidades. Mais tarde o
pensamento científico organizou tudo isso e aprisionou a sexua
lidade da criança ao triângulo familiar. Voltaremos a falar
sobre isso adiante.
A moralidade, já o dissemos. estava embutida no discurso
medico/educativo. A escola devia completar a educação moral
* Grifos meus.
48 Ibid., p.~O-l.
i I
! i
I
I f 103
e religiosa iniciada em casa. A moralidade dos candidatos aos
colégios, inclusive,devia ser, na opinião do Dr. Jose Bonifá
cio, condição para matrícula, porque o exemplo era fundamental.
Maus costumes e paixões desordenadas "co~t~o logo ao na~ce~ o~
ptU.me..i..~o~ vôo~ de uma ..i..ntell..i..genc..i..a que apena~ ~e ~evela, e
an..i..qu..i..l~o a~ ma..i..~ bella~ e~pe~ança~ de um 6utu~0 p~ove..i..to~o
pat~..i..a e á. 6am..i..l..i..a,,49, dizia preocupado o medico. Dentro
colégios os bons costumes haviam de ser cultivados para o
-a
dos
bem
dos alunos, da sociedade e da religião, esta última devendo cons
tituir a base de toda educação moral. Jurandir F.Costa, inter
pretando as preocupações moralistas da epoca (segunda metade
do século passado), relaciona-as com a ordem capitalista que
então se constituía: "0 ..i..nd..i..vZduo mo~almente apto a conv..i..ve~
ne~te ~..i..~tema ê aquele que ~e ~egule: em p~..i..me..i..~o luga~, pelo
hâb..i..to c~..i..ado na mecân..i..ca do~ ge~to~ e conduta~; em ~egundo lu
ga~ pela culpa, pelo ~ent..i..mento de de~v..i..o mo~al com ~elaç~o ao
~oc..i..al; em te~ce..i..~o luga~, pelo julgamento de ~eu~ pa~e~ ou
..i..gua..i..~" e que assimile uma ética: "a da ace..i..taç~o do valo~ do
t~abalho e o ~e~pe..i..to ã p~op~..i..edade p~..i..vada". 50 A interpret~
ção acertada nao avança porém até um ponto crítico (no caso "a~
to-c~Zt..i..co") para apontar o comprometimento da psicanálise com
essa moralidade, com essa subjetividade culpada, fortalecendo
a produção desse sujeito submisso ã família, ã sociedade e a
si mesmo.
49 Ibid., p.ll.
50 COSTA, Jurandir F. Op. cit., p.200-1.
I
104
A f o rm a ç ã o i n t e 1 e c tua 1, c o m o v i mos, a p a r t i r do seculo
XIX, condicionou-se ã evolução da criança. Tambem isso facili
tou o seu controle, permitindo o desenvolvimento de mecanismos
para avaliá-la constantemente e classificá-la a cada momento.
Não existia esse tipo de preocupação no Brasil dos primeiros
tempos da colonização quando a educação consistia no ensino de
um oficio (a partir da puberdade) a ser aprendido com a práti
ca, orientada pelo mestre, no caso da população mais pobre, e
pelos familiares ou pessoa preparada, no caso dos mais abasta
dos. Quando a aprendizagem era em grupo, a idade nao era cri
terio para a separação dos alunos mas, o aproveitamento. Foi
com a penetração do poder medico na prática pedagógica do Bra
sil do seculo XIX que as crianças passaram a ser separadas se
gundo a faixa etária para receberem conteúdos cuidadosamente
preparados e escalonados. Essa prática tinha no fundo,uma pre~
cupação moralista, segundo Jurandir F. Costa, pois a separaçao
das crianças por idade evitava influências negativas de umas
sobre as outras, sob o ponto de vista moral. Argumentando em
defesa da saúde da criança que poderia ser gravemente afetada
por um ensino inadequado ao seu nivel de desenvolvimento, os
medicos conseguiram que fosse implantado um ensino programado
para cada faixa etária 51 e a inocência das crianças foi prese!
vada ... A preocupação com a adequação do ensino ao estágio ev~
lutivo da criança parece, portanto, um problema de ordem moral
e polftica: fixa grupos e informações e permite um controle mais
eficaz dos individuos.
51 Ibid., p.197.
I i
f
I I I
l
I
I I
105
o que se plantou nas escolas, na segunda metade do secu
lo passado, demorou, contudo, a vingar. No final do século, a
educação das crianças dentro das escolas ainda pecava por nao
cumprir as recomendações higi~nicas.
Após um período de grandes mudanças no sistema educacio
nal brasileiro, tanto nas escolas particulares como nas publl
cas, quando professores e diretores eram rigorosamente avalia
dos pela superintend~ncia da instrução publica, as escolas pa~
ticulares eram inspecionadas pelas autoridades e os alunos ri
gorosamente examinados, do que a fundação do Colégio de Pedro
11 foi um exemplo (já em 1837), caiu a educação brasileira nas
maos de negociantes, muitos estrangeiros, que abriam escolas
para ganhar dinheiro. Multiplicaram-se os colégios no Brasil
e o governo relaxou a fiscalização. Em 1842, o Padre Gama de
nunciou no seu jornal de 16 de abril, n9 5, a transformação da
educação brasileira em negócio. O Dr. Luís Correira de Azeve
do escreveu, em 1872, que os colégios, na maioria dos casos,
funcionavam como industria onde se trocava dinheiro por Uhl fra
co saber (o primeiro sempre superior ao valor do segundo) e o~
de a moral e os bons costumes eram esquecidos. Mal ventilados,
superlotados, com más condições de alimentação para os alunos,
sem programas de educação física, esses colégios davam aos alu
nos ampla liberdade e boa bagagem de saber inutil. O Doutor
fez, então, um apelo dramático: "Oh! não; homen-6 da époc.a e do
B~az~i, não c.on-6~nta~-6 que o c.oiie9~o -6eja uma pe~~90-6a banai~
dade ~ndu-6t~~ai! Faze~ deiie um -6e~o de educ.ação e de -6ão-6 p~!!:.
c.~p~O-6 de ~n-6t~uc.ção; 6aze~ dO-6 pequeno-6~ pen-6ado~e-6 ute~-6 e e-6
( I
! \ !
I
106
60~çado~, e da4 menina4 utei~ mulhe~e~, mae~ do 6utu~0, mae~
que ~e~gatem a mate~nidade da c~imino~a indolencia em que jaz.
Vi~~e~te~ um dia que no B~azil, d'ahi em diante, ninguem mai~
na~ce~ia e~c~avo: poi~ bem; ~ide cohe~ente~: ~alvai na pia da
6amilia e na pia da e~cola e~~e~ ch~i~t~o~, e~c~avo~ da ign~
~ancia e da p~ejudiciali44ima 6alta de p~incipi04 4~04 de edu
caç~0.,,52 O apelo medico clamava, contudo, por um terceiro tl
po de escravidão: a escravidão ã utilidade e ã maternidade que
veriamos mais tarde fortalecer-se e forjar a mulher e a crian
ça que conhecemos hoje.
Nos primeiros anos da República, Jose Verissimo criticou,
no seu "A Educaç~o Nacional", a falta de fiscalização nas esco
las públicas a falta de concursos para professores e a incom
petência destes, as regalias das escolas particulares (os seus
alunos tinham entrada facilitada nos cursos superiores) e seu
caráter mercantilista. Sobre estas, em 1906, numa reedição do
seu livro, escreveu: "Uma indú~t~ia de nece44itado~, um -neg~
cio de homen4 pob~e4 i~olado~, muito4 incompetente~, algun4
·"~ate.~" da cultu~a, da~ let~a~ ou da p~õp~ia p~o6i~~~0, que
ab~em uma e~cola, um collegio, como ~imple~ meio de vida, meio
aliã4 me~quinho, ince~to, contingente, pelo que ~ao ob~igado~,
pa~a nao pe~de~em e~4e e~60~ço e ~ecu~~o, a t~an~igi~ com 04
pai~, 04 alumn04, a clientela, em6im, da qual exclu4ivamente 53
vivem." Nas escolas públicas, sem a devida fiscalização do
52 .... "C -AZEVEDO, LU1S Correla de. onco~eM ... , Op. cit., p.431.
53 VERISSIMO, Jose. Op. cit., p.XXIII.
1 I
1 i t 1 J
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I
1 I
J ~ .
i I ~
I J 1
107
governo nao se levavam a cabo os programas, nao se exigia po~
tualidade dos professores, nenl bom desempenho dos alunos e o
magisterio para a maior parte dos professores da rede pública
passara a ser atividade secundária, muitas vezes desenvolvida
sem nenhuma responsabilidade.
hoje, a precariedade do ensino público está ai; mante
ve-se portanto; e o caráter mercantilista da escola particular
tambem. Não podemos, contudo, dizer que o esforço da classe
medica e religiosa para produzir uma forma de pensar, uma sub
jetividade, foi em vao. Parece justamente que a escola pÚbl l
ca e a escola particular, eomo ~ão hoje, servem muito bem ã pr~
dução desse sujeito idealizado no século passado. A escola p~
blica, salvo rarissimas exceções, não ensina, e provê a mao de
obra da sociedade. A escola particular aliou o negôeio a boa
qualidade de en~ino, provendo a sociedade de um contingente de
intelectuais que assumirão os postos de comando - dos dois la
dos, o sujeito submetido, que se deixa capturar por forças con
servadoras e que contribui para a massificação e para o enfra
quecimento do pensamento.
f
I !
CAPrTULO 3
A CAPTURA DO DESEJO
Alvo de forças disciplinares no seio da família e da es
cola, a criança brasileira não tardou a ser, também, objeto do
conhecimento científico. A psicanálise de Freud fortaleceu aqui
no Brasil esse movimento que, a partir do século XIX fez emer
gir a criança. Os laços familiares estreitaram-se e foram en
volvidos pela sexualidade: Freud descobriu que a mae e o primei
ro objeto do instinto sexual da criança.
Especialmente nas camadas privilegiadas da sociedade bur
guesa, onde a criança é, acima de tudo, c.tia.nç.a., não só desobri
gada do exercício de atividades relacionadas ao sustento da fa
mília mas, principalmente protegida de encargos tão penosos p~
ra o corpo infantil, mãe e filho caem no laço do desejo inces
tuoso. A família reproduz Edipo na consolidação do triângulo
familiar, na sedução da criança, na minuciosidade dos cuidados
com o seu corpo, no estímulo ao desejo incestuoso e na alegria
de ver suas manifestações.
A psicanálise emerge num momento histórico em que o saber
sobre o sexo se alia a mecanismos de poder e controle dos cor
pos, na sociedade disciplinar. A partir do século XVII, segu~
do Michel Foucault,l o sexo penetra nos discursos e e incitado
1 FOUCAULT, Michel. A Vontade de Sa.be~. Rio de Janeiro, Graal, 1985. I I
I 1
,I
I I I
1
109
ao máximo. E preciso falar dele a toda hora e dos sentimentos,
práticas, desejos e pensamentos que o tenham como objeto. Ini
cialmente enquadrado nos limites da confissão, o discurso sobre
o sexo ultrapassa os limites da prática confessional, instalan
do-se, a partir do protestantismo, da contra-reforma, da ped~
gogia do século XVIII e da medicina do século XIX nas relações
entre pais e filhos, alunos e professores, delinquentes e peri
tos, doentes e psiquiatras, onde sob as novas formas de narra
tivas, interrogativas e consultas, possibilita o registro e a
teorização da sexualidade humana. Relaciona-se o pensamento de
Freud ao caráter repressivo do período vitoriano em que viveu.
Para Foucault, esta hipótese repressiva é uma falsa hipótese.
Para ele, ao invés de reprimido, o sexo foi, na realidade, in
citado, a partir do século XVII, Incitado a partir da abundi~
cia de discursos sobre o sexo e incitado também no seu silêncio:
onde o pretendiam calado, falavam dele os mecanismos
dos para silenciá-lo.
utiliza
No final do século XIX e início deste, um novo discurso
sobre o sexo se apodera do desejo e o eleva ã categoria de ob
jeto ria ciência. O dispositivo familiar possibilita essa estra
tégia e o dispositivo de sexualidade isola o sexo da experiê~
cia total do individuo para colocá-lo dentro dos limites dodis
curso, tornando possível seu conhecimento e controle. No disp~
sitivo familiar, a intimidade da relação mãe-filho, promovida
como vimos, pelas regras da higiene, constituiu condição funda
mental para a formação dessa ciência.
I
I 1
110
A psicanálise nao poderia surgir fora de uma família res
t r i ta, í n t i m a e O e 1 e u z e e G u a t t a r i nos a j u da m a p e n s a r sob re i s
s o •
A privatização da família é um elemento do sistema capl
talista no qual ela passa a ser privatizada justamente para s~
bordinar-se a forma da reprodução econômica. A esta última,in
teressa que a família seja reprodutora de homens iguais que oc~
pem, entretanto, na reprodução social econômica, lugares marcÊ.
dos (o capitalista, o trabalhador, etc) e essas imagens do Ca
p i tal são a p 1 i c a das a f a mil i a - p a i, mãe e f i 1 h o t o r na n d o -s e "o
~,(mui.aCJto dM image.M do Cap.ita1. (Se.nholt Capi:ta1., Se.nhotta Te.ItIta e. ~e.u 6~
lho, o Tttaba1.hadolt) ".2
o investimento do desejo nesses simulacros (papai-mamãe)
e nada mais que a "6oltmação colonial Intima que. Ite.~ponde. ã 60lt
ma de. ~obe.ltania ~ocial".
No sistema capitalista, todas as determinações sociais
encontram ressonância dentro da família e a criança, restrita
ã convivência familiar (burguesa, mais especificamente), cola
d a a p a i e mãe, " d o e. nt e. d e. E d i p o ", a r r a s t a r á p o r o n d e f o r , um
complexo parental que passarã, inclusive, adiante, no futuro,
aos prôprios filhos. O pior: dentro dessa família re s t ri ta ,
privada, a psicanálise elege a criança como o ponto de partida
de tudo e, por isso mesmo, culpada pelas "alt:te.~" do desejo. Do
lado da criança, a culpa, do lado dos pais, a responsabilidade
2 úELEUZE, G. & GUAT1ARI, F. O An:t.<.-EcLi..po. Rio de Janeiro, Imago Editora Ltda., 1976, p.337.
I
I
1 1
111
- loucura e razao. Não soube Freud que a criança e edipianiz~
da pelos pais, ressonantes às determinações sociais do sistema
capitalista, com suas imagens e seus valores. "fd..i..po ê. p!t..i..me..i..
!to uma ..i..dê...i..a de pa!tan5..i..eo adulto ante~ de ~e!t um ~entimento ~n - 3 6ant..i..l de neu!tot..i..eo."
