a educação operária no final do século xix e início do xx em...
TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
ISABEL CRISTINA CAETANO DESSOTTI
A educação operária no final do século XIX e início do
XX em Sorocaba sob o olhar da imprensa: o escrito e o
silenciado
Campinas 2017
ISABEL CRISTINA CAETANO DESSOTTI
A educação operária no final do XIX e início do XX em Sorocaba sob o
olhar da imprensa: o escrito e o silenciado
Tese de Doutorado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Educação
da Faculdade de Educação da Universidade
Estadual de Campinas para obtenção do
título de Doutora em Educação, na área de
concentração de Filosofia e História da
Educação.
Supervisor/Orientador: Prof. Dr. José Luis Sanfelice
O ARQUIVO DIGITAL CORRESPONDE À VERSÃO FINAL
DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA ISABEL CRISTINA
CAETANO DESSOTTI E ORIENTADA PELO PROF. DR.
JOSÉ LUIS SANFELICE
Campinas/SP
2017
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
TESE DE DOUTORADO
A educação operária no final do século XIX e início do
XX em Sorocaba sob o olhar da imprensa: o escrito e o
silenciado
Autor: Isabel Cristina Caetano Dessotti
COMISSÃO JULGADORA:
Prof. Dr.José Luis Sanfelice
Profª Dra. Fabiana de Cássia Rodrigues
Prof. Dr. Paulo Gomes de Lima
Profª Dra. Sônia Aparecida Siquelli
Prof. Dra. Vânia Regina Boschetti
A Ata da Defesa assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.
2017
DEDICATÓRIA
À minha mãe, que viveu muito do relatado nestas páginas, mas não viveu para ver a
conclusão deste trabalho.
AGRADECIMENTOS
Conclui a escrita deste trabalho em 31 de dezembro de 2016, com quase um ano de
atraso, já ouvindo o espocar de rojões anunciando o ano novo que se aproxima, por isso
agradeço a Deus por ter-me permitido conclui-lo.
No caminhar da construção deste trabalho, tenho muito a agradecer a inúmeras pessoas
que contribuíram de diferentes formas. Algumas, só com palavras de alento, mas tão bem-
vindas.
Agradeço aos amigos do doutorado, pela amizade e compartilhamento das angústias
acadêmicas.
Sou imensamente grata aos professores por todo o aprendizado que tive.
Agradeço aos funcionários da secretaria da UNICAMP Lígia, Tassiane que tanto me
ajudaram e orientaram em várias situações difíceis, especialmente Nadir, que tem a palavra
certa na hora certa.
Agradeço a atenção da bibliotecária da UNICAMP Rosemary.
Ao meu amigo Edemir Morais, que mais uma vez me ajudou, disponibilizando seu
material de pesquisa e seu conhecimento, o meu muito obrigada.
Agradeço aos funcionários do Gabinete de Leitura pela atenção a mim dispensada nas
muitas horas de pesquisa. Aos amigos antigos e novos do Gabinete de Leitura, agradeço pelas
sugestões, conversas e interesse pelo meu trabalho.
À amiga professora Renata, por dominar a Língua Portuguesa e por ter me socorrido
com a revisão do texto.
Aos amigos Virgínia e Rodrigo pela ajuda nas finalizações.
Aos professores da banca Paulo Lima, Fabiana Rodrigues e Sonia Siquelli pela gentileza
da leitura atenta do meu texto, pelas valiosas contribuições oferecidas para o mesmo. Em
especial à professora Vânia, por participar mais uma vez de uma etapa importante da minha
vida acadêmica.
Ao meu marido Onivaldo, meus filhos Vinícius, Elise, Lucas e Mariana, obrigada por
tudo.
A minha irmã Lúcia que despertou em mim o gosto pela leitura desde sempre.
Ao professor José Luis Sanfelice pela orientação, compreensão e por não ter desistido
de mim, meus sinceros agradecimentos sempre.
EPÍGRAFE
“Há homens que lutam um dia e são bons,
há outros que lutam um ano e são melhores,
há os que lutam muitos anos e são muito bons, mas
há os que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis”
(Bertolt Brecht)
RESUMO
O presente estudo buscou analisar de forma recorrente o papel ocupado pela educação dentro
da história do movimento operário em Sorocaba no final do século XIX e início do século XX
a partir do olhar da imprensa. Destacou-se a presença do imigrante europeu, que chegou
imbuído de esperanças de vida melhor e se deparou com uma vida de muito trabalho e
sofrimento, tanto na lavoura como nas fábricas. Em Sorocaba, os imigrantes, principalmente
italianos e espanhóis, foram aproveitados mais intensamente nas fábricas de tecidos,
consideradas por muitos como uma das que mais tem explorado o proletariado no mundo. Além
das esperanças, os imigrantes trouxeram, na bagagem, novas ideias, que foram as ideias
embrionárias da organização operária. Diante das condições de existência do operariado
brasileiro, sintetizaram sua luta numa certeza: “queremos, quando o povo estiver educado, a
revolução social”. Estudou-se a trajetória da educação em Sorocaba, desde a educação precária
e quase inexistente dos tempos do Império até a escola dos primeiros tempos da República. Na
primeira república, a Escola tinha a função regeneradora da nação e os Grupos Escolares
tiveram a incumbência de propagar a imagem do novo ensino, voltado para todos. O primeiro
grupo escolar público foi criado em Sorocaba, em 1896. Mas nem mesmo a criação dos demais
grupos escolares foi suficiente para atender a toda demanda. Assim, a escola pública atendeu,
principalmente, os filhos da elite, uma vez que os filhos dos operários trabalhavam nas fábricas
e quase não conseguiam estudar. Trata-se de pesquisa documental e bibliográfica, cujo quadro
de análise se assenta no materialismo histórico, tendo como fonte primária mais significativa a
imprensa, especialmente o jornal O Operario, incansável na luta pela educação do operariado
e outros. As principais referências teóricas de apoio foram baseadas nas reflexões formuladas
por Engels (2010), Thompson (1987), Ferreira (1978), Dean (s/d), Carone (1989), Rodrigues
(1969), Ferrer y Guardia (2014). A análise da documentação e da bibliografia disponíveis
permite considerar que a educação, esperança do operário, não foi compartilhada da mesma
forma nem pelo governo e nem pelos patrões. A escola republicana, incapaz de promover a
educação popular, tentou promover o silenciamento do operário, mas não pôde apagar o registro
de seu movimento. Palavras-chave: Trabalho – Educação – Movimento Operário – Imprensa – Imigrantes
ABSTRACT
The present study aimed to reconstruct the education role in the history of the worker movement
in Sorocaba in the end of the 19th century and the beginning of the 20th century from the press
view. It is highlighted the presence of the european immigrant, that came here full with hope of
a better life and found a life of hard word and suffering, in the farming as well the factories. In
Sorocaba, the immigrants were put upon more intensively in the textile factories, considered by
many as one of the most scrounge of the working class factory. Besides the hopes, the
immigrants brought, in their luggage, new ideias, the ones were the embryonic ideias of the
worker organization. Facing the conditions of the existence of the brazilian workers, they
summarized their fight into a certain: “We want, when the people are educated, the social
revolution.” It studied the trajectory of Sorocaba´s education, since the precarious and the
almost non-existed education in the empire times to the school from the first times of the
republic. In the first republic, the school had the regenerative nation role and the school groups
had to spread the image of the new teaching, to all. The first school group created in Sorocaba
in 1896 and the others weren´t enough for the demand and the public school turned out to attend
especially the elite children, since the workers children worken in the factories and couldn´t go
to school. It was used, for the purpose of this study, primary and secondary sources, such as:
the press, especially the “O Operario” paper, tireless in the fight for education of the workers
and others.
The main theoretical references were based in the reflexions of Engels (2010), Thompson
(1987), Ferreira (1978), Dean (s/d), Carone (1989), Rodrigues (1969), Ferrer y Guardia (2014).
The analysis of the documentation and the bibliography available allow to consider that the
education, the worker´s hope, wasn´t shared in the same way neither by the government nor by
the bosses. The republic school, incapable to promove the public education, promoved
competently the silencing of the worker but it couldn´t erase the register of the movement.
Key-words: Work – Education – Worker movement – Press - Immigrants
RESUMEN
Este estudio buscó recrear el papel que se ocupó la educación en la historia del movimiento
obrero en Sorocaba al final del siglo XIX y a partir del siglo XX por la mirada de la prensa. Se
destacó la presencia del inmigrante europeo, que llegaba acá lleno de esperanzas de una vida
mejor y se enfrentó a una vida de mucho trabajo e sufrimiento, tanto en la labranza cuanto en
las fábricas. Los inmigrantes en Sorocaba fueron aprovechados más intensamente en las
tejedurías, tenídas por muchos como una das fábricas que más ha explorado el proletariado en
el mundo. Además las esperanzas, los inmigrantes trajeron, en su equipaje, nuevas ideas, que
fueron las ideas embrión de la organización laboral. Delante de las condiciones de existencia
de la clase obrera brasileña, han sintetizado su lucha en una certeza: “deseamos, cuando el
pueblo quedarse educado, la revolución social”. Se estudió el camino de la educación en
Sorocaba, de la educación precario y casi ausente de los tiempos del imperio hasta la escuela
de los primeros días de la República. En la primer república, la Escuela tenía la función de
regenerar la nación y los Grupos Escolares tuvieron comisión de propagar la imagen del nuevo
enseño, enfocado en todos. El primer grupo escolar creado en Sorocaba, en 1896, y los demás
no consiguieron cumplir la demanda y la escuela público he satisfecho los hijos de la élite, ya
que los hijos de los trabajadores estaban en las fábricas y no podrían asistir las escuelas. Se
utilizó, para esta búsqueda, fuentes primarias y secundarios, tales como: la prensa,
especialmente el periódico O Operario, incansable en la lucha por la educación de los
trabajadores. Las referencias teóricas principales se basaban en las reflexiones de Engels
(2010), Thompson (1987), Ferreira (1978), Dean (s/d), Carone (1989), Rodrigues (1969), Ferrer
y Guardia (2014). La análisis de la documentación y de la bibliografía ha permitido creer que
la educación, esperanza de los trabajadores, no se fue considerado de la misma manera ni por
el gobierno y tampoco por los jefes. La escuela republicana, incapaz de desarrollar la educación
popular, promocionó hábilmente el silenciamiento de los trabajadores... no pude eliminar lo
registro de su movimento.
Palabras llave: Trabajo – Educación – Movimiento obrero – Prensa – Inmigrantes
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 14
1 OS OPERÁRIOS ................................................................................................................ 27
1.1 Os operários: nova força de trabalho .................................................................................... 34
1.2 A paisagem e tudo o mais se transforma: surgem as fábricas ............................................. 35
1.3 A imigração ............................................................................................................................. 44
1.4 Os imigrantes no Brasil .......................................................................................................... 55
1.5 Colônia Cecília – Um sonho de liberdade ............................................................................ 59
1.6 Os imigrantes chegam a Sorocaba ..................................................................................... 63
1.7 O apito da fábrica controlando o tempo e a vida ................................................................ 65
1.8 Dentro da fábrica, o tear silencia a todos ............................................................................ 73
1.9 As histórias de vida se repetem nas vilas operárias ............................................................ 83
1.10 Os imigrantes se unem, os operários se organizam ........................................................... 87
2 A GRANDE IMPRENSA E A IMPRENSA OPERÁRIA EM SOROCABA ........... 106
2.1 A grande imprensa em Sorocaba ....................................................................................... 107
2.2 A imprensa operária .......................................................................................................... 121
2.2.1 O jornal O Operario de Sorocaba ................................................................................ 126
2.2.2 A presença da mulher nas colunas do jornal O Operário .......................................... 136
2.2.3 A ideologia do jornal O operário ................................................................................... 144
2.2.3.1 Ideias anarquistas em Sorocaba: os libertários ........................................................ 150
2.3 As primeiras tentativas de greve sob o olhar da imprensa ............................................ 154
2.4 O olhar da imprensa sobre a primeira greve operária bem-sucedida ............................ 158
2.5 Embates ideológicos entre os jornais Cruzeiro do Sul e O Operario .............................. 170
2.6 O fim do jornal O Operario ................................................................................................. 174
3. A EDUCAÇÃO E AS ESCOLAS PARA OPERÁRIOS .......................................... 179
3.1 A educação em Sorocaba nos tempos do Império ........................................................... 179
3.1.1 A Escola Popular ........................................................................................................... 190
3.2 A educação em Sorocaba após a República ..................................................................... 192
3.3 Uma escola para operários: escola da Loja Maçônica Perseverança III........................... 211
3.4 Uma escola para as moças operárias ............................................................................... 216
3.5 A instrução para o operário: o verdadeiro pão do espírito ........................................... 218
3.6 A educação operária sob as lentes dos jornais Cruzeiro do Sul e O Operário ............. 222
3.7 Escola Moderna ou Racionalista: educação para a emancipação .................................... 228
3.7.1. A pedagogia de Francisco Ferrer y Guardia .............................................................. 231
3.7.2 Escola Moderna em Sorocaba ...................................................................................... 234
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 252
MEMORIAL (APÊNDICE) ................................................................................................ 260
14
INTRODUÇÃO
“Se dividirmos os retratos existentes de cidades em dois grupos, conforme o lugar de
nascimento do autor, perceberemos que os escritos por autóctones são minoria. O
motivo superficial, o exótico, o pitoresco só atrai os de fora. Para o autóctone obter
a imagem de sua cidade, são necessárias motivações diferentes, mais profundas.
Motivações de quem, em vez de viajar para longe, viaja para o passado. Sempre o
retrato urbano do autóctone terá afinidade com o livro de memórias, não é à toa que
o escritor passou sua infância nesse lugar” (Walter Benjamin).
Tomo emprestadas as palavras de Walter Benjamin (1985) para justificar a escolha do
meu tema de pesquisa, a educação dentro do movimento operário sob o olhar da imprensa,
resultado de uma conjugação de elementos como a memória afetiva, as histórias de vida, os
lugares familiares e mais a minha própria formação em História.
Nasci numa vila operária e, desde muito pequena, caminhava de madrugada, até a
fábrica de tecidos Votorantim e permanecia na creche da fábrica enquanto minha mãe
trabalhava. Quando da realização da minha dissertação de mestrado, a simpatia por esse tema
falou mais alto e o resultado da pesquisa foi: “História da educação de Votorantim: do apito da
fábrica à sineta da escola”. Por se tratar de um mestrado em Educação, o estudo central foi a
escola, entretanto, no caso de Votorantim, cidade onde nasci, não havia como falar da escola
sem apresentar a fábrica de tecidos, uma vez que a cidade se formou a partir dessa fábrica, que
passou a exercer forte dominação, não só na vida das pessoas como em tudo o que acontecia no
lugar. Na busca de fontes, foi a imprensa da época que mais atendeu aos objetivos dessa
pesquisa.
O recorte definido nesse estudo foi a história da educação na vila operária de Votorantim
que, no período estudado – final do século XIX e início do XX – pertencia ao município de
Sorocaba. Entretanto, quanto mais pesquisamos, mais nos deparamos com espaços que
precisavam ser preenchidos para elucidar o passado.
Assim, pela necessidade de escolha de um tema para a tese de doutorado, decidi-me por
retomar a história da educação operária, uma vez que essa história não se esgotou,
principalmente no que diz respeito à imprensa enquanto fonte de pesquisa.
É bem verdade que a história de Sorocaba se viu enriquecida nas últimas décadas com
trabalhos acadêmicos e outras produções historiográficas, que a inseriram num campo
relativamente novo da historiografia, qual seja a História das Cidades. Apesar do avanço da
produção, determinados assuntos necessitavam de aprofundamentos a cada trabalho produzido,
tal qual uma colcha de retalhos, onde cada retalho tem uma estampa, um colorido, uma textura
e unidos, posteriormente, são costurados, formando a colcha. Assim se deu também com a
15
produção historiográfica: cada olhar do historiador correspondia a um retalho, que alinhavado
e costurado aos de outros, foi capaz de resgatar a história, dando-lhe sentido e significado e,
principalmente, dando a palavra aos esquecidos da história.
O resgate histórico tornou-se importante à medida que novas interpretações foram
surgindo, novos olhares e novas possibilidades foram dando voz aos esquecidos e silenciados
pela história. A história deve esclarecer a memória e ajudá-la a retificar os seus erros (LE GOFF,
1990). É um complemento para os tempos posteriores. Entretanto, o que se verifica é que
mesmo conhecendo os erros do passado, alguns acabam por se repetir no presente.
Este trabalho busca contribuir para a valorização de um período ainda pouco estudado
na história de Sorocaba, como mais um retalho a ser costurado no que já foi produzido sobre a
história de patrões e operários em suas relações de trabalho e de poder e qual o valor atribuído
por patrões e operários à educação.
Certamente, a crítica esbarrou nos conceitos de verdade e poder. Mas qual verdade? A
verdade estava com as classes dominantes, no caso os patrões, ou com os operários, os
explorados? Eis o combate histórico estabelecido, conforme alerta Michel Foucault (1979, p.
13):
Há um combate “pela verdade” ou, ao menos, “em torno da verdade” entendendo-se,
mais uma vez, que por verdade não quero dizer “o conjunto das coisas verdadeiras a
descobrir ou fazer aceitar”, mas o “conjunto das regras segundo as quais se distingue
o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder”;
entendendo-se também que não se trata de um combate “em favor” da verdade, mas
em torno do estatuto da verdade e do papel econômico-político que ela desempenha
(FOUCAULT, 1979, p. 13).
As verdades estabelecidas pelas versões dominantes, especialmente aquelas ligadas ao
mundo capitalista, prendem-se a alguns aspectos e não identificam os diferentes grupos, ainda
mais se esses forem vistos como opositores. Valorizam-se apenas concepções desejadas
relacionadas ao progresso como obra de grandes homens empreendedores, desqualificando os
homens comuns, os trabalhadores em geral, suas culturas, seus saberes e sua presença em todo
o processo de industrialização. O homem comum nada tem de herói, talvez por isso
historiadores locais tenham se dedicado à história do bandeirantismo e do tropeirismo, pelas
suas qualidades incomuns. (PINTO JR, 2003, p.19)
Por muito tempo, os historiadores de Sorocaba se mantiveram alinhados ao pensamento
de Aluísio de Almeida, considerado o mais fidedigno pesquisador da História de Sorocaba, o
cronista da cidade, até os dias de hoje. Aluisio de Almeida foi o pseudônimo de Monsenhor
Castanho, nascido em Guareí no ano de 1904, que, depois de ordenado padre, em 1927, veio
16
para a Diocese de Sorocaba. Após algum tempo de sacerdócio, por volta de 1933, adoentado,
viu-se impedido de exercer suas atividades eclesiásticas e passou a se dedicar à pesquisa sobre
a história de Sorocaba. Assim o fez até bem próximo de sua morte, em 1981. Tendo livre
trânsito pelos arquivos municipais, do Estado e dos documentos pertencentes à Igreja, escreveu
livros e artigos para jornais sobre a história de Sorocaba, tornando-se uma referência para os
futuros historiadores que, por certo tempo, praticamente deram continuidade ao trabalho de
pesquisa e análise histórica iniciados por ele.
Os escritos de Aluísio de Almeida foram garimpados em fontes primárias tais como:
jornais publicados no período de 1842 a 1930, livros da paróquia de Nossa Senhora da Ponte,
a partir de 1679, atas da Câmara desde 1805, inventários no cartório do 1º ofício de 1800 a
1842, livros de notas de 1723 a 1734, papéis avulsos de 1720 a 1863 do Arquivo Público de
São Paulo entre outros, além das histórias de vida e da cidade contadas pelas pessoas do lugar.
Aluísio de Almeida dividiu a história de Sorocaba em três “ciclos econômicos”: o
bandeirantismo, o tropeirismo e a industrialização. Essa divisão por ciclos econômicos proposta
por ele influenciou autores e pesquisadores locais, como Adolfo Frioli (2005), Vera Ravagnani
Job (1983), Rogich Vieira (1988), Geraldo Bonadio (2004) e outros, tanto nas análises como
na ênfase dada ao estudo de determinados “ciclos”, como o bandeirantismo e o tropeirismo, que
chegam a atribuir ao tropeiro, legítimo representante de nossa gente, a promoção da unidade
nacional, por meio de suas viagens com as tropas por todos os cantos do país. Sorocaba sediava
um entreposto de mercadorias, os muares, que atraía para cidade não apenas brasileiros de todas
as regiões, mas também estrangeiros. Tais autores defendem a ideia de que o tropeiro forjou a
identidade histórica de Sorocaba e do sorocabanoOportuno dizer que as atuais pesquisas,
acadêmicas ou não, têm se distanciado do que já foi feito em termos de produção
historiográfica, trazendo novos olhares, novas abordagens, permitindo outras formas de se
contar e interpretar o passado. Elas propõem a reconstituição do passado, com outras
indagações do vivido, apresentando novos personagens, reconstituindo o passado ao dar voz
aos esquecidos. Há, atualmente, certo consenso entre pesquisadores de que a historiografia de
Sorocaba dá importância a um passado distante, dos tempos dos bandeirantes e tropeiros, e
pouco reflete sobre um passado mais recente, ou seja, o tempo da industrialização. Quais seriam
as motivações para esse desinteresse ou esquecimento?
Esta pesquisa ora apresentada se alinha a essa nova proposta de abordagem, buscando
as razões que levaram a esse esquecimento – ou seria silenciamento? Pretende, assim, abordar
a educação operária, desde a sua gênese na cidade de Sorocaba, no período que compreende as
17
últimas décadas do século XIX até as primeiras décadas do século XX, com o advento da
industrialização.
Nas últimas décadas do século XIX, mais especificamente a partir da década de 1880, a
concepção de cidade foi se modificando à medida que emergia a industrialização e redefinia-se
o espaço urbano. A cidade passou a representar o lugar da modernidade, com novas
configurações apoiadas numa sociedade industrial e no fortalecimento de uma cultura burguesa.
Nesse período de implantação da indústria, a cidade viveu expressivo aumento populacional
com a vinda de imigrantes estrangeiros e ex-escravos.
O crescimento populacional que a cidade conhece, intensifica-se, a partir de 1872,
com uma taxa anual em torno de 1,6% e ganha contornos de explosão demográfica
entre 1890 e 1920, com taxa em torno de 4,0% ao ano. Nesses mesmos períodos, a
cidade de São Paulo cresce em 4,1% e 5,1%, respectivamente. Tal crescimento está
intimamente relacionado à dinâmica urbana, que, já no início do século XX vai
ganhando feições de modernidade: a água e o esgoto surgem, em 1902; o cinema, em
1906; o telefone, em 1907; o bonde, em 1915; o calçamento, em 1921. Além desses
benefícios, a cidade já contava com jardins, teatros, hospital, fábricas, casas
comerciais, escolas, igrejas, palacetes, vilas operárias, cortiços, estalagens (MENON,
2000, p.35).
O período delimitado para o estudo, final do século XIX e início do XX, corresponde
ao período no qual o movimento operário em Sorocaba se iniciou, consolidou-se e, depois,
enfraqueceu e, paralelamente, é nesse tempo que a educação passou a ter relevância no cenário
nacional. Assim, este trabalho pretende valorizar tal período tão pleno de significações na
história do movimento operário em Sorocaba, procurando encontrar, nas dobras do local, o
universal.
A questão central desta pesquisa assenta-se na concepção de educação produzida pelo
movimento operário em Sorocaba, num cenário de interesses antagônicos entre a burguesia e o
proletariado, a partir do olhar da imprensa da época, tanto a chamada grande imprensa quanto
a imprensa operária.
A escolha da imprensa se deu a partir da experiência da elaboração da dissertação de
mestrado, momento em que o estudo das condições de vida dos operários, das relações
conflituosas entre patrões e operários se revelou como uma temática de investigação em
potencial, e os jornais configuravam um material rico nessa direção. A imprensa local
apresentava uma questão relevante e recorrente nos editoriais e notícias publicados: a educação.
Assim, revelou-se uma fonte profícua de conhecimento de uma época, no sentido que nos
apresenta Dermeval Saviani (2004): fontes como os lugares de onde brota o nosso
conhecimento da História, e a sua inesgotabilidade, pois sempre que a ela retornamos, tendemos
18
a descobrir novos elementos, novos significados, novas informações que nos tinham escapado
por ocasião das incursões anteriores. Esse tipo de fonte vem contribuindo sobremaneira para a
ampliação de pesquisas histórico-educacionais de caráter regional e local e os próprios
historiadores da educação, já há algum tempo, se deram conta desse processo de significativa
valorização da imprensa.
Para a historiadora Maria Helena Capelato (1988), a imprensa é um manancial dos mais
férteis para o conhecimento do passado, pois possibilita ao historiador acompanhar o percurso
dos homens através dos tempos. O período delimitado para este estudo – final do século XIX e
início do século XX – foi justamente o período em que a imprensa teve grande profusão, não
só em Sorocaba, mas em todo país, motivada por novas técnicas de impressão e edição, que
favoreceram o barateamento dos jornais e das revistas. Estas últimas, enquanto produto mais
refinado, ganharam a preferência da burguesia urbana. Em Sorocaba, no período de 1870 a
1920, foram editados mais de 150 periódicos, entre jornais e revistas (MENON, 2000, p.34). A
esse respeito, Michel de Certeau (1974, p.30) alerta que:
Em história, tudo começa com o gesto de selecionar, de reunir, de, dessa forma, transformar
em “documentos” determinados objetos distribuídos de outra forma. Essa nova repartição
cultural é o primeiro trabalho. Na realidade, ela consiste em produzir tais documentos, pelo fato
de recopiar, transcrever ou fotografar esses objetos, mudando, ao mesmo tempo, seu lugar e seu
estatuto.
Portanto, ao se trabalhar com a imprensa, é preciso estar atento às intenções de quem
produziu os jornais, à sua posição na sociedade, a seus interesses e a pontos de vistas explícitos
ou implícitos em seus argumentos.
Identificado o tema e delimitado o período pretendido para o estudo, iniciou-se o
trabalho de busca das fontes, não sem dificuldades – diga-se de passagem –, que consistiu na
leitura e análise da produção sobre o processo de industrialização e sobre imigração a partir das
reflexões de Dean (s/d), Fausto (2003), Ianni (1972). Promoveu-se uma incursão na legislação
trabalhista em nível macro a fim de inserir, nesse universo, as contribuições de Sorocaba.
Também com essa intencionalidade, realizou-se o mesmo procedimento para investigar a
produção historiográfica educacional. Buscando estabelecer um diálogo entre o local e o
universal, efetuou-se levantamento da produção historiográfica local, não se atendo apenas aos
textos acadêmicos, privilegiando as produções mais recentes, com predominância das
dissertações de mestrado e teses de doutorado produzidas na UNISO e na UNICAMP. A etapa
mais demorada e trabalhosa consistiu na localização dos jornais, leitura, seleção e transcrição
das publicações mais relevantes, procurando estabelecer a interlocução entre os jornais a partir
de seus posicionamentos ideológicos e de seus interesses, quase sempre antagônicos.
19
Ao transcrever as notícias dos jornais da época, O Operario, Cruzeiro do Sul e outros,
optou-se por fazê-lo de acordo com o texto original, mantendo-se os nomes citados nas
publicações, sem a utilização de recursos para preservar a identidade da pessoa citada. Dessa
forma, optou-se por não fazer a omissão dos nomes, nem usar nomes fictícios ou apenas as
iniciais, mesmo sabendo que a verdade dos fatos nem sempre se encerrava nas notícias, escritas
a partir da visão e dos interesses de seus escritores e do lugar que ocupavam na sociedade.
Entende-se que se trata de um procedimento arriscado, considerando que descendentes das
pessoas citadas no decorrer do trabalho ainda vivem.
Para trabalhar com a imprensa local, mais uma vez, recorri ao Gabinete de Leitura
Sorocabano. Essa instituição, fundada em 1867, dispõe de um acervo riquíssimo que muito tem
colaborado com os pesquisadores locais. Por se tratar de instituição particular, apesar de ter
utilidade pública, sobrevive sem a ajuda do poder público, praticamente apenas das
mensalidades pagas por seus sócios e do aluguel de algumas salas de seu prédio, por isso parte
do acervo se encontra em estado lastimável de conservação, pela ação do tempo, fazendo-se
necessária a urgente digitalização dos exemplares. Alguns jornais já não são disponibilizados
para consulta, por apresentarem fragilidades como rasgos, falta de páginas e desgaste da tinta,
apesar dos cuidados exigidos, como o uso de luvas e máscaras para o manuseio do papel, que
muitas vezes pelo leve toque já se rompe.
O Gabinete de Leitura Sorocabano possui uma hemeroteca bem montada, além de
almanaques, livros, revistas, documentos como cartas de alforria, publicações diversas, livro de
visitas com registro de passagens do Imperador D. Pedro II, do Conde D’Eu, da Princesa Isabel
e de viajantes ilustres etc. Outro aspecto interessante do Gabinete de Leitura diz respeito ao seu
ambiente, que permite o contato com outros pesquisadores, rendendo boas conversas, troca de
material, indicações bibliográficas e, principalmente, a amizade que se faz. A digitalização
vem sendo feita, no entanto, de maneira lenta.
Atualmente, numa iniciativa particular, o jornal Cruzeiro do Sul, fundado em 1903, tem
todo o seu acervo digitalizado, como forma de concretizar, seu Projeto Memória.
Mergulhar nas páginas dos jornais antigos é como voltar para um tempo em que não se
viveu. A leitura diária e seguida de muitos jornais nos transporta para um tempo vivido que
parece ser o tempo em que aqueles fatos noticiados ocorreram. Por mais de uma vez me peguei
sentindo a morte de alguém cuja vida acompanhei pelas páginas de um jornal, tal é o vínculo
que o pesquisador estabelece com suas fontes.
20
O Museu Histórico Sorocabano também foi visitado diversas vezes, sendo que lá foram
encontrados os livros de registros e matrículas das escolas públicas e particulares de Sorocaba
e fotos referentes ao período estudado.
Elegeram-se alguns jornais que poderiam contribuir mais com a pesquisa, selecionando
aqueles que circularam por mais tempo e aqueles que mantiveram posicionamentos ideológicos
mais definidos e, muitas vezes, antagônicos entre si. Os principais jornais consultados foram:
O Sorocabano. Fundado em 13 de fevereiro de 1870. Vendido ao preço de “8$000 ao
anno na cidade e 9$000 fora”, tinha por princípio “pugnar pelo bem público, com especialidade
pelos interesses do município. Dar voz a todas as reclamações justas e comedidas. Reproduzir
os clamores da lavoura e do comércio. Abrir espaços a discussões de interesse geral” (O
SOROCABANO, 13 fev 1870, p.1). Em 01 de setembro de 1872, transformou-se em O
Sorocaba e teve Júlio Ribeiro como redator-chefe, combatendo a dominação da igreja católica
e defendendo com veemência a industrialização de Sorocaba. Esse jornal deixou de circular
em 1883.
Ypanema. Com assinatura no valor de “8$000 por anno em Sorocaba e 9$000 fora”, foi
editado pela primeira vez em 25 de abril de 1872. Publicado “6 vezez por mez”, o jornal se
propunha a defender os “interesses morais e materiais do município e do Sul da província”. E
procurava “dar na parte litterária alguns bons artigos e vulgarisar os melhores escriptos de
auctores nacionais” (YPANEMA, 25 abr 1872, p.1) Seu editor e proprietário foi Manoel
Januário de Vasconcellos, sorocabano de nascimento e coronel da guarda nacional. Em 1880,
passou a ser diário, alterando seu nome para Diário de Sorocaba, circulando até 1893.
O 15 de Novembro. João José da Silva editou pela primeira vez, em 22 de fevereiro de
1891, O Alfinete, o qual, a partir da proclamação da república, e em homenagem ao evento,
passou a chamar-se O 15 de Novembro. “Semanário político, noticioso, humorístico e
literário”, (O 15 DE NOVEMBRO, 15 nov 1892, p.1) transformou-se em bissemanário e,
depois, em 1895, passou a ser diário. Sua assinatura anual era de “8$000 para Sorocaba e
10$000 fora”. O jornal defendia o governo republicano e, principalmente, a escola pública,
fruto benéfico da república.
Cruzeiro do Sul. O primeiro número do Cruzeiro do Sul foi publicado em 12 de junho
de 1903, pelo maçon Joaquim Firmino de Camargo Pires. Foi bissemanário, trissemanário,
diário matutino, diário vespertino e, novamente, diário matutino. Favorável à escola pública,
esse jornal lançou-se em várias campanhas, não só pela criação de novas escolas e novos cursos,
mas também em benefício do professor. Esse jornal defendia a educação primária para
atendimento das classes populares, especialmente os operários das fábricas, reproduzindo o
21
pensamento de seu chefe político, Luis Pereira de Campos Vergueiro, que considerava a
educação primária e os cursos profissionalizantes suficientes para atender uma população
majoritariamente formada por operários.
O Operário. “Orgam de Defesa da Classe Operária” e com publicação quinzenal, O
Operário circulou pela primeira vez em 18 de julho de 1909. Antes mesmo do seu
aparecimento, já lhe atribuíam “origem mesquinha”, antevendo-se a sua atuação, que “visava
um desideratum muito legítimo qual o de conseguir a união ou a solidariedade da família
operária de Sorocaba”. O jornal, em sua apresentação, alertava que não pretendia ter nenhuma
ligação partidária no município. Seu maior intento era o “de lançar a público uma série de
verdades orientadoras de conduta do operariado”, em defesa da classe operária. Inicialmente, a
pesquisa no jornal O Operario foi feita nos exemplares originais pertencentes ao acervo do
Gabinete de Leitura Sorocabano, entretanto, após um tempo, devido ao estado precário de
alguns exemplares, o que dificultava a leitura, passou-se a utilizar a edição fac-similar
organizada por Rogério Lopes Pinheiro de Carvalho (2007).
O confronto ideológico maior se deu entre os jornais Cruzeiro do Sul e o O Operario, o
primeiro notadamente representante da burguesia local e o último declaradamente órgão de
defesa da classe operária, uma vez que no período de veiculação do jornal O Operário vários
outros já haviam cessado a circulação.
É importante salientar que a imprensa operária foi um dos recursos mais utilizados pelos
militantes anarquistas que atuavam no movimento operário. A utilização do jornal como veículo
de comunicação foi de grande proveito para a organização da classe trabalhadora brasileira.
Basta averiguar a intensa rede de jornais que surgiu com a fundação das ligas e uniões e a grande
tiragem que esses jornais atingiram nos períodos que antecederam aos movimentos grevistas
(FERREIRA, 1978). Essa afirmação torna-se verdadeira a partir da constatação de que, em
Sorocaba, a primeira greve dos operários das fábricas de tecidos bem-sucedida, em 1911,
ocorreu após intensa campanha feita pelo jornal O Operário para a redução da jornada de
trabalho. Com essa greve, os operários conseguiram reduzir a jornada para 10 horas diárias, o
que foi motivo de grande contentamento, tendo em vista que havia fábricas onde a jornada de
trabalho se estendia por 14 horas diárias, inclusive para as crianças. Da produção historiográfica
mais recente de autores sorocabanos, servimo-nos de trabalhos que buscam valorizar os sujeitos
que até então se mantinham silenciados pela História reconhecida como oficial. São eles:
Sorocaba no Império. Comércio de animais e desenvolvimento urbano (2002) de Cássia
Maria Baddini. Apesar de esse trabalho não tratar do meu objeto específico de pesquisa,
analisa, de forma minuciosa, todo o período anterior à industrialização em Sorocaba,
22
apresentando uma abordagem diferente sobre o desenvolvimento econômico de Sorocaba,
especialmente no tocante à feira de muares. A autora rompe com a ideia de que Sorocaba
dependia exclusivamente da feira de animais que ocorria anualmente.
Memória Operária (2009), de Carlos Carvalho Cavalheiro, trabalho não acadêmico que
procura contribuir com a história social e com a memória coletiva sorocabana. Enfatiza as
principais manifestações de emancipação, desde a luta pela liberdade dos escravos sorocabanos,
em 1884, até as lutas de classes e ideológicas, na década de 1930.
Sorocaba Operária (2005), de Adalberto Coutinho de Araujo Neto, aborda a questão
operária em Sorocaba, especialmente a sua gênese, sob o prisma político e ideológico,
motivação maior dos sujeitos que aderiram aos movimentos sociais.
Os autores Carlos Cavalheiro e Araujo Neto recorreram à imprensa para recuperar a
memória do movimento operário em Sorocaba e contextualizá-lo historicamente, procurando
dar-lhe significado.
Este estudo privilegia o papel desempenhado pela educação no seio do movimento
operário. O movimento operário incipiente, que buscava significação social diante dos abusos
dos patrões e de uma legislação de dificil classificação: inexistente ou omissa? Entre as
principais reivindicações dos operários estava o direito à instrução. Surgiram indagações. Como
era vista a educação para os operários? Somente a educação formal era suficiente para a
formação do operário? Que tipo de educação desejavam? Quais foram as propostas da política
local para a escola? A elite também compartilhava o desejo da instrução para os operários? A
educação teria contribuído para a supressão ou para a manutenção das desigualdades e injustiças
sociais? Afinal, a educação oferecida aprisionava ou emancipava o operário?
Os idealistas dos movimentos operários se viram diante de um impasse de difícil
resolução. Sem educação, os operários teriam condições de conquistar os direitos trabalhistas?
Mas como conscientizar um operário de seus direitos sem a devida instrução? A
industrialização em Sorocaba se estabeleceu em bases capitalistas, com elementos bem
marcantes: mão de obra abundante, especialmente formada por grande número de imigrantes,
trabalhadores locais disciplinados e, também, lavoura de algodão bem desenvolvida, capaz de
fornecer a matéria-prima necessária para as fábricas de tecido. Os operários das fábricas
sorocabanas, assim como os operários de outras fábricas de São Paulo e do Brasil, enfrentavam
longas jornadas de trabalho, exploração da mão de obra de mulheres e de crianças, cobrança de
multas por danos nos tecidos e por atrasos. Além disso, não tinham nenhum tipo de indenização
em casos de doença ou acidentes de trabalho, além de receberem tratamento desumano por parte
dos mestres e contra-mestres. Em suma, a questão operária pouco significava para o governo
23
brasileiro. E era justamente uma significação social que os operários buscavam. Sem uma
legislação que regulasse o trabalho nas fábricas, o operariado vivia a mercê dos mandos e
desmandos dos grandes capitalistas.
Compreenderam os operários que uma das formas de conseguir ocupar uma posição
digna na sociedade, com melhores condições de vida, seria através da educação. Mas ela não
poderia ficar restrita à educação oferecida pelas escolas públicas, pois necessitavam de uma
formação integral, que lhes desse entendimento suficiente para ler o mundo que os rodeava.
Apenas aprender a ler e escrever seria insuficiente. O operário necessitava ter visão de mundo
em sua totalidade. “Companheiros, deveis mandar os vossos filhos a escola para que eles vejam
a luz da verdade e da razão” (O OPERARIO, 13 maio de 1911, p.2)
Delimitado o período de estudo e identificado o tema de pesquisa, buscou-se
embasamento teórico em autores, listados nos parágrafos a seguir, que aprofundaram suas
reflexões sobre a questão operária, a ideologia subjacente aos movimentos operários e a
educação operária.
Warren Dean, em A industrialização de São Paulo (s/d), ocupa-se do estudo da
formação industrial de São Paulo, do surgimento do capitalismo, destacando as figuras mais
representativas dessa fase de desenvolvimento industrial, destacando, inclusive, industriais
importantes de Sorocaba. O estudo vai além de uma coleta de dados e informações do período,
uma vez que o autor faz uma análise acurada, levantando, muitas vezes, hipóteses explicativas
sobre os fatos ocorridos.
Edgar Rodrigues, em Socialismo e sindicalismo no Brasil (1969), ao apresentar os
objetivos do seu trabalho, elenca várias obras de diferentes autores que se debruçaram sobre
esse tema. Entretanto, para o autor, o conjunto fica aquém do desejado. A sua obra, segundo
ele próprio, pretendeu reunir o maior número possível de documentos, válidos e escritos por
militantes da época, salientando as greves, o teatro social operário, as escolas livres,
publicações, congressos, protestos, etc.
Maria Nazareth Ferreira, em A imprensa operária no Brasil (1978), resgata a
importância da imprensa operária, muitas vezes relegada a um segundo plano, como fonte de
pesquisa. Para a autora, os jornais oferecem generosas informações sobre a sociedade da época,
as condições de vida ou de sobrevivência da classe trabalhadora, permitindo a reconstrução da
dimensão política da história social.
Edgard Leuenroth, em Anarquismo, roteiro da libertação social (2007), reúne textos
variados de diferentes autores, tanto pensadores anarquistas do passado quanto mais atuais,
24
sobre aspectos ideológicos da doutrina anarquista, com a pretensão de emancipar o indivíduo
das “atrofiantes formas sociais”.
E. P. Thompson, em A formação da classe operária inglesa (2012, p. 18), afiança que
[...] a formação da classe operária é um fato tanto da história política e cultural quanto
da econômica. Ela não foi gerada espontaneamente pelo sistema fabril. Nem devemos
imaginar alguma força exterior – a “Revolução Industrial” – atuando sobre algum
material bruto, indiferenciado, e indefinível de humanidade, transformando-o em seu
outro extremo, uma “vigorosa raça de seres”. As mutáveis relações de produção e as
condições de trabalho mutável da Revolução Industrial não foram impostas sobre um
material bruto, mas sobre ingleses livres.
Friedrich Engels parece ter percorrido as fábricas e vilas operárias de Sorocaba para
escrever A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (2010), tamanha a semelhança entre
as condições de vida dos operários ingleses e sorocabanos. Nas palavras de Eric Hobsbawm
(1961, p. 8), esse livro é um marco na história do capitalismo e da moderna sociedade industrial.
“Simultaneamente erudito e apaixonado, articulando a denúncia e a análise, ele é, para dizer
numa só palavra, uma obra-prima”.
Francisco Ferrer y Guardia, em A Escola Moderna (2014) traça uma proposta
educacional abraçada com entusiasmo pelos operários anarquistas, que viam nessa concepção
de educação o contraponto da escola até então posta e que não lhes servia, ou seja, uma escola
que não formava, não educava, apenas moldava os estudantes segundo aquilo que um Estado
autoritário desejava para manter um sistema de exploração. Essa não era a educação pretendida
pelos operários. Eles pretendiam, sim, uma educação para a liberdade, para uma nova sociedade
construída por homens livres.
Outras fontes pesquisadas contribuíram para o avanço do trabalho, como a l/egislação
educacional pertinente ao período estudado que, nos diferentes níveis – fosse federal, estadual
ou municipal – contemplou, com maior ou menor ênfase, o entendimento da educação
abrangida neste estudo.
Também foram utilizadas as memórias de vários autores que atendiam ao tempo vivido
deste estudo e reforçaram o pensamento de que as histórias de vida se assemelham. Foi o caso
das memórias narradas por Zélia Gattai, em seus livros Anarquistas, graças a Deus (1994) e
Città di Roma (2000), por meio dos quais ela, filha de imigrantes, reviveu o cotidiano das
famílias imigrantes no início do século XX em São Paulo; de Jacob Penteado, em seu livro
Belènzinho, 1910 (retrato de uma época) (2003), em que narra o cotidiano difícil vivido por
seus pais em Sorocaba no início do século passado, enquanto operários da fábrica Santa Rosália
e moradores da vila pertencente a essa fábrica; e de Francisco Antonio Gaspar, nascido em
25
Sorocaba, filho de imigrantes portugueses, que narra, em Minhas Memórias (1967), o cotidiano
da cidade, nos seus tempos de menino.
Assim, para esmiuçar esse conjunto de fatores que permitem perceber a problemática
da educação operária e das condições de existência dos operários de então, este trabalho
estruturou-se em três capítulos.
O primeiro capítulo, Os Operários, aborda as origens de Sorocaba, desde sua formação,
por volta do século XVII, até o início da industrialização, nas décadas finais do século XIX.
Em quase todo esse tempo, a atividade econômica principal de Sorocaba fora a feira de muares,
que a tornou conhecida em muitas partes do país. No final do século XIX, a feira de muares,
dando sinais de decadência, cedeu lugar a novas atividades econômicas, especialmente a
industrialização, que marca o ingresso de Sorocaba na modernidade.
Esse capítulo apresenta um novo sujeito nas relações de trabalho em Sorocaba: o
operário da fábrica. Aborda as alterações verificadas na cidade a partir da instalação das
primeiras fábricas têxteis, com a chegada dos imigrantes europeus, que significavam mão de
obra abundante e barata para as fábricas. Trata das transformações do espaço urbano, onde o
cantar do carro de boi foi substituído pelo apito das fábricas, das relações de trabalho, da
dominação dos capitalistas. Enfim, refere-se ao período em que o apito da fábrica passou a
controlar o tempo e a vida das pessoas, consolidando as práticas capitalistas. Em decorrência
das péssimas condições de trabalho e de existência, os operários foram se unindo e se
organizando em Associações, Uniões e Ligas Operárias, assinalando a inegável contribuição
dos imigrantes na organização do movimento operário.
O segundo capítulo, A grande imprensa e a imprensa operária em Sorocaba, aborda a
imprensa enquanto objeto de estudo, e os principais jornais que circularam em Sorocaba no
período demilitado, destacando o posicionamento político de alguns jornais tanto em relação à
questão operária como à educação. Dá ênfase à imprensa operária, especialmente ao papel do
jornal O Operário, que circulou de 1909 a 1913 em Sorocaba, enquanto órgão de defesa da
classe operária, apresentando suas convicções e contradições ideológicas. Aborda a presença
da mulher escrevendo sobre a questão operária nas colunas desse jornal, fato revestido de
ineditismo para uma época cuja sociedade era marcadamente machista. Trata das ideologias
que permearam o jornal, notadamente as ideias anarquistas. Apresenta, ainda, as primeiras
tentativas de greve e a primeira greve bem-sucedida sob o olhar da imprensa e os embates
ideológicos advindos do posicionamento dos diferentes jornais, com confronto existente entre
o jornal Cruzeiro do Sul, representante dos capitalistas, e o jornal O Operario, defensor da
26
classe trabalhadora. Trata ainda dos motivos pelos quais este último jornal chegou ao fim em
1913.
O terceiro capítulo, A educação e as escolas para operários, ponto fulcral desta tese,
aborda a escolarização em Sorocaba apresentando as poucas iniciativas escolares ocorridas no
tempo do Império e a precariedade das escolas nesse tempo. Com o advento da República,
especialmente no estado de São Paulo, com as reformas do ensino e a criação dos grupos
escolares, a escola passou a ter uma missão salvacionista da nação, com a incumbência de
deixar para trás um passado de trevas e ignorância. Mas os grupos escolares não foram
suficientes para atender toda a demanda, pois no início só atendiam os moradores dos centros
urbanos e as crianças pobres que moravam afastadas dessas áreas e, como precisavam trabalhar,
ficavam excluídas da escola. Assim, a escola passou a ser usufruída apenas pelos membros já
pertencentes à elite. Apresenta, ainda, esparsas iniciativas públicas ou particulares para atender
aos operários, como as escolas noturnas, que atendiam somente operários do sexo masculino.
Esse capítulo destaca, ainda, o olhar da imprensa sobre a importância em educar-se o operário.
Como a população era predominantemente operária, o jornal Cruzeiro do Sul acreditava que
somente a educação primária e cursos profissionalizantes seriam suficientes para atender às
necessidades das fábricas e dos próprios trabalhadores. Já o jornal O Operario defendia uma
educação para os operários nos moldes das Escolas Modernas ou racionalistas, conforme a
concepção pedagógica do educador espanhol Francisco Ferrer y Guardia, ou seja, defendia a
educação para a liberdade e emancipação da pessoa. Apresenta, ainda, fragmentos sobre o
desenvolvimento de uma escola moderna em Sorocaba por volta de 1912.
Este trabalho não tem a pretensão de ser o arremate da história da educação operária em
Sorocaba, pois procurou fazer uma leitura do passado, portanto está aberto a outras indagações,
revisões, interpretações enfim novos olhares. Tem como pretensão dar voz a homens, mulheres
e crianças que foram silenciados pela história e talvez aí resida o seu mérito, através de um
outro olhar e de outras interpretações, que são decorrência das minhas possibilidades de
construção enquanto pesquisadora.
27
1 OS OPERÁRIOS
Este primeiro capítulo trata da formação de Sorocaba desde os primórdios, enfocando
os aspectos econômicos e sociais, até o início do processo de industrialização. Focaliza a
trajetória bandeirante, por volta do século XVII, o chamado tropeirismo, graças à localização
geográfica presente no caminho das tropas, que saíam do Sul em direção ao Centro-Oeste, em
busca de ouro.
Num ponto de descanso de tropas, foi nascendo um entreposto, transformado numa
grande feira de comércio de muares, que teve vida longa e permitiu o crescimento do lugar.
Com a decadência da feira de muares, em fins do século XIX, apareceu o plantio de algodão
com períodos de altos e baixos na plantação e, consequentemente, surgiram as fábricas de
tecidos, que absorviam essa matéria-prima. A sociedade se transformou com o surgimento de
novas relações de produção, de trabalho e novas classes sociais repesentadas pela classe
operária – formada em sua maioria por imigrantes estrangeiros, italianos e espanhóis – e a
burguesia – os donos dos meios de produção, ou seja, das fábricas.
A historiografia de Sorocaba registra seu início em 1654, quando da chegada de Baltazar
Fernandes, sua família numerosa e aproximadamente 500 índios escravizados, vindos da região
de Santana de Parnaíba, que se instalaram às margens do rio Sorocaba, próximo ao riacho
Lageado, com a intenção de formar um povoado. Esclarece Almeida (1969) que, naquele
tempo, não havia a denominação município ou cidade, mas sim o termo vila, já que, nas
capitanias, os donatários podiam somente criar vilas. Baltazar Fernandes construiu, numa parte
mais alta do local, uma igreja que dedicou a Nossa Senhora da Ponte. Em 1661, “a 21 de abril,
o capm Balthasar Fernandes fez doação da Igreja de N. S. da Ponte, hoje Mosteiro de São Bento,
aos frades Beneditinos, existentes na Villa de Parnahiba com terras e mais pertences
(ALMANACH ILLUSTRADO DE SOROCABA, 1914, p. 145).
O novo núcleo acabou por absorver parte de um povoado próximo, a chamada vila de
São Felipe, e prosperou. A população era composta, basicamente, por pessoas livres pobres e
escravos índios, que cultivavam gêneros de subsistência. As famílias mais ricas e poderosas,
geralmente aparentadas de Baltazar Fernandes, investiam nas expedições de caça ao gentio em
direção aos sertões do Centro-Sul do Brasil (BADDINI, 2002, p. 44).
Nem todos iam para o sertão à caça de índios, porém todos viviam sob o ciclo econômico
das bandeiras, porque sem os índios capturados e seus descendentes não havia fazendas e sítios
maiores que deram vida aos pequenos comerciantes e artesãos da cidade e agregados da roça,
28
nem entrava algum dinheiro amoedado para a circulação, pois, infelizmente, o escravo era
também vendido para fora. Custava vinte mil réis por cabeça (ALMEIDA, 1969, p. 46).
Segundo esse pesquisador, a intensificação do bandeirantismo sorocabano deu-se a
partir de 1680, quando diversas expedições foram organizadas exclusivamente em busca de
metais preciosos, animadas pela descoberta do primeiro ouro de Goiás, por alguns sertanistas
sorocabanos, como Paschoal Moreira Cabral, André de Zuñega, João Antunes Maciel e Braz
Mendes.
Toda as gente fora para Cuiabá em 1721. O próprio juiz ordinário não venceu o
impacto. Largou a vara a um canto. O governador Rodrigo Cesar escrevia à Câmara
ninguém respondia. Por fim Braz Mendes, antigo vereador assumiu a vara e
respondeu: não ia a palácio porque não montava à cavalo, estava obeso. Não estivesse,
teria ido à Cuiabá (ALMEIDA, 1969, p. 53).
A Coroa portuguesa sempre conviveu com as ameaças de penetração do território
brasileiro pela Espanha. Para garantir o domínio português, fazia-se necessário criar frentes de
ocupação. No entanto, as regiões de exploração de ouro, mais precisamente Mato Grosso e
Minas Gerais, careciam de tropas de muares. No Sul, elas existiam. Explica Cassia Maria
Baddini (2002) que, dadas as condições – clima ameno, relevo suave e vegetação de pastagem
– e a abundância de animais era relativamente fácil estabelecer uma fazenda de criação:
instalações modestas - cercos de campos, galpões, cochos – e pouca gente para tratar do gado.
A conjugação dos elementos: oferta de gado, necessidade da ocupação territorial e
demanda de gado e muares nas regiões mineradoras permitiram que Sorocaba passasse a ser
um ponto de descanso dos tropeiros que vinham do Sul em direção a região das minas, e que
gradativamente foi se transformando em ponto de comércio. A localização de Sorocaba
favoreceu principalmente a instalação de um Registro de Animais, em 1750, num ponto por
onde as tropas iam se afunilando para poder atravessar a ponte existente no rio Sorocaba. Essa
parada obrigatória dos tropeiros permitiu a realização de um comércio que, progressivamente,
foi se consolidando numa Feira de Muares. Sorocaba se tornou bem conhecida na província de
São Paulo por essa atividade e por ser centro arrecadador de impostos provinciais sobre o
trânsito de tropas. Essa feira teve vida longa mesmo após o esgotamento das minas de ouro e
delineou as mudanças urbanas em Sorocaba, bem como transformações da sociedade
sorocabana.
[...] os tropeiros e as tropas desempenharam, no Brasil e na América, um papel dos
mais relevantes, quer como realizadores do progresso econômico, quer como
incentivadores da unidade nacional. [...] Se, em meados do século XVIII, quando teve
início este significativo ciclo histórico, coube a nós sorocabanos o privilégio de servir
de entreposto de mercadoria altamente desejada e de local de encontro não só de
brasileiros de todas as regiões, como de estrangeiros, cabe-nos agora, a
29
responsabilidade de divulgar junto às novas gerações, a grandiosidade de sua obra, a
pujança de sua figura intimorata, para que todos juntos possamos reverenciar o
Tropeiro, o lídimo representante de nossa gente, o homem simples que de modo
efetivo, consolidou a tarefa do Bandeirante, refazendo a conquista e a posse da terra
em cada viagem, e promoveu, com o entrecruzar de mercadorias e notícias, a unidade
nacional” (JOB, 1983, p.5).
O pensamento da pesquisadora Vera Job sintetiza a visão dos historiadores que
comungam das ideias e interpretações propostas por Aluisio de Almeida quanto a identidade
cultural do sorocabano. Para Baddini (2002) a interpretação de Job (1983) ao conceito de
“tropeirismo” induz à identificação do “tropeiro” como categoria representativa de uma
condição econômica, política, cultural da sociedade paulista, evidenciando a contribuição de
Sorocaba no processo de consolidação da nação.
A produção historiográfica de Sorocaba procura atribuir ao sorocabano características
vindas desde há muito tempo, que foram se consolidando e formando a sua identidade, qual
seja, a bravura do bandeirante, que não se deixava abater pelo desconhecimento das terras e
agruras que por ventura pudesse vir a sofrer em suas incursões pelo sertão desconhecido
brasileiro, e o tropeiro intrépido, “que ligou e manteve vivo os núcleos urbanos isolados,
representando efetivamente o consolidador das fronteiras nacionais” (BADDINI, 2002).
Baddini (2002), num primoroso trabalho de pesquisa sobre o comércio de animais e o
desenvolvimento de Sorocaba no tempo do Império, apresenta, a partir do estudo da
documentação da época, uma nova interpretação do efetivo papel da feira de muares na
sociedade sorocabana, chegando mesmo a romper, de forma contundente, com a produção
historiográfica que até então depositava, na realização da feira de muares, todo o
desenvolvimento econômico, social e político da cidade de Sorocaba, ou seja, acreditava que
Sorocaba dependia exclusivamente da feira de muares. A autora reconhece, sim, a importância
da feira, porém ressalta que não era o único motor do desenvolvimento local. Afirma a autora
que, nos textos de época, a feira emergiu como um evento singular de Sorocaba, favorecido
pela afluência periódica de pessoas para o comércio de animais da região, mas não
condicionado exclusivamente a essa prática. Isso explica sua sobrevivência como evento
comercial importante da cidade, apesar da decadência da venda de tropas a partir de meados da
década de 1870. Diversas práticas urbanas continuaram a ser realizadas na cidade nos períodos
de menor comercialização na região e mesmo após a extinção do registro de Sorocaba em 1891
(BADDINI, 2002).
Entretanto, nesse tempo, para a pobre província de São Paulo, a feira de muares de
Sorocaba, além de propiciar o desenvolvimento das comunicações entre São Paulo e o sul do
30
país, também pôde ser entendida como um dos negócios mais rentáveis da província por conta
dos registros de animais. Havia a cobrança de impostos em dois registros, um localizado em
Curitiba (que pertencia a São Paulo) e outro em Sorocaba.
A cidade de Sorocaba sobrevivia além da feira de muares e, especialmente nos últimos
tempos de sua realização, havia uma crescente atividade agrícola.
A agricultura sorocabana era, em sua maior parte, dominada pela pequena lavoura,
tocada em escala familiar e visando à produção de gêneros de primeira necessidade.
O milho era, sem dúvida, o carro-chefe dessa agricultura, destinado ao autoconsumo
e à venda dentro dos limites do município, voltada para viajantes e tropeiros. [...] coisa
semelhante ocorria com a lavoura de algodão, por volta de 1800 cuja importância não
se devia à exportação do produto em rama, mas sim à confecção dos rústicos tecidos
que compunham a base do vestuário da maior parte da população (BACELAR, 2001
apud BONADIO, 2004, p. 96).
Ainda durante o tempo de realização das feiras de muares, cogitou-se a instalação de
uma indústria têxtil em Sorocaba, incentivada por Luiz Mateus Maylasky, por meio de uma
sociedade, conforme publicação do jornal O Araçoiaba
Consta-nos que os srs. tenente-coronel Francisco Gonçalves d’Oliveira e Luiz
Matheos Maylasky pretendem organizar nesta cidade por meio de acções uma
sociedade para fabrica de tecido de algodão, para cujo fim dezejão fazer uma reunião
dos habitantes desta cidade. Julgamos de utilidade a ideia, e fazemos votos para que
se leve isto a efeito (O ARÁÇOIABA, 17 fev 1867, p.4).
Essa tentativa de construção de uma fábrica de tecidos não vingou, pois, nesse momento,
prosperava o cultivo do algodão. Conta Almeida (1969) que, em 1866, a safra de algodão foi
de 27.291 arrobas. Entrava mais dinheiro que por meio das feiras, e elas foram se acabando.
Era melhor plantar algodão do que viajar e sofrer por esses mundos. Normalmente o capital
acumulado pelos negociantes de muares era reinvestido nessa mesma atividade, entretanto, a
partir da segunda metade do século XIX outras possibilidades de investimentos passaram a ser
consideradas por esses negociantes de tropas, que começam a aplicar seus dividendos também
na lavoura do algodão.
Um grande incentivador da cultura do algodão foi Luis Matheus Maylasky, estrangeiro
que chegou a Sorocaba por volta 1865, personagem de importância na história de Sorocaba, e
que tem causado polêmica entre os historiadores locais dada a sua origem nebulosa e rápida
prosperidade aqui conseguida. Foi negociante de tropas, plantador de algodão e idealizador da
construção da Estrada de Ferro Sorocabana, fundador de sociedades culturais, como o Clube
Germânia e o Gabinete de Leitura Sorocabano em atividade até os dias de hoje.
31
A pertinácia de Maylasky não foi em vão: entre os anos de 1861 a 1875, Sorocaba
tornou-se o mais importante centro de exportação de algodão da província de São Paulo. “Sua
atividade como município produtor de sementes foi mais duradoura que a dos demais, e seu
campo de influências nesse sentido fez-se sentir em outras províncias do Império ao raiar da
década dos 70 do século XIX” (CANABRAVA, 1984, p. 123). O aumento das exportações de
algodão ocorreu devido à Guerra da Secessão nos Estados Unidos (1861-1865), país que sempre
foi o principal fornecedor desse produto para a Inglaterra, o maior consumidor de algodão na
época. Com a interrupção das exportações norte-americanas, a Inglaterra necessitou de outros
exportadores, o Brasil entrou como fornecedor e a região de Sorocaba passou a ter destaque no
fornecimento do algodão. Essa situação ainda foi favorecida pelo fato de Sorocaba já realizar
o cultivo de algodão herbáceo de melhor qualidade para a indústria têxtil.
Em 1871, juntamente com um grupo de capitalistas sorocabanos, Maylasky aventou a
possibilidade de construção de uma estrada de ferro ligando Sorocaba a São Paulo, num
percurso de 111 km. Em julho de 1875, essa possibilidade tornou-se realidade: inaugurava-se
a Estrada de Ferro Sorocabana. Aberta ao tráfego, a Estrada de Ferro Sorocabana visava
principalmente o escoamento da produção de algodão, mas teve a funesta sorte de ficar pronta
num momento de queda dos preços do algodão e de sua produção e, já em seu primeiro ano,
estar bastante endividada com os gastos de sua construção (ARAUJO NETO, 2005). Com o
fim da guerra civil nos Estados Unidos, após algum tempo, esse país recuperou a produção
algodoeira, retomando o fornecimento desse material à Inglaterra. A própria Câmara de
Sorocaba reconheceu, em 1874, que “ [...] durante o anno de 1875 será a cultura de algodão
feita exclusivamente pelo braço escravo, pois que o baixo preço porque está sendo cotado na
praça é tão diminuto que mais vale ao agricultor abandonal-a para plantar cereaes para o
consummo da cidade” (CANABRAVA, 1984 p. 243).
A queda na produção de algodão afetou mais intensamente os pequenos produtores e
corria-se o risco de eles abandonarem o plantio de algodão. Entretanto, a cultura se manteve,
graças, sobretudo, à ampla perspectiva de negócios de Luiz Matheus Maylasky, um dos
fundadores da Estrada de Ferro Sorocabana. Esta, em construção, dependia basicamente do
transporte do algodão, o principal produto agrícola. Para impedir que os pequenos lavradores
abandonassem a cultura do algodoeiro, como estava acontecendo em outras partes da província,
incapazes de suportar a depreciação do produto, os mais importantes comerciantes de algodão
de Sorocaba, à frente dos quais estava Maylasky, mantiveram um sistema de adiantamento
àqueles plantadores e se esforçaram por pagar-lhes um preço satisfatório (CANABRAVA,
1984, p.243).
32
Se, pelas contingências do momento, a Estrada de Ferro Sorocabana não atendeu ao que
fora proposto de início, ou seja, o escoamento da produção algodoeira, ela contribuiu para a
chegada de pessoas, a entrada de produtos e a instalação de casas comerciais não ligadas à feira
de muares, como: confeitarias, charutarias, armazém de secos e molhados, gráficas entre
outros. Assim, as distâncias diminuíram e melhorou a comunicação entre as cidades da região
e a capital.
A Estrada de Ferro representava, pois, a modernidade, símbolo do progresso urbano,
porém convivia com a feira de muares, expressão do rústico e do rural. Sobre a ferrovia como
grande inovação do século XIX e suas dimensões assumidas mundialmente Eric Hobsbawm
(2010, p. 85) compara:
A estrada de ferro, arrastando sua enorme serpente emplumada de fumaça, à
velocidade do vento, através de países e continentes, com suas obras de engenharia,
estações e pontes formando um conjunto de construções que fazia as pirâmides do
Egito e os aquedutos romanos e até mesmo a Grande Muralha da China empalidecer
de provincianismo, era o próprio símbolo do triunfo do homem pela tecnologia.
No entanto, em Sorocaba, até 1870, o comércio de animais não era visto como atividade
decadente ou em vias de superação pelo progresso representado pela expansão do transporte
ferroviário.
Já no final do Império, ao mesmo tempo que diminuía o trânsito e decaía o comércio de
animais, questionava-se a validade da feira como condição de progresso urbano. Até então, ela
nunca havia sido pensada como fator de degradação da cidade. As melhorias implementadas na
cidade garantiam as áreas utilizadas pelos condutores para a passagem das tropas no centro
urbano. No entanto, algumas medidas de saneamento, como o cercamento dos terrenos
particulares, a conservação dos muros fronteiros às ruas e a confecção de “testadas” das
propriedades – calçada fronteira – eram incompatíveis com a sujeira e o mau cheiro dos pastos
de aluguel e das ruas usadas para a passagem de tropas (BADDINI, 2002, p. 213).
Em 1897, um fator externo alertou para as necessárias mudanças sanitárias que deveriam
ocorrer em Sorocaba: a febre amarela.
Sorocaba foi flagelada. Todos sofreram. Centenas de sorocabanos morreram. O
comércio fechou. A vida da cidade decaiu. [...] Era uma calamidade incomparável.
Médicos, farmacêuticos, eclesiásticos, enfermeiros e inúmeras pessoas do povo
ajudavam a socorrer os doentes atacados daquela infausta febre. Pelas ruas da cidade
de Sorocaba, os carretões andavam com seus homens [...] Muitas famílias fugiram de
Sorocaba para cidades vizinhas ou procuravam sítios nos arredores da cidade
flagelada (GASPAR, 1967, p. 13).
33
O aparecimento da doença fora atribuído a dois “camaradas de tropas” que a trouxeram
por ocasião da feira. Entretanto, a cidade sempre padecera com os problemas sanitários, como
é possível observar a partir de crítica presente no jornal Cruzeiro do Sul, em seu primeiro
número, num tempo posterior a ocorrência da epidemia de febre amarela.
Um visitante em Sorocaba, estando comnosco, censurou a Municipalidade em relação
á limpeza publica, salientando os montões de lixo que se encontram no largo da
Independencia, donde exhala mau cheiro, e tambem os pés de couve que se acham, ha
uma semana, em pleno largo do Rosario. [...] É de necessidade urgente que a Camara
colloque um mictorio no largo da Matriz, afim de acabar de vez, com o fètido que
exala das paredes lateraes da egreja (CRUZEIRO DO SUL, 12 jun 1903, p. 2).
Ao fim da epidemia de 1897, a cidade foi retomando suas atividades e retornaram
também aqueles que a tinham deixado. Como pairava o medo de uma nova epidemia, por
medida preventiva, o trânsito das tropas foi desviado da área urbana. Entretanto, essa medida
não foi suficiente para impedir novo surto da doença dois anos depois. Sorocaba adentrou o
século XX assolada, novamente, pela febre amarela.
É importante assinalar que o declínio das exportações de algodão e da feira de muares
gradativamente foi dando abertura para uma nova possibilidade de investimentos
aparentemente menos instável. Os donos de fortuna que, paralelamente ao comércio de tropas,
também investiam no algodão, conseguiram superar esses períodos de crise. Os grandes
investidores viam, na indústria, o caminho para a prosperidade, que seria fruto da reunião de
fatores significativos, ou seja, a oferta empresarial somada à produção da matéria-prima, o
algodão, tendo ainda uma mão de obra disponível, fosse ela formada por imigrantes ou até
mesmo por escravos. Esses elementos, aliados a uma tecnologia para a produção do tecido,
despontavam como promissores para o desenvolvimento da indústria têxtil. E essa indústria,
posteriormente, consolidou-se tão fortemente que Sorocaba, por muito tempo, ficou conhecida
como a Manchester Paulista, em alusão à cidade inglesa industrial de Manchester.
Para a consecução desse intento, o mesmo grupo de investidores que instalou a
Companhia Sorocabana, em 1870, no ano seguinte, criou uma sociedade anônima denominada
“Indústria Sorocabana”, com a pretensão de criar uma fábrica de tecidos. Essa iniciativa recebeu
o apoio da imprensa local, mas não conseguiu se estabelecer nessa época. Somente em 1882,
instalou-se a primeira grande fábrica têxtil de Sorocaba, a Nossa Senhora da Ponte, pertencente
a Manoel José da Fonseca, um dos homens mais ricos de Sorocaba na época, comerciante e
exportador de algodão.
34
1.1 Os operários: nova força de trabalho “Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.
Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.”
(Vinicius de Moraes)
O operário imigrante estrangeiro tornou-se o elemento novo não só na sociedade
sorocabana como de todo o país. Essa nova força de trabalho passou a compor o quadro social
brasileiro, desempenhando funções específicas e podendo ser dividida em categorias. Segundo
Ferreira (1978, p.49), houve o imigrante de origem urbana, que acumulava conhecimentos de
técnicas comerciais e funanceiras e trazia consigo algum pecúlio. Esse imigrante se instalou
nos centros urbanos e, inicialmente, dedicou-se a atividades de importação de produtos,
transformando-se, mais tarde, em industrial.
Outra categoria seria o colono típico, emigrado para trabalhar nas plantações de café,
pois em seu país de origem já trabalhava na lavoura e trazia consigo família numerosa, que
conseguiu firmar-se como colono e, mais tarde, como pequeno agricultor, possuidor de alguma
terra.
Houve uma outra categoria constituída de imigrantes de origem urbana, pobre, que aqui
vieram para trabalhar na lavoura de café, porém não se adaptaram a um regime de
semiescravidão. Abandonaram a terra e passaram a constituir um contingente de trabalhadores
35
de baixo nível ou desqualificados para o trabalho industrial, que, juntamente com os
trabalhadores brasileiros, nas mesmas condições, compuseram uma grande massa de
subempregados.
Outra categoria existente, porém não numerosa, era a formada pelos operários
qualificados, desejados pelos industriais brasileiros que os contratavam rapidamente. A
existência de uma categoria formada por operários qualificados reafirma o baixo nível de
qualificação da categoria anterior mencionada.
E uma última categoria era aquela formada pelos refugiados e deportados devido a
problemas políticos em sua terra de origem. Foram os imigrantes idealistas, cuja contribuição
ao processo de politização dos trabalhadores brasileiros foi fundamental.
1.2 A paisagem e tudo o mais se transforma: surgem as fábricas
Antes de adentrar ao período de industrialização de Sorocaba, cabe registrar uma
iniciativa de instalação de uma fiação em Sorocaba, anterior à Fábrica Nossa Senhora da Ponte.
Por volta de 1851, começou a ser montada, por Manoel Lopes de Oliveira, um dos pioneiros da
cultura do algodão, uma pequena fábrica com teares mecânicos, a primeira da província de São
Paulo, com a finalidade de descaroçar, cardar, fiar e tecer algodão. Destinava-se à fiação e à
tecelagem de algodão grosso, utilizado para confecção de roupas para escravos e pobres.
A matéria-prima utilizada era o algodão arbóreo, abundante em Sorocaba, porém de
qualidade inferior. A mão de obra utilizada nesse empreendimento foi a escrava: contava com
quatro escravos e, conforme Almeida (1969, p. 237) os “escravos fizeram emperrar a máquina”
por inabilidade técnica. Outros fatores concorreram para o insucesso dessa fábrica, como a
inexperiência do seu proprietário no ramo têxtil, a dificuldade na obtenção da matéria-prima
etc. Na década de 1860, essa fábrica estava com suas atividades praticamente paralisadas e não
resistiu por muito mais tempo. Segundo o depoimento do próprio Manoel Lopes d’Oliveira,
enviado ao Ministro da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, em 1864, o seu
estabelecimento só havia fabricado fio de algodão, pois dava mais lucro do que se fosse tecido.
No tempo em que trabalhava, chegou a produzir 300 onças de fio por dia, (cerca de 8 quilos),
mas sua capacidade era de 800 onças. Referia-se à necessidade de “uma pessoa com a necessaria
practica” para dirigir o estabelecimento, mas no momento, com o preço alto do algodão, não se
encontrava, na verdade, interessado na fabricação de tecidos (CANABRAVA, 1984, p.280).
36
Em 1864, havia quatro fábricas no município: uma de chapéus, duas de velas de cera e
uma de tecidos. Em 1887, eram 18: três de cerveja, quatro de chapéus, duas de licores, duas de
redes, uma de tecidos, uma de velas de cera, quatro de vinho e uma de vinagre (BADDINI,
2002). Segundo a autora, nessa relação ainda faltam duas fábricas de massas, uma de café em
pó e uma de louças, organizadas entre 1885-87, e outras duas fábricas de vinho, que, como as
outras, utilizavam matéria-prima produzida na região. Somavam-se, assim, 24 estabelecimentos
industriais no final do Império. Mesmo podendo dispor de escravos, nem todas as fábricas de
pequeno e médio porte o faziam, pois pertenciam, em sua maioria, a estrangeiros
desacostumados com esse tipo de mão de obra.
Figura 1 - Operários da fábrica de chapéus de Raszl e Rogick – Século XIX.
Fonte: Museu Histórico Sorocabano.
Os estrangeiros traziam técnicas e experiência, o que faltava nos moradores da cidade,
além de capital disponível para novos empreendimentos. Nos jornais da época, multiplicam-se
os anúncios de estabelecimentos comerciais dominados por imigrantes estrangeiros,
notadamente os italianos.
A partir da década de 1880, a maior parte das manufaturas e fábricas organizadas em
Sorocaba pertenciam a imigrantes italianos, como a Fábrica de Calçados de Alfredo Malzone e
a Fábrica de Banha de Francisco Matarazzo, (1883), a Fábrica de Macarrão de Antonio Fazano
e a Fábrica de Café em pó de Mathias Baddini, (1885), a Fábrica de Cerveja e Licores, que
utilizava matéria-prima da região de Salvador Argento, e a Fábrica de Calçados de Giuseppi
Argento.
37
O empreendimento de maior projeção dessa década ocorreu em 1882, com a instalação
da Fábrica de Tecidos Nossa Senhora da Ponte, pertencente a Manoel José da Fonseca. Esse
industrial trilhou um caminho totalmente diferente daquele assumido por Manoel Lopes de
Oliveira. Suas máquinas foram compradas de fornecedores de Manchester na Inglaterra. O
diretor da fábrica era Alexandre Marchisio, inglês com experiência na indústria têxtil, a matéria-
prima passou a ser o algodão herbáceo, que favorecia a produção de um tecido menos rústico e
a mão de obra empregada era a assalariada e livre, constituída em sua maioria por mulheres e
crianças.
Sorocaba vae tambem possuir uma machina de fiar e tecer. Já foram compradas nas
acreditadas officinas dos srs. Curtis, Sons & C. de Manchester, o machinismo preciso
pelo sr. A. Marchisio, enviado expressamente para esse fim pelo sr. Manuel José da
Fonseca, a quem vamos dever esse melhoramento. O local escolhido para o
assentamento das machinas é a margem do Supiriry, em terreno da exma. sra. D. Maria
Prestes, onde foi feita a inauguração dos trabalhos da linha ferrea sorocabana. Breve
deve aqui chegar o machinismo (DIÁRIO DE SOROCABA, 28 dez 1880, p.2)
A instalação dessa fábrica trouxe um elemento novo, até então pouco visto na sociedade
sorocabana: a mão de obra de mulheres e crianças, já que o seu proprietário, declaradamente
abolicionista, recusava-se a empregar escravos em sua fábrica. O Almanach de 1884 referiu-se
a esse estabelecimento fabril da seguinte forma:
A importante fábrica de tecidos denominada – Nossa Senhora da Ponte, pertencente
ao sr. Manoel José da Fonseca; [que] tece exclusivamente riscados, conhecidos no
mercado como brins sorocabanos; trabalha com 44 teares e suas machinas
correspondentes, tendo tambem a sua tinturaria, occupando para esses misteres um
numero de cento e vinte pessoas, na sua maior parte mulheres e crianças (MOURA,
1884 apud BADDINI, 2002, p. 270).
Figura 2 - Fábrica Nossa Senhora da Ponte.
Fonte: Museu Histórico Sorocabano.
38
Esse estabelecimento fabril, seguindo a lógica capitalista, totalmente incompatível com
o trabalho escravo, introduziu o trabalho de mulheres e crianças, tornando-se frequente, nos
jornais, anúncios como o que segue: “Precisa-se contractar rapazes de 12 a 15 annos e mulheres
para o serviço da machina de tecidos do sr. M. J. da Fonseca. Para tractar na mesma machina
(sic) com o sr. Alexandre Marchisio” (DIÁRIO DE SOROCABA, 23 fev 1882, p.2).
Apesar de ter iniciado suas atividades no começo de 1882, foi no mês de maio que essa
fábrica fez a apresentação de seus produtos ao público e, ao fazê-lo, contou com a presença da
imprensa, que se referiu entusiasticamente sobre o evento, sem deixar de comentar
discretamente a falta de incentivo por parte do governo.
Vimos hontem primeira peça de tecidos de algodão, sahida dos teares d’aquella
fabrica, isto é, o primeiro vagido que dá tam importante industria no sul d’esta
provincia. Si bem que nos parecesse um trabalho perfeito, diz contudo o sr. Fonseca
que ainda produzirá superiores. [...] Deve estar satisfeito comsigo mesmo o sr.
Fonseca: provou que um estabelecimento de tal ordem n’esta cidade não era uma
phantasia de utopisticos sonhadores, e, o que é mais, fel-o por propria conta. (DIÁRIO
DE SOROCABA, 5 maio 1882, p.3).
A sociedade sorocabana, seguindo os padrões característicos de uma sociedade
conservadora e machista, secundarizava as funções da mulher, ou seja, acreditava que ela
somente deveria se dedicar às lidas do lar, aos cuidados à família e ao marido. O recato era a
exigência maior para uma mulher da classe mais alta nesse tempo. Quase sempre reclusas em
seus lares, não eram vistas em lugares públicos, com exceção da igreja. A Igreja, e como não
poderia deixar de ser a Católica, era o único lugar público em que os representantes de todas as
camadas sociais e cores se reuniam, eliminando-se aparentemente as distinções. De fato, no
entanto, havia sempre uma separação espacial entre uns e outros, respeitando-se a posição social
de cada um (COSTA, 1977).
Essa realidade vivida pela mulher e descrita por Emilia Viotti da Costa era muito bem
sentida também pela mulher sorocabana do final do século XIX. Das páginas dos jornais da
época é possível vislumbrar qual a posição que a mulher ocupava na sociedade, mostrando a
que se resumia a presença da mulher nessa sociedade.
O coreto do Largo de São Bento foi inaugurado em 10 de outubro de 1880. A banda
“7 DE SETEMBRO”, aos domingos, tocava escolhidas peças de seu vasto repertório
e, para ouvi-la, enchia-se o pátio de pessoas de todas as idades, cores e profissão. Na
inauguração as moças, que tinham um lugar reservado rente às portas da igreja,
geralmente trajavam vestidos brancos, enfeitados com laços de veludo preto, ou de
outra cor discreta, liso (o vestido), apertado nos quadris e com mangas justas (DIARIO
DE SOROCABA, 27 nov 1880, p.3).
39
Entretanto, a mulher que ingressava no trabalho da fábrica era a pobre, aquela sem
muitas pretensões na vida e que necessitava auxiliar a família na sobrevivência. Mas, para
Manoel José da Fonseca, essa nova forma de trabalho era, acima de tudo, uma tarefa
humanitária ao oferecer trabalho para mulheres e crianças pobres. Foi esse um dos argumentos
que usou para convencer dona Maria Joaquina do Nascimento Ferreira Prestes, viúva do capitão
José Ferreira Prestes, a vender-lhe o grande terreno em que projetava edificar a fábrica, situado
às margens do córrego Supiriri e dos trilhos da Sorocabana e que, por isso, duplamente lhe
interessava (BONADIO, 2004). O prédio ficou pronto em 1881, quando começaram as
primeiras contratações, sempre anunciadas nos jornais.
Contraditório ou não, é sabido que havia escravos alugados que trabalhavam na fábrica
do Fonseca, como ficou conhecida a Fábrica Nossa Senhora da Ponte. Segundo o pesquisador
Carlos Carvalho Cavalheiro (2009), Joaquim Bueno, escravo do Cap. Julio Lopes de Oliveira,
fora alugado por seu senhor para trabalhar como operário na Fábrica Nossa Senhora da Ponte.
Já constava o nome desse escravo na lista do fundo de emancipação e, por ser ele casado com
mulher liberta, tinha prioridade sobre os demais. Ocorreu que sua esposa veio a falecer e
Joaquim perdeu classificação na referida lista do fundo, ficando em último lugar. O senhor não
teve dúvidas: procurou vender o escravo, agora que pela sua classificação demoraria a obter a
liberdade e, por conseguinte, a sua venda alcançaria um melhor preço. Enquanto havia a
iminência da libertação do escravo, o Cap. Julio Lopes de Oliveira procurou explorar a mão de
obra dele, alugando-o para trabalhar na fábrica. Depois, resolveu vendê-lo (CAVALHEIRO,
2009).
