li aza not ta beijing

13
BEIJING LIA ZANOTTA MACHADO ConFrontos políticos e desaFios intelectuais O principal desafio politico da IV Conferência sobre a Mulher em Beijing e a produção de um consensus entre delegações provindas não so de tão diferentes posições no contexto mundial de desenvolvimento desigual como tambem de tão diferentes contextos culturais O desafio para uma leitura analitica da Conferência e lidar com as antinomias presentes e esInxturantes nas discus- sões do campo intelectual em torno das concepções de universalidade e diversidade cultural isto e entre a perspectiva universalizante e a perspectiva do relattvismo cultural A questão em Beijing se passa como a do embate dos direitos humanos universais versus direitos a diversidade cultural O conceito de gênero tão caro ao campo intelectual e ja de uso comum na linguagem das Nações Unidas e colocado na berlinda por alguns poises No texto da Plataforma de Ação que foi para Beijing a palavra gênero esta entre parênteses Alguns ou muitos prefeririam no seu lugar a referência a mulheres e homens Para alguns poises parece inaceitavel o conceito de gênero O uso do conceito de família parece dividir opiniões Alguns o querem no singular outros no plural Ha direitos familiares" Se os ha devem sobrepujar os direitos individuais ou o contrario" Quanto a etnia e raça as opiniões *lambem se dividem em relação a sua explicttação ou seu silenciamento E finalmente não ha um acordo sobre os correlatos do entendimento ANO 3 414 2° SEMESTRE 95

Upload: julia-do-carmo

Post on 22-Dec-2015

226 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

aa

TRANSCRIPT

Page 1: Li Aza Not Ta Beijing

BEIJING

LIA ZANOTTA MACHADO

ConFrontos políticos e desaFios intelectuais

O principal desafio politico da IV Conferênciasobre a Mulher em Beijing e a produção de um consensusentre delegações provindas não so de tão diferentesposições no contexto mundial de desenvolvimentodesigual como tambem de tão diferentes contextos culturais

O desafio para uma leitura analitica da Conferênciae lidar com as antinomias presentes e esInxturantes nas discus-sões do campo intelectual em torno das concepções deuniversalidade e diversidade cultural isto e entre a perspectivauniversalizante e a perspectiva do relattvismo cultural Aquestão em Beijing se passa como a do embate dos direitoshumanos universais versus direitos a diversidade cultural

O conceito de gênero tão caro ao campointelectual e ja de uso comum na linguagem das NaçõesUnidas e colocado na berlinda por alguns poises Notexto da Plataforma de Ação que foi para Beijing apalavra gênero esta entre parênteses Alguns ou muitosprefeririam no seu lugar a referência a mulheres ehomens Para alguns poises parece inaceitavel o

conceito de gênero O uso do conceito de famíliaparece dividir opiniões Alguns o querem no singularoutros no plural Ha direitos familiares" Se os ha devemsobrepujar os direitos individuais ou o contrario" Quanto aetnia e raça as opiniões *lambem se dividem em relaçãoa sua explicttação ou seu silenciamento E finalmentenão ha um acordo sobre os correlatos do entendimento

ANO 3 414 2° SEMESTRE 95

Page 2: Li Aza Not Ta Beijing

Ponto crnlista

EM BALANÇO

'MACHADO Lla ZanottaCampo Intelectual eFeminismo alteridade esubjetividade nos estudos degenero In Série Antropologtca n° 170 Depto deAntropologia Universidadede Brasília 1994 p 1 26 Asua segunda versão foiapresentada no SeminanoFeminismo e Estudos deGênero org por Heilborn ML e Sor] B no Forum dasOrganIzaçoes NãoGovernamentais Beijing 1995

da noção de desenvolvimento como direito individualfrente a nova ordem mundial ha antagonizaçõo deposições quanto ao peso das responsabilidades nacionaisversus internacionais Com certeza o desafio entre univer-salidade e diversidade esta presente em todos esses embates