A criança, essa máquina desejante desterritorializada (até
que prendam seu desejo a papai-mamãe) que se liga a tudo, que
quer experimentar tudo, que se conecta ao infinito, fácil de
ser afetada, essa potência ... não pode ser edipiana. "O que ê.
ed..i..p..i..ano ê. a abjeta !teeo!tdação de ..i..n6ãneia, a tela".4 Mas ela
se cola a papai-mamãe, como não? Como livrar-se desse jugo i~
p e r i o s o, p a p a i e ma mãe nas u a c a b e ç a o tem p o to do, a reg i s t ra r,
a apontar ("voe~, ~eu ..i..!tmão, ~ua ..i..!tmã, papa..i.., mamãe"), a se c~
lar em tudo o que a criança toca e experimenta ("não pegue n..i..!
~o, ê. do papa..i.., não toque n..i..~~o, ê. da mamãe, não 6aça ..i..~~o, a
mamãe 6..i..ea t!t..i..~te, não 6aça aqu..i..lo, o papa..i.. não go~ta" • •• ) Não
dá. O tdipo pega. E o que parecia uma brincadeira de mau go~
to toma conta do eu. Produz uma subjetividade. Pior: captura
o desejo. Castra o inconsciente. Emperra a máquina desejante.
Freud descobriu o que havia sido inventado e achou que se tra
tava da estrutura fundamental do ser humano ...
Em "O Na~e..i..mento do A~..i..lo,,5 Foucault nos diz que a ps1
canálise trouxe para dentro do consultório do psicanalista o
que a psiquiatria do século XIX, com Pinel e Tuke, montara den
3 I b i d., p. 34 7.
4 Ibid., p.496.
5 FOUCAULT, Michel. A h~t5Jtia da LoueWl.a.. são Paulo, Editora Perspectiva S.A., 1987.
1 I
11 2
tro do asilo: a loucura entendida como um complexo parental a
ser, portanto, tratada dentro de uma estrutura onde a família
está representada, estrutura alienada e alienante, construída
sobre valores bem especificos (autoridade paterna, fa1ta-casti
go, ordem social). Dentro do consu1t5rio, o midico, ponto de
convergência dos poderes distribuídos pela estrutura asilar, e
partindo do conceito de loucura como ruptura com e~ta ~eal~da
d e ~ o c. ~ al, "c. u ~ a" o s u j e i t o 1 i g a n d o - o d e f i n i t i v a m e n t e a p a p a i
e mamãe, confrontando-o com o mundo da razao e da ordem moral,
fazendo-o, enfim, penetrar em um outro mundo de alienação.
"r i..~~o o ~nc.u~á.vel 6am~l~al~~mo da p~~c.aná.l~~e, enquE!.
d~ando o ~nc.on~c.~ente em rd~po, l~9ando-o de um lado e do ou
t~o, e~ma9ando a p~odução de~ejante, c.ond~c.~onando o pac.~ente
d . -" 6 a ~e~pon e~ papa~-mamae Na verdade, porém, De1euze e Guattari
nos dizem, o triângulo familiar e constantemente quebrado pelos
elementos da situação hist5rica e política que penetram e atra
vessam uma família descentrada: os movimentos sociais, as reli
giões, as guerras, a política, o trabalho, a policia, a buro
cracia, etc, etc, são os reais complexos do inconsciente que
sacodem, dentro de casa, as relações restritas do triângulo f~
mi1iar. rdipo pega mas nao destr5i. Torna as coisas difíceis
para o desejo ...
6 DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Op. cit., p.123.
I I
11 3
1. A "Relação P~-imo~d-ial"
A pSicanál ise produziu um conhecimento que deu direção as
relações entre as pessoas no interior da família e tornou as
experiências da infância decisivas para o ulterior desenvolvi
mento da personalidade do indivíduo. "E~ta ac.entuac.-iõn de la
-impo~tanc.-ia de la~ expe~-ienc.-ia~ temp~ana~ no Qu-ie~e dec.-i~ Que
de~p~ec.-iemo~ la -inóluenc.-ia de la~ ulte~-io~e~. Pe~o e~ta~ ~on
ya e~t-imada~ e de~c.~-ita~ po~ el m-i~mo enóe~mo, m-ient~a~ Que lM
-inóant-ile~ han de ~e~ bu~c.ada~ y devuelta~ a ~u ve~dade~a ~-ig~
ó-ic.ac.-iõn po~ el mê.d-ic.o.,,7 As experiências infantis tornam-se
decisivas e enigmáticas, possuidoras de um significado e simb~
1 i s mo que s 5 o t e r a p e u ta p o d e i n t e r p r e t a r e e s c 1 a r e c e r. O po de r
médico ê tácito.
As experiências infantis trazem a tona, especialmente, a
vivência da relação primordial da criança com a mãe, a "g~ande
ó-igu~a" desse teatro freudiano, o objeto dos mais intensos e
primitivos sentimentos de amor e 5dio, presença que "deva~ta"
I
e ausência que e fatal. O psicanalista norte-americano, Spitz,
procurou provar, através de pesquisas realizadas em instituições I americanas destinadas ao cuidado da criança precocemente sep! I rada da mãe, que os efeitos dessa separação sao irreversíveis
sobre o desenvolvimento físico e psico15gico da criança. Spitz
quis provar que a Qual-idade da relação do recém-nascido com a
mãe (ou figura substitutiva) é que e fundamental e nao o seu I
7 FREUD, S. "Pegan a un núio", i n Ob~ CompletM de S-igmund F~eud. Ma drid, Editorial Biblioteca Nueva, 3a. edição, tomo 11, p.2467.
I 1 j
114
caráter quantitativo, referente aos cuidados com a higiene e
alimentação. Em instituições impecavelmente bem montadas e su
pervisionadas, os prejuízos físicos e psicológicos da criança
nao deixavam de existir, o que provaria que o corte do vínculo
com a mãe, em idade precoce, é fatal e não pode ser recuperado
nem pela maior eficiência institucional. O fator decisivo p~
ra o desenvolvimento global da criança seria o vln~ulo dUkadou
kO com uma 6~guka e~tâvel com a qual estabelecesse uma relação
de afeto que definiria o caráter de suas relações com o mundo.
As "cJl..~~e.6 p~~~o~~o~~u~" de Erik Erikson 8 também apontam para
essa "kelação 6atal". O vínculo duradouro e estável com a mae
não definiria, contudo, por si só, as relações positivas com o
mundo e um desenvolvimento equilibrado: a mãe ansiosa,angusti~
da e ambiva1ente não favoreceria o estabelecimento de relações
afetivas fundamentais para a criança sentir-se segura e amada,
com condições de amar e confiar futuramente.
P o r o c a s i ã o de sua p as s a g e fi! p e 1 o R i o de J a n e i r o, em 1972,
quando fez uma série de conferências na PUC, Foucau1t, em diá
logo com o psicanalista brasileiro, Hélio Pe1egrino, sobre as
questões levantadas por Spitz, disse: "Se o ~enhok d~z que o
~~~tema de ex~~tên~~a nam~l~ak, de edu~ação, de ~u~dado~ d~~
-pen~ado~ a ~n~ança, leva o de.6ejo da ~n~ança a ten pon objeto
pn~me~no pn~me~no ~nonolog~~amente - a mãe, a~ho que pO.6~o
~on~ondan. I~~o no~ nemete ã e~tnutuna h~~tõ~~a da 6amIl~a,
da pedagog~a, do~ ~u~dado~ d~~pen.6ado~ ã ~n~ança. Ma~ ~e o .6e
8 RAPPAPORT, C.R. P~~~olog~a do V~envolv~mento. são Paulo, E.P.U. 1982, vo1. 4.
I
I 115
nho~ diz que a mae ~ o objeto p~imo~dial, o objeto e66encial,
o objeto 6undamental, que o t~iângulo edipiano ca~acte~iza a
e6t~utu~a 6undamental da exi6t~ncia humana, eu digo nâo". A con
testação do psicanalista brasileiro em que se refere ao fenôm~
no hospitalistico, apontado por $pitz, Foucault responde: "CO!?!
p~eendo. 1660 65 p~ova uma coi6a: nâo que a mâe i indi6pen6ª
vel ma6 que o h06pital nâo i bom". 9
A relação mãe-filho, tal como concebida pela psicanálise,
"encou~aça" a criança nas suas relações com o mundo. O caráter
dessas futuras relações ê determinado precocemente. A criança
nao se deixa a chance de construir seu mundo com a matéria das
experiências vividas nos seus variados encontros com as pessoas,
com o mundo, com a vida. Em tratamento pSicanalitico o probl~
ma do adulto sera sempre interpretado em função da natureza de~
se vinculo primordial infantil onde se poderão encontrar todas
as respostas.
2. O Teat~o do lncon6ciente
A satisfação sexual primitiva da criança disse-nos Freud,
e inicialmente ligada ã alimentação, sendo o peito materno ex
perimentado como parte do próprio corpo, numa relação que a Psi
canálise chama de simbiótica. Quando a criança concebe a mae
como objeto externo total, a sexualidade se torna essencia1men
te auto-erótica até que, posteriormente, volte-se de novo para
9 FOUCAULT, Michel. A Ve~ade e a6 FO~a6 J~dica6. Cadernos da PUC/RJ, n. 16. Pontificia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1979, p. 1 09 .
I I
I
116
um objeto externo como fonte de satisfação (fase fálica e, ter
minado o período de latência, fase genital). Daí Freud conclui
"~en la ~ucci5n del ni~o del pecho de la madne modelo de toda
nelaci5n en5tica. fl hallazgo de objeto no e~ nealmente mM que 10 un netonno al pa~~ado". As relações da criança com ou t ra s
pessoas que ao longo de sua infância tenham com ela cuidados
especiais e satisfaçam suas necessidades têm, na verdade, como
modelo, essa relação primitiva com a mãe (ou nutridora), po~
suindo, portanto, e de igual forma, um caráter sexual (pois g~
ra prazer).
Muito cedo, portanto, entre três e cinco anos de idade,
o menino orienta para a mãe o seu desejo sexual e o pai, o qual
percebe como obstáculo â satisfação do seu desejo, será hosti
1izado. O menino desejará suprimí-10 para tomar-lhe o lugar,
constituindo-se aí o complexo de Edipo. A menina, dada a pr1
mitiva relação com a mãe também orientará seus desejos sexuais
para a figura materna, transferindo-os depois para o pai por
razoes específicas: a menina descobre-se desprovida de um pênis
e considera-se, por isso, castrada; entende depois que se tra
ta de uma característica do seu sexo; desvaloriza, por isso,
o sexo feminino e rebela-se contra a mae, culpando-a por tal
desvantagem e por tê-la trazido ao mundo, mulher; volta os de
sejos para o pai, com quem deseja ter um filho, o que simboli
camente realizaria o desejo de ter pênis (substituído aqui p~
la criança, especialmente se for menino). A hostilidade contra
10 FREUO, S. "Tne6 fMayo~ pMa una Teonia Sexual". in op. cit., p.1225.
I 1
1 1 7
a mae e a transferência dos desejos sexuais para o pai, insta
la na menina o complexo de Edipo. No menino sucede o contrã
rio. A visão do órgão genital da menina (que julga castrada)
lhe faz pensar na possibilidade de perder o seu. O medo de ser
castrado (reforçado pelas ameaças feitas pela mãe, pelo pai ou
por outros adultos quando surpreendido em jogos masturbatórios)
encontra um suporte na realidade. O desejo de ter a mãe só p~
ra si e de, para tanto, ver-se livre do pai (o que resulta deum
desenvolvimento natural da sexualidade fãlica) deve ser aband~
nado frente a perigo tão intenso. O complexo de Edipo é dis
solvido, deixando como herdeiro um rigoroso superego, ou seja,
uma identificação com o pai (desfecho normal, no caso do meni
no) ou com a mãe (desfecho normal para a menina), ficando, de~
sa forma, internalizadas todas as advertências e proibições o~
trora externas, carregadas agora sob a forma de uma consciên
cia moral. "No e~ di6icil mo~t~a~ que el ideal dei yo ~ati~6~
ce toda~ aque~la~ exige~cia~ que ~e pla~tea~ e~ la pa~te ma~
elevada dei hO/llb~e. Co~tie~e, e~ calidad de ~u~tituició~ de
la a~pi~ació~ hacia el pad~e, el módulo dei que ha~ pa~tido to
da~ la~ ~eligio~e~. La co~vicció~ de la compa~ació~ dei yo
com ~u ideal da o~ige~ a la ~eligio~a humildad de lo~ c~eye~
te~. E~ el cu~~o ~uce~ivo dei de~a~ollo queda t~a~~6e~ido a
lo~ mae~t~o~ y a aquella~ ot~a~ pe~~o~a~ que eje~ce~ auto~idad
~ob~e el ~ujeto el papel de pad~e, cujo~ ma~dato~ y p~ohibiciE..
~e~ co~~e~va~ ~u e6icie~cia e~ el yo ideal y eje~ce~ aho~a, e~
calidad de co~cie~cia, la ce~~u~a mo~al" .11
11 FREUD, S. "EI yo Ij el EUo", in op. cit., Tomo III, p.2715.
t
I i
I r
118
E todos foram i nfe1 i zes pa ra sempre ...
Está contada a história de Edipo (psicanalítico) em que
se narra o aprisionamento de um desejo ... Está montado o tea
tro do inconsciente, peça eterna, ambulante, que nos faz pe~
der de vista (se quisermos) toda produção maquínica do incons
ciente produtivo, máquina desejante que pode desejar tudo e
qualquer coisa. Está eleita a castração como condição do dese
jo porque só se deseja o que não se tem ou o que não se pode.