Para a compra da sua alforria, tinha Joaquim Bueno a quantia de 200$, faltavam-lhe
500$. Esse restante fora obtido a partir de contribuições feitas pelos operários livres da fábrica,
igualmente pobres, que, revoltados com a situação do colega, conseguiram arrecadar a quantia
suficiente para a sua liberdade.
Se, por um lado, a feira de muares, nas últimas décadas do século XIX, entrava em
declínio, por outro lado, apareciam novas atividades comerciais e econômicas, transformando
Sorocaba, antiga localidade rural, em uma cidade fabril, processo que se intensificou após a
República.
A bem-sucedida instalação da Fábrica Nossa Senhora da Ponte, a boa quantidade de
matéria-prima, no caso o algodão herbáceo, somadas a incentivos econômicos oferecidos pelo
recém instalado regime republicano, deram ânimo à instalação de outras indústrias, fruto da
política financeira do novo regime, conhecida por Encilhamento. Essa política tentou solucionar
um problema econômico e financeiro que se arrastava desde os últimos tempos do Império.
40
Nesse tempo, constatava-se que o meio circulante no país era incompatível com as novas
realidades do trabalho assalariado e do ingresso em massa de imigrantes. Ao assumir o
Ministério da Fazenda do governo provisório, Rui Barbosa baixou vários decretos com o
objetivo de aumentar a oferta de moeda e facilitar a criação de sociedades anônimas. A medida
mais importante foi a que deu a alguns bancos a faculdade de emitir moeda (FAUSTO, 2003).
Apesar dos desacertos em sua política econômica é inegável a visão de
desenvolvimento capitalista de Rui Barbosa. Essas iniciativas concorreram para expandir o
crédito. Formaram-se muitas empresas, “algumas reais outras fantásticas” (FAUSTO, 2003
p.252). A especulação cresceu nas bolsas de valores e o custo de vida subiu fortemente. Essa
política, vista por muitos críticos pelos seus efeitos negativos, no caso de Sorocaba, favoreceu
a instalação de três grandes fábricas de tecidos: a Santa Rosália, a Votorantim e a Santa Maria.
A fábrica Santa Rosália nasceu da sociedade entre George Oeterer e Frank Speers,
ambos engenheiros da Estrada de Ferro Sorocabana. Em 1890, Oeterer, desligado da ferrovia e
associado a Speers – que conhecera na São Paulo Railway e se tornaria seu genro – criou a
Santa Rosália, com capitais fornecidos por Francisco de Paula Mayrink, que garantiu os
recursos necessários para o empreendimento (BONADIO, 2004).
Em 1896, a fábrica já estava funcionando no arrabalde da cidade. Contava com um ramal
da ferrovia e vila operária e a mão de obra empregada era predominantemente formada por
mulheres e crianças.
Este opulento e magestoso edificio, para cuja construcção foram observadas com rigor
absoluto as regras da moderna engenharia, no que diz respeito a solidez, tamanho,
distribuição de luz e ventilação, é de uma architectura bellissima e offerece, pelos
artisticos ornatos que o revestem, a mais agradavel impressão ao visitante. A area
occupada é de 16.000 metros quadrados, tendo o edificio 291 metros de frente e 150
de fundo. São seus atuais proprietarios os srs. Commendador George Oeterer e
Francisco José Speers. [...] A fabrica está situada no bairro de Santa Rosália, ao lado
esquerdo do rio Sorocaba; além das casas de commercio e do pessoal superior, se acha
a villa operaria com cerca de 80 casas para residencia dos operários (ALMANACH
ILLUSTRADO, 1903, p. 101).
41
Figura 3 – Fábrica de tecidos Santa Rosália.
Fonte: Museu Histórico Sorocabano. Pedro Neves dos Santos, 1924.
A fábrica Votorantim pertencia ao Banco União de São Paulo, estabelecimento de
crédito que recebera do governo provisório a faculdade de emitir papel-moeda – parte da
política do Encilhamento – e comprou, em 1890, a fazenda Cachoeira do Votorantim, com a
pretensão de ali instalar uma fábrica de chitas, um tipo de tecido de algodão mais delicado.
Figura 4 - Fábrica de tecidos Votorantim.
Fonte: Gabinete de Leitura Sorocabano.
42
Nessa área isolada e distante, na época, da área urbana de Sorocaba, fora construída a
fábrica que viria a ser a maior de Sorocaba e a segunda do estado de São Paulo. Foram
construídas: estamparia, represa, ferrovia e uma grande vila operária. Entrou em
funcionamento, em 1895, como Fábrica de Chitas do Votorantim, onde estampava o algodão
cru proveniente da Inglaterra. Já em 1902, a diretoria do Banco considerou a conveniência de
produzir o tecido aqui, decidindo-se pela ampliação de suas instalações, para a montagem das
seções de fiação e tecelagem, inaugurando-as em 1904.
Este importante estabelecimento está situado no bairro que llhe dá o nome, a seis
kilometros da cidade, occupando uma area de 21.600 metros quadrados; [...] Esta
fabrica cuja producção actual é de sete milhões e duzentos mil metros esta passando
por reformas importantissimas. Ao lado da estamparia vae ser construido num grande
edificio destinado às novas secções de fiação e tecelagem. Depois de montadas taes
secções, a fabrica Votorantim ficarà sendo, na sua especie, o primeiro estabelecimento
industrial da America do Sul (ALMANACH ILLUSTRADO, 1903, p. 101).
Durante o período da crise inflacionária do Encilhamento, fora fundada pela firma
Marchisio, Loureiro, Silvério & Companhia, a fábrica de tecidos Santa Maria, iniciando suas
atividades em 1896. Da sua inauguração até 1904, essa fábrica funcionou em condições
precárias, num prédio pequeno e insalubre. A partir desse ano, com a mudança de donos, seguiu
novos rumos.
[...] Felizmente em abril de 1904 a fabrica Santa Maria passava á firma Campos,
Kenworty & Companhia. Começou então a phase aurea para a modesta usina, que
transformou-se rapidamente, assumindo aspecto completamente novo, vendo os seus
pavilhões remodelados radicalmente, as suas installações de maquinaria reformadas e
augmentadas, a sua tracção modernisada com a electricidade, o seu conjunto predial
enriquecido com as construcções fortes e estheticas, as suas secções paralysadas
restauradas vagarosamente, as condicções do seu operariado facilitadas, já pela
melhoria do salario, já pelos cuidados higyenicos (ALMANACH ILLUSTRADO,
1914, p. 58).
43
Figura 5 – Fábrica de tecidos Santa Maria.
Fonte: Biblioteca Infantil Municipal de Sorocaba.
Em 1909, pensando em trabalhar com os tecidos produzidos pela Santa Maria, fundou-
se a S.A. Estamparia, construída em São Paulo. Em 1913, Alberto Kenworty, acionista da
Estamparia, participou da fundação da Fábrica Santo Antonio, última grande fábrica desse
período (ARAÚJO NETO, 2005).
Na última década do século XIX, Sorocaba viveu um tempo de transformações. O
impacto da atividade fabril sobre a estruturação do espaço urbano e da vida social foi sentido
no cotidiano. A paisagem urbana foi se alterando com novas construções, aberturas de ruas e
melhoria das já existentes, com ações como calçamento e melhoramento da iluminação,
instalação de redes de esgotos etc.
Aquela vida tranquila e pacata foi cedendo lugar a uma movimentação de pessoas. O
carro de boi, que transitava livremente pela área central, fazendo a distribuição da água e toda
sorte de produtos, foi sendo desviado para o entorno nos lugares mais distantes. O “cantar” do
carro de boi pelas ruas da cidade foi substituído pelo apito das fábricas. Os ritmos da vida foram
se alterando. A poeira levantada pelas tropas e pelo carro de boi foi cedendo lugar à fumaça das
chaminés das fábricas e das locomotivas da estrada de ferro.
Novas relações sociais surgiram advindas do processo de industrialização, que não pode
ser entendido como a simples instalação de indústrias, mas sim como um processo mais intenso
de afirmação das relações entre capital e trabalho, que consolidou as classes sociais. Entraram
em cena novas classes sociais muito bem definidas: os capitalistas e o proletariado. Nessa
época, não só a cidade de Sorocaba, mas o Brasil em geral, foi engendrando a concepção da
44
modernidade capitalista que se consolidou com a industrialização, o crescimento populacional,
as novas oportunidades e as relações de trabalho.
A reunião de fatores como a intensificação do cultivo de algodão, o aumento de linhas
da Estrada de Ferro, bem como os sucessivos investimentos no setor industrial contribuíram
para a expansão urbana e populacional. As fábricas estavam instaladas na área central da cidade,
exceto as fábricas Santa Rosália e Votorantim, fora do perímetro urbano, e atraíam pessoas
tanto da região quanto de fora do país; as plantações de algodão também absorviam
considerável número de trabalhadores. A estrada de ferro encurtava as distâncias, trazia e levava
pessoas e produtos, tornando a cidade conhecida por seu potencial e atraindo cada vez mais
interessados. O aumento populacional favorecia novas atividades urbanas decorrentes das
novas necessidades sociais, próprias do cotidiano da cidade que, por sua vez, geravam também
novas ocupações.
O comércio se diversificava, a imprensa se difundia, criavam-se associações recreativas
voltadas às famílias e novas profissões surgiam. As relações sociais passaram por mudanças
significativas. A mulher pobre deixou o lar e foi trabalhar fora tornando-se mão de obra
importante para a fábrica. As crianças foram trabalhar. Já apareciam com frequência, nos
jornais, oferta de emprego para esse público, os homens começaram a ter menos empregos.
Apesar dessas mudanças, alguns aspectos permaneceram. O poder político continuou
nas mãos dos grandes proprietários de terra, imbuídos ainda do pensamento escravocrata e a
pobreza continuou grassando. Mudou-se o senhor, que passou a ser o industrial, mas
permaneceu a relação de subserviência, estampada na figura do operário, quase sempre um
imigrante.
A grande indústria têxtil representava o lado mais avançado das relações capitalistas de
produção no Brasil. Em Sorocaba, esse tipo de indústria prevaleceu. Esse setor apresentava os
maiores índices de concentração de capital, força de trabalho e força motriz por unidade de
produção, além de alcançar as maiores taxas de valor da produção, seja por fábrica, seja por
setor (FOOT; LEONARDI, 1982). Em suma, a indústria têxtil era uma das que mais explorava
o proletariado no mundo (RODRIGUES, 1969).
1.3 A imigração
45
Como já mencionado, em Sorocaba, como em tantas outras cidades do Brasil, havia
negros escravizados, que trabalhavam na lavoura, nos serviços domésticos das casas de famílias
abastadas, no comércio e em outras ocupações.
De acordo com Prado Jr. (1983), a partir de 1850, os efeitos da suspensão do tráfico
negreiro começam logo a se fazer sentir. Cessara bruscamente, e ainda no momento sem
nenhum substituto equivalente, a mais forte corrente de povoamento do país, representada
anualmente por algumas dezenas de milhares de indíviduos. A lavoura logo se ressentiu da falta
de braços e o problema agravava-se anualmente.
Mesmo a transferência dos escravos das províncias do Norte - desinteressadas na
manutenção do sistema escravista – para as províncias do Sul – necessitadas de mão de obra
para a lavoura do café – solucionou o problema de escassez de braços. Passou-se a considerar
a possibilidade de introduzir no país a mão de obra de imigrantes europeus. Essa corrente
imigratória se intensificou após 1850; e passaram a coexistir, nas lavouras de café,
trabalhadores escravos e europeus livres, principalmente alemães e portugueses.
Esse novo tipo de colonização tinha, como características principais, a fixação dos
colonos nas próprias fazendas e grandes lavouras, trabalhando como subordinados e num
regime de parceria. A iniciativa pioneira desse tipo de colonização deu-se na fazenda de Ibicaba,
propriedade do senador Nicolau de Campos Vergueiro. Esse fazendeiro de café atraiu e
acomodou, em sua fazenda na cidade de Limeira, estado de São Paulo, entre 1847 a 1857, 177
famílias de alemães, suíços, portugueses e belgas. De início, o sistema de parceria apresentou-
se promissor, sendo, inclusive, adotado por outros fazendeiros.
No entanto, essa estranha combinação de trabalhadores livres e escravos não surtira
efeito e logo se verificou sua impraticabilidade, terminando em fracasso essa tentativa de
preencher os vácuos deixados pela carência de escravos com colonos europeus. Os
proprietários, habituados a lidar exclusivamente com escravos, continuavam a conservar muitos
deles trabalhando ao lado dos colonos e não tinham para com estes a consideração devida à sua
qualidade de trabalhadores livres (PRADO Jr, 1983).
O suíço Thomaz Davatz chegou ao Brasil em 1855 na condição de colono contratado
para trabalhar na Fazenda de Ibicaba, do senador Vergueiro. Era um homem com certa
instrução, que exerceu as funções de mestre-escola em sua terra natal. Partiu de uma Suiça
liberal em busca de uma vida melhor e pretendia economizar, aqui, o suficiente para poder
adquirir um pedaço de terra, mas não conseguiu se adaptar às condições de trabalho da fazenda
paulista, onde persistia o trabalho escravo. Logo percebeu que as condições oferecidas aos
46
colonos estrangeiros eram análogas à escravidão existente e as possibilidades de melhora eram
mínimas.
Os desentendimentos entre Davatz e o dono da fazenda, senador Vergueiro, foram
inevitáveis, culminando com uma revolta entre os colonos, liderados por Davatz. Dominada a
revolta pela polícia, Davatz obteve licença para retornar à Suiça. Lá chegando, em 1858,
escreveu um livro narrando tudo o que ele e outros colonos vivenciaram, procurando livrar os
conterrâneos das condições deploráveis em que aqui viviam.
Lindas descrições, relatos atraentes dos países que a imaginação entreviu; quadros
pintados de modo parcial e inexato, em que a realidade é por vezes deliberadamente
falseada, cartas ou informes sedutores e fascinantes de amigos, de parentes; a eficácia
de tantos prospectos de propaganda e também, sobretudo, a atividade infatigável dos
agentes de emigração mais empenhados em rechear os próprios bolsos do que em
suavizar a existência do pobre... – tudo isso e mais alguma coisa contribuiu para que
a questão da emigração atingisse um grau verdadeiramente doentio, tornando-se uma
legítima febre de emigração que já contaminou muita gente (DAVATZ, 1980, p. 47).
Corrobora essa situação o relato da escritora Zélia Gattai, nascida no Brasil, filha de
imigrantes italianos, em seu livro “Anarquistas, Graças a Deus”, sobre um episódio ocorrido
com seu avô materno quando ele, imigrante italiano, trabalhava numa fazenda de café em São
Paulo por volta de 1894, num tempo em que a escravidão no Brasil já havia sido extinta.
Notificados, certa vez, de que deviam reunir-se, à hora do almoço, para não perder
tempo de trabalho, junto a uma frondosa árvore, ao chegar ao local marcado para o
encontro, os colonos se depararam com um quadro deprimente: um trabalhador negro
amarrado à árvore. A princípio Eugenio Da Col não entendeu nada do que estava
acontecendo, nem do que ia acontecer, até divisar o capataz que vinha se chegando,
chicote na mão.[...] De repente, o capataz levantou o braço, a larga tira de couro no
ar, pronta para o castigo [...] revoltado, cego de indignação, o jovem colono [...] com
um rápido salto, atirou-se sobre o carrasco, arrebatando-lhe o látego das mãos. [...]
Nessa mesma tarde a família Da Col foi posta na estrada, porteira trancada para “esses
rebeldes imundos (GATTAI, 1994, p. 162).
Outra circunstância que, nessa mesma época, acentuou e precisou os caracteres
negativos da escravidão foi o início da indústria manufatureira no país. Nela não se empregaram
traballhadores servis, a não ser para tarefas secundárias e acessórias; a sua ineficiência para os
serviços mais delicados e complexos de manufaturas logo seria percebida; sem contar a
vantagem financeira maior que representava, para a indústria, o pagamento de salário em vez
do preço do escravo (PRADO JR, 1983).
O autor salienta que o escravo brasileiro era, em regra, o africano boçal recrutado entre
as nações de mais baixo nível cultural do continente negro. Os povos negros mais cultos eram
os do Sudão, isto é, de regiões situadas ao norte do Equador, onde o tráfico fora proibido desde
47
1815. Essa constatação pode corroborar o ocorrido em Sorocaba, em 1852, quando fora
montada a fábrica de tecidos com teares mecânicos por Manoel Lopes de Oliveira, que não
obteve êxito. Entre várias justificativas para o insucesso estava a falta de habilidade e de
inteligência dos escravos para lidar com as máquinas.
Por volta da década de 1870, a escassez de braços tornou-se aguda novamente, em
virtude do considerável incremento da lavoura cafeeira, principalmente no estado de São Paulo.
A campanha abolicionista recrudescia e a permanência da escravidão era uma questão de tempo.
É importante assinalar que, segundo Fausto (2003), quando as classes empoderadas
libertavam escravos por um ato de generosidade do senhor isso levava os beneficiados ao
reconhecimento e à obediência. Abrir caminho à liberdade por força da lei gerava, nos escravos,
a ideia de um direito, o que conduziria o país à guerra entre as raças. Por isso, afirma, Dean
(s/d, p. 42):
A escravidão representava mais do que um mero desafio técnico ou financeiro, era a
base social, no Brasil, de trezentos anos de exploração agrícola. Sem embargo disso,
em contraste com as elites de outros sistemas de plantações, os paulistas acabaram
compreendendo que precisavam fomentar ativamente a conversão num sistema de
mão-de-obra livre se quisessem que a economia de exportação continuasse a crescer.
Em 1871, a assembléia provincial votou um subsídio para as companhias formadas
com a finalidade de transportar camponeses italianos. Percebeu-se também a
necessidade de abolir rapidamente a escravidão, a fim de estimular o fluxo de
trabalhadores livres.
A própria construção das ferrovias inovou as relações de trabalho no país já em meados
do século XIX, pois em sua construção foram utilizados, quase exclusivamente, operários
livres. A política para a implantação das estradas de ferro de 1852 proibia a utilização do braço
escravo nos trabalhos da estrada.
A companhia se obrigará a não possuir escravos, a não empregar no serviço de
construção e custeio do caminho de ferro senão pessoas livres que, sendo nacionais,
poderão gozar da isenção do recrutamento, bem como do serviço ativo da Guarda
Nacional, e sendo estrangeiro, participarão de todas as vantagens que por lei forem
concedidas aos colonos úteis e industriosos (LEI 641, 26 jun, 1852).
Todavia, seria ingenuidade pensar que não houve a mão de obra de escravos na
construção e mesmo na manutenção das estradas de ferro no Brasil, que tiveram grande impulso
a partir de década de 1870, data de início da construção de Estrada de Ferro Sorocabana. Por
ocasião da aprovação da lei, houve um abrandamento da restrição: a empresa não poderia
possuir escravos, mas poderia alugá-los (LAMOUNIER, 2008, p. 240).
48
Muitos autores têm enfatizado a legislação sobre o assunto para mostrar as
características capitalistas das empresas ferroviárias, assumindo que, por proibir o emprego de
escravos, a lei obrigava as companhias a empregar “trabalho assalariado” (a lei dizia apenas
que a companhia devia empregar “pessoas livres”). Escravos, imigrantes e trabalhadores
brasileiros livres e pobres constituíram a grande maioria dos trabalhadores nas obras de
construção das estradas de ferro no Brasil (Idem, 2008, p. 243).
A reunião desses fatores constituiu forte estímulo para medidas de incentivo à
imigração. Coincidentemente, nesse tempo, iniciou-se, nos Estados Unidos, uma política de
restrições à imigração; e o Brasil abria-se para o movimento migratório com promessa de
avanço econômico e entrava em cena um novo país de grande emigração, a Itália, como
resultado das perturbações políticas e sociais que atravessava. E o italiano, tanto pela questão
de clima, como de afinidade maior com as condições do Brasil, adaptou-se melhor e mais
facilmente que o alemão e outras populações do norte da Europa. O italiano era um trabalhador
mais rústico e menos exigente e aceitara de boa vontade as duras tarefas da lavoura brasileira
(PRADO JR., 1983).
No entender de Prado Jr., o progresso do trabalho livre foi, em grande parte,
condicionado pela decadência do regime servil. Entretanto, a presença do trabalhador livre,
através do exemplo e da palavra, conspira permanentemente contra a disciplina e a submissão
do escravo. “Se dantes a servidão corrompia o homem livre, agora é a liberdade que corrompe
o escravo” (Idem, 1983 p. 191).
Em 1875, iniciou-se a emigração italiana para o Brasil, de maneira tímida. No ano
seguinte, 1876, o país recebeu por volta de 7 mil italianos. Entretanto, os estrangeiros vieram
para o Brasil não mais na condição de colonos, visto que o sistema de parceria fora abandonado.
Naquele momento, os trabalhadores instalaram-se nas fazendas como homens livres e
assalariados.
Nas imigrações passadas, os trabalhadores vinham do exterior com contrato de trabalho
já assinado, o que era arriscado para o contratante, pois muitas vezes os imigrantes eram velhos
e sem forças para o trabalho, trazendo prejuízos para os empregadores no Brasil. Nessa nova
fase, o governo brasileiro incumbiu-se de fazer propaganda nos países emigratórios e
subvencionar o transporte dos imigrantes, que se dispusessem a vir trabalhar na lavoura. Esse
tipo de recrutamento foi denominado imigração subvencionada e atendeu, de imediato, as
necessidades dos grandes proprietários das fazendas de café de São Paulo. Entretanto, vários
críticos desse tipo de imigração consideravam a “colonização” a longo prazo mais vantajosa
para o país. Seus partidários argumentavam que o principal era incrementar o povoamento do
49
país e a questão de braços para a grande lavoura iria resolver-se naturalmente, no futuro, como
consequência de tal incremento: dos núcleos coloniais sairiam logo os trabalhadores
necessários. E havia a vantagem de tornar a imigração para o Brasil muito mais atraente,
oferecendo aos candidatos, desde logo, a possibilidade de se tornarem proprietários. Sem contar
as vantagens de ordem social, pois formavam-se, assim, verdadeiros povoadores, fixados na
terra e com ela identificados, em vez de populações flutuantes e desenraizadas de mercenários
(PRADO JR, 1983).
Essa argumentação, no entanto, não fora considerada pela urgência dos fazendeiros de
café, que mantinham o mesmo pensamento que prevaleceu no Brasil durante todo o tempo da
escravidão: a preferência em comprar escravos adultos, para suprir suas necessidades com um
novo carregamento de escravos. Com raras exceções, não houve tentativas de se ampliar o
crescimento da população escrava já instalada no Brasil. A fertilidade das mulheres escravas
era baixa. Além disso, criar uma criança por doze ou catorze anos era considerado um
investimento de risco, tendo-se em conta as altas taxas de mortalidade, decorrentes das próprias
condições de existência (FAUSTO, 2003).
Os grandes proprietários, ao introduzirem o trabalhador livre em suas lavouras,
depararam-se com uma situação desconhecida nos tempos da escravidão, a instabilidade da mão
de obra. Ao contrário do escravo, que estava preso a seu empregador, o trabalhador livre
poderia, a qualquer momento, abandonar a lavoura e seguir em busca de possibilidades
melhores de trabalho e de vida ou, ainda, retornar a sua terra natal, o que representava o desejo
da maioria deles. Para conter, em parte, essa instabilidade, forçando o trabalhador a permanecer
na lavoura, a saída encontrada foi reter o trabalhador por dívidas. Pagando-lhe salários
reduzidos e vendendo-lhe, ao mesmo tempo, por preços elevados, os gêneros necessários para
o seu sustento, o empregador conseguiria, com relativa facilidade, manter seus trabalhadores
sempre endividados e, portanto, impossibilitados de partir (PRADO JR, 1983).
O Brasil, ao lado dos Estados Unidos, Argentina e Canadá, foi um dos países que
recebeu milhões de europeus e asiáticos, que vieram para as Américas com a esperança de
encontrar trabalho e melhorar de vida. De acordo com Boris Fausto (2003), cerca de 3,8 milhões
de estrangeiros entraram no Brasil entre 1887 e 1930. Muitos, senão todos, vinham atraídos
pela propaganda enganosa que se fazia na Europa sobre o Brasil, com promessas – de lotes de
terra, sementes, ferramentas, plantas, casa etc – que nunca se concretizaram. O período de 1887
– 1914 concentrou o maior número, com a cifra aproximada de 2,74 milhões, cerca de 72% do
total. A Primeira Guerra Mundial reduziu muito o fluxo, mas após o conflito (1918)
constatamos uma nova corrente imigratória, que se prolongou até 1930. Apesar do afluxo de
50
imigrantes ser grande no Brasil, houve anos em que o número de saídas era igual ou superior
ao número de entradas. Em 1900, entraram, pelo porto de Santos, 21.038 imigrantes e saíram,
pelo mesmo porto, 21.917.
A tabela abaixo representa a imigração líquida no Brasil no período de 1881 – 1930 (em
milhares)
Tabela 1 – A imigração líquida no Brasil
Período Chegada Portugueses Italianos Espanhóis Alemães Japoneses
1881-1885 133,4 32 47 8 8 -
1886-1890 391,6 19 59 8 3 -
1891-1895 659,7 20 57 14 1 -
1896-1900 470,3 15 64 13 1 -
1901-1905 279,7 26 48 16 1 -
1906-1910 391,6 37 21 22 4 1
1911-1915 611,4 40 17 21 3 2
1916-1920 186,4 42 15 22 3 7
1921-1925 386,6 32 16 12 13 5
1926-1930 453,6 36 9 7 6 13
FONTE: BETHELL, L. The Cambridge History of Latin America, vol. IV, p. 131 apud FAUSTO, 2003, p. 275
Os italianos foram a principal etnia que forneceu mão de obra para a lavoura de café.
Entre 1887 e 1900, 73% dos imigrantes que entraram no estado de São Paulo eram italianos,
embora nem todos tenham se fixado na agricultura. A pobreza dessa gente se revela, entre
outros dados, pelo fato de que os subsídios oferecidos pelo governo paulista representaram uma
forte atração (FAUSTO, 2003).
Em seu livro Città di Roma, Zélia Gattai, ao relatar os motivos que trouxeram seus avós
italianos, tanto maternos como paternos, para o Brasil, acaba por corroborar a questão da quase
expulsão dos italianos da Itália. Apesar de terem motivos diferentes para a vinda, os objetivos
eram os mesmos, ou seja, a esperança de vida melhor. Coincidentemente, e isto foi descoberto
muitos anos depois, as duas famílias embarcaram em Gênova no navio Città di Roma, em 1890,
rumo ao Brasil: “tinham histórias iguais, porém diferentes”. Sobre essa afirmação, seu avô
materno explicou-lhe:
51
Somos, nós e eles italianos, não somos? Só que eles são toscanos e nós, vênetos. Muito
diferentes, não é? Eles eram anarquistas e nós católicos. Mais diferentes, impossível.
A viagem deles teve uma finalidade política. Queriam reformar o mundo. A nossa
econômica. Queríamos ganhar dinheiro. Nem eles reformaram o mundo nem nós
ganhamos dinheiro. Viajamos no mesmo navio, o Città di Roma. Tinhamos cinco
filhos, eles também tinham cinco filhos [...] essa viagem nos roubou uma filha, roubou
uma deles, também: Hiena e Carolina (GATTAI, 2000, p.22).
As “histórias iguais, porém diferentes”, por mais contraditórias que possam parecer,
demonstram quão forte era a atração para outro lugar em busca de melhores condições de vida.
Só se decide partir da terra natal quando ela nega a seus filhos uma vida digna. Por isso, nos
grupos de imigrantes, havia jovens, velhos, crianças, religiosos ou pessoas totalmente avessas
a qualquer tipo de doutrinação religiosa, idealistas etc. A vinda de famílias inteiras reforçava
que elas estavam sendo expulsas de suas terras. Tinham, portanto, a intenção de construir vida
nova numa terra nova e, para isso, enfrentavam longas viagens em condições precárias, muitas
vezes nos porões dos navios e nem sempre as crianças pequenas resistiam à longa travessia do
oceano.
Segundo Holanda (1980, p.19),
A primeira ideia que um mundo novo oferece a um emigrante é frequentemente a de
uma esfera de possibilidades infinitas e onde a capacidade de ação não encontra
estorvos. A aptidão para emigrar envolve, sem dúvida, tal capacidade, [...] mas
envolve também uma capacidade de idealizar em excesso a terra procurada, “terra
prometida”, criando imagens falsas ilusórias.
A história da vinda dos pais de Elvira Boni Lacerda, filha de italianos, nascida em São
Paulo, contada para Angela de Castro Gomes não se distancia da história de Zélia Gattai e tantos
outros.
Meu pai se chamava Ângelo Boni, e minha mãe, Tersila Aciratti Boni. Eles eram
italianos, de Cremona, e chegaram aqui como imigrantes no fim do século passado.
[...] a vida lá era difícil. Então eles vieram, imaginando que aqui seriam recebidos com
mais felicidade do que lá. Levaram de Gênova a Santos 24 dias de navio [...] ficaram
em Santos só poucos dias, e depois foram transferidos para a capital, para São Paulo.
Não consigo esquecer mamãe contando que fez a viagem de Santos a São Paulo com
as crianças, meu pai e outros imigrantes num carro cheio de animais: burros, cavalos...
[...] Nessa época, ela já tinha três filhos pequenos, todos os três homens. Dois
conseguiram envelhecer, e o terceiro morreu com 15 meses, pouco depois de terem
chegado (BONI, apud GOMES, 1988, p. 20).
Muitos emigrantes acalentavam o sonho de ter a mesma sorte de Francisco Matarazzo,
que deixara a cidade de Castellabate, na Itália, para vir ao Brasil e tornou-se um dos maiores
industriais desta terra. Durante o período de 1901-1930, a proveniência étnica dos imigrantes
52
de São Paulo tornou-se mais equilibrada. A proporção de italianos caiu para 26%, seguidos
pelos portugueses (23%) e pelos espanhóis (22%).
A emigração fora um expediente utilizado pelo governo itlaliano para resolver seus
problemas econômicos, sociais e políticos. Constantino Ianni, em seu livro “Homens sem paz –
Os conflitos e os bastidores da emigração italiana”, publicado em 1963, aborda a questão da
emigração italiana, compreendendo o período de 1860, data da unificação da Itália, até 1960,
época de seu estudo. Nessa pesquisa meticulosa, afirma o autor que as migrações não costumam
ser estudadas do ponto de vista dos interesses humanos e sociais das milhares ou milhões de
pessoas que dela participam direta ou indiretamente e que a posição especial da emigração no
quadro geral da vida italiana não pode ser compreendida sem que se tenham em conta os
variados interesses que a envolvem.
“Mandamos para o lado de lá dos mares a única mercadoria de que temos abundância:
o homem; e ao longo dos mares nos tem vindo, em troca, e nos vem, uma larga faixa
de ouro” – referia-se às remessas de economias dos emigrantes – “que não ignoramos,
não, de que lágrimas e de que sangue seja feita...” (GIUSTINO FORTUNATO, 1909
apud IANNI, 1972, p. 18).
As vicissitudes pelas quais passavam os emigrantes italianos começavam na própria
terra natal. O governo italiano anunciava-se pobre: “A Itália é pobre” – mas não para todos. E
via, na emigração dos seus filhos, uma solução para a situação crítica na qual vivia o país.
A emigração italiana, provocada pelas péssimas condições econômicas, e financeiras
da Italia, ainda convalescente das lutas pela sua unificação, era a única saída para o
seu governo, que se via às voltas com o desemprego ou superpovoamento. Assim
mesmo, essa medida provocou sérias críticas, na península. Escritores e jornalistas
combatiam esse êxodo em massa, sem qualquer providência que amparasse os pobres
imigrantes, que davam um salto no escuro, sem conhecer o país para onde iam, nem
suas condições de trabalho (PENTEADO, 2003, p.32).
Foram os pobres, principalmente do Sul, que emigraram maciçamente, enriquecendo
cada vez mais as Companhias de Navegação italianas. Houve um tempo em que o país que
pretendesse receber trabalhadores italianos, antes mesmo de tratar com as autoridades
governamentais, poderia fazê-lo com as sociedades de navegação, “tratando com elas da
importação de um dado número de imigrantes, contra o pagamento da importância da viagem”,
como fazia o estado de São Paulo para atender a procura por “braços para a lavoura” pelos
fazendeiros. (IANNI, 1972, p. 21)
Os representantes das companhias de navegação percorriam os povoados, as vilas da
península, “à caça dos que se dispunham a abandonar o seu país, animados pela oferta de
53
viagem grátis acompanhada das mais mirabolantes promessas”, no caso de emigrarem para o
Brasil. Os representantes das promessas “ganhavam de cinco a dez liras por cada emigrante que
aliciavam e mandavam ao porto de embarque para ser transportado para Santos”. Muitas
cidadezinhas italianas ficaram esvaziadas de seus filhos. Para receber a subvenção, na forma de
pagamento da passagem pelo governo paulista, os emigrantes deveriam ser camponeses,
entretanto, vinha todo tipo de gente. Em decorrência desses fatos, em 1902 a emigração
subvencionada foi proibida pelo governo italiano através do Decreto Prinetti, ministro das
Relações Exteriores da Itália (IANNI, 1972). Esse decreto tinha a intenção de acabar com os
aliciadores, porém acabou por penalizar os pobres imigrantes.
Para Boris Fausto (2003), foram as más condições de recepção dos recém-chegados ao
Brasil que contribuíram para que o governo italiano tomasse medidas contra o recrutamento de
imigrantes. O chamado Decreto Prinetti proibiu a imigração subsidiada para o Brasil. Quem
quisesse emigrar para o Brasil poderia continuar a fazê-lo livremente, sem obter passagens e
outras pequenas facilidades. Mais um ônus para sobrecarregar os pobres emigrantes pobres.
Logo após o Decreto Prinetti, em 1903 entraram 16.553 imigrantes e saíram 36.410. O ano
seguinte registrou também saldo negativo.
Sobre o Decreto Prinetti, Ianni (1972, p. 183) fez uma correção sobre a impropriedade
do termo, pois se tratava de um ato administrativo do então ministro do exterior e seus reais
objetivos.
Todas as “teorias” e circunstâncias nos autorizam a admitir que os verdadeiros
objetivos do famoso “decreto Prinetti” que em 1902 proibiu a emigração
subvencionada (pelo Brasil) de trabalhadores agrícolas italianos, não eram
emigratórios, mas alfandegários e comerciais, embora na prática a proibição tenha
contribuído para deslocar para os Estados Unidos (mercado mais rendoso pelas
remessas) parte do fluxo emigratório.
Ainda sobre o Decreto Prinetti, a pesquisadora Ostuni (1990) afirma que, na realidade,
nunca existiu esse decreto, mas somente um decreto Bodio, promulgado em 26 de março de
1902, em referência ao comissário-geral da emigração. Esclarece a autora que, na Itália, até
1901, o traslado de trabalhadores italianos dependia unicamente das normas de segurança
pública, por isso não havia impedimento às gestões de agências estrangeiras de emigração e de
companhias nacionais de navegação por realizarem transporte gratuito de camponeses italianos
para alguns estados do Brasil. Depois de uma série de relatórios – enviados do Rio de Janeiro
– do inspetor da emigração e do representante diplomático italiano alertando sobre as condições
de vida desumana que esperavam os incautos emigrantes nas fazendas brasileiras, o ministro
54
Prinetti, depois de consultas a Bodio, declarou-se favorável também à suspensão da emigração
para o Brasil.
Com isso, a questão limitou-se, justamente com o decreto Bodio, a revogar o direito
concedido a companhias de emigração, de recrutar emigrantes aliciando-os com a
perspectiva do transporte gratuito; mas nunca chegou a ser proibida a emigração para
o Brasil por parte dos que a empreendiam por conta própria (OSTUNI, 1990, 74).
Também os bancos, cujos interesses frequentemente entrelaçavam-se aos das
companhias de navegação, ganhavam de maneira exorbitante a partir das remessas enviadas
pelos expatriados. Assim, para o “Estado italiano, a expatriação de um trabalhador é mais
rendosa do que sua ocupação no interior, pois custa menos e as remessas são igualmente um
componente da renda nacional” (IANNI, 1972, p. 26). Esse mesmo autor prossegue citando a
declaração do subsecretário de tesouro italiano, quando afirmou que “Tudo o que se fez na Itália
de 1890 a 1910 foi devido à emigração”. Até mesmo as festividades alusivas ao primeiro
cinquentenário da unificação não teriam sido possíveis sem “a coleta, cuidadosamente
preparada, das rendas da emigração”. (IDEM, p. 18)
As remessas para a Itália, através da filial do Banco de Nápoles, perfaziam em média
um milhão de dólares anuais na primeira década do século XX (DEAN, s/d). Se, por um lado,
a emigração era vantajosa para o governo italiano, não o era menos para o governo brasileiro.
Ora, a abundância de mão de obra garantida pelos subsídios à imigração impedia a formação
de um movimento operário forte.
[...] o governo brasileiro tem uma necessidade contínua de braços para o mercado de
trabalho industrial e rural. Com essa abundância eles pretendem manter salários de
fome, jornadas de campos de trabalho forçado e minar a organização da classe
(DAMIANI, 1920, p.47).
Apesar de a emigração ser interessante para o governo italiano, nem todos podiam
emigrar. De acordo com o relatório do Comissariado-Geral da Emigração, estavam excluídas
da emigração as moças tecelãs e fiandeiras italianas por vários motivos: elas poderiam encontrar
emprego com mais facilidade na própria Itália e também porque, para o governo italiano, “não
convém depauperar as nossas reservas em benefício de indústrias concorrentes estrangeiras”.
Esse relatório oficial, no entanto, segundo Ianni (1972), não deixa claro se o comissariado deu
emprego às operárias impedidas de emigrar que, “de qualquer modo ficaram para engrossar as
reservas de mão-de-obra da indústria têxtil, evitando que os salários subissem” (IANNI, 1972,
p.182).
55
Indubitavelmente, a única mercadoria de que a Itália dispunha em abundância no final
do século XIX e início do século XX era o homem. Essa mercadoria que pensa, sente e sofre,
acabou por se transformar na verdadeira “indústria italiana” e, consequentemente, permitiu que
as companhias de navegação, os bancos italianos e o próprio governo italiano obtivessem tantos
lucros, oriundos de um verdadeiro tráfico de seres humanos.
Para a realização de sua pesquisa, Constantino Ianni (1972, p.30) morou por mais de
quinze meses na Itália e retornou a esse país outras tantas vezes. Apesar de ter conversado com
pessoas do campo e da cidade, com funcionários do governo e da emigração e de essas pessoas
saberem que ele era procedente de São Paulo, declara o seguinte: “não ouvi de ninguém
perguntas que indicassem simples curiosidade, por exemplo, sobre a grande coletividade
italiana em São Paulo”.
Conclui o autor (IANNI, 1972, p. 101) que os emigrantes eram “homens sem paz” em
sua pátria, que viviam a miséria e a falta de emprego. Todos partiam pensando em retornar um
dia. A certeza do retorno encorajava a partida. Mas, no fundo, bem sabiam que a partida era a
separação para sempre. Para partir era preciso coragem.
O retorno representava uma necessidade de afirmação pessoal. Entretanto, para
regressar pobre ou talvez até mais pobre, era preciso mais coragem ainda. Nem todos
conseguiram voltar. E menos ainda foram aqueles que conseguiram voltar em melhor situação
daquela em que saíram. Voltar pobre, como antes, era a sentença do fracasso.
Até mesmo para quem regressava em boas condições econômicas não era fácil. Os
longos períodos de ausência são notados pela mudança. As cidades mudam, as pessoas, os
interesses. E a própria pessoa que retorna também já está mudada. Tem outro olhar para a vida.
Nada mais será como antes para aquele que retorna, pois sente-se estrangeiro na sua terra natal
1.4 Os imigrantes no Brasil
“L’acqua di quel gran mare è l’acqua dell’oblio...”
“A água daquele grande mar é a água do esquecimento”
(Canção italiana)
A viagem para o Brasil, demorada e em condições precárias, era o prenúncio do que
lhes aguardava na nova terra. Novamente, Zélia Gattai, em seu livro Anarquistas, graças a Deus
(1994, p. 56), descreve como fora a travessia do oceano por seus avós paternos para o Brasil
56
em 1890. Saídos de Gênova nessa data, embarcaram pai, mãe e cinco filhos, sendo a mais nova
ainda bebê. Acreditou sua avó que o leite materno sustentaria a menina durante a viagem.
Uma luz artificial, fraca era tudo o que havia para iluminar o porão, nem a mais leve
brisa do mar chegava até ali para atenuar o calor sufocante. No segundo dia de viagem
já não havia onde pisar. Poças de vômitos espalhavam-se por todo lado. O navio
jogava demais [...] Argía Gattai estava sempre entre os que mais sofriam. Não
conseguia alimentar-se, vomitava o que já não trazia no estômago [...] Com o correr
dos dias a situação dos Gattai foi se agravando: grudada aos peitos da mãe – ora num,
ora noutro -, Hiena só os largava, para reclamar chorando desesperadamente. Um
médico do grupo chegou-se, aproximou-se e sem examinar a criança diagnosticou:
fome.
Gattai (1994) prossegue dizendo que o estado de saúde da menina não melhorou. O leite
materno secou. Deram-lhe, então, leite de vaca e, como o médico do navio prevenira, veio
violenta diarréia. Sem forças, a criança faleceu logo ao aportar no Brasil.
Os relatos dos imigrantes sobre as viagens para o Brasil não são muito diferentes.
Normalmente, falavam de navios lotados, alimentação ruim, instalação desconfortável e até em
condições insalubres nos porões do navio, já que a maioria viajava na terceira classe.
Aponta Ianni (1972) que, de acordo com o Relatório Oficial do Comissariado, no
período de 1910 a 1915, registraram-se, a bordo desses navios, cinco suicídios nas viagens de
ida e dezesseis na de volta. De 1903 a 1923, os casos de doenças em geral foram 4.053 nas
viagens de ida e 10.327 nas de volta (apesar do menor número dos que retornavam em relação
aos que partiam). De 1910 a 1916, dos 581 casos de viagem de retorno, 171 foram devido à
tuberculose. Mas esses números estão aquém da realidade, pois somente foram registrados, na
estatística oficial, os casos levados ao conhecimento do médico de bordo.
Ainda sobre os dramas de emigração, o Comissariado-Geral da Emigração, extinto em
1927, apresentava que, no período de 1902 a 1925, os repatriados considerados indigentes,
provenientes de todos os países, somaram quase 125 mil pessoas, das quais 53 mil dos Estados
Unidos e cerca de 30 mil do Brasil. Além desses 125 mil, deve-se acrescentar cerca de 38 mil
emigrantes que, no mesmo período, foram rejeitados nos portos de desembarque por vários
motivos. Outra situação dolorosa diz respeito à necessidade de repatriar emigrantes por
alienação mental, causada, segundo pesquisadores, pela nostalgia. Esse mal também acometia
os africanos que, quando arrancados de sua terra natal, eram trazidos como escravos para o
Brasil ou outros lugares que praticavam a escravização desse povo.
No Brasil e particularmente em São Paulo, os imigrantes que tiveram melhores
condições de vida – e alguns fizeram fortuna – quase sempre foram aqueles que permaneceram
nos centros urbanos, desenvolvendo atividades comerciais. Uma razão para essa tendência pode
57
ser devido à ausência quase completa de um quadro de paulistas nativos com um estilo urbano
de vida. A população da capital da província, em 1872, antes que se formassem as companhias
de imigração, não passava de 23.000 habitantes. Por volta de 1920, quase dois terços dos seus
580.000 habitantes eram forasteiros ou descendentes de forasteiros (DEAN, s/d).
Os dados biográficos da maioria dos imigrantes que fez fortuna aqui no Brasil tinham
algumas características em comum: em suas pátrias, viviam em cidades, vinham de famílias de
classe média e possuíam certa expriência no comércio ou manufatura. Com pouquíssimas
exceções de empresários imigrantes que iniciaram suas atividades no Brasil como operários ou
vendedores, a maior parte deles aqui chegou trazendo pequeno capital, muitas vezes fruto de
economias feitas na Europa, ou ainda um estoque de determinada mercadoria que lhes
possibilitava recursos para investir em alguma atividade, diferentemente dos imigrantes mais
pobres, que só tinham a força de trabalho e a esperança de melhorar de vida. Um dos exemplos
mais marcantes foi Francisco Matarazzo, que se tornou um dos maiores empresários do Brasil.
Em entrevista dada em 1922, Matarazzo conta sobre a sua chegada ao Brasil:
Igual a todos os começos. Em oitenta e um deixei a minha terra, a minha casa em
Salerno e embarquei para a América. Trazia a bênção de mamãe – já havia perdido
meu pai -, bons conselhos e um milhar de liras. Devia seguir-me uma certa quantidade
de toucinho, porque [...] estava decidido a votar-me ao comércio. Eu cheguei, mas
naufragou a embarcação que carregava o meu pequeno capital e fiquei com as mãos
vazias. Não abandonei a ideia. Com a ajuda de um patrício detive-me a estudar o
problema das gorduras que vinham dos Estados Unidos e eram de preços
salgadíssimos, enquanto no Brasil pululavam os suínos. Fiz aquilo que faziam os
norte-americanos. Apresentei em lata o que eles ofereciam em barril e, servindo-me
da produção do lugar, consegui em breve tempo criar uma indústria paesana próspera
então, mais próspera depois... (MATARAZZO, apud MARTINS, 1976, p. 62).
Nesse relato, Matarazzo quer adequar sua imagem à figura do industrialista self-made-
man, ao dizer que o seu começo foi “igual a todos os começos”. Mas não foi tão igual assim.
Só foi igual por precisar emigrar, mas, enquanto a maioria dos imigrantes não trazia nenhum
capital, ele trazia “um milhar de liras”. Ao perder a carga de toucinho, ficou “de mãos vazias”,
mas antes estava com elas cheias, o que não acontecia com a maioria dos imigrantes. Outro
ponto de diferença foi que, graças a ajuda de um amigo (sem detalhar em que sentido foi essa
ajuda), ele deteve-se “a estudar o problema”, ou seja, tinha condições de inteligência suficiente
para entender a situação.
Via de regra, os estrangeiros dedicavam-se às atividades de importação de produtos,
tendo em vista, principalmente, atender aos demais imigrantes que haviam se instalado aqui.
Ora, ninguém melhor que um europeu para conhecer as predileções de vestuário, alimentação
etc. de um outro europeu, por já estarem familiarizados com os gostos e hábitos desse
58
contingente. As massas imigrantes eram valiosas para os empresários imigrantes de outras
maneiras, talvez menos cruciais, mas, ainda assim, significativas. Os colonos proporcionavam
vultosa contribuição ao capital disponível para empreendimentos industriais, através das
economias que acumulavam. Tais economias eram depositadas em agências locais de bancos
que operavam em seus países de origem. Tais agências eram prerrogativas dos empresários
imigrantes (DEAN, s/d). Persistia uma prática de ajuda recíproca de confiança entre os
imigrantes. Os próprios empresários imigrantes tendiam a contratar ou ajudar pessoas oriundas
de seus países, que, por sua vez, mantinham-se fiéis a eles aqui no Brasil.
Uma característica comum entre os emigrantes, principalmente italianos, fossem eles
pobres ou mais abonados, era o “ascetismo da poupança”, levados pelas próprias contingências
da vida, ou seja, estavam acostumados a passar toda sorte de privação para poder economizar.
O ato de economizar beirava uma obsessão e foi apropriado pelo capitalismo na forma da
ideologia do trabalho. Num outro depoimento, Matarazzo deixa bem evidente a importância do
trabalho.
“Cheguei ao Brasil já há quarenta e cinco anos”, disse. “Vinha com mulher e dois
filhos. Da minha terra, no sul da Itália, trazia um pouco de dinheiro, mas pouco. Aqui
desembarcado, com a bolsa cheia de vontade de trabalhar, dirigi-me à Sorocaba, onde
dei início à minha carreira, ajudado por um meu conterrâneo, o qual reunia as funções
de sapateiro e a de conselheiro municipal. (sic) Foi ele um bom e precioso amigo,
talvez o meu melhor amigo. Conservo da sua memória uma rara veneração, e é sempre
com infinita saudade que o recordo. [...] Aquele meu conterrâneo era de valor pela sua
capacidade de trabalho e pela sua virtude doméstica, e não pelos seus títulos e
pergaminhos. Estabelecido em Sorocaba abri um botequim, ou venda como se diz
aqui no Brasil. Eu lhe faço notar que não tive jamais, nem procurarei ter, o que se
chama patrão. A luta me seduzia confiando unicamente na minha energia e na minha
força. Algum tempo depois, havendo superado as primeiras dificuldades naturais, e já
não apenas conhecedor do ambiente, mas senhor de mim mesmo, com maior alento e
também mais resoluto, instalei em Sorocaba uma fábrica de banha” (MATARAZZO
apud MARTINS, 1976, p.63).
Neste outro momento, o que importava era reforçar que todo o sucesso foi fruto de muito
trabalho, pois “trazia um pouco de dinheiro, mas pouco” e também não citou que trazia
mercadoria, com a intenção de comercializá-la, mas “a bolsa cheia de vontade de trabalhar”. O
seu único capital seria a vontade de trabalhar. Independente de todo o seu esforço, foi
fundamental a ajuda de um conterrâneo amigo, que, apesar de não nomeado, era trabalhador e
muito considerado por sua honestidade na cidade.
O exemplo de Francisco Matarazzo enquanto formador de fortuna sempre foi
sobejamente utilizado pela burguesia para convencer o proletariado de que somente através do
trabalho é possível melhorar de vida. Trabalho e obediência combinavam ainda mais.
59
A elite rural brasileira não via com bons olhos o enriquecimento e aumento da presença
dos imigrantes na economia do país, pois sentia-se ameaçada em perder prestígio social para
imigrantes de terceira classe. Temiam que os imigrantes, sentindo-se vítimas de uma
discriminação, poderiam lançar mão do poder econômico para conquistar posição social,
hostilizando ainda mais a elite fazendeira e intensificando o conflito econômico.
Entretanto, segundo Warren Dean (s/d) essa situação de mútua hostilidade não se
consolidou, ao contrário, o que se notabilizou foi o grau de casamentos registrados entre as
famílias de imigrantes e fazendeiros. Explica o autor que, nas primeiras gerações de imigrantes,
esse fenômeno foi mais raro, visto que alguns imigrantes já chegavam casados ou estavam
noivos. Entretanto, Siciliano e Nochese, ambos chegados em tenra idade, e os Simonsens,
nascidos no Brasil, desposaram mulheres brasileiras. Todos os filhos de John Kenworthy,
Guilherme Giorgi e Pedro Morganti se casaram com brasileiras. A filha de Rodolfo Crespi
consorciou-se com um Silva Prado, e os Weiszflog, Siciliano, Matarazzo (sic), Byngton, Pereira
Ignácio, Scarpa, Oeterer e outros se ligaram pelo casamento, da mesma maneira à elite
fazendeira. Dos nomes mencionados, Francisco Matarazzo, chegou ao Brasil em 1881, com sua
mulher e dois filhos, tornou-se dono de grande fortuna, construindo verdadeiro império
industrial. Começou sua atividade no Brasil com uma fábrica de banha em Sorocaba. Também
os Kenworthy, Oeterer e Pereira Ignácio, entre várias atividades exercidas, foram grandes
industriais do ramo têxtil em Sorocaba.
1.5 Colônia Cecília – Um sonho de liberdade
“Liberdade – essa palavra que o sonho humano alimenta: que não há ninguém
que explique e ninguém que não entenda!”
(Cecília Meirelles)
Os imigrantes estrangeiros que chegavam ao Brasil traziam, muitas vezes, em suas
malas, apenas esperanças de uma vida melhor. Cada um com seu propósito. Uns queriam uma
vida melhor daquela oferecida em sua terra natal e queriam ser felizes por aqui. Outros queriam
ganhar dinheiro, “fazer a América” e retornar para sua terra. Os desejos eram de melhora para
si e para a sua família. Mas também houve aqueles que trouxeram, em suas malas, ideias. Ideias
para mudar o mundo, para oferecer uma sociedade melhor para todos. Queriam um lugar de
igualdade e felicidade para todos, pretendiam construir um mundo melhor, onde as pessoas não
60
fossem obrigadas a abandonar a sua terra e sua família em busca de vida digna. Esse era o
desejo dos anarquistas.
E os anarquistas não ficaram apenas no plano das ideias. Difundir seu ideário era muito
importante, entretanto era preciso sair da abstração e passar para a concretude das palavras.
Aqui no Brasil, houve algumas experiências anarquistas e a maior parte delas estão relegadas
ao esquecimento, por passageiras que foram, porém não sem a devida relevância. Tem-se
notícia de existência de uma colônia experimental anarquista por volta de 1888, em Guararema,
no estado de São Paulo, que teve como iniciador o mestre escultor italiano Arthuro
Campagnolli: a colônia Varpa, em Santa Catarina. Mas a experiência mais marcante foi a
colônia Cecília, no Paraná, ocorrida na última década do século XIX.
A história de homens ousados, que pretendiam realizar uma mudança radical da
sociedade, foi escrita em 1942, por Afonso Schmidt, que a eternizou em seu livro “Colônia
Cecília – romance de experiência anarquista”. O romancista Schmidt revela que, ao se
debruçar sobre esse assunto, tinha por intento apenas traduzir o pequeno trabalho escrito por
Giovanni Rossi: “Un episodio d’amore libero nella colonia Cecilia” (Um episódio de amor
livre na colônia Cecilia). Entretanto, a riqueza dessa experiência despertou no autor o seu lado
político de idealista que era e, assim, produziu um “romance-relato-poema cuja musa foi uma
ideia. Reunindo os ingredientes do fervor humanista, dos apontamentos do jornalista, do
entusiasmo do militante, Schmidt compôs hino em louvor ao Homem, ao Amor, à Liberdade”.
(DONATO, 1980, p. 4)
Giovani Rossi, engenheiro agrônomo na Itália e também músico, alimentava o sonho de
viver numa sociedade igualitária, onde as pessoas pudessem ser livres felizes. Pela música,
conhecera, na Itália, o famoso músico brasileiro Carlos Gomes. Esse brasileiro se transfigurava
quando falava da grandeza e da beleza de sua terra e até mesmo do seu rei, pessoa bondosa,
amigo dos inventores, dos músicos e dos poetas.
Diante do entusiasmo de Carlos Gomes, animado com o pensamento de construir uma
sociedade de homens livres, Giovani Rossi escreveu uma carta ao imperador D. Pedro II,
expondo seu plano de fundar uma colônia experimental anarquista. Para isso pedia uma porção
de terras no Brasil. Passado algum tempo, praticamente esquecido da carta, recebeu uma
resposta do imperador do Brasil, concedendo-lhe terras no Paraná para poder viver na prática
seus ideais.
No entanto, sobre o oferecimento das terras por D. Pedro II pairam indagações. Como
um monarca, no poder há mais de 40 anos, concede terras para a formação de uma sociedade
que não lhe reconheceria a autoridade? Ou a concessão das terras para tal experiência foi por
61
ser ele “um homem excepcional, habituado a falar a linguagem da inteligência
incompreendida”? (SCHMIDT, 1980, p.27) Ou ainda: sabia o imperador que seu reinado não
duraria muito mais tempo, então ele não seria responsável pelo que viesse a acontecer nessa
colônia?
Em 20 de fevereiro de 1890, partiu, do porto de Gênova, o navio Città di Roma rumo
ao Brasil. Vinham imigrantes de várias regiões da Itália com diferentes propósitos e, dentre
eles, estavam homens idealistas, afinados com o anarquismo, alguns sós, outros trazendo suas
famílias, esposas e filhos, como os Gattai, já mencionados em outros trechos deste trabalho.
Aqueles que vinham com a intenção de fundar a colônia tinham tomado conhecimento do local
a partir da leitura de um folheto de propaganda elaborado e distribuído por Giovanni Rossi.
Tais imigrantes, apesar de estarem vindo para a mesma colônia, não se conheciam intimamente
e se diferenciavam bastante em aspectos profissionais e sociais. Havia aqueles com escolaridade
superior, com profissões estabelecidas – como médicos, professores, jornalistas, engenheiros –
e também aqueles pobres e analfabetos que, sem saber ao certo o que lhes aguardava, traziam
consigo o sonho e a esperança de uma vida nova.
A infausta viagem de navio, longa, sofrida, marcada por doenças e até mortes,
antecipava que a empreitada seria para os fortes.
Chegando às terras prometidas e tão distantes, encontraram mata fechada e nada mais.
Receberam somente a terra, tudo o mais dependia deles. Começaram a derrubada da mata, a
construção de casebres, a plantação, enfim era só trabalho. Tão logo chegaram, fora colocada,
no alto da árvore mais alta, uma bandeira preta e vermelha, símbolo da colônia Cecília, talvez
com a intenção de mantê-los sempre animados a despeito de tudo que pudesse acontecer. A
escritora Zélia Gattai (1994, p. 157) conta como foi a chegada de seus avós paternos na Colônia
Cecília:
Num carroção de quatro rodas, com suas trouxas de roupas e alguns pertences, passou
a família Gattai por Santa Bárbara: marido, mulher e quatro filhos. [...] Ao alto de
uma colina, por entre os pinheirais divisava-se, hasteada ao alto de uma palmeira,
enorme bandeira vermelha e preta. Era a bandeira da “Colônia Cecília”, saudando a
chegada dos novos pioneiros. Ao divisar a bandeira da “Colônia” nono Gattai olhou
mais abaixo e exclamou: “Lá estão eles!” Ali estava o acampamento: um grande
barracão erguido junto a um córrego, pequenas barracas em construção, homens
movimentando-se para cima e para baixo, um pedaço de terra já limpa para o cultivo
ao lado de um pequeno bosque. Avistando a carroça da família Gattai, os homens do
acampamento partiram ao seu encontro.
No lugar não havia chefes, regulamentos, nem leis, apenas o respeito pela liberdade do
outro e a consciência do papel que cada um deveria desempenhar para o bem de todos.
62
As dificuldades de imediato foram se avizinhando da comunidade. Muitos dos que ali
estavam não tinham a mínima competência para trabalhos pesados. Outros, interpretando
equivocadamente os princípios anarquistas, recusavam-se a trabalhar, pois consideravam-se no
direito de fazer apenas o que queriam, já que eram homens livres. Eram muitas bocas a serem
alimentadas e os alimentos escassos. Muito trabalho e pouca comida. Os jovens, com a enxada
na mão, diziam: “D’un pó di polenta e d’um pó d’ideale si vive...” (Vive-se de um pouco de
fubá de milho e de um pouco de ideal) (SCHMIDT, 1980, p. 50)
Atraídos pelos princípios elevados da experiência, o número de pessoas que chegavam
à colônia aumentava sempre, chegando a ter mais de trezentas pessoas. Na colônia não havia
domingo nem feriado, mas ninguém era obrigado a trabalhar ou a fazer coisa nenhuma. Até os
contatos com a cidade e a vida capitalista não eram amiudados. Os que chegavam iam
instalando-se, sem nenhuma restrição. Todos eram acolhidos, mas não era só gente de bem que
havia desembarcado por aquelas terras. Muitos não se adaptaram àquela vida de privações e a
abandonaram.
Até que, passados uns três anos do fim da monarquia, o governo republicano passou a
cobrar os impostos devidos, caso contrário os colonos seriam expulsos. Acabou-se a monarquia,
e a terra lhes havia sido doada por D. Pedro II, que não ocupava mais o trono.
Contrariando os seus princípios, mas diante da ameaça de expulsão, toda a comunidade,
que já contava com aproximadamente trezentas pessoas, entre adultos, jovens e crianças,
mobilizou-se para plantar milho e, com a venda da colheita, seriam quitados os débitos com o
governo. E assim foi, todos trabalharam arduamente. O milho crescia e embelezava o lugar.
Iniciou-se a colheita, que se mostrava promissora e, de fato, foi. (SCHMIDT, 1980)
Os contatos de venda do milho com a cidade de Palmeira eram feitos por um único
camarada que cuidava de toda negociação. Com o milho colhido e já colocado nas carroças,
esse companheiro ficou encarregado de fazer o transporte e a venda do milho. Levava uma
carroça até a cidade e regressava para enchê-la novamente e assim foi feito em várias viagens.
Até que na última viagem, quando ele deveria retornar com o dinheiro da venda, não regressou.
Esperaram-no por muito tempo. Os princípios da comunidade não permitiam que duvidassem
do companheiro. Passado um tempo, entenderam o que ocorrera. Era o fim.
O governo retornou para cobrar o que lhe era devido. Muitos partiram carregando apenas
uma pequena trouxa de roupas. Cada um foi buscar meios de ganhar a vida e foram se
integrando na vida das cidades próximas, passando a vender sua força de trabalho por um
salário.
63
Por volta de 1894, a colônia se desfez, restando apenas, no alto da árvore, um farrapo
preto e vermelho que um dia simbolizou todo um sonho de liberdade. Com o coração
dilacerado, Giovanni Rossi foi um dos últimos a deixar a colônia e viu-se na contingência de
pedir emprego na cidade. Conseguiu tornar-se professor, foi também agronômo e passou a
ajudar os camponeses com seus conhecimentos em agronomia e, mais uma vez, tornou-se uma
pessoa admirada e respeitada. Depois de quinze anos vivendo no Brasil, voltou para a Itália,
com a mulher que compartilhou com ele a vida na colônia e duas filhas.
Por mais doloroso que fosse, admitiu que “não se faz uma sociedade nova com homens
emprestados de uma sociedade velha” (SCHMIDT, 1980, p.105).
1.6 Os imigrantes chegam a Sorocaba
Nas últimas décadas do século XIX, assim como a província de São Paulo e outras
regiões do Brasil, Sorocaba também vivia as mudanças próprias desse período.
As transformações de sua base econômica, nesse caso com a decadência da feira de
muares, favoreceram novas atividades. A atividade fabril foi despontando lentamente, dada ao
temor dos investidores em não encontrar mão de obra suficiente, tendo em vista o crescente
movimento abolicionista na cidade. Uma medida adotada no campo político, para contornar
essa situação, foram as leis que procuravam estimular a vinda de imigrantes em número
suficiente a fim de suprir a escassez de mão de obra, decorrente do fim do tráfico negreiro.
Assim, o deputado de Sorocaba, Dr. A. J. Ferreira Braga, apresentava projetos de lei e emendas
ao orçamento com o intuito de facilitar a entrada de imigrantes europeus, especialmente na
Província de São Paulo (CAVALHEIRO, 2009).
A imigração de europeus passou a ser um negócio lucrativo para o país, para os
fazendeiros e para uma nova classe que se consolidava, os industriais. Somente para a maioria
dos imigrantes é que não se mostrava alvissareira. Toda a propaganda sobre as vantagens de vir
para o Brasil foi se dissipando. O que o Brasil lhes reservava era somente trabalho, e trabalho
duro.
Em um artigo publicado no jornal Diário de Sorocaba, em 1890, sobre a imigração no
Brasil, percebe-se que a mentalidade em relação aos imigrantes não era muito diferente daquela
que embasava o tratamento dispensado aos escravos nos tempos da escravidão. No referido
64
artigo, é assinalada a questão da imigração direta, ou seja, a vinda de todo tipo de gente para
cá, qualificada para o trabalho ou não.
Nesta lucta entre o Brazil e a Republica da Argentina de chamarem a si a immigração
italiana, há muito já estabelecida na America do Sul regosijamo-nos todas as vezes
que uma leva desses immigrantes abandonam as regiões platinas em demanda deste
paiz. Entretanto deveria ser precisamente o contrario. A immigração directa tem a
grande vantagem de trazer-nos de tudo; quer quanto a edade, quer quanto as virtudes
e vicios. Este porem que nos chega com escala pelas republicas do Prata póde-se dizer
que é o refugo da corrente immigratoria pois o que havia de bom em qualquer sentido
o pais visinho havia de saber conservar (DIARIO DE SOROCABA, 14 dez 1890, p.2).
Sobre a imigração, afirma Leôncio Basbaum (1976, p.142) que o Brasil foi dos menos
aquinhoados, pois durante muitos anos os imigrantes evitavam o nosso país, não apenas por
causa do clima ou pela febre amarela, como também por causa da escravidão. A Argentina, ao
contrário, país sem escravidão, atraiu colossais levas de imigrantes de todas as nacionalidades,
principalmente italianos, criando melhores condições de produtividade e progresso.
Em janeiro de 1887, o jornal Diário de Sorocaba publicou a seguinte notícia: “chegaram
hontem a côrte, 760 immigrantes, com destino a esta provincia, sendo dinamarquezes e os
outros madeirenses”. O movimento imigratório no Brasil e na província de São Paulo
intensificou-se.
Em 1890, o Banco União iniciou a construção da Fábrica de Chitas nas terras que
anteriormente pertenciam à Fazenda Cachoeira do Votorantim e a imprensa noticiava:
“Votorantim tem atrahido uma grande corrente de immigrantes” (DIÁRIO DE SOROCABA, 8
jan 1891, p. 2).
Esse mesmo jornal publicou, em setembro desse ano, que o governo do estado pretendia
construir hospedarias de imigrantes em várias cidades, inclusive em Sorocaba. Assim, tão logo
desembarcassem no porto de Santos ou do Rio de Janeiro, os imigrantes seriam encaminhados
para essas hospedarias. Nelas, teriam hospedagem por conta do Estado, por oito dias, até terem
condições de seguirem para seus destinos de trabalho e moradia. Entre 1880 e 1898, entraram
820 mil italianos no Brasil. 88% dos imigrantes instalaram-se no estado de São Paulo (FOOT;
LEONARDI, 1982, p.72).
A partir de então, a chegada de imigrantes a Sorocaba foi tornando-se frequente, pois
eles eram atraídos pela oferta de emprego e de moradia nas diversas fábricas, especialmente as
têxteis, que iam sendo instaladas na região. A pioneira foi a Fábrica Nossa Senhora da Ponte,
conhecida por fábrica Fonseca, em 1882. Em 1895, entrou em atividade a Fábrica de Chitas do
Votorantim, ampliada, em 1904, com as secções fiação e tecelagem. Em seguida, em 1896,
65
entraram em funcionamento as Fábricas Santa Rosália e Santa Maria. Ainda foram instaladas a
Fábrica São Paulo (Estamparia), em 1909, e a Fábrica Santo Antonio, em 1913.
1.7 O apito da fábrica controlando o tempo e a vida
“O trabalho enobrece o homem, mas sendo demasiado, o entorpece”
(O OPERÁRIO, 18 jul 1911)
As grandes fábricas, que poderiam ser avistadas de qualquer ponto da cidade, e suas
vilas operárias passaram a compor a paisagem de Sorocaba e não deixaram de ser um chamariz
para a vinda de operários, especialmente os imigrantes que, sem possuir nada aqui no Brasil,
viam no emprego e na concessão da moradia mediante um aluguel reduzido verdadeira dádiva.
O Almanaque Ilustrado, de 1903, ao retratar a “Sorocaba Industrial”, informava sobre as vilas
operárias, contava que a Fábrica Nossa Senhora da Ponte não possuía vila operária, pois
localizava-se numa área central e empregava cerca de 250 operários. A Fábrica Santa Rosália,
localizada mais distante do centro urbano, contava com uma vila operária “além das casas de
comércio e do pessoal superior, se acha a villa operaria com cerca de 80 casas para residencia
dos operários”.
Em 1914, a vila operária Santa Rosália contava com 270 casas, escolas públicas,
consultório médico, armazém, casa de diversões, iluminação elétrica e encanamento de água.
O número de operários dessa fabrica tem oscilado, pois em muitas epochas a
companhia recorre ao trabalho noctuno, empregando então duas turmas; o numero
regular, porém, desses operarios, e de 600, de ambos os sexos, todos seguros contra
accidentes na sociedade “Cruzeiro do Sul”, da capital federal (ALMANACH
ILLUSTRADO DE SOROCABA, 1914, p. 56).
Nascido em 1900, na vila operária de Santa Rosália, em Sorocaba, quando esta iniciava
suas atividades, Jacob Penteado, em suas memórias, apresenta uma vila bem diferente da
referida pelo Almanaque Ilustrado de 1914
Na encosta da colina, havia várias ruelas de casas rústicas, com telhas vãs, onde, à
noite, o vento executava a sua lúgubre sinfonia. Nada de instalações sanitárias ou
iluminação. Esta era à base de velas ou de lampiões a querosene. Água, só de poço ou
do rio próximo. Os moradores, para suas necessidades recorriam aos urinóis ou, então,
iam defecar no mato que cercava as casinholas (PENTEADO, 2003, p.16).
66
A Fábrica de Chitas Votorantim, quando iniciou suas atividades, em 1895, empregava
aproximadamente 200 operários, em sua maioria imigrantes, que ocupavam as casas
construídas para moradia operária. Nessa vila, fora fundada, pelos operários, uma sociedade
beneficente para fornecimento de víveres e uma sociedade cooperativa. Após as ampliações
feitas na fábrica, com a instalação das seções de fiação e tecelagem, ocorridas em 1904, o
número de operários saltou para mais de 1500 e a vila operária também cresceu. Inicialmente,
essa vila constituía-se de dois núcleos de residências, a Chave, onde estavam localizadas as
casas mais simples destinadas aos operários, e a Barra Funda que, além de casas simples para
operários, contava com casas maiores e mais bem construídas destinadas aos postos de chefia.
Entre esses dois núcleos de casas, localizava-se a fábrica, ocupando uma posição central.
Em 1914, a vila operária do Votorantim configurava-se da seguinte forma:
Casas para operarios em numero de 420, servidas por agua encanada e exgottos, 4
predios nos quaes funcionam as escolas publicas mixtas; um theatro, pequeno e
elegante edificio, de gosto moderno; um coreto; casa de residencia do gerente (...) dois
grandes armazens particulares, destinados ao abastecimento da população operária,
agencia do correio; posto policial, matadouro; estação da via ferrea, etc.
(ALMANACH ILLUSTRADO, 1914, p.48).
Figura 6 – Vila Operária de Votorantim – Chave.
Fonte: Gabinete de Leitura Sorocabano.
67
Em Sorocaba, a vila operária do Votorantim era tida como a melhor em termos de
construções e comodidade oferecidas aos seus empregados. Nos dois núcleos residenciais,
Chave e Barra Funda, as casas de operários eram modestas e variavam de tamanho. Essas casas
eram geminadas, com piso de tijolo, compostas quase sempre por sala, um quarto e cozinha.
Eram chamadas de casas varadas, pois para chegar à cozinha era necessário passar pelo quarto,
que não possuía porta, nem uma parede divisória. A porta da sala abria-se diretamente na rua.
Como as famílias eram numerosas, não raro as salas das casas se transformavam em dormitórios
também. O banheiro, construído nos fundos das residências, era, muitas vezes, compartilhado
entre várias famílias, bem como o tanque de lavar roupas. Apesar de ter luz elétrica, nem todos
os cômodos da casa usufruíam desse benefício. A fábrica autorizava a instalação de bicos de
luz sempre em número inferior ao dos cômodos da casa. Assim, uma casa de três cômodos só
poderia contar com bicos de luz em dois deles, a escolha do proprietário. Eram frequentes as
visitas de funcionários da fábrica, percorrendo as casas e cortando a luz dos cômodos não
autorizados, quando os moradores faziam uso de ligações clandestinas para mais um cômodo.
Em algumas casas assobradadas, a escada que levava ao pavimento superior, onde normalmente
situavam-se os quartos, ficava na parte externa, servindo a duas casas, ou seja, era necessário
sair para a rua para chegar aos quartos. A privacidade das pessoas era inexistente nesses
ambientes.
A Fábrica Santa Maria também contava com vila operária seguindo as mesmas
características das demais: diferenciação entre casas para os operários e para chefes mais
graduados, bem como outros benefícios para os segundos.
Os chefes eram mais privilegiados. Ganhavam abono de natal (não chegava a ser um
salário) prêmios e moravam nas melhores casas da fábrica. Os operários moravam nas
casinhas da Vila, construídas nas ruas Manoel Lopes e Campos Salles. Já os mais
graduados [...] mestres de oficina e outros moravam em casas melhores na rua Santa
Maria. Todos pagavam aluguel (GAZETA DO ALÉM PONTE, 14 abr 1992 apud
ARAUJO NETO, 2005, p. 38).
A vida do operário nas vilas era totalmente controlada pelo patrão. Esse controle
estendia-se à vida privada dos operários. O apito ia além do controle dos horários de entrada e
saída do trabalho, uma vez que várias vilas chegavam a ter um toque de recolher, que
geralmente não passava das 21 horas. No caso da fábrica Votorantim, a residência do gerente
localizava-se dentro da fábrica, num ponto mais elevado do terreno, a fim de favorecer uma
visão panorâmica, muito assemelhado ao Panóptico, figura arquitetural de Bentham, cujo efeito
mais importante, conforme explicita Michel Foucault (1987, p.166), “é induzir no detento, um
68
estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do
poder”.
Até mesmo a leitura dos empregados passava pelo crivo da gerência, pois, durante a
circulação do jornal O Operário, repetidas vezes os redatores do jornal solicitavam que os
exemplares chegassem às mãos dos operários assinantes.
RECLAMAÇÃO – Pedimos aos senhores do escriptorio da “Fabrica Votorantim”
com urgência, para que fassam a entrega de nossa folha com mais regularidade, pois
tem nos chegado aos ouvidos a má distribuição d’Operario naquela Fabrica. Fazemos
este pedido dentro da rasão esperando ser-mos atendidos (O OPERARIO, 1 maio
1912, p.2)
Os operários tinham a consciência de que eram vigiados o tempo todo. Até mesmo as
situações triviais chegavam ao conhecimento do gerente. Por exemplo, quando as crianças,
durante as brincadeiras, brigavam entre si, os pais dos beligerantes eram notificados pelo
próprio gerente sobre o comportamento inadequado de seus filhos. Também era o gerente que
decidia quando os filhos dos operários deveriam ingressar no trabalho da fábrica.
Na Votorantim, situada a alguns quilômetros de Sorocaba, os gerentes impediam as
uniões livres e obrigavam os operários a casar-se, sob pena de despedida. Eram
frequentes os casos de revista por guardas armados ou o controle das pessoas que iam
visitar os operários (FAUSTO, 1976, p. 117).
Os empregados da fábrica tinham consciência de que o poder da fábrica adentrava seus
lares, sem pedir licença. A privacidade dos operários não era respeitada. Eram rotineiras visitas
de policiais ou funcionários da fábrica em revistas às casas, em busca de tecidos roubados.
Ante-hontem o sub-delegado deste districto sr. José Coelho, com o delegado
substituto dahi acompanhados por 3 praças, deram buscas em diversos domicílios de
operários na “Chave” com o fim de encontrar fazendas roubadas da fábrica. Foram,
porém, infructiferas as buscas (CRUZEIRO DO SUL, 3 jan 1917, p.2).
Os moradores da vila operária do Votorantim frequentemente organizavam festas e
bailes como uma forma de aliviar-se do trabalho penoso do dia a dia. No entanto, os bailes só
poderiam ser realizados com a devida permissão do gerente da fábrica e também era ele quem
determinava os horários de circulação dos trens para que o pessoal de Sorocaba pudesse
participar da festa. As festas nunca se prolongavam muito para não comprometer o dia seguinte
de trabalho.
Essas vilas contavam com serviços essenciais, como escola, farmácia e um armazém
fornecedor de gêneros alimentícios e outros produtos necessários a sobrevivência do
69
trabalhador. No armazém, os preços dos produtos eram estabelecidos pelos próprios patrões,
que, por seu turno, acabavam por controlar aquilo que seria consumido pelos seus operários.
Em 1909, a partir de uma queixa dos operários da Fábrica Votorantim, o jornal O
Operário denunciou a prática utilizada por essa fábrica, onde os operários recebiam um cartão
colorido contendo um determinado valor para efetuarem suas compras de alimentos e outros
produtos somente no armazém local. Indignava-se o jornal pelo fato de que vencido o mês, caso
o trabalhador não tivesse gastado todo o valor do vale, esse saldo não poderia ser utilizado no
mês subsequente, já que outro cartão de cor diferente seria emitido. Questionava, ainda, o jornal
o fato de o operário da fábrica Votorantim não ter opções de compra em outros estabelecimentos
comerciais, além daquele pertencente à fábrica, o que caracterizava prática de monopólio.
Essa prática teve desdobramentos na imprensa local. Enquanto o jornal O Operário
denunciava essa situação, o Cruzeiro do Sul defendia esse procedimento, alegando que ele tinha
a aprovação do operariado, comprovada mediante publicação de uma extensa lista de nomes de
operários favoráveis à prática. No entanto, O Operário afirmava que os trabalhadores citados
haviam sido coagidos pela gerência da fábrica para demonstrarem apoio à causa.
Sobre esse caso, a leitura desses dois jornais não nos permite aquilatar a real dimensão
dos fatos, tendo em vista a defesa ferrenha que ambos fizeram da sua visão e entendimento
sobre o caso. Entretanto, o conhecimento da dominação da fábrica em todos os aspectos da vida
de seus operários e do posicionamento do jornal Cruzeiro do Sul em não se indispor com os
industriais nos autoriza a crer que o apresentado pelo O Operário seria mais condizente com a
realidade.
Já a Fábrica Santa Rosália, localizada na periferia de Sorocaba, dava liberdade de
escolha para seus empregados, que podiam comprar em outros armazéns, apesar de haver na
vila operária um armazém pertencente à fábrica. Entretanto, após feitas as compras, os
mantimentos eram transportados por carroças que, depois, eram impedidas de adentrar a vila.
A partir do portão de entrada, sempre guardado por um porteiro, o empregado deveria fazer o
carregamento de sua compra. Essa prática não escapou das denúncias do jornal O Operario (12
set 1909, p. 1), como comprova o fragmento reproduzido a seguir:
Não existem lá os afamados cartões, mais engenhoso é o processo! Só existe o
armazem da fabrica e tem os empregados a faculdade de poderem, aqui na cidade,
comprar o que quizerem; mas existindo nas proximidades da fabrica um portão e o
respectivo porteiro, os que para lá se dirigem conduzindo generos, têm forçosamente
de se entender com o snr. Porteiro que de accordo com às instrucção recebidas, nega
entrada às carroças que levam ás mercadorias, consentindo sómente na das pessôas
que a essas acompanham.
70
A indústria, desse modo, passou a exercer uma influência decisiva sobre a estrutura
urbana e a vida particular das pessoas. Em alguns casos, a cidade chegou a ser determinada
principalmente pelo crescimento industrial.
A casa para morar, praticamente de graça, permitia à fábrica fazer as constantes
ameaças de despejo quando o operário se mostrava desobediente. Assim como a
facilidade de comprar no armazém da fábrica alimentos, vestuário, miudezas; de ter
adiantado o ingresso do cinema e do clube de futebol com posterior desconto no
ordenado, que muitas vezes reduzia o salário a zero. Essas práticas permitiam que a
fábrica impusesse o seu preço, pois tinha o monopólio da venda. Ademais, assegurava
a ela o domínio sobre o consumo dos operários, pois a fábrica determinava de quais
produtos deveria ser abastecido o armazém.[...] A estratégica localização da vila na
periferia da cidade garantia o isolamento dos operários, pois a ligação com a cidade
somente podia ser feita pela estrada de ferro pertencente à fábrica, que estabelecia o
preço das passagens e os dias e horários dos bondes. A expressão maior da dominação
da fábrica residia no oferecimento de emprego para toda a família, com míseros
salários, selando um vínculo de extrema dependência e submissão (DESSOTTI, 2009,
p.242).
Warren Dean (s/d, p. 166) afirma que os empresários paulistas suplementavam a
pequena remuneração dos operários com vários benefícios, como era o caso de algumas fábricas
de Sorocaba.
Há testemunhos da existência de creches e jardins da infância, armazéns, igrejas e
restaurantes da companhia, casas fornecidas pelos empregadores e assistência médica.
Os visitantes da fábrica Votorantim, por exemplo, referiram a presença de todos esses
serviços e mais alguns: cinema, piscina, quadras de tênis, campo de futebol, esgotos,
água encanada e eletricidade.