Tenho estudado a constituição do campo deestudos de gênero e analisado o quanto e o como osmovimentos feministas informam a gênese de novosconceitos e perspectivas teoncas' Tenho insistido emcomo esse mesmo campo intelectual e informado pelasdiferentes tradições de os campos politicos nacionaislidarem com as diferenças culturais e com a desigual-dade social A politização das diferenças culturais e dadiversidade de identidades sociais nos poses anglo-saxões especialmente Estados Unidos parecem acom-panhar e ir na vanguarda da reivindicação dos direitosindividuais e se contrapor a um carater geralmentenegativo atribuido no contexto francês a diversidade deidentidades culturais ja que pensadas como na contra-mão da ideia da plena cidadania de um individuo iguale abstrato Preferências por conceitos e diferentesdesafios teoncos parecem responder a essa diversidadede contextos culturais e politicos São por exemplobastante distintas nos campos intelectuais francês enorte-americano as formas historicas e contemporâneasde configurar a questão universalidade versus diversidade

ESTUDOS FEMINISTAS 415 N 2/95

Page 3: Li Aza Not Ta Beijing

A reflexão sobre Beijing me da a oportunidade defazer o caminho inverso ver como se da a apropriação deconceitos do campo intelectual num campo que se definecomo politico Em outros termos pensar como os conceitosdo campo intelectual informam aparecem e são percebidosnum contexto declaradamente politico Este novo ângulopermite-me tombem manter presente a indagação sobre adiversidade dos contextos e percepções culturais nacionais

O conflito sobre os conceitos o gênero na berlinda

2 APEL, Karl Otto LaTransformacion de laFilosofia Madri Taurus 1985BOURDIEU Pierre Problemasdo Estruturalismo Rio dejaneiro Zahar 1968

ANO 3 416 2 SEMESTRE 95

Nas conferências preparatonas de Beuing e na IVConferência Mundial sobre a Mulher o conceito degênero que cada vez mais ganha espaço na produçãointelectual universitana e no campo da pesquisa foiposto na berlinda Conceito que ganhara espaço semcontestação na linguagem dos documentos das NaçõesUnidas passa a ser criticado por um grupo de poises epor parcela das organizações não governamentais

Na produção intelectual de um modo generaliza-do gênero remete a ideia da construção cultural e socialdo que e ser mulher ou ser homem e a ideia de que asrelações sociais de gênero e que englobam os entendi-mentos culturais do que seja cada um dos gênerospossiveis O conceito e gerado a partir da perspectiva dadesconstrução das idéias naturalizadas de mulher ehomem chegando-se assim a focalizar a sua construçãocultural e social Esse simples enunciado da origem nointerior mesmo do campo intelectual a diferentes ques-tões e posições Existe um sistema de sexo-gênero a serinvestigado ou e o gênero que importa? Existem tantosgêneros quanto sexos ou tantos gêneros quantas foremas opções de orientação sexual'? O numero de gêneros efinito ou infinito'? O campo intelectual reconhece oconceito de gênero pela legitimidade das interrogaçõesque produz e pela interlocução em torno de umatematica construida 2 e não pela uniformidade dasrespostas por mais acirradas que sejam as polêmicas

A ambiguidade do conceito tal como ate entãoempregado nos documentos das Nações Unidas refletiaem parte a ambiguidade relativa da construção doconceito no campo intelectual No entanto o contextopolitica que prepara a Conferência de Beuing assimcomo o aprofundamento das discussões sobre gênero nocampo intelectual parecem exigir maior precisão dossignificados politicos e multiplos da utilização do concei-to De um reconhecimento anterior tranquilo das delega-ções de que o conceito de gênero talvez não fosse maisque a forma polida de entender sexo e de se referir aosseres humanos masculinos e femininos ou do reconhecimentogeneralizado e aceito de que ha um processo social e

Page 4: Li Aza Not Ta Beijing

cultural que trabalha sobre as diferenças biologicas entrehomens e mulheres passou-se a polarização dos campos

De um lado agruparam-se poises que defendem oconceito de gênero no seu pleno sentido de ruptura coma construção biologica das identidades de diferençassexuais Estes poises aceitam a consequente relattvizaçãodas formas possiveis de se construir e desconstruir identi-dades de gênero e as diferentes opções sexuais e aconsequente relativização e pluralização das formas deorganização familiar

De outro lado agruparam-se poises que passamprimeiro a desconfiar e depois a rejeitar o uso do concei-to de gênero apontando concepções nele embutidasque consideram inaceitaveis As desconfianças e ascriticas ao conceito de gênero se fazem sobre doispontos essenciais 1) porque foge a estrita observânciado campo do masculino e do feminino pensados nostermos das relações heterossexuais e inclui as opçõeshomossexuais e todas outras formas de sexualidade nãoexclusivamente heterossexuais e 2) porque desconstrá aidéia de mulher Estes dois pontos levam a um terceiroque e entendido como o consequente desrespeito àidéia de família tal como expressa no artigo 16 daDeclaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 afamília e a unidade grupal natural e fundamental dasociedade que requer a proteção da sociedade e do Estado