Está assentada a resignação da mulher (coitada, não tem pênis,
mas pode ter um filho!) e do homem (condenado a submissão,qua~
do não ao pai, aos seus substitutivos). Está instaurada a cu1
pa, o conflito, a auto-agressão, a neurose. O homem culpado,
inventado pelo "go.tpe. de. gênio do C Jti.ó tia. ni.ó mo " , nas palavras
de Nietzsche, cujos instintos são faltas para com Deus, ("Hi
uma. e..ópêeie. de. de.mêneia. da. vonta.de. ne..óta. eJtue..tda.de.
d d h o d - b - . .. ,,12) E.óta. vonta. e. e..óe. a.e a.Jt eU-Lpa. o e. Jte.pJto o ate. o -lnÔ-<Júto •.• ,
encontra na Psicanálise uma forma de ser culpado
me.nte."; culpado de seu desejo. O superego, instalando dentro
do sujeito, a autoridade e a censura dos pais, cria um sujeito
tomado pela culpa que prescinde de sanções externas para ju!
gar e controlar, não só o seu comportamento, mas seus pensame~
tos e desejos. Prescinde também de punições provindas do exte
rior: já se pune através de mecanismos psicológicos de auto-
agressao e auto-destruição. A mulher que rejeita seu filho se
sente culpada mesmo que nao tenha conhecimento da teoria psic~
12 NIETZSCHE, F.W. A Genea..togia. da. MoJta..t. São Paulo, Editora Moraes,1985, p. 59.
11 9
na1ítica. Não precisa. Na nossa sociedade, a culpa é uma ve~
dadeira instituição. Todos somos culpados por algo que fize
mos ou deixamos de fazer. Freud chegou ao ponto de dizer, so
bre a culpa: "Muc.ho nO-6 ha -6oJtpJte.nd-<'do ha.t.taJt que. e..t -<.nc.Jte.me.n
t:. o d e. e. -6 t:. e. -6 e. nt:.-<.m-<. e. nt:. o -<. n c.. o n-6 c.-<. e. n.:t e. d e. c. u.t pab -<..t-<. da d pue.de. hac.e.Jt
de..t -<.nd-<.v-<'duo un c.Jt-<.m-<.~a.t. PeJto -6e t:.Jtat:.a de un hec.ho -<.nduda
b.te. fn muc.ho-6 c.Jt-<.m-<.na.te-6, -6obJte t:.odo e.n .t0-6 j5ven-6, he.mo-6
de-6c.ub-<.eJtt:.o un -<.nt:.en-6O -6ent:.-<.m-<.ent:.o de. c.u.tpab-<..t-<'dad, que eX-<.-6
t:.-<.a ya ant:.e-6 de .ta c.om-<.-6-<.5n de.t de..t-<.t:.o, y no e.Jta, pOJtt:.ant:.o, una
c.on-6e.c.uenc..-<.a de..t m-<.-6mo, -6-<.no -6U mot:.-<.vo, c.omo -6-<. paJta e.t -6ujet:.o
hub-<.eJta c.on-6t:.-<.t:.u-<.do un a.t-<.v-<.o pode.Jt en.tazaJt d-<.c.ho -6e.nt:.-<.m-<.ent:.o 1 3 -<.nc.on-6c.-<.ent:.e. de c.u.tpab-<..t-<'dad c..on a.tgo Jte.a.t e. ac.t:.ua.t". Quando
até a causa de um crime pode ser um sentimento inconsciente de
culpabilidade, fica praticamente impossivel tentarmos entender
nossas ações, pensamentos e desejos sem escorregarmos para de!!.
tro de uma subjetividade culpada, infantil. Caminhamos sempre
em busca de um passado remoto que, quanto mais distante de nos
sa experiência atual, mais significativo sera para a compree!!.
sao da nossa relação com o mundo.
o teatro montado pela psicanálise faz perder o inconscien
te produtivo (que o próprio Freud descobriu) em favor de um in
consciente representativo, figurativo. Não mais usina, mas
teatro, onàe papai-mamãe-ego estão eternamente representados em
peças infinitas, cada indivíduo transformado num teatro ambulan
te (o único gratuito, às custas, porém, de um alto preço pago
13 FREUD, S. "f.t yo ye.e. EUo", in op. cit., p.2724.
I
I I I I . ~
120
pelo desejo:) A vasta experiência da criança na sua exploração
do mundo, no seu entendimento da vida, afuni1a-se numa experiê~
cia restrita em que os pais estão representados nos brinquedos,
nas peças da casa, nas árvores, nos animais, enfim, em tudo o
que ela toca e experimenta. r interessante transcrever aqui,
a interpretação de Freud da associação de idéias de uma menina
de quatro anos que, ouvindo a prima falar de seu casamento pr~
ximo, interrompeu dizendo: "Si EmilY.6e c.a.6a, tendná. un núio".
A mãe que lhe perguntou, surpresa, como sabia disso, respondeu:
"Cuando alguien .6e c.a.6a, tiene un nino". A insistência da mãe
sobre como ela podia saber tudo isso, voltou a responder: "PUe.6
todavZa .6é muc.ha.6 c.O.6a.6 má..6; .6é también que lo.6 á.nbole.6 c.nec.en
en lá. tienna. sé también que Vio.6 hac.e el mundo". Para Freud,
a menina quer dizer: "sé que lo.6 nino.6 c.nec.en en la madne", po.!:
que a terra estaria simbolizando a mae e "sé también que todo
e.6 obna dei padne", o pai aqui sub1 imado na imagem de Deus. Con
c1ui que a menina queria comunicar seus conhecimentos sobre a
origem das crianças. 14 Fosse qualquer outra associação, Freud
encontraria nela o pai e a mae. A maquinação da criança, 1ig~
da na vida, nas arvores, na origem do mundo, não pode ser vis
ta como uma multiplicidade de elementos distintos, independe~
tes, onde a criança liga seu desejo, sem querer deles nada mais
que a experiência singular. 55 pode ser vista como uma associa
çao cujo vetor s5 pode ser papai-mamãe.
Pai e mãe, de partes entre outras no mundo da criança (não
queremos menosprezar aqui sua importância afetiva para criança)
14 FREUD, 5. "Á.6oc.iac.ión de IdeM de una núÍa de c.uatM ano.6", in op. cit., vo 1. I II, p. 2481 .
l
I
1 21
passam a constituir objetos primordiais para os quais o desejo
e canalizado, as outras partes vindo a constituir meros substi
tutivos perdidos em sua singularidade. No entanto, dizem De-
leuze e Guattari, "o i"con~ciente ~ ;~6~0 e ~e p~oduz a ~i me~
mo na identidade da natu~eza e do homem".15 A psicanilise, con
tudo, quando i"te~p~eta o inconsciente (porque representativo)
não faz mais que uma castração; o inconsciente, miquina dese
jante, só deseja papai-mamãe, perde sua produção maqufnica,di~
persa, para produzir e reproduzir as figuras parentais escondi
das por tris de tudo aquilo que e objeto singular do desejo.
Quando se procura superar o Edipo, fundado no triângulo pai-
mãe-filho em direção a uma estrutura do inconsciente, explic~
da em termos de funções simbólicas, não mais mamãe mas a "6u~
ç~o-mãe", não ma i s papa i, mas a "6unç~o-pai", pa rece que nao se
"ganha" nada, nas palavras de Deleuze e Guattari, "exceto 6u~
da~ a unive~~alidade de Edipo, alim da va~iabilidade da~ ima
gen~, ~olda~ ainda melho~ o de~ejo ã lei e ã p~oibição e leva~
ati o 6im o p~o ce~~ o de edipianização do inco n~ ci ente. " 16
Na verdade, a descoberta do Compl exo de Edi po, por Freud,
veio legitimar o recalcamento do desejo. "Se o de~ejo i ~ecal
cado, não i po~que ele i de~ejo da mãe ou da mo~te do pai; ao
cont~ã~io, ele ~e to~na i~~o po~que ~ ~ecalcado, ele ~Ô to~na
e~~a ma~ca~a ~ob o ~ecalcamento que a modela e nele a coloca" .17
D alvo nao e o incesto, e o desejo, enl sua realidade pura. D p~
15 DELEUZE, C. & GUATTARI, F. op. cit., p.68.
16 Ibid., p.llD. 17 Ibid., p.151.
I I
122
rigo está em de.-óejaJt e nao no que. se deseja, po rq ue o que agi
ta, o que confronta, o que rompe, o que fa z explodir, e o dese -
j o, nao o incesto. r v i ta 1 , portanto, que o desejo s ej a re p ri
mido pela sociedade pa ra que seus mecanismos de exploração e
sujeição possam continuar funcionando. "E -i-ó-óo queJt d-ize./t, não
que. o de.-óe.jo -óeja out/ta ~o-i-óa d-i6e.Jte.nte da -óe.xuai-idade., mM que.
a -óe.xuai-idade. e o amo/t não v-ive.m no qua/tto de. do/tm-iJt de. Ed-ipo,
e.ie-ó -óonham ma-i-ó ~om uma g/tande ampi-idão, e. 6aze.m pa-ó-óa/t e.-ó
t/tanho-ó 6iuxo-ó que. não -óe de-ixam e.-óto~a/t em uma o/tdem e-ótabe.ie.
~-ida. O de-óejo nao 'que/t' a Jte.voiução, e.te e /tevoiuuanált-io po/t
-ó.<. me-ómo e. ~omo que .<.nvoiuntalt-iamente, que/tendo o que que/t" 18
r por isso que o desejo e o inimigo numero um do sistema capi
talista. Ele não e suportado porque e justamente a única ver
dadeira ameaça que pode "6aze/t exp.tod.<./t -óua-ó e-ótJtutuJta-ó de ba
-óe, me.-ómo ao nIve.t da e-ó~oia mate./tna.t".19 Por que tanta ped!
gogia, tanta psicologia em cima da criança, na nossa socieda
de? Não haverá por trás de tanta proteção e investigação do
mundo infantil, justamente o objetivo de controlar? Conhecer,
fazer crescer, para podar? O desejo ... será que podemos achar
verdadeiras manifestações de desejo na escola? Ou melhor: se
ra que o desejo corre livre na escola sem que seja capturado
mal se manifeste e canalizado para objetos e objetivos que in
teressem ã disciplina e o bem de todos? Trataremos disso mais
tarde.
18 Ibid., p.151-2. 19 Ibid., p.481.
123
Não é na escola, porem, que a coisa começa. Nós já vimos,
ela começa muito antes. Para alguns loucos, já na barriga da
mãe. Na sua relação com o feto, a mãe reviveria a sua experiê~
cia infantil, nutrindo em relação a ele sentimentos gerados por
sua experiência com a própria mae (começaria na avó, então,que
tambem foi filha ... !): faria uma identificação com o feto ou
este seria vivenciado como a mãe dentro de si. No primeiro ca
so, "pJwje:ta .6oblte ele .6ua pltõpltia voltac.idade in6an:t-i.l,
de.6ejo.6 da pltimeilta in6ânc.ia de c.omelt a mae. Quando o 6e:to Ite
plte.6en:ta .6ua mâe, c.uja vingança oltal :teme, ~ expeltimen:tado c.o
mo algo angu.6:tian:te e de.6:tltuidolt que ela leva den:tlto de .6i".20
Quando rejeita o feto e tomada por sentimentos de culpa e medo
de que o desenvolvimento emocional da criança traga marcas de~
sa rejeição. Com o nascimento, vêm as experiências que serão de
cisivas para a formação da personalidade da criança ... Se posi
tivas, o desenvolvimento será normal, saudável, equi1ibrado.Se
negativas, o desenvolvimento será afetado e a criança es ta rá
quase que "c.ondenada" a neurose, psicose, ou de1inquência. Só
que os criterios que definem a boa ou má relação são os crite
rios cientificos da "lõgic.a do de.6ejo". Sim, porque, como Fo~
cault nos sugere, a psicanálise constrói uma lógica do desejo
que estabelece trilhas para o instinto sexual como tanDem o seu
objeto. A partir dos três anos de idade, a criança já faria a
20 LANGER, Marie. Ma:teJtnidade e Sexo. Porto Alegre, Artes Medicas, 1986, p.197, citada por MONTEIRO, Vitoria Lucia M. P. M!J.lheJt e PatLto: Itec.tz..<.ando a Iteatidade a:tJtavê.6 do p.6ic.odttama. Rio de Janeiro, Fundação Getulio Var gas, Instituto de Estudos Avançados em Educação, Departamento de Psico10 gia da Educação, 1988. Tese de Mestrado, p.55-6.
I
124
"e~colha de objeto" que, dependendo de um desenlace final (a
dissolução do Complexo de tdipo) viria definir a normalidade
ou anormalidade do desenvolvimento da personalidade. " el
-i.1lJ.d-i.nto ~ exual del adulto quedaba oJt-i.g-i.nado pOJt la Jteun-i.õn de
muy d-i.veJt~o~ -i.mpul~o~ de la v-i.da -i.n6ant-i.l en una un-i.dad,en una
tendenc-i.a, oJt-i.entada hac-i.a un ~olo y un-i.co 6..i.n". 21 Este fim,
é a organização genital, que, no adulto (com inicio na puberd~
de), deve ter primazia sobre os diversos instintos parciais que,
na vida sexual infantil, são isolados e tendem independenteme~
te para a obtenção de prazer. "fl 6..i.nal del de~aJtollo e~tá co~
t..i.tu..i.do pOJt la. llamada v..i.da ~ exual nOJtmal del adulto, en la cual
la con~ecuc-i.5n del placeJt entJta al ~eJtv-i.c..i.o de la 6unc..i.5n Jte
pJtoductoJta, hab..i.endo 60Jtmado lo~ ..i.n~t..i.nto~ paJtc..i.ale~ bajo la
pJt..i.mac-i.a de una ún..i.ca zona eJt5jena, una 6-i.Jtme oJtgan..i.zac..i.5n pa
Jta la con~ecuc..i.5n del 6..i.n ~exual en un objeto ~exual exteJt..toJt".22
Deleuze & Guattari veêm o desejo como uma máquina de p~
ças distintas, independentes e dispersas. O objeto do desejo é
parcial, fragmentado. O desejo não deseja aquilo que falta aos
objetos parciais, ou seja, a sua unificação, o seu sentido num
conjunto, numa totalidade para a qual eles apontam e sempre lhes
falta. A falta só se dá na estrutura e em relação a um termo
que unifica as partes mas que não faz parte, ele mesmo, do con
junto (o fálus) - um troféu pelo qual "o openã.Jt-i.o convocado paJta
a gueJtJta abandona ~ua~ mã.qu..i.na~ e ~e põe a lutaJt". 23 Mas a rea
21 FREUD, S. "TJte~ f~ayo~ paJta una TeoJt-i.a Sexual", in op. c it., p. 1230. 22 I bi d., p. 1 209 .
23 DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Op. cit., p.410.
125
1idade do inconsciente nao é estrutural e aos seus objetos pa!
ciais não falta nada. As pessoas globais nao nos falam do in
consciente, do desejo. "O ineon~eiente i9no~a a~ pe~~oa~, o~
eonjwItM e a~ lei~; a~ imagen~, a~ e~t~utu~a~ e o~ ~Zmbo.e.o~. Ele
- - - o - • " 24 1 . d e o~6ao, eomo e~e e ana~qu~~ta e ateu. As tota 1 ades, as
pessoas globais, sõ existem para o desejo edipianizado que pr~
cisa delas para se produzir e reproduzir. A organização genital
não totaliza as pulsões parciais que evoluiriam em sua direção
porque a sexualidade não está a serviço da geração. E a ger~
ção dos corpos que está a serviço da sexualidade. A reprodução
é força do inconsciente, não finalidade dos corpos. A sexuali
dade é auto-produção do inconsciente que o modelo biológico de
Freud condiciona ao desenvolvimento psicossexual do indivíduo,
ao ponto de fundar a primazia da organização genital como con
dição de normalidade no adulto, justamente porque a serviço da
reprodução da espécie.
o pensamento de Deleuze & Guattari reverte tudo. Parece
que eles pensam de cabeça para baixo ... ou com outra coisa que
nao a cabeça Mas parece que isso é necessário. A psicanI
lise é muito racional, muito coerente, muito lógica e
que o desejo não é nada disso ...
pa rece
A crítica da psicanálise é, aqui neste trabalho, a críti
ca da captura do desejo da criança que, presa as malhas da dis
ciplina a partir do século XIX, no nosso país, é hoje também
24 Ibid., p.394.
126
presa as malhas do conhecimento cientifico, porque a psicanáli
se serve a sua maneira o poder que ai está e que atua por mec~
nismos que envolvem os individuos na sua intimidade, controlan
do seus gestos, sua conduta e seu desejo.