Para esse autor, a fábrica Votorantim pode ser considerada um caso à parte, por ser
muito grande e distante alguns quilômetros de Sorocaba, o que tornava necessária a oferta de
determinados serviços para seus operários. No entanto, os benefícios apregoados pela fábrica
serviam, acima de tudo, para confundir o trabalhador, que acabava colocando na mesma balança
a baixa remuneração, de um lado, e os benefícios que, aparentemente, a compensavam, de outro,
obliterando a realidade da sua situação. Pereira Ignácio, dono da fábrica, era considerado por
seus operários um verdadeiro “pai dos pobres”, maneira pela qual espontaneamente ficou
conhecido. No entanto, salienta o autor Warren Dean que “não transparece desses relatos,
todavia, que a administração dirigisse tais serviços com prejuizo. A folha de pagamento da
fábrica parece ter sido consideravelmente inferior à da média da indústria de tecidos no Estado”
(DEAN, s/d, p. 166).
Há de se imaginar que, apesar da existência de piscinas e quadras de tenis, certamente
esse tipo de passatempo não fazia parte do cotidiano e usufruto dos operários. Essa
benemerência, sem prejuízo para a empresa, explica-se pelo fato de a maioria desses serviços
71
ser deduzida do salário do operário. Esse autor ainda demonstra que quase nada do oferecido
ao operário era fruto da bondade do patrão. A habitação custava de nove a doze mil-réis
mensais, descontados de um salário médio de oitenta e oito mil-réis mensais; a eletricidade,
mais dois mil-réis por lâmpada; e os serviços médicos se deduziram à razão de 2% do salário
mensal. Os professores da escola eram pagos pelo Estado – a fábrica só fornecia o prédio – e o
armazém da companhia era arrendado.
A comprovação dessa situação é possível através de uma denúncia publicada pelo jornal
O Operário sobre os descontos havidos no salário de um pequeno operário. Indignava-se o
jornal de como um menor poderia ter tantos descontos de coisas ilícitas. De que adiantava
trabalhar tanto e receber quase nada?
Acha-se em nossa redacção um talão de conta de um menor de 10 a 12 annos mais ou
menos que trabalhava na fábrica S. Maria, com os seguintes dizeres, 29 dias e tres
quartos:
Salário 17$850
Descontos Footboll 1$000 Multa 1$000
Botequim 9$800
P. Votorantim 1$000
Total 12$800
A receber 5$050
(O OPERÁRIO, 19 dez 1909, p.1)
Decca (1987), ao tratar do cotidiano operário nas vilas operárias em São Paulo e a
dominação do patrão implícita nele, refere-se à vila operária da fábrica Votorantim como um
exemplo de vila operária de propriedade de indústrias, que ofereciam “vantagens” maiores aos
operários ali residentes. A autora vale-se da publicação Lloyd´s Greater Britain Publishing Co.
Ltd., de 1913, denominada “Impressões do Brasil no século XX – Sua História, Seu Povo,
Comércio, Indústria e Recursos”. A menção feita nessa publicação teve a intenção de enaltecer
as ótimas condições de vida oferecida ao operário e corroborou o apresentado por Warren Dean
e outros quanto aos benefícios e deduções feitos nos salários dos operários, porém não com a
mesma crítica realizada por ele.
A fábrica está situada em uma vila industrial com população de cerca de 6.000 almas
e cerca de 500 casas operárias de propriedade da fábrica, além de 200 casas mais de
propriedades de particulares [...] tem água encanada, esgoto, luz elétrica, cinema,
clube, igreja (em construção) campo de esportes, futebol, lawn-tennis, enfim, todos os
atrativos e passatempos necessários para amenizar a vida dos operários... A vida dos
operários é muito facilitada com a redução das despesas de aluguéis de casa, que a
fábrica facilita às famílias operárias de 9$000, 10$000 e 12$000 por mês e por família,
casas estas que na capital custariam 45$000 a 60$000. Os gêneros alimentícios
também ... nunca excedem os preços dos da capital e de Sorocaba, ao mesmo tempo
72
que os salários são mais elevados que em qualquer outro lugar do estado
(DECCA,1987, p. 58, grifo do autor).
Outra fonte lucrativa para essa fábrica era a estrada de ferro, pois os empregados que
precisassem ir à Sorocaba o fariam de trem, desembolsando 1 mil-réis por passagem simples.
É sabido, pelos balanços e relatórios publicados nos jornais, que a companhia não tinha prejuízo
na exploração dessa atividade. O preço da passagem não era baixo e é possível que a companhia
estipulasse valores mais elevados a fim de desencorajar o contato com o exterior da vila. Ainda
sobre todos os benefícios oferecidos aos empregados da fábrica Votorantim, Dean (1971, p.
167) arremata:
Dificilmente se imaginarão os emaciados habitantes dos barracões de tecelagem
frequentando as quadras de tênis ou o trampolim da piscina depois de um turno de dez
horas diante de máquinas implacáveis; tanto as primeiras quanto a segunda eram,
evidentemente, prerrogativas dos funcionários mais graduados.
Provavelmente, devido ao isolamento e ao tamanho alcançado pela fábrica Votorantim,
ela era frequentemente visitada e considerada como padrão aceitável de atendimento ao
operário. O industrial paulistano Jorge Street, conhecido por ter uma consciência social ao
oferecer benefícios a seus operários, visitou, em agosto de 1911, a fábrica Votorantim, “cuja
organisação desejava conhecer por ter em construcção em S. Paulo, no Belemzinho,
estabelecimento industrial de natureza idêntica” (CRUZEIRO DO SUL, 13 ago 1911, p.3).
Em sua fábrica Maria Zélia, em São Paulo, Jorge Street que, como já dito, gozava da
fama de patrão preocupado com o bem-estar de seus operários, oferecia vários benefícios aos
seus empregados, como creche, jardim da infância, casas de moradia, clube, restaurante etc. No
restaurante da fábrica, as refeições eram a preço de custo e feitas sob a supervisão nutricional
de um médico especialista em regimes alimentares dos trabalhadores, inclusive, durante as
refeições, havia um aparelho de rádio que transmitia músicas para o deleite dos operários.
Figura contraditória, o próprio Jorge Street declarou a uma delegação inglesa que
visitava sua propriedade que não fazia caridade, apenas oferecia os benefícios em lugar de
salários mais elevados “que seriam torrados em coisas inúteis”.
Insistia também em que todos os trabalhadores, em sua moderna aldeia, observassem
o toque de recolher às nove horas e se abstivessem de ingerir bebidas fortes. No jardim
da infância as crianças aprendiam hábitos de asseio e a tecer modelos; as operárias
não eram multadas pelo tempo em que deixavam de trabalhar amamentando os filhos
(DEAN s/d, p. 168).
73
Na fábrica Votorantim, esse “paternalismo” ficou mais acentuado a partir de 1917,
quando o estabelecimento deixou de pertencer ao Banco União e passou a ser propriedade do
imigrante português Antonio Pereira Ignácio. O pseudo paternalismo é uma estratégia de
manipulação eficaz em que o empregado não tem consciência dessa dependência ou é
compelido a aceitá-la pelas vicissitudes da vida. Nem sempre o controle e a dominação
precisam ser necessariamente explícitos ou pela força, as algemas podem ser de lã.
O proletariado é desprovido de tudo, [...] porque a burguesia se arrogou o monopólio
de todos os meios de subsistência. Aquilo que o proletariado necessita, só pode obtê-
lo dessa burguesia cujo monopólio é protegido pela força do Estado. Ela lhe oferece
os meios de subsistência, mas em troca de um “equivalente” – seu trabalho (ENGELS,
2010, p.118).
Os baixos salários e as condições adversas de trabalho garantiam a mais-valia1,
entretanto, os patrões precisaram fazer algumas concessões para fixar o operário no trabalho,
haja vista que não há opressão que não tenha fim.
Nesse quesito, a formação das vilas operárias atendia plenamente a esses objetivos. Por
outro lado, os operários, quase sempre com família numerosa, sem qualificações, e muitos deles
imigrantes que desconheciam o país, viam-se obrigados a aceitar esse estado de coisas, já que
não lhes restavam alternativas melhores para mudar de vida.
1.8 Dentro da fábrica, o tear silencia a todos
“Em cada fabrica de tecidos vive a ingrata tuberculose,
o verdadeiro premio que os industraes dão aos seus empregados”.
(O Operario, 18 jul 1911)
As condições de trabalho nas fábricas de Sorocaba não eram muito diferentes das de
São Paulo ou de outras cidades do país e nem mesmo daquelas apresentadas por Friedrich
Engels em sua obra A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, de 1845.
Os salários eram aviltantes e a média salarial girava em torno de quatro mil-réis, o
equivalente a sessenta centavos de dólar. Conforme já mencionado neste trabalho, foi tornando-
1 Para Marx, o capitalismo baseia-se na relação entre trabalho assalariado e capital, mais especificamente na
produção do capital por meio da expropriação do valor do trabalho do proletário pelos donos dos meios de
produção. A esse fenômeno Marx deu o nome de mais-valia.
74
se cada vez mais comum o emprego da mão de obra de mulheres e de crianças. As mulheres
representavam cerca de um terço da força de trabalho, e havia muitas crianças. É possível que
a metade de todos os funcionários fosse menor de dezoito anos e quase 8% eram menores de
catorze (DEAN, s/d).
A mão de obra feminina e infantil foi largamente utilizada, principalmente nas fábricas
têxteis, a partir da introdução das máquinas, e, consequentemente, entre vários efeitos, acarretou
um afastamento dos homens adultos das fábricas. A mulher operária se transformou em um
temível concorrente do operário.
De acordo com a análise de Engels (2010), tanto na fiação como na tecelagem, a partir
da introdução das máquinas, o trabalho humano consistia, principalmente, na reparação dos fios
que se rompiam, já que as máquinas faziam todo o resto. Esse trabalho não exigia força física,
apenas dedos ágeis.
Então, não só os homens são dispensáveis, como, por outra parte, o maior
desenvolvimento dos músculos e da ossatura das mãos tornam-os menos aptos para
esse trabalho que as mulheres e as crianças – por isso, estão quase todos excluídos
desse tipo de trabalho. Quanto mais a atividade dos braços e dos esforços musculares
vêm sendo substituídos, mediante a introdução ds máquinas, da força hidráulica ou do
vapor, tanto menos se necessita de homens, deslocados por mulheres e crianças que,
além de serem mais hábeis que os homens, recebem salários menores (ENGELS,
2010, p. 179).
Outra consequência do trabalho da mulher na fábrica foi a desagregação da família. Ora,
a mulher trabalhando por 10, 12 ou até 14 horas diárias, não tinha condições de cuidar dos filhos
e nem mesmo do lar. Após o nascimento dos filhos, em questão de dias, a operária já deveria
retornar ao trabalho, sendo obrigada a transferir a criação dos filhos para seus outros filhos mais
velhos ou para algum vizinho, uma vez que não havia nenhuma instituição com a incumbência
de cuidar das crianças enquanto os pais estavam trabalhando nas fábricas. Essa situação de
abandono involuntário dos filhos pelas mulheres operárias também foi verificada por Engels.
A mãe que não tem tempo de ocupar-se do filho, que em seus primeiros anos não pode
dedicar-lhe os cuidados mais elementares, que mal pode vê-lo, não pode ser para ele
uma verdadeira mãe; torna-se-lhe indiferente, trata-o sem amor e solicitude, como a
uma criança estranha. Por seu turno, as crianças que nascem nessas condições mais
tarde serão incapazes de vida familiar, [...] porque conheceram apenas uma vida
solitária – e acabarão contribuindo para a destruição da família, fenômeno já comum
entre os operários ingleses (Idem, p. 182).
A primeira escola maternal do estado de São Paulo foi a da fábrica Santa Rosália, em
Sorocaba, criada em março de 1924. Em janeiro de 1926, foi criada a escola maternal da fábrica
75
Votorantim. A criação de creches e escolas maternais foi, antes de tudo, uma iniciativa
econômica e não uma preocupação pedagógica.
O ambiente dentro das fábricas era insalubre: pouca ventilação e pouca luminosidade,
muito calor, excesso de barulho e poeira constante, que pairava no ar. As construções seguiam
os modelos arquitetônicos ingleses, com as janelas sempre posicionadas no alto, impedindo a
visão do exterior a fim de concentrar a atenção apenas no trabalho. A saúde dos pobres operários
consumia-se a cada dia de trabalho. Mais uma vez, pelo relato de Jacob Penteado, é possível
perceber como era o cotidiano dos operários em Sorocaba, já que seus pais trabalharam na
fábrica Santa Rosália. Por uma triste coincidência, seu pai faleceu em 1903, no mesmo dia em
que sua mãe dava à luz a seu irmão. Jacob Penteado tinha então 3 anos de idade.
Pobre papai! Morreu moço. Organismo não muito resistente, trabalhando sem cessar,
sucumbiu ao desumano regime imperante na indústria. [...] Vieram, então dias de
grande dor e trabalho, pois mamãe, ainda não refeita do profundo golpe que sofrera
nem tampouco da recente maternidade precisou ir trabalhar na “Santa Rosália”, a fim
de sustentar-se e às duas criancinhas que lhe ficaram na desolada viuvez. [...] Vejo-a
ainda, quando, em plena madrugada, eu também acordava, ao apito da fábrica, cujo
som ecoava, no silêncio da colina, como um doloroso chamado. Meio insone, pois
passava as noites cuidando do pequeno Antoninho, levantava-se, preparava às pressas
seu magro café, vestia-se, beijava-nos e seguia para o seu calvário. [...] Poucos meses
durou o meu irmãozinho (PENTEADO, 2003, p.18).
A industrialização de Sorocaba não difere da de outros centros, como São Paulo ou Rio
de Janeiro, marcadamente definidas com a presença do elemento imigrante, enquanto força de
trabalho. A medida que foram se instalando as fábricas, novas relações sociais foram surgindo.
Estabeleceram-se as relações que marcaram o sistema capitalista de produção. O capitalista,
dono dos meios de produção, representado na figura do industrial, o dono da fábrica e dos
maquinismos, formando uma classe social, a burguesia. Desprovido de uma propriedade e dos
meios de produção, ou qualquer outra coisa que o valha, está o empregado, que só pode dispor
de sua força de trabalho, vendendo-a ao capitalista. Nessa convivência diária é que se
estabelecem algumas das mais importantes relações sociais, ou seja, as relações de trabalho.
No artesanato e na manufatura, o trabalhador se servia de sua ferramenta, enquanto, na
fábrica, ele passava a servir a máquina. Se o trabalhador tinha, antes, o controle sobre o processo
e as condições de trabalho, com a mecanização da produção, no sistema de fábrica, esse controle
escapou de suas mãos. Na verdade, o trabalhador foi submetido e dominado por suas condições
de trabalho (DECCA, 1991, p. 8).
76
Figura 7 - Fábrica de tecidos Votorantim.
Fonte: Gabinete de Leitura Sorocabano.
Nos primeiros tempos da industrialização, final do século XIX e início do XX, não havia
uma legislação trabalhista, nem tampouco uma organização operária. No ambiente de trabalho,
dentro da fábrica, reinava todo tipo de manobras que permitiam o aumento da mais-valia por
parte dos patrões, que já haviam introjetado a essência do sistema capitalista.
Assim, os salários pagos pelos capitalistas estavam de acordo com o apresentado por
Karl Marx, em seu Manifesto do Partido Comunista, de 1848: o “que operário assalariado
obtém por sua atividade é o estritamente necessário para garantir-lhe a sobrevivência” (MARX;
ENGELS, 2001, p.49).
Não obstante os baixos salários, o trabalho extenuante dentro das fábricas sugava as
forças dos trabalhadores. Alguns expedientes adotados pelos patrões eram os mesmos dos
tempos da revolução industrial, denunciados por Engels. Os patrões pagavam conforme suas
conveniências, pois não havia uma data certa no mês para efetuarem os pagamentos. O operário
recebia de acordo com os dias trabalhados, descontavam-se os domingos e faltas, além das
multas recebidas. Multava-se o operário por atrasos na entrada do serviço, por danos na
máquina, perda de material, ou danos na peça tecida ou por qualquer outro motivo a bel prazer
dos encarregados. Há notícias de que tais multas atingiam um terço do salário do operário e de
que também eram aplicadas às crianças (SIMÃO, 1966). Essa situação era noticiada pela
imprensa operária:
77
[...] todos os operários d’aquella fabrica que digam com franqueza com que estado
trabalham com o material... pentes estragados, rôllos com falta de fios, orellas
totalmente estragadas, é uma vergonha, em uma fabrica como a “Votorantim” [...]
não podemos trabalhar o mez inteiro com o material em pessimo estado, não podemos
pagar os 4 mil réis de multa em cada peça (O OPERÁRIO, 14 abr 1912, p.2).
Alvo de constantes queixas por parte dos operários, um procedimento bastante usual em
todas as fábricas e que perdurou por muito tempo foi a utilização de operários eventuais, ou
seja, que compareciam diariamente à fábrica nos horários de entrada, porém, só trabalhavam se
alguém tivesse faltado. Com essa prática, não se configurava o vínculo empregatício e a falta
de um empregado não era sentida, já que se dispunha de um exército de reserva. Para o operário
eventual era cruel essa situação, já que nunca sabia ao certo quanto iria receber no final do mês
e nem por quanto tempo poderia ficar na condição de quase empregado. Sem contar que ele
precisava levantar de madrugada, gastar com a passagem do bonde, correndo o risco de não ter
trabalho naquele dia.
Em 1939, ainda persistia nas fábricas esse procedimento e foi o que ocorreu com
Salvadora Lopes, uma operária de Sorocaba que teve papel de destaque na luta operária
posteriormente. Salvadora, residente Sorocaba, trabalhava na fábrica Votorantim na condição
de operária eventual. Decidida a mudar esse quadro, reuniu outras operárias na mesma situação
e foi falar com o gerente da fábrica, Angelo Vial.
- Com licença, sr. Angelo. Estamos aqui para fazer uma proposta ao senhor. Estamos
cansadas de acordar cedo e nos dirigirmos até aqui para no fim não conseguirmos
ganhar o nosso dia. A proposta que fazemos é a seguinte: o senhor nos deixa ficar na
fábrica realizando serviços gerais, limpando máquinas, varrendo chão, lavando os
banheiros... Qualquer serviço, desde que não precisemos voltar para nossas casas sem
ganhar o dia de serviço (CAVALHEIRO, 2001, p. 102).
A proposta feita por Salvadora Lopes, futura líder operária, dava mostras do grau de
sujeição a que os operários estavam obrigados para garantir o salário e fora aceita pelo gerente
da fábrica, Angelo Vial, cujas origens foram no operariado e que serão tratadas com mais
detalhes mais adiante.
Não havia uma idade mínima para ingressar no trabalho, como também não havia uma
idade máxima para deixá-lo. Apesar de as pessoas não viverem muito, era possível encontrar
operários com setenta anos ou mais trabalhando. Viam-se na contingência de trabalhar até os
estertores de suas forças, pois não havia uma previdência que lhes garantisse uma
aposentadoria. Na imprensa operária, não raro, apareciam acidentes ocorridos com pessoas de
mais idade.
78
Outra dura realidade que prevalecia em todas as fábricas era o trabalho das crianças de
ambos os sexos, conforme comprovam os anúncios feitos na época, como o reproduzido a
seguir: “Fabrica N. S. da Ponte – Nesta fabrica precisa-se de meninos de 8 a 12 annos de edade.
Paga-se ordenado desde a entrada” (A VOZ DO POVO, 24 fev 1895, p. 2).
Interessante notar a observação feita no anúncio de que se pagava desde a entrada. Ora,
isso era o mínimo que se podia esperar, entretanto, deveria ser usual o não pagamento desde o
início do trabalho, visto que, no referido anúncio, isso transparece como uma vantagem da
fábrica do Fonseca.
Se as condições de vida dos operários homens, nos primeiros tempos de
industrialização, eram difíceis, muito mais duras eram as condições das mulheres e das crianças.
A mão de obra infantil foi muito utilizada nas fábricas, principalmente as têxteis, não só em
Sorocaba, como em São Paulo, enfim, em todos os lugares em que havia operários. As crianças
eram vistas como um adulto em miniatura, sendo assim, a infância lhes era negada. Sempre
descalças, sem agasalho nos tempos de inverno, sem estudo, desde muito cedo, meninos e
meninas conheciam a luta para ganhar o pão de cada dia.
Vários fatores concorriam para a utilização dessa mão de obra. Os salários eram
baixíssimos. As crianças trabalhavam nas mesmas condições dos adultos, cumprindo a mesma
longa jornada. Eram obrigadas a começar o trabalho de madrugada e trabalhar doze, ou até
quinze horas por dia. O trabalho infantil era visto como uma exploração dos proprietários das
fábricas, porém era dificil combater essa prática, uma vez que os pais necessitavam do salário,
por menor que fosse ele.
Ora, trabalhar das 5 e meia da manhã ás 7 ou 8 da noite nessas fábricas escuras, anti-
hygienicas, perniciosissimas, principalmente as crianças, esses entes fracos, onde vão
crescendo na mais completa obscuridade, desprovidas dos mais comesinhos
conhecimentos uteis, desprovidas, finalmente da luz mais radiosa e necessaria a
humanidade toda – a luz da instrucção! – não é viver, é padecer (O OPERARIO, 2 out
1910, p.2).
A questão do trabalho infantil foi provocada pela própria burguesia, pois se os salários
pagos aos pais não fossem tão aviltantes, não lhes permitindo obter o mínimo para a
subsistência, eles não seriam compelidos a mandar seus filhos ao trabalho tão precocemente.
No entanto, a burguesia ainda tomava para si, nessas circunstâncias, o papel de benfeitora. A
burguesia, primeiro, colocava os filhos dos operários numa situação insustentável e, depois,
explorava essa situação em seu proveito (ENGELS, 2010).
A exploração da classe trabalhadora pela burguesia não era vista como tal, pelo
contrário, era entendida como salvadora, principalmente para as mulheres e as crianças. Uma
79
prova desse pensamento pode ser extraída de uma notícia do jornal A Voz do Povo, publicada
em 1894, que informava sobre a ida de Alexandre Marchisio para a Inglaterra a fim de adquirir
máquinas para a fábrica Santa Maria. Esse inglês foi o responsável pela instalação da primeira
fábrica de tecidos de Sorocaba, a Fábrica Nossa Senhora da Ponte, e depois veio a compor a
sociedade que instalou a fábrica Santa Maria.
Alexandre Marchisio – Este cidadão que allia em si vastissimos conhecimentos
industriaes a uma modestia sem par; que symbolisa, para Sorocaba, a éra do seu
progresso, o pão para centenas de mulheres e creanças que viviam a míngua de
trabalho compativel ás suas fracas forças; que foi o mestre - «a alma» da grande
fabrica de tecidos «Nossa Senhora da Ponte de Sorocaba», propriedade do grande
industrial sr. Manoel José da Fonseca, que hoje ostenta-se orgulhosa de seus
productos, que não dão nem para satisfazer grande parte dos pedidos, deixa-nos por
algum tempo. (A VOZ DO POVO, 17 out 1894, p.2).
A hipocrisia do patrão residia num discurso de bondade ao permitir que as crianças
pudessem trabalhar, pois, além de contribuir com o orçamento da família, também se mostrava
salutar para a formação moral delas próprias, evitando desvios de caráter e atividades de
vadiagem, conforme comprova o relato da visita à fábrica Santa Rosália pelos repórteres do
jornal O 15 de Novembro, em 1899.
Visitamos demoradamente as diversas secções onde as referidas operações se fazem
[...]. – O compartimento do fabrico do fio é sobremodo digno de visitar-se. Antes de
tudo, funccionam quatro machinas, cada uma das quaes com 125 fusos; seguem-se
outras sete machinas, com 150 fusos cada uma; e finalmente, duas machinas
trabalhando em cada uma 350 fusos. Aqui manusêa-se o fio para morim, desde o
numero 20 até o 28. Nestas ultimas machinas só operam crianças, meninos ageis, que
é uma viva satisfação ver para alli occupados, aproveitando santamente o tempo que
outras malbaratam na ociosidade, na precocidade do vicio. [...] Cada operario toma
conta de quatro teares – [...] – Os operarios que presentemente trabalham no
estabelecimento, montam a 120, homens e mulheres. Os meninos, de ambos os sexos,
são em numero de 90. De novo, santa escola do trabalho! Vimol-os alli entretidos,
diligentes, numa faina suave, que de maneira alguma lhes pode prejudicar as
organisações debeis, em vista do diminuto dispendio de forças que demanda. (O 15
DE NOVEMBRO, 3 set 1899, p. 2).
Considerando que o desenvolvimento fabril de Sorocaba se deu com maior ênfase a
partir da última década do século XIX, num tempo bem posterior à revolução industrial da
Inglaterra, percebe-se que a situação vivida pelo operariado de Sorocaba era muito semelhante
àquela vivida pelos operários ingleses do final do século XVIII e início do século XIX. Até
mesmos os argumentos e justificativas utilizados pela burguesia inglesa eram repetidos aqui.
Engels apresenta também as impressões de Andrew Ure sobre o trabalho infantil ao visitar
fábricas têxteis na Inglaterra.
80
Visitei várias fábricas em Manchester e em seus arredores e jamais vi crianças
maltratadas, submetidas a castigos corporais ou mesmo que estivessem de mau humor.
Pareciam todas alegres (cheerfull) e espertas, tendo prazer (taking pleasure) em
empregar seus músculos sem fadiga e dando livre vazão à vivacidade própria da
infância. [...] Era delicioso (delightful) a agilidade com que reuniam os fios rompidos
em cada recuo do carreto da mule e vê-las, depois de segundos de atividades com seus
dedinhos delicados, divertirem-se muito a descansar nas posições que mais lhe davam
prazer, até que a atividade recomeçasse. [...] Nenhum sinal de cansaço: a saída da
fábrica imediatamente se punham a brincar num espaço livre vizinho com o mesmo
ardor de crianças que saem da escola (URE, apud ENGELS, 2010, p. 204) (grifos do
autor).
Apesar de o autor reforçar que o trabalho na fábrica era feito pelas crianças com alegria,
o que não parece verossímel, acaba por reconhecer que aqueles pequenos trabalhadores não
tinham a oportunidade de frequentar a escola. Parece-nos bem pouco provável que, após uma
longa e estafante jornada de trabalho, as crianças ainda tivessem disposição para brincar,
sabendo que no dia seguinte tudo iria se repetir.
Muito diferente desse relato foi o publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo, de 5 de
setembro de 1917, sobre o trabalho noturno das crianças operárias de uma fábrica de tecidos de
São Paulo.
[...] assistimos ontem à entrada de cerca de 60 pequenos às 19 horas, na sua fábrica
da Mooca. Essas crianças, entrando àquela hora, saem às 6 horas. Trabalham, pois, 11
horas a fio, em serviço noturno, apenas com um descanso de 20 minutos à meia-noite!
O pior é que elas se queixam de que são espancadas pelo mestre de fiação. Muitos nos
mostraram equimoses nos braços e nas costas. Alguns apresentaram mesmo
ferimentos produzidos com uma manivela. Uma há com as orelhas feridas por
continuados e violentos puxões. Trata-se de crianças de 12, 13 e 14 anos (O ESTADO
DE S. PAULO, 5 set 1917 apud DECCA, 1991, p. 38).
O trabalho duro nas fábricas afetava a saúde das crianças, que ficavam impedidas de
estudar, brincar, viver com mais dignidade, comprometendo o desenvolvimento físico e a saúde
no futuro, quando conseguiam chegar à idade adulta, uma vez que números significativos
registravam a mortalidade entre os pequenos operários. Pelo cansaço excessivo, muitas crianças
adormeciam sobre os teares e eram acordadas pelos safanões dos encarregados. Quando
cometiam alguma falta, as crianças eram castigadas fisicamente pelos encarregados. Os
acidentes de trabalho com as crianças eram constantes, como o ocorrido com um menino na
fábrica Votorantim:
[...] Seriam 9 e meia horas da manhã o menino José Pinho, de 12 annos, filho de Maria
Pinho, hespanhol, trabalhando na repartição de morins foi apanhado por uma machina
ficando completamente esmagado e com o corpo todo envolto no panno trabalhado
pela dita machina; dando-se o fallecimento horas depois [...] Hontem as onze horas da
manhã realisou-se o enterro da mallograda creança. O enterro foi imponentissimo
comparecendo, alem de muita gente desta cidade o digno pessoal operario e a banda
81
musical daquella Fabrica. A’ beira da sepultura, oraram manifestando os sentimentos
dos circumstantes, o nosso chefe dr. J. Marques Ferreira Braga e o director A. A.
Covello (A CIDADE DE SOROCABA, 13 jun 1909, p. 2).
A imprensa sorocabana noticiou o acidente com o pequeno operário. O jornal A cidade
de Sorocaba nomeou o ocorrido como um “pungente acontecimento” e o jornal Cruzeiro do
Sul como “desastre lamentável”. Entretanto, os dois jornais são enfáticos ao comentar que, no
momento do acidente, o gerente da fábrica interrompeu o trabalho em sinal de pesar e
imediatamente chamou o socorro médico, “prestando todos os cuidados que urgiam no caso
occurrente”, conforme A cidade de Sorocaba. Já o Cruzeiro do Sul fez a seguinte manifestação:
“O sr. Eugenio Mariz suspendeu immediatamente os trabalhos, tomando todo o interesse
possivel sobre o lamentavel incidente, motivo pelo qual os operarios daquelle estabelecimento
agradecem-lhe penhoradissimos por nosso intermedio” (CRUZEIRO DO SUL, 12 jun 1909,
p.2).
A atitude do gerente é descrita por ambos os jornais como um ato magnânimo, de
extrema bondade. É interessante assinalar a presença da imprensa, inclusive com
pronunciamentos dos dirigentes do jornal no sepultamento do pequeno operário, e ainda a
presença de operários e da banda musical da fábrica Votorantim. A morte do menino acabou
tornando-se um grande evento “imponentíssimo”. Sobre a morte do menino, que poderia ter
sido evitada, caso ele não trabalhasse na fábrica sabe-se lá por quantas horas diárias e há quanto
tempo, a imprensa silenciou.
Sobre o trabalho dentro das fábricas, Jacob Penteado (2003, p. 50), que acompanhava a
mãe operária no início do século XX, descreve-o sem a mesma alegria contida no relato dos
visitantes já apresentados:
Nos primeiros dias, aquilo, para mim, foi uma festa, uma novidade. Olhava para
aquelas centenas de teares, cujos braços batiam incessantemente, de um lado para
outro, num tric-trac infernal. Passava por entre eles, com muita cautela, receando ser
atingido. Para não permanecer inativo, davam-me restos de espulas para cortar.
Sentava-me atrás dos teares e, com um pedaço de vidro bem cortante, ia retirando os
poucos fios que ainda ficavam enrolados na espula, quando esta não mais servia para
a lançadeira. Esta peça, então, era uma constante ameaça para as tecelãs, pois, de
quando em quando, escapava do tear e ia projetar-se com incrível velocidade, para os
lados. Como possuía uma ponta de ferro bastante aguda, em forma de pião, constituía
realmente, um perigo. Um dia, mamãe foi atingida por uma, junto à têmpora, e por
pouco não teve um olho vazado. [...] Após algumas horas na fábrica, eu ficava inquieto
e começava a perambular pelas várias secções [...] de cinco em cinco minutos,
consultava o relógio, numa ânsia de ver-me livre daquela prisão.
Geraldo Bonadio (2004), em sua pesquisa sobre a industrialização de Sorocaba,
vasculhou antigos arquivos da fábrica Votorantim em busca de reunir dados obtidos a partir de
82
67 fichas de registros de operários, feitas em 1937, por exigência da lei. No entanto, o ingresso
desses operários fora bem anterior, por volta da década de 10 e 20. Nessas fichas, o pesquisador
encontrou registros de crianças de até seis anos de idade como trabalhadores da empresa.
[...] Apenas dois trabalhadores do sexo masculino foram admitidos na empresa com
menos de 10 anos – 8 anos, em ambos os casos – enquanto no grupo das mulheres,
bem menor encontramos 5 em tal condição (27,7% do total). Uma massaroqueira (sic)
nascida em Badajoz, Espanha, foi admitida aos seis anos (BONADIO, 2004, p. 2011)
A imprensa sorocabana, muitas vezes talvez até de maneira involuntária, em
determinadas notícias, pelos comentários que tecia, corroborava a dura realidade vivida pelos
operários. Em 1903, o jornal O 15 de Novembro, sob a epígrafe Uma lição, relatou o ato
“magnânimo” dos operários da Fábrica Santa Maria, que, por ocasião do falecimento de seu
chefe Herman Burchard, num costume da época, mandaram entregar à Santa Casa de
Misericórdia a quantia de 120 mil réis. Esclarecia o jornal que essa não era a primeira vez que
os operários procediam dessa maneira. Num tom exacerbado, referiu-se aos operários como
Martyres do trabalho, martyres porque muitas vezes succumbem no seu posto
victimados pelas energias dispendidas em trabalhos excessivos, os operarios
verdadeiros desherdados da sorte, apezar dos minguados salarios, não se esquecem
daquelles que soffrem no leito da dôr e por isso as poucas moedas que ganham vão
repartir com seus irmãos de infortunio. É bemdito, é divino esse sentimento que se
abriga no peito dos operários e que vem provar que a nobreza d’alma não é privilegio
de classe alguma (O 15 DE NOVEMBRO, 26 mar 1903, p.1).
Dentro das fábricas, havia uma figura odiada por todos, o contramestre. Esse
profissional, quase sempre escolhido pelo patrão dentre os operários, tinha por função precípua
a vigilância dos operários. Ganhava mais e, com certas regalias, atuava como agente
disciplinador. Essa função representava o papel clássico de vigilância, especialmente
importante da indústria têxtil, onde as relações com as operárias eram particularmente ruins,
pois elas protestavam contra as intimidades e exigências sexuais dos contramestres. Por outro
lado, o contramestre tinha uma função técnica crescente: ele devia vigiar e, muitas vezes,
regular as máquinas, e, com isso, insinuava-se pessoalmente no processo de produção de um
modo que escapava à percepção dos trabalhadores. O contramestre era capaz de interferir no
trabalho dos operários, impingindo-lhes dificuldades relacionadas a problemas com o
maquinário, regulando, assim, o ritmo de trabalho em conformidade pela máquina.
83
1.9 As histórias de vida se repetem nas vilas operárias
As histórias de vida nas vilas operárias eram muito parecidas, quase se repetiam. Sempre
a mesma origem, as mesmas dificuldades e os mesmos sonhos. Como a história dos meus avós
maternos, vindos da Itália, que se instalaram na vila operária da Fábrica Votorantim no início
da década de 30.
Ferdinando Lencioni, juntamente com sua família, chegou à estação de trem na vila
operária de Votorantim. O lugar era bonito e movimentado. Da estação, avistou uma grande
construção, reconhecida com facilidade: sem dúvida tratava-se da fábrica de tecidos de que lhe
falara o amigo Giovani Bortolotto, quando lhe garantiu que conseguiria emprego para todos da
família, além de uma casa para morar. Tão logo desceu do bonde, perguntou a uma pessoa que
passava para que lado ficava a vila da Chave. Não teve dificuldade em entender a resposta, pois
perguntara em italiano e obteve a resposta na mesma língua. Seguiu então, com seus seis filhos
– Daria, Daura, Iolanda, Rosa, Ademar e Alfredo – e a segunda esposa – Amélia – para a casa
do amigo.
Após passar um pontilhão, avistou um casario. As casas, grudadas umas nas outras,
tinham um aspecto bonito. As ruas tinham calçadas, mas eram de terra. As construções ficavam
entre os morros e o rio, que seguia tranquilo o seu curso. Ao final do casario, aparecia uma
cachoeira de águas cristalinas e espumantes. Crianças brincavam nas ruas e os adultos
conversavam animadamente nas calçadas, pois era domingo. Seguiram até o final da rua e
encontraram a casa do amigo Giovani, que os acolheu com satisfação. Ferdinando passou a
relatar para o amigo a sua história, que não era muito diferente da vivenciada pela maioria dos
moradores daquela vila.
Era a segunda vez que vinha ao Brasil. Na primeira, tentou estabelecer-se, mas não teve
muitas oportunidades e retornou à Itália na esperança de que a terra natal o acolhesse e
oferecesse uma vida melhor daquela de quando a deixou. Mas não foi o que aconteceu. No final
do século XIX, a Itália nem de longe sinalizava em oferecer uma vida melhor para seus filhos.
A esperança estava dando lugar ao desespero e os italianos continuavam procurando novas
terras. Como não foi possível seguir para os Estados Unidos da América, restava tentar o Brasil
novamente.
Embarcou no porto de Gênova com destino a São Paulo. Na ocasião dessa viagem, era
casado com sua primeira esposa, Alaide, e tinha apenas uma filhinha de dois anos de vida.
Chegando a São Paulo, seguiu para o interior, onde instalou-se na cidade de Itapira, passando
84
a trabalhar como sapateiro, seu ofício na Itália. A familia foi crescendo e as dificuldades
aumentando a cada dia, pois o trabalho na sapataria rendia pouco, para tantas bocas a serem
alimentadas. Alaide, ao dar à luz o sétimo filho, teve complicações no parto e, sem assistência
médica, veio a falecer juntamente com a criança. Ferdinando, viúvo e com seis filhos para criar
foi tocando a vida, do jeito que a vida queria.
Mantinha-se como sapateiro e comprava os materiais necessários, como couro, cola,
pregos etc., numa loja num pequeno distrito de Itapira, chamado Eleotério. Nas idas e vindas
até a loja, tornou-se amigo do dono, e conheceu sua sobrinha Amélia, que não era muito moça
e nem tão bonita, mas talvez pudesse aceitar a sua proposta. Pediu-a em casamento e, para sua
surpresa, ela aceitou. Era uma moça solteira, sem muitas alternativas, com quase trinta anos,
sem pai, sem mãe, sem casa, sem trabalho e que morava com os tios. O tio, quase sempre
bêbado, transformava-se num bruto e a tratava com muita violência. Pensando em mudar de
vida e, talvez, quem sabe, até melhorar de vida, aceitou o pedido e, em quarenta dias, estavam
casados. No dia seguinte ao casamento, ela se deparou com os seis filhos do marido.
Diante das dificuldades financeiras, sem vislumbrar possibilidades de melhoras,
Ferdinando resolveu arriscar tudo e seguiu para Sorocaba, cidade industrial, onde, conforme
informações dadas pelo amigo Giovani, não faltaria emprego nas fábricas de tecidos. Na maior
delas, a Fábrica Votorantim, ele e a família poderiam conseguir uma casa para morar. Mesmo
na incerteza, mas com muitas esperanças, juntaram a pequena tralha e partiram.
No dia seguinte ao da chegada à vila de Votorantim, Ferdinando, a esposa e os filhos
foram até o portão da fábrica pedir emprego. A conversa não avançava a portaria, pois era o
porteiro que examinava os candidatos e determinava se podiam ao não começar a trabalhar. O
porteiro perguntou a idade do casal, e achou-os já passados. Depois, dirigindo-se às moças, quis
saber as idades. Dezoito, dezesseis, quatorze e doze anos. E o menino dez. Fez minuciosa
vistoria nos mesmos a fim de detectar sinais aparentes de alguma doença que os impossibilitasse
para o trabalho. Todos pareciam saudáveis. Apenas o pai foi barrado, fora denunciado pelas
feridas que trazia nas pernas: a sífilis.
Após o exame, o porteiro concluiu que tinham condições de trabalhar, a madrasta, as
quatro meninas e o menino. O pai fora rejeitado. Todos poderiam começar no dia seguinte e,
lá dentro, o mestre determinaria a função de cada um. Os empregos tinham sido arranjados,
faltava agora a casa. Estavam com sorte, pois naquele tempo encontravam-se vazias várias casas
na vila da Chave e, como a família era grande, o guarda ponderou e deu as chaves de um
sobrado. Avisou que o aluguel viria descontado no salário.
85
A alegria aumentou quando viram que o sobrado era vizinho ao do amigo Giovani, que
os acolhera. A fábrica fez uma caiação na casa e a família fez uma grande faxina, lavando tudo
para acabar com a infestação de percevejos. O sobrado tinha dois quartos no andar superior.
Terminada a escada, já havia um quarto aberto e, para chegar ao outro quarto, era preciso passar
pelo primeiro. No andar debaixo, havia uma sala e uma varanda, que corresponderia a uma sala
de jantar e a cozinha, que abrigava apenas o fogão de lenha. O piso era de tijolo maciço. No
quintal, ficava o banheiro, onde a privada era construída no chão e não havia pia, chuveiro e
luz elétrica. No restante da casa, havia luz elétrica, mas não em todos os cômodos. A fábrica
mantinha sempre um número menor de lâmpadas que o de cômodos da casa.
Nos quartos havia apenas algumas camas patente onde dormiam dois irmãos por cama.
A mobília era escassa. Um grande baú fazia as vezes de cômoda e as roupas ficavam
dependuradas em pregos espalhados pelos quartos. Nem era tanta roupa assim, pois cada um
tinha praticamente uma troca de roupa. Somente muitos anos depois de entrarem na casa é que
conseguiram comprar um guarda-roupas.
Como não fora possível arranjar emprego na fábrica, Ferdinando transformou a sala da
casa em sapataria e foi fazendo o que sabia. Por sorte, não havia outros sapateiros na vila e,
dessa forma, foi formando a sua freguesia, principalmente consertando as chuteiras dos
jogadores do time de futebol Savóia, bastante afamado na época.
Os primeiros tempos e os seguintes foram tempos duros. O dinheiro era escasso, muito
pouco podiam comprar. A alimentação se resumia a feijão, cebola e tomate temperados com
azeite, uma espécie de salada, polenta, linguiça e outros poucos alimentos baratos. Mas Amélia
era uma ótima cozinheira e conseguia fazer deliciosas pastas para a família de vez em quando.
Até poderia ficar sem trabalhar, pois o serviço da casa era muito para atender às necessidades
da família. Mas Ferdinando não permitiu e a fez trabalhar na fábrica.
O trabalho na fábrica não era fácil. Longas jornadas de trabalho. Às quatro horas da
manhã, soava o primeiro apito. Amélia acordava e já ia acordando os filhos para se prepararem
para mais um dia de trabalho esfalfante na fábrica. Em intervalos cada vez mais curtos, os apitos
iam se repetindo, controlando o tempo de cada um. Quando alguém não acordava e poderia
“rodar” para o serviço, o vizinho batia na parede para acordá-lo.
Todos saíam juntos, caminhavam rapidamente para a fábrica. As portas das casas iam
se abrindo: homens, mulheres e crianças iam saindo e se juntando aos demais, seguindo todos
para a mesma direção, acompanhados pelo som da batida dos tamancos de madeira das
mulheres. Antes das cinco horas, estavam na portaria da fábrica para mais um turno de trabalho.
Ninguém podia chegar atrasado, aquele que o fizesse tinha desconto no salário. A comida era
86
levada de casa. Chegando na seção, os operários já acomodavam suas marmitas nos teares para
que fossem se aquecendo até a hora do almoço. Depois da parada de quarenta e cinco minutos
para o almoço, retornavam à labuta. O trabalho na fábrica era duro. Sugava todas as forças da
pessoa. O ambiente era totalmente insalubre: barulho, falta de ventilação, falta de luminosidade
dependendo da secção, calor excessivo e poeira pairando no ar o tempo todo. O dia todo em pé,
não dava para sentar nem sequer um instante.
Depois de instalados na vila operária, vieram mais filhos. Primeiro, Amélia engravidou,
mas a criança não vingou. Passado algum tempo, engravidou novamente e a criança faleceu
com poucos dias de vida, quase sem assistência. Amélia dava sinais de cansaço, estava
enfraquecendo. A vida continuava, sem grandes melhoras, somente trabalho para todos.
Mais uma vez Amélia engravidou e desta vez conseguiu dar à luz Marina. Ferdinando
foi se tornando um homem arredio, embrutecido pela vida. Foi pobre e analfabeto na Itália.
Continuou pobre e analfabeto no Brasil. Para ter notícias da Itália distante, recebia aos
domingos um conterrâneo que lhe fazia a leitura do jornal A Fanfulla. Espancava os filhos com
frequência, mesmo depois de adultos. Também não era delicado com a esposa. A vida tão difícil
se complicava ainda mais com o pai que não permitia gastos, nem mesmo com comida. Pensava
apenas em guardar dinheiro, para quê? Talvez guardasse consigo a vontade de retornar à Itália.
Ninguém nunca soube dizer. Resquício do ascetismo da poupança, característica bem própria
de muitos imigrantes italianos.
Amélia sabia conduzir o marido e sempre pensava nos filhos procurando ajudar a todos,
até mesmo quando se metiam em encrencas, que não eram poucas. Mas nunca deixou faltar
comida e como cozinhava bem! Era madrasta, mas tratava a todos como filhos e era considerada
como mãe por todos. Os filhos foram crescendo, os mais velhos já estavam casando, até que
Amélia, como tantas outras pessoas do lugar, devido às condições precárias de vida e do
trabalho árduo, contraiu tuberculose. A fábrica, como sempre fazia com os operários que
contraiam essa doença, ofertou-lhe cortes de flanela para confecção de pijamas, para realizar o
tratamento em sanatório de Campos do Jordão. Mas não deu tempo, nada adiantou. Ela foi
definhando, perdendo as forças a cada dia.
Num primeiro de janeiro, dia muito quente, faltava-lhe o ar, Marina, a filha mais nova,
na beira da cama, com um pedaço de papelão, abanava desesperadamente a mãe, para que ela
pudesse respirar, mas todo o seu esforço foi em vão. Amélia foi embora, deixando os seis
enteados, que sempre a consideraram como uma mãe, e a sua única filha, Marina, com dez anos
de idade.
87
Com a morte da esposa, mais endurecido ficou o coração de Ferdinando. Obrigou
Marina a usar as roupas e sapatos da mãe, o tamanho não importava, – haveria de servir um
dia! – e a fez trabalhar na fábrica, repetindo a mesma vida da mãe e dos irmãos. Trabalhar na
fábrica, cuidar da casa, cuidar do pai e cuidar da quitanda. A vida se resumia a trabalhar,
trabalhar e entregar o ordenado fechado para o pai. Marina, como suas irmãs, somente
conseguia comprar um vestido e um par de sapatos quando fazia serão.
Ferdinando morreu pobre, na vila da Chave, sem nunca ter conseguido retornar à Itália.
Os filhos casaram-se todos, com operários da fábrica, e continuaram morando na vila operária.
Os filhos dos filhos também trabalharam na fábrica. Quase ninguém foi feliz. Nasceram pobres,
viveram pobres e morreram pobres. Só restava Marina.
Figura 8 - Marina aos 7 anos - foto tirada há 80 anos.
Fonte: Acervo Pessoal - 1936.
1.10 Os imigrantes se unem, os operários se organizam
Ainda no século XIX, começou a aparecer, em Sorocaba, não propriamente uma
organização operária, mas sociedades de ajuda mútua, como em outros lugares, onde havia
concentração de imigrantes e trabalhadores. Esses recém-chegados, em sua maioria italianos,
diante da realidade que se lhes apresentava, logo perceberam que precisariam se unir para poder
88
viver nesta terra. Era preciso irmanarem-se para poderem resistir e suportar a saudade da terra
natal e das famílias, que ficaram tão distantes. Para muitos, a esperança de melhorar de vida foi
escapando pouco a pouco. Apesar de ser significativa a presença de imigrantes, especialmente
italianos, na cidade, eles eram segregados em termos de participação, ou seja, sempre eram
referidos como a colônia italiana. Era o mesmo que estar na sociedade, mas não fazer parte dela
plenamente. Nas notícias do jornal, tal qual se fazia com os negros, mesmo depois de finda a
escravidão, a nacionalidade, a cor da pele, apareciam substantivadas: o preto fulano de tal, o
italiano fulano de tal etc., nem sempre de maneira elogiosa. Claro que essa segregação não se
aplicava aos imigrantes que estavam mais bem colocados na sociedade, àqueles que já tinham
algum comércio ou começavam a se destacar em termos financeiros.
A questão social foi introduzida no Brasil juntamente com o trabalho escravo, no
princípio da colonização. E, desde essa época, encontram-se vestígios da luta desenvolvida
pelos trabalhadores para ter acesso a uma vida digna. Se, no primeiro momento, as lutas se
caracterizavam pela fundação de “irmandades” e “juntas de alforrias” para defender o
trabalhador escravo, mais tarde elas se transformaram em outras formas de organização, como
as “sociedades mutuárias”, as “ligas operárias”, as “uniões operárias” e, finalmente, em
sindicatos (FERREIRA, 1978).
A organização do operariado sorocabano também se efetuou de maneira semelhante à
de outros centros industriais do país, iniciando com sociedades de ajuda mútua, seguindo o
modelo europeu trazido pelos imigrantes. Segundo Ferreira (1978), as condições históricas em
que se desenvolveu o período mutualista não permitiram que os movimentos desencadeados
pelos trabalhadores produzissem frutos além das necessidades imediatas da classe. Somente a
partir da concentração maior de operários nos centros urbanos, e a consequente formação de
uma identidade da classe trabalhadora, é que as associações proletárias passaram a exercer
influência no destino dos trabalhadores. Essa segunda fase do movimento operário ficou
conhecida como fase da resistência às classes dominantes. As Sociedades de Resistências eram
as associações operárias destinadas à defesa dos interesses dos trabalhadores contra a
exploração capitalista (CARONE, 1984).
Em 1900, 92% dos operários industriais do estado de São Paulo eram estrangeiros e
81% eram italianos (BRASIL, Diretoria Geral de Estatística, Relatório, 1908, p.190 apud
HALL; PINHEIRO, 1990, p. 48).
Em Sorocaba, foi fundada, em 1885, por um grupo de italianos, a Societá Operaia
Italiana Umberto I. Apesar de se dizer uma sociedade operária, a maior parte de seus
89
associados, principalmente os membros da diretoria, estava envolvida em outras atividades,
como o comércio, principalmente. O jornal Diário de Sorocaba noticiou o evento:
Eleição da directoria : Presidente: João Cozzetti; Vice-Presidente: Antonio Catalano;
1.º Secretario: Francisco Matarazzo; 2.º dito, José Valio; 1.º Thesoureiro: Angelo
Rizzo; 2.º dito: Francisco Cozzetti; Conselheiros: Dr. Grilli, A. Guidone, C. Astore,
G. Pedreschi, R. Brocchini, A. Ronzi. Foram unanimemente acclamados presidente
honorario S.M. Umberto I e o dr. G. Eboli, vice-presidente honorario, o sr. ministro
commendador Martuchelli. Sim senhores; para não dizer que a sympathica colonia
italiana é completamente digna dos maiores encomios, notamos uma cousa: que vem
fazer Umberto I em uma associação completamente democratica, erguida do povo e
para o povo? (DIÁRIO DE SOROCABA, 31 out 1885, p. 2).
O jornal Diário de Sorocaba publicou a notícia de maneira elogiosa pela iniciativa,
entretanto, não deixou de fazer uma provocação ao questionar o nome da associação que se
declarava democrática, mas tinha um monarca como presidente honorário.
Esse comentário do jornal não ficou sem resposta. Imediatamente, os italianos membros
responderam, na Secção Livre da edição seguinte desse jornal, que, apesar da distância, eles se
mantinham zelosos com as instituições de seu país e se orgulhavam por ter como chefe da nação
um rei, “exemplo de abnegação em prol de seus súditos” (DIÁRIO DE SOROCABA, 1 nov
1885, p.2). Aproveitaram a oportunidade e teceram críticas desaprovando a maneira como os
brasileiros tratavam o seu imperador.
Nós, italianos, acclamamol-o, como si na patria estivessemos, Presidente honorario
da nossa associação. Convença-se, sr. redactor, de que nosso Rei, acclamado
legitimamente, por nossa vontade, acceitará o posto honorifico com eguaes
sentimentos como acceitou no Capitolio a Coroa Real. O filho do Rei Galantorum é
rei da Italia por vontade dos Italianos, cujo amor e dedicação tambem chega a ser
veneração. Nunca approvamos as mofas e sarcasmos que diariamente n’este paiz se
dispensam ao seu imperador. De V.S. Ven. e Am. “Os Italianos”. Sorocaba – 31-10-
1885 (DIÁRIO DE SOROCABA, 1 nov 1885, p.2).
A resposta dada pelos italianos denota o que se instalara em suas vidas. Bem sabiam que
retornar à Itália seria difícil e sabiam ainda que essa distância traria o esquecimento tanto dos
que lá ficaram, como o dos que deixaram a terra natal. Nascida do povo e para o povo, essa
sociedade mostrava a fragilidade dos italianos daqui, que não demonstravam preocupação com
a incoerência ideológica, pois a figura do monarca, numa associação democrática, configurava
simplesmente o vínculo com a terra. Para seguir um posicionamento ideológico coerente, teriam
que romper com aquilo que lhes era mais caro, a terra natal. Por mais contraditório que pudesse
parecer, era uma maneira de manter os vínculos com a pátria distante. Essa associação,
conforme anunciado em sua fundação (DIÁRIO DE SOROCABA, 1 nov 1885, p.2), tinha por
90
“fim o melhoramento moral e material de todos os italianos, residentes n’esta cidade e auxiliar
os desvallidos de nossa cara patria”.
O dinheiro da Sociedade ha de servir só para beneficiar e soccorrer aos socios e suas
familias em casos de grande e real necessidade. Um incendio, uma morte, uma
inundação, uma casa que cahe, póde reduzir um socio a miseria, póde elle morrer e
deixar mulher e filhos sem meios de vida, a Sociedade obriga-se a emprestar dinheiro
gratuitamente ao socio, até elle recomeçar o seu trabalho, ou reabrir o seu negocio
destruido por qualquer desgraça; obriga-se a soccorrer a sua familia, si elle morrer, á
empregal-a, si quizer, á pagar-lhe passagem até o seu lar natal, até á Europa, si a
Sociedade julgar indispensavel, a pedido da familia (DIÁRIO DE SOROCABA, 1
nov 1885, p.2).
Os membros da associação esclareciam, ainda, que a Sociedade tinha nome de Italiana,
por ter sido iniciada por italianos e por serem eles maioria; mas estava aberta a pessoas de
qualquer nacionalidade e também estava aberta a todas as categorias de trabalhadores.
Contudo, apesar de ter propósitos tão louváveis, não se tem notícias de que essa
associação conseguiu cumprir integralmente seu intento humanitário. Após a sua instalação,
eram recorrentes, nos jornais, quase sempre escritos em italiano e agendando assembleias, o
pedido de comparecimento de todos os membros, para discussões de assuntos pertinentes e para
efetuarem o pagamento das mensalidades.
O primeiro secretário da “Societá Operaia” foi Francisco Matarazzo, na época um
pequeno comerciante de banha de porco em Sorocaba. Esse produto deu início ao império
industrial denominado Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo (IRFM), que o tornou o
imigrante italiano mais bem-sucedido no Brasil.
Em 1887, foi fundada a Societá Italiana de Beneficenza e Mutuo Socorso, que ainda
mantinha membros em sua diretoria da Societá Operaia Italiana Humberto I e também
enfrentou os mesmos problemas de ausência dos associados nas reuniões, inadimplência com
as mensalidades etc.
A Sociedade Italiana de Beneficencia e Mutuos Soccorros faz amanhã o seu beneficio
no Circo Oceano. Não são desconhecidos do publico os fins principaes d’esta
importante associação, que, para conseguir realisar um dia o seu supremo
desideratum, tem arrostado innumeras difficuldades, contratempos terriveis, bem
como o indiferentismo de muitos associados, que, em uma febre de momento,
deixaram extinguir todo o enthusiasmo, todo o patriotismo com que contava para a
sua manutenção. Prestar hoje um auxilio a essa associação, é pôr um dinheiro a
premio, que amanhã será págo triplicadamente. Invocamos a philantropia dos nossos
conterrâneos (DIÁRIO DE SOROCABA, 14 set 1888, p.2).
As primeiras sociedades de auxílio mútuo criadas aqui no Brasil sempre tiveram a
participação do elemento estrangeiro. Segundo Azis Simão (1966), elas contribuíram para a
91
emergência do movimento operário, de um modo geral, mas não deram origem ao sindicalismo
que apareceu quase na mesma época.
Com finalidades semelhantes às das sociedades de socorro mútuo, estabeleceram-se as
chamadas Caixas Beneficentes, cujo diferencial residia em serem organizadas dentro das
grandes empresas, nem sempre constituídas somente pelos operários, mas também pelos
empregadores, que geralmente descontavam uma importância do salário de cada trabalhador.
Os ferroviários de Sorocaba criaram, em 1904, a Sociedade Beneficente dos Empregados da
Sorocabana.
Os operários da fábrica Votorantim formaram, logo no início das atividades da fábrica,
na última década do século XIX, a Sociedade Beneficente dos Empregados da Fábrica
Votorantim, que teve vida longa. Em setembro de 1914, os sócios foram convocados pelo
presidente Benedicto Poppes para uma reunião com membros da diretoria da fábrica, que àquele
tempo pertencia ao Banco União. O presidente propôs aos 97 sócios presentes a incorporação
da sociedade à Caixa Médica que seria organizada pela administração da fábrica. O diretor da
fábrica na época, Antonio Pereira Ignácio, apresentou aos presentes as vantagens e
conveniências da Caixa Médica, sob a exclusiva responsabilidade da administração da fábrica.
A caixa médica criará um “crèche” azilo este onde se recolherão as crianças menores
de dois anos cujas mães estejam a trabalhar na fabrica, manterá um medico, um
farmacêutico residente aqui, uma pharmacia onde por módicos preços os associados
encontram tudo que precisem, uma parteira e um dentista; organisarà um fundo
especial destinado à hygiene publica (CRUZEIRO DO SUL, 20 set 1914, p.2).
Apesar da promessa, nem tudo foi cumprido de imediato. Nessa época, os operários da
fábrica Votorantim eram reconhecidos pela sua organização e força nas reivindicações,
entretanto, estranhamente, os operários decidiram por dissolver a sociedade e passar a integrar
a caixa médica proposta pela empresa e administrada por ela. A estranheza dessa atitude se dá
pelo fato de que, alguns meses antes dessa reunião, os operários haviam se declarado em greve
por tempo indeterminado, exigindo a saída do diretor gerente Antonio Pereira Ignácio e do
mestre Piatti, pela maneira truculenta com que tratavam os empregados.
Essa greve, iniciada em 2 de dezembro de 1913, está envolta em situações nebulosas.
Todo o noticiário da greve foi feito pelo jornal Cruzeiro do Sul, que, por mais de uma vez, teve
de se defender, alegando não estar incitando os operários à greve e nem representar os interesses
políticos de seu chefe Luiz Pereira de Campos Vergueiro.
92
Figura 9 – Notícia sobre a Greve no Votorantim
Fonte: Jornal Cruzeiro do Sul, 3 dez 1913.
No transcorrer da greve, segundo o jornal Cruzeiro do Sul, correram boatos de que, por
ordem do diretor-gerente, a farmácia pertencente à Sociedade Beneficente dos Empregados da
Fábrica seria fechada, demissões seriam feitas, famílias seriam despejadas de suas casas e até
mesmo a água potável seria cortada. Entretanto, nada disso ocorreu. Dirigiram-se para
Votorantim repórteres do Jornal dos Italianos, da capital, para cobrir os fatos. O deputado Luiz
Pereira Campos Vergueiro, chefe situacionista, deu uma entrevista a esse jornal e defendeu-se
das acusações feitas por Pereira Ignácio e pelos civilistas de Sorocaba, de que ele instigava os
operários à paralisação. Vergueiro afirmou sua total isenção nos fatos, porém mencionou que
“já é sabido que nas ultimas eleições o sr. Pereira Ignacio forçou aquelles sessenta operários,
mais ou menos, que são eleitores a votarem contra o meu partido” (CRUZEIRO DO SUL, 17
dez 1913, p.3). Tudo leva a crer que, entre os principais motivos da greve, estava a falta de
apoio político de Antonio Pereira Ignácio a Vergueiro. A presença marcante de Luiz Pereira de
Campos Vergueiro em Sorocaba será tratada mais adiante neste trabalho.
Mais estranho ainda foi o desfecho da greve. Simplesmente, o jornal informou a retirada
da força policial que havia se dirigido para Votorantim e lá permaneceu durante os dias de
greve, sem mencionar o resultado do impasse. Mas é sabido que o diretor-gerente Antonio
Pereira Ignácio permaneceu no cargo.
Com a maior penetração das ideias libertárias na organização operária, os anarquistas
questionavam a validade das Caixas Beneficentes e mesmo das sociedades de auxílio mútuo
para a vida do operário, tendo em vista que os seus fins estavam propostos sob regime capitalista
93
e, por isso, não deveriam concentrar a ação do operariado em face das condições de vida que
lhe impõe o poder econômico. “Elas participam das técnicas sociais de conformação dos
trabalhadores à sociedade de classes, criando neles a falsa expectativa de poderem melhorar
suas condições de vida, sem afetar as relações e o custo da produção. Os anarquistas
condenavam as caixas beneficentes de empresas da mesma forma que se opunham à inclusão
do mutualismo entre as finalidades do sindicato” (SIMÃO, 1966).
Em 3 de outubro de 1890, tomou posse a diretoria provisória da União Operária, que
previamente já havia escolhido alguns membros. No dia da posse, compareceram 15 pessoas,
número aquém do esperado daqueles já aclamados. Procedendo-se a votação dos cargos, foram
eleitos: Francisco Cozzetti (presidente); Fillippe de P. Bawer (vice-presidente); Benedicto
Estevam Cordeiro (1º secretário), Francisco Henrique (2º secretário) e João Carlos Grohman
(Tesoureiro). Também tomaram posse outras pessoas que iriam fazer parte do Diretório. Foram
elas: Adolpho Osser, Antonio Joaquim Lisboa e Castro, Cesar José de Mattos, João Siegle, José
Francisco Patrima, José Maria de Oliveira, José Valio, Manuel Fontão e Olegario de
Vasconcellos. Após lavrada e assinada a ata de posse do Diretório, o presidente convidou a
todos para uma nova reunião, que seria realizada na semana seguinte a fim de tratar da
elaboração do estatuto da União. (DIÁRIO DE SOROCABA, 3 out 1890)
A União Operária representou os primeiros passos na luta operária, podendo ser
entendida como a fase embrionária do movimento operário. Ainda sobre a Societá, percebe-se,
pelos nomes das pessoas que formavam a diretoria, que havia vários estrangeiros, o que reforça
a tese de vários pesquisadores de que as iniciativas de organização operária sempre tiveram à
frente elementos estrangeiros, visto que as novas ideias vieram nas malas desses imigrantes.
Com a mão de obra estrangeira, vinham os conhecimentos profissionais e as ideias libertárias.
Quando se pedia mão de obra, não se exigia atestado de ideologia (RODRIGUES, 1969).
A disposição para a organização pelos imigrantes estrangeiros decorre de dois fatores
relevantes, a saber: as ideias revolucionárias de organização que traziam consigo e o fato de
alimentarem o sonho de melhorar de vida, então seria preciso lutar para conseguir o que
almejavam.
De forma acanhada, os operários de Sorocaba foram esboçando uma organização. Pelos
anúncios feitos pela imprensa, essas sociedades tinham como objetivo principal reunir os
italianos, em maior número, e outros estrangeiros, considerando que todos enfrentavam a
mesma situação: a distância dos parentes que ficaram nas terras longínquas, mais o sentimento
de decepção por não terem encontrado nesta terra tudo o que lhes fora prometido e terem se
ajeitado aqui como puderam. Apesar de haver, nas fábricas, emprego para todos da família,
94
inclusive as crianças, o ganho era muito pouco e não se vislumbravam muitas chances de
melhora. A reunião das pessoas era uma forma de compartilhar a saudade, as esperanças, as
alegrias e as tristezas.
Para os italianos, fazia parte de sua tradição cultural o interesse pelo teatro, pela música,
especialmente a ópera. Procurando manter essa tradição, em dezembro de 1886, membros da
colônia italiana em Sorocaba, que na época já contava com mais de 200 pessoas, fundaram a
Sociedade Italiana de Beneficencia e Divertimentos
Nova associação – Por iniciativa de um grupo de italianos aqui residentes, deve hoje
se installar uma nova Sociedade Italiana de Beneficencia e Divertimentos. Posto a
denominação – Italiana – será uma associação verdadeiramente internacional onde
individuos de todas as nações tem ingresso como socio, desde que se sujeitem ao
regimen estatuido. Com tam bons elementos de vida, não é crivel que deixe de existir
a associação dos dignos obreiros, que vão do trabalho á recreação fortalecer o espirito
para as lutas incessantes (DIÁRIO DE SOROCABA, 5 dez 1886, p.2).
Em março de 1893, também pelos italianos, foi organizada a Sociedade Musical
Italiana. Seria uma forma de manter, através da música, os laços com a terra natal. Tinham
como finalidade fundar uma banda de música para atuar nos eventos festivos da cidade.
Hontem, á tarde, na casa da rua da Ponte, n. 36, presente grande numero de membros
da distincta colonia italiana desta cidade, installou-se uma sociedade com intuito de
fundar-se uma banda de musica, a qual compor-se-á unicamente de cidadãos italianos.
A primeira directoria eleita consta dos seguintes senhores: Afonso Aiello – Presidente;
Antonio Catalano – Vice-Presidente; Gustavo Fazano – Secretario; Bononi Battista –
Thesoureiro (O 15 DE NOVEMBRO, 19 mar 1893, p.3).
Essas sociedades promoviam a sociabilidade entre os estrangeiros e os nacionais.
Algumas comemorações tinham a intenção de integração por parte dos imigrantes que
procuravam valorizar os eventos importantes para os brasileiros. Foi o caso de uma festa
programada pelos operários da fábrica Votorantim em comemoração ao aniversário da
proclamação da república, mas que teve o engenheiro da fábrica Votorantim dirigindo os
festejos, inclusive determinando os horários dos bondes que circulariam. Durante o dia,
aconteceram provas esportivas e recreativas e, à noite, houve um grande baile nas dependências
da fábrica.
Festejos no Votorantim – Explendorosos tambem os festejos que se realisaram, a 15
do corrente, no Votorantim. Outro genero, mas nem por isso menos attractivos.
Vistosos e elegantes pavilhões de murta e flores por toda a parte. – Musica excellente:
la estava a Banda italiana, dirigida pelo maestro Antonio Valeriani. – A alegria em
95
todos os semblantes e, como aqui, a maior ordem, nenhuma rixa, nenhum disturbio,
nenhuma prisão. – O grande baile, para o qual tivemos um amavel convite, realisou-
se em um vastissimo salão da grande fabrica de tecidos alli em construcção. Durou
até as 5 horas da manhã sempre com a maior animação, no meio do maior
contentamento geral. – A belleza da ornamentação do salão, rivalisava com a
amabilidade e gentileza da digna commissão dos festejos, que era incansavel para que
nada faltasse aos seus innumeros convidados. – Explendido tudo! – Transitaram na
linha de bonds do Banco União nada menos de 2.500 passageiros no dia dos festejos
(O 15 DE NOVEMBRO, 18 nov 1894, p.2).
O baile é o ponto alto da sociabilidade. O baile tem múltiplas funções: reagrupamento
das comunidades étnicas, profissionais e de bairros. Mas o baile é, sobretudo, um local de
aculturação à cidade e de encontro entre os sexos. Parece que os migrantes chegados à cidade
tinham um prazer extraordinário em dançar (PERROT, 1992).
As sociedades funcionavam mediante contribuições de seus sócios e, em contrapartida,
ofereciam divertimentos como bailes, apresentações teatrais, conferências, palestras etc.
Também socorriam seus associados nas situações de desemprego e quando precisavam de
serviço médico. Comumente mantinham um fundo financeiro do qual podiam dispor nessas
situações, o que foi muito empregado posteriormente nas situações de greves.
O imigrante, aquele que não fazia parte da terra, era visto somente como mão de obra
necessária para tocar a agricultura e, no caso de Sorocaba, as indústrias que se instalavam.
Desde logo, entenderam que precisavam se organizar para poderem ocupar um papel na
sociedade.
A organização dos operários imigrantes foi fruto das condições materiais de existência,
uma vez que muito precisava ser conquistado. Entretanto, a sobrevivência era a preocupação
maior. Por isso, as Sociedades de Ajuda Mútua eram um organismo que, como próprio nome
dizia, prestava ajuda àqueles que mais necessitavam, fortalecia os laços de união, sem perder
de vista a própria identidade. A reunião das pessoas nessas sociedades significava uma
aproximação com tudo o que fora deixado na terra distante e também uma forma de dar forças
para que suportassem a situação vivida aqui. Compartilhavam a saudade e as recordações. As
sociedades se fortaleceram, pois não restavam muitas alternativas para os imigrantes,
considerando a remota possibilidade de retorno.
Como ainda não havia uma consciência coletiva em relação às formas de trabalho, essas
sociedades funcionavam como elemento agregador e promoviam palestras sobre diferentes
assuntos. Mantinham, assim, vivos os vínculos com a terra distante, procurando sempre
comemorar as datas importantes, como a da Unificação da Itália ou a do descobrimento da
América, o aniversário do seu rei e outras.
96
20 de Setembro – A colonia italiana d’esta cidade festejou com enthusiasmo esta
memoravel data da sua historia politica. As associações aqui existente UMBERTO I
e SOCIEDADE ITALIANA DE BENEFICENCIA E MUTUOS SOCCORROS,
tomaram parte no regosijo, celebrando esta ultima uma sessão commemorativa,
proferindo n’essa occasião um bem delineado discurso, o sr. Presidente da mesma, sr.
João Cozzetti, seguindo-se sinceras saudações ás trez nacionalidades alli
representadas – Portugueza, Italiana e Brazileira. Oxalá esses regosijos sirvam de
ensejo para a consolidação da união, que é o único agente da força (DIÁRIO DE
SOROCABA, 22 set 1888, p.3).
Realizar conferências sobre assuntos relevantes era uma das características dos
imigrantes. Era uma forma de instruí-los, inculcando-lhes determinados pensamentos
ideológicos. Estava implícito o entendimento que, somente pelo conhecimento, eles se
consolidariam aqui no Brasil. Era o gérmen da educação enquanto prioridade para seus filhos
no futuro.
Em abril de 1902, foi fundada a Liga de Resistência, destinada a defender os interesses
dos chapeleiros. Nesse mesmo ano, o anarquista Benjamin Motta proferiu uma palestra na sede
social do Circolo Socialista Enrico Ferri. No ano seguinte, compareceu o também famoso
socialista Alceste de Ambrys, que fez uma conferência para os membros da classe operária.
[...] tomando a palavra discorreu larga e criteriosamente sobre o socialismo e
historiou, com todas as minuciosidades, o facto da Comuna de Paris, que tornou
memorável na historia franceza a data de 18 de março de 1871. (...) O orador foi
interrompido, por diversas vezes, com prolongadas palmas e ocupou as atenções do
audictorio durante hora e meia (O 15 DE NOVEMBRO, 26 mar 1903, p.2).
É inegável a constatação de que os primeiros a iniciar a luta pela criação de uma
organização política operária foram os “socialistas brasileiros, representantes da
intelectualidade pequeno-burguesa revolucionária” (KOVAL, 1982, p. 88). Os primeiros
Círculos Socialistas foram despontando logo após a proclamação da República, ainda no século
XIX.
A Societá Operaia Italiana di Beneficenza e Mutuo Socorso também montou uma escola
italiana para ensinar os filhos de seus associados, cujo professor era o secretario da Sociedade,
Alfredo Gonevino, que lecionava diversas matérias a cerca de trinta alunos. A escola
funcionava a rua do Hospital, nº. 7 (O 15 DE NOVEMBRO, 8 out 1893, p. 3). Ela também
mantinha a escola particular Schuola Italiana Umberto I, cuja professora era Eugenia Cotti, e
funcionava a rua Monsenhor João Soares, nº. 3 (ALMANACH DE SOROCABA 1903).
É certo que a maioria dos imigrantes que vieram para cá eram pobres em seus países de
origem, entretanto, mesmo aqueles que eram analfabetos traziam um esclarecimento sobre as
97
condições de vida. Assim, as novas ideias trazidas por eles foram lentamente introjetando nos
brasileiros um sentimento de mudança.
A formação de uma mentalidade coletiva ganhou sentido quando os imigrantes
passaram a se sentir inseridos enquanto classe social no conjunto da sociedade. Em termos
legais, os estrangeiros não eram merecedores dos direitos sociais aqui no Brasil.
Com a proclamação da República, ocorreu um fato que deu outro viés para a presença
dos estrangeiros no Brasil: o governo provisório decretou a Grande Naturalização, pela qual
seriam considerados brasileiros todos os estrangeiros que, em 15 de Novembro de 1889
residissem no Brasil, salvo declaração em contrário, feita dentro de seis meses. Os elementos
das colônias estrangeiras de Sorocaba lançaram, então, o seguinte manifesto:
Os abaixo-assinados, membros das colônias estrangeiras, convidam todos os novos
cidadãos da República Federativa para se reunir, hoje (19 de dezembro) às sete horas,
no Largo da Matriz para incorporados irem manifestar às autoridades desta cidade a
plena adesão ao governo da confederação em regozijo, pelo Magnânimo e generoso
Decreto que nos encerra num amplexo fraternal. Viva a Repúbica Federativa
Brasileira! Francisco de Souza Pereira, Manuel José da Fonseca, Francisco
Matarazzo, Francisco Cozetti, Theodoro Kaysel, Alexandre Marchisio, Domingos
Gardini, Benoit Gourdon (ALEIXO IRMÃO, 1969, p. 63).
Mesmo para aqueles que enxergavam mais longe e entendiam a necessidade de uma
união maior para uma efetiva significação social, a formação da mentalidade coletiva era algo
muito delicado em dois aspectos. Tornava-se extremamente difícil buscar significação social,
no caso dos operários, em um país de tradições profundamente elitistas e que valorizava apenas
a agricultura e, ainda, promover o convencimento dos compatriotas e operários brasileiros
acerca da necessidade de mudar as condições de vida, de trabalho e da sociedade em geral.
Mas esse convencimento esbarrava nas condições de existência, ou seja, o temor de se
perder o pouco que se tinha. Os operários temiam que essas sociedades pudessem causar a
indisposição deles com seus patrões. De início, o número de sócios era muito reduzido. Outro
fator dificultador para as Sociedades Operárias, que impedia seus avanços, era a constante
inadimplência de seus associados.
Assim, tendo o tempo como aliado, as sociedades mútuas foram cedendo espaço para
outro tipo de reunião de operários e foram nascendo as Uniões Operárias, com um fundo mais
ideológico, procurando formar a consciência de classe. Se, por um lado, as chamadas classes
dominadas buscavam a construção de um discurso combativo e que alterasse significativamente
aquela situação, por outro, a classe dominante apoiava-se num discurso que tornava a
desigualdade algo natural, contra a qual só restava a conformação.
98
A imprensa gradativamente foi opinando sobre o assunto, numa tentativa de convencer
as pessoas sobre os riscos da penetração de ideias de igualdade e conquista de direitos no seio
da sociedade sorocabana, como ficou demonstrado num editorial do jornal O 15 DE
NOVEMBRO de 1893.
O rico a quem a natureza favoreceu com seus thesouros, saberá fazer feliz applicação
do excesso de suas rendas, a fim de que o dia de amanhâ continue a vida do presente;
e o que é pobre actirar-se-a corajosamente ao trabalho, procurando encontrar na força
de seu braço o preciso pão de cada dia. A pobreza ensinar-lhe-a os preceitos da
economia, contar-lhe-a como se cortam as despezas superfluas, de maneira que em
pouco tempo elle saiba conduzir-se por entre as escabrosidades do presente, e preparar
o advento de um futuro feliz e tranquilo. O rico saberá não comprometter o seu futuro,
e o pobre saberá preparal-o (O 15 DE NOVEMBRO, 12 fev 1893, p. 2).
É interessante notar que, mesmo sem a ocorrência de uma única greve nas fábricas de
Sorocaba ou sequer menção a isso nas notícias locais, no final do século XIX, na imprensa, já
apareciam considerações sobre as greves e sobre as correntes ideológicas que despontavam,
deixando claro que, nesse tipo de movimento, o maior prejudicado, sem dúvida, seria o
operário, ou seja, numa visão desestimuladora para tal, como é possível notar na publicação do
jornal “Diário de Sorocaba”, de 1890:
As proprias gréves pódem ser muito mais prejudiciaes aos operarios do que aos
emprehendedores. Para comprehender esta verdade, basta dizer que quem possue o
capital pode passar muito tempo sem trabalhar, mas quem não o possue tem a vida
dependente do trabalho diario (DIÁRIO DE SOROCABA, 10 ago 1890, p. 1).
Esse mesmo jornal, em 1892, noticiou a prisão do Dr. Antonio Danobio, um italiano
anarquista, que estava disfarçado em trajes de operário e com o qual foram encontrados
documentos “comprometedores”. Dentre esses documentos, fora encontrado um manifesto
anarquista dirigido aos operários portugueses que o referido jornal publicou fazendo severas
críticas. Dizia o manifesto da necessidade de os operários unirem-se num movimento social e
não ficarem mais de braços cruzados. Finaliza a notícia com a opinião do jornal:
Felizmente desta vez ainda escapamos das insensatas pretensões dos inimigos da
sociedade, graças a policia; mas acreditamos que superior a acção policial a sensatez
reconhecida dos nossos operarios, sua dedicação á ordem e ao trabalho repellirão esses
conselhos perfidos e afastarão do Brazil a praga do anarchismo (DIÁRIO DE
SOROCABA, 29 nov 1892, p.2)
A iniciativa de se organizarem sociedades operárias ou próximas disso já vinha de algum
tempo antes da República, porém, antes da década de 1890, em muitos casos, o caráter
realmente classista era tênue. Por um lado, pela própria classe operária, que ainda estava em
99
formação, tendo muitas vezes as entidades um caráter muito mais de união de nacionalidade do
que de classe. E, por outro, pela ausência de uma ideologia proletária norteadora (ARAUJO
NETO, 2005).
Em 1890, funcionava plenamente a Fábrica de Tecidos Nossa Senhora da Ponte,
conhecida por Fábrica do Fonseca, em referência ao seu proprietário, porém outras fábricas se
encontravam em construção e iriam absorver número maior de operários. A chegada de
imigrantes continuava e, com eles, chegavam ideias inovadoras e norteadoras, inclusive com a
intenção de se formar um Partido Operário.
O jornal Diário de Sorocaba, em editorial, comentou que a ideia de formação de um
partido operário lançada na capital repercutiu por todo o estado e encontrou terreno fértil
também em Sorocaba. Entretanto, para o jornal, por puro desconhecimento, muitos operários
mostravam-se resistentes em aderir ao novo partido:
[...] elle não hastea bandeira de guerra contra alguem, apenas aos operarios com
concordia e união: traz o nobre e elevado fim de proteger e amparar nos limites do
justo e do honesto ao operario, que ate hoje nada mais tem sido que simples machina
de trabalho dos que exploram a sua actividade: quer eleval-o a altura que lhe compete,
esmagando os prejuizos que o tem abatido e obscurecido até hoje (DIÁRIO DE
SOROCABA, 17 ago 1890, p. 1).
O aparecimento desse Partido Operário está bem distante do ideal de organização dos
operários, talvez aí resida o empenho do jornal pela sua formação. Tratava-se de um pequeno
partido presente no Distrito Federal, em 1890-91, e tinha como líder o oficial da Armada José
Augusto Vinhaes, eleito deputado à primeira constituinte republicana (BEIGUELMAN, 1977).
Em São Paulo, foram candidatos a deputados o alferes Henrique Augusto Gonçalves Ferreira,
mecânico; Alypio Juvêncio Leite, tipógrafo; José Gregório Rodrigues Borba, chapeleiro; e
Alfredo de Freitas Gonçalves, telegrafista; todos residentes na capital.
O jornal Echo Popular (1984, p. 155) esclarecia que grande número de operários, por
“inexperiência e pouca prática dos enredos políticos”, filiou-se ao grupo do tenente Vinhaes,
entretanto, na visão dos operários, isso foi um erro, pois o próprio Vinhaes criava embaraços
para uma efetiva criação do Partido Operário.
[...] Realmente, dizemos nós, não podemos compreender como é que o cidadão
Vinhaes quer dirigir o partido operário sem nele falar nos seus artigos, ladeando a
questão, enchendo colunas inteiras do Paiz com citações de vultos que viveram há três
séculos e cujas opiniões nada têm que ver com a atualidade operária (ECHO
POPULAR, 10 abr 1890 apud CARONE, 1984, p. 155).