No âmbito das conferências preparatorias de Mardei Plata e de Nova Iorque foram especialmente ogrupo dos países muçulmanos e o dos poises de tradiçãode apoio a politica do Vaticano incluindo Malta e variospoises latino-americanos que primeiro consideraramarriscado o uso do conceito de gênero e depois passa-ram a critica-10 Dado o impasse na Conferência Prepa-ratona de março de 1995 em Nova Iorque foi organizadoum grupo de contato para tentar um acordo sobre oconceito de gênero O Bureau das Nações Unidas fezcircular a definição de gênero como papeis socialmen-te construidos adotados por homens e mulheres e oentendimento que gênero se refere as relações entremulheres e homens baseadas em papeis socialmentedefinidos que são atribuidos a um ou outro sexo Ogrupo de contato limitou-se a dizer que o conceito de

gênero estava sendo empregado tal como ja vinha sendousado em tantos documentos oficiais das Nações Unidas

Beijing 10 de setembro Durante o Forum dasOrganizações Não Governamentais nas sessões organi-zadas pelo National Institute of Womanhood organiza-ção não governamental norte-americana as criticas aoconceito de gênero foram traçados de forma sistematicanas falas de muitos dos expositores De diferentes poisesalguns se definiram como catolicos outros evangelicos

ESTUDOS FEMINISTAS 41 7 N 2/95

Page 5: Li Aza Not Ta Beijing

3 LEARY Date Gender thedeconstruction of womenmimeo apresentado noSemnano do NationalInstitute of Womanhood noForum das OrganizaçõesNao Governamentais emBeung China 1995 p 1 26

outros representantes de culturas nacionais muçulmanasUma expositora do staff das Nações Unidas foi chamadapara falar sobre o conceito de gênero e enfatizou formasmenos polêmicas de entendê-lo Esta instituição pareciaser a contraparte no Forum da aliança que se desenvol-via entre as delegações oficiais

A critica se fez no discurso da ampla maioria dosexpositores mas especialmente atraves de um documen-to de autoria de Dale O Leary3 que no meu entenderrevela paradoxal e especularmente o potencial politico doconceito de gênero e da sua perspectiva desconstrucionistaNo seu entender o conceito de gênero desconstroi erompe com o conceito de mulher e de ser mulher istoe do que denomina de womanhood Nesta visão adesconstrução do gênero e de fato responsavel peladesconstrução da ideia de mulher E qual e essa ideia demulher que o autor e o instituto querem sustentar e nãoquerem ver desconstruida9 O conceito de womanhoodesta fundado na vinculação inevitavel entre o lugar biologicoda reprodução e o papel social da maternidade A mulhere primeiro mãe ou potencialmente mãe Identificando-secomo tal e sem se contrapor a esse papel fundamentalela tambem pode exercer os mais diferentes papeis sociaisDurante a exposição de uma das dirigentes da institui-ção uma das mulheres presentes perguntou surpresacomo poderia ser mulher se não pretendia ser mãe

A resposta dada apontou o duplo sentido presentena asserção sobre womanhood - a literalidade davinculação mulher-mãe e o seu uso metafonco comopotencialmente capaz de ser mãe ela poderia tercondutas analogas a da maternidade como o voltar-separa os outros A construção ali defendida apareciacomo a naturalização do desdobramento metafonco daideia de mulher-mãe a partir do seu lugar biologico dareprodução Nesse discurso a potencialidade de ser mãenaturalmente produz a possibilidade de exercer papeissociais atraves de condutas que se espelhem na materni-dade Não se trata de qualquer concepção de excluir amulher do espaço publico ou de fazer de todas asmulheres mães Esta concepção inclui a modernidadedos diferentes papeis das mulheres Mas e como se sequisesse assegurar a todas as mulheres a opção deserem mães e a opção por participarem ou não doespaço publico e poli-tico Evidencia-se o carater dessediscurso como o contradiscurso do feminismo de gêne-ro ou da perspectiva de gênero Contra ele propõe aperspectiva das mulheres Não se trata pois de um

discurso baseado na concepção tradicional diversaporque distante da concepção moderna da varieda-de dos papeis sociais das mulheres mas de um contra-discurso inserido no mesmo contexto da modernidade