CAPTTULO 4
FRAGMENTOS VO CAMPO SOCIAL: ANÃLISE VE
PRÃTICAS QUE SE ARTICULAM NA PROVUÇÃO
VE SUBJETIVIVAVE VA CRIANÇA
Procurarei desenvolver aqui uma reflexão sobre algumas
práticas do nosso campo social cujo alvo é a criança. Pela im
possibilidade de realizar um trabalho exaustivo, e também por
questão de interesse, selecionei algumas que se ocupam da edu
cação ou com ela se relacionam direta ou indiretamente.
o objetivo e mostrar que essas práticas visam ã p~odução
de uma hubjetividade, ou seja, ã produção de uma criança que
pense, que goste, que tenha percepções, objetivos e desejos que
interessem ou sirvam para fortalecer os mecanismos de contro
le, de submissão e, ao mesmo tempo, de extração da força dos
individuos em beneficio de um sistema social fundado em valores
de troca, propri eda de pri vada, produção, consumo ...
Faz-se dessa criança, produzida historicamente, um obji
to natu~al que é preciso conhecer, descobrir, compreender
Com isso, os dispositivos de poder, que nada mais sao do que
as mesmas práticas, simulam a "igualdade" entre a criança bur
guesa e a criança pobre o que fundamentará a idéia de que ã crian
ça pobre 6alta aquilo que a outra tem, justificando toda uma
postura assistencialista que procura atender a eh~a~ ~a~ên~~a~
128
para por fim às desigualdades... O pior e que se produzem no
pobre metas e sonhos burgueses que o levam a uma prática favo
ráve1, no fim, a que tudo conti nue como está.
1 • "A Re.lação E.6 c.ola- FamZLi.a"
Em trabalho elaborado no período de julho de 1979 a dezem
bro de 1981, Marilia Amorim registrou sua experiência como coa.!:.
denadora acadêmica das séries do pré-escolar à 3~ série do pri
meiro grau, numa escola de classe media, na zona sul do Rio de
Janeiro, com o objetivo de levantar questões acerca da relação
família-escola. Para fins de comparação entre dados, Amorim
buscou elementos em escola publica que atende a famílias de bai
xa renda, visando a apontar especificidades nos dois contextos
analisados, quanto à produção do sujeito (criança) e a dinâmi
ca da relação Escola-Família.
Inicialmente, observa a autora que nos dias de hOje a
criança entra na escola muito mais cedo do que entravanl as cria.!!
ças de gerações passadas, sendo com isso delegado à escola um
poder ainda maior do que no passado sobre o processo de sacia
1ização da criança.
Em muitos casos, já a partir do primeiro ano de vida, fa
mí1ia e escola repartem o controle sobre a vida da criança. A
"tia" na escola (na verdade a professora) vai representar "to
da uma p~âtic.a e..6c.ola~ de. 6amZlia~ização de. .6ua.6 ~e.laçõe..6, c.omo
6o~ma de. oc.ultame.nto da.6 ve.~dade.i~a.6 ba.6e..6 que. c.on.6t-i.tue.m e..6
.6a.6 ~e.laçõ e..6 • ,,1
1 AMORIM, Marília. "A Relação E~c.ola-F~a". Cadernos. Laboratório dePsi co1ogia Social Clinica. UFRJ, Ano I, n. 2, outubro 1985, p.g.
1 29
Da caracterização da escola de classe média,consideramos
digno de nota o quadro de profissionais especializados, compo~
to por: Diretoria (diretora geral, diretora acadêmica, direto
ra administrativa, diretora de admissão e registro, diretora
de integração comunitária), Assessoria Pedagógica Geral, Coor
denação de ~rea (cada área tem seu coordenador), Coordenação
de segmento, Orientação Educacional, Professores. Devidamente
"quadJtA...c.uf..adol.>" os indivlduos (inclusive os alunos, como esqu~
cer?), o poder disciplinar atravessa nesta escala com a máxima
eficiência, não sendo esquecido nenhum detalhe: a criança con
ta com uma equipe perfeita para "pJtomoveJt .6ua .6ouaUzaç.ão". Vale
salientar que psicólogos e/ou pedagogos estão presentes na Di
retoria, Assessoria, Coordenação e Orientação Educacional; co
mo nao poderia deixar de ser numa instituição cujo fim primo~
dial e educ.aJt, onde, por isso mesmo, o saber especializado so
bre a c.JtA...anç.a se faz indispensável. Não será uma servente que
ditará regras de comportar:lento para professores e alunos ouque
estabelecerá a metodologia de ensino por mais brilhante que se
ja na utilização de suas experiências e de suas idéias. O sa
ber sobre a criança, possuem-no os especialistas que dedicaram
anos de suas vidas ao estudo do que até agora se registrou so
bre a criança e se elevou ã categoria de um saber legltimo e
cientlfico.
O problema da adaptação da criança ã escola, principalme!!.
te por ocasião de seu ingresso, parece, hoje, algo generaliz~
do. Os primeiros dias são sempre muito problemáticos e famllia
e escola fazem de tudo para que as dificuldades sejam super~
das. O foco e sempre a criança. E por ela e para ela que pr~
130
v i dê n c i a s e p r o c e d i me n tos s a o d i s c u t i dos e tom a dos . ~1a ríl i a Amo
rim aponta para este problema em seu trabalho, pois ele apar~
ce como uma das principais dificuldades indicadas pelos profe~
sores da escola em questão. O problema de adaptação das cria~
ças que estão indo a escola pela primeira vez caracteri za-se
pela "ILe.6.i.6têYlc..ia da c.IL.iança em eYltILaIL e peILmaYlec.eIL na e.6c.ola.
Tal ILe.6.i.6têYlc..ia .6e c.onc.lLet.iza 6.i.6.ic.ameYlte: a c.IL.iaYlça Yl~O .6e .6!
paILa da m~e e, .6e 6oILç.ada a .i.6to, c.holLa e gIL.ita .6 em paILaIL. ,,2 E
este o inicio dessa grande etapa de socialização fora da fami
lia: choro, grito e em seguida, adaptaç~o. Isso me lembra uma
antiga piada sobre três rapazes que recebiam orientação reli
giosa. Recomendados para que, em determinado dia, praticassem
uma boa ação, todos três, cumprido o dever, comunicaram ao mes
tre a ação praticada: "ajude.i uma velh.iYlha a atILave.6.6aIL a ILua".
Estranhando que todos três tivessem feito a mesma coisa e inda
gando se se tratava da mesma velhinha, o mestre obteve ares
posta - "E que ela Yl~O queIL.ia atILave.6.6aIL . .. ".
Alguém duvida de que colocar a criança na escola é um de
ver, ou mais ainda, um direito da criança? Apenas nos esquec~
mos de indagar se é a vontade dela.
Fui testemunha da seguinte frase de uma criança que se
dirigia a sua mae: "POIL que voc.ê me botou Yla e.6c.ola? Voc.ê pOIL
ac.a.6o peILguYltou .6e eu queIL.ia?"
Comentando o "peILZodo de adaptaç~o" na escola em que re~
lizou o trabalho, Marilia Amorim coloca: "E.6.6a.6 dua.6
2 I b i d ., p. 34.
1 31
~on~i~tem em momento~ de ba~tante tumulto e ten~~o na e~~ola.
PaJta atendeJt a~ diveJt~a~ ~Jtiança~ e m~e~ * ói~am di6porUvW, além
da~ pJtoóe~~oJta~ de tUJtma, outJto~ óun~ionáJtio~: a a~~i~tente a~
mini~tJtativa, a a~~i~tente peda959i~a, o ~e~JtetáJtio, a~ ~eJtve~
te~, a oJtientadoJta edu~a~ional e a ~ooJtdenadoJta. TJtata-~e de
um veJtdadeiJto plant~o e~~olaJt onde o~ pJt5pJtio~ diJtetoJte~ a~ ve
ze~ paJtti~ipam.,,3
E clara a necessidade de "aliado~" nesse empreendimento
tão difícil. Na verdade são forças que se unem para "dobJtaJt"
a criança. Na verdade é a força do poder disciplinar que se
dirige contra a força irracional, desobediente e espontânea da
criança. Não devemos esquecer porem, que nao e com violência
que tudo se processa, pelo contrário, e com "c.aJtinho, dedic.a
çao e muita pac.iin~ia" segundo palavras de uma das professoras
citadas pela autora. 4
Amorim constata que as maes também sofrem a problemática
da adaptação, mostrando dificuldades em separar-se do filho,
atê mesmo chorando em alguns casos. Sociedade interessante es
ta em que mae e filho devem sofrer, ao longo do tempo contínuas
experiências de separação, dolorosas para a mãe, dolorosas p~
ra a criança. Parece, entretanto, que o "laço pJtimoJtdial" en
t r e mãe e f il h o s e f a z n e c e s s á r i o jus ta me n t e p a r a que se pude s se
* Na escola em questão e permitido ãs mães que permaneçam na escola ã espe ra do filho (este ciente) nos dois primeiros dias, podendo este prazo ser estendido ate o final da primeira semana, ou final da segunda semana ouate o final do primeiro mês, conforme a necessidade. 3 Ibid., p.35. 4 I b i d ., p. 34 .
I
132
mais tarde ".6eque.6tltã.-.to" para dentro das instituições que se
responsabilizam por sua formação específica para um campo so
cial determinado. Tais instituições precisam justamente dessa
criança dócil que na experiência com a mae e sob seus cuidados
tão delicados e minuciosos já se insere numa relação de prot~
ção, controle e vigilância que as instituições tratarão de man
ter e prolongar.
Difícil para a mae, difícil para a criança, a -separaçao
nao é, contudo, por mim entendida como uma experiência em que
mae e filho são espelho um do outro, como coloca a autora na
seguinte passagem: "Embolta não .6eja 6ltequente, e.ta (a c.1t.-é..ança)
pode c.1t.-é..alt uma .6.-é..tuação ta.t que a e.6c.o.ta e a 6amZ.t.-é..a.6e vejam
oblt.-é..gada.6 a de.6.-é...6t.-é..1t pe.ta .-é..mpo.6.6.-é..b.-é...t.-é..dade que aplte.6enta de pe~
manec.elt na e.6c.o.ta. Ne.6.6e c.a.6o, peltgunta-.6e, até que ponto e.6.6e
c.ompolttamento da c.1t.-é..ança e.6plte.6.6a o de.óejo ma.-é...ó 60ltte
de não entltegalt a c.1t.-é..ança ã e.6c.ola?"S
da -mae
Essa interpretação "p.6.-é.." dificulta o entendimento da ex
pelt.-é..~nc..-é..a da c.1t.-é..ança e .óeu de.6ejo que, na minha opinião, nao
deve ser entendido como um reflexo do desejo da mae.
Ao lado do problema de adaptação, a indisciplina aparece
como a outra grande dificuldade apontada pelos professores da
referida escola; só que, apenas é encarada como tal a partir
da primeira serie do 19 grau, podendo já delinear-se a partir
do Jardim 11, uma vez que, nesta escola, (e acredito que pod~
S I b i d ., p. 48 .
I
133
mos generalizar} os problemas na relação professor-aluno prov~
cados pela criança do pré-escolar não são entendidos ou nomea
dos como indisciplina, recebendo outros nomes tais como "de.6.in
te.lte.6.6e, d.i.6pe.lt.6ão, ag.lte.6.6.iv.idade e alL6ênc..ia de .f...tm..tte.6.,,6
As ciências psicológicas, como podemos ver, adoram nomes
e, com isso, as resistências da criança ao poder disciplinar
são, dependendo de ~ua faixa etária ou período escolar, nomea
das e entendidas diferentemente porque o conhecimento científi
co sobre a criança nos ensina que seu desenvolvimento e uma su
cessão de etapas e em cada uma delas a criança é um sujeito di
ferente, com data certa (ou pelo menos com uma certa previsibi
lidade) para se tornar ".lte.6pon.6â.vel" por seus atos. Antes de
indisciplinada ela é dispersa, desinteressada ou agressiva e,
neste caso, cabe ao p.lto6e.6.60.lt 7 resolver o problema em sala e
com os recursos de que dispõe (táticas e materiais). O probl~
ma parece ser ma i s "p.6..tc.olõg..tc.o" que ".6 o c..ial" . Quando "e6et..tv~
mente" indisciplinada (porque mais crescida) o problema parece
ser mais ".6oc...tal" que "p.6..tc.olõg..tc.o" pois, em casos de probl~
mas disciplinares mais serios, professores, funcionários e di
retores se empenham na sua resolução, sendo inclusive realiza
das reuniões em que se colhem "depo..tmento.6,,8 de professores e
funcionários a respeito dos comportamentos indisciplinados. E
inquerito mesmo e, na verdade o problema e mais "pol.ic...tal" que
"p.6.ic.olõg.ic.o". Quando o problema se caracteriza realmente co
mo indisciplina também surge a referência ã família que aparece
6 Ibi d. , p.36. 7 Ib i d. , p.37. 8 Ibid. , p.39.
134
nos depoimentos através das citações de frases das crianças:
"Minha mãe. di.6.6e. que. voc.ê não me. manda", "mamãe. diz que. voc.e..6
.6ão me.u.6 e.mp~e.gado.6 po~que. o papai ~ que.m paga voc.ê.6."g Come
ça-se, então, a fazer referências a fami1ia e especialmente a
mae: "0.6 óUHc.ioná~io.6 diziam que. a ho~a de. maio~ indi.6c.iplina
e.~a de.poi.6 do ho~ã~io de. .6a2da. Ve.poi.6 que. 0.6 p~oóe..6.60~e..6 e.n
t~e.gam a.6 c.~ianç.a.6 a.6 mãe..6, e..6ta.6 óic.am c.onve.~.6ando e. não tomam
ne.nhuma atitude. e.m ~e.laç.ão ao c.ompo~tame.nto do.6 óilho.6, pe.~m{
tindo que e.le..6 6aç.am o que. qui.6e.~e.m."lO
Parece, portanto, que a medida que a criança se torna mais
velha (e também mais forte, e mais experiente) trata-se de, não
sã responsabilizá-la por seus atos (porque assim o exige a que~
tão da idade) mas também de apontar para a fami1ia (especial
mente para a mae, como não poderia deixar de ser) como sendo
fonte de problemas. Na escola em questão, ã responsabilidade da
criança responde-se com sanções (como toda instituição disci
p1inar que se preze) e ã responsabilidade da fami1ia respond!