100
O programa do partido previa que somente operários poderiam se candidatar aos cargos
eletivos e que deveriam defender os interesses dos operários e promover medidas de interesse
da classe. Entretanto, o Partido pregava que as questões trabalhistas deveriam ser resolvidas
apenas pela diretoria do Partido, que evitaria greves e “desordens” (CAVALHEIRO, 2009,
p.25). Por esse programa do Partido, ficava nítida a pouca participação dos operários na
conquista de seus direitos. Para Edgard Carone (1984) não é o partido, mas o sindicato que
representa o órgão de aglutinação e a ponta-de-lança de luta do operariado. A razão é a
fragilidade dos partidos, que nascem e morrem.
Sobre o Partido Operário, não foi dessa vez que ele se constituiu, porém a ideia
começava a germinar entre os operários de Sorocaba. Outros setores da sociedade também
começaram a se interessar por esse tema, conforme publicação do jornal Diário de Sorocaba,
em 26 de agosto de 1890, da proposta de formação de um Partido Católico em Sorocaba pelos
padres Antonio Augusto Lessa, Joaquim Gonçalves Pacheco e Jeronymo da Silva Bellas, que
convidavam todos os católicos da paróquia para uma reunião a ser realizada na Igreja Matriz
com a intenção de se instalar o Partido Católico. O Diário de Sorocaba (2 set 1890, p. 1) não
deixou de ressaltar esse fato em suas páginas, como se constata no seguinte trecho: “Festa ...
politica - A festividade que annualmente realisa a Irmandade do Coração de Jesus, serviu este
anno em Sorocaba, simplesmente de pretexto de propaganda da igreja contra o inclyto governo
provisório da Republica.”
A igreja católica, cuja atuação era preponderante na sociedade, via escapar, lentamente,
a partir da República, sua influência, já que o novo regime defendia a ideia de estado laico.
Entretanto, não foram encontrados indícios de formação de um Partido Católico nessa época
em Sorocaba.
A presença dos operários aumentava na sociedade sorocabana e alguns termos, até então
pouco utilizados ou mesmo desconhecidos – como burguesia, capital e proletariado – foram
surgindo e passaram a ser incorporados na vida das pessoas. A busca de significação social
continuava e se intensificar entre os operários, contra os abusos dos patrões. A relação capital
e trabalho foi consolidando-se, as classes sociais foram afirmando-se e contrapondo-se, como
se constata na seguinte notícia: “Alguns operários sorocabanos, conscios da força da união,
convocam para o domingo proximo uma reunião com o fim de se organisar uma liga no
operariado desta cidade. Conseguido esse ideal só o bem advirá disso (CRUZEIRO DO SUL,
25 nov 1903, p.1).
Fora nomeada uma diretoria provisoria nesse dia. Em 10 de janeiro de 1904, foi eleita a
diretoria definitiva da Sociedade Beneficente Operária, ficando assim constituída: Presidente:
101
Pedro de Mello Pacheco, Vice-Presidente: Antonio Amancio; 1º Secretário: José Pedro de
Araujo Torres; 2º. Secretário: Benedicto Padilha; Tesoureiro: Alfredo Pinheiro; Procurador:
Benedicto Antunes; Visitadores: Antonio de Oliveira Jr., João Antonio da Silva e José Porphirio
(CRUZEIRO DO SUL, 13 jan 1904). É interessante notar que, nessa diretoria apresentada, não
se vê a presença predominante de estrangeiros. /
Enquanto se anunciava a formação da Sociedade Beneficiente Operária e logo após a
sua constituição, o jornal “Cruzeiro de Sul” abriu espaço para missivistas, que quase sempre
utilizavam pseudônimos ou apenas se nomeavam como “Um Operário”. Nesse espaço, teciam
comentários sobre o papel do operário na sociedade e sobre a importância das sociedades
operárias.
Numa longa carta, como de costume, o autor salientava as vantagens da “união operária”
e descartava o temor de muitos operários que “tem medo de unirem-se, dizendo que os patrões
os olharão como inimigos”. Afirmava que a sociedade iniciada tinha como finalidades a
beneficência e a instrução e que nada poderia fazer contra os patrões, mas lançava críticas
ferozes às ideias socialistas, como se vê no trecho reproduzido a seguir:
Nesta epocha em que o deleterio socialismo, vae solapando o operariado, sugando aos
poucos sua lealdade no serviço, vemos repudiadas todas as ideias de união. O operario
teme as consequencias de um socialismo mal entendido, de um anarchismo filho da
dynamite e do assassinato. É preciso que os dois mil e tantos operarios de Sorocaba
comprehendam para que devem se unir. É preciso que a associação repudie o
anarchismo e o socialismo (CRUZEIRO DO SUL, 27 fev 1904, p.1).
O autor prosseguiu afirmando que a união dos operários não se conseguiria do dia para
a noite, pois tratava-se de um trabalho árduo e demorado. Para isso, esse tema deveria ser
divulgado pela imprensa, os filhos deveriam ser instruídos sobre ele, conferências deveriam ser
feitas para tocar mais de perto os interesses da classe: “o caracter, o dever, a perseverança, o
poder da vontade”.
Em outro artigo, intitulado Pelos operarios, o autor chamava atenção para o fato de que
o entusiasmo dos operários pelas “Uniões Operárias” estava se arrefecendo e propunha que os
seus sócios deveriam pensar no futuro, ou seja, cuidar mais de seus filhos que de si próprios.
Entendia a necessidade de se abrir uma escola onde se ensinasse aos filhos dos trabalhadores o
caminho do labor e do dever. Apontava que essa escola já fora aberta, não pela Sociedade
Operária, mas pela Loja Maçônica Perseverança III. Recomendava, então, que fosse aberta, na
cidade, uma escola que cuidasse da educação da mulher, das filhas dos operários, onde elas
pudessem aprender “desde as minudências dos temperos culinários até as etiquetas de um
banquete”. Para “fazer da menina de hoje a alegria do lar do trabalhador”. Concluía dizendo:
102
“cuidemos da educação dos nossos filhos, de nossas filhas, de nós próprios e seremos felizes –
o nome OPERARIO ser-no-á uma honra ” (CRUZEIRO DO SUL, 16 jul 1904, p.1).
Num outro artigo, publicado pelo mesmo jornal, e assinado por “Um operário”, o autor
discorre sobre os efeitos do Anarquismo para o operariado. Com certa dose de exagero, afirma
que o operário anarquista quer lançar uma bomba na fábrica onde trabalha, porém, com essa
atitude, lança na miséria muitas familias, aniquilando a força da indústria, fazendo com que os
industriais mais se armem contra as classes trabalhadoras. Então, aconselha os operários,
desprezando a capacidade de discernimento deles, como se vê a seguir:
Torna-se necessário que o operário o homem do trabalho seja o mais fiel executor das
ordens superiores, seja o amigo e não o inimigo do industrial, que o operario torne-se
o confidente do patrão. [...] A industria crescendo, enriquece ao proprietário que por
sua vez paga melhor e pontualmente seus empregados. Si, ao contrario, a mão do
operario anarchista arruina a fabrica, anniquila-se tudo – o prejuízo soffrido pelo
proprietário reflecte-se na falta de pão para os filhos dos pobres que na fabrica
trabalhavam (CRUZEIRO DO SUL, 2 nov 1904, p.1).
A leitura desses artigos pode levar a crer que foram escritos pela mesma pessoa,
provavelmente nem fosse um operário que labutava nas fábricas, pois o discurso mostrava-se
doutrinador, reforçando a necessária obediência do empregado e ressaltando os riscos que ele
corria ao tentar indispor-se com seu patrão.
O jornal Cruzeiro do Sul, por sua vez, mantinha uma posição democrática, abrindo
espaço para todas as “classes” e figurando como defensor da causa operária, já que lhes dava
voz e também não entrava em atritos com os industriais, pois nenhuma linha contrária ou
desrespeitosa para com os donos das fábricas fora escrita por esse jornal.
Por ocasião do primeiro aniversário de fundação da Sociedade Beneficente Operária,
foi idealizada, por seus membros, a realização de uma grande festa no dia 1º de janeiro de 1905.
O que, de fato, foi feito.
Às 4 horas da manhã, a Banda Musical Sete de Setembro União Operária percorreu as
ruas principais da cidade. Ao meio dia, saiu da sede social uma comissão de sócios com essa
mesma banda de música e juntaram-se à Banda Santa Rosália. Às 13 horas:
O estandarte da sociedade foi levado procissionalmente até a matriz, por um grupo de
meninas, onde foi benzido. [...] A noite organizou uma marche aux flambeaux, indo a
sociedade cumprimentar as auctoridades, imprensa, pessoas gradas e maçonaria. [...]
A sociedade que começou com poucos socios já tem em seu gremio mais de 200
operarios e há uma corrente de sympathia que tende a attrahir muitos mais
(CRUZEIRO DO SUL, 4 jan 1905, p.2).
103
Com um programa extenso, os membros da Sociedade Beneficente União Operária de
Sorocaba tiveram visibilidade, mostraram-se simpáticos a todos os setores da sociedade,
promoveram a diversão para os sócios e o conhecimento da população ao percorrem as ruas
com as bandas de música e estandarte. Valorizaram a Igreja e ainda consideraram outros
segmentos da sociedade: imprensa, autoridades, maçonaria etc. Nenhum segmento fora
esquecido. Era uma forma de cair no agrado de todos.
Entretanto, no decorrer do ano de 1905, a Sociedade Operária foi apresentando
problemas de esvaziamento. As assembleias marcadas deixam de ser realizadas por falta de
sócios e as finanças ficaram abaladas, consequência da falta de pagamentos das mensalidades.
Nos jornais, apareceram convocações para assembleias que não se realizaram.
Em fevereiro desse ano, somente numa 3ª convocação é que fora realizada a assembleia
para preenchimento dos cargos vagos. É provável que o esfriamento por parte dos operários em
participar das Uniões Operárias tenha ocorrido pois, em 1905, as fábricas de grande porte
estavam aumentando sua produção e exigindo maior número de operários, consolidando o
sistema capitalista com o máximo de produção, diminuição de custos e, consequente, aumento
da exploração. Nesse aspecto, os salários sofriam, cada vez mais, um achatamento e,
exatamente por essa situação de exploração, foi tornando-se cada vez mais frequente a greve
como forma de conquistar direitos. Agora a União Operária precisava lutar pelo operário, não
era mais possível oferecer somente recreação e ajuda mútua. É a consciência de classe para si.
A decisão pela greve não era fácil, pois muitos aspectos precisavam ser considerados
pelos operários. Com famílias quase sempre numerosas, o operário pesava a oportunidade de
poder melhorar de salário e proporcionar uma vida melhor para os seus e o risco de perder o
pouco que tinha numa greve mal-sucedida. Os operários passaram a pressionar o governo no
sentido de estabelecer uma legislação trabalhista consistente favorável à classe operária, como
se observa na seguinte publicação:
Uma numerosa commissão da federação Operaria do Brazil procurou o sr. Ministro
do Interior e solicitou o seu apoio para ser reduzido a 8 horas do trabalho do
operariado. O sr. Ministro respondeu que a causa era sympathica ao governo e que o
congresso vae, naturalmente tomal-a em consideração (CRUZEIRO DO SUL, 7 jun
1905, p. 2).
Essas ligas e associações operárias foram proliferando-se, algumas com vida efêmera,
outras mais longevas. Assim, no início da primeira década do século XX, entre sociedades
beneficentes, recreativas e de cunho político voltadas para o operariado, atuavam em Sorocaba
as seguintes:
104
Votorantim Athletic Club; Liga de Resistencia; Societá Operaria Italiana de
Beneficenza e Mutuo Soccorso; Real Sociedade Beneficente Portugueza Vasco da
Gama; Sociedade Beneficente Protectora dos Chapeleiros; Sociedade Beneficente do
Votorantim; Sociedade Beneficente dos Operarios Sorocabanos; Circolo Socialista
Enrico Ferri (ALMANACH DE SOROCABA, 1904, p.124).
Em outubro de 1911, após uma greve iniciada pelos operários da fábrica Nossa Senhora
da Ponte e posterior adesão de outras fábricas, pela redução da jornada de trabalho para 10 horas
diárias e da qual saíram vitoriosos, os operários animaram-se e criaram a Liga Operária
Sorocabana, sob a bandeira de união e solidariedade.
Apesar de ter sido criada pelos tecelões, a referida liga estava aberta a todas as
categorias, como pedreiros, marceneiros, chapeleiros e outros. De início, estavam filiados à
Liga Operária os empregados das fábricas Votorantim, Santa Rosália, Santa Maria, Nossa
Senhora da Ponte e outras menores.
Domingo último, em presença do festejado tribuno, Dr. Passos Cunha e de mais de
700 pessoas foram lidos a approvados os estatutos da mesma por entre aclamações
dos operários, ficando assim fundada a Liga Operaria de Sorocaba. Foram aclamados
para reger a mesma os nossos companheiros: P.S. Oliveira Mesquita e Antonio
Marques, sendo o primeiro para o cargo de secretário e o segundo de thesoureiro.
Ficou deliberado que cada fabrica fosse representada por trez pessoas sendo as de
tecidos e chapelaria onde tambem trabalham mulheres representadas por dois
operarios e uma operaria representando as suas companheiras (O OPERARIO, 24 set
1911, p.2).
Há de se salientar que esse fato se reveste de um ineditismo ao incluir a presença
feminina entre os representantes da classe operária. Considerando-se a época, início do século
XX, foi um grande avanço. Nem sempre a fundação de uma associação anulava outra: elas
coexistiam num regime de relativa cooperação. Suas atividades tendiam mais às ações de
beneficência e mutualismo, bem próprias daquele tempo.
A união dos operários era entendida por eles como a defesa de seus interesses contra a
exploração dos capitalistas. Os baixos salários, a longa jornada de trabalho, o emprego da mão
de obra de mulheres e crianças, além do tratamento desumano que prevalecia nas fábricas em
geral, permitiu aos operários a compreensão de que os seus interesses eram antagônicos aos
interesses da burguesia. Assim, na tese sustentada por Karl Marx,
[...] as condições econômicas transformaram inicialmente a massa da população em
operários. O domínio do capital criou para essa massa uma situação idêntica e
interesses comuns. Desta forma, essa massa já é classe em relação ao capital, mas
ainda não o é para si própria. Na luta... essa massa se une se constitui como classe
para si. Os interesses por ela defendidos tornam-se interesses de classe (MARX;
ENGELS, T.4 apud KOVAL, 1982, p.137)
105
O fortalecimento da organização operária assentou-se em três instrumentos
fundamentais: as diferentes formas associativas, que levaram à consolidação dos sindicatos, a
imprensa operária, enquanto órgão disseminador, e as escolas, responsáveis pela valorização
do homem.
Isso é revelado, em primeiro lugar, no crescimento da consciência de classe: a
consciência de uma identidade de interesses entre todos esses diversos grupos de
trabalhadores contra os interesses de outras classes e em segundo lugar, no
crescimento das formas correspondentes de organização política e industrial [...]
sindicatos, sociedades de auxílio mútuo, movimentos religiosos e educativos,
organizações políticas – periódicos – além das tradições intelectuais, dos padrões
comunitários e da estrutura da sensibilidade da classe operária (THOMPSON, 2012,
p. 17).
Dessa forma, o movimento operário foi assumindo novos contornos, e os trabalhadores
das fábricas foram se assumindo enquanto classe operária.
106
2 A GRANDE IMPRENSA E A IMPRENSA OPERÁRIA EM SOROCABA
O povo sem – imprensa – é o corpo sem vida, a razão
sem palavra e acção sem liberdade”.(O ARAÇOIABA, 16 set 1866)
Este capítulo tratará da imprensa, entendendo-a como um veículo de informação
importante de uma época, porém de manipulação de interesses diversos. A imprensa, ao retratar
uma época, seja por qual lentes for, não fica alheia à realidade histórica na qual está inserida.
Tendo o movimento operário como ponto central, serão discutidos o papel exercido e a visão
da imprensa empresarial, chamada grande imprensa, quase sempre representativa dos interesses
patronais, e a atuação da imprensa operária, como um dos elementos fundamentais para a
consolidação do movimento operário. O jornal permite ler a cidade.
Mais recentemente, estabeleceu-se um consenso entre os historiadores e pesquisadores
sobre a relevante contribuição da imprensa enquanto fonte documental para compreensão da
história local e da própria história da educação brasileira. Fernando de Azevedo chegou a
reconhecê-la adjetivando-a como “recurso formidável” para a divulgação e disseminação das
novas ideias educacionais em 1932, como se constata no excerto reproduzido abaixo:
A consciência do verdadeiro papel da escola na sociedade impõe o dever de concentrar
a ofensiva educacional sobre os núcleos sociais, como a família, os agrupamentos
profissionais e a imprensa, para que o esforço da escola se possa realizar em
convergência, numa obra solidária, com as outras instituições da comunidade. Mas,
além de atrair para a obra comum as instituições que são destinadas, no sistema social
geral, a fortificar-se mutuamente, a escola deve utilizar, em seu proveito, com a maior
amplitude possível, todos os recursos formidáveis, como a imprensa, o disco, o
cinema e o rádio, com que a ciência, multiplicando-lhe a eficácia, acudiu à obra de
educação e cultura e que assumem, em face das condições geográficas e da extensão
territorial do país, uma importância capital (MANIFESTO DOS PIONEIROS DA
EDUCAÇAO NOVA, 1932).
De acordo com Capelatto (1988), a imprensa tornou-se um manancial dos mais férteis
para conhecimento do passado, pois possibilita ao historiador acompanhar o percurso dos
homens através dos tempos. O jornal, ainda que sob suspeição, considerando suas limitações e
verdades pessoais de quem escreve, contribui para o preenchimento de lacunas na história, pois
registra o cotidiano de uma sociedade, atua como um arquivo do cotidiano. Sua importância
pode ser encontrada também por contribuir com os estudos da sociedade, como um valioso
instrumento de orientação coletiva.
O Jornal é um modo de conhecer a cidade e seus habitantes. Segundo Campos (2012),
trabalhar no “rastro de velhos jornais” pode ser promissor para garimpar aspectos da vida
107
cotidiana de um determinado período. Enfim, o jornal permite ler a cidade e atribuir-lhe um
significado histórico num dado tempo, resgatando os seus sujeitos sociais. Num período da
história em que os meios de comunicação eram praticamente inexistentes, a imprensa
desempenhou papel de fundamental importância na constituição de comunidades de leitores
(BARREIRA, 2002). Essa preocupação foi observada na sociedade de Sorocaba conforme
procedimento adotado pelo Gabinete de Leitura nessa direção.
No intuito louvavel de derramar a instrucção por todas as camadas sociaes, o gabinete
de leitura Sorocabano acaba de dar um passo que muito o honra aos seus
mantenedores. Franqueou áquelles que, por falta de meios não pódem comprar livros
ou ser assignantes, a sua selecta e importante bibliotheca, a qual está aberta das 4 as 6
horas da tarde, em todos os dias (YPANEMA, 25 abr 1872, p.3).
O aumento de uma comunidade letrada representava o ingresso à modernidade, daí a
fundação do Gabinete de Leitura e o surgimento de tipografias e jornais em Sorocaba,
procurando estender a instrução para todas as camadas da sociedade.
2.1 A grande imprensa em Sorocaba
No final do século XIX, Sorocaba se inseriu num novo ciclo econômico, que nada
lembrava o vivido até então. Sob a égide da indústria e do avanço tecnológico, a feira de muares
não tinha mais espaço numa sociedade que se inscrevia num modelo moderno de viver. Na
mesma esteira das fábricas de tecidos vieram tantas outras fábricas, como as que produziam
sabão, cerveja, chapéus, velas etc. O comércio aumentou e se diversificou para atender aos
novos grupos sociais que se formavam.
O crescimento populacional era defendido pelos grupos liberais como propulsor de um
progresso que não cessaria tão rapidamente. Os dados estatísticos atestam esse aumento
populacional. Pelo censo de 1870, a população de Sorocaba era composta de 13.999 habitantes.
Em 1890, a população cresceu para 17.068 habitantes. Em 1920, são contados 39.586” (PINTO
JR. 2003).
Assim, grande parte dos jornais sorocabanos publicados nas duas primeiras décadas do
século XX (re) produziram a imagem da Manchester Paulista. Defendendo as concepções das
classes dominantes brasileiras, amalgamadas, muitas vezes, a outras vozes, grande parte da
imprensa local, nos seus discursos, não poupava elogios aos capitalistas e administradores
108
públicos, apontados como os responsáveis pelo progresso material, técnico e social de Sorocaba
(IDEM, 2003).
A imprensa sorocabana intensificou a propaganda sobre o potencial da cidade para
futuros empreendimentos industriais, a exemplo do publicado no Almanaque Ilustrado de 1914.
Apresentava as melhores qualidades da cidade e, principalmente, evidenciava a mão de obra
abundante e habilitada para qualquer tipo de atividade, silenciando-se com relação ao preço que
o operário pagava para se ver empregado.
Sorocaba, sendo hoje uma cidade perfeitamente saneada, com admirável rêde de agua
e exgottos, optima iluminação electrica, possuindo magnifica linha de telefones e de
telegrapho nacional, com linha de automóveis, fazendo-se aproximar deste modo dos
municípios que lhe são adjacentes, gozando de um clima magnifico, distando apenas
três e meia horas da Capital, e muito chegada ao Ipanema, - onde se encontra talvez a
mais rica mina de ferro do mundo. Sorocaba offerece por tudo isso, aos srs.
capitalistas que desejam bem empregar os seus recursos monetarios em novas e
desconhecidas industrias, campo vasto de exploração, pela facilidade que há em obter-
se força motriz e ainda por que aqui se encontram operários habilitados para qualquer
ramo de indústria (ALMANACH ILLUSTRADO DE SOROCABA, 1914, p. 238).
Anterior a essa época, a imprensa já se fazia presente em Sorocaba, com períodos de
maior intensidade e outros nem tanto. Segundo o Almanaque de Sorocaba 1903 (p. 81) “a esta
cidade cabe a gloria de ter sido a primeira do estado de S. Paulo, com excepção da capital, onde
rebentaram os primeiros raios de luz do invento de Guttemberg”. O primeiro jornal publicado
no interior de São Paulo foi O Paulista, em 1842, jornal oficial do governo revolucionário do
Brigadeiro Rafael Tobias (revolução liberal). No ano seguinte, 1843, saiu o Ypanema, que
balizava sua conduta jornalística pela máxima do marquês de Maricá: “O homem mais sabio hé
necessariamente o mais religioso”.
Tanto O Paulista como Ypanema tiveram vida curta, ficando uma lacuna por quase nove
anos. Somente em 8 de fevereiro de 1852, apareceu o primeiro número do jornal O Cometa que,
em seu cabeçalho, já explicitava seu posicionamento apoiado pelo “art. 179 §IV da Constituição
do Império (1824)”:
Todos podem communicar os seus pensamentos por palavras, escriptos e publical-os
pela imprensa, sem dependência de censura com tanto que hajão de responder pelos
abusos que commetterem no exercicio deste direito, nos casos e pela forma que a Lei
determinar.
Nesse mesmo ano, foi criado O Defensor, em oposição ao O Cometa, impresso pela
Typographia Constitucional e cujo primeiro número fora publicado em 27 de agosto, com sua
divisa explicitada em francês “La defense et le plus sacrê des droits, et elle deviant quelque fois
109
le plus saint des devoirs, ou de L´homme envers lui mème ou l´home envers la societè – (Garnier
Pagés).” Esses dois jornais tiveram vida curta.
Em 1856, criou-se O Monitor, impresso na tipografia de Joaquim Leme de Oliveira
Cesar e que também circulou por pouco tempo.
Após dez anos de ausência de jornal circulando em Sorocaba, em setembro de 1866,
passou a ser publicado O Araçoyaba, impresso pela Typographia Constitucional e que teve
circulação até março de 1867, num total de 24 edições, publicado semanalmente, sempre aos
domingos. Estranhamente, não apresentava o nome de nenhum editor responsável, mas é sabido
que pertencia a Luis Matheus Maylasky. Em sua primeira edição, o jornal declarou que sua
pretensão era “estudar as necessidades” do município, e “propugnar pela satisfação delas”.
Tinha consciência de que a sua missão seria árdua, posto que dizer a verdade seria a conduta
adotada, porém a “verdade cria desafetos”. Apresentava-se como “um auxiliar ao comercio e a
agricultura, sem envolver-se nas lutas de partido” (O ARÁÇOIABA, 16 set 1866, p.1). Esse
posicionamento de aparente isenção política é explicável devido à necessidade do jornal de ter
bons relacionamentos com todos os segmentos da sociedade, entenda-se os mais ricos.
Das páginas desse jornal é possível delinear aspectos da sociedade sorocabana de então
e acontecimentos importantes da vida do país, como a Guerra do Paraguai. Sobre o conflito,
foram dispensadas várias edições, onde teciam duras críticas à condução da guerra pelos
generais brasileiros, como se observa no trecho reproduzido a seguir:
Há dous annos que nossos chefes estão reduzindo nosso exercito como se fosse
verdadeiros emissarios de Lopez, há dous annos que os thesouros do Brazil, estão
s’exhaurindo, há dous annos finalmente que estão dando provas de imbecilidade ou
trahição, e ainda são conservados em seus postos?!... A nação brazileira é atrahiçoada
e entregue á Lopez ou por seu governo, ou por sua côrte (O ARAÇOIABA, 21 out
1866, p. 3).
Era recorrente a reprovação do jornal quanto à forma violenta como era feito o
recrutamento de soldados e bastante estimulado o alistamento voluntário para a guerra.
RECRUTAS MARTYRISADOS – No dia 13 de Dezembro forão recolhidos á cadêa
á ordem da autoridade policial 8 recrutas vindos de Itapetininga: estes desgraçados,
pois é o nome que melhor lhes cabe, sahirão de sua cidade encorrentados e algemados
e assim forão recolhidos à cadêa tendo já as mãos em deploravel estado de
entumecimento, tiritando por causa da grande chuva que tomarão em caminho (O
ARAÇOIABA, 6 jan 1867, p. 2).
Esse periódico mostrava-se grande incentivador da cotonicultura na cidade, destacando
sempre as vantagens desse cultivo para o crescimento de Sorocaba. Segundo Geraldo Bonadio
110
(2004), o importante desse primeiro jornal de Maylasky é que ele centrava suas preocupações
com a modernização do setor agrícola na cotonicultura: condenava as queimadas e insistia nas
vantagens de arar e adubar a terra, destacava os ganhos que os plantadores obteriam se, ao invés
de comercializar o produto antes de ser manufaturado, fizessem-no após a sua industrialização,
e procurava incentivá-los a se unirem num esforço cooperativo com aquele fim.
As notas contidas na seção denominada “Noticiário” retratavam a vida de Sorocaba e
seus costumes. Denunciavam a falta de conservação das ruas; a poluição das águas do rio
Sorocaba, utilizado para dar de beber aos animais, pelas lavadeiras de roupas ou preparadores
de couro, o que comprometia a qualidade da água do rio; faziam críticas, ainda, a alguns
comerciantes que deixavam carnes e outros alimentos à mercê das moscas e outras sujeiras
expostas nas portas dos estabelecimentos. Uma dessas notas dizia o seguinte:
Cumpre que a autoridade competente proceda com todo o rigor da lei contra os
individuos que, na margem do rio Sorocaba, costumão mandar, por escravos ou
pessoas de sua casa lançar materias excrementicias. Semelhante abuso é pernicioso á
salubridade publica (O ARAÇOIABA, 18 nov 1866, p.3).
A escravidão negra, uma realidade da sociedade sorocabana de então, figurava nas
páginas d’O Araçoiaba apenas na forma de anúncios de venda de escravos, de fugas e de delitos
cometidos por escravos. Não se depreendia nenhum posicionamento ideológico pela
manutenção ou pela abolição da escravidão. Entretanto, as notícias e anúncios sobre a
escravidão esbarram na visão da historiografia local de Sorocaba, que procura dar uma
conotação mais amena para a escravidão na cidade.
Foi aberta e encerrada no dia 10 do corrente a 2ª. Sessão do jury deste termo, tendo
entrado em julgamento o processo em que é reo, o preto Jeronimo, escravo do capitão
Manoel Ribeiro d’Arruda, pronunciado no art. 193 do codigo penal, por ter
assassinado á um seu parceiro de nome Francisco. O reo foi condenado, por
substituição de penna, á soffer cem açoites e a trazer ferro no pescoço por espaço de
seis mezes (O ARAÇOIABA, 16 dez 1866, p. 1).
Nas 24 edições d’O Araçoiaba é possível constatar que foram publicados oito anúncios
que se repetiram em várias edições sobre fuga de escravos, além daqueles de venda de escravos,
o que demonstra que não havia uma relação pacífica entre senhores e escravos, como quer fazer
crer a história de Sorocaba.
Sobre esse assunto, reserva-se aqui o direito a uma digressão. A historiografia de
Sorocaba apresenta com exagerado orgulho e sinônimo de avanço o fato de a escravidão negra
ter sido extinta em Sorocaba antes mesmo da Lei Áurea. O autor sorocabano Porfirio Rogich
Vieira (1988), em seu livro Sorocaba não esperou o 13 de maio, relata o fim da escravidão em
111
Sorocaba antes da Lei Áurea, de maio de 1888. Esclarece esse autor que, pela lei de 1885, em
vigor a partir de 30 de março de 1886, os senhores de escravos eram obrigados a fazer a
matrícula de seus escravos, sob pena de serem libertados aqueles não apresentados às
autoridades. Foram matriculados 940 escravos.
Por iniciativa da Loja Maçônica Perseverança III, constituiu-se a Comissão
Emancipadora, que tinha por objetivo convencer os donos de escravos a libertar seus escravos.
Convocados pela Comissão Emancipadora para uma reunião, em 25 de dezembro de 1887, os
senhores de escravos de Sorocaba resolveram dar a liberdade a todos os escravos, com a
condição de servirem seus senhores por mais um ano. Em 13 de maio de 1888, a Lei Áurea
concedeu a liberdade imediata (SOROCABA 350 anos, 4 jul 2004). A antecipação fora de
apenas 4 meses e ainda condicionada a um ano de trabalho.
Bem antes da Lei Áurea, com frequência, os jornais de Sorocaba publicavam alforrias
concedidas por “bondosos” senhores de escravos. Levando-se em conta que naquele tempo a
escravidão era algo absolutamente normal, não deixava de ser um ato de bondade as
manumissões, mesmo com determinadas condições. Tal prática pode ser exemplificada com o
seguinte trecho, publicado em 1881: “Em data de 2 do corrente a sra. D. Maria Antunes de Jesus
Soares deu carta de liberdade para gosal-a depois de sua morte, a seu escravo Bernardino, vulgo
Bernardo, de 16 annos filho de Catarina” (DIÁRIO DE SOROCABA, 11 fev 1881, p. 2).
Prosseguindo na trajetória da imprensa em Sorocaba, surgiu, em fevereiro de 1870, o
jornal O Sorocabano, que mais tarde, em 1º de setembro de 1872, seria substituído pelo O
Sorocaba, e circulou até final de 1873, tendo como redator Julio Ribeiro, que posteriormente
teve notoriedade por ter escrito o romance A carne. Reconhecidamente um homem muito a
frente de seu tempo, esse redator, além de grande incentivador da indústria em Sorocaba,
mostrava-se preocupado com questões sociais e foi um dos precursores em defender o direito
dos protestantes de serem sepultados nos cemitérios católicos.
Nesse mesmo tempo, passou a ser publicado O Americano, redigido por Francisco de
Paula Oliveira Abreu, cujo primeiro número foi publicado em 12 de julho de 1871 e prosseguiu
até o ano de 1873. Também em 1872, iniciou-se a circulação de O Ypanema, segundo jornal
com o mesmo nome, que teve uma existência mais longa em relação aos demais: circulou por
oito anos. Inicialmente, esse jornal teve como redator principal Antonio José Ferreira Braga e,
após agosto de 1876, passou a exercer essa função Manoel Januário de Vasconcelos.
Registrou-se, no dia 7 de outubro de 1874, o aparecimento da Gazeta Commercial, num
formato maior e cujo redator era, novamente, Julio Ribeiro. Essa folha, que de início era
publicada duas vezes por semana, a partir de junho de 1875, teve seu tamanho reduzido e passou
112
a ser diária, mas não teve longa duração. Abordava temas interessantes, polêmicos e até temidos
para a época, numa demonstração de novos tempos e mudança da sociedade, tempos de ruptura.
Dentre esses temas estava o espiritismo. O redator chegou a mencionar a publicação do Livro
dos Mediuns, de Allan Kardec, afirmando que, nessa obra, a “teoria do espiritismo foi alçada à
categoria de ciência”, porém alertava:
Não aconselhamos, porem, o estudo desta philosophia aos caracteres facilmente
impressionaveis: não seria para admirar que a leitura dos livros de Allan Kardec,
começando no aconchego do gabinete de estudo fosse acabar em uma sala do Hospicio
de Pedro II (GAZETA COMMERCIAL, 25 jul 1875, p.2).
Em 1875, iniciou-se a publicação de A Voz do Povo que, em 10 de junho do ano seguinte,
alterou sua denominação para Colombo e perdurou até 1878. Era publicado duas vezes por
semana, seu editor era Domingos Costa e Silva e anunciava-se da seguinte forma:
Não é totalmente um novo gladiador que se apresenta na arena do jornalismo, é um
substituto ao jornal A Voz do Povo, que publicava-se nesta cidade. [...]. Alheio
completamente á politica, jámais se envolverá em questões dessa ordem, entretanto
não entenda-se por isso que o Colombo decline do direito [...] de sensurar com energia
qualquer funccionario publico, mesmo da mais elevada hierarquia, que afastar-se do
caminho do dever e da letra da lei, seja elle liberal, conservador ou republicano. [...].
O edictor responsavel desta folha e único proprietario da empresa é Domingos da
Costa e Silva (COLOMBO, 10 jun 1876, p.1).
Em agosto de 1877, apareceu o Votorantim, com a intenção de registrar o cotidiano da
vila operária de mesmo nome. Seu redator era Fidelis de Oliveira. Em fevereiro do ano seguinte,
surgiu a Gazeta de Sorocaba, que teve como redator principal Gaspar da Silva. Entretanto, não
há dados precisos sobre a duração dessas duas folhas.
Somente a partir de 1880, a imprensa sorocabana começou a prosperar, passou a ter
presença mais marcante no cotidiano da cidade e os jornais começaram a circular com mais
regularidade. A imprensa representava o ingresso à modernidade e, de acordo com Heloisa de
Faria Cruz (2000, p. 81), fazer imprensa nessa época virou moda, tendo em vista que
a agilidade da imprensa, seu caráter mais aberto e democrático a transformaram em
um campo muito mais propício à renovação da cultura letrada do que da produção
ficcional. No espaço da imprensa, com a intromissão de “escritas” e olhares de setores
e grupos sociais anteriormente alheios aos seus códigos, a cultura letrada tradicional
teve que enfrentar inúmeros desafios, colocando-se como um campo privilegiado da
disputa cultural no período. Nesse espaço, os caminhos e embates do processo de
disputa que configuram a metrópole ganham maior visibilidade. Ampliando
socialmente seus circuitos de difusão, renovando sua linguagem e seu estilo, a
imprensa ganha a cidade.
113
Em novembro de 1880, surgiu o Diário de Sorocaba, cujo proprietário e redator era
Manuel Januário de Vasconcelos. Circulou até abril de 1893. Esse jornal se mostrava reticente
com determinados assuntos próprios da modernidade, como o espiritismo. Para essa folha, o
espiritismo se configurava via de regra como uma prática fraudulenta e que levava seus adeptos
a atos de insanidade (CARVALHO, 2007).
Na última década do século XIX, no mês de novembro de 1892, apareceu o jornal O 15
de Novembro, na qualidade de apoiador da administração municipal, ou seja, situacionista. No
mês seguinte, também passou a circular o jornal A Voz do Povo, que figuraria como opositor ao
primeiro.
O 15 de Novembro anunciava que o seu programa seria:
lutar á medida dos nossos meios e recursos pelas idéas democraticas, censurando
aquillo que nos parecer digno de censura, não regateando encomios aos que julgamos
merecedores de nossos applausos. Procurar acclarar os espiritos em meio a confusão
que ora reina, empregando todas as forças possíveis para destruir as accusaçãos que
se fazem sem fundamento ao governo actual, accusação acoimando-o de culpado da
crise penosa que atravessamos, tal será o nosso fim, por isso que o titulo d’O 15 de
Novembro, já define claramente o seu programma (O 15 DE NOVEMBRO, 15 nov
1892, p.1).
Como proprietário e redator do jornal O 15 de Novembro, João José da Silva sempre
esteve muito próximo das elites republicanas da cidade, que controlavam os poderes públicos.
Assim, seu jornal foi pautado, desde sua constituição, por uma parcialidade política, cultivando
boas relações com os administradores públicos (PINTO Jr., 2003). Nessas condições, o jornal
O 15 de Novembro foi publicado entre 1892 e 1908. Sobre os temas mais polêmicos, como o
espiritismo, esse jornal assumiu uma postura mais de vanguarda, ou talvez até de tolerância
para a época.
Em 6 de dezembro de 1892, surgiu o jornal A Voz do Povo, que também se declarava
republicano e órgão “sincero dos reclames do município”.
Somos bons republicanos, mas republicanos moderados, conservadores, e opporemos
o espirito de opportunismo ao radicalismo; de republicanismo contra o jacobismo, de
politica relativa contra os principios absolutos de uma politica theorica, para que se
possa alcançar a vitoria moral e real que amanhã alegrará todos os amigos da grande
nação brasileira (A VOZ DO POVO, 6 dez 1892, p. 1).
No Almanaque Ilustrado de Sorocaba de 1914, Francisco de Camargo César, ao tratar
da imprensa sorocabana, desde o seu surgimento, assevera que o jornal A Voz do Povo, desde
o seu primeiro número, “mostrara disposições especiaes para um combate terrivel contra
pessoas distinctas da sociedade sorocabana”. Prossegue afirmando que o primeiro diretor desse
114
jornal, Bernardino Alvares, “diante da rota que tomara a Voz do Povo, cheia de
responsabilidades”, deixou o cargo que passou a ser ocupado por João Junker, que também não
resistiu por muito tempo. A direção do “mais enérgico periódico paulista cahiu então em poder
do destemido jornalista sr. Manoel Fernandes de Oliveira”. Mas, pelo seu “programa de
combate, tornara-se odiada a ponto de ser empastelada sua oficina” (ALMANACH
ILLUSTRADO DE SOROCABA, 1914, p.170). Esse jornal circulou até fevereiro de 1897,
quando foi compelido a transferir-se para a cidade de Tatuí, após seu redator ter criado polêmica
entre a oposição e o governo da cidade, a propósito do contrato de prestação de serviços de
limpeza pública que a câmara firmara (BONADIO, 2004).
Em 27 de janeiro de 1897, numa proposta bem diferente da que havia até então, apareceu
o jornal A Conquista do Bem. Tratava-se de um órgão do Partido Democrata-Socialista, dirigido
por Dario Garcia de Oliveira. Na primeira página, no espaço denominado Expediente, esclarecia
“ser o periódico de propriedade exclusiva do Sr. Dario de Oliveira que se acha à testa de tudo
quanto for referente à parte econômica do mesmo”. Anunciava-se a seguinte mensagem:
Na arena do jornalismo brasileiro, apparece hoje mais um campeão denodado que vae
caminhar na vanguarda d’esse exercito poderoso e digno que se chama operariado.
Desenrola sobranceiro pendão do socialismo e alista-se nas fileiras mais avançadas
d’esse partido de opprimidos, que, um dia hão fazer os cadafalsos tingir-se com o
sangue azul dos grandes senhores. Sem luctas titanicas, sem guerras fratricidas, o
socialismo ha-de apparecer em breve, há-de fazer acabar de ves com os tempos de
João VI, de Phylippe, a encarnação do mal, de Catharina e Carlos IX, [...] tempos
esses que são os mesmos em que vivemos, porque o fanatismo tem feito dos pobres,
escravos, e os aristocratas, dos trabalhadores, uns grilhetas! [...] O nosso lemma, o
lemma do verdadeiro socialista é: Um por todos e todos por um! (A CONQUISTA
DO BEM, 27 jan 1897, p.1).
Já no primeiro número, o redator fez um convite aos operários para uma reunião a ser
realizada no dia 7 de fevereiro, no salão do Grêmio dos Atiradores, a fim de eleger-se o diretório
do partido Democrata Socialista da cidade de Sorocaba. Tendo em vista o considerável número
de operários em Sorocaba, que representava uma nova classe social, o terreno mostrava-se
profícuo para a divulgação das ideias socialistas e posterior formação de um partido político,
como já vinha ocorrendo nos centros maiores, como São Paulo e Rio de Janeiro. Araujo Neto
(2005) assinalou que uma característica presente nos socialistas brasileiros do início dos anos
de 1890 era um certo oportunismo eleitoral, fazendo com que se criassem partidos operários
e/ou socialistas meses antes das eleições, sem ter uma base real estabelecida.
Entretanto, essa reunião não chegou a ser realizada a pedido do próprio Dario de
Oliveira que, pelas colunas do jornal A Voz do Povo, solicitou que o operariado não se reunisse,
como estava marcado, no Grêmio dos Atiradores, pois “se houvesse a reunião, haveria
115
desordem, em virtude de boatos que correm”. É difícil presumir o que realmente possa ter
acontecido nesse tempo, sobre o que seriam tais boatos. Pela imprensa, não há grandes
referências, principalmente porque alguns jornais, como o O 15 de Novembro, haviam
interrompido sua circulação, provavelmente devido ao surto de febre amarela que fustigava a
cidade de Sorocaba. O próprio operariado ainda não tinha reunido forças e maturidade para uma
organização mais efetiva que pudesse formar um partido político. É sabido, no entanto, que
Dario de Oliveira também estava envolvido no ocorrido entre Manuel Fernandes de Oliveira,
diretor do jornal A Voz do Povo, e a administração municipal sobre o contrato de prestação de
serviços de limpeza. Enfim, tudo indica que o jornal A Conquista do Bem não passou do
primeiro número e a tentativa de criação de um partido político democrata socialista não se
efetivou nessa data.
Figura 10 - Jornal A Conquista do Bem.
Fonte: Gabinete de Leitura Sorocabano.
No estertor do século XIX, ainda em 1897, apareceu a Revista Fim do século, uma
publicação política, redigida por Arthur Silva, pseudônimo de Isaltino G. Costa e cujo subtítulo
anunciava-se “em favor do Socialismo, Cosmopolitismo e Espiritismo”.
Desenrolamos a nossa bandeira, e fazemos com o desejo ardente de trabalhar pela
conquista inteira de todas as reformas que visam fins benéficos salutares a todo o
genero humano. As ideias modernas que tem revolucionado os povos no turbilhão
deste findar de século, serão tratadas e defendidas nestas colunas. Combateremos a
favor das ideias político-sociais, que buscam a solução do problema social dispensado
ao operário, liberdade e direitos. A bem do Cristianismo sob a teoria de Kardec
116
também nos propomos a pugnar. Guerrearemos os preconceitos do nativismo, como
prejudiciais à Pátria e a Humanidade. Batalharemos pela completa queda da influência
dos jesuítas, como nociva à sociedade e à família (REVISTA FIM DO SÉCULO,
1897).
Apesar de apresentar uma variedade de pensamentos, desde publicações socialistas,
textos de anarquistas, como os de Kropotkin, e publicações religiosas kardecistas, a maior
importância dessa revista, conforme esclarece Araujo Neto (2005) era fazer propaganda de
ideias novas e progressistas, numa sociedade conservadora envolvida em calorosas lutas
políticas burguesas, abrindo espaço para uma atuação política que seguiria essas tentativas
pioneiras. Esse mesmo autor esclarece que Isaltino Costa continuou escrevendo, porém voltado
para artigos sobre administração de empresas e de relações comerciais, no entanto, na chamada
Credenciais de Isaltino Costa, coletânea de trabalhos e artigos organizados pelo próprio editor
não aparece qualquer participação na militância operária e socialista.
Já no século XX, em 12 de junho de 1903, apareceu, fruto de uma dissidência do Partido
Republicano Paulista, o jornal Cruzeiro do Sul que, de início, era publicado duas vezes por
semana. Em 1907, passou a circular três vezes por semana e, no ano seguinte, passou a ser
diário. Esse jornal mantém-se até os dias de hoje.
Em 1903, as lideranças políticas de Sorocaba, que controlavam a Câmara Municipal,
lideradas por Luiz Nogueira Martins, tinham o apoio do jornal O 15 de Novembro. Os embates
políticos entre situação e dissidentes do Partido Republicano Paulista local promoveram a
constituição do jornal Cruzeiro do Sul. Esse jornal, editado pela Typographia e Papelaria
Cruzeiro do Sul e controlado pela família Pires, era dirigido por Joaquim Firmiano de Camargo.
Figura 11 - Primeiro exemplar do jornal Cruzeiro do Sul.
Fonte: Gabinete de Leitura Sorocabano.
117
Em sua primeira edição, o jornal esclarecia que não era um órgão partidário, apenas uma
folha republicana formada por uma associação de pessoas que não visavam a interesses
financeiros e nem aspiravam a posições políticas, o que não se configurou verdadeiro.
Até onde lhe fôr possivel, defenderá com independencia os direitos do povo,
garantidos pela Lei, e pugnará em pról das classes opprimidas. Não irá provocar
discussões de caracter privado, nem a ellas dará abrigo. Quando no desempenho de
nossa missão, tivermos de entrar na critica e na apreciação dos actos publicos, o
faremos na região serena dos principios, sem rancor e sem paixão. O «Cruzeiro do
Sul», ao tomar humilde posição nas fileiras da imprensa, sauda cordealmente aos seus
confrades e ao publico benevolo de quem espera favoravel acolhimento (CRUZEIRO
DO SUL, 12 jun 1903, p.1).
Esse jornal nasceu para combater os grupos situacionistas, que dominavam o poder
público de Sorocaba. Era a “trincheira” dos dissidentes do Partido Republicano Paulista (PRP)
naquele momento. Com a publicação do Cruzeiro do Sul, os leitores da cidade puderam
acompanhar um debate acirrado desses grupos antagônicos, através de seus respectivos órgãos
de imprensa. Não economizando questionamentos aos homens que governavam Sorocaba, o
jornal dos dissidentes, por duas vezes, sofreu tentativas de empastelamento de suas oficinas
(PINTO JR. 2003, p.90).
Entre 1903 e 1906, os jornais Cruzeiro do Sul e O 15 de Novembro digladiavam-se
constantemente, com acusações recíprocas tanto políticas quanto pessoais entre seus redatores,
que se desqualificavam abertamente. Ocorreu, em 1906, o congraçamento político do PRP no
estado e, imediatamente, dissiparam-se as divergências políticas também em Sorocaba. Dessa
forma, os jornais rivais passaram imediatamente à condição de situacionistas, ou seja, as
críticas, acusações e denúncias dissiparam-se. Por dois anos, os jornais O 15 de Novembro e o
Cruzeiro do Sul conviveram apoiando a administração municipal.
As duras críticas pessoais, as denúncias de abuso de poder, os supostos descasos com o
dinheiro da municipalidade foram substituídos por elogios, apoios e compromissos de
participação na administração do “bem comum”, quando a família de João José da Silva,
proprietária do jornal O 15 de Novembro, deixou de publicar seu órgão de imprensa, abrindo
espaço para que o Cruzeiro do Sul passasse a ser um jornal diário (PINTO JR, 2003, p.89).
A partir de 1906, Luiz Pereira de Campos Vergueiro foi tornando-se liderança política
em Sorocaba. Com o apoio irrestrito do jornal Cruzeiro do Sul, Vergueiro foi afirmando-se no
cenário político. Oriundo de família tradicional da história do Brasil, era neto do Senador
Vergueiro, já mencionado neste trabalho, o introdutor da mão de obra assalariada e imigrantes
118
nas fazendas. Em 1905, após exatos 15 dias de sua formatura de bacharel em Direito, foi
nomeado promotor público em Sorocaba.
Por decreto de 17 do corrente foi nomeado promotor publico desta comarca o dr. Luiz
Pereira de Campos Vergueiro. Esta nomeação não podia ser mais acertada, tanto que
veio trazer um geral contentamento ao publico sorocabano que tem visto do dr.
Vergueiro, em todo tempo que ocupou interinamente aquele cargo, um modelo de
justiça e em seus actos o exemplo de uma boa magistratura (CRUZEIRO DO SUL,
18 jul 1905, p.2).
De 1910 a 1925, atuou como deputado estadual e, em 1925, atuou como senador. Foi
prefeito de Sorocaba, de janeiro de 1926 a janeiro de 1928. Além das atribuições políticas,
sempre presente da sociedade sorocabana, Vergueiro pertencia à Maçonaria, Perseverança III,
foi diretor do Gabinete de Leitura Sorocabano e participava das sociedades filantrópicas, enfim,
participava de uma série de atividades que lhe proporcionavam visibilidade. Sempre com o
apoio do jornal Cruzeiro do Sul, Vergueiro era constantemente acusado de recorrer à fraude,
como denunciavam seus opositores. Era também acusado de recorrer à violência física contra
seus adversários (BONADIO, 2004).
Apesar de não ser consenso, entre os historiadores locais, pesa contra Campos Vergueiro
a sua posição contrária à instalação de Escolas Secundárias e Normal em Sorocaba. Atribui-se
a ele o pensamento de que, para Sorocaba, uma cidade predominantemente operária, escolas
profissionalizantes seriam mais adequadas às suas necessidades. A imprensa sorocabana,
principalmente o jornal Cruzeiro do Sul, registrou sua participação na implantação do segundo
e terceiro grupos escolares.
Por motivos não muito claros, Vergueiro passou a perseguir Luis do Amaral Wagner,
professor da escola mantida pela Maçonaria, até que ele fosse removido de seu cargo de
professor para outra cidade. Essa atitude provocou reprovação entre os maçons e culminou no
afastamento de Vergueiro da loja Maçônica Perseverança III, em 1920. Posteriormente, quando
prefeito municipal, Vergueiro questionava a subvenção destinada à Escola Noturna, mantida
pela Maçonaria, atitude que desgastou a sua imagem.
Com a ascensão de Julio Prestes de Albuquerque, antes aliado de Vergueiro, ao governo
paulista, desencadeou-se profunda mudança no comando político da cidade. As razões
determinantes da ruptura entre o governador e Luis Pereira de Campos Vergueiro, que seguia
dando as cartas no jogo político, nunca foram analisadas criticamente (CRUZEIRO DO SUL,
30.000 Edições, fascículo 5).
119
No tocante à educação em Sorocaba, tanto a educação secundária acadêmica quanto a
profissional somente surgiram após a derrubada do grupo político de Luis Pereira de Campos
Vergueiro (IDEM, p. 56).
A medida que jornais, revistas, almanaques e outros períodicos iam surgindo e afinando-
se com novos movimentos ideológicos bem próprios da modernidade, começaram a ser
discutidas as ideias do espiritismo, do darwinismo, do evolucionismo, do positivismo, do
racionalismo e, nas fileiras delas, encontravam-se as ideias socialistas, que tiveram maior ênfase
na imprensa operária, com destaque ao jornal O Operário, fundado em 1909.
As revistas e almanaques que começavam a circular de forma relativamente intensa
apresentam as sutis transformações vividas pela sociedade nos seus modos de vida e
comportamentos. Através dessas folhas e revistas podemos perceber melhor as transformações
dos modos de vida informais que constituíam a metrópole em formação (CRUZ, 2000).
Em 1903, foi lançado o Almanach de Sorocaba 1903, pela Typographia 15 de
Novembro, com o objetivo de “ [...] apresentar ao leitor um pallido reflexo de nosso alto grau
de desenvolvimento comercial e industrial”. A publicação continha, ainda, “calendarios,
anecdotas, charadas e variedades proprias ás publicações desta espécie”, além de uma parte
indicadora sobre a cidade e de notícias históricas sobre Sorocaba, sua imprensa, seus principais
edificios e instituições e anúncios de propagandas.
O objetivo dos editores do Almanaque era publicá-lo em série. No ano seguinte, foi
publicado o Almanach de Sorocaba 1904 nos mesmos moldes da publicação do ano anterior,
porém com conteúdo mais enxuto. Nos anos que se seguiram, entretanto, não houve nenhuma
outra publicação de almanaques.
Somente em 1914 foi publicado o Almanach Illustrado de Sorocaba, organizado por
Braulio Werneck e impresso pela Typographia Werneck. Apresentava-se como “repositório
histórico, literário e recreativo com ilustrações. Para conseguir realizar seu intento, o
organizador declarou que foram “enormes, enormíssimos mesmo, é força confessal-o, foram os
obstáculos que encontrei para a confecção desta obra, obstáculos creados mais pela má vontade
de alguns e pelo exagerado pessimismo de outros” (ALMANACH ILLUSTRADO DE
SOROCABA, 1914, p. 6).
O Almanaque Ilustrado de 1914 apresentava qualidade técnica superior à de seus
antecessores. Conforme cita Pinto Jr. (2003, p. 120), a publicação contava com
[...] profusão de imagens iconográficas, entremeando os textos escritos, não deixa
dúvidas da intenção do editor: apresentar publicações modernas, ilustradas, atraentes,
tanto para os leitores alfabetizados como para os não alfabetizados. Imigrantes que
120
não conheciam a língua portuguesa, homens, mulheres e crianças não alfabetizadas
poderiam ao menos ler os inúmeros clichés publicados nas produções do sr. Werneck.
Ainda segundo esse autor, a referida publicação estava em sintonia com o avanço da
modernidade capitalista que se impunha na cidade e, por esse motivo, Braulio Werneck realizou
projetos editoriais voltados para as elites e classes médias, pois nesses grupos estava a maior
parte dos leitores com capacidade de adquirir seus produtos culturais.
Nessa esteira de empreendimentos editoriais, também foi lançada, em abril de 1914, a
Revista A B C. Eram redatores da A B C Braulio Werneck, Francisco Camargo Cesar e os
professores Luiz Fleury, Luiz do Amaral Wagner e Renato Fleury. Essa revista mensal
anunciava-se de “sciencia, arte, literatura e humorismo” e
Segundo os abnegados literatos sorocabanos, o objetivo maior do projeto era fomentar
a cultura da cidade, já que raríssimas pessoas de Sorocaba cultivavam as letras e
poucos eram os que poderiam aproveitar seu tempo com o feitio artístico e civilizador
da publicação. A produção da revista literária A B C... foi cercada de cuidados
técnicos, sendo uma publicação que acompanhava os padrões de boas revistas
publicadas no Rio de Janeiro e São Paulo (PINTO JR. 2003, p. 123).
Contudo, apesar de ter uma apresentação gráfica apurada, que podia ser comparada aos
padrões gráficos de revistas editadas em São Paulo ou Rio de Janeiro, a Revista ABC não passou
do 5º número publicado.
Figura 12 - Revista A B C.
Fonte: Gabinete de Leitura Sorocabano.
121
Figura13 - Revista A B C.
Fonte: Gabinete de Leitura Sorocabano.
2.2 A imprensa operária
“Não nos esqueçamos que o exemplo é a melhor das propagandas e que não se
pode pretender dos demais aquilo que nós mesmos não fazemos”.
(Errico Malatesta)
A imprensa operária parece ser a mais importante documentação primária para a história
das classes trabalhadoras no Brasil (FERREIRA, 1978). Essa constatação tem sido aceita por
um número cada vez maior de historiadores e pesquisadores, mesmo com as devidas limitações
122
que essa fonte apresenta. Em Sorocaba, a principal fonte de pesquisa sobre a classe trabalhadora
tem sido o jornal O Operário.
A imprensa foi um dos recursos utilizados pelo proletariado brasileiro, assim como
ocorreu em outros países, para se tornar visível na sociedade. Buscavam, antes de tudo,
significação social diante de um governo que se recusava a admitir o surgimento de novas
relações de trabalho e mantinha-se atrelado ao pensamento de que o Brasil era “um país
essencialmente agrícola” e, portanto, a indústria e seus desdobramentos, como a emergência de
uma legislação trabalhista, eram secundários. Ora, se não havia suficiente incentivo por parte
do governo à indústria nascente, também os industriais não eram importunados quanto aos
encargos tributários ou a qualquer tipo de regulamentação, o que lhes permitia estabelecer suas
regras dentro das fábricas e nas próprias relações de trabalho.
A conveniência da disseminação da imprensa operária foi objeto de discussão no II
Congresso Operário Brasileiro, realizado no Rio de Janeiro, em dias de setembro de 1913. Para
os militantes, se, por um lado, a imprensa constituía o meio mais eficaz para orientar as massas
populares, por outro, era por meio dela que a classe capitalista induzia a opinião pública em
favor de seus interesses, além de influenciar poderosamente o ânimo das classes operárias,
“arrastando-as a todas as desviações contrárias a sua emancipação, a todas as torpes artimanhas
e mistificações habilmente alinhavadas por profissionais da pena, que dela fazem comércio”
(PINHEIRO; HALL, 1979, p. 196). Assim, considerando esses fatores, o II Congresso Operário
Brasileiro aconselhou
Todas as sociedades e sindicatos operários e aos trabalhadores em geral a criarem em
todas as cidades, vilas ou lugarejos, jornais de propaganda integralmente
emancipadora e a auxiliarem os já existentes e os que venham a existir, realizando a
grande obra sintetizada no espírito desta moção, no intuito de que, na possível
brevidade os trabalhadores se encontrem completamente livres (PINHEIRO; HALL,
1979, p. 197).
O papel da imprensa operária ia muito além das denúncias dos mandos e desmandos dos
patrões ou das condições precárias de trabalho. Era também um veículo de conscientização,
politização e instrução do operariado, uma forma de difundir suas mensagens. Segundo Edgar
Rodrigues (2007, p. iii), esses jornais operários refletiam uma forte convicção de que a Pátria
era invenção do capitalismo explorador e dos políticos. Destacavam, ainda, que a Igreja
Católica não era nacionalista! A sua religião era/é universal, não tinha Pátria!!!
A presença de uma imprensa reivindicatória em língua estrangeira foi marcada pela
fundação do jornal La Giustizia, em 1879, em São Paulo, obra do imigrante italiano Luigi
123
Schirone, que se servia dessa publicação para denunciar os problemas que o imigrante
enfrentava em sua nova pátria (FERREIRA, 1978).
A mensagem que pretendiam difundir necessitava de suportes para ser veiculada, razão
pela qual implantaram uma espantosa rede de jornais operários, o que contribuiu sobremaneira
para a organização da classe trabalhadora brasileira.
A mesma autora explica que a maior parte dos imigrantes chegados ao Brasil ia
diretamente para as lavouras de café. Entretanto, os mais pobres não reuniam condições de se
fixar no campo, não conseguiam a posse da terra e nem o capital para poder desenvolver o
trabalho agrícola. Isso tudo os impedia de se fixarem por muito tempo nessas ocupações e,
quase sempre, rumavam para as cidades na esperança de melhorar de vida. As cidades, em
franco desenvolvimento e crescimento, acabaram por impor um novo estilo de vida tanto para
os daqui como para os recém-chegados.
Grande parte das sucessivas levas de colonos chegados para a cafeicultura não se fixou
na zona rural. Com ou sem pecúlio formado nos serviços agrícolas os imigrantes
geralmente demandavam às cidades e povoados. O mercado de trabalho rural foi
apenas sua larga via de acesso a outras oportunidades de ação econômica,
principalmente nos núcleos urbanos que se criavam, ou cresciam, com sua expressiva
participaçao (SIMÃO, 1966, p.28).
Segundo Simão (1966), essa mobilidade dos colonos obrigava o governo a manter um
serviço de imigração subsidiada com o fim de, pelo menos, preencher as vagas deixadas pelos
colonos que seguiam principalmente para as cidades. Mas havia uma triste constatação: o nível
cultural do brasileiro era muito baixo, especialmente quando se tratava do elemento vindo do
meio rural. O próprio Monteiro Lobato em seu conto “Urupês”, publicado em 1914, no jornal
O Estado de São Paulo, fez uma afirmação controversa e trouxe à tona a situação degradante
em que se encontrava o sertanejo brasileiro “este funesto parasita da terra [...] seminômade,
inadaptável à civilização” (DIWAN, 2007, p. 101).
A conscientização, nesse ambiente de atraso cultural, deveria, antes de ser feita de modo
escrito, ser realizada de modo oral.
Dada a situação da classe trabalhadora no Brasil, o trabalho de doutrinação
desenvolvido pelos operários imigrantes, assessorados pelos intelectuais, foi dos mais
difíceis. Operários oriundos do campo e ex-escravos quase que totalmente
analfabetos, com forte tradição servil e religiosa, sem a vivência de um processo de
industrialização, inicialmente só poderiam ser conscientizados através da palavra
falada (RODRIGUES, 1969 p. 79).
124
No processo de organização operária, não se pode deixar de mencionar o papel
desempenhado pelos intelectuais. Os inúmeros jornais que surgiram por iniciativa dos
intelectuais foram armas importantes, que levaram a discussão das ideias, criaram o hábito da
leitura e prepararam o terreno para o surgimento da imprensa operária na virada do século que,
com a participação dos operários imigrantes, em outra conjuntura, iriam produzir os primeiros
frutos da luta social (FERREIRA, 1978).
Os jornais operários transformaram-se na maneira mais eficaz a propagação de ideias,
de reivindicações, de denúncias e de instrução. Apesar de ser elevado o número de analfabetos
nas cidades, tanto estrangeiros como brasileiros, o acesso ao conteúdo desses jornais estendia-
se a partir da sua leitura em voz alta para os analfabetos, aumentando, assim, o seu alcance. A
imprensa e a cidade, principalmente a partir da última década do século XIX, assumiram um
caráter plurilinguístico. Expressando a importância dos movimentos imigratórios e da ocupação
da cidade por populações estrangeiras, desenvolveu-se uma vigorosa imprensa chamada étnica
ou das colônias (CRUZ, 2000).
No ano de 1893, passou a circular, na cidade de São Paulo, o jornal Fanfulla,
inicialmente aos domingos e depois diariamente. Esse jornal impôs-se como veículo de
imprensa e teve penetração tanto nos ambientes da elite de imigrantes como no universo de
trabalhadores, não só na capital como também no interior do estado.
Sempre estiveram, à frente desses jornais, imigrantes estrangeiros que tinham mais de
militantes que de jornalistas. Interessante assinalar que, mesmo voltado para o operariado quase
sempre analfabeto, a linguagem utilizada era rebuscada, recheada de poemas acadêmicos. A
missão do jornalismo não se limitava, entretanto, a difundir ideias, a educar politicamente e a
atrair aliados políticos. O jornal não era somente um agente coletivo de propaganda, mas
também um organizador social (FERREIRA, 1978).
Num primeiro momento expressando o mutualismo das organizações da classe, mas
logo assumindo as cores anarquistas e anarcossindicalistas que predominariam no
movimento, essa imprensa articula-se em torno de formações políticas diversas,
características do movimento operário no período, tais como sociedades de auxílio
mútuo, os centros socialistas, as ligas de resistência, os sindicatos de ofício e as
federações e confederações de sindicatos (CRUZ, 2000, p. 124).
A imprensa operária no Brasil não conseguiu ter regularidade. Os jornais apareciam e
desapareciam em pouco tempo. Podia ocorrer, também, o reaparecimento de um jornal, mas
com outro título. O fator financeiro sempre pesou, pois, como praticamente não havia
publicidade, não entrava dinheiro para a sobrevivência do empreendimento. Além disso, ainda
125
há de se considerar o baixo poder aquisitivo dos leitores e que, certamente, entre suas
prioridades, não figurava a aquisição do jornal.
Outro aspecto de relevância diz respeito às perseguições sofridas por esses jornais e seus
redatores à medida que o movimento operário foi intensificando-se e fortalecendo-se. São
inúmeras as situações de destruição das oficinas, com as máquinas desses jornais danificadas
pela polícia.
Algumas características diferenciavam os jornais operários dos outros jornais
empresariais. O número de páginas podia variar, muitas vezes triplicando em ocasiões de
notícias importantes, quase sempre quando ocorriam as greves e o tamanho usualmente era o
tablóide.
Mesmo em se tratando de uma publicação periódica, o tratamento da notícia tem
carater processual, recuperando e analisando os fatos. Grande parte do espaço era
ocupado por textos e conferências, isto é, não se dava somente uma notícia sobre um
bom texto ou conferência, mas se reproduzia na íntegra o seu conteúdo. Nota-se desse
modo, do ponto de vista da diagramação, uma nítida preocupação em ocupar todo o
espaço (FERREIRA, 1978, p. 105).
À medida que o operariado foi organizando-se com as Ligas Operárias ou Uniões
Operárias, todos os movimentos e iniciativas operárias de organização praticamente contavam
com um jornal, cuja finalidade residia em politizar e informar seus membros e, sobretudo, em
organizar os trabalhadores brasileiros.
Ferreira (1978) apresenta um levantamento sobre a circulação de jornais operários,
compreendendo os últimos 25 anos do século XIX até as duas primeiras décadas do século XX,
onde apareceram aproximadamente 343 títulos de jornais espalhados pelo território brasileiro.
Desse total, 149 títulos encontravam-se no estado de São Paulo, dos quais 22 eram publicados
fora da capital; 100 títulos eram publicados na cidade do Rio de Janeiro e 7 no interior do
estado; e 94 títulos espalhavam-se pelos outros estados brasileiros. Entretanto, nesse
levantamento, não consta o jornal O Operário, de Sorocaba, que circulou de 1909 a 1913.
Conforme a referida autora, dos 343 jornais que apareceram nesse período, 60 deles
eram editados em idioma estrangeiro: 1 em alemão, 4 em espanhol e 55 em italiano. Dos jornais
editados em língua estrangeira, 53 eram publicados em São Paulo. Esses dados evidenciam o
quanto foi marcante a presença do elemento imigrante em São Paulo, especialmente na última
década do século XIX.
A imprensa operária conservava algumas características comuns como: pouca ou
nenhuma propaganda, períodos instáveis de circulação e o fato de não contar com repórteres.
126
Quase sempre as pessoas se dirigiam às redações dos jornais a fim de registrar o que ocorria
dentro das fábricas. É interessante notar que, em várias cidades, surgiram primeiro os jornais e
depois vieram as greves. Sorocaba pode ser inserida nesse dado.
Com o intuito de instruir e conscientizar os operários, esses jornais faziam amplas
divulgações sobre a realização de palestras e conferências voltadas ao interesse desse público
e, posteriormente, publicavam resumos das palestras dadas ou mesmo a íntegra delas. Havia
uma preocupação com a formação das classes trabalhadoras e o melhoramento da pessoa.
Alguns temas eram recorrentes, como: o alcoolismo, a imigração, o tratamento à infância, a
necessidade da instrução etc.
Na imprensa operária, esse novo sujeito social em emergência – o trabalhador urbano –
transformou a cultura letrada e impressa num vigoroso instrumento de organização e resistência
contra a dominação capitalista (CRUZ, 2000).
2.2.1 O jornal O Operario de Sorocaba
Vimos pregar e trabalhar para conseguir a união, a
solidariedade, o mutualismo entre os nossos operarios.
(O Operario, 18 jul 1909)
Em 1909, Sorocaba já podia ser considerada plenamente uma cidade industrial e já era
conhecida por Manchester Paulista, numa referência à cidade industrial inglesa de Manchester.
Esse epíteto foi a construção simbólica por excelência da burguesia local.
Sua economia dependia em grande parte da indústria. As fábricas têxteis Nossa Senhora
da Ponte, a Santa Rosália, a Santa Maria e a Votorantim reuniam milhares de operários, além
de dezenas de outras fábricas menores em diversificados ramos de atividades. Como exemplo,
pode-se citar a fabricação dos seguintes produtos: chapéus, cerveja, artigos de montaria,
calçados, gelo, óleos, azeite, sabão, velas, macarrão, serrarias, móveis etc., somando-se ainda
as fábricas de torrefações de café, moinhos de fubá, refino de açúcar etc.
Os donos das fábricas, especialmente das maiores, já haviam incorporado a figura de
capitalistas e esmeravam-se nas práticas capitalistas. Com mão de obra abundante, os salários
poderiam ser reduzidos, bem como as condições de trabalho poderiam ser ajustadas para o
aumento da mais-valia. A abundante oferta de trabalho não representava um fator positivo para
os operários no sentido de poderem escolher a melhor oferta, uma vez que as fábricas
127
mantinham práticas de trabalho e salários muito semelhantes, ou seja, todas procuravam
explorar ao máximo o trabalhador. Exceção feita à fábrica Votorantim, que pagava um pouco
mais que as demais, porém isso não significava que os salários pagos eram bons. Aquele cenário
não vislumbrava possibilidades de mudança, pelo contrário. Com ao passar do tempo, a
precarização do trabalho recrudescia e os capitalistas se fortaleciam, uma vez que podiam dispor
de exército industrial de reserva.
A organização dos operários, visando a mudança desse quadro, tornava-se uma
necessidade premente, principalmente num país onde a legislação de amparo ao trabalhador da
indústria era inexistente, o que fortalecia a exploração exercida pelos capitalistas. O aumento
da classe proletária em Sorocaba, o reconhecimento de sua importância pelos operários e pelos
próprios capitalistas - pois sem operário não haveria produção e, consequentemente, lucro para
os industriais – e, principalmente, as condições vividas por essa classe foram decisivos para o
aparecimento de um jornal para defender a classe operária. Eis a situação do proletariado em
1909 em Sorocaba:
Sorocaba, a Manchester do Estado de S. Paulo, conta com um numero elevadíssimo
de operários que são obrigados pelos seus patrões a trabalharem 13 e 14 horas diárias
para não morrerem de fome! Mal tratados pelos prepotentes gerentes e seus auxiliares
que são os mestres e contra-mestres bajuladores que não trepidam somente em
maltratar os seus companheiros, roubando-lhes o suor, em proveito de seus patrões,
impondo-lhes multas exageradas e, reduzindo a classe ao estado a que se acha: sem
horas para se instruir, sem horário para o seu descanço e sem liberdade de pensamento
(O OPERARIO, 31 out 1909, p.1).
Esse jornal operário, denominado O Operario, como tantos outros de diferentes cidades
dessa época, apesar de ter tido mais de três anos de circulação - o que não representa uma vida
curta, considerando-se as adversidades encontradas pelos periódicos desse tempo - não aparece
em estudos feitos por historiadores interessados na imprensa operária, por motivos que
desconhecemos e conforme já foi apontado neste trabalho.
Segundo o pesquisador Luis Carlos Barreira, nem mesmo nos levantamentos da
imprensa operária de Edgard Carone, que abrange o período de 1887 a 1944, e de Maria
Nazareth Ferreira, que abarca o período de 1847 a 1923, figura o jornal O Operario de
Sorocaba. Para esse autor, o jornal O Operario e outras folhas operárias estão à espera de
qualquer historiador interessado em libertá-los das malhas do silêncio e do esquecimento que
os aprisionam (BARREIRA, 2002).
A hemeroteca do Gabinete de Leitura Sorocabano dispõe de quase todos os exemplares
desse jornal, que estão deteriorando-se, pela ação do tempo, não por falta de cuidados.
Recentemente, em 2007, o professor da Universidade de Sorocaba - UNISO e pesquisador
128
Rogério Lopes Pinheiro de Carvalho organizou uma edição fac-similar desse jornal a partir da
coleção existente no Gabinete de Leitura Sorocabano. Devido à falta de alguns exemplares na
coleção do Gabinete de Leitura, o pesquisador recorreu ao Arquivo Edgar Leuenroth
(UNICAMP), Centro de Documentação e Memória da UNESP (CEDEM), Instituto de Estudos
Brasileiros e Biblioteca Nacional, vindo a encontrá-los somente no acervo na Biblioteca
Nacional. Porém, para a edição fac-similada, não foi possível recuperar as edições de número
12, 15 e 170 do jornal (CARVALHO, 2007, p.i).
Figura 14- Primeiro exemplar de O Operario – 18 julho de 1909.
Fonte: Gabinete de Leitura Sorocabano.
Em 18 de julho de 1909, foi veiculado o primeiro número do jornal O Operario,
impresso na Typographia Clarim da Luz, inicialmente de publicação quinzenal, porém a partir
do sexto número passou a circular todos os domingos. As assinaturas seriam de $200 réis
mensais. Anunciava-se como “Orgam de uma Associação Operaria para a defesa da Classe”,
uma vez que a chamada grande imprensa da época, particularmente o jornal Cruzeiro do Sul,
não ouvia o clamor da classe trabalhadora.
Na Tipografia Clarim da Luz publicava-se também um jornal de orientação espírita de
mesmo nome. Ela era dirigida por José de Castro Lima, que passou a dirigir também O
Operario. Essas duas publicações mantinham alguns pontos de estreitamento ideológico, que
certamente extrapolavam o simples fato de dividirem a mesma tipografia. Alguns dos criadores
do Clarim da Luz também participaram da criação do O Operário.
129
Figura 15 - Tipografia Clarim da Luz.
Fonte: Gabinete de Leitura Sorocabano.
Afirmavam, ainda, que a redação não se responsabilizaria pelas ideias de seus
colaboradores. Declaravam que “[...] as columnas do O Operario são francas à todos os
opprimidos. Visa um desideratum muito legitimo qual o de conseguir a união ou solidariedade
da família operaria sorocabana” (O OPERARIO, 18 jul 1909, p.1). Cientes do inevitável embate
que se instalaria na sociedade sorocabana com os industriais e outros órgãos da imprensa,
alertavam que não pretendiam qualquer envolvimento partidário no munícipio. Apesar de
apregoarem uma neutralidade política, no decorrer de sua trajetória, ela não se manteve e nem
seria possível tal procedimento. Em diversas situações, o jornal se distanciou de seus propósitos,
fazendo elogios à República, ou envolvendo-se em manifestações partidárias, conforme será
tratado mais adiante de maneira pormenorizada.
Semelhante a outras folhas operárias publicadas no estado de São Paulo e no país, O
Operário procurou adequar-se às características plurinacionais presente em Sorocaba, trazendo
artigos escritos em italiano. No primeiro número, foram publicados dois artigos em italiano. O
primeiro, dividido em duas partes, intituladas Augurio e Come divenni socialista, era assinado
por N. Coli, que felicitava a iniciativa e desejava muito êxito na luta operária. E o segundo, La
ragione... per nui, era assinado por Misko Fota.
Esse jornal apresentava uma característica incomum aos jornais operários: contava com
anúncios de propaganda das empresas locais. Quase sempre a última página se destinava à
130
publicidade. Uma parte desses anunciantes, que se mantém firme na sustentação do jornal em
toda sua trajetória, era constituída de membros da loja Maçônica Perseverança III e muitos deles
eram simplesmente empresários que discordavam da sistemática exploração a que eram
submetidos os trabalhadores da indústria (BONADIO, 2004).
Quanto à Maçonaria estar envolvida de certa forma com o jornal O Operario, é preciso
ficar bem claro que tanto espíritas, como anarquistas e mesmo protestantes compuseram (ou
compõem) os quadros dos membros de lojas maçônicas. Kardec disse:
“Tudo o que direi é que o Espiritismo encontrará no seio das lojas maçônicas
numerosa falange compacta de crentes, não crentes efêmeros, mas sérios, resolutos e
inabaláveis em sua fé [...] o Espiritismo realiza todas as aspirações generosas e
caridosas da Franco-Maçonaria [...]” (COLOMBO, 1998 p.xi)
O jornal O Operario sempre se mostrou agradecido, através de suas colunas à
Maçonaria, pela iniciativa desta em manter uma escola noturna para os operários.
Esse jornal, desde o seu início, não se omitiu à causa operária, entretanto o fez de
maneira cautelosa, pode-se dizer que manteve uma posição moderada nos primeiros tempos de
vida. Mesmo com uma conduta editorial semelhante à de outos jornais operários, o O Operario
de Sorocaba impôs-se numa sociedade marcadamente conservadora, provinciana e machista. É
inegável o fato de que esse jornal alterou padrões de comportamento da sociedade sorocabana.
As manifestações pelas ruas por diferentes motivos, panfletagens, algumas comemorações,
como o dia 1º de maio, eram desconhecidas da sociedade sorocabana e a possibilidade de greves
sequer seria aventada. Até então as pessoas saíam às ruas quase unicamente nas procissões
religiosas ou nos acompanhamentos dos mortos. Alteraram-se os costumes, movidos por novas
leituras, que começam a incomodar os setores dominantes. Os jornais da imprensa operária
romperam com o monopólio dos setores dominantes sobre a palavra impressa, trazendo, para o
interior da cultura letrada, as contradições de classe da cidade em desenvolvimento, do ponto
de vista dos dominados (CRUZ, 2000).
Não há dados precisos quanto ao número de assinantes que esse jornal contabilizou
durante a sua circulação. Objeto de questionamento por parte dos redatores desse jornal era a
postura dos assinantes que não efetuavam regularmente seus pagamentos. É certo que, para se
manter em circulação, esse jornal enfrentava muitas dificuldades. Em 1910, pelo fato de a
maioria dos assinantes não efetuar seus pagamentos, a direção do jornal resolveu diminuir o
formato da publicação, a fim de também reduzir o valor da assinatura. Ao justificar essa
redução, num verdadeiro desabafo, depreende-se que o jornal tinha mais de 1000 assinantes.
Esse número demonstra significativa abrangência e o alcance do jornal poderia extrapolar esse
131
número, considerando-se a prática de se fazer a leitura em voz alta, tanto para os analfabetos
quanto para aqueles que não tinham condições de comprar o jornal.
Nós trabalhamos por amor da Classe; não pensem que trabalhamos com algum
interesse não. Que lucro tem um jornal de dimensão como o nosso chegando no
pagamento das assignaturas (80) assinantes sómente que nos auxilia? Este dinheiro
não chega nem para o papel, quanto mais para a tinta etc, etc, [...] Até parece incrível!
De 1000 assignantes que temos, não entrar por mez 30$000 réis (O OPERARIO, 20
fev 1910, p.2).
Independente do pagamento irregular das assinaturas, acredita-se que o jornal gozava
de boa receptividade entre os operários. Com a diminuição do formato do jornal, foram
suprimidos os anúncios. Em 10 de abril de 1910, com menos de dois meses de redução, o jornal
retornava ao seu formato original. A despeito de todas as adversidades encontradas por esse
jornal, foram bem poucas as vezes que ele deixou de circular. Quando ocorria algum atraso,
eram dadas as devidas explicações aos leitores, numa demonstração de consideração ao seu
público.
O jornal manteve, desde a edição nº 1 até a de nº 162, a publicação do folhetim: O
Jesuita. O Papa Negro, romance histórico de Mezzabotta. Considerado como o livro proibido
pela igreja, esse romance narra a história da Maçonaria e da instalação da ordem da Companhia
de Jesus, cujo Papa vivia uma vida de muitos privilégios e fora expulso pelo exército de
Napoleão Bonaparte. A publicação dessa história acentuava a postura anti-clerical assumida
pelo jornal.
Em seu segundo número, tocava numa questão vital para os operários, a excessiva
jornada de trabalho. Nesse tempo, em algumas fábricas, a jornada de trabalho alcançava 14
horas diárias de trabalho ou mais. O jornal aborda essa questão crucial para a causa operária,
mas o faz com muita sutileza, certamente procurando evitar de imediato uma indisposição com
os patrões.
[...] E’deste modo que queremos o operariado de Sorocaba. Unido, forte, tendo uma
idéa, batendo-se por um direito. Queremol-o, porem, respeitador da ordem e parte
integrante do nosso progresso. O operario deve obediencia ao seu patrão, deve
cumprir os seus deveres, desempenhar na medida das suas forças o emprego que lhe
foi confiado; mas essa obediencia deve ser altiva porque o operario é um cidadão livre.
Uni-vos operarios e procurai rehaver os seus direitos. Fazei, porem dentro da ordem
(O OPERARIO, 2 ago 1909, p. 1).
Depreende-se da leitura desse jornal a tentativa de conscientização que, como toda
conscientização, é um trabalho árduo. Na verdade, o jornal, antes de reivindicar direitos
trabalhistas, precisava despertar no operário o entendimento de que ele era merecedor de uma
132
vida razoável. Essa mentalidade era ainda fruto de uma cultura de subserviência do pobre
brasileiro. É necessário persuadir o operariado sem, no entanto, entrar em atrito com os patrões.
O Operário, como tantos outros jornais e organizações operárias da época, defendia
com veemência a jornada de trabalho de 8 horas diárias, para que o operário pudesse dispender
de tempo para usufruir de outras atividades. A divisão mais acertada seria oito horas de trabalho,
oito horas de sono e oito horas de descanso, para que pudessem dedicar-se ao cultivo afetivo
do lar e do espírito, afinal, “Obrigado a trabalhar dez, doze, quatorze e mais horas por dia, o
operario quase sempre, não dispõe de tempo de viver a vida familiar no que ella tem de mais
doce e mais reconfortador”(O OPERARIO, 2 ago 1909, p.1).