ANO 3 418 2° SEMESTRE 95

Page 6: Li Aza Not Ta Beijing

onde se insere o discurso da perspectiva de gênero Opaper de Dale O Leary critica o imperialismo norte-americano por introduzir o conceito de gênero mas aomesmo tempo aponta que deposita toda sua esperançano comportamento das delegações de muitos poises nãodesenvolvidos no decorrer da Conferência Mundial paraafirmar a posição que e a sua de ser contraria ao uso doconceito de gênero e a favor da defesa da concepçãode mulher (womanhood) e da família no singular

O potencial disruptivo do conceito de gênero serevela nesse efeito de espelho O termo aparece comomuito mais radical que a ideia de uma construção culturalque se articula a ou elabora uma diferenciação biologi-ca dada dos sexos O conceito de gênero foi lido comoa integral ruptura entre a concepção cultural e a biologi-ca e como capaz de se referir a construção social ecultural de multiplas identidades de sexo social e deorientação sexual A perspectiva desconstrucionista de

gênero paradoxalmente parece estar sendo capaz,pelo menos nesse momento alem de desconstruiridentidades de gênero que se querem fixas e reportadas adiferenciação biologica - como a ideia de womanhood - deconstruir e legitimar uma pluralidade de novas identidades degênero mutantes e não fixas mas ainda assim identidades

E difícil fazer uma exegese dos lugares da Platafor-ma de Ação onde os parênteses cairam em beneficio doconceito de gênero ou em beneficio dos conceitos demulheres e homens Os resultados dependeram não sodas disputas basicas aqui apontadas mas tambem dosdistintos contextos de cada parêntese De uma formageral permaneceu o uso do conceito de gênero masao lado dos conceitos de mulheres e de homens

Mais interessante e tentar responder se o queprevaleceu foi a perspectiva de gênero Ai entra-sedireta e frontalmente no entendimento da noção dedireitos sexuais e no confronto entre direitos familiares e

direitos individuais e entre o respeito a diversidadecultural e o respeito aos direitos individuais A perspectivade gênero vista pelo lugar do conflito politico do concei-to parece estar assim estreitamente vinculada a ideia deliberdade de opção sexual e a ideia de que homens emulheres são iguais para optarem por diferentes formasde viver sua sexualidade Esta estreitamente vinculada aideia da prevalência dos direitos humanos individuaissobre os direitos familiares e os direitos a diversidadecultural Quem fala em avanços e o grupo de poisesdesenvolvidos e outros em desenvolvimento que sedefinem como laicos entre eles o Brasil as organizaçõesnão governamentais e os movimentos sociais feministasque se identificam como falando em nome da perspecti-va de gênero e da perspectiva dos dirertos indmduais universais

ESTUDOS FEMINISTAS 419 N 2/95

Page 7: Li Aza Not Ta Beijing

O confronto entre direitos sexuais e diversidade cultural

Beijing 11 de setembro Mais uma reunião informal(grupo de contato) do Grupo dos 77 (hoje 130) poises emdesenvolvimento que acordaram ter uma posiçãocomum na luta pelo envolvimento das Nações Unidas nocombate a pobreza Mas nada de posições comunsrelativas ao assunto em debate direitos sexuais Trata-sede afirmar na Declaração Politica o que acabara de seraprovado no paragrafo 97 da Plataforma de Ação queos direitos humanos das mulheres incluem seu direito a

ter controle e decidir livre e responsavelmente emmatem relativa a sua sexualidade incluindo a saudesexual e reprodutiva livre de coerção discriminação eviolência Relações iguais entre mulheres e homens emmaterta de relações sexuais e reprodução incluindocompleto respeito a integndade da pessoa requerem mutuorespeito consentimento e responsabilidade compartidapara o comportamento sexual e suas consequências