-se com algumas medidas tais como: "no que. .6e. ~e.óe.~e ao ac.u.60
liv~e. que. a.6 mãe..6 p0.6.6u2am e.m ~e.laç.ão ao e..6paç.o e..6c.ola~*, óoi
c.oloc.ado um po~tão e um po~tei~o de. modo que. a mae. .60 pode.~á
e.nt~a~ na e..6c.ola c.om uma auto~izaç.ão de. um do.6 e.lemento.6 que.
c.omume.nte. a ate.nde: p~oóe..6.6o~a, c.oo~de.nado~a, o~ientado~a ou
di~e.to~a."ll Punição para ambas: criança e mãe, porque deve
9 Ibid., p.39. 10 Ibid., p.39.
* O acesso era livre antes do agravamento de problemas disciplinares que ocorreram no periodo em que Mari1ia Amorim realizava o seu trabalho.
11 Ibid., p.40.
I I
I
I I
1 35
ficar claro o poder da escola como também a sua isenção. Fren
te ao "de..6.inte.ILe..6.6e." ã "d.i.6pe.lL.6ão" e ã "aglLe..6.6.iv.idade." dos p~
quenos, a psicologia mas, contra a indisciplina, a punição. Con
tra uma força que cresce, uma força maior. As "pe.lL.ipêua.ó" dos
pequenos a escola assume e tudo faz para resolver mas a indis
ciplina dos maiores há que ser combatida e, nos casos mais di
ficei s juntamente com a famíl ia: " ... 0.6 pa.i.6 .6ão c..hamado.6 p~
lLa uma e.ntlLe.v.i.6ta c..om a olL.ie.ntadolLa palLa que. tambêm atue.m na
d.i.6c...ipl.inalL.ização da c..1L.iança. ... Quando oc..OILILe. 0.6 pa.i.6 .6 e.
lLe.m c..hamado.6 v~lL.ia.6 ve.ze..6 e. a.6 me.d.ida.6 d.i.6c...ipl.inalLe..6 do c..olê
g.io nao obte.lLe.m uma mudança de. c..ompolLtame.nto da c..1L.iança, a 6~
mZl.ia ê adve.lLt.ida que., no ano .6e.gu.inte., a matlLZc..ula do aluno
- - d ,,12 nao .6e.lLa lLe.nova a. E a vitória final da escola. A família
leva uma lição, a criança é excluida. Quando esta fica mais
forte, a escola também trata de se fortalecer. Inicialmente
procuranao enfraquecer a criança (mostrando sua responsabilid~
de) depois a familia (acusando-a pelo comportamento do filho)
e posteriormente excluindo-os para o bem da comuniciade escolar.
Não podemos, agora, deixar de explorar as frases das crian
ças ("M.inha mãe. d.i.6.6e. que. voc..ê não me. manda" e "mamãe. d.i.6.6e. que.
voc..ê.6 .6ão me.u.6 e.mplLe.gado.6 pOlLque. o papa.i ê que.m paga voc..u") co
mo elas merecem.
Em primeiro lugar, a criança mostra o .6e.u poder, um poder
de resistência que, apesar de toda máquina institucional (fami
1iar e escolar) não se deixa exterminar, atravessa pelas pequ~
12 Ibid., p.4l.
136
nas brechas que encontra. A criança nao e boba. Ela sabe que
é um alvo.
Em segundo lugar, a criança ".6ac.a" a disputa, a guerra
na qual está inserida como o objetivo a ser conquistado (pela
escola) ou defendido (pela família) e sabe muito bem como "pOIt
60go na 60gueilta". Na minha opinião, as crianças que disse
ram essas frases nada mais visavam além de colocar família e
escola, uma contra a outra. Conscientemente? r possível que
nao. Não me arvoraria, contudo, a interpretar suas palavras
como expressão de desejos inconscientes reprimidos porque -nao
~ preciso psicanalizã-la para ".6ac.altmo.6" a maneira como entrou
na disputa, que ~, vale dizer, a maneira como pode entrar.
Em terceiro lugar, devemos observar, e aí com tristeza,
o quanto as frases nos informam sobre esse sistema em que viv~
mos que, tão precocemente faz passarem as idéias de "mandalt" ,
de "quem e que paga", de "quem e o empltegado". E o alvo princl
pal é novamente a criança que cresce e faz crescer com ela essas
forças contra a vida.
Sobre as observações da autora na escola pública pa ra
c r i a n ç a s d e f a m íl i a s de b a i x a r e n da (s e g u n d o c a r a c t e r i z ação f e.!.
ta pela autora a partir da observação de dados arquivados pela
escola) chamam-nos a atenção os seguintes dados.
A família participa muito pouco das atividades da escola
e do próprio processo de aprendizagem da criança. Quando pr~
sente em algumas reuniões gerais ".6ua pO.6~ulta e mai.6 de ouvin
I
137
te havendo ttatto.6 ca.6O.6 de pe.6.6oa.6 que pedem a palav.'ta. ,,13 "Acei...
tam o tttabalho do ptto6e.6.6ott e da e.6cola em gettal, .6em tte.6ttti
çõe.6.,,14 ... "em toda.6 a.6 tteuniõe.6 ob.6ettvada.6, patta qualquett
que .6eja o a.6pecto di.6cutido, a pO.6tutta do.6 pai.6 i .6emptte de
total concottdância com a e.6cola e de apelo patta Que e.6ta exett
ça um contttole ttigotto.6o .6obtte o compotttamento da cttiança, attg~
mentaHdo que ele.6 nã.o di.6põem de meio.6 patta 6azê-lo.,,15
Fico imaginando uma reunião dessas, coordenadas pela Orien
tadora Educacional e me pergunto se frente ao dialeto "pedag~
gê.6" os pais das classes pobres de nossa sociedade podem ani
mar-se a dizer alguma coisa. Que língua ê essa? (devem pe~
sar). E a língua do saber especializado que nem mesmo as fam;
lias n.ais abastadas entendem mas tratam logo de aprender po.!:
que têm recursos para isso: (da escola partic~
lar) .601icitam con.6tantemente tteuniõe.6, com a Ottientadotta Edu
cac.ioHal, pott exemplo, cujO.6 tema.6 .6ao, enttte out~O.6, 'A ttela
ção pai.6 e 6ilho.6', 'A .6exualidade In6antil', e a.6.6im pott dian
te. Houve um cu~.60 o6ettecido na e.6cola, com altZ.6.6ima 6ttequê~
cia de mae.6, chamado 'Educaç.ã.o Familiatt,,,.16
Não resta dúvida de que se existem cursos como estes e
porque ê neles que podemos encontrar a "ve~dade". A verdade da
sexualidade infantil, a verdade sobre a relação pais e filhos
13 Ibid. , p.72. 14 Ibid., p.76. 15 Ibid. , p. 77. 16 Ibid. , p.56.
I
138
e a verdade sobre a Educação Familiar, com todas as suas recei
tas.
o discurso pedagógico está cheio de todas essas verdades
e os familiares de uma criança favelada não só as desconhecem
como não tem meios de acesso a elas. Além disso, tais verda
des estão muito mais próximas de um modo de vida burguês do
qual as camadas populares de baixa renda não compartilham.
A família pobre parece delegar ã escola quase a total ida
de do poder não só de ensinar (este principalmente) mas de edu
caro Apela, como vimos para que a escola exerça "cont~ole ~i
go~0.60 .6ob~e. o c.ompo~ta.mento da. c~ia.nç.a.". Na mi nha opinião, con
tudo, isso não quer dizer que se submetam mais. Parece-me, aliás,
que as famílias privilegiadas são mais submissas pois,
ram até conhecer e assimilar o saber especializado para
proc~
tê-lo
como guia. Pelas informações que nos traz Marília Amorim, no
caso estudado, as famílias da favela ficam imunes ao discurso
psico-pedagógico e levam suas vidas sem se deixar afetar por
ele. Marginalizadas pela sociedade, ligam suas vidas a valo
res e discursos diferentes.
Aqui sugiro uma pesquisa que infelizmente extrapolaos
objetivos deste trabalho: os reais motivos pelos quais a crian
ça pobre vai para a escola. A que visam seus pais? O que es
peram? Eu poderia arriscar a hipótese de que o motivo funda
mental e o desejo de que seus filhos aprendam a ler e escrever.
A sua consciência e experiência de vida são suficientes para
que saibam que tudo o mais que a escola ensina pouco tem a
139
ver com suas vidas. E apenas uma hipótese, e fica a sugestão
para uma pesquisa que se realizada, certamente nos trará consi
derações valiosíssimas.
Quanto ao problema de adaptação no caso da escola pübli
ca, gostaria de fazer algumas observações a partir do que e co
loca do no tex to: "Ne~~ a comunidade, po~tanto, o pe~Zo do de
adaptação pa~ece ~e~ vivido como um p~oce~~o a ~e ~e~olve~ no
âmbito da ~elação p~o6e~~o~-aluno. Além di~~o, o p~oce~~o -e
~ápido já que a maio~ia da~ c~iança~ não ap~e~enta
cia~ a ing~e~~a~ no e~paço da vivência e~cola~ e, no~ ca~o~ de
di6iculdade, há uma p~e~~ao inten~a, po~ pa~te do~ pai~,
que a c~iança ~e adapte".17 Notamos que a adaptação aí
constitui um p~oblema e muitas razões parecem justificar
pa~a
nao
esse
fato. Uma delas parece ser o modo de vida da criança pobre
que, antes de ingressar na escola já tem uma vida de experiê~
cias as mais diversas, até fora de casa. Ela não vive, desde
muito cedo, no colo da mae ou sob sua proteção. Muito precoc~
mente conhece o mundo de "além do la~" compartilhando com as
outras crianças vizinhas das brincadeiras e das experiências
(agradáveis e desagradáveis) que a vida oferece. Quando entra
para a escola já tem vivido um processo de separação da mae ou
de quem a protege e sua experiência com outras crianças e ou
tros adu1 tos já tem certo peso na sua vi da. O "p~oblellla de adaE.
tação" é pois algo produzido pelo modo de vida da criança que
vive o mundo interior do lar, protegida dos perigos da rua, da
1 7 I b i d., p. 79 .
I I i:
140
vida, do desconhecido, sob os cuidados e vigilância dos pais
e/ou da babá. Vemos, portanto, que a~ p~át~ca~ fazem emergir
os problemas que, a partir da sua emergência, vão ser e nca ra
dos como "natu~a~~" e vão constituir um objeto de um saber:
"Tamb~m 6e con6~de~a que há p~06e6~0~e~ ma~~ e6~c~ente6 em 60
.e.uc~ona~ o p~ob.e.ema - aque.e.e~ que já t~m expe~~~nc~a em r6aze~
adaptação r (exp~e~~ão u~ada comumente no co.e.ê.g~o I. * O~ que não
t~m expe~~~nc~a 6~cam ma~~ ne~vo~o~ e nunca 6ao co.e.ocado~ pa~a
b o h . h +. . . . " 1 8 A rr d - rr t~a ao\- a~ 60z.{.n o~ ne~6a~ -1..u~ma~ .{.n.{.c.{.a.{.~. a aptaçao ap~
rece, portanto, como um problema natural que há de ser tratado
com muita experiência e sabedoria. Com as crianças pobres a
sua "natu~a.e.~dade" parece desaparecer e, aponta Amorim, "
no~ ca~o~ de d~6~cu.e.dade há uma p~e~~ão ~nten~a, po~ pa~te do~
pa~~, pa~a que a c~~ança ~e adapte". Não há muita escolha. A
criança pobre dificilmente dispõe de alguém que possa dedicar
a ela uma atenção integral e que (muito menos) possa iniciá-la,
no lar, no mundo da escrita e da leitura. No momento de ir p~
ra a escola tem que ir mesmo ou estará selando uma vida de so
lidão e de muitas dificuldades.
o "p~ob.e.ema de adaptação" parece ser bem recente. Não me
lembro de ter passado por um "pe~Zodo de adaptação" na escola,
como também desconheço, daquela época, programas e horários e~
peciais para as crianças que entravam para a escola pela pr1
meira vez. Hoje uma escola que se preze e queira mostrar com
petência, terá fatalmente seu programa para o período de adapt~
* Trata-se aqui da escola particular. 18 Ibid., p.36.
141
çao e chegamos ao ponto em que: "O pJtoblema da adaptação .óe ma
ni6e~ta paJta o col~gio em gJtau~. Con~ideJta-~e que hi ca~o~ de
cJtiança~ mai~ di{[cei~ - quando a adaptação ~ Jtipida." 1 9
que se trata de justificar um trabalho a todo custo?
Será
A questão da disciplina, seguindo as observações de Mar;
lia Amorim, parece também ter a sua especificidade na escola
frequentada pelas crianças pobres. Mais do que problema de dis
ciplina existe, aqui, o problema da formação de hábitos: "Se
gundo a pJtôpJtia diJtetoJta, con~ideJta-~e que ê 6unção da e~cola
cJtiaJt hibito~ .e e~tabeleceJt Jtotina~ paJta a vida da cJtiança
que, ne~~a comunidade, 60Jta da e~cola, ~ua~ vida~ em geJtal,~ão
ba~tante de~e~tJtutuJtada~. VentJto de~~a peJt~pectiva, ~ con~ide
Jtado nOJtmal JtepJteendeJt a cJtiança .óe ela não e~ti ~entada em
po.ótuJta 'adequada', .óe ~ua cami.óa e.óti de.óabotoada, ~e nao ~e
gue a.ó noJtma~ de compoJttamento paJta andaJt em 6ila e a.ó.óim pOJt
diante. Segundo a.ó pJto6e.ó~oJta.ó, o cumpJtimento de.ó.óe.ó a~pecto.ó
di.óciplinaJte.ó exige pOJt paJtte dela~ um tJtabalho inten.óivo e vi
- - W gilante poi~ e~~a~ cJt.iança~ nao tJtazem de ca~a tal educa.çao."
o que estas crianças não trazem de casa é um modelo de
comportamento burguês que se quer como àominante. Se tal probl~
ma não foi apontado pelas professoras da escola particular da
zona sul do Rio, deve-se provavelmente a que tais crianças,tJt~
zem de ca~a tal educação, pelo menos em sua maioria. Trata-se
pois de um tipo de comportamento eleito em detrimento de um ou
19 Ibid., p.35. 20 I b i d., p. 80 .
142
tro que passa a ser desqualificado. São as crianças pobres que
devem modificar seus hábitos em função do outro modelo. O modo
de vida burguês que prima pela semelhança entre os indivíduos
(vejam-se os costumes, a moda, os valores, etc) e portanto oe~
colhido por uma máquina de poder que tanto melhor funciona qua~
to menos "e.mpe..IL.lLada" for por produções de diferença que sao
mais visíveis ã meoida que caminhamos para os níveis mais bai
xos da sociedade.