Não demorou muito para que o jornal passasse a denunciar mais abertamente as
condições vividas pelos operários dentro e fora das fábricas. As denúncias feitas pelo O
Operario passavam a questionar qual seria o preço pago pelo operariado para que esse
progresso se efetivasse. Contrapunham-se, portanto, ao discurso da imprensa oficial de que,
pela industrialização, Sorocaba estava embalada para o progresso.
O jornal denunciava a prática adotada pelo “prepotente” gerente da fábrica Nossa
Senhora da Ponte, Julio Cugnasca, que obrigava os operários a contribuir com a Santa Casa de
Misericórdia, mesmo a contragosto. Mas a prática de benemerência constituía uma
característica da sociedade burguesa. Muitos membros da elite, ao comemorarem datas
significativas, como aniversário de casamento, formaturas, aniversário de morte de um ente da
família, ofereciam jantares para os poucos presos da cadeia ou para os mendigos ou, ainda,
efetuavam doações em dinheiro para as instituições de caridade, como a Santa Casa de
Misericórdia, o Leprosário etc. Para os capitalistas, se o operário podia fazer doações em
dinheiro, configurava-se uma prova cabal de que não ganhavam tão pouco como a imprensa
operária alardeava.
Todos sabem que ha familias inteiras ali, como nas outras fábricas, que trabalham;
ganhando as mulheres e as creanças minguados tostões diariamente. Dàhi o absurdo
dessa generosidade do snr. C. de fazer donativos com o dinheiro alheio, sem
auctorisação dos respectivos donos (O OPERARIO, 26 set 1909, p.1).
Na fábrica Santa Maria, os operários sofriam toda sorte de constrangimentos e
humilhações por parte dos mestres, mesmo em assuntos que não diziam respeito à produção,
como se vê no excerto reproduzido a seguir:
Tendo de realisar-se um espectaculo no novo theatro Stª Maria, o snr. Joaquim de
Camargo obrigou uma tecelã a ficar com um bilhete para o mesmo espectaculo,
alegando que “era preciso ajudar o patrão”. Não podendo fugir a coacção a operaria
133
ficou com o bilhete de entrada mas, immediatamente, rompeu-o a vista do snr. C., que
não podendo conformar-se com esse acto desrespeitoso a sua pessôa, resolveu como
uma vingança baixa, pequenina e que não é propria de homens, furar com um ferro o
panno do tear para apresentar queixa contra a sua victima e dai como auctora do
danno, produzido, ficando ella obrigada ao pagamento do mesmo panno (O
OPERARIO, 21 nov 1909, p. 2).
Reiteradas vezes fora denunciado pelo jornal o tratamento dispensado aos menores nas
fábricas. Além da extenuante jornada de trabalho, já que as crianças cumpriam o mesmo horário
dos adultos, enfrentavam trabalhos perigosos, correndo risco da própria vida, além de sofrerem
agressões físicas e até espancamentos, conforme constata-se na seguinte notícia:
[...] Na semana finda, este menor agredido dentro da fabrica pelo dito mestre, pelo
facto de um outro menor ter-lhe atirado uma canilha de fio, o que sendo visto pelo sr.
Eloy (este antes de reprehendel-o com bons modos) atirou-lhe as mãos à garganta que
o deixou quase asphyxiado, atirando-o depois de encontro a parede, indo mesmo bater
nella (e não poderão desmintir, visto o menor não poder ainda fallar muito claro e ter
a garganta inchada). Não satisfeito ainda com tudo isto o dito mestre suspende-lhe o
serviço por diversos dias (O OPERARIO, 12 dez 1909, p.3).
Outra manifestação importante feita pelo jornal dizia respeito ao trabalho noturno de
crianças, que passou a ser normal em quase todas as fábricas. Denunciava-se que, na Fábrica
Nossa Senhora da Ponte, a justificativa dada ao trabalho noturno é que ele fora implantado
devido à deficiência de máquinas apropriadas ao trabalho de fiação e que, por serem em número
insuficiente para suprir a produção somente no turno diurno, necessitavam funcionar também
no período noturno.
Temos encontrado, pelo amanhecer, de volta do trabalho de toda noite algumas
creanças que tontas de cansaço caminham titubiantes em demanda de suas casas, onde
vão repousar um pouco das longas fadigas de uma noite de insomnia, em que o perigo
de uma fractura é quase inevitavel. Homens robustos, de uma saude de ferro,
anniquilam-se com o tempo num trabalho desta natureza quanto mais creanças que
não tem ainda o seu physico completamente desenvolvido (O OPERARIO, 19 fev
1911, p.2).
As mulheres constituíam outra parte vulnerável do trabalho nas fábricas. A mulher
operária sofria os preconceitos de uma sociedade que se mantinha extremamente machista.
Numa sociedade em que a mulher deveria preservar-se na santidade do lar, numa vida de
cuidados do marido, dos filhos e da própria casa, aquela que se aventurava a sair não era vista
com bons olhos. Mesmo cumprindo jornada de trabalho igual a dos homens e exercendo as
mesmas funções que eles, as mulheres tinham salários inferiores e nenhuma regalia por conta
disso. Além disso, nem todas as mulheres podiam trabalhar nas fábricas: o desejado é que ela
tivesse uma postura irrepreensível, conforme solicitava o anúncio da fábrica Nossa Senhora da
134
Ponte: “Fabrica de Tecidos N. S. da Ponte - Ha nesta fabrica vagas para meninos e moças de
bom comportamento; quem pretender dirija-se ao escriptorio da mesma fabrica” (O 15 DE
NOVEMBRO, 15 nov 1892, p.2).
Na classe operária, todos sofriam com as condições indignas de trabalho, mas as
mulheres sofriam uma dupla exploração. A exploração do trabalho desigual e a exploração
sexual. É importante mencionar que as operárias sofriam abusos sexuais não apenas dos
encarregados, mas dos próprios operários, que nem sempre mantinham o devido respeito, como
se observa na notícia reproduzida a seguir:
Tambem as infelizes companheiras já são maltratadas pelas horas elevadas de trabalho
perdendo sua saúde pelos mízeros tostões, ainda há grandes typos que tudo quer, tudo
póde e manda, tentando sobre o que existe de mais sagrado no bello sexo (O
OPERARIO, 31 out 1909, p.1).
Dentro das fábricas, as mulheres eram espiadas pelos contramestres quando faziam uso
do banheiro e o tempo de permanência no recinto também era controlado.
Esse snr. dizem as reclamantes, não nos póde ver por espaço de cinco minutos
consecutivos nas privadas da fábrica onde sò vamos por necessidade, avança tal qual
uma féra às portas, dando murros ameaçando rombal-as, afim de tirar a pessoa que
estiver dentro. Ora seu Camargo! Essa inersia é digna de pessoa muito baixa!... (O
OPERARIO, 27 fev 1910, p. 3).
Conforme já destacado em outra parte deste trabalho, a figura do contramestre dentro
das fábricas sempre foi abominada pelos operários, particularmente pelas operárias. Escolhido
pelo patrão dentre os próprios operários, estratégia utilizada pelos patrões para instalar a
discórdia e intriga entre os operários, essa figura parecia esquecer-se dos demais após galgar
uma posição mais elevada dentro da fábrica. O oprimido passava a ocupar o lugar de opressor.
Daí ser alvo de constantes críticas por parte dos jornais operários, que recriminavam sua postura
dentro das fábricas. O jornal O Operário, com sua habitual ironia, denunciou o que ocorria na
fábrica Votorantim:
O contramestre geral Germano de Almeida, outro homem honesto, distincto, digno
dos melhores conceitos da elite social. Até aqui só tem seduzido senhoras casadas e
deflorado uma pobre moça quando trabalhou na fábrica de S. Rosalia. [...] Apenas
esse miserável passou a contramestre geral, procedeu como procedem as espias mais
infames que o sol cobre [...] e começou uma delação surda contra todos os operários
afilhados na União (O OPERARIO, 5 jan 1913, p.1).
Há relatos sobre muitos contramestres que se fechavam com operária no quarto (maneira
utilizada para se referir às salas do mestre ou contramestre que ficavam dentro das seções de
135
trabalho), em troca de carícias e, para aquelas que se recusavam a fazê-lo, eram-lhes imputadas
multas com descontos no pagamento já tão minguado ou até mesmo demissão.
Pessoas de nossa intima confiança traz-nos a noticia seguinte: Paulino Evaristo
célebre contra-mestre, da Sta Maria, tinha entre as numerosas victimas de sua má
educação, uma moça filha do Srn. Bento Brandão, a quem de há muito vinha
maltratando com a sua linguagem de homem mal e inimigo dos bons costumes e da
boa educação. Não satisfeito com os excessos que ja havia praticado, planejara e
executara, na convicção da impunidade, em que ficaram crimes anteriores, o nefando
e reprovável acto de espancar uma pobre moça, a quem a fragilidade do sexo impedia
de reagir energicamente de modo a repellir a offensa na proporção da agressão. É
preciso por um paradeiro a esses systema que esta se implantando nas nossas fábricas.
Tomem os nossos gerentes de fábricas as providências necessárias ou a polícia quando
tiver um pouco de folga nos seus grandes e affanosos trabalhos (O OPERARIO, 02
jan. 1910, p. 2).
As denúncias dos mandos e desmandos das fábricas foram aumentando cada vez mais.
O tom cauteloso e prudente inicial da circulação do jornal foi cedendo espaço a denúncias mais
explícitas, com a citação dos nomes dos autores dos delitos. Apesar de falar sobre as condições
vividas pelos operários nas fábricas de maneira mais declarada, dificilmente aparecia o nome
do denunciante. Normalmente, os artigos eram assinados por pseudônimos ou como Um
operário ou Um Revolucionário ou mesmo com iniciais. Alguns assinavam escrevendo seus
nomes de trás para a frente como Acesnof para Fonseca. Desperta-se uma dúvida quanto à
fidedignidade desses escritos, pois poderiam ser os próprios redatores que escreviam, fazendo-
se passar por um outro operário, apesar de eles também serem operários das fábricas.
Talvez esse expediente fosse utilizado no sentido de encorajar os operários a
denunciarem o que era imoral, tendo em vista a tarefa árdua de conscientização dos operários
quanto ao seu poder em alterar aquela situação ou ainda por pairar o medo do enfrentamento
com os patrões. Pelas denúncias feitas de toda ordem, depreende-se que os patrões foram
fortalecendo-se cada vez mais e especializando-se em variadas formas de exploração, muitas
vezes mancomunados com a própria imprensa, que reforçava o papel subserviente do operário.
Era o poder da ideologia das classes dominantes. Mas a organização e consequente
fortalecimento do proletariado não passavam mais despercebidos nem para os patrões, nem para
o governo.
Diante dessa situação crítica vivida pelo operariado, somente a palavra, tanto escrita
quanto falada, não resolveria. Algo mais contundente precisava ser feito, ou seja, a greve. O
conhecimento de que em outras partes os operários, quando optavam pela greve, estavam tendo
conquistas os animava e os embalava a tomar essa atitude.
136
Supõe-se que a opção pela greve não fosse fácil para o operário, pois ele estava
aprisionado ao patrão. Antes de defender as ideias, é preciso defender a sobrevivência. Como
o operário poderia se indispor com o seu patrão se dependia dele para tudo, especialmente nas
fábricas Santa Rosália, Santa Maria e Votorantim, onde o operário e toda sua família moravam
na casa que pertencia ao patrão? Como se indispor, se toda a família trabalhava na fábrica?
Uma situação de dispensa não configurava apenas a perda do emprego, era a perda da casa e da
renda de todos os membros da família. Por outro lado, seria a única alternativa de mudança
possível.
Entretanto, assegura Thompson (2012, p. 13), a tecelagem é vista tanto como agente de
uma revolução industrial quanto também social, produzindo não apenas maior quantidade de
mercadorias, mas o próprio “Movimento Trabalhista”.
2.2.2 A presença da mulher nas colunas do jornal O Operário
A história da mulher na sociedade tem sido contada por homens e é preciso que seja
escrita por elas. No final do século XIX, o mundo do trabalho apresenta uma nova condição
feminina. Com o trabalho na fábrica, a mulher deixou o privado e passou a ocupar um espaço
público ocupado pelo masculino. O chamamento das fábricas obrigou as mulheres a deixarem
os afazeres domésticos e a se entregarem às longas jornadas de trabalho. Passaram, então, a
compor uma dupla jornada: nas fábricas, principalmente nas têxteis, que preferiam a mão de
obra feminina, e no lar. A mulher, fragilizada tanto em termos econômicos como sociais,
ingressou no trabalho fora de casa movida pelas vissicitudes da vida, na tentativa de mitigar a
miséria em que vivia. Dadas essas condições, as mulheres se submetiam mais facilmente à
dominação, ao controle e à constante vigilância masculina. “Onde a disciplina era mais urgente,
descobriu-se que era mais conveniente empregar as dóceis (e mais baratas) mulheres”
(HOBSBAWM, 1977, p.18). Apesar da aparente docilidade, as mulheres participaram da luta
por melhores condições de trabalho, participando ativamente das mobilizações. Deve-se levar
em conta que, principalmente nas fábricas têxteis, o número de mulheres trabalhadoras sempre
foi superior ao de homens empregados.
Estabelece-se então uma relação pedagógica, paternalista, de subordinação da mulher
frente ao homem, exatamente como no interior do espaço doméstico. O pai, o marido,
o líder devem ser obedecidos e respeitados pelas mulheres, incapazes de assumirem a
137
direção de suas vidas individuais ou enquanto grupo social oprimido (RAGO, 1985,
p. 99).
A presença da mulher em espaços públicos, exercendo atividades remuneradas e que
normalmente eram ocupadas por homens, passa a ser aceita pela sociedade por conta das
necessidades econômicas. Porém, para a mulher burguesa a participação dar-se-ia apenas no
lar. Esse pensamento fica patente numa notícia do jornal Diário de Sorocaba, quando este
informa sobre uma estudante da Faculdade de Medicina de Bruxelas, que acabava de ser
nomeada para trabalhar num hospital da capital belga. Sobre esse fato, posicionava-se o jornal:
Não somos apologistas dos pretendidos direitos da mulher, isto é, da participação das
senhoras em todos os trabalhos profissionais do homem, em concurrencia com este, e
com prejuízo dos modestos e importantes trabalhos de donas-de-casa e primeira
educadora – a missão ordinaria e elevadíssima das mulheres. [...] Em summa, só
excepcionalmente deverá a mulher, a meiga companheira do homem sacrificar os seus
deveres domésticos, de amor, de concordia de virtude e de bem, em prol do estudo e
de trabalhos artísticos e literários, que a tornem profissional, isto é, emula do homem,
em vez de sua melhor metade (DIÁRIO DE SOROCABA, 3 out 1890, p.2).
Diante da situação vivida pela mulher operária, o jornal O Operário não se restringia
apenas a fazer a sua defesa em virtude das agruras vividas por ela. Numa atitude bastante
progressista, ofertava suas colunas para que mulheres operárias pudessem expressar o seu
pensamento.
Entretanto, também com relação à mulher, o jornal apresentava contradições quanto ao
tratamento à mulher. Ao mesmo tempo que valorizava e lutava por melhores condições de
trabalho para a mulher, também reafirmava a imagem da mulher enquanto sexo frágil, bastante
presente na sociedade de então. Por diversas vezes o jornal publicou as suas representações da
mulher a exemplo da que segue:
A mulher comparada aos bons petiscos
A morena – vatapá. A loura – pão de lot. A negra – iça torrado. A magra – bacalhau
assado. A gorda – perú recheiado. A regular – galinha ensopada. A bonita –
moqueca á bahiana. A feia – carne cosida. A sympatica – canja quente. A casada –
ovos estalados. A solteira – manteiga derretida. A viúva – feijoada completa. A
comprometida – salada de pepino. A rica – naco de presunto. A pobre – carne seca.
A remediada – cúscùs de milho. A carola – pão amanhecido. A enjoada – peixe de
escabeche. A hereje – salada de pimentão. A sogra – ostra crúa. A madrasta –
pamonha azeda (O OPERARIO, 1 jan 1911, p.2).
Não há nenhuma referência sobre a razão dessa publicação, apenas no final do texto
aparece a inscrição “ext.” para indicar que havia sido, provavelmente, extraída de algum outro
jornal, com a intenção de divertir. Numa leitura além do entretenimento, percebe-se que o texto
138
está eivado de imagens preconceituosas sobre a mulher. Seja pela aparência física, pelo estado
civil, ou pela classe social e até por suas crenças. Determinados perfis são valorizados, outros
ridicularizados. Puro deboche. A associação feita entre a mulher e os quitutes não deixa margem
a dúvidas: a mulher é uma iguaria a ser saboreada. Mulher-objeto, mulher-mercadoria. Um ser
desprovido de cérebro, pois nenhuma menção às suas faculdades mentais era feita. Imagens que
refletem, de certa forma, o pensar de pelo menos parte da sociedade sorocabana sobre a mulher
daquela época (BARREIRA, 2004).
Os artigos publicados foram escritos por mulheres operárias, jornalistas e outras que
poderiam ser consideradas feministas, apesar do pouco conhecimento do termo na época, que
discorriam sobre diversos temas concernentes à vida da mulher, mas nada que lembrasse as
futilidades e fragilidades do belo sexo. Pelo contrário, as escritas femininas tocavam em
questões delicadas como: divórcio, sexualidade, condições de trabalho, instrução delas próprias
e dos filhos, religião, anarquismo etc. Dentre as mulheres que escreveram no jornal O Operario
estão: Ernestina Lesina, Nelly Roussel, Joana Dubois, Leonina, A. Zulmira, Fausta e Uma
Operaria. Não encontramos meios de saber se os nomes dessas mulheres eram verdadeiros ou
fictícios. Vários artigos vão assinados apenas por “Uma Operária”.
Aluísio de Almeida afirma que pode ser considerada a primeira jornalista de Sorocaba
a senhora Andresa Eufrosina de Barros que, em 1880, apareceu escrevendo no jornal Diário de
Sorocaba. Ela sabia francês e teve educação aprimorada (DIÁRIO DE SOROCABA, 29 mar
1966).
A escrita feminina no jornal O Operario foi inaugurada pela italiana Ernestina Lesina,
uma das poucas mulheres que não ficou circunscrita ao anonimato. Foi militante anarquista na
Itália e deportada. Aqui no Brasil, fundou a revista de caráter doutrinário Anima e Vita, em
1905. Sempre lutou pela mulher proletária e buscava arregimentá-la para a militância. Sobre
essa militante incansável, Zuleika Alvin, ao pesquisar exemplares da revista Anima e Vita,
afirma:
As tentativas de chamar a mulher à militância eram feitas, podemos dizer de forma
totalmente indireta; isto é, por artigos que falam da participação feminina em
movimentos europeus, principalmente no movimento italiano. Contudo esse esforço
já era imenso num país como o nosso, onde o elemento feminino vivia quase que
recluso à casa e à Igreja. Fazer uma revista com artigos anti-clericais, com referências
ao papel que a mulher livre deveria desempenhar dentro da família e na educação dos
filhos, bem como relatar atividades de mulheres já engajadas em longos anos de luta
pela liberdade na Europa, foi um mérito digno de todo o nosso respeito (ALVIN, [s/d],
p. 16).
139
Ernestina Lesina certamente fora reconhecida no seu tempo, conforme é possível
depreender do relato de Elvira Boni de Lacerda, ao ser indagada sobre o nome de suas irmãs:
Anunciata, Carolina e Ernestina. Ernestina tem esse nome porque na época papai já
andava com a propaganda do socialismo, de anarquismo. Conheceu uns repórteres de
São Paulo, Antonio Piccarollo e Ernestina Lesina e mamãe em homenagem a essa
moça, deu o nome de Ernestina à minha irmã (GOMES, 1988, p. 21).
A presença de Ernestina Lesina no jornal O Operario foi através do artigo A caminho
do fim?, publicado em 12 de dezembro de 1909. Discorria sobre a questão crucial para o
operariado oprimido, a sua emancipação:
Para nós, a palavra “emancipação” tem um sentido diverso muito mais vasto e bem
mais moral que o significado estreito e immoral que de má fé os nossos adversários
lhe querem dar. Para nós – emancipação significa: - Reivindicação dos direitos
abusivamente sonegados e contestados a maioria das criaturas humanas, através de
todo um passado não glorioso, por parte da classe que sempre viveu do labor alheio,
do sacrifício estranho, feito na oficina, no campo de trabalho ou no campo de batalha
(O OPERARIO, 12 dez 1909, p. 3).
Na edição seguinte, esse jornal publicou o artigo Amor fecundo e amor estéril, da ativista
francesa Nelly Roussel (1878- 1922), em que a autora questionava as duas únicas possibilidades
que a mulher tinha na vida amorosa: a castidade ou a fecundidade sem limites. Exigia a
independência das mulheres fundada em novas relações entre os sexos. A autora proferiu
palestras pela França, “disseminando as ideias do neomalthusianismo, proposta que
preconizava a utilização de meios anticontraceptivos, exaltando a maternidade consciente dos
corpos e menos ridicularização do sexismo”. (VALENTE, 2014, p.90)
Em janeiro de 1910, foi publicado um artigo em duas partes intitulado Greve dos
ventres, assinado por Joana Dubois. A autora defendia a ideia de que, entre os meios de
desenvolver as “forças fisiológicas e intelectuais”, visando a emancipação, estava o aumento
de salário e a redução das horas de trabalho manual e também a “greve dos ventres”, entendida
como “tanto ter poucos filhos como não ter nenhum. Isso porque os excessivos encargos
familiares impedem que muitos explorados se façam revolucionários”. A autora escreveu as
seguintes palavras:
Não me limito a reivindicar a livre maternidade; considero a fecundidade natural como
um dos perigos sociais, e não à maneira de Malthus como o perigo social. Em qualquer
epoca, quer se trate da escravatura passada e presente ou da liberdade futura, quer se
trate das relações dos homens entre si e com as outras forças da natureza, as condições
da procriação e as condições de trabalho parecem-me ser da mesma importancia (O
OPERARIO, 6 fev 1910, p. 3).
140
Contrariando a postura anticlerical do jornal, adotada por muito tempo, desde a edição 21
até a 90, Leonina, estranhamente, publicou vários artigos intitulados Para nossos filhos por uma
amiga da infância. Aos educadores, no qual, direcionando-se às mães e aos educadores,
enfatizava a tremenda responsabilidade que pesava sobre os ombros deles ao educar santamente a
infância, a adolescência e a juventude. Seus escritos, publicados em forma de diário ao longo de
aproximadamente 100 edições do jornal O operário, foram divididos nessas partes. O teor desses
textos era sempre no sentido de educar sobre os princípios religiosos católicos.
Depois do pensamento e da palavra de Deus, nada é mais bello e mais nobre que a
missão do verdadeiro educador da infância. [...] Como a principal mira da educação é
inspirar sentimentos virtuosos nas creanças, penso fazer um pequeno beneficio às
mães e aos educadores escrevendo este modesto diário onde encontrarão um bom
pensamento, um conto edificante ou uma pratica piedosa, os quaes lidos e
comentados, podem resultar salutares fructos ao juvenil auditório (O OPERARIO, 30
jan 1910, p. 3).
Entre as escritoras do jornal O Operario, apareceu, em uma única edição do jornal, o
nome de A. Zulmira, no artigo O que é a mulher?, que se desmanchava em elogios à natureza
doce das mulheres e do papel exercido por elas na sociedade. No entanto, a compreensão desse
artigo ficou comprometida devido ao desgaste físico do papel, promovido pela ação do tempo.
Não há muita nitidez em seu título, mas parece ser um artigo dedicado à Zulmira, assinado por
Pedro Sales de Oliveira Mesquita, um dos redatores do jornal. O teor do artigo aproxima-se
muito mais da ideia masculina da época sobre o papel da mulher do que dos assuntos até então
apresentados pelas escritoras.
O amor de mãe, a dedicação de uma esposa, a ternura de uma irmã tudo me faz e
enleva diante de um anjo que mais vivendo do coração do que pela inteligência; fazem
consistir toda a sua felicidade na terra procurando a dos outros. Eis o meu pensar sobre
a mulher (O OPERARIO, 10 jul 1910, p.2).
Em 31 de dezembro de 1911, endereçado às pobres mães operárias, foi publicado um
chamamento assinado por “Uma operaria”, que dedicava às pobres mães operárias uma
“mesquinha e obscura collaboração”. A autora expunha a difícil situação das mães operárias
obrigadas a deixar seus filhos sob os cuidados de filhos maiores ou de estranhos para trabalhar
nas fábricas “a fim de poderdes ajudar os vossos seus esposos na dura luta quotidiana”.
Denunciava, ainda, a diferença da vida da mulher rica, que nem sabia o que fazer com o seu
dinheiro, e a da mulher operária, que vivia uma vida de martírios. Para a autora, era imperioso,
para mudar esse quadro de injustiças, que os filhos dos operários tivessem acesso à instrução.
141
Em quanto as mães ricas viram-se descuidosamente no seu leito macio, pensando,
muitas vezes, no que melhor empregar o seu ouro, nós, os operários, lutamos desde
cedo até á noite com o trabalho; enquanto os seus filhos freqüentam collegios, boas
escollas, os nossos pobres vêem-se obrigados passar o dia todo no fundo dessas
fábricas sem tempo quase para aprenderem alguma couza a noite (O OPERARIO, 31
dez 1911, p.1).
Sem entender o porquê de tanto orgulho e indiferença por parte dos ricos, revoltava-se
indagando se as pobres mães operárias não teriam o mesmo direito de desfrutar uma vida
melhor. Finalizava apontando a única saída possível para essa situação de injustiça.
Ensinae, pois, mães, os vossos filhinhos, mandae-os para escola, afastae-os desses
terriveis sangue-sugas que se chamam industriaes, para que mais tarde possais ver em
nossos filhos um cidadão activo, instruído. Vamos minhas bôas Amigas, deixeis de
muita crença, que tudo que nos contam não é mais do que illusão. Unamo-nos
operarias, instruímos nossos filhos, para que elles mais tarde sejam homens, cidadões
livres, fortes, defensores de nossa classe. Uma operaria. (IDEM 31 dez. 1911, p. 1).
Outra voz feminina eloquente presente nas páginas do O Operario foi Fausta. Num
pequeno texto, Fausta indagava: O que é a vida? Para a autora, a vida vivida pelos operários
não podia ser chamada de vida. Trabalhar como besta de carga, sob vigilância, ganhando uma
miséria, produzindo para os ricos usufruírem o fruto do seu trabalho, isso era indigno.
Não é vida para um ser racional levar uma existência cheia de tormentos [...] e
violências, não é tampouco vida, trabalhar como besta de carga noite e dia sob o olhar
severo e grave de um verdugo; como não é também vida alimentar-se mal e cahir na
mais esquálida miséria, [...] como também não pode ser vida ter por casa uma infecta
pocilga sem luz e sem ar onde se engenha todo o mal e corrupção; e nunca poderá ser
vida cobrir o corpo de andrajos e caminhar descalço enquanto os ricos sem produzir
cousa alguma ostentam um luxo sem limites (O OPERARIO, 10 maio 1912, p.2).
A voz feminina de maior veemência verbal, por ser contundente e incisiva no jornal, foi
de Elvira. Sobre a vida dessa mulher, é sabido que não ela não era sorocabana, pois uma
referência nesse sentido apareceu num artigo onde ela afirmou “A pesar de pouco tempo residir
nesta cidade...” (O OPERARIO, 29 set 1912, p. 2).
Sua temática girava em torno da condição feminina tão subjugada naquele tempo. A
autora transitava por temas variados, por meio dos quais demonstrava conhecimento de
diferentes autores, ideologias, ciência e não se isentava de comentar sobre os assuntos locais, o
que geralmente fazia de maneira elogiosa ao trabalho do prefeito municipal, o médico Dr.
Alvaro Soares. Defendia com veemência a emancipação da mulher, mostrava-se anticlerical e
dizia-se revolucionária.
Escreveu, em 30 de junho de 1912, sobre A nossa futura família, onde predizia que, na
futura sociedade comunista, a manutenção dos filhos e dos velhos ficaria a cargo da sociedade
142
e as pessoas, marido e mulher, uniriam-se apenas pelo amor e tratariam os filhos que viessem
com carinho e amor e não com os costumeiros espancamentos.
Em outro artigo intitulado A prefeitura e os spleens pelo progresso, Elvira teceu elogios
à administração do prefeito municipal, reconhecendo que ele tinha como preocupação o bem-
estar da população, pois a cidade, a cada dia, recebia melhoramentos na área da higiene, o que
certamente eliminaria o risco de novas epidemias.
A pesar de pouco tempo residir nesta cidade [...] porem observado com atenção o
desenvolvimento administrativo do prefeito, e creio que não tenha passado
desapercebido ao mais ignorante dos habitantes, o papel que esse distincto medico vae
desempenhando em beneficio desta população. E isto graças a sua exacta
compreensão do elevado cargo que ocupa; e de um certo tempo para cá tem
conquistado pela sua acção pratica, uma larga e inabalável influencia e sympathia até
de nós revolucionários (O OPERARIO, 29 set 1912, p.2).
No artigo denominado Com a Câmara Municipal, de 13 de outubro de 1912, Elvira
alerta para a necessária construção de um mercado municipal que pudesse atender
principalmente à classe trabalhadora, mas que houvesse uma eficiente fiscalização proibindo
qualquer negociante de comprar gêneros de primeira necessidade e vendê-los para fora do
município, sem tê-los exposto aos munícipes antes.
Elvira escreveu sobre o ensino superior, sobre as leis do governo, questionou a atuação
do governo, que somente defendia os interesses da burguesia, desprezando o operário que tudo
produzia.
Num de seus escritos mais incisivos, ela se mostrou agressiva, confrontando instituição
poderosa como a igreja católica. Como anarquista, Elvira defendia o amor livre, entendia que
as pessoas não precisavam fazer juramentos perante a igreja e nem registrar o compromisso
perante a lei. O importante seria um escolher o outro livremente.
Anda por toda parte a carolada que cheira a sebo de Sacristia, protestando contra a lei
do divórcio que os herejes pretendem adoptar como medida para sanar o mal que lhe
affecta o casamento interesseiro. Parece incrível que essa jesuitada de casaca e outros
tantos de batina se preocupem tanto com a resolução que tomaram meia dúzia de
homens de repelir os preconceitos da infernal Madre-Igreja. Não contentes essa corja
de destruírem o amor livre e levantarem códigos para o affecto e legislações para o
poema do beijo, criando leis para a união passional de duas almas complementares
que se encontraram e se amaram nos embates da luta (O OPERARIO, 27 out 1912,
p.1).
Em 12 de janeiro de 1913, num artigo denominado A burgueza e a Anarchista, fez uma
analogia entre a educação dos filhos dada pela mãe burguesa e pela mãe anarquista. A mulher
burguesa vive uma vida frívola à custa da exploração do trabalho alheio e cria os filhos da
143
mesma maneira como foi criada, formando “seres inúteis a sociedade, ociosos, hipócritas,
perversos, perseguidores como os nossos órgãos de justiça”. Para a autora, a verdadeira mãe, a
mãe ideal, prepara os seus filhos para o trabalho, a primeira condição da vida, prepara-os para
o sacrifício e desperta-lhes a energia e a vontade.
Uma mãe anarchica não escolherá para sua filha um marido usurpador e perverso, mas
um homem amante do trabalho, rico de bondade e energia e desprezaria tudo quanto
for contra esses principios (...) A verdadeira mãe! Oh, sublime realidade das gerações
futuras, este tipo de mãe anarchica é o sonho de todos os corações bons, a luz
inacessivel da humanidade nova fundada sobre as bases do trabalho e do amor (O
OPERARIO, 12 jan 1913, p.1).
Ela finaliza o artigo vaticinando que nas mãos da mulher anárquica estaria a salvação
do mundo.
Marcélia Picanço Valente, em sua dissertação de mestrado intitulada Imprensa e
educação: registro da escrita feminina no jornal O Operario (1909-1913) afirma, com certeza,
que Elvira era a anarquista Elvira Boni de Lacerda e que definiu sua identidade a partir de um
depoimento dado por ela à Angela de Castro Gomes, entre os meses de agosto e setembro de
1983, na residência da depoente no Rio de Janeiro. Esse depoimento e os de outros anarquistas
estão presentes no livro Velhos Militantes, da referida autora.
Segundo Angela de Castro Gomes (1988), Elvira Boni era filha de imigrantes italianos,
nascida em 1899, na cidade de Espírito Santo do Pinhal, interior de São Paulo. Seu pai era
serralheiro e dirigiu-se àquela cidade para trabalhar. Elvira cresceu numa família de anarquistas,
tornando-se militante sindical. Foi, também, atriz de um grupo de teatro amador anarquista e
uma das fundadoras do Sindicato das costureiras, no Rio de Janeiro onde teve intensa atuação
até se casar com Olgier Lacerda, um dos primeiros militantes comunistas cariocas. Dona de
casa e mãe, permaneceu toda sua vida interessada nos movimentos de política nacional, mas
com uma militância reduzida.
No jornal O Operário, a primeira publicação assinada por Elvira ocorreu em junho de
1912, então, se de fato Elvira Boni de Lacerda escreveu nesse jornal, o fez aos 12 anos de idade.
Sobre seus estudos, em seu depoimento, afirmou que não tinha nem o segundo ano completo:
[...] o único estudo que tive – foi muito pouco – foi quando papai me colocou no
Grupo Escolar Senador Vegueiro. Era um edifício muito grande, muito bom, com
quatro portões e um gradil de ferro em volta do jardim. Todos feitos por papai. Eu ia
completar seis anos quando ele me matriculou. (BONI, 1988 apud GOMES, 1988, p.
21)
A autora Rosa Fátima de Souza (1998) menciona, em seu trabalho, esse Grupo escolar,
porém, o nome que apresenta é diferente do citado por Elvira Boni:
144
[...] edifício do Grupo Escolar “Dr. Almeida Vergueiro” ocupava uma considerável
área no Largo das Brotas na cidade de Espírito Santo do Pinhal. Na frente do edifício,
belo e majestoso, erguia-se uma longa grade de ferro na qual existiam dois portões,
um para a secção masculina e outra para a secção feminina (SOUZA, 1998, p.127).
Em Sorocaba, o Grupo Escolar Senador Vergueiro foi criado somente em 1919, pouco
provável que ela tenha estudado nele. Prosseguindo, Elvira Boni conta que, quando iniciou sua
militância, encontrava dificuldades em expor suas ideias e explicava que “para uma menina que
não tinha ido à escola era difícil traduzir as coisas. Eu sabia o que queria, mas não sabia expor”.
Em seu depoimento, Elvira Boni deixa claro que, apesar de sua militância, sempre foi
muito obediente, “se não tivesse sido tão obediente talvez tivesse sido uma boa atriz, uma boa
cantora, que era o que eu queria ser” e seu pai não permitiu. Assim, dificilmente teria escrito
textos tão ousados, provocativos e contrastantes para a época.
Ao ser indagada por Angela Castro se a União das Costureiras utilizava a imprensa
operária para divulgação de algo, respondeu: “Não. Quando divulgávamos alguma coisa,
publicávamos na grande imprensa”.
Em nenhuma parte de seu longo depoimento mencionou a cidade de Sorocaba ou
afirmou ter atuado como colaboradora do jornal O Operário, ou qualquer outro, o que nos
permite duvidar de que Elvira Boni Lacerda seja a Elvira das páginas do O Operario.
2.2.3 A ideologia do jornal O operário
“É a liberdade que educa para a liberdade e para a solidariedade”.
(Errico Malatesta)
A propugnação de um ideal sempre esbarra com as condições necessárias de existência.
Dessa forma, todo o trabalho ideológico de sustentação e de conscientização é um embate
constante e árduo. Por isso, configura-se uma tarefa difícil estabelecer plenamente o
posicionamento ideológico do jornal O Operario, devido a determinados fatores.
Na visão de Rogério Lopes Pinheiro de Carvalho (2007), organizador da edição fac-
similar do O Operario, é possível, inclusive, classificar sua linha editorial como sendo uma
espécie de socialismo espírita. Como suas colunas eram abertas a todos os oprimidos,
significava que estavam presentes em suas páginas diferentes tendências, pois entre os
145
oprimidos estariam os anarco-sindicalistas, os socialistas utópicos, os social-democratas, os
marxistas (ainda que o Partido Comunista não houvesse sido fundado no Brasil), entre outros.
Considerando a época de sua circulação, período de penetração das ideias anarquistas
trazidas pelos imigrantes estrangeiros, que tinham a pretensão de semear o ideal anarquista em
outras terras, principalmente pelo fato de muitos deles terem sido expulsos de seus países de
origem por conta desse ideário, pode-se dizer que o jornal O Operário seguia o direcionamento
de outros jornais operários, quase sempre de tendência anarquista ou anarco-sindicalista.
Mas a semeadura de tais ideais no Brasil vislumbrava dificuldades espetaculares que
obstavam o rápido desenvolvimento do movimento operário, de toda ordem. Eram elas:
geográficas, físicas, etnológicas e econômicas. As impressões sobre as dificuldades de
penetração do ideário anarquista no Brasil de Alceste de Ambris (1906), figura proeminente do
movimento socialista italiano, que viveu por muito tempo no Brasil, e esteve em Sorocaba por
várias vezes fazendo palestras e conferências socialistas, corroboram os aspectos dificultadores
já apontados no presente trabalho:
[...] não se deve esquecer que a classe trabalhadora no Brasil, é constituída de
elementos díspares e variados em raça, temperamento, cultura e hábitos o que torna
mais difícil o entendimento e a organização. [...] muitos operários e camponeses se
consideram nesta terra como pássaros de passagem e – obcecados pela ânsia de voltar
à pátria – pensam e vivem individualisticamente, persuadidos que este seja o melhor
meio de “fazer a América” (AMBRIS, 1906, p 845).
Para Alceste de Ambris (1906), outra interveniente para a difusão do movimento
operário residia no fato de que a maior parte do proletariado – a agrícola – mantinha-se fora do
movimento devido às grandes distâncias que separavam uma fazenda da outra, sendo
praticamente impenetrável qualquer propaganda que pudesse fazer eco no campo fechado das
fazendas. Também os trabalhadores da terra que não se encontram na fazenda estavam
distribuídos nos núcleos de colonos, em condições econômicas que não os levava a sentir a
necessidade de organização. Eram eles pequenos proprietários - ou tinham a esperança e a
possibilidade de vir a sê-lo - e isso, certamente, não contribuiu para desenvolver neles aquele
sentimento e aquela solidariedade de classe, que são os fatores psicológicos indispensáveis da
organização operária.
A história nos mostra que o homem do campo brasileiro não se manteve apático sempre.
Num arrolamento de greves no campo, Michael Hall e Paulo Sérgio Pinheiro (1990)
identificaram diversos movimentos a partir da década de 1870. Citam um movimento
expressivo ocorrido em 1913, na região de Ribeirão Preto (São Paulo). Iniciado por
146
aproximadamente 70 famílias, acabou por envolver entre 10.000 a 15.000 trabalhadores rurais
que interromperam suas atividades reivindicando melhores salários.
As 70 famílias que foram o estopim da greve em 12 fazendas, seguiram fielmente o
espírito do movimento que ao cabo de oito dias envolveu toda a região oeste de São
Paulo. [...] Reuniram-se grupos de quatro ou cinco famílias agrupadas pela amizade
que já as ligava, sem ter um líder para cada grupo, mas apenas uma família
encarregada de transmitir o pensamento do comitê secreto que resolvia todas as
questões pendentes... Os motivos foram muitos, principalmente a miséria, que ajudou
a abrir a cabeça doentia da massa ignorante para a compreensão das razões de novas
condições de vida, de verdadeiros escravos. [...] As pessoas das fazendas vizinhas,
que por ordem de seus respectivos patrões iam oferecer-se para substituir os colonos
de Iracema, foram sensibilizados para o mal que estavam fazendo. Quando voltaram
uma segunda vez, foi-lhes pedido que permanecessem em suas casas para evitar
derramamento de sangue entre irmãos. Na terceira vez, os poucos que se apresentaram
foi-lhes mostrado que estavam agindo como traidores, e finalmente, não só foram
convencidos como também obtiveram seu apoio. Assim vencemos a causa que neste
momento já foi decidida em favor daquelas 70 familias. (LA BATTAGLIA, 18 maio
1912, p.4).
A maneira pela qual transcorreu essa greve, quanto à sua organização e às causas que
levaram a ela, sintetiza o pensamento de Eric Hobsbawm (2000) de que o hábito da
solidariedade industrial deve ser aprendido, como o de trabalhar uma semana regular, bem
como o senso comum de exigir concessões quando as condições são favoráveis, não quando a
fome sugere.
Há uma tendência forte entre os estudiosos do movimento operário em atribuir a apatia
ou a falta de consciência política dos operários industriais às suas origens rurais. Thompson
(1978, p.145) esclarece que a classe operária é definida pelo modo como as pessoas vivem a
sua própria história, que a classe e a consciência de classe emergem da luta de classes
propriamente dita, e que a experiência de uma classe não é mais verdadeira que a de outra.
Um dos principais ideólogos do Anarquismo foi o italiano Errico Malatesta presente
diversas vezes nas páginas do jornal O Operario. Ao tratar do idealismo e materialismo, ele
enfatiza que as necessidades materiais são um imperativo para a emancipação, já que são a base
necessária de toda a vida superior, moral e intelectual e sentencia: “Primeiro comer e depois
filosofar” (MALATESTA, 2007, p. 51). Ainda sobre esse mesmo tema, Malatesta revela que,
em toda a sua vida de militante libertário, frequentando organizações operárias, grupos
revolucionários e sociedades educativas, sempre verificou que os elementos mais ativos,
dedicados, dispostos até a contribuir com recursos de seus próprios ganhos eram
[...] os de melhor situação – e que sentiam impelidos à luta não tanto pelas próprias
necessidades, mas pelo desejo de cooperar em prol de uma boa obra e sentirem-se
nobilitados por um ideal. Os elementos de situação mais miserável, aqueles que, em
virtude de suas penosas condições de vida deveriam ser os mais direta e
147
imediatamente interessados na mudança das coisas, conservam-se ausentes, ou
participam apenas quando a isso são levados por um interesse imediato e, assim
mesmo, como parte passiva, beneficiando-se do esforço dos demais (MALATESTA,
2007, p.51).
A constatação de Errico Malatesta, um idealista, permite uma reflexão sob vários
aspectos. Quanto ao idealista sempre ser aquele que não vive uma situação precária, talvez se
encerra a questão de que “os idealistas são pessoas que comem todos os dias e tem sempre a
natural certeza de poderem comer no dia seguinte” (MALATESTA, 2007, p.51).
Para aquele que deveria ser o maior interessado, por conta da situação miserável em
que vive, falta-lhe o ânimo, encerra um fenômeno quase natural para aquele que está
plenamente envolvido na situação, faltam-lhe forças e a certeza de que algo possa mudar, mas
sobra-lhe a conformação, resignação e a desilusão para a mudança. Reverter esse quadro de
desânimo, permitindo que a pessoa vislumbre um caminho melhor, torna muito mais dificil a
atuação dos idealistas. O idealismo exige a coerência, a renúncia, a disposição para o embate e
para o diálogo, exige, acima de tudo, sacrifícios. Por isso é tão dificil assumi-lo.
Para entender o posicionamento do jornal O Operário e suas possíveis contradições ou
até mesmo ambiguidades, faz-se necessário elucidar algumas concepções ideológicas, tais
como o anarquismo, o anarcossindicalismo, o socialismo e o comunismo.
Edgar Leuenroth (2007), um dos militantes mais notórios do movimento anarquista
brasileiro, define o socialismo como o sistema de organização da sociedade que tem por base a
substituição do regime capitalista – fundamentado no domínio da propriedade privada e do
salariato, instrumento de exploração do homem pelo homem – por um regime cujo princípio
fundamental é socializar, isto é, pôr em comum os bens sociais em função dos interesses da
coletividade, como produtos que são dos esforços de todas as gerações.
Apesar de anarquistas e marxistas pretenderem lutar contra a sociedade capitalista
causadora da desordem, que tanta infelicidade traz para a humanidade, esses dois grupos
ideológicos não coadunavam num mesmo bloco. Uma das razões para essa cisão ocorreu em
1868, entre os componentes da Associação Internacional dos Trabalhadores (a chamada
Primeira Internacional) e da qual resultou a separação dos socialistas libertários (anarquistas) e
dos socialistas autoritários (marxistas). Desde então, anarquistas e socialistas, colocados em
campos de luta social, estão em permanente oposição.
O chefe supremo era Marx e, na teoria, é sempre ele. Em toda literatura socialista e
em toda propaganda oral, recorre-se a Marx e ao Manifesto Comunista de 1848 como
a um Profeta e a um Evangelho; ao invés de sustentar suas próprias razões com
argumentos racionais, discute-se para saber se esta ou aquela afirmação, ou esta ou
148
aquela tática está de acordo com os textos sagrados. É o que fazem os católicos, é o
que fazem os mazzinianos, é o que fazem os juristas, é o que fazem todos os religiosos
e todos os autoritários [...] Marx foi, com sua mania autoritária e centralizadora, uma
das causas da dissolução da Primeira Internacional, para cuja fundação ele contribuiu
extremamente (MALATESTA, 1989, p.91).
Ainda que pudessem ser confundidos como inimigos, esclarecia Malatesta que o que
diferia anarquistas de socialistas era “quanto ao meio a empregar para destruir e quanto ao modo
de reconstruir”:
Anarquistas e socialistas, somos igualmente inimigos da sociedade burguesa.
Queremos, uns e outros, abolir o capitalismo, a exploração do homem pelo homem;
queremos que as riquezas naturais e o trabalho humano sirvam para satisfazer as
necessidades de todos e não mais para fornecer lucro àqueles que usurparam os meios
de produção. Os socialistas e os anarquistas querem que os homens deixem de viver
do sofrimento de outrem, que eles deixem de ser os lobos que entredevoram e que o
fato de viver em sociedade sirva para garantir a todos o maior bem estar, o máximo
de desenvolvimento material, moral e intelectual (MALATESTA, 1989, p. 31).
Em linhas gerais, os socialistas tinham por objetivo organizar entidades que dessem
suporte ou mesmo que servissem de objeto de manobra para a criação de um partido socialista
forte (ARAUJO NETO, 2005). O anarquismo socialista defende a liberdade para todos, daí a
denominação libertários. Tratava-se não de uma liberdade teórica e jurídica, senão de uma
liberdade de fato, que consiste na ausência de toda coerção violenta do homem sobre o homem
e na faculdade de cada um dispor de si mesmo e fazer o que quiser, tendo como limite a
liberdade dos outros (TRAGTENBERG, 1989).
Em seus desdobramentos ideológicos, dentro do anarquismo, surge o
anarcossindicalismo, que pregava uma luta estritamente econômica entre trabalho-capital que
deveria ser organizada pelo sindicato. O sindicato deve ser autônomo ante qualquer partido ou
tendência para cumprir seu papel de resistência dos trabalhadores ante o capital e o anarquismo
deve ter um movimento autônomo ante qualquer organização operária existente, para cumprir
seu papel de incentivador, organizador da revolta social, dos trabalhadores, setores médios,
homens e mulheres, trabalhadores urbanos ou rurais (Idem, 1989).
Em resumo o que queriam os anarquistas era:
1º. Abolição da propriedade (capitalista ou estatal) da terra, das matérias-primas e dos
instrumentos de trabalho, para que ninguém tenha meios de explorar o trabalho dos
outros.
2º. Abolição do Estado e de qualquer poder que faça leis para impô-las aos outros.
3º. Organização da vida social por iniciativa das associações livres e das livres
federações de produtores e consumidores, criadas e modificadas conforme a vontade
de seus componentes guiados pela ciência e pela experiência e libertos de toda
obrigação que não se origine da necessidade natural, à qual todos de bom grado se
submeterão quando lhes reconheçam o caráter inelutável.
149
4º. A todos serão garantidos os meios de vida, de desenvolvimento, de bem-estar,
particularmente às crianças e a todos os que sejam incapazes de prover à própria
subsistência.
5º. Guerra a todos os preconceitos religiosos e a todas as mentiras, mesmo que se
ocultem sob o manto as ciências. Instrução completa para todos, até aos graus mais
elevados.
6º. Guerra às rivalidades e aos prejuízos patrióticos. Abolição das fronteiras,
confraternização de todos os povos.
7º. Libertação da família de todas as peias, de tal modo que ela resulte da prática do
amor, livre de toda influência estatal ou religiosa e da opressão econômica ou física
(MALATESTA, 2007, p. 27).
Na época em que teve início a circulação do jornal O Operário, o anarquismo socialista
tornara-se uma força expressiva que permeava os movimentos operários, ainda que mesclado
com outras ideologias, como o socialismo. Os redatores do jornal alinhavam-se à corrente do
anarcossindicalismo, porém, pelas vicissitudes da vida, não o propugnavam plenamente. Ora,
como propor o fim da propriedade e do capital se a subsistência dos operários só era possível
pelo salário conseguido pelo trabalho nas fábricas? Como convencer o operário a seguir um
ideal, quando a urgência mais premente era o pão cotidiano?
Entretanto, o ideal anarquista não ficou restrito às discussões teóricas. O Brasil teve
algumas tentativas de implantação de células anarquistas dentro da organização capitalista.
As ideias anarquistas começaram a circular entre os operários encontrando
receptividade no seio do operariado. O jornal O Operario apresenta à classe operária o
pensamento de Errico Malatesta, Élisée Reclus, Piotr Kropotkin e, em menor medida, o
pensamento de Karl Marx.
Sob o título A essência do socialismo, em cada edição o jornal apresentava aos seus
leitores a questão do socialismo, com os tópicos Como não ser socialista? ou A Reforma do
Socialismo. O jornal sintetizava esse pensamento da seguinte forma: “A essência do socialismo
é a equidade das relações, a abolição dos monopólios, a supressão do salariado, a cooperação
entre os eguais, etc. não é tal ou tal organisação da producção e das trocas, por associações, por
communas ou por Estados” (O OPERARIO, 16 jan 1910, p.1).
Nessa mesma seção do jornal foi apresentado o pensamento de Karl Marx, de forma
didática, a fim de favorecer o entendimento por parte dos leitores dos principais conceitos
elaborados por esse pensador. Explicava o jornal que Karl Marx, compenetrado em entender a
importância da organização dos trabalhadores, pois fora testemunha, no país clássico do
capitalismo, da grandeza da luta travada entre o capital e o trabalho, concebera um arrojado
plano científico: a concepção materialista da história.
150
[...] Derivou os factos econômicos (lucros, rendas, interesses, salários) da exploração
da força de trabalho (theoria da mais valia). Julgou que pelo próprio mecanismo da
exploração capitalista, a acumulação de riqueza augmentaria; que o proletariado se
encontraria reunido e muito numeroso: e que um choque final produziria a destruição
do systema (lei d’accumulação capitalista e luta de classes) (O OPERARIO, 31 dez
1911, p.1)
O jornal O Operario, durante toda a sua existência, lutou pela valorização social do
proletariado. Nos primeiros tempos, defendia a união da classe operária, reconhecendo-a como
colaboradora da burguesia, como é possível observar em um de seus primeiros números: “O
operário deve obediência ao seu patrão, deve cumprir os seus deveres, desempenhar, na medida
de suas forças o emprego que lhe foi confiado; mas esta obediência deve ser altiva porque o
operário é um cidadão livre” (O OPERARIO, 2 ago 1909, p.1).
Sem descuidar da união da classe operaria, o jornal mudou o tom de seu discurso no
decorrer de sua existência, declarando abertamente que os causadores das desventuras do
proletariado eram: o clero, a burguesia e o militarismo.
Transitaram e até dialogaram entre si pelas páginas do jornal O Operario o espiritismo,
a maçonaria, o socialismo, o anarquismo e outros movimentos e ideologias.
2.2.3.1 Ideias anarquistas em Sorocaba: os libertários
No reino da fábula todos os jardins são maravilhosos, todos os palácios encantados
são guardados por dragões ferozes. O dragão que está à porta do palácio da
anarquia nada tem de terrível: é apenas uma palavra. (Élisée Reclus)
Sorocaba, por sua realidade industrial, reunia condições para a disseminação das ideias
anarquistas, o que acabou por atrair libertários. Alguns deles, perseguidos pela polícia, vinham
refugiar-se em terras sorocabanas. Entretanto, é possível encontrar bem pouco material sobre
os anarquistas. Muito foi destruído pelas constantes perseguições policiais e prisões, que os
obrigava a apagar qualquer rastro que pudesse revelar algo. Outro ponto importante parece ser
o esquecimento proposital da sociedade em relação a esse ideal.
Mais uma vez para o historiador e pesquisador é a imprensa escrita, especialmente os
jornais da época, que preenchem essa lacuna da História, o que não significa que essa seja uma
fonte fidedigna dos fatos. Carregada de sentido ideológicos, de ideias preconcebidas, a
divulgação dos fatos dependia da posição ideológica de cada jornal. Nem sempre os jornais
enxergavam os libertários com bons olhos, por isso era mais comum que se referissem a eles
151
com adjetivos como agitadores, arruaceiros, numa declarada intenção de formar a opinião
pública. Provavelmente aí se explique a pouca ênfase dada, até os dias de hoje, aos anarquistas
que viveram ou passaram tempos em Sorocaba.
Vicente de Caria, idealista na total acepção da palavra, viveu e morreu por suas ideais
anarquistas. Esse italiano, camponês, pobre, chegou ao Brasil por volta de 1891. Em data
incerta, chegou a Sorocaba, instalando-se numa região onde predominava a população
espanhola. Segundo Edgar Rodrigues (2005), no ano de 1907, Vicente de Caria comprou uma
chácara no bairro da Caputera e, com sua família, passou a plantar cebolas, criando
posteriormente uma cooperativa juntamente com outros plantadores. Há quem afirme que a sua
intenção era tansformar sua chácara numa comunidade anarquista, mas isso não se realizou e a
cooperativa também não vingou. No entanto, sua chácara se manteve como um lugar que
recebia todos aqueles que necessitavam de ajuda. O seu ideal anarquista nunca esmoreceu e
tornava-se mais vivo a cada nascimento de um filho. Eram eles: Anarchia, Progresso, Libertad,
Acracia, Harmonia, Aurora, Círio, Germinal, Espartaco.
Nessa chácara, havia uma escola que procurava seguir o modelo da escola moderna
idealizada por Francisco Ferrer, a chamada escola racional, que se pautava num processo
educativo que tinha o seguinte preceito: “eduque pela razão, para que cada ser humano seja
capaz de racionar por si mesmo, conhecer o mundo e emitir seus próprios juízos de valor, sem
seguir nenhum mestre, nenhum guia”. (GALLO, 2014, p. 13)
Frequentavam a escola os filhos de Vicente de Caria e outras crianças, filhos de outros
anarquistas. Foi professora dessa escola, por muito tempo, Angelina Soares, irmã do também
anarquista Florentino Carvalho. Mas bem pouco se sabe sobre essa escola. Sobre Vicente de
Caria a professora Angelina fez o seguinte depoimento.
Para lembrar os camaradas de São Paulo, os homens sinceros que lutavam por uma
sociedade melhor, simplesmente porque o seu coração mandava, não podemos deixar
de mencionar Vicente de Cária. Era um homem simples, sem grande instrução, mas de
uma sinceridade a toda prova. Morava em Sorocaba, em um sítio, que era o seu meio
de vida, de onde tirava o sustento de sua família. Ali, naquela roça, naquela casa de
chão, Vicente recebia todos os que necessitavam de guarida. Não só camaradas de luta,
mas qualquer necessitado ali tinha uma cama para dormir, um prato de comidaà mesa.
Lamentava não ter grandes recursos para fazer pela humanidade. Simplesmente, sem
fazer alarde ajudava na publicação de jornais e livros de propaganda. Alma simples, não
era um intelectual, mas tão somente um grande coração. Maria Angelina Soares
(RODRIGUES, 1994)
Em 1927, o anarquista espanhol João Perdigão Gutierrez e outros anarquistas
estrangeiros, numa manifestação de 1º de maio em Santos, proferiram discursos inflamados
que, aos olhos da polícia, tentavam incitar a população, subvertendo a ordem. Passaram a ser
152
perseguidos e precisaram fugir para não serem expulsos do país. João Perdigão encontrou
refúgio na chácara de Vicente de Caria que já o conhecia. A sua permanência na chácara de
Caria culminou na união livre com Anarchia de Caria, em 24 de fevereiro de 1928.
Figura 16 – Casamento de João Perdigão Gutierrez e Anarchia de Caria
Fonte: Enciclopédia Sorocabana
Além de sua colaboração na imprensa, João Perdigão Gutierrez fundou o periódico Dor
Humana, do qual foi redator. Escreveu folhetos e manifestos em datas como o 1º de maio e
outras, e fez-se ouvir pela palavra em todas as oportunidades que lhe foram propiciadas. Morreu
em Sorocaba, Estado de S. Paulo, de onde trocava correspondência com os companheiros do
Brasil e do exterior (ENCICLOPÉDIA SOROCABANA, 1994).
Outro anarquista espanhol que viveu em Sorocaba foi José Prado Gutierrez. Operário
da fábrica Votorantim, aliou-se “aos chamados libertários e iniciou a luta social por melhores
condições de vida aos trabalhadores, participando de greves, distribuindo folhetos e auxiliando
na difusão da doutrina anarquista” (GAZETA DO ALÉM PONTE, 15 dez 1991, p.8) José Prado
casou-se com Libertad de Caria, uma das filhas de Vicente de Caria, e a pedido da esposa deixou
de participar do movimento anarquista, no entanto, sem renegar os ideiais anarquistas,
mantendo-os até o fim da vida. Não passa despercebido o fato de sua esposa, nascida num
ambiente libertário e vivendo entre anarquistas, ter feito tal pedido. Por que o fez?
153
Cavalheiro (2009, p. 149), ao pesquisar sobre o movimento operário em Sorocaba,
entrevistou a senhora Anarchia de Caria. Ela lhe disse que não chegou a ser militante anarquista
“embora tivesse convicção de muitos dos ideais difundidos pelos libertários”. Aprendera sobre
tais ideais com o pai, Vicente de Caria, e o marido, João Perdigão Gutierrez. Revelou ao autor
que não aprendera a ler, embora tanto o pai como o esposo fossem propagandistas da difusão
da cultura.
Na afirmação de Anarchia de Caria de que não aprendera a ler paira uma dúvida, pois
provavelmente estaria referindo-se à leitura de livros da doutrina anarquista, haja vista que, na
chácara de seu pai, havia uma escola Moderna. Mais uma vez ocorre a pergunta: por que o
desinteresse?
Outro anarquista importante no movimento operário de Sorocaba foi Angelo Vial, filho
de italianos, que foi operário da fábrica Votorantim. A força maior de Vial residia na palavra,
cujo poder de convencimento conseguia parar a fábrica. Por ter forte influência sobre o
operariado, representava um incômodo para os patrões. Numa atitude inusitada, Pereira Ignácio,
dono da fábrica, aconselhado por seu genro José Ermírio de Moraes, superintendente da fábrica,
resolveu fazer uma proposta para Vial, oferecendo-lhe a gerência da fábrica e mais alguns
benefícios, como 500 quilos de retalhos para venda por mês. Dessa maneira, teriam uma pessoa
que conhecia o lado dos operários e era querido por eles e também cessariam os constantes
movimentos reivindicatórios, que tanto atrapalhavam a produção.
Angelo Vial, líder operário e anarquista, ouviu seus pares antes de tomar alguma
decisão. Estes o autorizaram a conversar com os patrões. Vial impôs como condição “o fim da
lista negra, equivalente privado do atestado de ideologia, bem como a readmissão dos operários
despedidos pela participação em movimentos grevistas” (BONADIO, 2004). Os patrões
aceitaram, apesar dos riscos e Vial assumiu a gerência da fábrica Votorantim.
Cavalheiro (2001), em seu livro Salvadora!, relata uma passagem entre Salvadora
Lopes, operária da fábrica Votorantim e Angelo Vial, gerente. Como o gerente percebera a sua
liderança entre os operários, especialmente as operárias, deu-lhe um conselho:
Eu gostaria apenas de dar um conselho a você. Eu lutei muito pelos operários e sofri
bastante com isso. Você é jovem, idealista, inteligente, tem liderança. Sei que você
poderá vir a se tornar uma grande líder operária. No entanto, não vale a pena. É muito
sofrimento. Você será martirizada, como Cristo e seus companheiros não a
compreenderão. [...] No mesmo instante Salvadora respondeu: é preferível morrer
como Cristo a viver como Judas! (CAVALHEIRO, 2001, p.104)
154
Embora Angelo Vial tenha mudado de lado, não renegou suas ideias: foi sócio
contribuinte do Partido Comunista Brasileiro até a sua morte (BONADIO, 2004) e, na condição
de gerente, sempre foi querido pelos operários.
2.3 As primeiras tentativas de greve sob o olhar da imprensa
Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão -
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.
(Vinicius de Moraes)
A partir das duas últimas décadas do século XIX, a indústria passou a exercer uma
influência decisiva sobre a estrutura urbana. A cidade passou a ser determinada, principalmente,
pelo crescimento fabril e a arquitetura das fábricas alterou a fisionomia da cidade. Para Boris
Fausto (1976), o sistema de máquinas exige a observação, a continuidade da vigilância que o
estilo das construções procura reforçar, com suas paredes elevadas e as janelas abertas no alto,
impedindo a visão do exterior. Em Sorocaba, as fábricas têxteis predominavam e
consequentemente eram as que empregavam maior número de operários. A fábrica Santa
Rosália frequentemente é citada por pesquisadores da história operária como aquela que sugava
a força de trabalho de seus operários, obrigando-os a cumprir jornadas de trabalho de até 15
horas diárias, das cinco da manhã às 8 horas da noite, indo de “estrelas a estrelas”, como
descreveu Jacob Penteado em suas memórias. A isso somou-se a utilização massiva e
155
apropriação pelo capital da força de trabalho de menores e mulheres, submetendo por completo
a família proletária às condições impostas pela produção fabril.
Tratava-se do mesmo segredo deslindado por Marx n’O Capital: a criação pelo
operário, no interior da fábrica, de um valor excedente maior do que o valor de sua
força de trabalho e não pago pelo capitalista, chave da acumulação de riqueza de toda
a sociedade burguesa; o nascimento de uma nova forma de escravidão que submete
os proletários como “apêndices vivos de um mecanismo morto que existe
independente deles (FOOT; LEONARDI, 1982, p. 179).
Considerando ainda que a mecanização das fábricas têxteis, com a energia a vapor e os
teares mecânicos, acarretava uma desvalorização maior da força de trabalho e,
consequentemente, um crescimento de um exército industrial de reserva, não é à toa que a
indústria têxtil concentrava as taxas mais baixas de salário, em relação a outros ramos
industriais.
O anarquista Everardo Dias (1977, p. 212) descreveu as fábricas da seguinte maneira:
“Cada fábrica tinha um aspecto fosco e hostil de presídio, com seus guardas de portão fardados
e armados, operários e operárias submetidos a vexatórias revistas e humilhantes observações,
quando não recebiam ameaças de toda sorte. ”
Nessas condições, Sorocaba mantinha crescente número de operários em suas fábricas.
A grande imprensa reconhecia o valor deles para o progresso na cidade, do estado e mesmo do
Brasil. Mas, para que houvesse prosperidade, exigia-se uma dose de sacrifícios de todas as
partes, fossem dos patrões ou dos empregados. As relações entre capital e trabalho foram
assumindo contornos bem definidos: os patrões cada vez mais ricos e os operários cumprindo
seu papel, trabalhando dentro da ordem, produzindo sempre, e cada vez mais empobrecidos. Os
operários foram percebendo que, dentro dos sacríficios, sempre lhes cabia a parcela maior e
permaneciam sem vislumbrar perspectivas de melhoras na sua condição de vida.
Provavelmente por essa razão os operários da fábrica de chapéus Pereira & Villela se
declararam em greve em novembro de 1890, o que causou estranheza em Sorocaba, haja vista
um fato dessa natureza nunca ter acontecido.
Gréve (?) – Hontem constou ao delegado de policia que alguns operarios da fabrica
dos srs. Pereira & Villela, tinham feito gréve e por todos os meios procuravam vedar
que outros fossem ao trabalho diario. Incontinenti aquella autoridade, chamando para
seu escrivão ad hoc o 1.º escrivão judicial sr. Sousa Leite, deu tam promptas
providencias, que desfez-se, ao que parece a greve projectada, não sendo alterada a
ordem publica. Dizem-nos que hoje voltarão todos, ou quasi todos os operarios ao
trabalho (DIÁRIO DE SOROCABA, 22 nov 1890).
156
Por ser uma atitude inusitada, o jornal Diário de Sorocaba, ao noticiar o fato, já o fez
com uma interrogação no título. Entendeu o jornal a greve como um ato de ousadia por parte
dos operários? Provavelmente sim, já que considerou plenamente acertado o procedimento
adotado pelo Delegado de polícia, desfazendo a greve. Os procedimentos para por fim à
pretensa greve foram escritos, porém os motivos que levaram a ela foram silenciados.
Por quase uma década, não se teve notícias de reivindicações de operários que tivessem
recorrido à greve. Somente em 1901, depois de difíceis negociações com seus patrões, sempre
infrutíferas, os operários da Estrada de Ferro Sorocabana se declararam em greve. A situação
vivida pelos operários da companhia Sorocabana era angustiante, pois estavam com os salários
atrasados havia vários meses.
Quarta-feira ultima os operarios da Companhia Sorocabana, depois de se
manifestarem em gréve, foram a estação de trem desta cidade aonde arrancaram
trilhos, cortaram os fios do telegrapho, por causa do pagamento, que ha 4 mezes que
dinheiro nem siquer para matar o bicho. Existem empregados na Companhia
Sorocabana, que fazem 10 ou 11 mezes que não recebem dinheiro que é isso
verdadeiramente uma injustiça e que claramente deixa ver o procedimento da
companhia. (A ARRELIA, 14 jul 1901, p.2).
Essa greve tinha por motivo principal o pagamento dos salários atrasados decorrentes
da má administração da empresa. Porém a empresa procurou desvirtuar esse objetivo, alegando
que os operários estavam descontentes devido à transferência dos escritórios e oficinas da
empresa para São Paulo e Mairinque.
Tendo os operários bloqueado a linha férrea e cortado fios do telegráfo, a força policial
não tardou a chegar, vinda de São Paulo. Essa greve teve vários desdobramentos e atos de
violência, principalmente por parte da polícia. Aconteceram prisões de operários, confrontos
entre operários e policiais na rua e foram abertos vários inquéritos sobre a atuação de operários
durante o ocorrido.
Já o declaramos no ultimo artigo que escrevemos sobre a Sorocabana: não apoiamos
a violencia; mas os ultimos actos da directoria e Superintendencia daquella
Sorocabana, autorisaram perfeitamente a gréve de hontem. Aos operarios assistia um
direito indiscutivel e á directoria da estrada cabia prever o acontecido e cumprir com
o seu dever. Calcula-se em mais de trezentos o numero de operarios em greve.[...] A’s
3 horas e cincoenta minutos da tarde, chegou da Capital ao Alto da Boa Vista, um
trem especial com o Superintendente da estrada [...] e quarenta e cinco praças de
policia, [...] Assim é que o ESTADO e o CORREIRO attribuem a greve á noticia da
mudança de escriptorio e officinas desta cidade para São Paulo e Mayrink. Como
podem ver os collegas, pelo que acima dissemos, o motivo unico da gréve foi a falta
de pagamento, ha mezes já atrazados (DIÁRIO DE SOROCABA, 14 jul 1901, p.2).
157
Nessa ocasião, os pagamentos foram efetuados e os operários que mais se destacaram
no movimento foram demitidos. A atuação da polícia foi um aviso bem claro aos operários de
que as situações de greve seriam tratadas como caso de polícia. Era um alerta para que atos
semelhantes não se repetissem.
Outra tentativa de greve ocorreu na fábrica de óleos Santa Helena, cujo proprietário
Antonio Pereira Ignácio era um industrial em ascensão na época, e foi noticiada pelos jornais
Cruzeiro do Sul e O 15 de Novembro. As duas notícias aparecem em rápidas linhas, mas chama
a atenção que ambas tiveram como chamamento a palavra “desordem”. O 15 de Novembro
apenas acrescentou que o motivo da paralisação foi a falta de apontamento “de um quarto de
serviço da noite de sabbado, não tendo porém reclamação a fazer contra os proprietários do
referido estabelecimento” (O 15 DE NOVEMBRO, 9 ago 1906, p.1). O Cruzeiro do Sul
noticiou sobre a greve, alegando motivos frívolos provocados por empregados despeitados,
conforme constata-se no trecho reproduzido a seguir:
Desordem na «Santa Helena» Terça-feira ultima, ás 8 horas e 1/2 da noite, mais ou
menos, alguns operarios da fabrica de oleos «Santa Helena», por motivos frivolos,
declararam-se em greve, incitando os seus companheiros a acompanhal-os tambem.
Comparecendo a policia no local, effectuou a prisão dos despeitados, em numero de
oito, que, mais tarde, pagos e satisfeitos, foram despedidos da fabrica (CRUZEIRO
DO SUL, 11 ago 1906, p. 3).
Essa ocorrência deu-se numa terça-feira, por volta das 20 horas, quando os operários
abandonaram o serviço ao verificar não terem recebido parte do pagamento noturno referente
ao sábado anterior trabalhado. O excesso de horas de trabalho e mesmo a falta de pagamento
correto que os trabalhadores mereciam foi silenciado pelos jornais.
Em 1909, numa nota, o jornal A cidade de Sorocaba comentou sobre uma greve dos
carroceiros com a devida interrogação. Esses trabalhadores faziam o transporte de feijão para
exportação até a estação ferroviária. Reivindicavam um aumento nos valores por saca de feijão
carregada e desobrigavam-se de efetuar o ensacamento e pesagem do produto.
Gréve? - Nessa atitude permaneceram durante todo o dia, até que a noite chegaram a
um accordo com os exportadores, obtendo augmento de 50 réis por sacco conduzido,
que ate alli era o de 100 réis e eximindo-se de diversas obrigações, como fossem as
de ensaccamento e pesagem do genero a exportar-se. O facto que passou despercebido
indica deante da prompta resolução dos interesses, que a razão estava ao lado dos
carroceiros, que, assim viram sem delongas terminado o primeiro movimento grevista
nesta cidade (A CIDADE DE SOROCABA, 21 fev 1909, p.3).
Este não foi o primeiro movimento grevista de Sorocaba, mas pode ser considerado o
primeiro movimento bem-sucedido, uma vez que os reclamantes alcançaram o seu intento. Para
158
o jornal A Cidade de Sorocaba esse movimento passou despercebido, já para o jornal Cruzeiro
do Sul, o ocorrido não foi nem digno de nota. Silenciou.
Em 1910, houve mais uma tentativa de greve entre os operários da Fábrica Santa
Rosália, cuja reivindicação era o aumento de salário e a redução das horas de trabalho. Para
representar os operários, foi formada uma comissão constituida por três membros: um
brasileiro, um italiano e um espanhol. Os patrões, tendo conhecimento do que se passava, foram
ao encontro da comissão de operários e decididamente negaram-lhes tudo, inclusive o direito
de expor a situação. Os operários, ao terem conhecimento da maneira pela qual a comissão fora
recebida pelo patrão, foram tomados por um sentimento de revolta e, imediatamente, decidiram
abandonar o trabalho, declarando-se em greve pacífica. Resultou disso o seguinte:
[...] sabedores os patrões, dos nomes dos chefes do movimento, ordenaram o
pagamento dos respectivos salários e tambem os dos que não quizessem continuar no
trabalho em numero de setenta, pouco mais pouco menos. Feito isto despediram-n’os,
concedendo-lhes o prazo de 2 horas, e mais tarde de 24 horas para que desoccupassem
os predios em que habitavam nos terrenos da fabrica, o que foi feito sem resistencia
(O OPERARIO, 20 mar 1910, p.2).
Sobre essa tentativa malsucedida de greve operária o jornal A Cidade de Sorocaba
silenciou, não há nenhum registro em suas páginas. O jornal Cruzeiro do Sul brevemente
noticiou:
Avisado, compareceu ao local o dr. Delegado de Policia que deu logo as providencias
precisas, sendo despedidos os chefes do movimento, em numero de dez, e voltando
os demais operarios ao trabalho. Pelo que se verificou a gréve não teve apoio dos
operarios do importante estabelecimento fabril, havendo apenas um pequeno numero
de solidarios. Não foi portanto necessaria a paralysação do serviço, continuando a
funccionar regularmente (CRUZEIRO DO SUL, 12 mar 1910, p.3).
Foi uma nota breve nas páginas internas, talvez propositalmente para evidenciar a
irrelevância do fato. O Cruzeiro do Sul refere-se a uma greve iniciada por “alguns tecelões” da
fábrica Santa Rosália, que exigiam aumento de salário e diminuição das horas de trabalho, sem
representar o interesse e o desejo da maioria dos operários. A pouca importância dada ao fato
pelo jornal era uma forma de desencorajar futuras tentativas de greve por parte de outros
operários.
2.4 O olhar da imprensa sobre a primeira greve operária bem-sucedida
“É preciso abrir as portas e janellas dessas lugubres fabricas de tecidos para que
nellas entre o clarão da liberdade!”
(O Operário, 18 jul 1911)
159
A situação penosa dos operários se estendia por muito tempo, sem dar esperanças de
mudanças e melhora. A greve passou a ser cogitada. Para os libertários, explicava Errico
Malatesta a greve, antes de tudo, tinha uma função educativa, especialmente na sua preparação,
uma vez que os trabalhadores aprendem a lição da solidariedade, do apoio mútuo, embora não
seja a greve que irá resolver a questão social (TRAGTENBERG, 1989, p. XV). O movimento
operário do início do século XX foi marcado por duas manifestações sociais bem definidas: as
greves operárias, recurso de mobilização contra o patronato; e os Congressos Operários
enquanto forma de organização política independente e própria dos trabalhadores.
Pode-se dizer que a primeira greve anunciada dos operários das fábricas de tecidos de
Sorocaba seguiu na esteira do movimento impetrado pelos pedreiros. Em 25 de julho de 1911,
reuniram-se cerca de duzentos pedreiros e serventes com o objetivo de formação de uma “Liga
dos Pedreiros”, cujo objetivo era a fixação das oito horas de trabalho diário, além de aumento
de salário.
[...] depois de lançadas as bases da nova sociedade, uma commissão pela mesma
designada irá entender-se com os patrões, expondo o desejo da «Liga». Caso não seja
attendida a representação, os pedreiros de Sorocaba, então, declaram a gréve, porem
pacifica. Lembram os reclamantes as medidas tomadas em S. Paulo, Santos e Ribeirão
Preto onde os seus collegas foram attendidos, já com o augmento de salarios, já com
a diminuição de horas de trabalho (CRUZEIRO DO SUL, 25 jul 1911, p.2).
Por não terem sido atendidos em suas reivindicações, os pedreiros, conforme haviam
adiantado, declararam-se em greve em 1º. de agosto. Apesar de se manterem em atitude
pacífica, com o intuito de manutenção da ordem, fora solicitado um reforço policial de quinze
“praças” que vieram da capital. O jornal divulgou o seguinte em suas páginas: “Felizmente, ao
que se sabe, ainda não se registrou caso algum de perturbação da ordem que demandasse o
emprego de força. Ao que consta, muitos patrões e mestres de obras já se comprometteram a
acceder ao pedido dos operários” (A CIDADE DE SOROCABA, 3 ago 1911, p.2).
A campanha por melhores condições de trabalho nas fábricas se intensificou nas colunas
do jornal O Operário. O operariado não suportava mais uma carga de trabalho de quase 15
horas diárias. Espelhando-se no exemplo dos pedreiros, a deflagração de uma greve nas fábricas
estava iminente. Certamente já constituía motivo de preocupação para os patrões, tanto que
apareceu nas páginas do jornal Cruzeiro do Sul um aconselhamento aos operários sobre as
consequências funestas que poderiam advir de uma greve.
Dirigindo-se “Á classe operária” o autor que se intitulava “Amigo da ordem”
desqualificava o jornal O Operário, chamando-o de “jornalzinho” e afirmava que o periódico
160
tinha como pretensão colocar o operariado sorocabano, até então “ordeiro e pacato”, numa
situação aflitíssima de consequências desastrosas, em que a miséria certamente bateria à porta.
Desistam os operarios de Sorocaba da infeliz idèa que ora os empolga, certos de que,
mais cedo ou mais tarde, os capitalistas tem de volver os olhos para elles, procurando
suavisar a sua vida e remuneral-os melhor, porque si estes precisam dos primeiros
que, como o trabalho, lhes dão o sustento para si e sua prole, os capitalistas tambem
necessitam de braços para impulsionar a sua industria e duplicar os seus haveres. No
terreno das ameaças, indubitavelmente, nada conseguirão (CRUZEIRO DO SUL, 2
ago 1911, p.2).
O jornal Cruzeiro do Sul, expressão da imprensa burguesa, não conseguiu demover os
operários de suas intenções com o referido conselho e mais acaloradas ficaram as manifestações
após os pedreiros declararem, em assembleia, que, a partir de 1º de agosto, não trabalhariam
mais de oito horas por dia. Os pedreiros aguardaram uma resposta por parte dos empregadores
e, como não a obtiveram, declararam-se em greve pacífica. O trabalho de pedreiro exigia
qualificação, daí poderem exigir melhores condições de salário e de vida, uma vez que o
empregador era um pequeno empreiteiro que só recebia após o término do serviço, muitas vezes
tendo que arcar com o custo dos materiais fornecidos. Ora, uma paralisação dos pedreiros, num
momento de extrema necessidade, tendo em vista as inúmeras construções em andamento na
cidade, seria muito prejudicial a eles.
O Cruzeiro do Sul passou a dar um destaque sobre o estado de greve instaurado no
município. Ainda na edição de 2 de agosto já apareceu a manifestação dos empregadores dos
pedreiros. Os pequenos empreiteiros foram os primeiros a conceder o exigido pelos pedreiros.
Sorocaba, nesse tempo, passava por mudanças urbanas intensas com construções importantes
sendo executadas ao mesmo tempo, como: o grupo escolar, as ampliações no hospital da Santa
Casa de Misericórdia, a construção de fábricas, de casas de moradia para operários e outras
construções que exigiam mão de obra qualificada. Alguns empresários, certamente com a
intenção de enfraquecer a liga dos pedreiros, chegaram a contratar pedreiros de São Paulo. No
entanto, essas contratações foram insuficientes tanto para o trabalho como para conter o
movimento grevista. Diante dessa situação, os empreiteiros se manifestaram: “Acceitamos o
pedido dos pedreiros para trabalharem somente 8 horas, com este horario: das 7 da manhã ás
10 — uma hora para almoço — e das 11 ás 4 horas da tarde” (CRUZEIRO DO SUL, 2 ago
1911, p.2).
Os grandes empreiteiros justificaram que não poderiam, naquele momento, alterar o
trabalho em suas obras, pois vigorava um contrato de trabalho, porém, nas obras vindouras seria
observado o horário de oito horas diárias. Completava a notícia a informação de que a “parede”
161
– como eram chamadas as paralisações – resumia-se somente à classe dos pedreiros, que não
se havia estendido ao operariado das fábricas.
Ocorreu que os operários das fábricas têxteis também se declararam em greve. No
entanto, para se trabalhar nas fábricas de tecidos, não era exigida uma qualificação, o que
acarretava um desprestígio. Além disso, uma demissão não seria sentida, pois os capitalistas
contavam com um exército industrial de reserva. Mesmo com todos os riscos, os operários se
declararam em greve, afinal, tinham motivos de sobra para exigir melhores condições de vida
e de trabalho. Certamente, ponderaram, quem não tem nada, o que tem a perder?
A organização operária fortalecida em outras cidades pelo país respaldava essa decisão.
Num levantamento parcial, Edgar Rodrigues aponta, que no período de 1900 a 1910, ocorreram
111 greves operárias no Brasil; e 258 no período de 1910-1920. Em abril de 1906, realizou-se
o 1º. Congresso Operário, reunindo muitas instituições representativas dos operários de todo o
país. Sorocaba não se fez representar nesse Congresso. Nas teses apresentadas para debates e
aprovadas no 1º. Congresso Operário Brasileiro, ficou evidente as preferências dos
trabalhadores por um sindicalismo revolucionário, anti-militarista, apolítico e pelo ensino laico
(RODRIGUES, 1969).