O famoso paragrafo 97 representava uma formabem mais branda do que pretendera a União Europeiacom a expressão mais contundente e direta de direitossexuais das mulheres mas era a primeira vez que seafirmava direitos sexuais em uma Conferência dasNações Unidas A presença dos direitos sexuais naDeclaração Politica parecia necessitar um acordo quaseimpossivel no Grupo dos 77 A palavra sexualidadepesava O maior temor e que incluisse direitos a liberda-de de orientação sexual e direitos sexuais que nãofossem consentâneos com os codigos sexuais familiaresNum esforço derradeiro foi proposta a substituição daexpressão sexualidade por vida sexual Afinal ha quese reconhecer que todos têm uma vida sexual dizia umdos delegados no esforço de buscar uma posiçãoconciliatona Por que vida sexual parecia mais palatavel9Tudo indicava que sexualidade era entendida comoremetendo diretamente a orientação sexual e vidasexual a heterossexualidade do casamento Parecia que secaminhava para um acordo No ultimo momento no entantoas delegações do Irã e da Argentina se pronunciaramradicalmente contrarias Talvez tivessem percebido queafinal não haveria muita diferença entre aprovar direitosrelativos a vida sexual ou direitos relativos a sexualidade

O tempo corria e a presidência do Grupo deTrabalho sobre a Declaração Politica pressionava poruma proposta do grupo informal dos 77 Uma novaproposta no interior do grupo informal apontou emdireção ao âmago de toda a Conferência Por que nãoafirmar os direitos a vida sexual desde que respeitados osdireitos da família'? Insuficiente condição disseram uns eveio a proposta final feita e aprovada em não mais de um

ANO 3 420 20 SEMESTRE 95

Page 8: Li Aza Not Ta Beijing

minuto a condição do pleno respeito das particulandadesculturais Levada ao plenano do Grupo de Trabalho sobrea Declaração a posição da União Europeia seguida portantos outros poises progressistas foi nem pensar Oubem se respeitam as particularidades culturais ou bem serespeitam os direitos universais e individuais a sexualidade

No final da Conferência as ambiguidades aPlataforma de Ação manteve o Paragrafo 97 mas maisde 40 poises fizeram reservas e nenhuma menção foifeita a direitos sexuais na Declaração Politica

Um seculo ou um milênio segundo o desejoexplicitado de algumas delegações sera o temponecessano para que os poises concordem em afirmar aexistência de direitos sexuais para as mulheres Os desafi-os são muitos O embate pela hegemonia entre a laicidadee a religiosidade dos Estados A aliança entre o Vaticanoos poses catolicos que aderem a sua orientação e ospoises muçulmanos fundamentalistas e acrescida de algunsoutros poises muçulmanos não fundamentalistas que preve-nindo a ascensão possivel dos fundamentalistas preferemmanter uma orientação mais proxima aos preceitos religiososPara essa aliança os direitos das mulheres conflitam comos direitos religiosos e familiares E interessante verificarcomo apesar de serem tão diferentes as concepçõescatolicas e muçulmanas de família são esses poises quedefendem o conceito de família no singular O parado-xo não se sustenta quando se entende que o singular temcomo função remeter a existência de um unico modelofamiliar tradicional reconhecido em cada um dessescontextos culturais e não a qualquer semelhança entre eles

O conceito plural de famílias prevaleceu nodecorrer da Conferência mas a referência simultâneados direitos das meninas a educação e da responsabili-dade familiar parece relativizar a força dos direitosindividuais e inscrever ambiguidades

A referência simultânea de direitos individuais edireitos familiares não e anodina Como combater aviolência contra as mulheres e afirmar seus direitos dedecidir sobre o seu propno corpo sua saude e sobre areprodução como afirmar os direitos iguais de acesso aeducação se e no interior mesmo de configuraçõesfamiliares e culturais que se inscreve a interdição dasmeninas e a prioridade dos meninos irem a escola asubmissão de fato ou mesmo legal das esposas aosmaridos e os direitos desiguais a herança'?

Para lembrar apenas alguns dados a Folha de SPaulo publicava em 30 de setembro desse ano que 80%dos casos de violência contra a mulher apurados em SãoPaulo acontecem na propna casa da mulher que 90%dos estupros são feitos por pessoas conhecidas dasmulheres Os homens alegam defesa da honra quando

ESTUDOS FEMINISTAS 421 N 2/95

Page 9: Li Aza Not Ta Beijing

cometem violência corporal contra a mulher ou tentativade homicida Quanto ao estupro a culpa e sempre dasmulheres por demonstração de sexualidade em exces-so Em Uganda o direito de o marido bater na mulher ereconhecido por lei Na Bolivia as lesões so são punidasse a mulher ficar incapacitada por mais de 30 dias NoIrã o testemunho de um homem vale pelo de duasmulheres e o peso dos homens religiosos e primordial Asestatisticas educacionais apontam para a exclusão dasmulheres em muitos dos pauses em desenvolvimentoAbortos são realizados em situação de desespero comoultimo recurso e as mulheres são duplamente penaliza-das no perigo das condições precarias de sua realizaçãoe na punição de que são passiveis