O comportamento indisciplinado, segundo a autora, e raro
nessa escola, tendo sido inclusive observada nos alunos uma ati
tude frequentemente solícita e de pronto atendimento ao que e
proposto ou exigido. Observa,contudo, Marília Amorim que al
guns profissionais da escola e pais têm uma expectativa de seve
ridaàe da escola (que se efetiva na prática) frente a probl~
mas disciplinares (os pais, aliás assim o desejam). Interessan
te esta expectativa nos pais. Não sei se está assentada nos
mesmos motivos pelos quais são severos os professores. Estes
visam, na sua exigência a produção de um sujeito disciplinado,
nos moldes, como vimos, do comportamento burguês; aqueles, o
que visanl quando solicitam ã escola "um c.on:t.ILo.te .IL-tgo.IL0.60 .60
b.ILe. o c.ompo.IL:tame.n:to da c..IL-tanç.a?". Será a mesma coisa? Ou algo
diferente como uma garantia de permanência, ou de não perder
a chance de uma possível melhoria de vida para a criança, para
a fanl íl i a?
Essa hipótese parece ser plausível quando aparece o pr~
blema da aprendizagem. Na escola pública, em questão,as crian
143
ças apresentam dificuldades, aprendizagem lenta, problema que a
escola "Jte..6o.tve." montando turmas especiais (uma denominada CAD
composta por alunos que "n~o apJte..6e.ntam pJtontid~o paJta .6e.Jte.m
a.t6abe.tizado.6",21 embora ji devessem cursar a primeira s~rie*
e uma out ra que e a pri mei ra s~ri e repetente, pa ra aqueles que
não conseguiram alfabetizar-se). Observa Marília Amorim que
este problema não gera tensão na escola embora o numero de alu
nos nessas turmas seja maior do que nas demais. A dificuldade
de aprendizagem parece ser encarada como fato natural. "PMe.C.e.,
poJttanto, que. a pJte.oc.upaç.~o da e..6c.o.ta e..6tã. muito mai.6 Jte.6e.Jtida.
a 6oJtmaç.~o de. hã.bito.6 - andaJt e.m 6i.ta, te.Jt a. c.ami.6a. .6e.mpJte. ab~
toada, e.tc. - do que. a apJte.ndizage.m pJtopJtiame.nte. dita", conclui
A . 22 mo r1 m.
De fato, parece que a escola funciona para a criança p~
bre muito mais como elemento de contensão do que de promoçao
social. Torni-la igual ã criança burguesa resol ve o incômodo
(e a ameaça) dos comportamentos desajeitados, dos "mau.6" hãbi
tos que muitas vezes são difíceis de tolerar quando o convívio
~ i n e v i t ã v e 1 mas, e n s i n a r a 1 e r e e s c r e ver r e sol ve a p e nas o p r~
blema da criança .,. De posse desse recurso tão valioso na nos
sa sociedade, a criança pob re "inc.omodaJtia" muito mais!
toso? De forma alguma. Não conheço escola ou professor
ne.gue. a ensinar a ler e escrever as crianças da s camadas
1 a re s . O que acontece e que as dificuldades sao muitas
criança não aprende ...
21 Ibid., p.82.
* Na escola publica a alfabetização se processa na primeira série. 22 Ibid., p.86.
E acin
que. .6 e.
pop~
e a
144
2. E~~ota~ Expe~imentai~
Visitei no Rio de Janeiro "e~~ota~ expe~imentai~" que pr~
curam desenvolver um trabalho anti-tradicional, através de uma
p r á t i c a e d u c a t i va 1 i b e r t a d o r a . A p r e o c u p a ç ã o c om o r e f e r e n c i a 1
teórico nessas escolas pareceu-me relevante e, em alguns casos,
essencial. Piagetianas, Freinetianas ou Montessorianas, tais
escolas se fundam e se definem no seu marco teórico, levando
adiante um trabalho pedagógico com programas e objetivos muito cl~
ros que pretendem na prática, atender às necessidades da cria~
ça as quais, na teoria, já estão descobertas, compreendidas e
explicitadas. O trabalho nao é repressivo porque ê guiado p~
ta expe~iên~ia da ~~iança e o que a experiência da criança mos
tra tem "tudo a ve~" com o que dizem as teorias, bastando que
se organize e conceitue essa experiência e se a enquadre no tra
balho pedagógico. A partir daí a criança vai seguindo a trilha
da liberdade, tal como os autores da pedagogia libertadora e
os educadores anti-tradicionais a entendem. Se a criança "não
qui~e~" trilha nenhuma, se não quiser trabalhar com material
didático "ap~op~iado ao ~eu nZvet de de~envotvimento", tem-se
um problema que as teorias não resolvem e que na prática vai
marcar a diferença.
"Quem que~ 6aze~ e~~ota di6e~ente tem que tida~ ~om a~
di 6 e ~ e n ç a ~ ", d i s s e a o J o r n a 1 do B r a s i 1, de 2 2 . 1 O . 89, o c o o r d e
nador pedagógico de uma escola experimental do Rio de Janeiro.
Como conciliar, entretanto, esse pensamento com a opçao por uma
linha pedagógica, ainda que "tibe~tado~a"? Na teoria todas as
crianças são iguais, mesmo naquelas em que se atenta para as
145
variantes constitucionais, vivenciais e culturais, porque no
fim o que fica é o modelo, um modelo de desenvolvimento que se
pretende uni versa 1. As di fe renças po rtanto, ".6up0Jt:tada.6" nao
vao além das diferenças sociais e psicológicas. A singularid~
de, esta nao, nenhuma escola está preparada para compreender e
suportar, mas ela existe.
Nem se pode exigir isso da escola. Existem os especi~
listas. E é exatamente a eles que a criança é encaminhada qua.!!.
do o seu problema ultrapassa os limites da intervenção escolar.
Numa sociedade como a nossa, capitalista e disciplinar, para
cada um, sua função! t desonesto e anti-ético serem ultrapa~
sados os limites. A função da escola é educar (hoje esse con
ceito já está bem ampliado, não se restringindo ao en.6ino mas
englobando toda uma série de atividades que procuram formar a
pe.6.6oa, "de.6envolveJt hã.bi:to.6", ensinar a pensar, a ser criati
vo, participante, etc) e para isso existe a pedagogia, aliada
mais tarde ã psicologia, para fundamentar teoricamente a atua
ção da escola. A cada um, sua função. Ao especialista,porta.!!.
to (neurologista, fono-audiólogo, psicólogo, psicanalista ... )
aquela criança diferente que grita sem parar, que tem um olhar
e s t r a n h o, que s e i sol a, e t c . Não p r e te n de mos d e f e n d e r a qui uma
escola super-competente, que resolva dentro de seus limites o
problema de uma criança como essa. Nossa intenção é mostrar
como está organizada uma sociedade na qual os indivíduos devem
ser "enquadJtado.6" e "d-i..v-i..d-i..do.6". O lugar para aprender é a es
cola. O lugar para ".6eJt louc.o" ou "di6eJten:te"é o consultório do
especialista. De dentro da escola, é correta a atitude de en
146
caminhar a criança problemática; de fora dela, entretanto, e
que podemos recordar que a escola teve uma data de nascimento
e que surgiu para atender as necessidades de um sistema emer
gente que precisava "quadJtic.u,faJt" a sociedade, com instituições
diversas (escolas, prisões, hospitais, fábricas, etc), com li
mites e funções bem definidas (e profundas semelhanças), prep~
radas, enfim, para receber o indivíduo e devolvê-lo a socieda
de apto, útil, produtivo. Nossa intenção aqui, não e desqua1i
ficar a escola e os especialistas. Nossa posição é filosófica
e portanto, nossa preocupação é o entendimento; no caso, o en
tendimento de práticas cujo alvo seja a criança, buscando en
tender suas articulações e a que servem, em última instância.
o que mais diferencia as escolas anti-tradicionais das
tradicionais é a preocupação com a relação que se estabelece
com a criança, fator presente nas primeiras e negligenciado nas
segundas. A criança, na escola moderna é preparada para pe~
s a r, c r i t i c a r, c r i a r, e n f i m, s e r i n te 1 i g e n te. J ã de n t ro d a e s
cola, é estimulada a ter uma atitude consciente e crítica, p~
ra depois, nas relações mais amplas dentro da sociedade,ter um
desempenho semelhante, com participação e atuação critica efe
tivas. O que não entra em questão para os educadores da esco
la moderna é "de que ,fado e-6tã. e-6-6a c.Jtitic.idade", se do-lado-da
liberdade ou do lado das forças conservadoras que tambem atra
vessam pelas teorias pedagógicas e epistemológicas, ainda que
avançadas e conhecidas como libertadoras. A capacidade de ser
crítico nao está necessariamente do lado da liberdade. E possi
vel até mesmo que esteja do lado que a combate mais fortemente.
I
1 1 1 I i I i I
I i
1
I
147
A critica racional, lõgica, inteligente, pode ser muito limita
dora, especialmente para a prõpria pessoa cuja formação levou-a
por esses caminhos. O homem não e sõ razão e o privilégio de~
se aspecto empobrece a intuição, a emoção criadora e desprep~
ra~o para entender a nn~o kaz~o", o que foge do lõgico, do ra
cional. Desprepara-o para entender o di6ekente. Dentro de uma
escola piagetiana, por exemplo, na qual tenho pensado ao escr!
ver essas últimas linhas, a preocupaçao com o desenvolvimento
da inteligência e a base do processo pedagõgico. Esse desenvol
vimento tem uma evolução determinada que vai do estágio senso
rio-motor ao pensamento formal (atingido por volta dos 11 a 12
anos), sendo este último o estágio mais avançado do desenvolvi
mento da inteligência e o de maior equilíbrio. A criança que
não atinge este estágio (e Piaget acredita que nem todos o atin
gem) não será capaz de um pensamento mais elaborado, que possa
desprender-se do real e atingir assim sua força máxima. Alguns
autores acham até que a parada do desenvolvimento da inteligê~
cia em estágios anteriores, in~apacita o individuo para uma com
preensão ampla da sociedade e consequentemente para uma atua
ção abrangente que a transforme. O desenvolvimento da inteli
gência caminharia, pois, para algo que poderia estar mais pr~
ximo de uma sociedade democrática onde a força do pensamento
formal combateria os erros de um sistema social injusto. Outras
questões podem ser colocadas entretanto: em primeiro lugar não
constatamos a "pkimazia" do pensamento formal nos grandes mov!
mentos de transformação social, muitas vezes enraizados na lu
ta cotidiana daqueles que nada têm e que se revoltam não sõ com
a inteligência mas com todas as forças do seu corpo, entre elas
I l f t
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I I
I I I t 1
I l ) ,
1 I
148
as do estômago; daqueles que são "dióe.lLe.n:te..ó" e que se revoltam
com as forças da sexualidade, da criação, da intuição, etc. Em
segundo lugar, o "pe.n.óarne.n:to óOlLrnai" não possibilita por si so
o e n te n d i me n to d e s s a s c o i s as, p o i s, c o m o j á c o 1 o c a mo s a c i ma , e 1 a s
fogem ao que e racional. No máximo ele pode explicá-las segu~
do o seu modelo. Em terceiro lugar, a evolução para o pens~
mento formal não contém muito de democracia pois apesar de, ao
final do desenvolvimento, o indivíduo utilizar os vários níveis
da construção do conhecimento, o pensamento formal deve prev~
1ecer sobre os demais para que se possa falar de fato em equi
1íbrio mental.
Por essas razoes, a criança que tem sua formação numa e~
cola anti-tradicional, cujo referencial teórico seja, por exe~
p10, a epistemologia de Jean Piaget ou outros autores afins,p~
de estar sendo preparada para criticar, sem entender, lutar por
democracia sendo autoritária, produzir sem criar.
o ar de liberdade que se respira nas escolas modernas con
trapõe-se ao clima repressivo das escolas tradicionais. Isso
porque se parte de uma "hip5:te..óe. lLe.plLe..ó.óiva" que desencadeia
processos de luta contra a repressão, no caso, representados por
esses movimentos por uma educação libertadora. A concordarmos
com Foucau1t, trata-se de uma falsa hipótese que entretanto e
necessária para que se reconheça o caráter libertador de tais
movimentos. r preciso acreditar na repressao para que se reco
nheça a ação libertadora. r preciso que "haja" repressao para
que se justifique o movimento pela liberdade. A psicanálise co~
dicionou o desenvolvimento normal do indivíduo ã repressão. O
f ( f
I ! I
I I
I ,
I I
I l
I
149
desenvolvimento psicossexual é levado a cabo através de muitas
repressões a favor do bem estar do individuo no seio da fami
lia e da sociedade. E da dinâmica psicológica decorrente dos
processos repressivos do individuo que dependem sua saúde men
tal e o lugar do analista é garantido por essa hipótese. Sem a
repressão não haveria pSicanálise, nem obviamente, psicanali~
tas. Coisa semelhante ocorre em vários movimentos sociais, e~
tre eles, os movimentos educacionais. A repressão, foi a gra~
de razão da Psicanálise assim como é o grande argumento para a
elaboração de teorias e métodos pedagógicos, que içam a bandei
ra da liberdade enquanto na prática produzem sujeitos altamen
te disciplinados e úteis para o sistema capitalista.
A escola e a educação tradicionais são severamente criti
cadas na forma como passam o conhecimento e, principalmente,na
forma como o apresentam: uma verdade eterna, pronta e acabada
ã qual alunos passivos e sem capacidade de critica são levados
pelo mestre que sabe tudo e que nada tem a aprender com alunos
novos e despreparados. A escola moderna procura reverter essa
situação con~t~uindo o conhecimento numa prática diária da qual
participam conjuntamente professor e aluno. Não mais verdades
prontas e acabadas. Não mais aprendizagem passiva.
A verdade agora é outra. As verdades que eram transmiti
das de forma tão autoritária deixam de existir para dar lugar
ã verdade do conhecimento cientifico que agora, nao como con
teüdo, mas como referencial teórico, guia a prática pedagóg1
ca. Afinal, trata-se da verdade sobre a criança, enfim, desco
berta. (E essa verdade custa bem caro ... ).