Decididos pela greve, dentre vários motivos, prudentemente elegeram a jornada de
trabalho como principal reivindicação. Alegavam que a longa jornada não lhes permitia ter o
devido descanso e nem frequentar as escolas operárias noturnas.
Em 1º de agosto, anunciaram-se em greve pacífica os operários da Fábrica Nossa
Senhora da Ponte “com o fim de obter a modificação do horario daquella fabrica, de 12 e meia
horas para dez horas sómente de trabalho por dia” (A CIDADE DE SOROCABA, 6 ago 1911,
p.2) Apesar da atitude ordeira dos operários, o delegado de polícia solicitou reforços para São
Paulo, que enviou 50 “praças”.
No terceiro dia de greve, quando os policiais permaneciam nos portões da fábrica,
oferecendo proteção aos que quisessem trabalhar, também os operários das fábricas Santa
Rosália e Santa Maria se declararam em greve pela redução do horário de trabalho e pela
supressão dos serões de que eram obrigados a participar.
O jornal Cruzeiro do Sul, mais uma vez alinhando-se aos interesses da burguesia,
silenciou-se quanto aos direitos do operariado, mas registrou a lei sobre os crimes contra a
liberdade de trabalho, que segue conforme publicação. Interessante notar que, ao mesmo tempo
em que não havia lei que amparasse o trabalhador, havia lei para garantir os direitos dos patrões,
conforme reproduzido abaixo:
162
Para conhecimento dos interessados, transcrevemos em seguida as disposições do
Codigo Penal que se referem aos crimes contra a liberdade do trabalho:
Art. 204 — Constranger, ou impedir alguem de exercer a sua industria, commercio ou
officio; de abrir ou fechar estabelecimentos e officinas do trabalho ou negocio; de
trabalhar ou deixar de trabalhar em certos e determinados dias; Pena — de prisão
cellular por um a tres mezes.
Art. 205 — Seduzir, ou alliciar, operarios e trabalhadores para deixarem os
estabelecimentos em que forem empregados, sob promessa de recompensa ou ameaça
de algum mal. Pena — de prisão cellular por um a tres mezes e multa de 200.000 a
500$000.
Art. 206 — Causar, ou provocar a cessação de trabalho, para impôr aos operarios ou
patrões augmento ou diminuição de serviços ou salario: Pena — de prisão cellular por
um a tres mezes.
Paragrapho 1.o — Si para esse fim se colligarem os interessados: Pena — aos chefes
ou cabeças da colligação, de prisão cellular por dois a seis mezes.
Paragrapho 2.o — Si usarem de violencia: Pena — de prisão cellular por seis mezes
a um anno, além das mais em que incorrerem pela violencia.
Os arts. 205 e 206 acima transcriptos e seus paragraphos foram revogados pelo decreto
n. 1162 de 12 de dezembro de 1890, que alterou a redacção pela seguinte fórma:
1.o — Desviar operarios ou trabalhadores dos estabelecimentos em que forem
empregados por meio de ameaças, constrangimento ou manobras fraudulentas: Penas
— de prisão cellular por um a trez mezes e de multa de 200$000 a 500$000.
2.o — Causar ou provocar a cessação ou suspensão de trabalho, por meio de ameaças
e violencias, para impôr aos operarios ou patrões augmento ou diminuição de salario
ou serviço: Penas — de prisão cellular por dois a seis mezes, e de multa de 200$000
a 500$000 (CRUZEIRO DO SUL, 3 ago 1911, p. 3).
Dois dias se passaram e o clima aparentemente era de calma, pois até então não se
registrara nenhuma ocorrência, além da adesão dos operários das fábricas Santa Maria e Santa
Rosália. Os patrões não se manifestaram quanto às reivindicações operárias para a resolução da
crise que se estabelecera. Fora, provavelmente, uma atitude para medir forças, por meio da qual
aguardavam a rendição dos operários. Mesmo assim, foi solicitado mais um reforço policial por
parte do Delegado de Polícia, completando, assim, um contingente de cem policiais. Além do
reforço policial, o delegado de polícia lançou um edital que fora afixado em vários locais da
cidade e publicado pela imprensa, pelo jornal Cruzeiro do Sul, através do qual garantia proteção
e segurança àqueles que desejassem trabalhar e ainda aconselhava aqueles que insistiam na
greve sobre as consequências danosas de tal conduta.
EDITAL - O dr. João Eremita da Silva Ramos, delegado de policia, faz saber aos que
o presente virem, que a delegacia de policia desta cidade está bem apparelhada para
garantir aos operarios extranhos ao movimento grévista que quizerem voltar ao
trabalho, uma vez reabertas as fabricas de tecidos, agindo com toda a energia para
com aquelles que, usando de «violencia ou ameaça», procurarem impedir o mesmo
trabalho, principalmente contra os individuos apontados como cabeças do alludido
movimento. Faz saber, como medida de ordem, que não admitte ajuntamento ou
agglomerações de pessoas nas esquinas e praças publicas e aproveita o ensejo para
pedir ás pessoas sensatas e aos filhos desta terra, em nome do seu nunca desmentido
patriotismo, que o auxiliem no desempenho da ardua missão que a sociedade, por um
dos seus orgãos, se dignou conferir-lhe, dando conselhos salutares aos rapazes
inexperientes que, impellidos por mão occulta, tem concorrido para a situação
anormal que Sorocaba ora atravessa. E para constar mandou lavrar o presente que vae
163
affixado em lugar publico e posteriormente publicado pela imprensa, ficando o
mesmo transcrito no livro competente. Sorocaba, 6 de Agosto de 1911. Eu, Joaquim
A. R. de Arruda, escrivão, o escrevi (CRUZEIRO DO SUL 8 ago 1911, p.3).
No dia 3 de agosto, os operários das fábricas Nossa Senhora da Ponte (Fonseca), Santa
Maria e Santa Rosália percorreram as ruas da cidade em atitude pacífica, sem nenhuma
alteração da ordem. Entretanto, os estabelecimentos industriais, a pedido de seus donos,
“estavam sendo guardados por praças competentemente municiadas”. Procurando tornar o fato
da greve irrelevante e algo passageiro, o jornal Cruzeiro do Sul completava a notícia da seguinte
maneira: “reina completa paz entre o operariado das fabricas S. Paulo e Votorantim, que não
adheriram ao movimento” (CRUZEIRO DO SUL, 5 ago 1911, p.2).
Em 8 de agosto, aconteceu algo inusitado que veio mudar radicalmente os rumos do
movimento e fora noticiado de maneira diferente pelos jornais Cruzeiro do Sul e A cidade de
Sorocaba. Aproximadamente duzentos operários da Fábrica Votorantim, que já cumpriam
jornada de dez horas diárias, em sinal de solidariedade, abandonaram o trabalho e seguiram
para Sorocaba a fim de apoiar os grevistas. O Cruzeiro do Sul, numa tentativa de mostrar a
obediência dos operários, disse que os “operários haviam solicitado uma licença de meio dia
para virem testemunhar a sua solidariedade com os seus companheiros da cidade”, como se
fosse possível interromper a produção da fábrica por esse motivo.
Com a chegada dos operários da Votorantim ocorreu uma situação de confronto entre
operários e policiais. O jornal A cidade de Sorocaba a descreveu da seguinte maneira:
[...] a policia, dizemos nós, entendeu ser prudente collocar um contingente de soldados
a entrada da cidade, com catadura feroz a ver se atemorizava os operarios do
Votorantim, e lhes suggeria a idéa commoda de voltarem pé atraz, evitando assim
muitos receios e trabalhos aos mantenedores da ordem. Entretanto os grevistas ou não
comprehendendo a ameaça ou menosprezando-a, transpuzeram a ponte do rio
Sorocaba, e penetraram no centro da cidade, pacificamente, sem armas, a dar vivas á
classe operaria. Quando se approximavam do edificio da cadeia publica, um pelotão
de soldados, ás pressas, como em imminencia de combate, forma-se em linha no meio
da rua, impedindo o transito e em seguida investe numa marcha de bayonetas caladas
contra os inermes grevistas, até o largo da Matriz, havendo uma enorme correria não
só dos atacados como tambem de curiosos e transeuntes que passavam por aquellas
adjacencias. [...] pouco depois a policia reentrou em si mesma, viu que o seu apparato
bellicoso estava produzindo consequencias deploraveis, e por esse motivo mandou
recolher a quarteis toda a força que se achava disseminada pela cidade (A CIDADE
DE SOROCABA, 10 ago 1911, p. 2).
Sobre o ocorrido quando da chegada dos operários, o jornal Cruzeiro do Sul relata:
Nessa occasião, devido á precipitação e á falta de calma de alguns poucos imprudentes
a autoridade local se viu na contingencia de, com alguma energia, dispersar um
numeroso ajuntamento que se formara na rua de S. Bento, nas proximidades do
164
Gabinete de Leitura. Entretanto a intervenção suasoria de varias pessoas de cotação
em nosso meio social, promptamente attendida pelos operarios, acalmou os animos
desde logo, evitando-se assim que as cousas assumissem maiores proporções
(CRUZEIRO DO SUL, 10 ago 1911, p.2).
Outro ponto de divergência na narrativa dos fatos entre os dois jornais diz respeito à
realização de uma reunião entre os industriais para discussão das reivindicações operárias.
Afirmou o Cruzeiro do Sul que a convocação para essa reunião partiu do Delegado de Polícia
“afim de poder bem se orientar sobre a situação, e no intuito mesmo de ver si era possivel obter
em favor do operariado alguma concessão justa”. Já o jornal A cidade de Sorocaba afirmou:
Emquanto, porém, se davam nas ruas taes exhibições, dignas de serem approveitadas
por Offenbach, uma commissão de pessoas pacificadoras, bem intencionadas, os srs.
Arthur Gomes e Francisco Catalano, incumbida pelos operarios em greve, se entendia
com os fabricantes, reunidos na Delegacia de Policia, e negociavam as bases de um
accordo para por termo ao movimento do operariado (A CIDADE DE SOROCABA,
10 ago 1911, p. 1).
De acordo com A cidade de Sorocaba, nessa reunião, realizada ao meio-dia, os
industriais aceitaram a redução da jornada, que passaria a valer a partir de 1º de outubro. Porém,
levada a proposta ao conhecimento dos operários, eles a recusaram. Esse ponto nem foi
mencionado pelo Cruzeiro do Sul. Nova reunião fora marcada para aquele mesmo dia,
conforme depreende-se do fragmento a seguir:
Reunidos de novo, á noute na casa do distincto industrial sr. Francisco José Speers os
negociadores do accordo, foi por fim elle ultimado, ficando estabellecido como
pediam os operarios a fixação de 10 horas de trabalho por dia, a começar hontem em
diante. Acceita com geral regosijo a solução da crise, hontem recomeçaram as fabricas
o seu trabalho ha dias interrompido (A CIDADE DE SOROCABA, 10 ago 1911, p.2).
Quanto ao desfecho dessa greve, o jornal A cidade de Sorocaba posicionou-se
classificando a greve como justa e razoável, como evidenciado nas palavras reproduzidas
abaixo:
Aqui cabe-nos dar parabens tanto á classe operaria como aos srs. fabricantes, aos
primeiros pela attitude correcta, digna, ordeira, pacifica em que sempre se manteve a
despeito das muitas provocações que em gente sem juiso causaria conflictos
lamentaveis, e porque obteve justiça para a sua causa; e aos segundos, os fabricantes,
porque, pondo de parte pequeninos interesses pecuniarios, obedeceram á propria
consciencia, cedendo a uma reclamação sob todos os pontos de vista, justa e razoavel
(A CIDADE DE SOROCABA, 10 ago 1911, p. 2).
O jornal Cruzeiro do Sul deixou transparecer que o resultado positivo fora uma solução
honrosa encontrada pelos patrões, quase um ato de bondade para com os seus operários:
165
Os srs. industriaes, que como todos nós sabemos, são homens de reconhecido amor
ao desenvolvimento desta terra, concedendo à classe operaria a fixação de horas de
trabalho pedida, praticaram um acto que muito os nobilita, provando, dest’arte, o
conceito em que tem aquelles que mourejam no afanoso labor quotidiano. Si os
operarios, pelo seu braço, pelo seu trabalho, são dignos de acatamento, os srs.
industriaes que fundam e sustentam monetariamente estabelecimentos onde se requer
o concurso dos mesmos operarios, não são menos dignos do apoio e do incitamento
de todos (CRUZEIRO DO SUL, 10 ago 1911, p.2).
Para o jornal O Operário, a vitória conseguida foi motivo de imenso júbilo, pois fora
uma “vitória sacrossanta”, que deu novos ânimos para continuar a luta pelos direitos dos
operários.
Salve!... A victoria operaria alcançada agora servirá de licção a essa récula de vanpiros
que existem em Sorocaba, que pensam que os seus operarios hâo de ser sempre uma
massa de infelizes e submersos [...] As violencias, as perseguições, e as ameaças por
parte da policia e dos taes falsos “Amigos da ordem” serviram de alicerce a grande e
esmagadoura victoria. [...] todos os operarios de Sorocaba honraram a Classe
libertando os seus collegas das garras aduncas da nefanda escravidão moderna (O
OPERARIO, 13 ago 1911, p.1).
Logo após o término da greve dos operários, houve troca de insultos pelos jornais. O
jornal A Cidade de Sorocaba publicou a carta de “Um Operário”, que denunciava a conduta
conciliatória do deputado Luiz Pereira de Campos Vergueiro. Apesar de se dizer amigo dos
operários, foi ele quem recomendou a solicitação de um aparato policial exagerado e que
interveio para que os companheiros de Votorantim fossem recebidos com violência policial,
quando apenas foram prestar apoio e solidariedade aos trabalhadores de Sorocaba. Segundo o
jornal, “Qual de nós ignora que o dr. Campos Vergueiro, ao mesmo tempo que aconselhava a
patrões tenaz resistencia, aconselhava tambem aos incautos operarios a persistirem na lucta
«pela justiça da nossa causa», hypothecando áquelles e a estes o seu apoio?! (A CIDADE DE
SOROCABA, 13 ago 1911, p.2).
Em resposta o chefe político do jornal Cruzeiro do Sul, Luiz Pereira de Campos
Vergueiro defendeu-se dizendo que sempre esteve ao lado dos operários, que inimigos políticos
estavam procurando colocar os operários contra a sua pessoa. Segundo ele, “nenhuma tem sido
a nossa intervenção, a não ser os conselhos que temos levado aos operarios nossos amigos para
que fujam da exploração de elementos perturbadores que menos visam os interesses da classe
do que tirarem para si vantagens proveitosas” (CRUZEIRO DO SUL, 14 ago 1911, p.3).
Essa greve foi além da simples reivindicação operária. Seus reflexos foram sentidos em
vários setores da sociedade e certamente serviram como alerta à elite industrial. Os operários
perceberam que a união os fortaleceu e que, juntos, poderiam conseguir muito mais. Os próprios
166
patrões, incrédulos quanto à força e resistência dos operários, foram obrigados a ceder. A cidade
se alterou. O comércio praticamente ficou paralisado. Até mesmo uma apresentação teatral
beneficente fora adiada. A polícia foi obrigada a pedir reforços, que não intimidaram os
operários. Os tempos estavam mudando, os operários conseguiram mostrar que eles existiam,
e que tinham significação social.
Com o desfecho da greve favorável aos operários, o jornal O Operario sentiu-se
fortalecido em prosseguir com a luta, afinal, haviam conseguido reduzir a jornada de trabalho
para dez horas, mas mesmo assim era uma jornada excessiva. Os patrões entenderam que havia
sido a primeira vitória dos operários e que outras viriam. Enquanto a imprensa operária
incentivava uma organização maior, os industriais iniciavam uma perseguição contra os
operários, antevendo o fortalecimento deles em suas reivindicações futuras.
O Jornal O Operário noticiou esses fatos da seguinte maneira: “Já fomos informados
que os proprietários das fabricas de Tecidos que se declararam em greve estão procurando
vingar-se dos seus operários maltratando-os” (O OPERARIO, 20 ago 1911, p.2).
Nessa ocasião, o jornal abriu o que foi chamado de “Álbum de Ouro”, onde seriam
inscritos os nomes dos empreiteiros, proprietários de oficinas etc., que concedessem aos seus
operários as oito horas de serviço.
O jornal conclamava os operários a se organizarem ainda mais, pois muito faltava a ser
conquistado, como o aumento de salário, a instrução para a criança proletária, a regulamentação
do trabalho de mulheres e crianças, a escola para operários etc. Para isso, seria necessária a
formação de uma “Liga” para “todos unidos defendermos os nossos direitos, o luctar pelo nosso
bem estar” (IDEM, p. 2).
A vitória dos operários nessa greve deu-lhes ânimo e, certamente, eles entenderam que
a união os fortalecia. A partir daí, as greves foram tornando-se mais frequentes, passaram a ser
utilizadas como recurso extremo. Se, por um lado, os operários se fortaleciam com os
movimentos grevistas, por outro lado, os patrões também se organizavam para combatê-las. Os
industriais perceberam que a situação operária não se tratava mais de pequenas manifestações
isoladas de alguns operários insatisfeitos, que poderiam ser dispersados pela polícia. A causa
operária ia adquirindo novos contornos e, para tanto, os industriais passaram a ter
procedimentos muito semelhantes entre si quanto às relações de trabalho, visando ao
enfraquecimento da classe operária. Não havia alternativa melhor para o operário, pois em todas
as fábricas era o mesmo sistema de trabalho. Os operários passaram a pagar um preço alto pela
reivindicação de seus direitos. As demissões, os despejos das casas, o tratamento cruel dentro
das fábricas, as perseguições de operários recrudesceram.
167
Sem se deixar cair numa banalização, as greves foram sucedendo-se. Os operários se
declaravam em greve, quase sempre de maneira pacífica por aumento de salário, por serem
tratados de maneira desumana por mestres e contramestres, pela longa jornada de trabalho, em
solidariedade por demissões sumárias de operários, pelas multas etc.
Mas, mesmo dentro da organização operária, havia problemas ideológicos, ou seja, a
luta pela conquista de direitos não era unânime. Muitos operários preferiam ter benefícios,
galgar posição melhor dentro da fábrica ou mesmo obter a simpatia do patrão pela via da
delação, da bajulação, da traição ou atuando como “fura-greve”. Eram os chamados “krumiros”,
que atuavam sempre visando desestabilizar os movimentos grevistas.
A greve mais importante ocorrida em Sorocaba foi em decorrência do que acontecia
também em São Paulo e em todo país. Em 1917, a situação de penúria vivida pelo povo
brasileiro era alarmante. Ninguém suportava mais a carestia dos gêneros alimentícios, o descaso
do governo em amparar legalmente os operários, tratando suas reivindicações sempre como
caso de polícia. Na visão do anarquista Gigi Damiani expulso do Brasil em 1919, o governo
brasileiro,
{...} emanado diretamente de um bando de patrões, antigos traficantes de escravos ou
filhos de fazendeiros de café, habituados ao comércio de escravos, impedia com fácil
êxito a afirmação de um movimento que não encontrava ainda correspondência na
grande massa dos trabalhadores (DAMIANI, 1920, p. 31)
Em 1917, os confrontos entre e a polícia e os operários se intensificaram nos portões
das fábricas de São Paulo. Liderados pelo Comitê de Defesa Proletária, era exigido aumento de
35% nos salários, ou 25% conforme o caso, e providências dos poderes públicos para evitar a
especulação nos gêneros de primeira necessidade (BEIGUELMAN, 1977).
No dia 9 de julho, defronte aos portões da fábrica Mariangela, num confronto entre
operários e a força policial, foram disparados tiros pela polícia, sendo que um deles veio a
atingir o sapateiro espanhol José Martinez, de 21 anos de idade, que faleceu no dia seguinte. A
partir desse fato, irrompeu-se a maior greve operária da história. O enterro do jovem operário
transformou-se numa grande manifestação.
Antes de entrar no cemitério, vários oradores se dirigem à multidão para verberar com
indignação o assassínio do moço operário, e que agora a polícia quer atribuir a culpa
aos próprios irmãos de sofrimento e opressão. Por último uma oradora fala e termina
o seu discurso em pranto. A multidão chora e clama justiça. A soldadesca não contém
a sua emoção, soldados limpam os olhos com a manga da farda (DIAS, 1977, p.297).
168
Em 17 de julho, os operários de Sorocaba se declararam em greve e a adesão foi
crescente, chegando a ter 10 mil operários parados em Sorocaba, conforme notícia do jornal
Cruzeiro do Sul:
O encarecimento rapido e crescente dos gêneros alimenticios e o decrescimo de
salarios, realisado em alguns estabelecimentos concorreram, alem de outros motivos
de ordem secundaria, para levar os operarios à greve. De facto, não era possível que
as coisas continuassem no pé em que estavam. A miseria negra e horrível ameaçava
centenas de lares. Ao trabalho exhaustivo de horas excessivas, não correspondia uma
alimentação generosa e bôa, pois para começar do pão, todos os artigos subiram muito
o preço e os operarios eram coagidos a reduzir ainda mais o seu parco “menu”. Os
operarios em parede pacifica procuram nem mais nem menos do que conseguir um
pequeno augmento de salario. Foi para esse fim que se declarou A GREVE
(CRUZEIRO DO SUL, 17 jul 1917, p.1).
Figura 17 - Jornal Cruzeiro do Sul de 17 jul 1917
Fonte: Gabinete de Leitura Sorocabano.
Os industriais de Sorocaba, sabedores das proporções que tomava a greve em São Paulo
e temendo que o mesmo pudesse ocorrer em Sorocaba, reuniram-se rapidamente e decidiram
fazer algumas concessões como: conceder 20% de aumento de salário, não dispensar do
trabalho nenhum operário grevista, respeitar o direito de associação operária e pagar os salários
atrasados dentro da primeira quinzena do mês subsequente.
Entretanto, os operários não queriam concessões, exigiam seus direitos e não aceitaram
o que fora oferecido pelos patrões. Mais uma vez, os industriais se reuniram, agora contando
com uma comissão de representantes dos operários. Foi deliberado o seguinte:
169
Os industriaes abaixo-assignados se compromettem a beneficar os seus operarios,
dando-lhes: 1º- dez horas de trabalho por dia; 2º- 20% de augmento de salario; 3º- o
pagamento será por metro e não por peça; 4º- de acordo com as actuaes necessidades
farão trabalhos extraordinarios, fora os teares, augmentando assim o serviço de 10
para 11 horas, sendo esse excesso pago a parte, á razão de serviço extraordinario; 5º-
não sera nenhum operario demitido do trabalho por motivo de greve (CRUZEIRO DO
SUL, 18 jul 1917, p. 2).
Nos anos seguintes, 1918 e 1919, aconteceram outras grandes greves em São Paulo e
em Sorocaba. A conquista pelos direitos não havia terminado. As ideias anarquistas
encontravam terreno fértil no meio operário, o que gerou perseguições, prisões, deportações.
Entretanto, uma artimanha foi engendrada pelo secretário geral do Centro das Indústrias de
Fiação e Tecelagem de São Paulo (CIFTSP), Pupo de Oliveira, que, durante a década de 20,
criou e operou uma rede de informações bem coordenada e dirigida contra os sindicatos, tendo
como parceiro o delegado de polícia Braulio de Mendonça. A ideia original do secretário-geral
era formar uma “lista negra” para identificar os operários ladrões das fábricas. Como ele mesmo
não tardou a compreender, seria útil como meio de “limpar a força de trabalho de elementos
indesejáveis, que operam dentro dela, em certas ocasiões, como fermento de indisciplina”. Os
nomes dos agitadores deveriam ser encaminhados pelas fábricas ao Centro das Indústrias de
Fiação e Tecelagem de São Paulo (CIFTSP), que os retransmitiriam às demais fábricas. Durante
vários meses, entretanto, não se fizeram listas de ladrões: a maioria dos nomes que figuravam
nas relações eram de simples operários que outras coisas não haviam feito senão “demonstrar
indisciplina” (DEAN, s/d, p. 177).
Visando aprimorar o projeto, numa ação conjunta com o departamento de polícia,
resolvem “elaborar dossiês de todos os trabalhadores, de modo que se pudesse averiguar-lhes
continuamente a fidedignidade e os trabalhadores em greve fossem impedidos de encontrar
emprego em outras fábricas.” (IDEM, p. 177). Essa prática foi aprimorada em Sorocaba, em
parceria com o Delegado Braulio Mendonça, como se constata no trecho transcrito a seguir:
A Delegacia Regional de Polícia desta cidade está fazendo activamente a identificação
dos operários das nossas fábricas devendo concluir até o fim do mez cerca de 6 mil
promptuarios. As fichas dos promptuarios são remetidas ao Gabinete de identificação
que communicará à Delegacia desta cidade se há na policia algo em desabono do
identificado. Cada promptuario deverá ser completado com a fotografia da pessoa
identificada (CRUZEIRO DO SUL, 19 out 1919, p.2).
Dessa forma, criou-se uma relação harmoniosa entre os próprios industriais, já que o
número de associados do CIFTSP aumentou após essas medidas, inclusive contando com
membros da própria polícia. É sabido que o número de greves, ao menos noticiadas pela
imprensa, diminuiu depois de 1922, porém a identificação dos trabalhadores na policia
170
provocou revolta no seio do operariado, obrigando o próprio CIFTSP a assumir a tarefa de
proceder à identificação científica (sic) de todos os operários.
Em Sorocaba os operários tinham a chamada “caderneta operária”, onde eram
registrados todos os fatos da vida do operário. Esses procedimentos, que foram disseminando-
se em todas as fábricas, contribuíram eficazmente para o enfraquecimento do movimento
operário.
De acordo do Bonadio (2004), a conduta autoritária e intransigente do patronato em
relação aos trabalhadores mantinha-se forte e viva no final da década de 1940. No entanto,
Angelo Vial, gerente da Fábrica Votorantim, aboliu a “lista negra” para a admissão de operários
e foi seguido nesse gesto por Heitor Antunes, administrador da Fábrica de Tecidos Nossa
Senhora da Ponte. Essa atitude - e a de Antunes - lhe valeu ferrenha vigilância pelos órgãos
policiais, que interpretaram seu procedimento como uma aproximação ao comunismo, apesar
de sua notória atuação como líder católico. Esses dois gerentes, também unidos pela primeira
vez na história do operariado sorocabano, pagaram um abono de Natal aos seus empregados.
2.5 Embates ideológicos entre os jornais Cruzeiro do Sul e O Operario
O jornal Cruzeiro do Sul, chefiado por Luis Pereira de Campos Vergueiro, representava
os interesses da burguesia e o jornal O Operário defendia os interesses da classe operária. Esses
dois jornais, por representarem interesses opostos, viviam numa interminável troca de insultos
e acusações. A respeito de certos eventos e situações, apenas pela exposição dos fatos de um
ou de outro jornal, torna-se difícil saber o que realmente aconteceu, uma vez que as narrativas
têm pontos de vistas e interesses totalmente opostos sobre os fatos.
Em seu primeiro editorial, o jornal O Operario rebatia críticas recebidas por outro
jornal, certamente tratava-se do Cruzeiro do Sul:
Antes do nosso aparecimento, já merecemos a honra de um combate: attribuiram-nos
uma origem mesquinha, a causa embryonaria duma paternidade politica claramente
apontada. Neste pressuposto, atacaram apenas o que se esboçava, o projecto desta
publicação, que visa um desideratum muito legítimo, qual é o de conseguir a união ou
a solidariedade da família operaria de Sorocaba (O OPERARIO, 18 jul 1909, p.1).
Não demorou muito tempo para o jornal Cruzeiro do Sul começar a rebater as críticas
feitas pelo O Operario sobre as condições vividas pelo operariado nas fábricas:
171
Appareceu no domingo passado o jornal «O Operario» atacando, em diversos artigos,
o pessoal superior e administrativo de algumas fabricas existentes. [...] A imprensa
subentende liberdade e a liberdade deve ser aproveitada em auxilio de algum generoso
pensamento de humanitarismo. Mas... e este é o ponto. «O Operario» será mesmo um
jornal, na significação precisa, exacta dessa palavra? (CRUZEIRO DO SUL, 30 set
1909, p.2)
Num tom provocativo, o Cruzeiro do Sul questionava a conduta desse novo órgão,
desfilando várias indagações: tinha uma orientação social, política ou filosófica? Qual a
doutrina que pretendia divulgar? Qual era a sua propaganda? Qual a defesa que pretendia?
Colocava em dúvida, ainda, a idoneidade de seus redatores.
Vêm os leitores quantas interrogações, sem respostas, acompanham n’uma assuada
forte, o excepcional paladino da classe operaria . . . Acompanham e acompanharão,
porque não pode a opinião publica consentir que se pratique, tão a vontade, negro
attentado de enganar honestos trabalhadores, querendo arrastal-os a um caminho
perigoso, com a affirmação de factos inveridicos (CRUZEIRO DO SUL, 30 set , 1909,
p. 2)
Para o Cruzeiro do Sul, parece que a versão do patrão é a única verdade e as revelações
dos abusos do mais forte sobre o mais fraco são um falseamento da realidade.
O período de convivência entre esses dois jornais foi marcado por embates constantes.
O Operário, enquanto defensor e aglutinador da classe operária, fazia as denúncias sobre o que
ocorria nas fábricas. O Cruzeiro do Sul rebatia essas denúncias e críticas e posicionava-se
claramente ao lado dos patrões. Entretanto, diante das acusações feitas pelo outro jornal,
lançava mão de um expediente que, à primeira vista, representava ser a expressão da verdade,
conforme se verá nos exemplos arrolados a seguir.
Em agosto de 1909, num fato já apresentado neste trabalho, o jornal O Operário fez
pesadas críticas à Fábrica Votorantim sobre a emissão de cartões com determinados valores
para a compra de gêneros alimentícios pelos operários somente num determinado
estabelecimento comercial, denominando essa prática de abusiva, pois não permitia que os
operários comprassem o que quisessem e nem onde quisessem. Para O Operario, o gerente da
fábrica Votorantim, Eugênio Mariz, era “conspicuo, intelligente, honesto”, porém
“deshumano” (O OPERARIO, 17 out 1909, p.1).
Em resposta a essa denúncia, o jornal Cruzeiro do Sul publicou um manifesto dos
operários da fábrica de Votorantim. Nele, os operários afirmavam-se satisfeitos com o sistema
de cartões e até o consideravam vantajoso e penhoravam total apoio a “digna gerência da
fábrica”. Afirmavam, ainda, que desaprovavam a postura “de um papelucho, que se diz jornal
defensor dos operários”, protestando energicamente contra essa publicação (CRUZEIRO DO
172
SUL, 5 out 1909, p.2). Seguiram-se, a esse manifesto, assinaturas de mais de 300 nomes de
operários, chefes de seção e funcionários do escritório da fábrica Votorantim.
Além do manifesto publicado pelo jornal Cruzeiro do Sul, os operários da fábrica,
acompanhados pela banda de música, foram “levar ao seu gerente os protestos da sua
solidariedade no momento em que um jornal o procurava desprestigiar aos olhos de seus
subalternos” (CRUZEIRO DO SUL, 2 out 1909, p.2). Após discursos que ressaltavam as
qualidades do gerente, ele distribuiu aos presentes “profuso copo de cerveja”.
Sobre essa manifestação, o jornal O Operário afirmou que os operários foram
pressionados a assinar o manifesto e, na manifestação na casa do gerente, a “ella so
compareceram creanças illudidas pelas promessas de distribuição profusa de marmelada e
bolachas” (O OPERARIO, 17 out 1909, p.1).
Em resposta as acusações do jornal O Operário, o Cruzeiro do Sul assim se manifestou:
Fique sabendo a gente do «Operario» que os operarios de Sorocaba são homens
altivos, honestos, criteriosos e prefiririam perder o emprego do que sujeitar-se ao
papel degradante de assignar um protesto contra a sua vontade. São homens pobres
mas honrados; e a pobreza não os impede na conservação de sua altivez, de sua
hombridade, -qualidades essas que a gente do «Operario» não as possue, porque se as
possuisse não proseguiriam nessa carreira polluta, ou antes, nem siquer a encetaria
(CRUZEIRO DO SUL, 13 out 1909, p.2).
Em outra situação, numa mesma edição, o jornal O Operário denunciou fatos ocorridos
em duas fábricas da cidade. Sob o título Violências de um gerente, referiu-se ao procedimento
do “prepotente e violento” gerente Julio Cugnasca, da fábrica Nossa Senhora da Ponte, que,
dentre várias arbitrariedades, estava obrigando todos os operários a contribuirem com a Santa
Casa de Misericórdia. Os descontos eram feitos nos “seus minguados ordenados” e, mesmo que
houvesse vários membros de uma única família trabalhando, todos sofriam os descontos. Na
mesma página, com o título Contra Mestre espancador, o jornal denunciou o tratamento
desumano dispensado, por parte de um encarregado, às crianças da fábrica Santa Maria:
O Contra Mestre da fiação daquelle estabelecimento industrial costuma
frequentemente, infligir aos menores sob sua direcção, castigos corporaes sem que até
agora tenha havido uma medida energica e prohibitiva desse acto de affronta aos
nossos brios, por parte do sr. Alberto, gerente daquella fabrica, que conhece de sobra
os procedimentos do seu subordinado (O OPERÁRIO, 26 set 1909, p.1).
Mais uma vez, o jornal Cruzeiro do Sul saiu em defesa dos patrões, anunciando uma
manifestação que seria “promovida pelos operarios daquelle estabelecimento, como protesto
173
contra as perfidas e perversas accusações que se tem feito aos distincto moço”. Referia-se ao
gerente da fábrica Santa Maria, Alberto Kenworthy.
Os operários da fábrica Santa Maria, tal qual os operários da fábrica Votorantim,
publicam, no jornal Cruzeiro do Sul, um manifesto onde repudiaram veementemente as
denúncias do jornal O Operário, seguidas de mais de trezentas assinaturas de operários. Num
determinado dia, esses operários, espontaneamente, “num numeroso prestito”, dirigiram-se à
residência do gerente Alberto Kenworthy, que fora avisado da “expontanea manifestação” para
prestar-lhe as devidas homenagens e agradecimentos por sua conduta correta na direção da
fábrica. De acordo com o Cruzeiro do Sul, participaram da manifestação o pessoal do escritório
da fábrica, mestres e contramestres e todos os empregados do estabelecimento. Finalizava o
jornal dizendo que “depois de algumas horas de agradavel e amistoso acolhimento, na
residencia do sr. Alberto Kenworthy, retiraram-se todos para o Club Sta. Maria, onde dera
começo á animada soirée”. Para esse jornal, a referida manifestação foi a demonstração maior
da amizade e da união que reinava entre os operários da Fábrica Santa Maria e o seu gerente.
Chama a atenção, na leitura do protesto dos operários da fábrica Santa Maria, o tom
raivoso com que eles se referem ao jornal O Operário, empregando termos como “papelucho”
mantido por “ calumniadores de profissão”. Finalizavam o manifesto com as seguintes palavras:
Não deveriamos ter descido tanto, para dar uma resposta a esses calumniadores de
profissão; mas diante de tão perfidas mentiras, vimos nos obrigados a vir destruil-as
com o exemplo mais frizante que é o de ter o sr. Alberto Kenworthy assumido a
gerencia da Fabrica ácerca de 5 annos e ainda conservarem-se nella mais de 60% dos
empregados que elle encontrou. E si ainda isso não basta, podem os responsaveis
desses papeluchos (que cremos não terem ido interrogar todos os operarios da Sta.
Maria, sem distincção de classe, que terão sempre palavras elogiosas a favor do sr.
Alberto Kenworthy, porque encontramos nelle o verdadeiro prototypo da honra, o
verdadeiro prototypo da caridade. Portanto acabem para sempre com essas vilanias,
por que do contrario reclamaremos como Lycurgo: a extincção dos homens inuteis a
sociedade (CRUZEIRO DO SUL, 12 out 1909, p.1).
Da leitura desse “vigoroso protesto”, chama a atenção os operários considerarem
insignificante uma rotatividade, em cinco anos, de 40% de operários. Outro ponto a ser
observado: não nos parece que havia uma animosidade entre os próprios operários, afinal, o
jornal O Operário tinha em sua direção operários, inclusive que trabalhavam na fábrica Santa
Maria. A utilização de termos tão violentos, rebuscados e elitistas assemelham-se muito ao
estilo da própria redação do jornal Cruzeiro do Sul, como o que segue:
Tal periodico, que se não sabe de onde veiu e para onde vae, sem responsavel, sem
programma, sem idéa e sem doutrina, já está reduzido á nullidade caracteristica dos
174
corpos imprestaveis, de onde nunca deveria ter sahido, pelo altivo e glorioso libello
lançado pela nobre classe dos homens do trabalho,—homens que não pactuam com o
sodalicio açafalado, com a mamcomunação retrograda e perversa de dois ou tres
individuos que não fazem parte da classe e que, por isso mesmo, pretendem a
derrocada da ordem e consequentes effeitos. A gente de tal folha, se possuir ainda um
vago resquicio de pudor, moralidade, e amor proprio, deve recolher-se
terminantemente aos seus bastidores, cobrindo o rosto deslavado com ambas as mãos,
—tal o dislate, tal o insuccesso de sua ignominiosa tarefa. E isso para seu bem, pra
socego do operariado honesto que não vive de intrigas, e para desafogo da linguagem
portugueza, cuja grammatica està sendo mais espezinhada do que as victimas da
aberração pathologica... (CRUZEIRO DO SUL, 13 out 1909, p.2)
No que diz respeito à instrução do operário, esses dois jornais também mantiveram
posicionamentos antagônicos, que serão tratados com mais detalhes no capítulo referente à
educação operária.
2.6 O fim do jornal O Operario
Em seu número inaugural, o jornal O Operario tecia os seguintes esclarecimentos sobre
a sua conduta:
Não pretendendo, ostensivamente, qualquer ligação partidária no munícipio, porque
nosso fito é outro, teremos, todavia, em occasiões opportunas, de lançar a publico uma
serie de verdades orientadoras da conducta do operariado, cuja educação civica
precisa ser completada, nem tanto para o conhecimento lucido de seus deveres para
com a Patria, quanto para a valorisação individual, que resultará a integra e perfeita,
a concepção de seus direitos de espirito e de consciência (O OPERARIO, 18 jul 1909,
p.1).
Ao apresentar a sua pretensão, o jornal deixou claro que a educação ideológica seria a
norteadora de suas ações para arregimentar e unir o proletariado. Para isso, no decorrer de suas
publicações, foi apresentando o que denominou de A essência do socialismo, com o intento de
aproximar o leitor dessas ideias.
Após a exposição dessas ideias, que permaneceram por vários números, sob o título O
que se faz necessário, concluíram que o ideal para a classe operária seria a instalação dos
sindicatos e a forma como isso ocorreria seria a partir do momento em que o operário pensasse
e agisse de maneira conscienciosa e racionalmente, que abandonasse a ideia de política, pois os
políticos são “charlatães”, que abandonassem por completo a crença desse mito chamado
“Pátria” e, ainda, que lutassem pela queda do direito de propriedade, pois “a propriedade não
passa de um roubo protegido por lei” (O OPERARIO, 27 ago 1911, p. 1). Essas ideias, assim
175
expostas, expressavam o ponto fulcral do anarcossindicalismo, tendência assumida por esse
jornal e por outros jornais da classe operária da época.
Entretanto, depois de um certo tempo de existência, o jornal foi apresentando uma linha
editorial que, em determinados momentos ou situações, mostrou-se ambígua ou até mesmo
contraditória, reflexo dos desentendimentos internos provocados, principalmente, por
divergências ideológicas entre seus redatores e colaboradores, que se dividiam entre anarquistas
e anarcossindicalistas.
A questão ideológica se mostrou mais marcante num desentendimento ocorrido entre a
redação do jornal O Operario e a União Operária Sorocabana quanto a maneira de se
comemorar o dia 1º de maio de 1912. A União Operária Sorocabana pretendia promover uma
greve geral em luto aos “mártires de Chicago” e enfatizar o seu caráter de luta no seio do
proletariado sorocabano. Já os redatores d’O Operário fariam o que sempre tinham feito até ali,
“participar de pic-nic’s”, fazer pronunciamentos elogiosos à organização do evento e à classe
operária e desfrutar da festa que se seguia (ARAUJO NETO, 2005, p. 98).
A partir desse impasse, sucederam-se acusações recíprocas acarretando um desgaste
entre as duas associações, uma vez que o O Operário, a partir de 13 de agosto de 1911,
apresentava-se como “propriedade de uma Associação Operária”. Esse ocorrido provocou certa
cisão dentro do movimento. A partir daí, a preocupação maior dessas duas associações passou
a ser a sua liderança na condução do movimento operário na cidade e não os interesses do
operariado em si. Apesar de a União Operária ter criticado a comemoração festiva proposta
pelo jornal O Operario, não fez muito diferente. Entretanto, apesar de noticiar com entusiasmo
a festa promovida pela União Operária, sutilmente, o jornal evidenciou a sua presença no evento
quando o “povo em massa” a notou, vindo cumprimentar o prezado companheiro do jornal, P.S.
Mesquita de Oliveira
Revestiu-se de um verdadeiro brilho a festa cívica comemorando a grande data
operária de 1º de maio, levada a effeito pela denodada União Operaria [...] Ás duas
horas da tarde começaram a chegar os convidados acompanhados de suas exmas.
Familias. [...] falaram os seguintes oradores: Dr. Passos Cunha; Eladio Antunha,
representante da federação Operária de Santos que n’uma bellissima peça oratoria
soube incutir o ideal da verdade no audictorio [...] formou-se o prestito: a bandeira
rubra desfraldada sob a guarda libertaria formosamente imponente de gentis operarias
que em grande numero deram um excepcional brilho a passeata, e depois em seguida
esta multidão operaria entoando enthusiasticamente o hymno operario ao som da
excelente banda de musica “6 de janeiro” [...] o povo em massa, aos vivas a liberdade
veio comprimentar a nossa folha, fazendo uso mais uma vez da palavra afim de nos
saudar o ardoroso Dr. Passos Cunha respondeu-lhe interpretando os nossos
agradecimentos o presado companheiro Mesquita [...] (O OPERARIO, 3 maio 1912,
p.3).
176
Sem muitas explicações ao público leitor, apareceu, no dia 23 de junho de 1912, a
informação de que o senhor Pedro Salles de Oliveira Mesquita, o grande companheiro, a partir
de “18 de corrente, deixou de ser nosso representante nesta cidade, e em qualquer ponto do
Brasil”.
Na edição seguinte, o jornal respondeu a um “artiguete” publicado por Oliveira
Mesquita, em seção paga no jornal A Cidade de Sorocaba, sobre a sua saída do jornal O
Operário.
[...] A declaração do Sr. Mesquita não tem valor algum, porquanto ella representa não
uma despedida da nossa redacção, mas sim um insulto proprio de quem não reflecte
aquillo que fez. A sua pouca idade provavelmente é o movel de tudo isso. [...]
podemos provar com artigos de sua lavra que temos em nosso poder e motivaram a
sua retirada do “Operario” (O OPERARIO, 30 jun 1912, p.2).
Após a saída de Mesquita de Oliveira, o jornal passou a atacá-lo repetidas vezes,
afirmando que ele tinha convertido-se ao jesuitismo e que pretendia candidatar-se a deputado,
condições totalmente avessas ao pensamento anarquista.
Entretanto, não foram apenas os desentendimentos internos, que extrapolavam as
paredes da oficina, que arranharam a sua imagem. O jornal assumiu uma postura extremamente
combativa e atacava de maneira imprevidente segmentos importantes da sociedade, como a
igreja católica, os políticos, a polícia, os industriais, enfim, os representantes conservadores da
sociedade.
O homem é religioso porque durante oitos longos seculos a igreja catholica imperou
em todo universo sem nunca dar um passo em beneficio aos trabalhadores, ao
contrario os explorou sempre vilmente e os explora até em nossos dias com os taes
sacramentos e em muitas partes d’America escravisa os indios enfligindo-lhe castigos
horriveis, nunca se preocupou com a instrucção dos operarios, mas ensinando-lhes
sempre mentiras, para humilial-o e conserval-o como uma besta, abrindo-lhe a porta
de todos os crimes com o perdão do confissionario (O OPERARIO 12 jan 1912, p.
1).
No entanto, um episódio ocorrido na fábrica Votorantim, que poderia ter passado
despercebido, assumiu grandes proporções e arranhou ainda mais a imagem do jornal e revelou
sua vulnerabilidade perante a comunidade em geral.
Aconteceu que, num determinado dia de novembro de 1911, a fábrica Votorantim
recebeu um grupo de frades que vieram conhecê-la. O gerente acompanhou o grupo, mostrando-
lhes todas as dependências da fábrica. Durante a visita, os frades foram recebidos com vaias
por grupos de operários, deliberadamente anticlericais. Incomodado com o ocorrido, o gerente
demitiu aquele que julgou ter sido o operário que mais se excedeu.
177
Sobre esse fato, o jornal O Operário, sob o título No Votorantim, assim noticiou:
Qual!... o Operariado do Votorantim está sempre na ponta em questão de
solidariedade!... Quarta-feira, 9 do corrente foi aparecendo sem mais nem menos
naquella fabrica um grupo de gorduchos padres, e como aquelle pessoal vota nos
homens da batina grande “amisade” receberam os padres com uma [...] vaia. Foi o
que bastou para que o mestre geral Snr. José Settimo dar a conta a um empregado
daquella fabrica. E como aquelle pessoal não é de ferro impuzeram ao mestre a
readimissão daquelle colega, abandonando o trabalho até que o mesmo fosse
admitido. Bella lição de solidariedade (O OPERARIO, 12 nov 1911, p.3).
Devido à demissão de um operário, houve uma paralisação parcial dos operários.
Entretanto, a situação agravou-se quando o gerente achou por bem demitir as famílias daqueles
que estavam envolvidos no ocorrido com os padres, num total de 17 famílias, que foram
sumariamente despejadas de suas casas na vila operária. Na edição seguinte, não esperando que
os fatos seguissem nessa direção, o jornal O Operário mudou completamente a maneira de se
referir aos padres, à fábrica e aos fatos e tentou justificar o ocorrido, alegando que este poderia
ter sido evitado:
[...] Os frades beneditinos em companhia do respeitável padre Luiz Scicluna, cujo
nome está ligado em feitos de verdadeiro amor a humanidade, foram visitar, cousa
muito natural, a mais importante fábrica do Estado, para della provavelmente levarem
as melhores impressões do nosso progresso material. [...] O gerente [...] conhecedor
bastante da indole da maioria dos seus empregados, do seu espírito avêsso a toda
crença religiosa, devia, pensamos nós, entreter os frades até a hora da saida do pessoal
e dahi ir mostrar-lhes socegadamente todas as dependencias do vasto estabelecimento,
sem o menor perigo, sem a minima perturbação (O OPERARIO, 19 nov 1911, p.2).
Apesar de ter mudado o tom, o jornal não conseguiu mudar a situação e os operários
retornaram ao trabalho após as demissões e o despejo das famílias. Nessa mesma notícia sobre
a greve, O Operário finalizou informando que “os operarios demittidos, porém, não
conseguiram rehaver os seus lugares”. (Idem, p. 2)
Nessa mesma edição, numa nota assinada por Petrus, sobre o desfecho desastroso da
greve, o autor admitou que “por uma infelicidade a greve daquelles nossos companheiros não
encontrou sympathia no seio do Povo – o verdadeiro juiz, mais não é por isso que se há de
deixar espulsar de uma localidade como o Votorantim perto de vinte famílias. ” (Idem, Ibidem,
p.2)
Na edição de 3 de dezembro de 1911, numa colaboração assinada por “Uma operária”,
sobre o despejo dessas famílias e a falta de solidariedade dos operários em aderir à greve, ela
escreveu:
Eu, como sou uma pobre mãe, que não possuo ouro, riqueza e sinto a necessidade do
trabalho, sei avaliar o sofrimento dessas famílias sem lar, sem pão e sem trabalho, por
178
culpa, somente, desses operários que se dizem nossos colegas, quando não são mais
do que uns verdadeiros ursos. Uma Operaria (O OPERARIO, 3 dez 1911, p.2).
Um outro acontecimento também seguiu um rumo inesperado pelo jornal, que fez uma
denúncia feroz sobre o que ocorria na fábrica de calçados Soares & Irmão:
A fabrica de calçados de Soares & Irmão tornou-se uma verdadeira penitenciária
russa. Ali se despede os melhores operarios, só porque professam ideiais anarchistas.
É um crime em ter brio, dignidade e independencia nessa fabrica. Aos proprietários
so lhes agradam os puxa-saccos, essa vil canalha que lhe serve de espiã e cousas
semelhantes. Ao bandido gerente de Votorantim, há outros para imital-o (O
OPERARIO, 10 nov 1912, p.2).
Pelas acusações feitas sobre a fábrica de calçados Soares & Irmão, o redator do jornal,
autor do texto, Joseph Joubert Rivier, foi processado por calúnia pelos proprietários da fábrica,
que tinham a orientação do hábil advogado Otávio Moreira Guimarães, pessoa muito influente
nos meios políticos da época. Essa não foi a primeira nem a única vez que o jornal precisou
responder por calúnia, mas foi a que teve consequências mais danosas. Sob o título Um homem
perigoso, o jornal Cruzeiro do Sul publicou o seguinte:
Quando pretendia ante-hontem obter uma licença para promover nesta cidade um
comicio contra a carestia de vida, foi preso, na delegacia de policia o conhecido
agitador Joseph Joubert condemnado pelo nosso tribunal de Justiça a 4 mezes de
prisão e 500$000 de multa por ter publicado em o extincto jornaleco “O Operario”,
artigos injuriosos á pessoa do nosso illustre amigo e distincto collaborador sr. dr.
Octavio Moreira Guimarães (CRUZEIRO DO SUL, 20 nov 1912, p.3).
O jornalista Joseph Joubert cumpriu a pena que lhe fora imposta e, durante o tempo que
ficou ausente, o jornal deixou de circular. Passado um tempo, respondeu processo judicial
aberto com base na Lei Adopho Gordo. Foi condenado e expulso do Brasil.
O desgaste do jornal foi inevitável. Até 2 de fevereiro de 1913, apresentava-se como
“Semanario de Combate”, de “propriedade de uma associação operaria”. Após essa data, houve
uma interrupção na circulação do jornal, exatamente no tempo da ausência de Joubert Rivier, e
reapareceu em 26 de outubro de 1913, agora como “Orgam Imparcial” e cujo redator era J.
Castro Lima, o mesmo do jornal Clarim da Luz, com colaboradores diversos. Houve um
segundo número, em 23 de novembro de 1913, e nada mais.
Independente de suas ambiguidades e contradições, é inegável a importância do jornal
O Operário na organização operária de Sorocaba. Se não teve vida longa, deixou um
direcionamento de luta e organização para a classe operária. Permitiu que os operários se
179
enxergassem como sujeitos de direitos, direitos que somente seriam conquistados por eles
próprios.
3. A EDUCAÇÃO E AS ESCOLAS PARA OPERÁRIOS
Escola para operarios, é a cousa mais necessaria e mais santa
que se possa imaginar, porque cada escola que se abre ,é um carcere que fecha
é n’ella que se reconhece o valor da liberdade.
(O Operario, 18 jul 1911)
Este capítulo tratará da educação operária, considerada pelo operariado tão importante
quanto as melhores condições de trabalho. Na verdade, consideravam que só atingiriam
melhores condições de trabalho através da educação. Para os libertários que abraçaram a
concepção pedagógica de Francisco Ferrer, o futuro era construído pela escola, porém, para que
a escola pudesse ser um veículo de uma nova sociedade, ela precisaria ser um centro em que
houvesse disseminada a verdade e em que a ciência, construída por todos, fosse igualmente
distribuída entre todos (GALLO, 2014)
Entendiam que o operariado necessitava de instrução para não ser tão explorado e que
somente pela luz da instrução conquistariam a liberdade. Os livros são a pólvora do espírito.
Essa era a síntese do pensamento dos operários em geral, no tocante à necessidade do
conhecimento, da educação na formação da pessoa, e, consequentemente, na melhora da
sociedade.
Para os libertários, a emancipação do operário só se daria pela educação, porém a
educação precisava ser conquistada e, por isso, também fazia parte da luta operária.
3.1 A educação em Sorocaba nos tempos do Império
No século XIX, pela imprensa sorocabana, é possível conhecer, mesmo que de maneira
vaga, aspectos sobre a educação no município, como era desenvolvida e, diga-se de passagem,
a situação não diferia da de outros lugares do país. Era, enfim, uma educação precária, fruto do
pouco interesse dos governos em oferecer uma educação principalmente voltada para os mais
pobres, que representavam a maioria da população.
180
As notícias sobre as primeiras escolas e professores de Sorocaba são trazidas por Aluísio
de Almeida, que conversou com pessoas, pesquisou em arquivos da Diocese de Sorocaba,
mergulhou na leitura de jornais de época, vasculhou documentos existentes no Gabinete de
leitura, entre outros.
Conforme esse autor salienta, a primeira escola pública de Sorocaba foi criada quase
duzentos anos após a fundação da cidade. Um longo período transcorreu em que a população
sorocabana permaneceu na mais crassa ignorância, contando apenas com esparsas iniciativas
de escolas particulares, quase sempre de vida efêmera. Em 1831, o professor Jacinto Heliodoro
de Vasconcelos, conhecido por Mestre Jacinto, foi nomeado professor da única escola pública
de Sorocaba, a qual atendia somente meninos. Para tomar posse, mestre Jacinto demorou mais
de meio ano. Chegou a oficiar ao Presidente da Província que a Câmara de Sorocaba não lhe
provera com os recursos necessários para o desenvolvimento das aulas, como sala e bancada,
já que pretendia seguir a lei através do Ensino Mútuo. O Ensino Mútuo, ou Lancasteriano,
consistia no ensino dado pelo mestre a alguns alunos mais adiantados, que tinham por
incumbência repassá-lo aos demais, em grupos de dez alunos, daí o nome de decurião para o
aluno monitor. De acordo com Dermeval Saviani (2010), o método supunha regras
predeterminadas, rigorosa disciplina e distribuição hierarquizada dos alunos, sentados em
bancos dispostos num salão único bem amplo. De uma das extremidades do salão, o mestre
sentado numa cadeira alta, supervisionava toda a escola, em especial os monitores. Com o
Ensino Mútuo, buscava-se a aceleração do ensino, atingindo rapidamente e a baixo custo grande
número de alunos. Em Sorocaba, o Ensino Mútuo foi praticado até 1887.
O próprio Aluísio de Almeida comenta que, em Guareí, sua cidade natal, ainda em 1887,
praticava-se também essa modalidade de ensino e prossegue esclarecendo que os padres do
Mosteiro de São Bento, com pena do professor Jacinto, cederam-lhe uma sala no andar térreo
e “ele aguentou lá com seus cem alunos, lotação, com cinco horas por dia. Ensinava ainda em
1855” (DIÁRIO DE SOROCABA, 22 out 1965, p.2).
A primeira escola pública feminina de Sorocaba ficou a cargo da professora Vicentina
Adelaide de Vasconcelos. Essa professora, em 30 de agosto de 1841, prestou exame, na câmara,
perante os doutores José Maria de Souza e Vicente Eufrásio da Silva Abreu. Logo após a
aprovação, tomou posse da 1ª escola feminina de Sorocaba. Lecionou por mais de 30 anos numa
escola mantida por ela numa rua central da cidade. Essa foi a primeira escola pública para
meninas, pois, em 1824, já havia duas particulares (DIÁRIO DE SOROCABA, 22 mar 1955).
Em seu relatório ao Inspetor, sobre o andamento das aulas e aproveitamento das alunas,
a professora Vicentina Adelaide de Vasconcellos “lastimava-se de que as alunas só
181
freqüentavam as aulas nas horas em que se ensinavam os trabalhos de costuras e bordados”. Por
outro lado, “outras discípulas, apenas aprendidos os rudimentos de leitura e escrita, deixavam
de freqüentá-las, visto as mães precisarem delas para os serviços caseiros e julgarem um luxo
a jovem saber as quatro operações”. Para os Inspetores, o problema estava diretamente
relacionado à “desídia e à ignorância das mestras” (MENON, 2000, p.101).
Em 4 de maio de 1872, sem muitos detalhes, apareceu um anúncio, no jornal Ypanema,
sobre uma escola particular de instrução primária, localizada na rua de São Paulo, no centro da
cidade, regida “pelo preto João, escravo de Joaquim Cardozo” (YPANEMA, 4 maio 1872, p.2).
Infelizmente, não foram encontradas outras fontes que pudessem corroborar ou até mesmo
detalhar como transcorriam essas aulas ministradas pelo escravo e a quem eram destinadas.
No ano de 1872, o jornal Ypanema, numa sucessão de artigos publicados em partes,
entre denúncias e propostas inovadoras, apresentou o retrato da situação do ensino na época e
os reflexos dessa situação não só em Sorocaba, mas em todo o país.
No primeiro artigo após a exposição das mazelas do ensino, como medidas reparadoras,
o articulista aventou a possibilidade de o ensino ser entregue para um número maior de
“senhoras” e que as escolas passassem a ser mistas. O articulista via como vantagem as aulas
serem ministradas por mulheres, como já vinha ocorrendo com sucesso nos Estados Unidos da
América do Norte, pois os alunos do sexo masculino “tornam-se mais polidos”. Criticava as
“estufas em que mettem nossas crianças que ficam pregados nos bancos escolares por 5 horas
de aula, sem atividades diferenciadas como a educação física” e a pouca valorização que tinha
o professor
.
O professor entre nós é mal pago. Este facto traz como consequencia arredar do
magisterio, não dizemos já os homens verdadeiramente superiores, mas até as
capacidades medianas. É o ensino a ultima taboa de salvação para os que reconhecem
sem prestimo para qualquer emprego. [...] Sobre esses importantes encarregados da
mais elevada missão social, recae a desconsideração nem sempre justa, que de
ordinario acompanha a ignorancia e a miseria. Mal retribuido pelo estado,
desestimado pelo publico, sem força moral para com os proprios discipulos o mestre
cae em profundo desanimo, e trabalha como o escravo porque a desdita o obriga a
isso, mas amaldiçoando a sorte (YPANEMA, 2 jun 1872, p.1).
Para um leitor desavisado quanto a época em que fora escrito esse texto, bem pode
considerar tratar-se de assunto atual sobre a educação brasileira, tal a semelhança das
circunstâncias. Apesar de decorrido tanto tempo desde sua publicação, ainda permanecem os
baixos salários, a desvalorização do profissional e o descaso das políticas governamentais em
relação à escola pública,
182
Na sequência dos artigos denominados Escólas, em outra publicação, não é possível se
reconhecer a identidade do articulista, porém o texto leva a crer que se tratava do próprio redator
do jornal, uma vez que ele expunha o que acontecia em Sorocaba. Referia-se o autor à questão
dos prédios escolares. Como não havia prédios públicos para as escolas, o professor tinha de
tirar de seu “miseravel ordenado uma quota para casa”. Entretanto, nem sempre o local
escolhido ou aquele disponível para a realização das aulas oferecia condições adequadas, como
espaço arejado, bem iluminado e limpo.
Nesta cidade ha uma escola em que os bancos não chegam para os alumnos. Por
alguns annos reclamou o professor e nada conseguiu. Os paes pobres, e muitas vezes
os mesmos abastados, não dão aos meninos livros, papel, pennas, lapis, etc.; o Estado
de tempos em tempos manda quatro cathecismos para abastecer cada escola
(YPANEMA, 13 jun 1872, p. 2).
Nesse mesmo artigo, denunciava-se a maneira vergonhosa de trabalhar a que se
prestavam as inspetorias das escolas. Questionava-se a inspeção das escolas, se não deveria ser
executada por elementos competentes e afinados com o ensino, para acompanhar o
desenvolvimento das escolas, auxiliando-as em suas necessidades, fossem elas financeiras ou
pedagógicas. Segundo a publicação, as inspeções tinham se transformado numa fiscalização
feita por analfabetos investidos das funções de censores, fiscais e conselhos dos mestres.
Transformara-se, portanto, em “arma do partido”, mas, conforme denunciado no artigo,
“Degradar o professor exigindo-lhe o voto e adhesão ao governo em troca de um attestado;
traficar com o que ha de mais sancto, a creança e o futuro da patria, é a nosso ver profanação
para ser estigmatisada por todo o homem de bem” (IDEM, 1872, p.2).
O autor prossegue apontando outras necessidades educacionais, como os cursos
noturnos destinados aos operários que trabalhavam durante o dia. Apesar de ser reduzido o
número de operários que estudavam, a educação era tida como necessária não só para os homens
adultos como também para os meninos trabalhadores. Com os cursos noturnos, os operários,
ocupados durante o dia com o trabalho, iriam à noite procurar o estudo “em vez da taberna, da
casa de jogo, ou do lupanar”. Entretanto, condenava a atitude do governo em relação às escolas
noturnas, criadas por “homens de boa vontade”, que eram vigiadas, perseguidas, cercadas pela
polícia e denunciadas pela imprensa e igrejas como invenções de protestantes e pedreiros livres.
“Chegou-se a reclamar o augmento da força publica para conter a invasão do abc. Foi preciso
que o Imperador dissesse: ‘Mas, meus Srs., eu não tenho medo de escolas, desejo-as ’”
(YPANEMA, 13 jun 1872 p. 2).
183
Sorocaba, em 1872, contava com duas escolas públicas para o sexo masculino, duas
para o sexo feminino, três particulares para o sexo masculino, duas particulares para o sexo
feminino e uma escola noturna masculina mantida pela Loja Maçonica Perseverança III,
conforme informação publicada pelo jornal Ypanema de 21 de novembro desse ano. Todas essas
escolas ofereciam educação primária. A educação secundária pública era algo praticamente
inacessível para a população em geral, não só na cidade de Sorocaba como em outras da região,
conforme se constata na publicação feita pelo jornal O Sorocabano do relatório do presidente
da província de São Paulo, apresentado à Assembleia Provincial em 1870, que pedia a supressão
das aulas de latim e francês, pois o número de alunos frequentes estava aquém do estabelecido
pela lei para o seu funcionamento, que deveria ser de no mínimo 18 alunos.
Em instrucção secundaria das publicas que tinha anteriormente a provincia, só restão
as tres aulas de latim e francez das cidades de Itú, Sorocaba e Santos. A de Itu’ contém
actualmente 40 alumnos matriculados, dos quaes 36 são frequentes. A de Sorocaba
contem 10 alumnos matriculados e frequentes (O SOROCABANO, 20 mar 1870, p.3).
Argumentava o jornal que, pelo fato de não existir em Sorocaba escolas de instrução
secundária particulares, era imperdoável suprimir aquela mantida pelos cofres da província. Se
isso fosse feito, certamente seria motivo para se lastimar futuramente. Então o jornal fez um
apelo aos pais de família, responsáveis pelo futuro de seus filhos, para que os mandassem à
escola, a fim de evitar a sua desativação. Mas foi em vão, o presidente da província suprimiu
as cadeiras de latim e francês da cidade e o jornal se manifestou dizendo: “Lastimamos que este
facto se desse tendo por causa a falta de alumnos em uma cidade populosa e importante como
esta” (O SOROCABANO, 20 mar 1870, p.3).
Iniciativas particulares surgiam a fim de atender as demandas mais urgentes sem, no
entanto, se constituir uma educação formalizada, como se depreende do anúncio publicado por
Nicolau José de Athouguia, que se oferecia a explicar o sistema métrico. Ao que parece, não se
tratava de um professor, pois na edição de 13 de fevereiro de 1870 aparece um anúncio dessa
mesma pessoa como “dentista americano” e o seu local de atendimento.
Attenção - Nicoláo José de Athouguia, propõe-se a esplicar o systema metrico decimal
que tem de ser adoptado em todo o Imperio por Lei de 26 de Junho de 1862. As lições
serão tres vezes por semana das quatro as seis horas da tarde. 6$000 reis mensaes para
as pessoas que poderem pagar. Aos pobres gratis (O SOROCABANO, 20 mar, 1870,
p.2).
Em 1874, começou a funcionar o Colégio União Sorocabana, oferecendo instrução para
os dois sexos, porém com as aulas completamente separadas. O professor dos meninos era José
184
Raimundo de Vasconcelos. O regime de disciplina dessa escola era tão rigoroso que sete alunos
de Tietê fugiram no meio do ano letivo. Em 1875, continuou a seção feminina, dirigida pelas
professoras norte americanas H. Wullul e Ana Wilk (DIÁRIO DE SOROCABA, 22 out 1965).
Em 1º. de dezembro de 1875, o jornal A Voz do Povo tecia vigorosa crítica ao governo
sobre o abandono em que se encontrava a questão da instrução, tanto na província de São Paulo
como no país. Para o jornal, restavam apenas dois meios para melhorar o ensino no país:
melhorar os salários dos professores e criar mais “cadeiras”. Asseverava que o serviço mal pago
consequentemente é mal feito e, por isso, não era de se estranhar que o professor pouco se
esforçasse para o progresso de seus alunos, limitando-se apenas a cumprir a sua obrigação.
A questão da instrução sempre figurou nas páginas da imprensa sorocabana, quase
sempre motivada por críticas exaltadas pelo estado lamentável em que o governo imperial
conservava a instrução no país. Sorocaba, por sua vez, um dos mais importantes municípios do
sul da província, com população calculada em 13 mil habitantes, contava com três escolas
primárias para o sexo masculino e duas para o sexo feminino. Havia a promessa do governo de
criação de mais uma escola masculina e o jornal propunha também a criação de mais uma escola
feminina, por uma “questão de justiça”, tendo em vista o aumento anual do número de meninas
que procuravam a escola.
A fim de retratar fielmente a realidade escolar, o jornal Ypanema apresentou
interessantes dados estatísticos:
O numero de menores livres, de 6 a 15 annos de edade, segundo o recenseamento feito
em 1872, subia a 2.630; d’estes só frequentavam as escólas 469 ou 17,83% [...] Pelo
já referido recenseamento, vê-se que a população d’este municipio era de 13.999
habitantes, sendo 3.456 escravos e 10.543 livres. D’estes receberam instrucção,
incluidos aquelles que mal assignavam seus nomes 1884 e jaziam na mais crassa
ignorancia 8.659 ou 82,13% (YPANEMA, 20 jul 1876, p.2).
Somente a título de informação, cabe esclarecer que a denominação escola, nos tempos
do Império, tem uma conotação bastante diferente da escola hodierna enquanto organização.
Uma escola era de responsabilidade do professor que assumia a cadeira, ou seja, era
incumbência do mestre encontrar o local onde seriam ministradas as aulas, adotar a própria
metodologia de ensino, bem como escolher do material didático, que algumas vezes era enviado
pelo governo, quase sempre de maneira parcimoniosa. Somente deveriam receber material
aqueles comprovadamente carentes, o que representava a maioria dos alunos. Nem mesmo
seguir um calendário oficial era possível, uma vez que dependia muito da época de ingresso do
professor. A única incumbência do governo para com essas escolas era o fornecimento da
mobília, o que nem sempre era feito.
185
O anúncio reproduzido abaixo demonstra o engajamento do professor nesse processo de
formação de turmas.
Eu, abaixo assignado, professor formado pela Eschola Normal de São Paulo, tenho a
honra de participar aos senhores paes de familia que as aulas de primeiras lettras da
terceira cadeira d’esta cidade se abrem hoje, pelas 9 horas da manhã á rua da Matriz,
n. 9. Os meninos que foram enviados à eschola deverão trazer as seguintes
declarações: de seu nome, do nome de seu pae, tutor ou pessoa, em cujo poder estiver,
de sua naturalidade, nacionalidade e de sua edade, para os devidos assentamentos no
livro de matrícula; art. 94 § § 1º, 2º, 3º 4º e 5º do Regulamento da Instrucção Publica
de 18 de abril de 1869. Sorocaba, 23 de março de 1877 – Fidelis de Oliveira
(YPANEMA, 6 abr 1877, p.4).
O fato de o professor manter a escola às suas expensas não ocorreu somente nos tempos
imperiais, estendeu-se muito além desse tempo. Mesmo após a proclamação da República, com
as reformas educacionais ocorridas e a criação de uma legislação organizadora do ensino, esse
encargo se manteve, como atesta o relato sobre seu tempo de professora feito por D. Brites à
Eclea Bosi e publicado no belíssimo estudo sobre as Lembranças de velhos (BOSI, 2004,
p.324):
.
Em 1925 fiz concurso para a capital e fui trabalhar na Fábrica, no ponto final do bonde
Fábrica. [...] Uma colega e eu alugamos uma sala na rua Lino Coutinho onde era a
fábrica do Jafet. O ordenado era trezentos mil-réis por mês e o aluguel da casa era cem
mil-réis. O pessoal explorava porque sabia que a professora precisava daquele canto.
[...] Quando cheguei no primeiro dia de aula já estavam algumas crianças espiando
para ver se a gente chegava. Preguei na porta um cartão: “Matrículas para o primeiro
ano”; apareceram mais crianças. Com as crianças eu lavei a escola, que estava suja,
arrumei as carteiras, comprei uma vassoura, arranjei um balde. Jogamos água no chão,
lavamos a porta, as vidraças. Às cinco horas a sala já estava limpa para começar a aula
no outro dia. Foi assim que comecei.
Não obstante todos os empecilhos encontrados para o bom desenvolvimento da
educação, os exames finais das duas escolas femininas e das duas masculinas, do ano de 1877,
em Sorocaba, foram realizados e publicados pelo jornal Ypanema, com o devido destaque, o
que acena para a relevância da educação.
Começaram hontem os exames nas escólas primarias d’esta cidade, sob a inspectoria
do sr. José Marques da Silva Pavão, principiando pelas do sexo feminino, de que são
professoras sras. Vicentina Adelaide de Vasconcelos e Januaria de Oliveira Simas.
Assistimos aos exames de ambas as escólas, e podemos assegurar que o grande
aproveitamento tem obtido as meninas pela maneira satisfatoria porque responderam
nas diferentes materias em que foram examinadas. As meninas da 2ª cadeira regida
pela exma sra. D. Januaria mostraram grande progresso e adeantamento nos trabalhos
de agulha e prendas domesticas que attestam o interesse e dedicação de sua distincta
professora. Um voto de louvor áquellas distinctas professoras e os nossos parabens
pela maneira que viram satisfeitos os seus esforços (YPANEMA, 4 dez 1877, p.3).
186
Sobre os exames das escolas femininas realizados e noticiados é possível depreender
que provavelmente não só o jornal, mas a própria instituição escolar dava um valor maior aos
trabalhos manuais confeccionados pelas alunas do que ao desempenho delas nas disciplinas
estudadas. O mesmo ocorre com o trabalho das professoras, como no caso da professora D.
Januária, cuja dedicação foi evidenciada por meio dos trabalhos de agulha executados pelas
alunas, que de fato era o mais valorizado.
É possível que o desempenho de suas alunas tenha ficado aquém do esperado e que
aquele que escreveu a notícia tenha procurado algo de positivo para conservar o brilhantismo
do evento, prática bastante utilizada. Apesar disso, considerando-se que o papel da mulher na
sociedade visava somente ao matrimônio e à maternidade, o fato de as alunas aprenderem a ler
e escrever pode ser entendido como avanço para a época e como mudanças nos rumos da
sociedade. Certamente as ideias liberais estavam despontando e instalando-se na sociedade
brasileira.
Esse mesmo jornal também registrou os exames das escolas masculinas, mas não o fez
com o mesmo entusiasmo:
Os exames correram regularmente, mostrando os srs. professores Fidelis de Oliveira
e Venâncio José Fontoura que fizeram o que era humanamente possível para o
progresso da instrucção em vista das repetidas faltas dos meninos. Podemos, portanto
com razão dar os parabens aos srs. paes de famílias sorocabanos, pela boa
administração do ensino que recebem seus filhos (YPANEMA, 7 dez 1877, p. 2).
Outro ponto interessante a ser assinalado a partir da leitura dos jornais pesquisados,
independente de posicionamento ideológico ou a quem eles pertencessem, em todas as vezes
que foram retratados os exames das escolas públicas, principalmente após a República, não foi
encontrada, uma única vez, algum demérito aos professores, nem por parte dos jornais e nem
pelas bancas examinadoras, que quase sempre finalizavam as sessões de exames com um voto
de louvor ao professor. Surgem, portanto, algumas indagações. Seria uma forma de incentivo
ao mestre, tão desprestigiado? Apontar um trabalho sem qualidade em público seria
constrangedor tanto para quem o fizesse como para quem o recebesse? Havia uma
compreensão, por parte da imprensa e da banca examinadora, das condições adversas nas quais
era realizado o trabalho do professor, daí sempre um parecer favorável?
Esse reconhecimento ao trabalho do professor estava previsto no Regimento Interno das
Escolas Púbicas do Estado de São Paulo de 1894, conforme pode ser constatado no seguinte
artigo: “Art. 55 - Si algum professor do districto de reconhecida dedicação, inteligência e
moralidade, si tornar digno de menção por terem os seus alunos apresentado grande
187
aproveitamento, o inspector o indicará ao Conselho Superior, para lhe ser conferida nota de
louvor (REGIMENTO INTERNO ... 1894).
Em 1887, a província de São Paulo como um todo tinha apenas 29% de alfabetizados e
um professor para cada 1.156 habitantes, ao passo que a capital tinha um professor para cada
596 habitantes (ARAUJO JR, 2007).
Nesse ano, na busca de promover a educação secundária no município, a Câmara
Municipal de Sorocaba resolveu instalar um Lyceu Municipal. Depois de encontrado o local
para instalação da escola e de realizada a compra do mobiliário, fora aberto concurso para a
seleção dos professores. Candidataram-se à vaga de professor os srs. Arthur Gomes e Ernesto
Babo, que realizaram as provas e cujo desempenho foi o seguinte:
Em Portuguez, os candidatos fizeram provas boas, ficando em primeiro logar Arthur
Gomes, em segundo Ernesto Babo. Em Francez exhibiram tambem boas provas,
ficando em primeiro logar Arthur Gomes, em segundo Ernesto Babo. Em Inglez as
provas foram soffriveis, ficando em primeiro logar Arthur Gomes, em segundo
Ernesto Babo. Em latim, porem, as provas exhibidas foram más, sem classificação
possivel, pois a prova escripta de Gomes foi nulla, a de Babo foi má e má a oral
produzida por ambos, o que os inhabilita para o ensino d’esta materia. A commissão
com esta envia as provas escriptas. Sorocaba, 24 de Agosto de 1887. – Joaquim
Toledo Piza e Almeida. José Zacharias de Miranda. Antonio José Ferreira Braga.
José Francisco Uchoa (DIÁRIO DE SOROCABA, 26 out 1887, p.2).
Diante dos resultados aquém do esperado dos dois candidatos, houve uma cisão entre
os membros da comissão examinadora e a Câmara Municipal. Uma parte entendia que nenhum
dos dois candidatos poderia ser considerado aprovado, devendo-se realizar novo concurso.
Outros entendiam que o professor Arthur Gomes poderia ser nomeado professor interino,
mesmo tendo sido sua prova de latim nula, ou seja, mesmo inabilitado para essa disciplina, ele
poderia lecioná-la. E foi o que prevaleceu.
O impasse surgido quanto a escolha dos professores demonstra o quanto a formação
docente precisava de ajustes. O Lyceu, que pretendia promover uma educação de qualidade,
iniciava suas atividades com um professor que não sabia latim, cujo estudo era conteúdo
indispensável do português, visto que sem o latim não havia ortografia possível, segundo o
pensamento da época. Entretanto, seleção rigorosa também se estabeleceu para o
preenchimento das vagas para os estudantes no referido Lyceu. Em reunião na Câmara
Municipal ficou estabelecido que, para que o Lyceu Municipal tivesse pleno êxito, seriam
necessárias as seguintes condições:
1.ª. Não admittir a matricula meninos ou moços que não saibam lêr e escrever as
materias ao menos regularmente;
188
2.ª. Para isso haverá um exame de sufficiencia, pelo qual se verificará si os candidatos
á matricula estão no caso de se matricularem;
3.ª. Dever-se-á nomear uma commissão de tres membros, comprehendendo o
professor, para esse exame, sendo o Presidente um vereador;
4.ª. Constará o mesmo de leitura e escripta de um trecho facil escolhido na occasião,
podendo ser um dictado qualquer, uma vez que seja facil para a escripta na pedra ou
quadro negro;
5.ª. Dos exames se lavrará uma acta que será assignada pela commissão, servindo de
secretario o professor;
6.ª. Estes exames terão logar no fim das ferias de Dezembro, sendo feita a inscripção
dos candidatos durante as mesmas;
7.ª. O professor será obrigado a marcar as faltas dos alumnos, bem como tomar nota
das lições e comportamento de cada um.;
8.ª. Apresentará annualmente um relatorio circumstanciado do movimento do Lyceu;
9.ª. Haverá todos os annos exames das materias ensinadas no Lyceu, tendo logar nos
ultimos quatro dias do anno letivo, constando o mesmo de prova escripta e oral.
10.ª. Para esses exames será nomeada uma commissão examinadora pela Camara,
comprehendendo o professor que servirá de secretario para lavrar uma acta dos ditos
exames, que serão presididos por um vereador. Sala da Camara Municipal, 9 de
Janeiro de 1888. – F. M. França.” Posta em discussão e votos, foi ella unanimemente
approvada. (DIÁRIO DE SOROCABA, 24 jan 1888, p.3).
Em 5 de novembro de 1887, o Lyceu Municipal foi instalado num salão do prédio nº.
12 da rua São Bento. Contava com um único professor, Arthur Gomes, que lecionava português,
francês, inglês e latim, ainda que tivesse sido reprovado na prova de habilitação. Na ocasião da
instalação, matricularam-se 16 alunos.
Nesse mesmo dia em reunião da Câmara Municipal o professor Arthur Gomes prestou
juramento ao assumir o cargo de professor interino do Lyceu. Na ocasião, o presidente da
câmara apresentou e leu o programa de ensino que deveria ser seguido e que foi transcrito no
livro ata da câmara municipal:
PROGRAMMA DE ENSINO DO LYCEU MUNICIPAL – Portuguez: Leitura de
trechos classicos da selecta de Aulete e leitura de poesia. Tudo com expressão,
havendo explicação do professor. Dictado. Composição sobre varios assumptos.
Reducção de verso a prosa. Grammatica de Freire. FRANCEZ: - Leitura, traducção e
versão, Chateaubriand e Théatre Classique. Dictado. Grammatica de Savènne.
INGLEZ: - Leitura, tradução e versão. Escripta na pedra. Adoptam-se os livros da
Academia. Grammatica de Motta. LATIM: - Leitura, traducção e versão. Adoptam-
se os livros da Academia. – As materias serão ensinadas: Portuguez e Latim em um
dia, Francez e Inglez no dia immediato. As horas do ensino serão quatro em cada dia,
começando ás dez da manhã e terminando ás 3 da tarde, havendo uma hora de
intervallo do meio dia a uma hora da tarde. São feriados os dias sanctificados, os de
grande galla e festas nacionaes, de entrudo e de cinza, de Domingo de Ramos a
Domingo de Paschoa, o dia de finados e de 8 de dezembro a 6 de Janeiro. Sorocaba,
5 de Novembro de 1887. – Fernando M. França. Brasilico Paes de Barros. Antonio
Monteiro de Carvalho e Silva. José Padilha de Camargo. Antonio Maria de Góes.
(DIÁRIO DE SOROCABA, 10 jan 1888, p.3).
Em março de 1890, o jornal Diário de Sorocaba publicava que a Intendência Municipal
decidira modificar o programa de ensino daquele estabelecimento de instrução, considerando o
189
distanciamento existente entre o que se ensinava no Lyceu e as reais necessidades de seu
público. Dessa forma, as aulas de inglês seriam substituídas por “arithmetica, geometria,
compreendendo desenho linear, geografia, compreendendo cosmografia e conhecimentos
gerais” (DIÁRIO DE SOROCABA, 20 mar 1890, p.2).
Em 1891, o professor Arthur Gomes pediu exoneração de seu cargo de professor do
Lyceu Municipal, pois passara num concurso de escrivão de um cartório. As aulas foram
interrompidas por alguns meses, sempre com a promessa de que retornariam. Em fevereiro de
1893, o jornal Diário de Sorocaba anunciava o encerramento das atividades do Lyceu
Municipal, residindo na falta de alunos o motivo principal.