As posições favoraveis e majoritarias da perspecti-va de gênero e de direitos universais enfatizaram emespecial dois avanços conseguidos em Beijing relativa-mente a Conferência sobre os Direitos Reprodutivos doCairo O primeiro foi a configuração dos direitos adecisão em matem relativa a sexualidade (deixandoclaro que entendem que foi reconhecido o direito apluralidade de orientações sexuais) o direito das mulhe-res sobre o exercido da sua sexualidade e a reafirmaçãodos direitos a integridade do corpo a saude sexual e aosdireitos reprodutivos O segundo avanço foi o acordo emrelação a recomendação de revisão da legislação doaborto no sentido de não penalizar (descriminalizar) asmulheres que tenham realizado abortos ilegais a tom-bem famosa letra k do paragrafo 107 Foram avançossubstantivos especialmente num quadro politica internacionalque parecia no começo desse ano tão desalentador Manteras conquistas do Cairo parecia a unica coisa almejavelpara a delegação norte-americana Avançar se possi-vel era a posição brasileira e um alento maior talvez sopudesse ser encontrado na delegação da União Europeia

Ressignificando o dilema universalidade versus diversidade

Poder-se-ia concluir quase religiosamente que adefesa dos direitos das mulheres passa pelo embatecontinuado entre a defesa dos direitos universais e oataque a diversidade cultural O relativismo culturalpareceria assim apenas se constituir num mal-entendidoe num lugar da negação dos direitos universais E poder-se-ia ser tentado a considerar o conceito de universalida-de como um conceito sem historia guardião dos direitosindividuais Poder-se-ia ainda ser tentado a afirmar que adefesa dos direitos das mulheres exige o fim das organiza-ções familiares e das diferenças culturais Contudo estaforma de apresentar tal embate e simplista reducionistaquase simploria e radicalmente etnocêntrica

ANO 3 422 20 SEMESTRE 95

Page 10: Li Aza Not Ta Beijing

Família e cultura não são monolitos São primeiroplurais e sempre configurações histoncas e mutaveis Adefesa dos direitos das mulheres não exige o fim dasorganizações familiares ou das diferenças culturais masexige reconhecer que ha posições diferenciadas nointerior das configurações culturais e que o olhar internosobre a totalidade da cultura não e o mesmo segundo asdistintas e desiguais posições dos sujeitos sociais Emsegundo lugar as diferentes culturas nacionais nãodeixam de ser tam bem Estados-Nações com poderesdiscricionanos e institucionais que mais ainda apontam eevidenciam as posições diferenciadas e desiguais dossujeitos sociais Hoje mais do que nunca as configura-ções culturais são permeadas pela globalização crescen-te da nova ordem mundial Torna-se possivel cada vezmais a mundialização da mercantilização das relaçõessociais assim como a mundialização das reivindicaçõespor direitos individuais universais As antigas definiçõesfixistas de relativismo cultural e de universalidadeconfiguravam um dilema irredutivel entre esses conceitos

O conceito de universalidade tampouco e umaentidade monolitica Ao contrario E não so um conceitohistoncamente datado como um concerto continuadamentehistorie° e mutavel O conceito de universalidade talcomo sê' vincula com a moderna concepção de direitosuniversais e fortemente devedor do momento daRevolução Francesa A concepção de Rousseau nãoantagonizava diversidade cultural e universalidadeApontava o fundamento mesmo da ideia da universalidadeno olhar sobre a diversidade cultural que permitia abstrairdo seu exame o que senam os direitos de qualquer ser humanoPara ele o olhar sobre a altendade pensada comodistante e separada permitia a critica a propna socieda-de e o exercia° da concepção do que seriam direitosnaturais individuais e universais No entanto a constituiçãohistorica e concreta da ideia de cidadão in abstractu noEstado-Nação francês cada vez mais passou a se parecercom o cidadão francês O paradigma da ideia decidadão em cada Estado-Nação que se constituiu e odefinia colava a imagem do cidadão abstrato aocidadão nacional provincianizando-se a ideia do universal