I
1
I t j I
I
150
Descobertas, enfim, as necessidades da criança e o proce~
so do seu desenvolvimento, cabe aos educadores, na prática p~
dagógica, montar uma equipe para trabalhar com a criança. A es
pecialização da equipe é tanto maior quanto mais definida a o~
çao da escola por um referencial teórico e/ou por uma metodol~
gia especifica. Nas escolas experimentais o número de alunos
por turma e bem mais reduzido que nas escolas tradicionais de
forma que a equipe, especialmente o professor, pode dispensar
a criança uma atenção bem maior, quase individualizada. Sobre
a criança, enfim, há vários pares de olhos e ouvidos, atentos
a sua fala, seus gestos, suas atitudes, sua criatividade, seu
progresso, seu grafismo, sua psicomotricidade, seu esquema cor
poral, seu desempenho nas diversas disciplinas, sua capacidade
de concentração, seus hábitos, seu temperamento; atentos ã ma
neira como lida com o material, com as regras, com as situações
conflitantes, com os colegas, com os próprios sentimentos, com
os professores, etc, etc. * A observação de cada um desses itens
é registrada constituindo um "lLe.:tlLa.:tO" da criança, ou podemos
arriscar, um verdadeiro diagnóstico. Nas escolas modernas tudo
é montado de forma a facilitar todas essas observações. o p~ queno numero de crianças por turma é fundamental. As metodolo
gias utilizadas também, pois so quando se opta por um método
que deixe a criança mais livre, que estimule sua participação
e atividade, é que se torna possivel conhecê-la melhor. Aonde
leva, todavia, tudo isso? A formação do adulto critico, part~
* Dados extraídos de um relatório para os pais, com a avaliação semestral da criança, de uma escola experimental do Rio de Janeiro.
1 51
cipante, como diriam os educadores modernos, ou ã produção de
uma subjetividade útil a uma sociedade disciplinar, dominada
por teorias cientificas que controlam o pensamento, restringi~
do sua força criadora a favor de uma racionalidade que não .sa
be entender a vida?
E dificil para tais educadores entende"r essas questões.
Afinal eles acreditam sinceramente no caráter libertador de
suas práticas e no avanço que pode ter a Educação com a constr~
çao das teorias cientificas sobre o pensamento infantil. Qua~
do, porém, os mecanismos de controle ficam óbvios demais, nao
faltam meios para escamoteá-los. A seleção dos alunos e um
exemplo. O controle já começa antes da entrada na escola. As
experimentais, entretanto, procuram camuflar esse procedimento
criando situações que são batizadas com nomes diferentes e sim
páticos que possam afastar o fantasma da seleção ou procurando
c o n v e nc e r de que não s e 1 e c i o na m mas, e n c a m i n h a m o a 1 uno p a r a uma
turma adequada a seu nivel de desenvolvimento, mesmo que isso
represente a repetição de uma série já superada. Justificam que
é preciso evitar as frustrações áe um ano dificil para a crian
ça que, defasada em relação às demais, por proceder de uma es
cola diferente e não apresentar nos testes realizados um desem
penho satisfatório para ingressar na turma desejada, certamen
te fracassaria. A verdade é que o fracasso da criança é nao
só adivinhado como antecipado. Se quiser entrar na escola enao
tiver tido bons resultados nos testes de avaliação repetirá a
série que acabou de concluir ou não entra na escola. O "6Jtac.a!
.60" que poderia experimentar ao longo de um ano, convivendo com
1
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1 52
os novos colegas, os novos professores e a nova metodologia (e
que p o d e r i a, i n c 1 u s i v e, nem e x i s t i r, d e f a to) é "d e c. i di do" e m
poucos dias. Não é incrível que as escolas modernas e experi
mentais tenham entrado nesse jogo da seleção, grande bandeira
hoje em dia levantada pelas escolas mais tradicionais e que m!
receria um estudo ã parte? Além de selecionar criança, essas
escolas desqualificam umas as outras pois "nao ac.neditam" no
certificado de aprovação apresentado, não abrindo mao da tes
tagem para avaliar a criança segundo seus próprios métodos. Além
disso, a seleção dos alunos, neste caso, intelectual, vem es
treitar mais ainda os portões de entrada, já estreitados pelo
fator sócio-econômico que deixa de fora dessas escolas a gra~
de parte da população que nao pode pagar por uma formação li
b e r t a d o r a p a r a seu s f i 1 h os. .. O" v e.6 ti b ui an " p a r a c r i a n ç a s e
hoje assunto de jornais. Espero que venha a ser, com a maior
brevidade, assunto de trabalho acadêmico avançado, profundo,
que abra as portas para o entendimento do que a nossa socieda
de foi capaz de inventar no trato com a criança.
A preocupaçao com as 6onma.6, com os arranjos, com as ar
rumaçoes, também ajuda no disfarce do controle. As carteiras
arrumadas livremente, o livre acesso aos materiais coletivos,
o colorido do material atrativo e diversificado, a atitude dos
educadores, muito próximos, co-participantes no processo, en
fim, a valorização do espaço, em geral, tudo condiz com um tra
balho renovador, adequado ãs necessidades da criança, ao seu
modo de ser, e ao seu jeito de viver. Cada detalhe é pensado
e programado. Cada coisa tem um sentido e uma função. Tudo es I i
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153
tá, enfim, de acordo com a metodologia adotada. Tudo está, en
fim, sob controle. Inclusive a criança. Pois o que ela e e
vai ser já está descoberto e explicado pelas teorias que revo
lucionaram o conhecimento do mundo infantil.
E interessante ressaltar também que, especialmente nas
escolas modernas, ~udo ~ pedag5gico. O lanche é pedag5gico, o
descanso é pedagõgico, o recreio é pedag5gico, o "e~co44ega" e
pedag5gico. Nada do que a criança faz escapa às malhas de uma
teorização. A pedagogização, dentro dessas escolas, -tomou con
ta até do ar que se respira.
A pr5pria escola cada vez mais amplia seus domínios. Quer
tomar conta de tudo, até da família. Esta que lhe delegara p~
deres na formação da criança é agora, especialmente, no caso
das escolas experimentais, alvo de uma catequese contínua que
visa enquadrar a família no esquema da escola, que visa, enfim,
criar também a "6amZlia pedag5gica". Começou pela criança qua~
do a velha função de en~ina4 caducou, dando lugar à função mais
elevada de 604ma4. Na escola a criança deve aprender também a
se 1 a va r, a c o m e r, a s e n t a r, a f a 1 a r, a a n d a r, a c o r r e r, a c ri a r
e a pensar ... "E~cola ~ vida", podemos ler na proposta ped!
gógica de uma escola experimental do Rio de Janeiro, porque h~
je ela ensina a viver (como viverão aqueles que nunca freque~
taram escola?!). Da criança, enfim, a escola passa ao contro
1 e da famí 1 i a pa ra que haj a "uma ação in~eg4ada e co e4en~e en
:t4e c.a~a e e~c.ola". Afi na 1 o conheci mento da famil i a não écien
tifico, cabe portanto cativá-la, ouví-la, acatar-lhe algumas s~
gestões ... Aos poucos inteirando-se da metodologia, a família
I
1 54
sera a grande aliada. Escola, família, vida, se confundem~ S~
mem as diferenças essenciais. Produzem-se diferenças funcio
nais, de superfície, que visam distribuir papéis e funções p~
ra definir, organizar, delimitar, avaliar, classificar. Produ
zem-se diferenças, para se acabar com a diferença. E o parad~
xo da nossa sociedade disciplinar.
Todas essas questões vistas acima nao sao privilégio de
escolas particulares. Na escola pública, as propostas pedag~
gicas também têm o seu referencial (embora da proposta ã sala
de aula ele se perca, por uma série de fatores específicos); tam
bém têm a preocupaçao com a individualidade do aluno, suas di
ferenças, seu modo de vida (embora os livros didáticos sejam
claramente prenhes de preconceitos e discriminações); igua1me~
te defendem o exercício da crítica, a formação de um saber abra~
gente (embora desqua1ifiquem o saber das classes populares -
" aque.le..6 que. bU.6c.am a e..6c.ola pübLi.c.a c.aILe.c.e.m de. innoJz.maç.õu
e. da vivênc.ia c.om a c.ul~ulLa e. o .6abe.IL de. nO.6.6a pILópILia .6oc.ie.d~
23 - -de. ••• " ); tambem se preocupam com a construçao do conhecime~
to como um processo de interação professor X aluno (embora os
professores limitem-se, na prática, a apenas três estratégias
pedagõgicas: aulas expositivas, imposição de atividades e co
b d . - d -d) 24 -rança e memorlzaçao e conteu os ; apontam tambem para a
23 "VOc.u.me.MO de. TJz.a.balho: A PJWpO.6~a. Pe.dagógic.a". Governo r10reira Franco~ Secretaria de Estado de Educação, março/1988. p.17.
24 "Má. FOJz.maç.ã.o le.va pJW nU .60IL a c.omde.1L eNW.6 ab.6uJz.do.6". Jornal do Bras i1 de 16.03.90. Pesquisa de Maria Lúcia Brandão, concluída em 1984, em diver sas escolas do 19 Grau do Rio de Janeiro, a maioria pública.
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155
importância da competência profissional (apesar de reunir a gra.!!.
de massa de professores limitados e despreparados porque os m~
lhores não se submetem a salários ridículos); também se preoc~
pam com a qualidade de ensino para todas as unidades (embora
mantenham o estigma das escolas publicas exemplares, as quais
o aluno pobre só tem acesso se passar em exames rigorosos que
deixam de fora da escola exemplar um grande numero de alunos
que, igualmente pobres, sonhavam também com a escola "demochi
tica" e de boa qualidade).
Fora das escolas - modelo, quais as características da re
de publica de ensino? "A hede e6ti em phoce66o de 6ucateamen
to", diz o cientista social Heraldo Vianna, da Fundação Carlos
Chagas. 25 As escolas publicas do Brasil têm problemas de ins
talações (a escola Municipal Bernardo Vasconcelos, na Penha,
zona norte do Rio, passou um tempo funcionando em regime de
"hod:tzio de óa.tta6, onde a cada dia thê6 tUhma6 6a.ttavam ã. au
.ta pOh não haveh cahteiha6 6u6iciente6 paha a6 chiança6 6enta
hem."26) Carecem de material pedagógico adequado, e são mal g~
renciadas. Os professores têm baixo nível de conhecimento e
os alunos, de baixa condição econômica e social, revelam atra
so significativo de aprendizagem, apresentando, em séries mais
adiantadas do 19 grau, deficiências que já deviam ter sido su
peradas em séries inferiores. 27
25 Jornal do Brasil, de 22.02.90: "E6tudo Rephova en6ino na6 úco.ta6 púbü Ca6" . 26 "Repe:tente6 en6hen:ta.m a óa.e.:ta de e6:thu:tUha do en6ino". Jornal do Bras i1 de 15.04.90.
27 Ibid.; dados da pesquisa realizada pela Fundação Carlos Chagas, junto a 238 escolas da rede oficial, em 69 cidades brasileiras, avaliando um total de 30 mil alunos.
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1 56
o índice de repetência nas primeiras series dessas esco
las e assustador: cinquenta e quatro por cento na primeira se
rie. Os alunos evadem e apenas quarenta por cento de cada g! - a -. 28 raçao consegue chegar a 8- serle.
o que e isso? Como fica a ideia de criança como futuro
da nação, riqueza do país? E nessas condições que se quer no
Brasil formar o futuro cidadão? Não. E nas escolas particul~
res, onde está a criança de "boa" família, porque o governo bra
sileiro nao "liga a mlnima" para a criança pobre. Repito: a
c~ança e a das f~mílias favorecidas da nossa sociedade. E ela
o futuro cidadão, ê para ela que se fazem os discursos. E de
la que falam as teorias. A criança pobre e a sobra.
3. B~eve~ nota~ ~ob~e a ~ituação atual
da C~iança Pob~e no B~a~il
No Brasil há 30 milhões de crianças vivendo em estado de
- . d d· d 1 d'" 29 miserla, meta e as crlanças e a o escentes o palS. O estu
do realizado pelo Instituto de Planejamento Econômico e Social
(IPEA), do Ministério do Planejamento juntamente com o Fundo
das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) revela que a cada
mil c r i a n ç a s nas c i das no B r a s i 1, s e s s e n t a e s e tem o r r e m po r de ~
nutrição, diarreia e infecções intestinais e respiratórias, fi
cando o Nordeste com a metade dessas mortes. As causas dessa
28 Ibid., dados das pesquisas de Sergio Costa Ribeiro, do Laboratório Na cional de Computação Científica (LNCC).
29 "E~tudo Revela 30 milhõe~ de meno~U CMentu". Jornal do Brasil, de 14 de março de 1990.
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157
mortalidade sao a pobreza, a ignorância e a falta de saneamen
to básico, segundo dados fornecidos pelo estudo que admite ain
da uma forte relação entre o estado nutricional das crianças e
o problema da propriedade da terra. A criança desnutrida fica
com o peso abaixo do padrão de normalidade e baixa estatura.
Quando tem 15, 16 anos de idade aparenta 11 ou 12 anos.
A doença que mais mata a criança brasileira e a pneumonia,
seguida pelas infecções intestinais que ficam com a percent~
gem de 20,6% das mortes. A diarréia é a causa principal, no
d t d t d . d t- . d . d d 30 nor es e, a mor e e crlanças e a e Clnco anos e 1 a e.
Apenas 23% das crianças de até 6 anos de idade frequentam
creche ou pré-escolar e, segundo dados de 1987, fornecidos p!
10 estudo realizado pelo IPEA e UNICEF, pelo menos 4,3 milhões
de crianças brasileiras de 7 a 14 anos permaneciam fora da es
cola básica.
Ao invés de resolverem problemas tão dramáticos na area
de educação e saúde, os governos brasileiros até agora só sou
beram (ou quiseram) tomar medidas de confinamento das crianças
pobres. A FUNABEM e as fundações estaduais para o menor têm se
encarregado disso. Estão confinadas até crianças que apenas se
d f '-1· 31 per eram e possuem casa e aml la. A falta de recursos das
instituições para tentar localizar as famílias dessas crianças
e a i n c o m p e t ê n c i a ou de s i n t e r e s s e do g o ver n o f e d e r a 1 em r e 1 a ç ã o
30 "Via.JVz.úa na. Vila do João impede l.>oYl.ho de CJÚa.Yl.ç.a". Jornal do Brasil, de 04.04.90. 31 "CJÚaYl.ç.a.6 peAcüda!.> doI.> JXU-6 vivem c.oYl.Mna.da.6 na. FEEM". Jornal do Brasil, de 11.02.90.