A trajetória do Lyceu Municipal evidencia as dificuldades maiores enfrentadas pela
educação. O reduzido número de alunos deixa claro o quanto a educação, especialmente a
secundária, era privilégio de poucos.
No estertor do Império, fora criado, por meio da lei nº. 81 de 6 de abril de 1887 e
Regulamento de 28 de março de 1888, o imposto de capitação, a fim de constituir um fundo
para prover o custeio da instrução. A referida lei determinava que esse fundo seria:
Art. 1º. – Destinado exclusivamente á manutenção e auxilio do ensino publico é
instituido o imposto de capitação que recahirá sobre o chefe de cada familia com
domicilio e economia propria existente, nesta cidade ou seu municipio, e sobre os
referidos no art. 3.
§ Unico – Para os effeitos do presente artigo consideram-se chefe de familia o esposo
ou a esposa, viuvo ou viuva, ascendente, collateral, descendente, pai ou mãe adoptivo,
a quem se atribue a superintendencia e autoridade moral sobre o lar domestico.
Art. 2º. – O imposto de capitação será annual, cujo lançamento effectuar-se-ha tendo
por criterio o valor do predio que habitar o contribuinte, da maneira seguinte: Até
10:000$000, 5$000; de 10:000$000 para mais, 10$000.
Art. 3º. – Ainda que não sejam chefes de familia, ficam sujeitos ao imposto de
capitação os industriaes, commerciantes e funccionarios publicos, tomando-se neste
caso para base do lançamento o predio onde funccionar a industria ou estabelecimento
commercial, para as duas primeiras classes, e o predio de moradia para os ultimos.
Art. 4º. Em caso nenhum se cobrarão duas taxas ao mesmo contribuinte, prevalecendo
sempre a maior para o lançamento (DIÁRIO DE SOROCABA, 25 ago 1890, p.2).
A criação desse imposto visava à melhoria da instrução em geral, entretanto, acarretou
algumas situações não previstas e que tiveram repercussão negativa em Sorocaba, conforme
publicação do Diário de Sorocaba. Acusava esse jornal que, após a criação do imposto, o
governo deixara de fornecer o que era necessário para as escolas. Por outro lado, também os
pais entenderam que, uma vez pagos os impostos, não tinham que providenciar mais livros,
papéis e outros materiais necessários ao estudo de seus filhos. Sem contar que o povo, em sua
maioria, resistia ao pagamento desse imposto. O reflexo dessa situação de pouca vontade entre
os maiores interessados resultava em mais um ônus para o professor que, de um jeito ou de
190
outro, precisava suprir essas falhas e, portanto, “menos apego destes no cumprimento de seus
deveres” (DIARIO DE SOROCABA, 25 ago 1890, p.2).
Outro agravante sobre o mesmo imposto também fora denunciado pelo jornal Diario de
Sorocaba. A cobrança desse imposto passou a ser determinada pela Câmara Municipal, que
passou a taxar os imóveis de maneira exorbitante, provocando reclamações por parte dos
munícipes, especialmente os operários tão pobres. Em alguns casos, o cálculo para a cobrança
do imposto fora triplicado.
Por essa lei, aliás clarissima, fica sujeito ao imposto de 5$000 o chefe de familia que
residir em predio cujo valor seja de 2 até 10 contos e o imposto é de 10$000 rs. (para
o predio acima de 10 contos). Fica isento do imposto o operario que residir em predio
de valor inferior a 2:000$000 rs. Assim sendo, não sabemos como explicar o facto da
não observancia das disposições da lei, elevando-se ao triplo o valor dos predios em
que residem pobres operarios, predios cujo valor não excede de 2 contos, e cobrando-
se a alguns contribuintes o imposto de 15$000 rs. (DIARIO DE SOROCABA, 25 ago
1890, p.2).
Até 1901, apareciam notas sobre a cobrança desse imposto, a partir das quais percebe-
se que houve a correção dos valores cobrados. Depois disso, o jornal não abordou mais esse
assunto.
3.1.1 A Escola Popular
E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
(Vinicius de Moraes)
No Livro para Registro dos Estabelecimentos Particulares de Instrucção neste
Município, cujos registros foram iniciados em 1887, dentre as 16 escolas registradas, aparece a
Escola Popular, caracterizada por ser uma inicativa de particulares, porém gratuita aos alunos.
Escola Popular creada e mantida pela Associação Luz e Liberdade, destinada ao
ensino primário dos adultos e menores que, por suas occupações não podem
frequentar as aulas publicas. São seus professores os senhores Arthur Gomes e
Benedicto Estevam Cordeiro. Funcciona a rua do Commercio desta cidade – aulas
nocturnas e gratuitas. Fundada a 2 de julho de 1888 (LIVRO DE REGISTRO, 1887,
p. 59).
Segundo Aleixo Irmão (1994), essa escola partiu da iniciativa dos professores Arthur
Gomes, Benedicto Estevam Cordeiro e pelos senhores Antonio Egidio Padilha, João Padilha e
Adolfo Osse, que formaram a associação Luz e Liberdade, com a intenção de oferecer ensino
191
gratuito a adultos e menores brancos e negros libertos, somente para homens. Solicitaram à
Loja Maçônica Perseverança III que lhes cedesse uma de suas salas para a instalação da Aula
Noturna que recebeu o nome de Escola Popular. A Perseverança III cedeu a sala e também
forneceu a iluminação dela. As aulas começaram com 75 alunos matriculados e, rapidamente,
esse número aumentou. A Escola Popular, como ficou conhecida, ao ser criada, foi sustentada
pelo “ideal de transformar o Brasil em uma civilização, tendo entre outros elementos a educação
como um de seus pilares dessa construção”. Esse ideal defendido sofria a influência do
liberalismo, do positivismo e do evolucionismo, que marcaram o século XIX (ANANIAS,
2000, p.31),
Segundo Ananias (2000), essas escolas destinadas à população pobre, a exemplo das
Aulas Noturnas mantidas pela Maçonaria, estabeleciam critérios rígidos tanto para a seleção
dos alunos como de seus professores. Os mestres deveriam ser profissionais reconhecidos pela
sociedade e, de preferência, que atuassem em colégios renomados. O professor Artur Gomes
ministrava aulas de latim, francês, inglês e português no Lyceu Municipal. Já os alunos
deveriam comprovar uma ocupação profissional. As preocupações pedagógicas desta escola
resumiam-se ao ensino primário: oferecia a alfabetização visando a um encaminhamento
profissional, considerando as transformações do momento e a necessidade de mão de obra
qualificada. Havia, ainda, uma acentuada preocupação com que os alunos aprendessem os
direitos dos homens na sociedade, pois, “Por meio da educação, o ‘povo’ deveria saber governar
e fazer valer os seus direitos. Todas as pessoas envolvidas com essas construções
compartilhavam da crença de que a educação, se não salvaria, pelo menos melhoraria os
homens” (ANANIAS, 2000, p. 42,).
Entretanto, a Escola Popular de Sorocaba não se sustentou por muito tempo. Passados
três meses de sua abertura, a escola encerrou suas atividades devido a retirada de alunos que
eram recrutados indiscriminadamente pelo governo, conforme carta do Ministério da Justiça
aos presidentes das províncias:
O ministerio da Justiça, em data de 9 do corrente, expediu aos presidente de provincias
esta circular: “Ilm. e exm. sr. – Repetindo-se as queixas por abuso no recrutamento a
cargo das autoridades policiaes, sinão provados, pelo menos verosimeis nos casos em
que os recrutas forem immediatamente soltos, julgados incapazes ou dispensados,
soffrendo, além do vexame da captura, e damno da privação do trabalho de que
tiravam subsistencia para si ou porventura para sua familia, e cumprindo obstar que
se reproduzam factos semelhantes, recommendo a v. exc. de lembrar ás autoridades
encarregadas do recrutamento que incorrem em responsabilidade criminal pelo abuso
que commetterem prendendo cidadãos conhecidamente isentos ou incapazes, além de
ficarem obrigadas á satisfação do damno causado, assim ao estado como ao recrutado,
e ainda subjeitos á immediata demissão de seus cargos. Sendo mais segura garantia
da ordem publica o indefectivel respeito a liberdade individual, estou certo que v. exc.
192
não hesitará em tornar effectiva a responsabilidade dos transgressores da lei e
desattentos ás advertencias de seu superior. Deus guarde a v. exc. – A. Ferreira Vianna
(DIÁRIO DE SOROCABA, 22 out 1888, p.2).
Esclareceram os idealizadores da escola, através do jornal Diário de Sorocaba, segundo
Aleixo Irmão, o motivo da suspensão de suas atividades:
A Sociedade Luz e Liberdade, por deliberação de seus fundadores resolveu suspender
temporariamente as aulas noturnas que mantinha nesta cidade, a expensas sua e da
Loja Perseverança III por causa do recrutamento que se está procedendo neste
município. Cumpre acrescentar que essas aulas estabelecidas para os libertos,
operários e meninos que não pudessem frequentar diurnas, eram frequentadas por
grande número dos mesmos, atingindo o número dos matriculados a cento e trinta e
sete, e desde a notícia do recrutamento o número destes desceu a menos da quarta
parte. (ALEIXO IRMÃO, 1994, p. 389)
A razão do esvaziamento dessa escola foi em decorrência da Lei de Recrutamento de
1874. Determinava essa lei que o alistamento seria feito voluntariamente ou por sorteio, para
cobrir as vagas não preenchidas de modo voluntário. Havia algumas exceções, visto que a lei
permitia, aos que não quisessem servir, pagar certa quantia em dinheiro ou apresentar um
substituto. Também estavam isentos do serviço militar bacharéis, padres, proprietários de
empresas agrícolas e pastoris, comerciantes e outros. Coincidência ou não, eram sempre os mais
pobres e sem recursos os sorteados, daí o esvaziamento da escola, pois o seu público preenchia
os requisitos de recrutamento.
Em 5 de janeiro de 1889, a escola reabria suas portas com os mesmos objetivos
anteriores, para fechar mais uma vez em dezembro do mesmo ano (MENON, 2000).
3.2 A educação em Sorocaba após a República
Desde 1870, com o surgimento do Partido Republicano no país, foi sendo plantada a
ideia de construção do novo homem, através da instrução popular. Os republicanos almejavam
que aqueles, antes súditos de um imperador, transformassem-se nesse novo homem, que
constituiria uma nova nação alicerçada na democracia. A escola pública seria um dos pilares da
República, como é possível perceber a partir das palavras de Souza (1998, p. 28):
[...] é uma escola para a difusão dos valores republicanos e comprometida com a
construção e a consolidação do novo regime; é a escola da República e para a
193
República. Esse vínculo entre a educação popular e o novo regime democrático era
exaltado pelos profissionais da educação.
Com a proclamação da República, a escola foi, no estado de São Paulo, o emblema da
instauração da nova ordem, o sinal da diferença que se pretendia instituir entre um passado de
trevas, obscurantismo e opressão e um futuro luminoso, em que o saber e a cidadania se
entrelaçariam trazendo o Progresso. Como signo da instauração da nova ordem, a escola deveria
“fazer ver” (CARVALHO, 1989, p.23).
Segundo o ideario do governo republicano, a escola não podia mais permanecer na
precariedade dos tempos do império, quando os meninos se amontoavam em salas abafadas,
sem luz e sem higiene. Não haveria mais como manter, também, a falta de recursos e a
desmotivação dos professores pelas condições adversas que enfrentavam. A educação passou a
ser vista como imprescindível para a formação do cidadão, principalmente do cidadão
republicano. A crença do poder redentor da educação pressupunha a confiança na instrução
como elemento (con) formador dos indivíduos (SOUZA, 1998). A concretização do ideal
republicano exigia a visibilidade da escola e isso se daria com a reunião das escolas, antes
precárias, num prédio imponente. Seriam os chamados Grupos Escolares, com concursos para
admissão de professores, com novos métodos de ensino e uma legislação reguladora.
Apesar do entusiasmo dos republicanos paulistas com a educação popular, muitos
entraves do período anterior à República se mantiveram. Mais escolas foram criadas, porém a
criação de uma escola pelo governo e a escolha dela como local de trabalho pelo professor, nem
sempre habilitado, não significava a certeza de seu funcionamento. Não raro, as escolas eram
escolhidas, mas os professores não as assumiam. Sobre a falta de professores, a condição
precária das escolas e os reflexos dessa situação para a educação das crianças a imprensa não
silenciava.
Continua fechada a 1ª cadeira do sexo masculino desta cidade, desde março do ano
passado. [...] Há quase dez mezes foi provida sem que o novo proprietario tivesse
vindo tomar conta da cadeira até hoje. Ou esta cadeira existe para supprir a
necessidade de uma população, cuja infancia requer escólas ou é apenas para
assegurar direitos que no futuro possam fazer bons arranjos (DIARIO DE
SOROCABA, 22 abr 1891, p.2).
O fato de um professor não assumir uma escola não era o único motivo pelo qual as
escolas permaneciam fechadas. A constante concessão de licenças para os docentes
apresentava-se como outro fator complicador recorrente na instrução pública, conforme
anunciado na seguinte notícia: “Foram concedidos mais trez mezes de licença em prorrogação
ao professor da 3ª cadeira desta cidade, Manoel dos Reis. Esta, portanto, fechada mais esta
194
escóla destinada a educação da nossa infancia. [...] O professor vae percebendo apesar disso o
ordenado” (DIÁRIO DE SOROCABA, 26 maio 1891, p.1).
O isolamento das escolas, onde o professor era responsável por tudo, ou seja,
providenciar o local para as aulas, materiais, métodos, horários etc., era um fator complicador,
pois a fiscalização não tinha o alcance de todas as escolas. Então seria o compromisso moral
do professor que prevaleceria. Entretanto, as condições de vida dos professores, com salários
irrisórios obrigavam-os a procurar outros meios de sobrevivência, o que muitas vezes interferia
de maneira prejudicial no ensino. Uma situação dessas foi citada por Elvira Boni, quando
lamentou o pouco estudo que teve e as condições em ele foi ministrado:
Mas assim que chegamos lá papai me matriculou no colégio que havia, porque a
preocupação dele era que a gente estudasse. O colégio era um grupo escolar do
governo e tinha apenas uma professora de primeiras letras e um casal de professores
que também eram os diretores. Acontece que eu já sabia ler, escrever, fazia as quatro
operações, tinha noções de história, geografia, corpo humano. E a professora fazia
doces para fora. De maneira que, quando estávamos no melhor da aula, a empregada
chamava: “O forno está quente!” Ela largava a turma e ia cuidar dos doces que tinha
que fazer. Mas o mais interessante, o mais louco, é que ela me deixava tomando conta
da classe! Queria que eu ensinasse aquilo que eu sabia para as outras crianças
(GOMES, 1988, p.23).
Já em 1890, os professores públicos do Estado “fizeram subir ao illustre governador
uma petição solicitando augmento de salario” (DIARIO DE SOROCABA, 10 set 1890, p.1).
Apesar da causa do professorado ter sido “simpática” ao governo, os professores não foram
atendidos em sua solicitação.
O jornal Diário de Sorocaba apresentou o movimento das escolas públicas em
Sorocaba, no mês de fevereiro: “Alumnos matriculados, 461”; “Frequentes, 339” e “Cadeiras
em funcionamento, 11”. A partir desses dados, calculava o jornal que, em cada escola, havia 41
alunos matriculados e 30 frequentes (DIARIO DE SOROCABA, 6 mar 1890, p.1). Entretanto,
cabe uma dúvida sobre a confiabilidade dessas estatísticas, uma vez que havia escolas que,
apesar de constarem nas estatísticas, não estavam atendendo à população, o que poderia
superlotar uma outra escola. Quanto às licenças tiradas pelos professores, nem sempre se
encontravam substitutos, permanecendo-se longos períodos sem aulas. Apesar de ter havido
aumento do número de escolas, elas eram insuficientes e mantinha-se elevado o número de
crianças e adultos distantes dos bancos escolares.
Na última década do século XIX, em Sorocaba, foram despontando iniciativas escolares
particulares ou oferecidas pelas associações operárias.
Em 1888, a Societá Operaria Italiana Umberto I criava o Collegio Umberto I, de ensino
diurno, para os filhos dos associados e tendo “annexa a esta um curso trisemanal para os adultos
195
da colonia que queiram gosar d’esse beneficio” (DIÁRIO DE SOROCABA, 13 out 1888, p.2).
Essa escola funcionou até 1895, quando encerrou suas atividades.
Em 1893, a Societá Operaia Italiana de Mutuo Socorso criou uma escola para os filhos
de seus associados, cujo professor era o sr. Alfredo Gonevino, que “leciona diversas materias a
cerca de trinta alumnos que se acham matriculados e frequentando as aulas” (O 15 DE
NOVEMBRO, 8 out 1893, p.2).
Também no mês de outubro, abriu o Externato São João, funcionando na rua de São
Bento, n. 22, destinado apenas para a educação feminina e cuja direção estava a cargo das sras.
Maria José Rodrigues Gonçalves e Joanna A. de Carvalho. As matérias lecionadas eram
divididas em dois cursos, independentes entre si. O primeiro curso constava das “primeiras
lettras, escripta, taboada, as 4 operações, leitura, grammatica portugueza, cathecismo da
doutrina cristã, lições de couzas e alguns trabalhos de agulha, ponto de marca, crochet e tricot.”
(O 15 DE NOVEMBRO, 16 out 1893, p.2)
Já o segundo curso tratava-se de um aprofundamento das disciplinas do primeiro curso
com o acréscimo da “grammatica franceza, leitura, traducções, versões, conversação, noções
de geographia, historia, arithmetica, systema metrico, calligraphia, trabalhos de agulha, etc.”
Os preços variavam. Para o primeiro curso, o valor trimestral era de 15$000 e o segundo
curso, trimestralmente, era de 30$000. Esclareciam as diretoras que o estabelecimento nada
forneceria, os alunos deveriam trazer, além dos livros solicitados, todo o material para as lições
e também uma caderneta onde seriam registradas as notas. Informavam, ainda, que a escola
ofereceria, fora do horário regular das aulas, um curso de música, piano e canto, a ser ministrado
pela professora Joanna de Carvalho.
Cabe salientar que eram abertas escolas particulares frequentemente, umas destinadas
exclusivamente para meninas, outras só para os meninos e, quase sempre, escolas primárias,
que, apesar de extenso programa e oferecimento de muitas matérias, nem sempre contava com
professores habilitados adequadamente para o exercício da função. Haja vista este anúncio
publicado sobre o Internato e Externato Santa Clara: “Nota – O Director deste estabelecimento
tendo estado algum tempo em diversos países da Europa, aperfeiçou-se em algumas linguas,
pelo que acha-se habilitado para lecional-as” (O 15 DE NOVEMBRO, 5 fev 1899, p.2).
O valor das mensalidades certamente impedia a adesão de um bom número de alunos,
uma vez que a maioria da população era pobre e muitas crianças já estavam empregadas nas
fábricas do município.
Ainda nesse mesmo ano, o jornal O 15 de Novembro noticiou a pretensão dos padres
salesianos em fundar, em Sorocaba, um colégio destinado à educação primária e secundária
196
para o sexo masculino. Para a aquisição do prédio destinado ao estabelecimento, formou-se
uma comissão composta das seguintes pessoas: Dr. Alvaro Cesar da Cunha Soares, Constancio
Pereira de Souza, Domingos Gonçalves Bastos, Comendador Geoerge Oeterer, Francisco de
Souza Pereira, Francisco Teixeira de Souza Leite, Francisco Cozetti, Ten. Cel. José Loureiro
de Almeida, José Manoel Soares do Amaral, Major Manuel da Silva Villela e Manoel José da
Fonseca. Esse grupo era heterogêneo, havendo médicos, industriais, membros do exército e
pessoas da elite. A intenção era que a escola funcionasse num sobrado, localizado no largo do
Rosário, no centro da cidade, junto à igreja de mesmo nome.
A abertura de casa de ensino é sempre um motivo de júbilo por parte da população,
porquanto é seguramente uma força inexgotavel de beneficios que se abre, mormente
em Sorocaba, onde a instrucção secundaria tem tido pouco desenvolvimento, nada em
relação com o seu progresso natural. Que os illustres membros da comissão consigam
o seu nobre desideratum.(O 15 DE NOVEMBRO, 22 out 1893, p.2)
Em edição seguinte, o jornal retificava que a pretensão de se fundar um colégio católico
era dos padres beneditos e não salesianos, como apresentado inicialmente, porém não foi
concretizada de imediato.
Em 1896, foi autorizada, pelo bispo D. Joaquim Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti,
a compra de um dos casarões da família Lopes de Oliveira para a instalação do Colégio
Diocesano em Sorocaba. As aulas se iniciaram em 5 de abril daquele ano. O corpo docente era
formado pelos seguintes professores: Pe. Pereira Barros, Pe. Luiz Augusto Scicluna e Pe.
Thierry Onisífero de Albuquerque, pelos doutores Pereira Barros (juiz de direito), Álvaro
Soares e Alberto Seabra (médicos) e Luiz Nogueira Martins (advogado) e, ainda, pelos
professores Arthur Gomes, Inácio Maurício e Amaro Egidio. O diretor do estabelecimento era
nomeado pelo próprio bispo.
O colégio funcionaria também em regime de internato. Os alunos internos deveriam ter
de 8 a 15 anos, sendo que irmãos teriam um desconto de 15% na anuidade. Já os alunos externos,
além da mensalidade, pagavam jóias de 20$000, que lhes dava o direito à mesa de estudos,
cadeira e luz.
Esse colégio teve vida curta, pois, no ano seguinte ao da sua criação, foi destruído por
um incêndio incontrolável.
Em 14 de dezembro de 1893, o jornal O 15 de Novembro anunciava a inauguração da
escola noturna gratuita para os operários. Ela seria mantida pela Societá Operaiá Italiana de
Mutuo Socorso e seria instalada numa das salas do prédio da rua da Penha, pertencente à
sociedade.
197
Esse mesmo jornal, ainda no ano de 1893, informava que o industrial Manuel José da
Fonseca, proprietário da fábrica de tecidos Nossa Senhora da Ponte, havia criado “há meses”
uma escola noturna gratuita para seus operários. Esclarecia que “agora para maior vantagem
acaba de declarar obrigatoria a frequencia da alludida escola aos operarios que não souberem
ler, sendo despedidos os que não se quizerem sujeitar a essa condição. Digno de ser imitado”
(O 15 DE NOVEMBRO, 15 nov 1893, p.2).
Há de se reconhecer a grandeza do ato do industrial, apesar da maneira pouco delicada
de fazê-lo. Entretanto, fica uma dúvida quanto ao funcionamento da escola e à frequência dos
alunos, uma vez que essa fábrica sempre esteve entre aquelas cujo horário de trabalho avançava
noite a dentro. Não foram encontrados outros registros sobre essa escola, ficando em aberto o
período de tempo em que teria funcionado. Alguns anos mais tarde, em 1899, esse mesmo
industrial abriu uma nova escola noturna gratuita para os meninos que trabalhavam durante o
dia em sua fábrica. O professor era Horácio Ovídio de Oliveira. Na imprensa, houve a seguinte
menção à referida escola: “Aquelles que desejarem frequentar a nova escola, devem ir
matricular-se no escriptorio da fabrica á rua de Santo Antonio. É digno dos maiores elogios o
nobre acto que acaba de practicar o sr. Fonseca” (O 15 DE NOVEMBRO, 6 ago 1899, p. 2).
No final de 1893, foram realizados os exames finais nas escolas preliminares públicas
do município, na qual os alunos foram examinados por comissão previamente determinada pela
inspetoria. O jornal O 15 de Novembro, obviamente republicano, reconhecia que as
reformulações no ensino ainda precisavam de ajustes, mas não deixava de destacar o esforço
do governo em prol da educação:
O resultado de taes exames, geralmente considerado, muito deixou a desejar devido á
desorganisação geral em que jaz a instrucção publica. Com a applicação das medidas
traçadas pela recente reforma do ensino, contando com a boa vontade dos srs.
professores, revelado nos exames a que assistimos e com a cooperação dos paes e
mais interessados na santa causa do ensino – é de esperar-se que no proximo anno, o
patriotico esforço empregado pelo governo e seus agentes seja convertido em util
realidade (O 15 DE NOVEMBRO, 12 nov 1893, p.2).
No início do ano de 1894, o inspetor do distrito, José Monteiro Boanova, em nota no
jornal O 15 de Novembro, informava sobre a reabertura das escolas públicas da cidade e, para
o conhecimento dos interessados, publicava os locais onde as escolas funcionariam e seus
respectivos professores.
PARA O SEXO MASCULINO
1.ª Cadeira – Professor Alberto de Almeida Mello – rua do Rosario, 34.
2.ª Cadeira – Professor Amaro Egydio de Oliveira – rua Direita, 9.
3.ª Cadeira – Professor Joaquim Ferreira de Alembert – rua de Santa Clara, 40 A.
4.ª Cadeira – Professor Joaquim Izidoro de Marins – rua da Matriz, 1.
198
PARA O SEXO FEMININO
1.ª Cadeira – Professora d. Escholastica Rosa de Almeida - rua da Penha, 96.
2.ª Cadeira – Professora d. Carlota de Padua Ferreira - rua de São Bento, 26.
3.ª Cadeira – Professora d. Gertrudes Pires de Almeida Mello - rua de São Paulo, 22.
4.ª Cadeira – Professora d. Benedicta Ernestina do Prado, rua das Flores, 7.
Sorocaba, 8 de Janeiro de 1894. - O Inspector do Districto José Monteiro Boanova.
(O 15 DE NOVEMBRO, 8 jan 1894, p.2).
Em setembro de 1894, o jornal O 15 de Novembro noticiou que recebia diversas queixas,
sem especificar a procedência delas, sobre a necessidade de aumentar-se o número de escolas
públicas no centro da cidade, por se tratar da região onde se concentrava maior número de
alunos e que, naquela época, contava com apenas uma escola, que atendia um número de alunos
superior à sua capacidade, comprometendo o ensino.
O jornal solicitava ao inspetor do distrito uma melhor distribuição das escolas e que,
preferencialmente, o centro da cidade fosse contemplado com mais escolas. A essa queixa o
inspetor respondeu que eram inúmeras as dificuldades encontradas por ele no exercício de sua
função para promover uma distribuição adequada das escolas e o seu bom funcionamento.
Esclareceu que as chamadas escolas preliminares eram instituições transitórias, posto que a
recente reforma da “instrução”, de 1892, pretendia adequá-las ao plano adotado pelas Escolas
Modelo da capital. Segundo ele: “Entretanto, esse ideal é de dificil execusão attentos os
elevados recursos materiaes que ella exige, a vasta extensão do nosso territorio, a falta de
pessoal technico, etc” (O 15 DE NOVEMBRO, 16 set 1894, p.2).
Apontando as dificuldades para o melhoramento das escolas, o inspetor acenou para
uma possível solução: com a reunião das escolas em um único estabelecimento, referia-se ao
Grupo Escolar que começava a ser implantado no Estado de São Paulo. Concluía dizendo que,
após estudos feitos, tinha “firmes e bem fundadas esperanças de, no proximo anno lectivo de
95, inaugurar os trabalhos escolares no novo estabelecimento” (O 15 DE NOVEMBRO, 16 set
1894, p.2)
As dificuldades apresentadas pelo Inspetor de Distrito de Sorocaba em sua resposta
retratam com fidelidade a situação na qual se encontrava a instrução paulista e os impedimentos
para sua implantação. O próprio médico e deputado Cesário Mota, ao assumir a Secretaria do
Interior, em relatório apresentado ao Presidente do Estado, admitiu ser a instrução “o ponto de
estrangulamento do progresso de São Paulo” (REIS FILHO, 1995, p.107).
Para Casemiro dos Reis Filho (1995), o “Grupo Escolar” foi a criação, do período da
reforma, que melhor atendeu às necessidades do ensino primário. Esse estabelecimento de
ensino reunia, em um único prédio, de quatro a dez escolas (que posteriormente passaram a ser
199
chamadas de classes), compreendidas no raio da obrigatoriedade escolar (2 km para o sexo
masculino e 1 km para o feminino, ou seja, a distância entre a escola e a casa do aluno), sob a
direção de um diretor. Sobre a criação dos Grupos Escolares, as novas formas de ensino e os
efeitos delas no ensino paulista, pronunciou-se o Secretário do Interior e Justiça José Cardoso
de Almeida, em relatório de 1904, apresentado ao Presidente do Estado de São Paulo:
A útil e recomendada instituição dos grupos escolares tem produzido ótimos
resultados à vista dos quais já não há dúvidas a respeito da conveniência de novas
criações. Edifícios apropriados, móveis adequados, professores capazes, disciplina
rigorosa, direção inteligente, de par com a assídua vigilância e metódica distribuição
do ensino, permitem contar, entre os melhores, os serviços desses estabelecimentos à
causa da instrução pública do Estado de São Paulo (SOUZA, 1998, p. 31).
É inegável que a instalação dos Grupos Escolares representou um grande avanço para a
educação em todo estado de São Paulo. Além de construir escolas, os republicanos queriam
provas de que a qualidade de ensino era superior àquela dos tempos do império. Daí o extremo
cuidado dispensado ao aspecto arquitetônico dos prédios, visto que os grupos escolares
deveriam fazer parte da cena urbana com o devido destaque e visibilidade.
Ao tratar do Grupo Escolar e do espaço arquitetônico, Araujo Jr. (2007, p. 48) sintetiza:
No edifício escolar estava a imagem do que o ensino deveria propagar uma feição
austera, adornada, simétrica, sem desvios na sua “coluna vertebral” arquitetônica: um
bloco monolítico, pesado, sério, concentrado em um espaço amplo para melhor ser
contemplado e reverenciado em sua arquitetura nobre, integralmente importada da
Europa e segundo os moldes mais modernos da época.
Com os grupos escolares, o espaço escolar foi repensado. Representavam um espaço
próprio para a educação, em nada parecido com as salas precárias das escolas isoladas dos
tempos passados.
A fim de uniformizar e manter o mesmo padrão de atendimento, foi elaborado o
Regimento Interno das Escolas Públicas do Estado de São Paulo, através do decreto 248 de 26
de julho de 1894, além da observação constante do Código de Posturas.
De acordo com o Regimento Interno, os grupos escolares poderiam agrupar de 4 a 10
escolas isoladas em salas com capacidade para 40 alunos. Poderiam funcionar no mesmo prédio
escolas do sexo masculino e feminino, desde que observada a completa a separação dos sexos.
Apesar do número de alunos ser diferente - geralmente era maior o de meninos - as salas eram
distribuídas igualmente: uma para cada ano de ensino e para cada sexo.
As questões de higiene deveriam ser rigorosamente observadas. Através das
regulamentações, é possível perceber que o direcionamento dos Grupos Escolares estava
200
preestabelecido pelas normas pedagógicas. “Caberia à criatividade de engenheiros e arquitetos
codificar e traduzir, nesse formato, as necessidades da escola pública” (ARAUJO JR, 2007,
p.25) O passado de doenças e insalubridade pertencia ao tempo do império.
As salas de aula deveriam ter janelas grandes para permitir ao máximo a entrada de luz
natural. Durante o recreio, as janelas das salas deveriam ser abertas para o devido arejamento.
As paredes e o piso deveriam ser laváveis, daí a preferência pelos pisos de madeiras, cuja
conservação se fazia com panos molhados, sempre visando à prevenção de doenças. As paredes
deveriam ser pintadas com tinta óleo até a altura de 1, 50 m para facilitar a limpeza e evitar o
acúmulo de pó. O Código Sanitário, sempre alertando para o perigo das epidemias,
recomendava que as construções dos Grupos Escolares ficassem distantes de cemitérios,
fábricas, igrejas, prisões, ferrovias e até mesmo de locais com grande aglomeração urbana.
As construções deveriam privilegiar pátios e jardins e ter banheiros em número
suficiente e de preferência separados do prédio das salas de aula. Enfim, no edifício escolar
estava a imagem que o ensino deveria propagar, qual seja, organização, excelência, limpeza,
novos tempos.
Diferente de outras cidades paulistas que foram contempladas com Grupos Escolares
bem construídos, Sorocaba não o conseguiu de imediato. Explica Souza (1998) que motivações
políticas podem ser apontadas como justificativas para a criação dos Grupos Escolares em
determinadas localidades. Evidentemente, a legislação previa a concessão de prioridade aos
municípios que contribuíssem com terrenos e donativos para a instalação da escola.
Coincidentemente ou não, as primeiras cidades beneficiadas pelos Grupos Escolares foram
aquelas que constituíam os caminhos do café. Sorocaba não se enquadrava como produtora de
café, a sua produção agrícola era predominantemente algodoeira.
Em Sorocaba, o primeiro grupo escolar foi instalado em 14 de agosto de 1895,
recebendo o nome de Grupo Escolar Antonio Padilha, em homenagem ao comerciante e
vereador Antonio Egidio Padilha, um dos incentivadores da instalação da escola, que falecera
dias antes da inauguração dela. Ao contrário das construções imponentes dos grupos escolares
desejados pela República, no sentido de dar visibilidade para a escola, o grupo escolar de
Sorocaba foi instalado num sobrado alugado pela câmara municipal, localizado na rua das
Flores, região central, onde foram reunidas as oito escolas da cidade e mantiveram-se os
mesmos professores das escolas antes isoladas.
Foi nomeado, para a direção do grupo escolar, o major Luiz Campos, como se verifica
na notícia publicada na época:
201
Hontem, ás 11 horas da manhã, reunidas as oito escolas desta cidade, no largo da
Matriz, tendo á sua frente a bandeira nacional, depois de formado um caprichoso
prestito, foram os alumnos, alumnas e professores tomar posse das suas competentes
salas, no sobrado sito a rua das Flores. – Grande numero de pessoas do povo e muitas
familias seguiam o prestito até o edificio Escolar, onde os alumnos cantaram alguns
hymnos que foram delirantemente applaudidos. (O 15 DE NOVEMBRO, 15 ago
1895, p.1)
Figura 18 - Grupo Escolar Antonio Padilha – 1895.
Fonte: Museu Histórico Sorocabano.
Passados poucos dias da inauguração do Grupo Escolar Antonio Padilha, O 15 de
Novembro publicou uma notícia afirmando que a instalação desse Grupo Escolar fora feita de
maneira ilegal e que o Conselho Superior de Instrucção Publica exigia apurada investigação
dos fatos e seus autores. De fato, essa inauguração não foi a oficial, partiu da ação precipitada
de alguns professores.
Para atender às exigências da nova escola, foi preciso reformá-lo, o que efetivamente
começou em julho de 1895. Impacientes, os professores Amaro Egydeo de Oliveira,
Joaquim Izidoro Marins, José de Azevedo Antunes e Alvaro de Moraes Roza, em fins
de agosto, resolvem ‘inaugurar’ o prédio, instalando ali suas classes. Essa ocupação
ocorreu durante o período em que o Inspetor encontrava-se ausente da cidade. Sabedor
do fato o Conselho Superior, na seção de 30 de agosto, declarou ilegal a instalação do
Grupo Escolar, por não ter o ato sido precedido das formalidades legais e ocorrer sem
a prévia aprovação do Governo (MENON, 2000, p. 90).
202
Oficialmente a inauguração do Grupo Escolar Antonio Padilha deu-se em 26 de março
de 1896 (MENON, 2000). Já no início de seu funcionamento, o prédio mostrou-se acanhado
para o número de alunos e em desacordo com o Código Sanitário. Passaram a ser frequentes as
queixas sobre as condições higiênicas do prédio, tanto que, em 1899, quando a cidade
atravessou grave surto de peste bubônica, as aulas foram suspensas por longo período, como
também ocorrera nos tempos da epidemia de febre amarela e outras doenças.
Interessante assinalar um fato ocorrido quando do surto de peste bubônica em Sorocaba
que traça um retrato da sociedade daquela época. Esse surto foi tão violento que as autoridades
se viram obrigadas a comprar os ratos da população. As pessoas que capturassem os ratos
deveriam levá-los até o mercado municipal, onde receberiam a quantia de 200 réis por rato
entregue. E, nesse mesmo local, os ratos eram incinerados. Essa situação causou muita
polêmica, pois o administrador do mercado recusava-se a recolher os ratos naquele lugar, por
ser inapropriado. Houve ainda comentários de que muitas pessoas passaram a criar ratos para
conseguir mais dinheiro. Sobre esse tempo, o jornal anunciou o seguinte:
As aulas do Grupo Escolar Antonio Padilha, desta cidade, foram suspensas até
segunda ordem. – Esta resolução do digno director daquelle estabelecimento de ensino
foi tomada em vista do máo estado em que se acha o edificio do grupo, depois que se
encetou a extinção dos ratos alli existentes. (O 15 DE NOVEMBRO, 8 nov 1899, p.2)
O prédio alugado para a instalação do Grupo, além de não ser condizente com as
exigências sanitárias, no que dizia respeito à higiene, também não era suficientemente amplo
para atender plenamente a demanda de alunos.
Em relatório, o Inspetor da Escola lavrou que o prédio deixava muito a desejar, como
se pode constatar no fragmento reproduzido a seguir:
[...] devido a insufficiencia de accomodações acham-se funccionando em uma só sala
duas series ou turmas do 2º anno do sexo feminino, uma com 37 e outra com 33
alumnas. A divisão que separa o 3º do 1º anno da mesma secção é de taboas e apenas
de 2 metros de altura, de forma que o rumor que não pode ser evitado no 1º anno,
pertuba enormemente os exercicios do 3º. As tres series do 1º anno do sexo feminino
com 151 alumnas funccionam em uma única sala de 7,50 × 6m! Todas as salas são
mobiliadas com carteiras Chandless e como estas são em número insufficientes
sentam-se dous alumnas em cada carteira servindo-se de uma pequena taboa para unir
e ampliar as cadeiras, o que deve constituir um supplicio (MENON, 2000, p.91).
Nos anos que se seguiram, o número de interessados em estudar sempre fora superior
ao de vagas oferecidas, obrigando a direção do estabelecimento a recorrer a sorteios de alunos
para o preenchimento das vagas. Apesar dos sorteios, que davam um viés de imparcialidade, o
203
grupo escolar acabava contemplando, em sua maioria, os pertencentes às camadas mais altas
da sociedade, uma vez que era elevado o número de crianças que ficavam impedidas de estudar
devido ao trabalho diário nas fábricas. Mas mesmo assim, algumas delas chegavam à escola. A
existência de crianças operárias nas escolas primárias não era exclusividade de Sorocaba.
Novamente, o relato da professora Dona Brites, que atuava na cidade de São Paulo, confirma
essa realidade, que muito se repetia também em Sorocaba:
Meus alunos eram todos filhos de operários. [...] As fábricas aceitavam trabalho de
menores. Eu tinha uma aluna, Elvira Massari, moreninha, magrinha, os traços muito
finos. Não era morena era cinzenta. Ela trabalhava no turno da noite. Quando a fábrica
apitava quatro horas ela saía da escola, ia pra casa, dizia ela que jantava. Entrava às
seis horas na fábrica e trabalhava até meia-noite. Teria uns onze anos, a mãe ia buscar
a menina na saída da fábrica. (BOSI, 1994, p. 32)
Por ocasião da dispensa do diretor do Grupo Escolar Antonio Padilha, cujos motivos
não foram claramente revelados, o jornal O 15 de Novembro publicou um termo de visita do
inspetor Domingos de Paula e Silva, procurando destacar as boas qualidades do diretor
dispensado, o que nos permite apreender as reais condições de funcionamento do Grupo
Escolar:
Em visita a este estabelecimento verifiquei o seu funccionamento com a matricula de
511 alumnos classificados até o 5º anno do curso preliminar. Acho este numero
avultado para a capacidade das salas e faço lembrar as prescripções do art. 69 do
Regimento Interno dos Grupos e Escholas Modelo. Quanto ao ensino é ministrado
com regularidade e aproveitamento em diversas classes, notando, porém, organisação
escholar viciada, disciplina falha e falta de higyene. Sou o primeiro a reconhecer o
preparo e a competencia technica do seu director e os defeitos apontados estou certo,
são originarios do imprestavel predio em que esta installado este grupo, e, com a sua
transferencia para outro, espero serão sanadas essas lacunas (O 15 DE NOVEMBRO,
1 set 1904, p. 3).
A situação precária apresentada pelo prédio adaptado - ou quem sabe improvisado - para
o Grupo Escolar acarretava problemas de toda ordem e não apenas nos aspectos de higiene e
lotação de alunos, como pode ser observado em relatório do inspetor geral do ensino sobre uma
ocorrência protagonizada por dois professores do estabelecimento.
Sorocaba, 25 de setembro de 1901
Tendo ocorrido nesta cidade, em dias da semana passada, factos que se relacionam,
com a vida íntima do Grupo Escolar “Antonio Padilha”, tratei de syndicar desses
factos e cheguei ao conhecimento do seguinte: O professor Joaquim Isidoro Marius
(sic), a quem, aliás, nada si tem a increpar quanto ao cumprimento de seus deveres
profissionais, vive em completa desarmonia com todo o corpo docente deste grupo. A
sua sala funciona para dentro da sala onde leciona o professor José de Asevedo
Antunes, de quem é inimigo, tendo os seus alunos ao entrar e sahir de passar por esta
sala. Em um dos dias da semana passada a classe do professor Antunes, na ocasião de
sahir, foi alcançada pela do professor Marius (sic) (consta a boa disciplina) que com
204
ella misturou, para o recreio. Lá o professor Antunes repreendeu a classe de Marins.
Na sua, a sahida dos alunos, os do professor Marins vaiaram o professor Antunes.
Conhecido o facto pelo diretor, foram impostas penas de expulsão e suspensão aos
alunos delinquentes. O facto por si se reveste de gravidade, esta porem sob de ponto
se si chegar a evidenciar que Marins auctorisou ou acaroçou tal vaia, conforme
depuseram alguns alunos. Do inquérito porem a que isto não ficou provado; si os
alunos procederam de modo próprio na certeza de que agradavam ao seu professor
que é inimigo do outro. Não havendo pois matéria para denuncia nesta occurrencia
me parece que a melhor medida será a justiça preventiva para casos futuros. Ora, desse
acordo está o professor Marins (que é ali o passo de uma discordância) que deseja a
sua remoção para esta Capital para uma escola qualquer, a que vae requerer. Penso,
pois que o Governo já facilitando a sua retirada, dá a melhor solução possível à
questão tratada. Saúde e fraternidade. Cidadão Mario Bulcão. M.D. Inspector Geral
do Ensino (ARQUIVO DO ESTADO, 1901 apud ARAUJO JR, 2007, p.120).
Em 1911, iniciou-se a construção de um novo prédio para abrigar o Grupo Escolar. Em
outubro de 1913, foi inaugurado o prédio do Grupo Escolar Antonio Padilha, localizado em
região central de Sorocaba. O prédio situa-se na Cesário Mota e conserva, até hoje, suas
características originais quase integralmente.
Figura 19 - Grupo Escolar Antonio Padilha – Prédio definitivo – 1913.
Fonte: Gabinete de Leitura Sorocabano.
Logo após o início das aulas no novo prédio, o jornal Cruzeiro do Sul fez uma visita a
convite do “nosso ilustre amigo e colaborador sr. Major Luiz de Campos, digno e dedicado
diretor do grupo escolar ‘Antonio Padilha’” e, numa extensa reportagem rasgando elogios para
todos, o jornal expõe as suas impressões “agradabilíssimas”, assegurando que Sorocaba “póde-
se orgulhar de possuir uma casa de ensino de primeira ordem. ”
205
E a nossa impressão foi agradabilissima, não havendo mesmo expressão que possa
definir a nossa satisfação, o nosso indizivel contentamento ao observarmos como é ali
ministrada a instrucção áquellas creanças em numero superior a 600, rebentos
promissores de uma geração nova, intelligente, que ha de fazer da patria brasileira a
nação mais culta, mais admirada e invejada de todo o mundo; a instrucção é antes de
tudo, a principal base onde se assenta o progresso de um paiz; é a instrucção a alavanca
do progresso e da civilização; è pela instrucção de um povo que se avalia a sua força,
o seu valor e o seu poder (CRUZEIRO DO SUL, 22 out 1913, p.2).
O jornal exaltava, ainda, o governo de São Paulo, o qual considerava um exemplo para
todo o país pelo verdadeiro interesse com que tratava à educação, merecendo aplausos.
Prosseguindo, o jornal afirmava que, na visita feita ao Grupo Escolar, por tudo que os
representantes do Cruzeiro do Sul observaram, não sabiam o que deveriam salientar: se o local
“magnifico” onde estava construido o “majestoso prédio”, se o asseio, a higiene, a
“commodidade que ali se nota”; se o “luxo do mobiliário”, a ordem e disposição em que foram
colocadas as mobílias. Ou ainda, se o método do ensino ali ministrado; se o “carinho e a boa
vontade dos professores” para com os seus alumnos; se a competencia dos professores; se a
disciplina destas “creancinhas e o respeito para com os seus mestres”; na verdade, sentiam-se
embaraçados ao descrever tudo o que viram pois poderiam ser considerados por algum
pessimista de “exagerados ao confessar o enthusiasmo que nos domina, ao manifestar sem
mentir a nossa verdadeira impressão”. Mas sem incorrer em injustiça, tinham a certeza de que
cidade alguma do interior poderia ter um estabelecimento de instrução primaria tão bem
instalado, apesar de as obras ainda não terem terminado.
O Grupo Escolar funcionava em dois turnos. Das 8 horas ao meio dia funcionava a
“secção masculina” e do meio dia às 16 horas, a “secção feminina”. (CRUZEIRO DO SUL, 22
out 1913, p.2) Em todas as salas visitadas, encontraram ordem, disciplina e crianças alegres e
“como sentiam-se satisfeitas e com que enthusiasmo entoaram os hymnos infantis que lhes
ensinaram os seus professores”.
As salas de aula eram grandes, muito bem ventiladas, como o mobiliário todo novo e
“offereciam um aspecto agradabilissimo, magnifico e encantador”.
Ao todo eram dezesseis as salas, todas numeradas, com as mesmas dimensões,
oferecendo comodidade e conforto. No centro, havia uma área cimentada; nos lados, dois
gabinetes, um para a reunião dos professores e outro para as crianças que, durante o recreio,
preferissem ficar no prédio; nos fundos existiam dois “enormes e bellisimos pavilhões” para o
recreio, em tempo de chuvas; aos lados do prédio ficava o “enormíssimo” parque, com mais de
duzentas árvores, para o recreio dos alunos; no outro, estava sendo construido o campo para os
206
“exercicios athleticos e jogos varios — lawn-tennis, basket-ball, foot-ball, tamborins, crichet,
etc” e, na frente do prédio, estava sendo plantado um jardim.
Nos fundos, ficavam, ainda, os banheiros dos alunos, conforme recomendação do
Código Sanitário, onde “o asseio é rigorosissimo; ali existe tambem um reservatorio d’agua,
com 2.300 litros do precioso liquido”.
Havia, ainda, uma sala onde estava sendo organizado o museu escolar, com “uma
infinidade de objectos curiosos e interessantes”.
O edificio, como dissemos, está situado no logar mais alto da cidade, aprazivel e onde
se gosa o melhor clima. E’ todo muito bem ventilado, com janellas de vidro, altas e
grandes, com resposteiros. As salas, de grandes dimensões, são claras, contêm
carteiras duplas, de estylo moderno e elegante, com lousas em toda a largura da sala.
Todas essas salas são eguaes: possuem mappas, globos, cartas geographicas, retratos
dos vultos proeminentes da nossa patria, para o ensino de historia do Brasil, etc
(CRUZEIRO DO SUL, 22 out 1913, p.2).
Os visitantes também tiveram a oportunidade de se inteirar sobre os métodos de ensino
ministrados no estabelecimento. Utilizando métodos modernos, bem diferentes daqueles do
passado, os professores permitiam que as crianças aprendessem com maior facilidade as
matérias ensinadas: “tão esplendido, racional e útil o methodo usado” era o método intuitivo.
Actualmente são os seguintes os professores e professoras do grupo escolar e
respectiva classes: SECÇÃO FEMENINA - 1º anno A — d. Francisca de Almeida;
1º anno B — d. Angelina Grohmann; 2º anno A — Antonia Nogueira Padilha; 2º anno
B — d. Isouraida Vieira Soares; 2º anno C — d. Dinorah de Toledo; 3º anno A — d.
Maria José Loureiro; 3º anno B — d. Escolastica Rosa de Almeida; 3º anno C — d.
Amelia Cezar; 4 anno A — d. Benedicta Leme de Faria; 4º anno B — d. Emygdia de
Almeida SECÇÃO MASCULINA - 1º anno A — d. Maria Annunciação Almeida; 1º
anno B — d. Anna de Barros; 1º anno C — sr. Luiz Gonzaga Fleury; 2º anno A — d.
Laudelina Rolim; 2º anno B — sr. Salvador Santos; 2º nno C — sr. Ozorio de Campos
Maia; 3º anno A — sr. Fernando Rios; 3º anno B — sr. Florentino Bella; 4º anno A
— sr. Luiz Wagner; 4º anno B — sr. Aristides de Campos. (IDEM p. 2)
Esclarecia a reportagem que, por falta de espaço, teriam que finalizar o texto, porém não
sem antes exaltar que o edifício fora construído sob a direcção do “nosso distincto amigo sr.
coronel José de Barros, estimado constructo-architecto, sendo um dos mais bellos do Estado”.
Enfim, após registrar, mais uma vez, que a impressão que tiveram do grupo escolar foi
“a mais agradavel, e deliciosa possível”, por uma questão de justiça, não podiam deixar de citar
dois nomes muito importantes para a concretização do grupo escolar:
207
Figura 20 - Alunos do Grupo Escolar Antonio Padilha nas escadarias da Igreja Matriz de Sorocaba.
Foto de Domingos Alves Fogaça.
Fonte: Acervo do Museu Histórico Sorocabano.
O primeiro—o do nosso chefe dr. Campos Vergueiro, a quem devemos mais este
benefício de inestimavel valor. Todos sabem o empenho e o esforço que ele empregou
para tornar realidade essa justissima aspiração do povo sorocabano. O outro— do
nosso illustre e distincto amigo sr. major Luiz de Campos, benemerito educador e
incansável director do grupo escolar, que empregou todos os meios para que as obras
ficassem concluidas dentro do menor tempo possivel e cujos esforços para conseguir
do governo o melhor material escolar e o melhor mobiliario existente na secretaria do
Interior, foram inauditos. Devido à sua boa vontade o nosso grupo escolar é hoje o
primeiro do Estado: possue um museu escolar, ainda em formação, um campo
agricola, jogos infantis para exercicio dos alumnos, adquiridos por meio de uma
subscripção e outros melhoramentos quaes, dispondo de espaço necessario poderemos
então salientar (CRUZEIRO DO SUL, 22 out 1913, p.2).
Apesar das ótimas condições do prédio e do ensino, o Grupo Escolar Antonio Padilha
nunca pôde atender plenamente sua demanda. A insuficiência de vagas sempre foi questionada
pela população, porém somente foi autorizada a criação de um segundo grupo escolar em 1914.
O Grupo recebeu o nome de Visconde de Porto Seguro, em homenagem ao historiador
Francisco Adolfo de Varnhagen, e foi instalado no mesmo sobrado em que inicialmente
funcionara o Grupo Escolar Antonio Padilha, que certamente apresentava-se em estado ainda
mais precário.
208
Figura 21 - Professores do Grupo Escolar Antonio Padilha. 1913.
Fonte: Museu Histórico Sorocabano.
No final do século XIX, a educação não acompanhou o ritmo das transformações
urbanas. O tão desejado ingresso à modernidade, especialmente com o advento da
industrialização, evidenciou o problema da educação ao mostrar que a maioria dos
trabalhadores era analfabeta. Como forma de enfrentar tamanho desafio, em 1895, foi criada
uma escola noturna oficial para os adultos do sexo masculino. Essa escola apresentava um
número de matrículas superior a trinta alunos e, por funcionar com regularidade, dizia o jornal,
o inspetor do distrito “vae propor ao governo a creação de mais algumas dessas escolas sendo
duas destinadas ao sexo feminino” (O 15 de NOVEMBRO, 7 abr 1895, p.1).
As Escolas Noturnas foram criadas pela Lei nº. 88, de 8 de setembro de 1892. Eram
gratuitas e podiam ser instaladas em todo lugar onde houvesse frequência provável de trinta
alunos. Pelo Regimento Interno das Escolas Públicas de 26 de julho de 1894, essas escolas
destinavam-se a fornecer os conhecimentos indispensáveis às pessoas do sexo masculino,
maiores de dezesseis anos, que não pudessem frequentar outras escolas. Regidas pelos
professores das escolas preliminares, que recebiam uma gratificação, as escolas noturnas
funcionavam das 18 às 21 horas. Nessa escola, destinada à educação de adultos, os professores
ampliavam o estudo da Geometria, fazendo a explicação dos processos de desenho empregados
nos diversos ofícios. Essa escola não se dirigia à alfabetização, mas tinha intenções
profissionalizantes (REIS FILHO, 1995). As aulas nas escolas noturnas eram ministradas pelos
209
professores do curso preliminar, devidamente designados para isso, inclusive com as mesmas
obrigações inerentes ao cargo.
Conforme o Regimento Interno, o programa de ensino das escolas noturnas deveria ser
o mesmo das escolas preliminares, com exceção dos trabalhos manuais, da ginástica e de todos
os exercícios que não fossem apropriados à idade desses alunos. A disciplina deveria ser
observada nos seguintes termos:
Art. 97 – Á hora da sahida dos alunos, o professor deve procurar evitar, sempre que
lhe fôr possível, que eles façam gritarias ou profiram palavras obscenas.
Art. 98 – O professor deve prohibir expressamente, sob pena de eliminação, no caso
de, reincidência, que os alunos escrevam ou desenhem nas paredes da escola, bem
como nas bancas ou carteiras. (REGIMENTO INTERNO... 1894, p. 17)
A visibilidade da escola republicana e a consequente propagação do ideal republicano
também se fazia presente com as escolas noturnas, conforme o regimento: “Art. 101 – As
escolas noturnas do mesmo modo das preliminares, devem ser francas a todas aquellas pessoas
que, mostrando interesse pela instrucção, desejem visital-as”. (Idem, p.17).
A renovação do ensino pretendida pelos republicanos não estava circunscrita apenas na
construção de bons prédios escolares, apoiava-se em dois pilares: a formação de professores e
a adoção do método intuitivo. Esses dois aspectos apresentavam-se intrinsecamente
relacionadas, pois a formação dos professores era compreendida tendo como fundamento a
prática de novos processos pedagógicos (SOUZA, 1998).
O método intuitivo assentava-se numa abordagem indutiva, pela qual o ensino deveria
partir do conhecido para o desconhecido, do particular para o geral, do concreto para o abstrato.
A prática do ensino concreto seria realizada pelas “lições de coisas”:
A adoção do método intuitivo significou uma tentativa de mudar radicalmente a forma
de organizar o ensino e de executar o trabalho docente, uma vez que exigia mudança
das formas tradicionais de lidar com o conhecimento e de ensinar. O apelo à
observação, à experiência, a relevância dada ao concreto e à curiosidade infantil,
contrapunham-e às práticas mnemônicas, à recitação em coro, às lições de cor.
Colocavam-se novos desafios para o professor desenvolver o seu trabalho e ainda se
reclamava um novo tipo de perfil profissional ao serem exigidas criatividade,
iniciativa e atualização (SOUZA, 1998, p. 165).
O discurso reformador, não obstante as boas intenções, ou a falta delas, a formação dos
professores e a aplicação dos novos métodos de ensino mostravam-se um grande desafio ao
governo republicano, no sentido de poder por em prática o novo conceito de educação.
Uma longa reportagem publicada pelo jornal O 15 de novembro, sobre a realização dos
exames finais das escolas isoladas de Sorocaba, evidencia que a escola deveria ter visibilidade.
210
Os exames finais representavam um grande evento e extrapolavam as paredes da sala de aula.
Eles deveriam ser realizados em grandes espaços, tendo muitos espectadores:
EXAMES ESCOLARES – Com toda solenidade e magnificiencia principiaram a 24
os exames annuaes das aulas publicas da cidade no Paço Municipal. Ás 11 horas da
manhã daquele dia deu entrada no salão do jury que estava caprichosamente
ornamentado, o numeroso préstito infantil, composto de alunos e alumnas das diversas
escolas publicas. As meninas vestidas de branco, ostentando distinctivos das escolas
a que pertenciam garbosamente entraram no salão entoando um belíssimo hymno
escolar que produziu em enthusiasmo indiscriptivel. O grande concurso popular que
assistia aquella interessante festa do ensino acolheu-as com phrenéticos aplausos
prolongada salva de palmas (O 15 DE NOVEMBRO, 27 dez 1894, p.2)
No meio da grande festa do ensino, era necessário lembrar à população que tudo aquilo
só fora possível com a República:
[...] o inspector do districto litterario, professor José Monteiro Boànóva que a ella
presidia, depois de ler um excelente discurso em que salientou os serviços prestados
pelo governo republicano ao ensino publico primário, declarou que ia dar começo aos
exames do sexo feminino na sua ordem numérica (IDEM, p.2)
Entretanto, mesmo com todo êxito manifestado nos vários dias que se seguiram na
realização dos exames, o próprio jornal reconhecia as dificuldades e desafios que se
avizinhavam para a consolidação dos novos métodos e da instrução em si:
[...] Em geral os exames foram além da expectativa geral, demonstrando as alumnas
das diversas classes aproveitamento, salientando os esforços ingentes de suas dignas
mestras, dentro do acanhado circulo em que se vêm, já pela falta de frequência assídua
das creanças, já pela falta de materiais de ensino, muitas vezes supridos por
explicações que custam penosíssimos trabalhos. (Ibidem, p.2)
Nesse ano, após a realização dos exames escolares, houve uma sessão solene no salão
do júri, oferecida pela Câmara Municipal, para premiação dos professores públicos e dos alunos
que mais se destacaram no ano de 1894.
O primeiro grupo escolar de Sorocaba e os outros vindouros nunca tiveram condições
de absorver toda a demanda escolar, deixando um significativo número de crianças para trás,
notadamente as mais pobres. No ano de 1904, no Grupo Escolar Antonio Padilha, a seção
feminina atendia 286 meninas e a seção masculina atendia 238 meninos, num total de 524
alunos. Entretanto, mais de 100 crianças foram preteridas por falta de vagas (CRUZEIRO DO
SUL, 11 fev 1904).
211
3.3 Uma escola para operários: escola da Loja Maçônica Perseverança III
A Maçonaria sempre teve uma participação na vida social das cidades, com seus
membros fazendo parte da política, da imprensa, do comércio e de outros setores. As
transformações que ocorriam na sociedade sorocabana acabavam por revelar aspectos que
atravancariam o seu progresso. Uma constatação que se impunha era o elevado número de
analfabetos de todas as idades, além de reduzido número de escolas.
De acordo com um artigo publicado no jornal O Sorocabano, na década de 1870, com
uma população aproximada de 16 mil habitantes, Sorocaba somava nove instituições de ensino,
sendo quatro públicas e cinco particulares. Desse total, seis escolas atendiam ao sexo masculino
e três ao sexo feminino, sendo sete escolas primárias e duas secundárias. O número de alunos
matriculados nessas escolas perfazia 323, porém frequentavam as escolas 302 e, desse número,
224 eram meninos e 78, meninas. O atendimento escolar estava muito aquém do necessário (O
SOROCABANO, 1 nov 1870, p.2).
Diante desse quadro desolador em que quase a totalidade da população não tinha acesso
à instrução, a Loja Maçônica, dentro dos seus princípios de educação e liberdade para o
melhoramento da sociedade, investiu, em 1869, na abertura de uma Escola Noturna para os
trabalhadores adultos ou maiores de 14 anos do sexo masculino. O ideário maçônico liberal e
republicano sustentava-se no princípio de que só através da educação era possível transformar
o indivíduo em cidadão produtivo e consciente de seus deveres cívicos, capaz – portanto – de
exercer a liberdade propiciada pela cidadania. A luta contra o analfabetismo e pela difusão da
instrução ao povo obedecia a objetivos precisos: o alargamento das bases de participação
política no país, a conformação da cidadania, indispensáveis à legitimação do Estado
Republicano (MORAIS, 2006 apud SILVA, 2013). As lojas maçônicas empreenderam
verdadeira campanha contra o analfabetismo, daí as primeiras iniciativas de escolas noturnas
na província de São Paulo serem obra da Maçonaria.
A primeira Escola Noturna em Sorocaba, mantida pela Maçonaria, teve início em 7 de
setembro de 1869 e, pelo considerável número de matriculados, formaram-se três salas, o que
resultou na contratação de um professor titular, Leonel Jandovy de Abreu Sandoval, e também
de um auxiliar para ele. No entanto, esse professor titular lecionou até 27 de novembro daquele
ano, quando pediu demissão do cargo. A Loja ponderou que não teria condições de pagar dois
professores, ficando assim só um professor. Foi proposto, ainda, “que d’ora em diante sejam
admitidos a matrícula na escola noturna os escravos que para isso apresentassem licença por
212
escrito dos seus senhores” (ALEIXO IRMÃO, 1999, p.67). Apesar de essa escola ter tido boa
procura, um fato externo acabou por refletir negativamente na imagem dela, provocando o seu
esvaziamento.
De acordo com o jornal O Sorocabano, nessa escola noturna, no período de 7 de
setembro de 1869 a 20 de julho de 1870, foram matriculados 117 alunos, mas, devido a “boatos
malevolamente espalhados na população de ser a escola protestante”, saíram 65 alunos e, dos
52 restantes, a frequencia média era de 35 alunos. A notícia, no entanto, esclarece o seguinte:
[...] mas hoje, reconhecendo que não ha ali propaganda religiosa de especie alguma,
e são admittidas todas as crenças, tem voltado muito dos que sahiram. Tem se notado
grande aproveitamento dos alumnos; alguns que entraram sem conhecer o —A—
leêm correntemente manuscriptos e livros, fazem as 4 operações arithmeticas, e
exercitam-se em outras contas. A off... Perseverança III dá aos alumnos: mestre,
livros, papel, pennas, lapis, etc (O SOROCABANO, 31 jul de 1870, p.2).
Esse esvaziamento provavelmente ocorreu por uma associação equivocada feita pela
população a respeito do ponto de vista religioso. No ano de 1869, em Sorocaba, além da
fundação da Loja Maçonica Perseverança III, também foi criada a 1ª Igreja Presbiteriana de
Sorocaba, cuja organização foi feita na casa do maçom José Antonio de Souza Bertholdo.
Talvez, por isso, a escola tenha sido associada ao movimento protestante que se inseria neste
período em Sorocaba (SILVA, 2007, p.106).
Passados alguns anos do fechamento dessa escola, em 1896, na sessão de 23 de
setembro, novamente foi apresentada proposta de criação da Escola Noturna da Perseverança
III, visto que a população operária em Sorocaba havia aumentado significativamente. A referida
escola deveria funcionar na sala do prédio da própria Loja, tendo as aulas duração de duas horas
e meia diárias. O professor deveria ser maçon e os membros da maçonaria se cotizariam para
pagar o salário dele.
A Loja Perseverança III, em sessão de 13 de janeiro de 1897, decidiu abrir a Aula
Noturna, apesar dos pesares. Foi, então, nomeada uma comissão para arranjar tudo o que fosse
necessário para a sua abertura, inclusive que fossem solicitados à Câmara “bancos e utensílios
do antigo Liceu” (ALEIXO IRMÃO, 1994, p.131).
No mês seguinte, o jornal O 15 de Novembro anunciava a abertura da Escola Noturna
criada pela Maçonaria, que funcionaria no prédio da referida loja e cujas aulas seriam
ministradas pelo professor normalista Álvaro de Morais Rosa, que, apesar da pouca idade,
mostrava-se competente. Avisava, ainda, que, no ato da matrícula, teriam preferência os
empregados e operários portadores dos cartões de suas respectivas fábricas.
213
A Escola Noturna teve vida longa, mas isto não significa que não tenha enfrentado
dificuldades. Nem sempre a municipalidade ou o governo estadual ofereceram subsídios para a
manutenção da escola e o pagamento dos professores. Então era necessário promover festas e
espetáculos teatrais em benefício dela. Os irmãos-membros mais abonados da maçonaria
faziam generosas doações para esse fim.
Havia alta rotatividade dos professores, que, por diversas razões, não ficavam por muito
tempo a frente das aulas noturnas. O professor Alvaro de Morais assumiu a escola em fevereiro
de 1897, e nela atuou até julho de 1898. Nessa data, assumiu o cargo Otto Wey, que, parece-
nos, não era professor formado e atuou somente até dezembro daquele ano, quando se demitiu.
E assim se foram sucedendo, por muito tempo, as mudanças de professores.
Com o aumento das fábricas em Sorocaba, o número de interessados em estudar nessas
escolas também aumentou, tornando inviável “conservar-se alunos por muito tempo
frequentando as aulas, estudando coisas que não são muito necessárias, e tomando lugar de
outros que desejem aprender um pouco”. Para resolver parte desse problema, o professor
Eugênio Pilar França solicitou à Loja autorização para eliminar os alunos que não se portassem
bem e sem respeito. O pedido foi aprovado, porém o professor deveria avisar inicialmente à
Loja os motivos que levaram ao pedido de eliminação e esta comunicaria aos pais do aluno
sobre o mau comportamento. Caso não houvesse melhora, seria, então, eliminado.
A eliminação por si só não resolveria a situação da demanda e da falta de vagas e nem
era a intenção da Maçonaria praticá-la em demasia. Assim, ficou decidido adotar medidas
estruturais, como suprimir lições de gramática e aritmética e ensinar apenas leitura, escrita, as
quatro operações fundamentais e algumas noções de desenho linear, isto tudo, praticamente,
porque os meninos eram empregados e não tinha tempo de estudar teorias, sendo o ensino
prático mais proveitoso e menos trabalhoso (ALEIXO IRMÃO, 1994).
Em relação aos aspectos pedagógico-administrativos, a escola tinha certa autonomia na
implantação das disciplinas, que deveriam estar voltadas diretamente para o tipo de clientela a
que se destinava. No entanto, preocupava-se em ensinar apenas os rudimentos de algumas
disciplinas, fato que ocasionava, no início do ano, o retorno às salas de aulas daqueles alunos
que estavam interessados em prosseguir nos estudos, em função da falta de uma escola em
período noturno que os conduzisse no desenvolvimento dos estudos. Sem demonstrar qualquer
interesse e até mesmo prejulgando a capacidade e interesse daqueles alunos, antepunha uma
série de obstáculos intransponíveis:
214
João José como um dos membros da Comissão encarregada da fiscalização das Aulas
Nocturnas declara que tendo recebido ordem de não mais acceitar alumnos que
tivessem sido approvados nos exames, elle achou-se embaraçado no abrir a matrícula
visto não ter um programa organisado afim de fazer sciente aos interessados quaes os
motivos que o faziam assim proceder, e tendo combinado com os Professores das
Aulas, adiou a abertura da matrícula para outro dia e trazer ao conhecimento da Loja
afim de que ella resolva sobre o caso (MENON, 2000, p.53).
A partir dessa decisão tomada pela maçonaria ficou flagrante o aligeiramento do curso
oferecido.
Em 1901, através do jornal O 15 de Novembro, a Loja Perseverança III comunicava aos
pais de família que, no dia seguinte, estariam reabertas as matrículas para aquele ano letivo,
sendo “as aulas grátis para os pobres” (O 15 DE NOVEMBRO, 6 jan 1901, p.2). As reiteradas
faltas dos alunos passaram a ser outro ponto problemático, pois, com as longas jornadas de
trabalho nas fábricas, os operários não chegavam a tempo do início das aulas ou, quando
chegavam, estavam cansados demais devido à labuta diária e não encontravam ânimo para os
estudos.
Figura 22 - Escola Noturna Perseverança III.
Fonte: Museu histórico Sorocabano.
Em 1911, quando houve a greve dos tecelões, após os operários das fábricas de tecidos
terem conseguido a redução da jornada de trabalho para 10 horas diárias, O Operario anunciava
com satisfação que aumentara o número de alunos e a frequência nas “Escolas Nocturnas da
Perseverança III”, uma vez que o único objetivo dessa greve fora promover a “instrucção da
classe menos favorecida da sociedade”. Nesse tempo, os operários que quisessem ou pudessem
215
frequentar escolas só podiam recorrer às escolas da Maçonaria. Por mais paradoxal que possa
parecer, o jornal O Operario fez o seguinte agradecimento:
O procedimento digno e correcto da benemerita loja Perseverança III, merece, por
todos os titulos, os nossos melhores encomios e por essa razão, louvamos, do melhor
coração, o grande alcance dos dignos propugnadores do bem, que constituem o
elemento massonico local. Essa grande instituição, abrindo escolas para os miseros
sedentos de luz, não faz mais do que abrir as portas do grandioso templo, onde residem
o absoluto que é Deus (O OPERARIO, 27 ago 1911, p.2).
Essa questão foi apontada pelo Diretor Geral da Instrução Pública no Anuário do ensino
referente ao ano de 1917. Reconhecia o Diretor Geral a importância das escolas noturnas para
a classe operária, porém, da maneira como o ensino vinha sendo desenvolvido pouco contribuía
para a educação dos operários. Esse diretor entendia que os horários estabelecidos para o
funcionamento dessas escolas “concorrem para afastar em vez de atrair, quem trabalha em
serviço até as cinco horas da tarde não pode sentir-se com disposição para frequentar as aulas
que começam às seis horas e meia como exige o regulamento”. Ele prosseguia afirmando que
o mesmo ocorria com o professor, que já cumpria uma jornada durante o dia e “vão para dar
aulas já cansados do trabalho que exercem em suas escolas durante o dia, portanto, não
conseguem fazer com que as aulas da noite sejam proveitosas”. Finalizava dizendo que a seu
ver “as escolas e cursos noturnos deveriam desaparecer e serem substituídas por escolas, que,
devidamente organizadas possam prestar melhores serviços as classes a que se destinam”
(Anuário do Ensino do Estado de São Paulo, 1917, p.11).
As Escolas Noturnas ou Aulas Noturnas, como também eram chamadas, pertencentes à
Loja Maçônica Perseverança III passavam por constantes fiscalizações pelos membros da Loja.
Ocorria ainda, a cada final de ano letivo, a sessão de exames, onde os alunos eram arguidos por
uma banca examinadora.
No ano de 1901, o jornal O 15 de Novembro noticiou a realização de exames finais,
afirmando que os examinadores ficaram satisfeitos “com os resultados apresentados por todos
os alunos, os quais mostraram bastante aproveitamento nas matérias ensinadas naquele
estabelecimento de instrução” e os parabenizava da seguinte maneira:
[...] A Loja perseverança III pela obra benéfica que tomou a seu cargo, tratando de
distribuir o pão espiritual aos necessitados e pelo que vai concorrendo com uma
grande parcela de auxílio para a felicidade e aperfeiçoamento da família humana, e
ainda ao professor Eugenio Pilar França, a quem está confiada aquela escola, pelos
lisonjeiros resultados que colheu dos seus esforços e trabalho (SOROCABA 350
ANOS, 2004, p.183).
216
Em 1903, o professor Eugenio Pilar França, da Escola Noturna, chegou a pedir para os
membros da Loja Maçônica autorização para encerrar o ano letivo sem a realização dos exames
finais. Justificava o pedido pelo fato de a maior parte dos alunos mais adiantados ter deixado a
escola e os seus lugares terem sido preenchidos por outros que ainda estavam atrasados.
A trajetória das Escolas Noturnas mantidas pela Loja Perseverança III, reorganizadas
com mais sucesso em 1896, chegou até os anos de 1950, quando a educação brasileira assumiu
novos contornos e os membros da Maçonaria entenderam que a educação por eles oferecida já
cumprira plenamente ao que se propusera a realizar.
Outra iniciativa educacional importante da Loja Maçônica Perseverança III em
Sorocaba foi a criação do Lyceu Sorocabano, em julho de 1901, estabelecimento de ensino
secundário gratuito. Todos os seus professores eram maçons e trabalhavam gratuitamente. O
Lyceu Sorocabano não recebia nenhuma subvenção, contando apenas com o “idealismo
daqueles homens, sob o comando de Arthur Gomes”. (ALEIXO IRMÃO, 1994, p.192) O ano
de 1904 encontrou o Lyceu Sorocabano de portas cerradas devido à falta de alunos. Entretanto,
segundo Aleixo Irmão (1994), havia grande número de pedidos para as Aulas Noturnas, de
ensino primário, obrigando a formação de mais uma turma nas dependências do extinto Lyceu
Sorocabano.
3.4 Uma escola para as moças operárias
As iniciativas escolares para atendimento dos operários da cidade de Sorocaba não
ficaram restritas às escolas mantidas pela Loja Maçônica Perseverança III. Fundado pelas Irmãs
Beneditinas Missionárias de Tutzing, em 28 de setembro de 1905, o Colégio Santa Escolástica,
destinado a oferecer educação particular para meninas, o fez até 1969, quando passou a ter
turmas mistas.
Por volta de 1913, esse colégio, imbuído da sua filosofia cristã, passou a oferecer
gratuitamente um ensino para as operárias das fábricas de tecidos de Sorocaba. O jornal
Cruzeiro do Sul apresentou extensa matéria sobre essa escola gratuita, dizendo que as Irmãs
estavam “prodigalisando as luzes da instrucção a essas infelizes, obrigadas desde crianças a
viver dentro dessas enormes officinas do trabalho onde nem sempre há hygiene e conforto”
(CRUZEIRO DO SUL, 29 maio 1913, p.2).
Para atender às moças operárias, o Colégio Santa Escolástica, instituição que se mantém
até hoje, oferecia aulas para duas turmas diurnas, das 9 às 11 horas da manhã, e para outras duas
217
turmas noturnas, das 18 às 20 horas. Todas as turmas somavam mais de 100 alunas
matriculadas, “todas operárias pobres”, sendo que algumas “já de edade e que no emtanto, ali
vão aprender ainda as primeiras lettras” (Idem, p.2).
Figura 23 – Asilo S. Agostinho e Colégio Santa Escolástica.
Fonte: Gabinete de Leitura Sorocabano.
Após visita realizada a essas aulas, o repórter do Cruzeiro do Sul incumbido de tal tarefa
relatou suas impressões, que foram as melhores, a começar pela postura obediente das alunas
em sala de aula, que o deixou encantado. Com a intenção de mostrar o aproveitamento das
alunas aos visitantes, as irmãs regentes submeteram-nas a um pequeno exame oral.
[...] pois com a nossa presença, puzeram-se respeitosamente em pé e nem mais
pareciam as operárias de uma fábrica de tecidos, atiradas pela necessidade, desde cedo
aos vae e vens da sorte. Foi preciso que um dos nossos companheiros de visita
solicitasse para que novamente se colocassem nos seus logares, afim de que ellas,
obedientes, continuassem no estudo de suas lições. [...] somos accordes em affirmar
que as operarias recebem ali a verdadeira instrucção popular e uma houve, que apezar
da não pouca edade, recitou com desembaraço e comprehensão a inesquecivel poesia
de Fagundes Varela (CRUZEIRO DO SUL, 29 maio 1913, p.2)
Na sequência, o repórter dizia que era admirável o trabalho desempenhado pelas irmãs
Bonifácia, Praxedes, Hermentrudes e Angita, que “empregaram titanicos esforços afim de fazer
daquellas inconscientes operarias conscenciosas mulheres e educadas donas de casa”.
Esclarecia que a dificuldade maior encontrada pelas irmãs professoras residia no fato de as
alunas não terem material pedagógico adequado, ou seja, levavam cada uma um tipo de livro,
218
quando podiam levar, o que dificultava o trabalho de ensinar. Finalizava informando que “a
illustrada prioreza já havia solicitado ao Secretário do Interior o devido material escolar”.
Esse visitante enalteceu o trabalho e a bondade das Irmãs Beneditinas em oferecer
ensino para as moças pobres, e reafirmou o papel ocupado pelas operárias na sociedade, reflexo
do vivenciado nas fábricas, ou seja, a obediência, o disciplinamento, a pouca ambição na vida
e a possibilidade, quando muito, de tornarem-se boas mães operárias.
Segundo Aluisio de Almeida (1965, p. 6), em 1919, em uma sala da antiga igreja
pertencente ao Colégio Santa Escolástica, abriu-se o Externato São Miguel, gratuito para moças
operárias “que a gente daquele tempo chamavam de pobres e de fato eram”. Lá, elas aprendiam
prendas domésticas e alfabetizavam-se.
Com as modificações decorrentes do tempo, esse externato passou a atender crianças
pobres, em sua maioria filhos de operários, entre as quais eu, que tive oportunidade de lá
estudar. Esse ensino primário foi oferecido até 1971.
3.5 A instrução para o operário: o verdadeiro pão do espírito
“E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:
Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.
E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.”
(Vinicius de Moraes)
219
Para os operários, a educação enquanto pão do espírito não podia ficar apenas na
conquista da educação oferecida pela escola pública, principalmente porque, para os libertários,
a educação formal era a expressão do capitalismo. Nas escolas, formava-se o cidadão para servir
ao capitalismo. Dessa forma, tornava-se premente a necessidade de formar o homem
integralmente, e não apenas ensiná-lo a ler e a escrever. Era preciso que ele tivesse uma
formação para a vida, para pôr em prática novos ideais, pois só a educação traria a libertação
dos que tudo produzem.
Um documento enviado por operários de São Paulo ao III Congresso da Internacional
Socialista, realizado em Zurich, em 1893, em sua parte final, sintetiza de forma bastante
significativa os verdadeiros objetivos da organização operária no Brasil: “Queremos, quando o
povo estiver educado, a revolução social” (FOOT; LEONARDI, 1982, p. 258).
Nesse ponto, socialistas e anarquistas se dividiam ideologicamente quanto ao
oferecimento de educação. Para os primeiros, seguindo o pensamento de Karl Marx, a educação
deveria ficar a cargo do Estado, mas não o Estado capitalista; para os últimos, deveria ser uma
escola direcionada pelas ideias anarquistas, de preferência mantida pelas Ligas e Uniões
Operárias.
No período de 1897 a 1915, em todo o país foram criadas mais de 200 Ligas de
Resistência e Uniões, sendo que, desse número, mais de 80 estavam localizadas em São Paulo
e a maioria delas, na capital. As sedes das Ligas e das Uniões foram verdadeiros centros
irradiadores de cultura operária. Os imigrantes fundaram, em cada associação, escolas para
alfabetização de adultos e escolas modernas ou racionalistas para os filhos dos operários.
Anteriores a esse período, as Associações Operárias já se mostravam preocupadas com a
instrução dos filhos dos operários, quase sempre filhos de imigrantes, e, em suas escolas,
ministravam o ensino na língua materna dos imigrantes.
Os anarquistas não se preocupavam apenas com as reivindicações salariais e com as
greves, quando se faziam necessárias. Eles se preocupavam, igualmente, com temas como: o
ensino, a cultura, a higiene nas escolas e nos locais de trabalho, nos restaurantes, o seguro de
acidentes no trabalho, a defesa da mulher e da criança, etc (RODRIGUES, 1969).
Não obstante todas as dificuldades que se impunham para a obtenção de seus intentos,
os anarquistas tinham a clareza de que somente pela instrução poderiam conscientizar o
operariado sobre os seus direitos e vida digna. Essa formação não seria apenas fruto da educação
oferecida nas escolas, tão precariamente oferecida pelo governo. Pretendiam, através de outros
meios, formar ideologicamente o operário.
220
As Ligas e Uniões Operárias desempenharam papel importante para atingir esse intento,
tendo em vista que ofereciam atividades diferenciadas como palestras, conferências, exibição
de filmes, festas, enfim todo tipo de atividade que elevasse o conhecimento e promovesse a
construção de uma consciência de classe no seio dos operários. Os eventos que ocorriam nestas
sociedades eram para toda a família operária.
A escritora Zélia Gattai, já mencionada neste trabalho, em diversas passagens de seus
livros, comenta sobre as “Classes laboriosas” que, na sua visão de menina, eram lugares, antes
de tudo, de divertimentos. Foi frequentando as “Classes Laboriosas” que a autora passou a ter
conhecimento das ideias anarquistas e dos seus principais representantes. Nas palavras dela
sobre uma reunião muito concorrida nas “Classes Laboriosas”:
Reconheci alguns homens da comitiva que o acompanhavam [o conde] ao palco. Eram
todos figuras importantes: professores e jornalistas renomados. Entre eles estava
Edgard Leuenroth, José Oiticica, Alexandre Cerchiai, Ângelo Bandoni e Oreste
Ristori. Todos eles tinham sido amigos do meu avô Gattai (GATTAI, 1994, p. 176).