Tanto os conceitos de direitos universais como odos conceitos epistemologicos e filosoficos de universali-dade jamais são dados mas sempre construidos a partirnão so de uma argumentação que se pensa fundadalogicamente como se constitui respondendo e sendoembebida pela informação dos contextos politicos e dossaberes histoncos Nos seculos XVIII e XIX os intelectuaispodiam se permitir pensar a aftendade irredutivel edistante do mais perfeito modelo das culturas tradicio-nais o das sociedades indigenas Hoje o adensamento

ESTUDOS FEMINISTAS 423 N 2/95

Page 11: Li Aza Not Ta Beijing

4 YOUNG Ins Marion AImparcialidade e o PublicoCivico algumas impltcaçoesdas criticas feministas dateoria moral e politica InBENHAB1B Seyla e CORNELFeminismo como Cntica da

Modernidade Sao PauloRosa dos Tempos 1990

das articulações polfficas e econômicas em âmbito internacio-nal e multilateral coloca face-a-face culturas distintas nãomais romanticamente distantes mas polrhcamente permeadas

A celebre Declaração dos Direitos Universais de 1948não compreendia mais do que o acordo de cerca de 50penses As colônias estavam totalmente excluidas A constru-ção e o acordo sobre o que constitui elemento ou partedos direitos universais e uma matena não vencida Direitossexuais e reprodutivos com certeza não faziam parte doshorizontes da agenda das Nações Unidas em 1948 E puderame foram acordados por mais de 180 poses dos diferentescontinentes Direitos sequer pensados hoje poderão seramanhã pautados A definição dos direitos individuaisuniversais tem não so significados internos nacionais comovisa constituir direitos e deveres entre os Estados-NaçõesPensar e se defrontar com a explicrtação ou não desses direitosja faz parte desse horizonte cultural internacionalizado

O reconhecimento da diversidade cultural nointerior mesmo de um Estado-Nação pode ser a molanão esperada e razão acrescida do reconhecimento dadiversidade cultural fora do espaço da nação e de umrepensar sobre o conceito de universalidade Nos termospor exemplo de Ins Manon Young4 aparece o conceitoembrionano de uma universalidade não unificada queaponta para o fomento da heterogeneidade e para aconcepção emancipatona da vida publica para garantirmelhor a inclusão de todas as pessoas e grupos

A ideia-força de Estados-Nações multiculturais e deum espaço internacional mulficultural e o desafio da construção de uma nova universalidade que se reconheça comonão cons-htuida a pnon eia dada mas aberta capaz de pensardireitos universais a partir da ideia de um individuo que nãoesteia mais preso e colado nem a ideia do masculino nemdo imaginano hegemônico do cânone ocidental que muitasvezes não e mais que um cânone nacional e provinciano

Com certeza não são os direitos universais que sedevem submeter aos direitos familiares e culturais mas asconfigurações familiares e culturais que devem dar lugara pluralidade de famílias e culturas capazes de construiremos direitos individuais universais assim reconhecendo-os econhecendo-os A ideia historica de universalidade deveser capaz de permear e atravessar as distintas configura-ções culturais num mundo hoje cada vez mais proximoporque dentro de uma mesma rede de articulaçõespoliticas e econômicas mas mais distante face ao graucrescente de desigualdade de posições no interior do sistema

A respeito de raça e etnia

O olhar sobre o espaço internacional da Conferên-cia permite ainda observar os efeitos de se colocar lado

ANO3 424 2 SEMESTRE 95

Page 12: Li Aza Not Ta Beijing

a lado reivindicações por direitos das mulheres concebi-dos em diferentes espaços nacionais Introduz ângulos deanalise muito interessantes Esse foi particularmente o casodas reivindicações brasileiras de que as questões de raçae etnia fossem consideradas com destaque na Conferência

O primeiro momento de impacto foi o da reação aproposta de inclusão da raça e etnia na discriminaçãodas estatisticas nacionais Burundi e Bostwana foramfortemente contranos ao aparecimento das diferençasetnicas e de raça nas estatisticas nacionais pois levariama aprofundar as discordas entre as diferentes etnias Oprojeto desses estados era antes a construção da ideia deNação e fortificação da sua unidade que a expliataçãodas diferenças etnicas capazes de desencadear umasituação de guerra Brasil e Estados Unidos pareciamparticipar da mesma visão estrategica de que o aumentodos direitos das diferentes etnias cores e raças passava pelaexpliatação das diferenças em busca de maior igualda-de de posições De alguma forma ha entre estes poisesum caminho similar dos movimentos etnicos especial-mente entre o Black Power e o Movimento Negro Unificado