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a o p r o b 1 e m a ma n t é mas i tua ç ã o c o m o e s t á . O 1 i v r o " G a/t o:t 0.6 de
/tua - a me/tce da .6o/t:te", escrito por Maria Lucia do Eirado Si1
va e Gilberto Bore1 trata desse problema.
Nas instituições de menores, as condições de instalação
sao precãrias, hã superlotação e muitas crianças se queixam de
maus tratos e violência por parte dos encarregados. Muitos sao
"abandonado.6" dentro da instituição onde ficam anos quando de
veriam passar apenas alguns meses.
o Juiz de Menores do Rio de Janeiro determinou em port~
ria publicada no Diário Oficial no dia 8 de março deste ano o
recolhimento pela polícia de menores de rua. De acordo com en
tidades ligadas à criança a portaria é anti-constitucional. O
objetivo é recolher as crianças e encaminhá-las a centros de
triagem da FEEM, que não tem condições de atendê-las adequad~
mente. 32 são as alternativas de vida das crianças abandonadas
ou sem família no nosso país. A miseria e mendicância pelas
ruas ou o confinamento em instituições precárias e repressl
vaso As estrategias de poder dirigidas às crianças pobres são
assim, controle, vigilância, violência,enquanto que as dirigl
das às crianças de camadas sociais favorecidas são de proteção,
vigilância cuidadosa, adestramento.
A Fundação Centro Brasileiro para a Infância e Adolescên
cia (FCBIA) que substituiu no atual governo a Fundação Nacional
do Bem-Estar do Menor elaborou um programa que prevê a elimina
32 "Enü.dade.ó vão ã jU,ótiça contJz.a. detenção de Cfl..,,[ançM". Jornal do Brasil, de 01.04.90.
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1 59
çao da prática assistencialista do Estado acabando com o inter
namento de crianças em instituições oficiais. 33 O governo pr~
curará criar condições para que as crianças abandonadas sejam
mantidas sob a responsabilidade dos pais ou parentes próximos,
através de ajuda com alimentos, assistência pedagógica e cola
boração financeira. Os reformatórios continuarão existindo p~
ra abrigar as crianças sem familiares e as infratoras. A FCBIA
terá funções normativas, de fiscalização e apoio financeiro,
não realizando, como a extinta FUNABEM, o atendimento d i reto
as crianças, através da prática de internação.
Que programa, nesta linha, pode acabar com o problema da
pobreza e da criança abandonada? A ajuda governamental a fam1
liares e tutores mantém o pobre, pobre. Não muda estruturalme~
te nada. Se as causas da pobreza não são atacadas (pagamento
da dívida externa, concentração de renda e de terras, política
econômica empresarialista), o problema da criança pobre con
tinuará. As estratégias para ricos e pobres se manterão dife
rentes e o futuro continuará plantado nas camadas burguesas da
sociedade.
4. A c~iançada~ ~evi~ta~
Na questão da criança, a revista "Pai~ e. Fi.tho~" e o es
pelho da nossa sociedade atual. Crianças lindas de pele rosa
da, introduzem-nos num mundo rico, colorido, confortável que
33 "CoUo~ anu.nua plano o~ado pa/ta. meno~". Jornal do Bras i 1, de 27 de ma rço de 1990.
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só muito poucos conhecem. Parece que c~~ança ê aqu~fo. A 1 i
existe um modelo, um referencial. Qualquer desseme1hança e des
vio, marginalidade. O que passaria pela cabeça de uma mãe pr!
ta de filhos pretos e pobres que, por obra do acaso viesse a
folhear uma revista dessas? Não sei, mas, certamente, no míni
mo sentir-se-ia num mundo aparte, ou num mundo real em contras
te com esse outro, fictício, ou ainda teria a correta perceE.
çao de que a mae que está a 1 i nao e e 1 a , e tampouco a criança,
seu fil ho : o que a 1 i está nao lhe serve, nem 1 he diz respeito.
Sua vida e tão diferente; e out ra a alimentação dos seus fi
lhos, outros seus programas, suas questões. O seu pa rto, en
tão, o que teria de semelhante com partos tão bem assistidos,
cada qual numa linha, numa orientação, mas todos partos bons,
cercados dos melhores cuidados!? .Medicos, enfermeiras e mari
dos tão dedi cados! Preci samos conhecer mel hor como as mulheres
pobres dão ã luz. Depoimentos colhidos por Vitória Lucia M.P.
Monteiro e relatados em sua tese de Mestrado "Mufhe~ e Pa~to:
Rec~ando a Reaf~dade a.t~avê.6 do P.6~cod~ama" aproximam-nos de~
sa outra realidade; dessa realidade da pobreza, do despreparo,
da desinformação e, sobretudo, da submissão, da falta de condi
~ões de rebelar-se contra a violincia com que são tratadas p!
los medicos. Mas na revista isso não aparece. "Pa~.6 e F~fho.6"
fala de outros pais e de outros filhos. Daqueles que devem ser
o modelo, e que escondem as duras realidades singulares. O mo
delo e branco, saudável e bonito. E quem assim não for deve
submeter-se e orientar sua vida para aproximar-se sempre mais
desse padrão de saúde e beleza que na nossa sociedade nada mais
e que o padrão de riqueza.
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1 61
Na "Pai.6 e Fi.tho.6" de janeiro de 1988, Ano 20, nQ 5, ap~
rece, na página 50 a mulher preta de que falamos - mas ela -e
babá ... e é a típica "mã.e-pJz.eta" do Brasil-Colônia. Na report~
gem nao faltam os conselhos: o cuidado com a escolha, as boas.
referências, o bom relacionamento (sem maior intimidade). Mas
fica claro: a babá pode fazer de tudo mas quem educa é a mae.
Tudo é muito parecido com a atitude crítica que no século pa~
sado se formou em relação a criação das crianças: é preciso que
a criança não aprenda a falar com a babá, que não ouça suas e~
tõrias àe medo, que nao fique inteiramente sob seus cuidados.
Afinal educar é muito difícil. E preciso entender psic~
logia, tomar conhecimento do pensamento pedagógico moderno, co
nhecer Piaget, Maria Montessori, aconselhar-se com psicólogos,
psicanalistas, pediatras, advogados de família ... "Pai.6 e Fi
l h 0.6" tem tu d o i s s o . Sua a s s e s s o r i a é c o m p 1 e t a e r e s p o n d e a
um vasto campo de saber especializado sobre a criança. Educar
agora é problema científico e não venham mais falar de experiê~
cia e prática ... isso não vale nada, não é qualificação.
5. Tudo pela cJz.iança
A nossa sociedade está de tal forma organizada que, a
criança está reservado um lugar muito especial. A ela se desti
nam, especificamente, inúmeros programas e atividades de natu
rezas as mais diversas. Na música, no comércio, nos programas
culturais, na televisão, seja onde for, a criança ocupa o seu
lugar, bem demarcado, nitidamente contornado pelos limites da
qui loque chamamos "pJz.ogJz.ama.6 (ou pJz.oduto.61 in6anti.6" que tanto
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162
mais autênticos serao quanto maior a participação direta da crian
ça na sua realização (ou propaganda).
A televisão dedica-lhe um horário integral com programas
infantis de uma abrangência indiscutível, porque ensinam tudo
o que a c r i a n ç a " pJt e. c.i.6 a" a p r e n d e r (o u q u a s e tu do ... ): e n s i na m
a cantar, dançar, consumir, vestir, ser bonita ... , e a lição
e muito bem aprendida. As crianças (desde tenra idade) execu
tam as tarefas com perfeição. Sabem de cor as letras das (me~
mas) canções, sabem dançar e realizar com exatidão e no tempo
certo, os mesmos gestos; sabem o que devem consumir e a esco
lha do brinquedo ou do produto e sempre certa; sabem, e com mui
to gosto, o que vestir e como ".6e. pJtoduziJt".
A criança aprende que ela é tudo, e o que há de mais im
portante, a razão de ser de tanta alegria, tanto som e tanta
cor. Aprende também que não sendo "baixinho" nada é: se can
tar outras músicas, cantará sozinha; se inventar algum gesto,
errara na dança; se quiser um brinquedo diferente, terá que fa
zê-lo com as próprias mãos.
"A" criança está lá. Ser criança e ter consciência de
que e o alvo: "é. um pJtogJtama in6ant.il ... , é. paJta mim". Como
não? O lugar está ocupado. E protegido.
A identidade da criança está clara e definida. E sobret~
do saber que é. c.Jtiança e que existem coisas que são feitas es
pecialmente para ela. E saber que é frágil, preciosa e esp!
cial; mas é também saber que pode ser inoportuna e as "paqu~
t.a~" estão lá para lembrar. E preciso evitar os imprevistos e
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1 ! I I
I ,
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163
manter tudo sob controle. Os "baixinho,ó" sao tudo mas nao "man
dam" ..•
No comando de todos esses atos de amor, proteção, cuida
do e controle, "dentJto" ou "óoJta" da televisão, a figura ce.!:.
ta, aquela a quem foi legado o poder maior sobre a educação e
formação das crianças: a mulher, que como mae ou como ídolo re
força sempre o vínculo primordial, que como espelho é constan
te incitação a um retorno espe(ta)cular.
A questão nao para aí. A força de massificação e alien~
çao desses programas é tal que, cada vez mais, os adultos se
deixam encantar por eles ao ponto de se emocionarem publicame~
te quando alguma participação é concedida.* E o máximo. Além
da apropriação da criança, imbeciliza-se o adulto e a dificu1
dade de mais tarde reverter-se esse processo fica decuplicada.
Assusta-nos também outra coisa. Já se reconhece oficial
mente, a nível mesmo do primeiro escalão do atual governo bra
sileiro, o poder de influência de um desses idolos femininos so
bre a criança. O governo tem-se utilizado disso nas suas cam
panhas de vacinação e prevenção de doenças infantis e aciden
teso Sob a bandeira da higiene e da saúde fortalece-se ainda
mais essa influência, reforça-se o ídolo como figura de amor e
bondade, e apertam-se os laços que amarram a criança a fa1sida
de, fraqueza e alienação.
* Já se chegou ao fanatismo. A reportagem do Jornal do Brasil, de 19.9.89, i ntitu 1 ada "Twnu,Uo paJta veJt Xuxa óeJte dez CJt.,Útnç.a..6 em utã.cJ..-i..o de Salva doJt", deve se rvi r como a 1 e rta !
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CONSIVERAÇDES FINAIS
o poder não é propriedade de ninguém. Não é algo que se
detém. E uma relação de força contra força, dissemos atrás. Aí
está a razão para, após tantas frases aparentemente pessimistas,
levantarmo-nos um pouco. Levantarmos para procurar descobrir
com quem estamos aliados, com que forças juntamos nossas for
ças; quais foram e quais são nossos encontros. Eles podem ex
plicar-nos muitas coisas e os que estão por vir podem provocar
mudanças. Façamos novos encontros, experimentemos. Não julgu!
mos que estamos presos a verdades eternas e que o que aí está
e a ordem natural das coisas ...
Não acreditemos que descobrimos a verdade sobre a crian
ça. Nós a inventamos. O homem existe na Terra há cerca de dois
milhões de anos. Por que haveríamos de crer que, finalmente,
a parti r do século passado, a formação de um saber sobre a crian
ça levou-nos a conhecer sua verdade, sua essência eterna? Essa
verdade é descoberta no momento mesmo da sua invenção. Desco
brir e inventar tornam-se aqui a mesma coisa. Não se descobre
nada porque nao existe nada feito (quem o teria?). Quantos anos
mais estará o homem sobre a Terra? Quem sabe não estamos na
pré-história ou muito próximos a ela? Então, temos a verdade?
O que achamos que é o ser e apenas uma manei~a de ~e~. O
men i no 6ilho do ~ enho~ era o ~inhôzinho. O menino 6ilho do uCJta
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I , , i i 1 1 I
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165
vo era o moleque. O 6ilho do Zndio era o culumim. No século
XIX novas maneiras de ser foram inventadas: o 6ilho da mãe (mãe
ver d a d e i r a que a m a e e d u c a seu s f i 1 h os) ê. o ci da dão, o filho sem
mãe ~ o meno~ ca~ente, abandonado. O homem que por obra do aca
so perde todos os seus documentos passa a ser ninguém. Deixa
de ser cidadão. Tomei conhecimento do caso de um homem que,
dado por morto, deixou de receber seu salário. Ele tentava pr~
var que vivia mas nao tinha jeito: Ele estava morto: E se o
menor carente tirar a sorte grande e ficar milionário? (acho
que até mãe ele arranja).
Tudo são puras formas, atributos, enfim. Tudo pode ser
revertido.
Quando nos deparamos, porem, com o saber científico, pe~
samos estar diante da verdade.
Acreditamos que a Psicologia, Psicanálise, Pedagogia e
todos os demais ramos do saber sobre a criança nos dizem o que
a criança ê.. Corremos a estudar ou consultar um especialista
quando falhamos com a criança ou não conseguimos compreendê-la,
porque nas teorias está tudo muito bem explicado ou está tudo
por explicar ... porque é preciso conhecer a criança, seus há
bitos, seu pensamento, suas manias, é preciso conhecer seu pai,
sua mãe, saber de seus irmãos, ~ preciso conhecer os problemas
da família, seus conflitos, suas queixas, ê preciso conhecer
tudo ... para que se diga no final qual ê o problema (e quase
sempre e o mesmo ... ). Em nome da subjetividade, em nome do
respeito a individualidade (cada caso é um caso) penetra-se pr~
!
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I I t ~
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I I I , 1
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166
fundamente na família e na vida das pessoas. Depois tudo se es
clarece: ê so relacionar uma coisa com outra, tomar uma coisa
po~ outra, falar uma coisa de outra. Para fazer isso, porem,
ê preciso dominar o saber, ê preciso conhecer a verdade (e usar
do poder que ela confere).
o encontro do médico com a mulher e com a criança prod~
ziu uma mãe dedicada, exemplar, que educa e ama seu filho. Não
que r e mos diz e r que se t r a ta deu m a m o r f a 1 s o . Não ~ Na da ê ma i s
real! Só queremos dizer que não ê a. ve~da.de... Antes nao era
assim. No futuro tambê,n serã diferente. A mulher e a criança
se envolverão em novos encontros, em novas relações e uma nova
mulher e uma nova criança emergirão! Como serã? Não sei. O
importante ê sabermos que, aqui e agora, nós não temos a verda
de, nós temos uma. h~~tõ~~a. da. c~a.nça.. Entender isso, muda a
postura, fortalece o pensamento, produz novos encontros. r is
so que se quer aqui. P~oduz~~ a.lgo, fazer acontecer, para re
verter o que aí estão
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ca Examinadora -C Kátia Muri y Coutinho
Visto e permitida a impressão
Rio de Janeiro, ~/08/l990
Coordenador Ger de Ensino
/tM~~~();~ Coord~ador Geral de PeSC;ui