O Brasil opta então por se posicionar fortemente pelaexpliatação não so na Plataforma de Ação mas tambem naDeclaração Polrhca que nem raça nem etnia sejam barreiraspara a igualdade dos direitos das mulheres As conversaçõesinformais se fizeram junto as delegações africanas Não haresistência a inclusão dos termos raça e etnia como diferen-ças que não podem se constituir em fatores de discnminaçãoContudo parece não vir dos poises africanos a necessi-dade de se colocar tal proposição Silenciar sobre a raçae a etnia talvez fosse a estrategia politica escolhida nosentido da constituição e consolidação dos Estados-NaçõesNão ha uma politização positiva da expliatação dasdiferenças de raças ou etnias mas uma politização positivada necessidade de construir Estados-Nações Diferençasde raças e etnias parecem ser em algum grau antinõmicasou contraproducentes face a ideia de Estado-NaçãoTalvez nos mesmos moldes que configuraram o mito dademocracia racial Com certeza Gilberto Freire e

tantos outros tombem faziam parte de um projeto deconstituição da ideia de nação alem de tombemportadores da ideia de minimizar a discriminação racial

A mesma critica que se fez e se faz ao mito dademocracia racial brasileira tombem poderia ser feita

ao silenciamento parcial africano sobre a questão racialSera que o modo como o continente africano e posto epercebido no contexto da nova ordem mundial nãoesta impregnado de um vies discriminador racial ecultural por parte das posições hegemônicas dos posesdesenvolvidos? Diante das reivindicações brasileiras ospoises africanos responderam positivamente a demanda

ESTUDOS FEMINISTAS 425 N 2/95

Page 13: Li Aza Not Ta Beijing

brasileira e ha assim um unico paragrafo na DeclaraçãoPolitica em que os poises acordam em não permitir queraça ou etnia sejam barreiras para a igualdade das mulheres

A outra topografia de alianças o desenvolvimento como direito

Um seculo ou um milênio para então se poder falarde direitos sexuais e o desejo conservador de algunspoises temerosos dos direitos sexuais das mulheres Maspor outro lado sera que porventura ha poises desenvol-vidos que desejem um seculo ou um milênio para soentão se convencerem da necessidade de se caminharpara uma maior equidade de desenvolvimento 9 Nãosera o desenvolvimento um direito individual' ) Esta foi aproposta vinda da Cupula Mundial de DesenvolvimentoSocial em Copenhague e tombem fortemente presentena IV Conferência Mundial sobre as Mulheres

A mortalidade de mulheres gravidas na Afnca e 180vezes maior que na Europa Ocidental A mortalidade maternanos paises não desenvolvidos e extraordinanamente maiorque nos poses desenvolvidos A sobrevivência parece sera principal meta a ser alcançada por homens e mulheres

Aqui a aliança do Vaticano foi distinta fez-se comos paises em desenvolvimento não so religiosos quanto imosSem hesitações o Vaticano propunha a rediscussão dasdividas externas e das politicas de reajuste estrutural Nãose conseguiu o reconhecimento de que as politicasmundiais de reajustes estruturais incrementam a pobrezaDelegações de poises desenvolvidos sequer sentiam-seconstrangidas a contra- argumentar Silenciavam Seranecessano o decurso de um milênio de pobreza')

Obteve-se no entanto a recomendação daredução da divida multilateral e houve acordo sobre aentrada de recursos adicionais para a Plataforma de Ação

Serei otimista Esperemos a virada do milênio Perto dosanos 2 000 ia se esta reconhecendo ainda que preliminarmen-te os direitos das mulheres como direitos humanos em areastão sensiveis como os direitos sexuais os direitos reprodutivos eos direitos a saude sexual e a integridade do corpo O queja e um passo da revolução simbolica requenda embora sejamenormes os desafios de tornar atuantes esses principlos

Uma outra revolução simbolica tambem se faz necessana a do reconhecimento da responsabilidade mundiale internacional na afirmação do desenvolvimento comodireito Direito que se reconhecido e tanto a afirmaçãoda universalidade quanto a afirmação do respeito a diversida-de cultural Uma universalidade aberta a ser historica-mente construida paradoxalmente acenando tanto maispara a utopia quanto mais o desenvolvimento desigual colocaem risco qualquer ideia de direitos universais generaliza-dos e qualquer ideia de respeito a diversidade cultural

ANO 3 426 2° SEMESTRE 95