Segundo Fausto (1976) os libertários preocupavam-se com o significado dos atos da
vida cotidiana e, por supervalorizarem a moral, passaram a ter um moralismo de estilo religioso.
Condenavam os jogos, o alcoolismo, a dança etc. O jornal A Terra Livre, ao condenar a dança,
dizia que “o baile só serve para manter os sentidos excitados, não é ginástico, nem moral” (A
TERRA LIVRE, 23 fev 1907).
A realização de um jogo de futebol, por iniciativa dos operários da fábrica Votorantim,
numa festa da empresa, fora objeto de severa crítica do jornal A Terra Livre, até mesmo porque
configurava-se como colaboração entre classes:
Vamos ver também o elegante jogo de foot-ball, depois do qual os jogadores
fatigados, aborrecidos, vão brigar com a família; é um jogo bom para os parasitas e os
ociosos que precisam de exercitar os músculos em um trabalho inútil, desprezando ao
mesmo tempo o trabalho útil e os que o fazem. Quanto a nós, temos exercício de sobra.
Exercício até rebentar (A TERRA LIVRE, 9 dez 1907).
A imprensa operária sempre atuou como uma fonte de instrução e conscientização do
operário. Das páginas do jornal O Operário depreende-se uma preocupação com a educação
integral do homem-operário. Daí a ênfase no combate ao alcoolismo – cujos efeitos
devastadores entre as classes populares não podiam ser mais deletérios, especialmente o
alcoolismo na infância.
221
Quando, em 1910, Oreste Ristori percorreu o interior do estado realizando conferências
em benefício das Escolas Modernas, incluiu “o flagelo do alcoolismo”, anunciado com um tom
aterrorizante e com umas quarenta projeções impressionantes relativas
[...] aos efeitos desastrosos produzidos pela lenta intoxicação alcoólica no organismo
do indivíduo, nas condições da família e nas relações sociais; perda do sentimento, da
dignidade pessoal, de amor à família, aos filhos, ao estudo; tendência para o crime,
enfraquecimento físico, ulceração dos órgãos internos, atrofia da memória, espantosas
alucinações, delirium tremen, loucura e morte (FAUSTO, 1976, p.87).
Esse conferencista visitou Sorocaba por diversas vezes, especialmente, como já
mencionado, nos tempos em que pretendia angariar fundos para a implantação das Escolas
Modernas.
Os principais temas abordados pelo jornal O Operário diziam respeito ao alcoolismo,
como pode ser constatado pelos artigos intitulados Alcoolismo na infância, Para nossos filhos
por uma amiga da infância, Aos educadores, Combatendo o jogo, Às nossas mulheres etc.
A politização do operário não ficou restrita à imprensa operária. Com a formação de
Ligas e Associações Operárias, a alfabetização dos adultos passou a ser uma das principais
metas culturais. Entretanto, outros recursos eram utilizados, como as conferências e as peças de
teatro. Uma conferência que ganhou fama foi Jesus Cristo, agitador social, proferida pela
primeira vez em dezembro de 1905, pelo militante anarquista Everardo Dias. Em Sorocaba após
as conferências, quase sempre aconteciam bailes com a intenção de promover a diversão e atrair
mais simpatizantes. Os piqueniques em áreas mais distantes da cidade também aconteciam com
frequência. No caso de Sorocaba, o local preferido para esses encontros e bailes era o “pitoresco
Votorantim”, maneira como referiam-se a Votorantim, por ser um lugar muito bonito.
As peças de teatro atraíam muitos espectadores e quase sempre tinham forte apelo
anticlerical. Elvira Boni de Lacerda, atriz amadora nesses grupos de teatro anarquista, sobre
uma das peças em que atuou, contou o seguinte:
Fiz uma que era uma heresia total: uma chamada A fome. Nem sei se devo contar. Era
um casal de irmãos e a mãe. Quando levantava o pano, a mãe estava sentada numa
cadeira, com a cabeça apoiada na mesa, e o rapaz estava conversando com ela. A irmã
estava na rua, e nisso cai um grande temporal. Ela chega toda molhada e fica
conversando com o irmão contando as dificuldades porque passou. De repente a mãe
dá um suspiro, a moça vai ver e nota que a mãe morreu. Então vai ao oratório e começa
a rezar, a pedir a Deus que olhe por isso, por aquilo, fala, fala, por fim pega o crucifixo,
vai para perto da mãe, mostra-a e diz: “Você não está vendo que minha mãe morreu?”
Afinal de contas, termina a peça com ela atirando o Cristo longe. Ela diz assim:
“Maldito sejas!” (GOMES, 1988, p.46)
222
As peças de teatro, sempre com cunho doutrinário, gozavam de grande repercussão entre
os operários. As associações operárias também investiam na formação de bibliotecas,
oferecendo a literatura apropriada para a formação ideológica do operário. Indicavam-se as
leituras de Karl Marx, Piotr Kropotkin, Errico Malatesta, Elisée Reclus, entre outros.
Em 1904, foi fundada, no Rio de Janeiro, a Universidade Popular de Ensino Livre, de
caráter anticlerical e laico, fruto de uma iniciativa de líderes sindicalistas locais. Seu corpo
docente era formado por intelectuais famosos como: Elysio de Carvalho, Silvio Romero, José
Veríssimo, Rocha Pombo e Fábio Luz.
Essa universidade fracassou pouco tempo após sua criação, devido ao déficit financeiro
e à distância existente entre o discurso erudito dos mestres e o analfabetismo predominante na
classe operária carioca (FOOT; LEONARDI, 1982).
3.6 A educação operária sob as lentes dos jornais Cruzeiro do Sul e O Operário
A educação do operário ou a falta dela sempre figurou nas páginas dos jornais
sorocabanos. O jornal O Operário entendia a educação e a instrução como fatores cruciais para
as conquistas do proletariado, tanto que, na greve de 1911, a primeira em que o operariado
obteve sucesso em suas aspirações, o motivo principal foi a redução da jornada de trabalho,
justamente para que os operários pudessem frequentar as escolas noturnas. Desde o início de
sua existência, o jornal denunciava essa situação:
Sorocaba a Manchester do Estado de S. Paulo, conta com um número elevadíssimo
de operarios que são obrigados pelos seus patrões a trabalharem 13 e 14 horas diárias
para não morrer de fome! Mal tratados pelos prepotentes gerentes e seus auxiliares
que são os mestres e contra-mestres bajuladores que, não trepidam sómente em
maltratar tambem os seus companheiros, roubando-lhes o suor, em proveito de seus
patrões, impondo-lhes multas exageradas e, reduzindo a classe ao estado a que se
acha: sem horas para se instruir, sem horario para o seu descanço e sem liberdade de
pensamento (O OPERARIO, 31 out 1909, p.1).
O jornal O Operário não escondia e, ao que parece, nem queria fazê-lo, que a
impossibilidade dos operários frequentarem escolas era tão somente fruto da ganância dos
patrões, que exigiam longas jornadas de trabalho de seus empregados. Esse jornal mostrava-se
incansável em reivindicar a educação, tanto para as crianças como para os adultos, como
evidenciado na seguinte publicação:
223
Dòe-me deveras, dentro d’alma, operarios ao ver nestas gelidas manhãs, essas pobres
e desditosas criancinhas que despidas completamente da sorte e sentindo a dura
necessidade de ganhar o pão, o negro pão quotidiano seguem o caminho das fábricas,
descalças, entanguidas, tiritando de frio!... [...] Os srs. patrões fazem questão que
entremos as 5, 5 e meia da madrugada e retiremos ás 7, 7 e meia ou 8 da noite. Ás
crianças que passam o dia todo submergidas no fundo da fabricas, jamais é dado a
liberdade de frequentarem as escolas nocturnas... (O OPERARIO, 25 jun 1911, p.2).
Das páginas do Cruzeiro do Sul, depreende-se que esse jornal conhecia a importância
da educação para os operários, muito embora, sutilmente, expressasse seu pensamento elitista,
tentando incutir, no trabalhador, a conformação quanto ao seu papel na sociedade. Admitia que
os operários enfrentavam dificuldades para frequentar escolas, decorrentes das “vicissitudes da
vida se vêm na contingência de buscar no trabalho quotidiano recursos para a sua subsistência”,
sem fazer alusão às condições de exploração existentes nas fábricas. Com a mesma sutileza,
destacava que as melhorias viriam graças aos esforços do governo e dos chefes políticos, entre
eles o deputado Luiz Pereira de Campos Vergueiro.
O nosso representante da camara dos deputados dr. Luiz Pereira de Campos Vergueiro
apresentou ao projecto nº 3, deste anno, creando escolas, uma emenda em virtude da
qual ficarão creadas neste municipio duas novas escolas nocturnas para os adultos,
que muito irão beneficiar os operarios das fábricas Votorantim e Santa Rosalia. Tal
conducta do nosso distincto chefe procurando junto dos poderes constituidos do
Estado, prover as necessidades da classe operaria, no que diz respeito aos desejos que
tem a mesma que se lhes facilite a instrucção, é a melhor resposta que pode ser dada
às baixas intrigas que certo elemento conhecido já pela perfidia de suas insinuações
tem pretendido vingar no seio do operariado sorocabano. Confie a honrada classe
operaria de Sorocaba na acção do dr. Campos Vergueiro e terá dentro em pouco a
prova de quanto elle se empenha e se interessa para que as suas condicções, em tudo
que depender do Governo de São Paulo se vão sempre melhorando e aperfeiçoando.
Com isso os poderes publicos nada mais farão do que dar-lhe uma justa compensação
pelo muito com que o proletariado, pelo seu trabalho constante e dedicado, concorre
para o engrandecimento do nosso Estado (CRUZEIRO DO SUL, 26 ago 1911, p. 2).
Enquanto órgão preocupado com a formação integral do operário, o jornal Cruzeiro do
Sul frequentemente publicava artigos sem autoria definida, apenas assinado como “Um
Operário”. Pelo teor de tais artigos, quase doutrinários, é bem provável que tivessem sido
escritos por membros do próprio jornal.
Em 1904, por ocasião da formação da Sociedade Operária, em um artigo publicado
nesse jornal e intitulado Pelos Operários, o autor afirmou que a sua intenção era animar a
Sociedade União Operária, não que a entendesse decadente, pelo contrário “por ver que viceja
e floresce”. Alertava que os sócios dessa sociedade deveriam pensar no futuro, pensar mais em
seus filhos, que em si próprios. Para tanto, fazia-se necessário abrir-se escolas “onde o trabalho
seja honrado e onde se ensine os filhos dos trabalhadores o caminho do labor e do dever”
(CRUZEIRO DO SUL, 16 jul 1906, p.2).
224
O texto prosseguiu com as informações de que, para os meninos, já havia uma escola
aberta, não pela Sociedade Operária, mas pela Loja Maçônica Perseverança III e que todo o
ensino que o filho de um operário deveria receber era ali ministrado. Entretanto, os olhares
deveriam ser direcionados à educação das meninas, “filhas de operários, futuras esposas e mães
de futuros operários”. Mas a escola a que se referia o articulista era similar às que existiam nos
Estados Unidos, responsáveis por formar donas de casas:
[...] Nos Estados Unidos da América do Norte há escolas de donas de casa. Ali vae a
menina aprendendo a vida interna do lar, e fica sabendo desde as minudencias dos
temperos culinarios ate as etiquetas de um banquete, ou de uma visita cerimoniosa.
Consigamos, amigos operarios, um ensino não tão perfeito, mas o bastante para fazer
da menina de hoje a alegria do lar do trabalhador. [...] Cuidemos da educação dos
nossos filhos, de nossas filhas, de nós próprios, e seremos felizes – o nome de
OPERARIO ser-nos-á uma honra. Um Operario (CRUZEIRO DO SUL, 16 jul 1904,
p. 2).
Interessante notar que a tônica desse artigo é a conformação da condição de operários,
no presente e no futuro, sem vislumbrar possibilidades de mudança e de melhora de vida, nem
mesmo para os filhos. Esse discurso assemelhava-se mais ao pensamento dos patrões do que
dos próprios operários.
Num outro artigo, também assinado por Um Operário, esse amigo do operariado
alertava sobre os riscos em aproximar-se de ideias anarquistas, pois elas só semeavam o ódio
no operário contra o seu patrão. Tornava-se necessário que o homem do trabalho “fosse o mais
fiel executor das ideias superiores” e que fosse “amigo e não inimigo do industrial”. Devaneava
o autor ao dizer que “o operario torne-se o confidente do patrão”.
Assim, segundo o articulista, os benefícios desses procedimentos seriam mútuos, pois
[...] a industria crescendo, enriquece ao proprietario que, por sua vez paga melhor e
pontualmente seus empregados. Si, ao contrario, a mão do operario anarchista arruina
a fabrica, anniquila-se tudo – o prejuizo soffrido pelo proprietario reflecte-se na falta
de pão para os filhos dos pobres que na fabrica trabalhavam. (CRUZEIRO DO SUL,
2 nov 1904, p.3)
Finalizava o artigo recomendando à Sociedade Operária de Sorocaba que competia a
ela estudar esse assunto “apenas esboçado por Um Operario”. Mais uma vez, o discurso estava
mais próximo ao gosto dos patrões que ao dos operários.
O jornal O Operario, infatigável em sua campanha pela redução das horas de trabalho
do operário, alertava sobre as consequências prejudiciais das jornadas extenuantes para o
crescimento, tanto físico como intelectual, das crianças, configurando uma crueldade mantê-las
distantes da instrução. Lamentava o fato de haver uma escola para operários oferecida pela Loja
225
Maçônica e tantos alunos ficarem impedidos de frequentá-la. O jornal tentava, de todas as
formas, convencer a população dos efeitos nocivos da exploração do trabalho infantil: em certas
ocasiões, investia num discurso incisivo e até raivoso contra os patrões, em outras, procurava
apelar para a bondade dos patrões, tocando em seus corações, para que diminuíssem a longa
jornada de trabalho.
Ora, aqui em Sorocaba temos uma optima escola nocturna, mantida pela Loja
Maçonica Perseverança III, desta cidade, sob o regimen de trez hábeis professores, e
no entanto, os alunos que trabalham nas fábricas, não possuem tempo suficiente para
frequental-a devido as horas demasiadas de tabalho, pois entram ás cinco horas da
manhã e retiram-se ás sete ou oito da noite, não restando por conseguinte, tempo
suficiente para estudar. Portanto estas creanças estão condenadas a viver para sempre,
na escuridão da ignorância?! ... Não; os senhores patrões compadecer-se-hão delas, e
lhes consederão as OITO HORAS DE TRABALHO, cumprindo, por assim dizer, um
dos mais sagrados deveres! – compadecendo, pois, dessas mizeras criancinhas, dessas
victimas do trabalho (O OPERARIO, 6 mar 1910, p.2).
No afã de resolver a questão da educação para as crianças operárias, os diretores do
jornal, cônscios de seu dever irrestrito de lutar pela classe operária, sugeriam aos proprietários
das fábricas que arranjassem professores particulares para ensiná-las ou então que criassem
escolas noturnas, prevendo um futuro obscuro para a sociedade, fruto da falta de instrução dos
futuros homens.
Ellas, coitadas, pela força da necessidade, sujeitam-se ao trabalho, mas, daqui a alguns
anos, si cometerem um crime pela sua ignorância, culpados devem ser os homens que
aproveitaram o seu suor o que provavelmente nada farão por ellas. É uma necessidade
imprescindível que os proprietários de fabrica, criem escolas nocturnas para os seus
empregados, por sua conta, sem a menor remuneração da parte deles, pois que do
contrario podemos contar com uma leva de perdidos que só poderão dar prejuízo a
sociedade ( O OPERARIO, 29 maio 1910, p.2).
Em 1910, o governo estadual, “num rasgo de verdadeiro sentimento de humanidade,
remediou esse mal” sancionando a lei que estabelecia a criação de escolas noturnas para adultos
maiores de quatorze anos em diversos pontos industriais do estado. Sorocaba fora contemplada
com uma escola.
Essa lei foi motivo de imenso júbilo para o jornal O Operario e coincidiu com o
aniversário de um ano de existência desse jornal. O jornal praticamente reivindicava para si
essa conquista. Sob o título “Estamos vencendo” afirmava que “a creação e funcionamento
dessas escolas vem é, incontestavel, melhorar muito a condição actual dos operarios, que por
serem analphabetos, na sua maioria vivem sempre de rastos, mergulhados nas trevas da mais
crassa ignorância” (O OPERARIO, 31 jul 1910, p.2).
226
Provavelmente, o contentamento fora tamanho que o jornal publicou na íntegra a
referida lei, para que nenhum operário desconhecesse seus direitos. Segue:
Art. 1º. – As escolas nocturnas criadas pela lei n. 1.195 de 24 de dezembro de 1909,
se destinam as pessoas do sexo masculino maiores de 14 annos.
Art. 2º - Estas escolas funccionarão todas as noites das 6 horas e meia ás 9, salvo os
dias feriados por lei.
Art. 3º - O curso das escolas nocturnas compreenderá as seguintes materias: leitura,
escripta, linguagem, arithmetica e lições geraes compreendendo noções de geometria,
desenho, higyene, a educação moral e civica e principaes applicações das sciencias
physiconaturaes.
Paragrapho único – Estas materias serão esplicadas em lições diarias de acordo com
o programma anexo.
Art. 4º - A matricula das escolas estará aberta tres dias antes do inicio dos trabalhos
lectivos.
Paragrapho único – É de 50 o numero de alumnos a matriculas em cada escola, a qual
não poderá funccionar com frequencia media a 25.
Art. 5º - As escolas nocturnas serão localisadas em centros de população operaria,
tendo preferencia em seu provimento aquelas para cujo funccionamento as
municipalidades offereçam predios adequados.
Art. 6º - nas localidades onde existirem mais de duas escolas poderão ellas, a juizo do
governo, funccionar nos predios dos grupos escolares, competindo a sua direcção ao
director do grupo. Em outros casos, caberá cumulativamente a direcção a um dos
professores que for designado pelo governo.
Paragrapho 1º - O governo poderá nomear um servente para as escolas assim
agrupadas.
Paragrapho 2º - O pessoal administrativo dos grupos que servir nas escolas nocturnas
tera uma gratificação “prolabore” arbitrada pelo governo.
Art. 7º - As escolas nocturnas serão regidas pla legislação escolar em vigor em tudo o
que estiver previsto, neste regulamento.
Art. 8º - As disposições deste regulamento serão applicadas aos cursos nocturnos no
que se referir a matricula, horarios, programma de ensino e localisação das escolas.
Art. 9º - Este regulamento entrará em vigor desde já
(O OPERARIO, 31 jul 1910, p.2).
O jornal O Operario, sobre essa lei, só tinha a lamentar o fato desta não admitir
matriculas de menores de 14 anos nas escolas noturnas, “pois o numero de crianças que
trabalham em fabricas e que não sabem ler, é avultadissimo, principalmente em Sorocaba, onde
a industria, póde-se dizer é a única fonte de sua vida econômica” (O OPERARIO, 31 jul 1910,
p. 20 ).
Para o jornal Cruzeiro do Sul, foram mais de cinquenta escolas criadas no estado e
Sorocaba foi uma das primeiras cidades a ter o provimento de uma escola, tendo em vista que
o secretário do interior reconhecera a procedência das ponderações feitas pela nossa prefeitura
no “sentido de que em nosso meio, onde prepondera o elemento operário se favorecesse o
ensino àquelles que se vêm na contingencia de buscar no trabalho quotidiano recursos para a
subsistência” (CRUZEIRO DO SUL, 9 set 1910, p.2). O jornal afirmava, ainda, que o governo
recomendava que a localização dessa escola fosse próxima das fábricas São Paulo, Santa Maria,
Santa Helena e Souza Pereira, a fim de facilitar a frequência dos alunos. E que a outra escola a
227
ser provida posteriormente deveria localizar-se próxima das fábricas Santa Rosália e Nossa
Senhora da Ponte.
Apesar de a lei das escolas noturnas estabelecer que a idade mínima de ingresso seria
de 14 anos, o professor nomeado, Theodomiro de Barros publicou o seguinte anúncio:
Acha-se aberta, durante 3 dias das 6 às 8 horas da noite, a matricula desta escola, a
rua do Rosario, n. 24. Só serão aceitos alunos maiores de 16 annos de edade. As aulas
funccionarão todos os dias uteis das 6 as 9 horas da noite. Sorocaba, 13 de setembro
de 1910. O professor – Theodomiro de Barros (CRUZEIRO DO SUL, 14 set 1910,
p.3).
Passada a euforia no meio operário pelas escolas noturnas, os operários retornam à dura
realidade e constataram que as escolas foram criadas, mas as longas jornadas de trabalho se
mantinham e impediam o comparecimento dos alunos, pois, segundo o regulamento, as aulas
teriam início às 18 horas e término às 21 horas. Dizia o jornal O Operario que aprovavam o
horário, na verdade, o consideravam “magnifico”, mas queixavam-se da dificuldade que
[...] dahi advem para os operarios as frequentarem devido ao adiantado da hora que
largam o serviço. As fabricas de tecidos Santa Maria e Santa Rosália trabalham até às
oito e meia da noite (!!!) e da Nossa Senhora da Ponte até as sete e a Fabrica de
Chapeus até as cinco e meia da tarde. Diante de um horario tão commodo quanto
rendoso para os patrões, nenhum operario poderá frequentar as escolas nocturnas (O
OPERARIO, 2 out 1910, p.1).
O jornal apontava opções para se resolver essa questão. Uma seria o governo, por meio
da lei, regularizar as horas de trabalho em todas as fábricas, ou, então, que os patrões, por
vontade própria, reduzissem as horas de trabalho, ao menos para aqueles que frequentassem as
escolas. Entretanto, o próprio jornal considerava que essa medida, apesar de ser a ideal, era a
mais improvável de acontecer. Apresentava, então, outra opção: aconselhava as fábricas Santa
Maria, Santa Rosália, e Nossa Senhora da Ponte “a darem começo ao trabalho ás tres horas da
madrugada fazendo-o cessar as cinco” (O OPERARIO, 2 out 1910, p.1).
O próprio jornal reconheceu que a criação e a manutenção de escolas para a educação
dos operários a cargo dos industriais, a despeito de todos os argumentos e apelos levantados
pelo jornal, não produziu nenhum efeito positivo: “está claro da completa indiferença que reina
no espirito dos senhores patronatos em favor da classe operaria, única que sabe sofrer sem oppor
resistência” (O OPERARIO, 31 jul 1910, p.2).
228
3.7 Escola Moderna ou Racionalista: educação para a emancipação
“Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
- "Convençam-no" do contrário -
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.
Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!”
(Vinícius de Moraes)
Para a classe operária, a educação sempre ocupou papel de destaque entre suas
necessidades. Pelas próprias contingências, a educação reivindicada pelos operários não
avançava da primária, uma vez que o país não conseguia atender plenamente nem o nível
primário, quanto mais o secundário, para toda a população. Porém a educação ministrada na
escola púbica não condizia com os ideiais anarquistas, que pretendiam um outro tipo de
educação e foram buscar, no modelo educacional de Francisco Ferrer, as bases para a educação
operária.
Os operários, em especial os imigrantes, fundaram em cada associação operária escolas
para alfabetização de adultos e escolas modernas para os filhos dos operários, nos moldes da
proposta pedagógica de Francisco Ferrer y Guardia.
Esse educador espanhol de tendência anarquista fundou, em 1901, na cidade de
Barcelona, na Espanha, a Escola Moderna. Evitou nomeá-la como anarquista pela certeza de
perseguição por parte dos setores poderosos da sociedade, entenda-se Igreja Católica e Estado,
já que sua proposta educacional se apresentava totalmente desvinculada da tradição católica.
Esse tipo de ensino proliferou em todas as associações operárias dessa época e não deixou de
existir após a morte do seu idealizador. Manteve-se no Canadá até 1970 (SAFÓN, 2003).
Em 1901, ano de sua criação, a Escola Moderna contava com 30 alunos: 12 meninas e
18 meninos. Em 1903, já contava com 114 alunos.
229
Alguns dados estatísticos permitem-nos vislumbrar o cenário educacional da Espanha
nesse tempo. No início do século XX a Espanha contava com 72% de analfabetos em sua
população. Em 1909, ano do assassinato de Ferrer, 30 mil vilarejos não tinham escola. A Igreja
possuía 80% do ensino privado: 294 comunidades religiosas de ensino para educação de
meninos e 910 para a educação das meninas. Só na cidade de Barcelona, as escolas
confessionais elevavam-se a 489, contra 137 não confessionais, estatais ou privadas, as quais
acolhiam apenas 20 mil alunos, numa população de 60 mil crianças a serem escolarizadas
(SAFON, 2003).
A presença preponderante da Igreja Católica no campo educacional esbarrava nas ideias
anticlericais da escola Moderna. Eis o elemento motivador para uma perseguição a Ferrer.
Some-se a isso, uma série de fatos ocorridos em sua vida particular que também contribuíram
para essa situação.
Após um casamento mal-sucedido, Ferrer perdeu dois filhos para a esposa que o
abandonou. Depois disso, ele passou a se dedicar integralmente a suas intenções pedagógicas.
Foi professor de espanhol em Paris e, entre suas alunas, travou amizade com a senhorita.
Meunié, uma mulher de certa idade, católica fervorosa e muito rica e com a jovem que
desempenhava a função de companhia e amiga da senhorita Meunié, Léopoldine Bonnard, de
tendência libertária, e que se tornaria sua segunda companheira (SAFON, 2003). Em 1896,
morreu a senhorita Meunié e esta legou a Ferrer uma fortuna, a qual foi empregada no
estabelecimento de sua escola e sua editora.
Depois de um tempo, Ferrer separou-se de sua segunda esposa Léopoldine, com a qual
teve um filho chamado Riego, e desposou, em seguida, uma jovem professora de nome Soledad
Villafranca, que era igualmente amada pelo ex-bibliotecário da Escola Moderna, Mateo Morral.
Em 1906, em Madri, esse anarquista, talvez por desilusão amorosa, atentou contra a carruagem
nupcial do rei Afonso XIII, que nada sofreu. Após sua captura, Mateo Morral suicidou-se. As
autoridades que passaram a investigar o caso, ao saberem que o criminoso havia sido
bibliotecário na escola de Ferrer, acusaram-no de ter sido o mentor do atentado. Ferrer foi preso,
a Escola Moderna, fechada e todo o seu material, confiscado. Mais de um ano depois, Ferrer
foi inocentado, mas já não possuía recursos para reconstruir a escola. Ferrer mudou-se para a
França e, depois, para Bruxelas, onde fundou a Liga Internacional para a Educação Racional
da Infância e iniciou a publicação da revista da liga, L’École Renovée, e retomou a publicação
do Boletim da Escola Moderna, em Paris.
Em 1909, ele retornou para a Espanha, visitando familiares na Catalunha. Em agosto
daquele ano, eclodiu uma revolta popular contra a guerra que a Espanha fazia no Marrocos,
230
cujos soldados recrutados eram pais de família da classe operária. Os soldados operários se
recusavam a ir para a guerra e as manifestações cresceram. O período de 26 de julho a 2 de
agosto de 1909 foi muito violento e ficou conhecido como Semana trágica. Estabelecimentos
comerciais foram saqueados, igrejas e conventos foram incendiados. A revolta era contra a
burguesia espanhola, a Monarquia e a Igreja. A repressão do governo foi dura e foi ordenada a
prisão de uma série de proeminentes intelectuais e militantes republicanos, dentre eles
Francisco Ferrer (GALLO, 2014).
Sobre a participação de Ferrer nesse movimento, o bispo Casanes, que lhe consagrava
um ódio inflexível, declarou, em pleno púlpito, o seguinte:
A palavra de Deus, por minha boca, assinalará, pois, sem ter de pronunciar seu nome,
neste local santo, aquele que é culpado da força amplificada do laicismo e do
racionalismo, o autêntico desencadeador do flagelo que devasta nossa Santa Igreja e
que põe a fogo e a sangue toda a Espanha! (SAFÓN, 2003, p.25)
Num tumultuado julgamento militar, Francisco Ferrer foi condenado à morte por
fuzilamento pelo governo espanhol, que se manteve indiferente a todas as manifestações
internacionais solicitando o perdão dele.
A notícia da execução de Ferrer motivou pedidos de clemência e protestos em muitas
partes do mundo, inclusive em Sorocaba. Mas tudo foi em vão e, em 13 de outubro de 1909,
ele foi fuzilado.
Em Sorocaba, a morte de Francisco Ferrer foi motivo de grande comoção. Mesmo os
jornais considerados representantes da burguesia noticiaram e lamentaram sobre sua “morte
que tão dolorosamente ecoou por todo o mundo civilisado”. A fim de promover um protesto
popular, os senhores Arthur Gomes, Vicente Caputti, Vicente Guariglia, Francisco Catalano,
Gumercindo Gonçalves, Manoel Afonso, Otto Brinkmann, Antonio Marques Flores e Francisco
Campana, segundo o jornal Cidade de Sorocaba, reuniram, no largo da Matriz, mais de duas
mil pessoas. Após os discursos proferidos por algumas pessoas sobre a crueldade da execução
de Ferrer, os manifestantes saíram percorrendo as ruas da cidade:
[...] Ficou decidido que a commissão alludida redigisse e endereçasse ao governo da
República uma moção pedindo-lhe que officialmente fizesse sentir ao governo da
Hespanha e ao mundo civilisado o desgosto profundo do povo brasileiro pela
execução do malogrado Francisco Ferrer. (A CIDADE DE SOROCABA, 17 out
1909, p.2)
Em 29 de dezembro de 1911, Francisco Ferrer foi oficialmente declarado, pela justiça
espanhola, inocente das acusações que o levaram à morte, sendo suspenso o arresto de seus
231
bens, que foram devolvidos à família. “Morto Ferrer, ele já não era uma ameaça aos poderes
constituídos” (GALLO, 2014, p. 15).
3.7.1. A pedagogia de Francisco Ferrer y Guardia
A intenção educativa de Ferrer parte de uma evidência social: a desigualdade e a
injustiça sustentadas pelo Estado e transmitidas por todo dogma religioso que prega a
obediência. Contra esse estado de coisas, Ferrer propõe uma educação que eleve o combate do
indivíduo, em toda circunstância, para reivindicar os direitos humanos e participar do
patrimônio universal. É indispensável “que as crianças aprendam a ser verdadeiros homens, e
só então que se declarem revoltados, se for possível”.
Por isso, “a missão da Escola Moderna consiste em fazer com que os meninos e as
meninas que lhe forem confiados se tornem pessoas instruídas, verdadeiras, justas e livres de
qualquer preconceito. Para isso o estudo dogmático será substituído pelo estudo racionalizado
das ciências naturais” (FERRER Y GUARDIA, 2014, p. 37).
Francisco Ferrer inspirou-se nas ideias de Bakunin sobre a instrução integral, que
concerne à formação conjunta do intelecto e do manual, o adquirido da teoria e a obra da prática
(SAFÓN, 2003). Sua pedagogia pautou-se em autores como Rousseau, Montaigne, Spencer,
Fröebel e outros. Ele mantinha laços de amizade com pensadores anarquistas como Elisée
Reclus e Piotr Kropotkin.
Segundo Ferrer (2014, p.37), a Escola Moderna ensinará os verdadeiros deveres sociais,
conforme a justa máxima: “não há deveres sem direitos; não há direitos sem deveres”.
Sua pedagogia deveria pautar-se nas pesquisas de especialistas que estudam o
desenvolvimento infantil e seus problemas. Para isso, uma das maneiras a ser trabalhada seria
o princípio do jogo na realidade, o despertar imaginativo e o sentido social do jogo. Por meio
do jogo, o professor conhecerá o caráter da criança e conseguirá orientá-la de maneira que ela
compreenda e aceite a solidariedade entre os jogadores, aprendendo, assim, a tolerância e a
aceitação da diferença alheia.
Recomendava não precipitar os desejos da criança para instruir-se: “que a instrução, o
ensino só comecem quando a criança pedir”. Diferentemente das escolas de então, a Escola
Moderna se apresentava mista, aceitava crianças de ambos os sexos a partir dos cinco anos de
idade e lançava um olhar diferenciado para a mulher. Para Ferrer
232
a mulher não deve estar recolhida ao lar. O raio de sua ação deve ser dilatado para
fora das paredes das casas: este raio deveria ser concluído onde chega e termina a
sociedade. Mas para que a mulher exerça sua ação benéfica, os conhecimentos que
lhe são permitidos não devem ser convertidos em pouco menos que zero: deveriam
ser em quantidade e em qualidade os mesmos que ao homem são proporcionados.
(FERRER Y GUARDIA, 2014, p.49)
A Escola Moderna não era uma escola que atenderia somente pobres, inclusive seus
alunos pagavam pelo ensino. Para Ferrer y Guardia (2014, p.52), o benefício da coeducação das
classes sociais residia no fato de pobres e ricos conviverem em contato uns com os outros, na
inocente igualdade da infância, por meio da igualdade sistemática da escola racional. Essa é a
escola boa, necessária e reparadora. A escola estava aberta para pobres e ricos e o sistema de
remuneração variava de acordo com os meios financeiros dos pais dos alunos.
Para essa ideia eu procurei ter alunos de todas as classes sociais para reagrupá-los na
classe única adotando um sistema de retribuição adaptado às circunstâncias dos pais
ou encarregados dos alunos, não tendo um tipo único de matrícula, mas praticando
uma espécie de nivelação que ia desde a gratuidade, as mensalidades mínimas, as
medianas até as máximas. (FERRER Y GUARDIA, 2014, p. 52)
Com o objetivo de um ensino igualitário, isto é, diferenciado segundo as inteligências,
a escola deve oferecer um conjunto de conhecimentos, pois não será ela quem vai determinar a
aptidão ou incapacidade de quem quer que seja. Assim, “todo aluno sairá da escola para entrar
na vida social com a aptidão necessária para tornar-se seu próprio mestre e guia ao longo de
sua vida”. Seguindo esse princípio basilar, a escola não pode oferecer prêmio e nem tampouco
punir. Também não deve haver provas, principalmente as chamadas provas clássicas, aquelas
que estamos habituados a ver no fim do ano escolar, que nada mais é que tornar o aluno vítima
de tormentos requintados. Tudo isso porque, segundo Ferrer y Guardia (2014, p. 81)
Das provas não se tira nada de bom; pelo contrário, o aluno recebe embriões de muito
mal. Além das doenças físicas mencionadas, sobretudo as do sistema nervoso e o
acaso de uma morte prematura, os elementos morais que este ato imoral qualificado
de prova inicia na consciência da criança são: a vaidade enlouquecedora dos altamente
premiados; a inveja roedora e a humilhação, obstáculo de iniciativas saudáveis, aos
que falharam; e em uns e outros, e em todos, os alvores da maioria dos sentimentos
que formam os matizes do egoísmo.
A Escola Moderna propunha, ainda, uma troca entre as escolas, por meio de
correspondências, excursões escolares organizadas na natureza e nas indústrias, com
comentadores (SAFON, 2003). Uma outra forma de educação que não poderia ser desprezada,
considerando a época, dizia respeito à higiene. Esclarecendo às crianças que a sujeira é causa
233
de enfermidades, que a limpeza é bela, a sujeira, feia. “Ao incitar as crianças a higiene, sem
dúvida os pais as seguirão”. Assim, será indispensável, em cada escola, manter um caderno
sanitário para cada criança e dispor de um médico. A organização do serviço deveria
compreender os seguintes pontos: salubridade dos edifícios; profilaxia das doenças
transmissíveis; observação atenta quanto a função normal dos órgãos e crescimento; criação de
uma educação física e adaptação dos estudos à capacidade intelectual de cada criança; educação
e instrução sanitária (práticas de higiene). Para Ferrer, a obra educadora tinha que extrapolar os
muros da escola, contando com a participação dos pais e pedagogos, porém de maneira coerente
com a proposta pedagógica racional, de respeito à individualidade da criança.
Os pais e pedagogos têm que ser até certo ponto passivos na obra educadora. As
observações do pai e as instruções do professor não devem ser convertidas em preceito
imperativo à maneira de ordem mecânica nem militar ou mandato dogmático
religioso. Uns e outros encontram, no educando, uma vida particular. Ela não pode
ser governada com uma direção arbitrária; ela deve ser desenvolvida dinamicamente
de dentro para fora, apenas ajudando suas disposições nativas a se desenvolverem
(FERRER Y GUARDIA, 2014, p. 62).
Todo esse programa pedagógico, com esse ensino diferenciado, somente poderia ser
ministrado por um professorado afinado com as ideias racionalistas. Para tanto, tornou-se
necessária a fundação de uma escola normal e de uma universidade popular para debater essas
orientações e formar professores racionalistas. O ensino dos professores era feito sob a direção
de um professor experiente e com a participação dos professores da Escola Moderna. As
matrículas ficavam abertas para jovens interessados de ambos os sexos.
Paralelamente a criação da Escola Moderna, Ferrer montou uma editora publicando
inúmeras brochuras e grandes obras para sustentar o aprendizado. Foram publicadas, pela
editora de Ferrer, as importantes obras anarquistas O homem e a terra, de Elisée Reclus, e a
Grande Revolução, de Piotr Kropotkin. Além das grandes obras, Ferrer tinha o projeto de editar
uma enciclopédia do ensino superior popular, cujo conteúdo partiria da evolução do mundo, até
chegar ao estudo dos fatores de transformação social por meio do pensamento, das civilizações,
das leis, e das morais, das religiões, dos sistemas econômicos, dos progressos da técnica e da
arte. Um programa de envergadura que Ferrer não pôde realizar (SAFÓN, 2003).
Também fazia parte desse projeto, visando a alcançar o maior número de pessoas
possível, a criação de bibliotecas, além da organização de conferências, edição de manuais e de
livros para o maior alcance possível.
234
3.7.2 Escola Moderna em Sorocaba
Os operários das fábricas e, principalmente, aqueles que comungavam das ideias
anarquistas perceberam que, pela vontade dos governantes, dificilmente haveria escolas em
número suficiente para oferecer instrução a todos e a seus filhos e, mesmo que a educação fosse
oferecida, não seria aquela que promoveria a emancipação, que lhes assegurasse o entendimento
das causas da desigualdade social que tantos males lhes causavam. Exatamente pela clareza que
passaram a ter da situação é que acolheram com entusiasmo os métodos da Escola Racionalista
ou Moderna, nos moldes do ideário de Francisco Ferrer y Guardia, propugnador de uma
educação avançada.
Preocupado com a formação integral da criança, visando a um adulto íntegro no futuro,
Francisco Ferrer fundou, em Bruxelas, a Liga Internacional para a Educação da Criança, que
passou a ser seguida pelos anarquistas e estava embasada nos seguintes princípios:
1º. - A educação dada à criança deve ser racional e baseada na ciência e na experiência.
Deve-se dela afastar qualquer noção mística ou sobrenatural;
2º. - A instrução faz parte da educação; a educação deve compreender também, ao
mesmo tempo, que a formação da inteligência, o desenvolvimento do caráter, a cultura
da vontade, a formação dum ser moral e fisicamente bem equilibrado, no qual as
faculdades estejam harmoniosamente associadas e elevadas ao seu máximo de poder;
3º. - A educação moral, muito menos teórica que prática, deve sobretudo resultar do
exemplo e apoiar-se na grande lei natural da solidariedade;
4º. - É necessário, principalmente no ensino da primeira infância, que os programas e
os métodos estejam adaptados tão exatamente quanto possível à psicologia da criança;
5º. – É preciso também que, em toda a parte, o educador digno deste nome, que se faz
o redentor das crianças confiadas a seus cuidados, adquira e conserve por seu turno a
inteira liberdade profissional (RODRIGUES, 1969, p. 264).
No início de sua implantação no Brasil, as Escolas Modernas foram aceitas pelo
governo, uma vez que ele não tinha condições de abrir escolas. Foram abertas Escolas Modernas
no Rio de Janeiro, em São Paulo, no Rio Grande do Sul e em outros lugares, mas com o passar
do tempo, esses estabelecimentos passaram a ser vistos com certa desconfiança pelos poderes
públicos e pela polícia, que entenderam a sua aproximação com o ideal anarquista.
Em Sorocaba, em 1910, começaram os primeiros passos para a instalação dessa escola.
O jornal Cruzeiro do Sul publicou uma notícia sobre a instalação de uma Escola Moderna em
São Paulo, que “é quase um facto si não falhar o necessario auxilio dos homens de ideas livres”.
Esclarecia que a escola teria um prédio próprio com condições de dar instrução a mais de 600
alunos, observando um programma completamente moderno e com corpo docente qualificado.
“Annexo ao curso de sciencias, terá uma secção de gymnastica, uma boa biblioteca e uma
235
typographia para fornecer cadernos e livros a todas as escolas que queiram adoptar o ensino
racionalista” (CRUZEIRO DO SUL, 6 fev 1910, p.2).
Finalizava a notícia informando que, em Sorocaba, estava formando-se uma comissão
para angariar donativos, e também seria organizada uma festa cujo produto reverteria em
benefício “da ideia tão bem acceita pelos batalhadores do livre pensamento”. Informava, ainda,
que toda pessoa que, de qualquer forma, contribuisse para esse intento teria seu nome publicado
pela imprensa. “A ideia pelo que sabemos tem alcançado grande acceitação nesta cidade”
(CRUZEIRO DO SUL, 6 fev 1910, p.2).
O jornal Do Commercio noticiou uma festa realizada no Club Campos Salles, em
benefício da Escola Moderna que se pretendia fundar em Sorocaba. A festa constou de uma
quermesse e “partida dansante” e prolongou-se animadamente até altas horas da manhã. “O
producto total da quermesse attingiu a importancia de 372$” (JORNAL DO COMMERCIO, 6
mar 1910, p.2).
O jornal O Operario também se empenhou na campanha em favor da Escola Moderna,
procurando, principalmente, conscientizar aos operários sobre a metodologia da escola e dos
benefícios que tal metodologia traria para a formação de seus filhos. Para isso, fora convidado
o anarquista Oreste Ristori para falar-lhes sobre essa escola.
Esteve nesta cidade, e deu-nos o prazer de ouvir a sua eloquente palavra, o illustre
orador, cujo nome nos serve de epigraphe, discutindo sobre varios pontos referentes
à Escola Moderna, demonstrando de um modo claro e preciso as vantagens do
ensinamento, unico racional, o único verdadeiro, o único digno de ser ministrado aos
nossos filhos para que não sejam amigos de padres e de ... confissionarios (O
OPERÁRIO, 24 abr 1910, p.2).
Algum tempo depois dessa palestra, por meio de uma exibição cinematográfica,
realizada em benefício da Escola Moderna, o palestrante Oreste Ristori, perante “numeroso
auditorio”, discorreu sobre dois assuntos de importância e de atualidade para o meio operário,
a saber: “o elemento clerical no seio da sociedade brasileira e a prepotencia dos patrões no
ambiente das fábricas”. Para o jornal, esses dois pontos exigiam uma reação enérgica por parte
do povo, que sofria as consequências de tal ação.
[...] o primeiro embrutecendo a consciencia, ennegrecendo a razão em proveito da sua
ambição sem limites, os segundos, castigando o misero operario, com horarios
deshumanos e outras tantas cousas, afim de que o mesmo, nunca possa libertar-se de
seu jugo, tornando-se dess’arte, um escravo voluntario, levado tão somente pela força
da necessidade (O OPERARIO, 23 out 1910, p.2).
236
O jornal concluía afirmando que somente a Escola Moderna, “nobre a sábia instituição
de Ferrer”, iria esclarecer a criança, mostrando-lhe “a verdade, a razão e o direito de cada
cidadão no concerto mais grandioso da sociedade humana” (O OPERARIO, 23 out 1910, p.2).
Em abril de 1912, o jornal O Operário publicou que, em reunião realizada pela União
Operária, entre vários assuntos, fora tratado sobre a “creação de uma escola moderna em
Votorantim, para ambos os sexos e uma outra em S. Rosália” (O OPERARIO, 7 abr 1912, p.2).
É pouco provável que tenha sido criada uma Escola Moderna em Votorantim, pois nada foi
encontrado nesse sentido, nem nos jornais pesquisados ou em obras de outros autores.
Em Sorocaba, é sabido que houve uma escola nos moldes da racionalista de Ferrer
mantida pela União Operária, cujo professor foi Joseph Joubert Rivier, que também era
colaborador do jornal O Operário e, posteriormente, foi diretor desse jornal e secretário da
União Operária.
Na edição de 1º de maio de 1912, o jornal O Operário afirmou que escola mantida pela
Liga Operária continuava em plena atividade, tendo à frente o professor Joseph Rivier, e que
contava “com grande numero de alumnos” sem, no entanto, informar exatamente o número
alunos. O texto se desmancha em elogios quanto a qualidade pedagógica do professor Rivier:
[...] sendo digno de nota o empenho daquelle distincto mestre em incutir o Ideal da
verdade, da Luz no cerebro dos pequenitos Operarios. Ao contrario do que corre por
ahi, o bom professor só pensa em ensinar o Bem aos seus amados alumnos com um
carinho paternal digno de exemplo (O OPERARIO , 1º maio 1912, p. 3).
Prosseguia a notícia dizendo que um dos membros da diretoria do jornal, Pedro Sales
de Oliveira Mesquita, fez uma visita àquela “casa de Luz” e retornou com as melhores
impressões, quanto à boa administração da escola e ao trabalho do professor. Não temos
elementos suficientes para aquilatar a qualidade desse ensino, mas, com base nessa notícia, há
de se considerar a amizade que havia entre todos, daí talvez os encômios excessivos.
Após algum tempo de funcionamento dessa escola, em reunião da União Operária, foi
deliberado sobre a necessidade de se nomear uma professora adjunta para auxiliar na
administração do ensino às alunas, o qual já estava funcionando (O OPERARIO, 9 jun 1912,
p.2).
Por ocasião das comemorações do dia 1º. de maio de 1912 organizadas pela União
Operária de Sorocaba, os alunos da escola do professor Rivier também tiveram participação:
A menina Thereza de Lima recitou uma bela poesia, com a qual recebeu muitas
palmas. Em seguida a inteligente operaria senhorita Francisca Capalbo n’um bonito
237
discurso falou em defesa da mulher operaria [...] O menino Oscar Harder com
educados gestos declamou uma linda poesia sobre o 1º de maio; O menino Antonio
Place, inteligente como é recitou a poesia A Sciencia recebendo muitos applausos. A
formosa menina Dolores de Lucas pronunciou um bonitinho discurso sobre a
liberdade sendo vivamente applaudida. [...] Fechou a sessão com um vibrante discurso
discorrendo substanciosamente sobre a liuta operaria e o 1º de maio o emérito
professor da União Snr. Joseph Revier, que terminou convidando os presentes para a
passeata cívica (O OPERARIO, 3 maio 1912, p.3).
A União Operária de Sorocaba promovia mensalmente, para seus sócios, as Velada
mensal da União Operaria. Nesses encontros, havia uma sessão literária, com pequenas
conferências sobre diversos assuntos, que tinham por objetivo formar a identidade operária. Ao
que parece, o evento era aberto para todos aqueles que tivessem interesse em se pronunciar
sobre assuntos pertinentes à classe trabalhadora. A notícia do jornal O Operário traz o programa
da sessão de 18 de maio de 1912, do qual participaram operárias e alunos da Escola Moderna.
Vale destacar que todos os palestrantes foram efusivamente aplaudidos.
Fallaram mais, as gentis operarias: Faustina Scamussi, [...] sobre a questão social.
Isaura Gomes de Freitas, que fallou sobre a necessidade de instrucção no seio
operario, [...] Maria Luna que brilhantemente discorreu sobre o clero convencendo o
audictorio que o padre em nenhum tempo se intereçou pela classe proletaria. Maria da
Conceição [...] sobre as tres virtudes theologaes n’uma eloquencia apostolica: Maria
José Dias [...] sobre a União. Teresa Peres sobre a revolução social no México, [...]
Maria Munhoz sobre a emancipação da mulher, Luiza Candiotta, uma criancinha
pode-se assim dizer, [...] sobre a escola moderna e o seu valor. O menino João Martins
que fallou, sobre a anarchia filosofica. [...] As gentis e inteligentes companheiras
acima, bem assim o ultimo menino João Martins são alumnos do distincto e esforçado
professor da União Operaria, snr. Joseph Revier (O OPERARIO, 26 maio 1912, p.2).
Apesar da escassez de dados, é possível depreender, pela notícia, que a Escola Moderna
de Sorocaba seguia os princípios básicos propostos por Ferrer ao atender alunos de ambos os
sexos e promover uma conscientização sobre a situação da classe operária, especialmente sobre
a desigualdade e a injustiça.
É sabido que essa escola não teve vida longa, devido aos problemas enfrentados por seu
professor, já expostos neste trabalho.
A educação sempre foi vista como grande necessidade para o operário, muitas vezes
comparado a escravos modernos. Somente a educação os libertaria das garras dessa escravidão.
Mas para isso torna-se necessário antes de tudo educar o trabalhador, educar a misera
infancia proletaria que vive num canto abandonada num horrível sudario de
amarguras. Sim, a redempção da classe productora depende sòmente da Instrucção da
Luz para o productor. Sem educar o operariado nada valerá a lucta, todos os esforços
serão infrutiferos. De que vale fazer conferencias, proferir discursos etc. à uma
multidão inconsciente, sem um resquicio apenas de luz, accostumada a applaudir a
virtude e juntamente o vicio? (A CIDADE DE SOROCABA, 21 ago 1912, p.1).
238
A educação e a conscientização plena dependiam deles próprios, os únicos capazes de
promover a politização da classe e a construção de uma identidade operária para a emancipação.
O próprio jornal O Operario reconheceu que a criação e a manutenção de escolas para a
educação dos operários a cargo dos industriais, a despeito de todos os argumentos e apelos
levantados pelo jornal, não produzira nenhum efeito.
Contra toda forma de luta dos operários na reivindicação de seus direitos, vale assinalar
que os patrões foram a voz dissonante, que se ergueu para tentar manter o operariado silenciado.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS: NOVOS SENTIDOS EM CONSTRUÇÃO
“E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
239
O operário em construção.”
(Vinicius de Moraes)
O propósito deste trabalho foi o de analisar de forma recorrente a história operária de
Sorocaba, com ênfase no papel atribuído à educação no seio do movimento operário e nas
possibilidades que poderiam advir da educação para a formação de uma sociedade em que o
proletariado tivesse significação social. A fonte principal foi o olhar da imprensa, tanto a
operária, largamente utilizada na época estudada, como a chamada grande imprensa, quase
sempre representante dos interesses das classes dominantes.
A história do movimento operário de Sorocaba foi feita por homens, mulheres e crianças
que, apesar de construírem suas próprias histórias, não o fizeram pelas circunstâncias escolhidas
por eles próprios. Repetindo-se o que bem definiu Marx em sua obra O 18 Brumário de Louis
Bonaparte, numa citação clássica, “Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem
segundo a sua livre vontade, em circunstâncias escolhidas por eles próprios, mas nas
circunstâncias imediatamente encontradas, dadas e transmitidas pelo passado” (MARX, 2011,
p. 207).
A cidade de Sorocaba por muito tempo foi marcada por uma vida tranquila, sem grandes
alterações no seu cotidiano, sendo essa tranquilidade quebrada somente nas épocas da feira de
muares, quando a ela acorria grande número de pessoas. Economicamente, vivia do comércio
de animais e de uma agricultura praticamente de subsistência, de pequenos comércios e tinha o
poder político concentrado nas mãos dos comerciantes de animais. Uma cidade pequena, sem
grandes atrações, além das religiosas, para oferecer à sua pequena e pacata população.
Nas últimas décadas do século XIX, a cidade viu-se num processo de mudanças.
Começou um período de verdadeira efervescência nos aspectos políticos, econômicos e sociais:
o comércio deixou de ser em função da feira de muares, que já dava sinais de esgotamento,
houve aumento da população urbana, desenvolvimento industrial crescente, diversificação da
produção agrícola, aumento da complexidade nas relações políticas, transferência da elite rural
para a cidade e surgimento de uma elite urbano-industrial. A paisagem urbana se transformou
com o melhoramento das ruas, saneamento, luz elétrica, cinema, teatros, bares, gabinete de
leitura, clubes e, principalmente, a estrada de ferro, símbolo da modernidade. Novos atores
sociais surgiram e, com eles, novas aspirações e reivindicações, entre elas, ocupando papel
proeminente, estava a escola.
240
Essa mesma efervescência era sentida no país com transformações e rupturas. De acordo
com Nelson Werneck Sodré (s/d, p. 294), em 1889, o quadro brasileiro podia ser traçado em
umas poucas coordenadas: o país dispunha de 14 milhões de habitantes, distribuídos em 916
municípios, com 348 cidades; contava com apenas dois portos aparelhados e apenas uma usina
elétrica; com 8.000 escolas, 533 jornais. 360 quilômetros de rodovias, 10.000 quilômetros de
ferrovias e 18.000 de linhas telegráficas; sua produção agrícola ascendia, em moeda nacional,
ao valor de 500.000 contos de réis, e a sua produção industrial a excedia um pouco, pois ia a
508.000 contos de réis. Mesmo que possa parecer que a produção industrial superasse a
agrícola, não cabem comparações, pois a industrialização mostrava-se incipiente naquele
momento. Nesse cenário, aconteceu a queda da monarquia e o início do governo republicano,
a abolição do trabalho escravo e a introdução do trabalho assalariado, fluxo imigratório e
aumento das exportações de café. Enfim, o país esforçava-se em adaptar-se às condições do
capitalismo.
De qualquer forma, Sorocaba também acompanhava e vivenciava as novas mudanças
acontecidas pelo país. Nesse cenário, onde uma nova sociedade começava a se delinear, o
surgimento das fábricas passou a ditar novas relações sociais, políticas, econômicas e de
trabalho. A poeira levantada pelo carro de boi cedeu lugar para a fumaça das chaminés. O apito
da fábrica foi controlando o tempo e a vida das pessoas. Entre as indústrias que se instalaram,
predominaram as fábricas de tecidos. Essas fábricas absorviam grande contingente de mão de
obra assalariada, formada por brasileiros pobres, muitos eram ex-escravos, e imigrantes
estrangeiros, igualmente pobres. Dentre esses trabalhadores, surgia um elemento novo nas
relações de trabalho: mulheres e crianças de ambos os sexos.
A imigração fora um expediente bastante vantajoso adotado, tanto para os países que
enviavam os imigrantes como para aqueles que os recebiam. Dentre os países da Europa que
mais utilizaram a imigração de seus filhos, estava a Itália. Esse país, no final do século XIX e
início do século XX, enfrentava uma situação de extrema miséria, não podendo oferecer
condições dignas a seu povo e praticamente os expulsou da própria terra. A Itália era pobre,
mas não para todos, e a imigração em massa dos italianos logo começou a despontar como
vantajosa. Ganharam as grandes companhias de navegação, cujos representantes percorriam os
povoados e vilas com um belo discurso, em busca de interessados em empreender uma viagem
a um país distante e repleto de boas oportunidades e, assim, iam enchendo seus navios de
interessados.
Paralelamente, ganhava também o governo italiano, que se livrava de um contingente
de famintos, sem perspectivas de melhoras e que, após empreendida a viagem, rapidamente
241
enviava suas remessas, o que permitiu gerar grandes lucros aos bancos que se formaram a partir
do envio das remessas dos expatriados. O imigrante tornou-se uma mercadoria e, diga-se, era a
única mercadoria que a Itália tinha em abundância. Para o Brasil, a chegada de milhares de
imigrantes também se mostrou vantajosa, pois abastecia de braços a lavoura de café e,
posteriormente, passou a oferecer mão de obra para a indústria. A mão de obra abundante
favoreceu o rebaixamento dos salários, além de constituir rapidamente um exército industrial
de reserva, bastante útil para a burguesia brasileira. As práticas capitalistas estavam presentes
em todo o processo imigratório, tudo gerava lucro, mas só alguns lucravam.
Os motivos pelos quais chegavam os imigrantes eram os mais variados possíveis. Pode-
se dizer que a maioria, formada pelos pobres, vinha imbuída de esperanças de construir uma
vida melhor neste país e, depois de formado um pecúlio, retornar à terra natal. Outros, os mais
qualificados, vinham com a oferta de bons empregos e pretendiam estabelecer-se nesta terra. A
procura por operários qualificados estrangeiros demonstra a mentalidade equivocada dos
industriais, que viam o brasileiro como um trabalhador desqualificado, técnica e fisicamente,
para trabalhar em indústrias mais adiantadas.
Vinham, ainda, aqueles que foram expulsos da própria terra por conta de suas ideias.
Eles traziam, na bagagem, ideias para transformar o mundo e encontraram, aqui, um terreno
fértil para disseminar seus ideiais.
Sorocaba, no final do século XIX, por reunir determinadas condições, passou a atrair
imigrantes estrangeiros, que vinham ocupar-se no trabalho das fábricas.
Dentro das fábricas, as condições de trabalho eram as piores possíveis: longas jornadas
de trabalho, ambiente insalubre, com excesso de barulho e poeira. Sempre sob a espreita da
tuberculose e de outras doenças, trabalhavam homens, mulheres e crianças. Além dos salários
baixíssimos, sofriam descontos por danos no material ou multas por atraso ou por quaisquer
outros motivos inventados pelos patrões. Desrespeitados em sua dignidade e tratados de
maneira desumana por parte dos encarregados, os operários-imigrantes viam escapar suas
esperanças de vida melhor.
A situação da classe trabalhadora de Sorocaba assemelhava-se em muito da situação da
classe trabalhadora na Inglaterra, no século XIX, tão bem definida e descrita por Friedrich
Engels (2010). As fábricas maiores, como a Santa Rosália, Santa Maria e a Votorantim
construíam, ao seu redor, vilas operárias, como forma de fixar o operário no local e dispor de
mão de obra constante. A fábrica Votorantim, que em algumas épocas chegou a ser a maior do
estado, era um caso à parte, dispondo de praticamente tudo de uma cidade, pois localizava-se
distante do centro de Sorocaba, o que lhe garantia um isolamento. Oferecia a aparente facilidade
242
de comprar alimentos e outros gêneros no armazém da fábrica e ter o desconto no salário.
Oferecia-se, ainda, o clube de futebol, o cinema, a farmácia, descontados no salário. A ligação
entre Votorantim e Sorocaba era feita pela estrada de ferro pertencente à fábrica, que controlava
os dias e horários dos bondes, bem como o preço das passagens.
Numa política dissimulada em benefícios, a fábrica ocultava uma dominação que ia
muito além de seus muros. A casa para morar, que repesentava para o operário verdadeira
dádiva, tornava-se objeto de ameaça constante, pois, diante de qualquer ato entendido por
insubordinação ou rebeldia, a fábrica punia o operário com o despejo, ou seja, a família toda ia
para rua. A expressão maior da dominação da fábrica residia no oferecimento de emprego para
toda a família, com míseros salários, selando um vínculo de extrema dependência e submissão.
“O proletariado é desprovido de tudo. Tudo o que ele necessita só pode obtê-lo dessa burguesia
cujo monopólio é protegido pela força do estado” (ENGELS, 2010, p.188). Não é à toa que a
grande indústria têxtil representou o lado mais avançado das relações capitalistas de produção
no Brasil. Nesse momento, na sociedade sorocabana, as relações sociais adquiriram novos
contornos, definidos em duas classes sociais bem distintas em seus interesses: os capitalistas e
o proletariado. O operário tornou-se refém do trabalho: estava aprisionado.
O imigrante estrangeiro aqui no Brasil não contribuiu apenas com a mão de obra. É
indiscutível sua presença marcante no movimento operário brasileiro, que, certamente, na sua
ausência, não teria avançado da maneira como vimos no presente trabalho. Os imigrantes que
não se adaptaram ou não se sujeitaram ao regime de semiescravidão existente nas fazendas de
café rumaram para as cidades na incansável busca de melhores condições de vida e passaram a
ser a principal mão de obra da indústria nascente, principalmente da têxtil. Segundo Thompson
(2012), as fábricas de tecidos produziram não só a maior quantidade de mercadorias, mas o
próprio “Movimento trabalhista”. Foram as condições materiais que propiciaram uma maior
agitação do meio proletário.
No momento em que os operários tomaram consciência de que tinham interesses em
comum e que esses interesses eram antagônicos aos da burguesia, formaram a consciência de
classe para si. Então, somente pela união, poderiam mudar esse estado de coisas. Inicialmente,
uniram-se por laços de amizade e solidariedade nas chamadas Sociedades de Auxílio Mútuo,
que aos poucos foram transformando-se nas Ligas ou Uniões Operárias, que deram novos
significados aos anseios do operariado, promovendo a organização de um movimento operário
com o objetivo de luta para conquista dos direitos, de melhores condições de trabalho e de vida.
A pobreza do operariado não se resumia à pobreza material, chegava a ser a pobreza de ter
esperança.
243
A organização operária, fruto das condições de existência, fundamentou-se em três
pilares: as diferentes formas associativas que levaram à formação dos sindicatos; a imprensa
operária, enquanto órgão disseminador das ideias e instrução; e as escolas, responsáveis pela
valorização do homem.
A imprensa operária, obra quase inteiramente dos imigrantes, teve papel preponderante
na organização do movimento operário, indo além, atuando como um organizador social.
É inegável a força dos imigrantes na formação do movimento operário brasileiro, foram
eles que imprimiram um papel positivo no processo de formação do proletariado como classe
para si. Entre as diferentes formas utilizadas para a conscientização do operário, a imprensa foi
um dos veículos mais ativos pelo seu potencial de alcance, daí se explica a grande proliferação
da imprensa operária em todo país.
Em Sorocaba, a voz do trabalhador se fez ouvir pelo jornal O Operario, que circulou de
1909 a 1913, com uma interrupção de 8 meses, no ano de 1912. Surgiu com a promessa de
defender a classe operária e o fez durante todo o seu tempo de vida. É possível depreender das
páginas d’O Operario que não foi sem sacrifícios que ele se manteve. O seu corpo de redatores
era formado quase unicamente por operários que se dedicavam ao jornal após a labuta diária
nas fábricas. Também são visíveis as humilhações que sofriam, especialmente por parte do
jornal Cruzeiro do Sul, que se referia a ele como “jornaleco”, que nem mesmo a língua
vernacular conhecia. Por várias vezes, O Operario se justificou aos seus leitores sobre os
problemas relativos ao domínio da Língua Portuguesa por parte de seus colaboradores.
Foi a partir de 1909, pelas páginas desse jornal, que houve maior penetração do ideário
anarcossindicalista, que contribuiu para a organização operária e o fortalecimento de sua luta.
Apesar de abrir espaço para outras ideologias, o jornal O Operário apresentava, aos seus
leitores, autores e suas ideologias, procurando manter uma coerência ideológica, posicionando-
se como aguerrido combatente do capitalismo, causador de todas as desventuras do operariado
e engendrou a conscientização de classe no meio operário. As denúncias sobre o que se passava
dentro das fábricas e das condições de vida do operário fora delas, feitas pelo jornal O Operário,
contrapunham-se ao discurso de uma cidade embalada para o progresso. O jornal, como tantos
outros representantes da imprensa operária, rompeu com o monopólio dos setores dominantes
sobre a palavra impressa.
Nas páginas desse jornal, estão contidas contradições, certamente, fruto das dificuldades
enfrentadas de toda ordem: financeiras, ideológicas. Visando à formação integral do
trabalhador, o jornal combatia tudo aquilo que viesse a comprometer negativamente a vida do
operário e de sua família, como os vícios. Assim, combatia, com veemência, o alcoolismo,
244
inclusive na infância, e o tabagismo. Mas, no mesmo jornal, na parte dos anúncios, constavam
bons vinhos e caninha pura e recomendava-se aos operários que fumassem os cigarros Dr.
Ferreira Braga, nome dado em homenagem a um político conhecido como defensor dos
oprimidos, que fora assassinado, em 1910, por opositores políticos.
Nas conferências, palestras e reuniões operárias sempre havia bailes, que não eram bem
vistos pelos anarquistas, porém constituíam um bom chamariz, além de promover a
socialização, onde o jornal sempre se fazia representar. Mesmo o jornal se declarando avesso a
qualquer crença religiosa, apareciam, com relativa frequência, mensagens cristãs e temas sobre
o espiritismo e agradecimentos à Loja Maçônica Perseverança III, que apoiava o jornal
financeiramente.
Por outro lado, havia atitudes inovadoras, ousadas e avançadas para a época, como
ofertar suas colunas à palavra da mulher. Elas, que ocupam, na sociedade, um papel de sujeito
histórico silenciado. Em muitos veículos de comunicação, escrevia-se sobre as mulheres e para
as mulheres, mas eram homens que o faziam. As mulheres que escreveram no O Operario não
escreviam sobre temas frívolos referentes ao “belo sexo”, mas sobre temas importantes para a
causa operária e o papel da mulher na sociedade, como: casamento, divórcio, amor livre,
importância do estudo para os filhos dos operários, anticlericalismo, anarquismo etc. Sobre o
amor livre, bem ao gosto dos anarquistas, o jornal O Operário anunciava que a União Operária
“incumbe-se de preparar papeis para casamentos nessas condições gratuito aos sócios dela” (O
OPERARIO, 22 dez 1912, p.2).
Mesmo com todas as adversidades, esse jornal teve fôlego, mantendo-se em circulação
por três anos, sem muitos atrasos e interrupções, exceto a ocorrida em 1912 e conseguindo, por
meio de sua atuação, mudar comportamentos e ideias numa sociedade provinciana como a
sorocabana. Passeatas, manifestações, panfletagens passaram a ocorrer na cidade com relativa
frequência, contando com a massiva participação das mulheres, que até então viviam confinadas
no lar. Enfrentou os setores poderosos da sociedade, como os industriais, a igreja, os políticos
e a polícia. Foi a partir da ação do jornal que aconteceram as primeiras greves. Justamente esses
enfrentamentos, somados aos desentendimentos ideológicos internos do jornal, que o
desgastaram, levando-o ao fim. A Igreja Católica chegou a proibir a leitura e a assinatura do
jornal O Operario por seus fiéis. Por isso, torna-se indiscutível a influência desse jornal na
mudança de rumos da situação da classe trabalhadora.
As greves foram um recurso muito utilizado pelo movimento operário, e, no caso de
Sorocaba, as greves de maior duração e com maior número de participantes somente
aconteceram a partir do surgimento do jornal O Operario. Essa imprensa operária lutava pela
245
redução da jornada de trabalho - que em algumas fábricas chegava a 14 horas diárias, impedindo
o operário de frequentar as escolas e, inclusive, de vislumbrar possibilidades de estudo para as
crianças operárias -, lutava, ainda, pela regularização do trabalho noturno de mulheres e
crianças e por melhores condições de trabalho.
As condições de exploração favoreceram a expansão do movimento operário. Na
verdade, a vida do operário, como muito bem denunciava O Operário não era viver, era perecer.
Interessante registrar que a primeira greve, ocorrida em 1911, teve grande adesão dos operários
e operárias e um saldo positivo para os operários, com a redução da jornada de trabalho para 10
horas diárias não deu sinais de que pudesse ocorrer. A greve não deu mostras de que iria
acontecer.
Nem mesmo o jornal O Operário fizera alguma referência que desse a entender que
havia uma preparação de greve em curso. Os operários das fábricas de tecidos seguiram na
esteira no movimento reivindicatório dos pedreiros, certamente o pensamento que os moveu foi
o de arriscar, afinal, quem não tem nada, nada tem a perder.
No transcurso dessa greve e depois dela, o jornal O Operário atuou como grande
incentivador e assim permaneceu nas greves vindouras, enquanto o seu mais ferrenho opositor,
o jornal Cruzeiro do Sul, sustentava-se como voz oficial da cidade, de perfil conservador. Em
raríssimas vezes, contrapôs-se aos interesses da classe dominante e política, posicionando-se
sempre do lado dos industriais, assumindo uma postura de desestímulo à greve, aconselhando
os operários para que fossem cautelosos nas decisões de greve e ponderando sobre a ação
deletéria desta na vida do operário. O Cruzeiro do Sul, ao dar a notícia, o fazia por um viés
próprio, visando a formação de opinião.
A opção pela greve por parte dos operários acarretava muitos prejuízos para os patrões,
que se viam obrigados a afrouxar a dominação, concedendo-lhes alguns benefícios. Entretanto,
o que se conseguia hoje, perdia-se amanhã. Apesar da tibieza do estado na formulação de leis
trabalhistas, elas vagarosamente foram acontecendo. No entanto, apesar de serem consideradas
a grande conquista do trabalhador, as leis trabalhistas foram, antes de tudo, uma conquista do
capital, pois a ele interessava o controle da vida do operário. Implicitamente, instituía-se o poder
de controle aos capitalistas, pois as leis mais beneficiavam o patrão que o operário, davam ao
patrão o controle da vida do operário. Mais ágil, tanto na elaboração quanto na aplicação, foi
a lei de expulsão dos imigrantes considerados elementos perniciosos para a sociedade, a
conhecida Lei Adolpho Gordo, de 1904, que visava a cercear a liberdade de pensamento e a
impedir qualquer formação de organizações operárias e movimentos grevistas.
246
Esse jornal denunciou a baixa remuneração, as doenças causadas, os castigos, as
agressões aos menores trabalhadores, os assédios, tanto moral quanto sexual, às mulheres
trabalhadoras, e o fato dos operários serem impedidos de estudar, pois a longa jornada de
trabalho não lhes permitia chegar a tempo nas escolas.
Uma questão espinhosa a ser combatida pelo jornal dizia respeito ao trabalho infantil
nas fábricas, pois não era possível lutar pelo fim do trabalho infantil, tão necessário à família
operária. Então, o jornal lutava por uma regularização desse trabalho, clamava para que
houvesse um limite de idade para o ingresso no trabalho e pela redução da jornada, já que em
todas as fábricas era a mesma que a dos adultos e, como as leis eram feitas só para serem
descumpridas, restava ao jornal apelar para o lado humanitário dos patrões, para que se
compadecessem de seus pobres pequenos operários, que tinham pela frente o futuro
comprometido pela ignorância ou pelas doenças, fruto de uma jornada tão excessiva já na tenra
idade.
No tocante à instrução, o jornal defendia a criação de escolas modernas, seguindo os
preceitos pedagógicos do educador espanhol Francisco Ferrer y Guardia e é provável que pelo
menos duas escolas dessa vertente tenham sido criadas, uma em Santa Rosália e outra em
Votorantim, porém sobre essa última não nos foi possível encontrar evidências de que de fato
existiu. A criação de escolas noturnas para adultos também aparecia no rol de reivindicações
elaboradas por esse jornal. Somente a criação de escolas não resolvia o problema, mas podia
minimizá-lo. O estado até as criava, porém o horário de funcionamento delas era das 18 às 21
horas, o que inviabilizava a frequência dos alunos, pois a maioria deles saía do serviço muito
além desse horário.
Sem dúvida, esse jornal honrou o seu compromisso de politização da classe e construção
de uma identidade de classe. Combateu e foi combatido sem esmorecer em seus propósitos de
defender a classe operária, apesar da imprensa hegemônica. Mostrou-se resistente e capaz de
mobilizar os operários, reafirmando sempre que, só através da educação, o operário poderia
desvencilhar-se das amarras da exploração e da ignorância.
Haja vista que nos Congressos Operários a educação sempre figurou como direito
importante a ser conquistado, com a recomendação de que as escolas deveriam ser voltadas ao
ensino livre, os próprios operários tinham a consciência de que, antes de deflagrar o movimento
operário, seria necessário educar o trabalhador.
A defesa da instrução era compartilhada entre operários e o recém-instalado governo
republicano, mas esses grupos diferiam quanto ao modo de ministrar a instrução e os objetivos
pretendidos a partir dela. Os primeiros a viam como única forma de libertação da exploração
247
burguesa, os últimos consideravam-na essencial para o desenvolvimento e progresso do país,
enfim, para a consolidação do regime republicano.
Portanto, para os republicanos, tornava-se imperioso alfabetizar a multidão de
analfabetos que habitavam as cidades e o campo. No início da República, o “entusiasmo da
educação” passou para o “otimismo pedagógico”, visando a formação do novo homem
brasileiro.
No estado de São Paulo, parte da concretização se fez com a criação dos Grupos
Escolares, em 1894. Construções imponentes, com a devida atenção aos preceitos de higiene e
total aproveitamento dos espaços para o pedagógico, o Grupo Escolar não admitia improvisos.
Geralmente construído nas áreas centrais da cidade, de preferência na praça principal, o Grupo
Escolar tinha que ter visibilidade. Com intenções iniciais de atender a toda população, acabou
por atender as camadas mais favorecidas da sociedade, enquanto as escolas isoladas
caminhavam com a mesma precariedade dos tempos do Império, atendendo os mais pobres.
Além de construir escolas, era fundamental, para os republicanos, provar que a
qualidade de ensino era superior, daí o extremo cuidado com o aspecto arquitetônico, que fez,
muitas vezes, a fachada sacrificar o pedagógico. No edíficio opulento, estava a imagem que o
ensino deveria propagar. A criação dos Grupos Escolares exigiu novos métodos de ensino,
concursos para professores, utilização de materiais pedagógicos diferenciados etc. Entretanto,
o que se verificou foi um distanciamento entre o desejado e a realidade, o que tornou
praticamente inexequível a escola pensada e desejada pelos republicanos. Vários fatores
contribuíram para esse distanciamento, como o despreparo dos professores para a
implementação dos novos métodos de ensino, a insuficiência de escolas para atender a demanda
e o imenso analfabetismo.
Em Sorocaba com grande festa popular, foi inaugurado, em 1895, o primeiro Grupo
Escolar, denominado Antonio Padilha. Como previa o Regimento, foi criado com quatro
classes para cada sexo, correspondentes ao 1º, 2º, 3º e 4º anos do curso preliminar, com 40
alunos em cada uma, perfazendo 320 crianças.
Provavelmente, por não pertencer à zona produtora de café, Sorocaba não foi
contemplada com a construção de um grupo escolar num prédio imponente, como ocorreu em
outros lugares. O grupo escolar fora instalado num sobrado adaptado, que antes servia de
moradia, não atendendo aos preceitos mínimos de higiene exigidos e propícios à aprendizagem.
Diante de uma população de mais de 17.000 pessoas e mais de 13.000 analfabetos, a escola
nem de longe conseguiu atender sua demanda, perpetuando a exclusão de crianças de seus
bancos escolares.
248
Foi somente no ano de 1913 que o Grupo Escolar Antonio Padilha passou a ocupar
prédio próprio construído para esse fim, mas carregou consigo o problema da insuficiência de
vagas. Em tempo algum conseguiu atender e acompanhar toda demanda e, paradoxalmente,
tornou-se uma escola de prestígio excluindo negros, pobres, miseráveis. O prestígio era sempre
enaltecido pela imprensa tradicional, que o fazia com imenso entusiasmo, mas que silenciava a
respeito da desigualdade de oportunidades educacionais oferecidas para a população.
O que mais ganhou visibilidade nesse tempo, em Sorocaba, foi a pobreza que atingia
uma população adulta, em sua maioria analfabeta, e uma população infantil, que deveria ocupar
os bancos escolares, mas era impedida, pois fazia parte do contingente de operários empregados
nas fábricas de tecidos.
Nesse tempo, os jornais, numa visão míope da realidade, produziam a imagem daquelas
crianças que, não podendo frequentar a escola, eram tidas como vadias e difíceis de serem
controladas, pois não haviam sido treinadas na disciplina escolar. O jornal O 15 de Novembro,
num artigo intitulado Menores vagabundos, assegurava que os dois princípios que deveriam ser
observados na educação da infância, imprescindíveis para a sua formação e para vencer na vida
eram: a disciplina e o trabalho. E, para os “menores vagabundos” o único remédio era o
“Instituto Disciplinar”(O 15 DE NOVEMBRO, 3 mar 1907, p.2).
Ainda que tivessem pontos de vista diferentes, até mesmo antagônicos, a imprensa
escrita de Sorocaba defendia a criação de maior número de escolas para atender plenamente à
demanda escolar. Mas a legislação caminhava devagar no tocante à construção e à criação de
escolas. O segundo Grupo Escolar denominado Visconde de Porto Seguro só foi instalado em
1914, no mesmo sobrado adaptado em que, anteriormente, funcionara o primeiro Grupo
Escolar, ou seja, na mesma precariedade do prédio. Em 1919, foi criado o Grupo Escolar
Senador Vergueiro, numa região mais periférica, destinada a atender os bairros operários. Era
o Terceiro Grupo Escolar da cidade, que, apesar disso, ainda não conseguia atender todas as
crianças.
Para os operários, a educação sempre figurou entre as principais reivindicações. Tinham
a consciência de que, somente por ela e através dela, poderiam deixar de ser explorados e que
a luz da instrução os libertaria das escuras fábricas. Por essa razão, anunciavam que, primeiro,
precisariam educar o homem e, depois, fazer a revolução.
A educação que almejavam ia muito além da educação oferecida pela escola republicana
sob a égide do capitalismo. A escola no capitalismo não forma, não educa, apenas molda
segundo aquilo que o estado autoritário deseja para manter um sistema de dominação e de
exploração. Eles aspiravam por uma educação diferente, que contribuísse para a formação
249
integral do homem e, naquele momento, a que mais atendia a esse intento era a Escola Moderna,
proposta pelo educador espanhol Francisco Ferrer y Guardia, que a denominou de Pedagogia
Racional. Trata-se de um processo educativo que educa pela razão, para que cada ser humano
seja capaz de raciocinar por si mesmo, conhecer o mundo e emitir seus próprios juízos de valor
sem seguir nenhum mestre, nenhum guia (GALLO, 2014). Mas a dura realidade que se
impunha no meio operário trazia todo tipo de obstáculos. Afinal, como defender uma educação
emancipadora se não havia escolas suficientes para todos? Como educar as crianças se muitas
famílias não tinham condições de mantê-las apenas estudando?
Uma Escola Moderna baseada nos princípios pedagógicos de Ferrer foi criada pela
União Operária em Sorocaba, mas não foram encontrados dados suficientes sobre quanto tempo
ela funcionou, o número de alunos frequentes ou onde se localizava. Sabe-se quem foi seu
professor: Joseph Joubert Rivier, que também era redator do jornal O Operario. A Escola
Moderna da União Operária recebeu do Governo do Estado um bom sortimento de material
escolar. Em vista da valiosa oferta, a União Operária oficiou ao Secretario do Interior
agradecendo (O OPERARIO, 24 abr 1912). No início, as Escolas Modernas foram bem vistas
pelo governo federal e estadual e poderiam até suprir a necessidade de escolas. Somente depois
de ter os órgãos oficiais terem conhecimento de sua ideologia é que essas escolas começaram a
ser perseguidas pelo país afora.
Outras indagações foram surgindo no decorrer da pesquisa, além das apresentadas
inicialmente. Em discursos eivados de promessas de igualdade, a escola de então não fora capaz
de suprimir as desigualdades, pelo contrário, acentou ainda mais a desigualdade e a injustiça
vigentes na sociedade, uma vez que a educação oferecida se limitava praticamente à
alfabetização, tornando-se inacessível para os pobres avançar em níveis mais elevados do
ensino.
As escolas noturnas reivindicadas pelos operários e até reivindicadas por patrões não
funcionavam em número suficiente, tendo em vista a enorme massa de trabalhadores. Quando
criadas, a longa jornada de trabalho nas fábricas impedia os alunos de comparecerem ou,
quando conseguiam fazê-lo, estavam tão cansados que pouco aproveitavam as aulas. O cansaço
também acometia os professores que trabalhavam em outras escolas durante o dia.
Numa iniciativa filantrópica para suprir a falta de escolas noturnas para operários, a Loja
Maçônica Perseverança III, dentro dos seus princípios de “educar para libertar”, ofereceu, por
muitos anos, uma Aula Noturna para homens e meninos, atendendo com prioridade os operários
das fábricas. Porém, por uma série de infortúnios, oferecia um ensino aligeirado, avançando
muito pouco além da alfabetização.
250
Sobre o olhar que a elite dirigia à educação operária, não se pode negar que havia uma
nesga de preocupação. Patrões chegavam a solicitar, junto à municipalidade ou ao governo
estadual, a instalação de escolas noturnas para seus empregados, mas esse ensino também não
ultrapassava a linha da alfabetização. Entretanto, trazia benefícios à imagem do patrão, além a
acalmar as reivindicações. Esses gestos acabavam por confundir o operário: se eram atos de
bondade ou mais uma forma velada de dominação, tornando o operário ainda mais aprisionado
ao patrão.
No caso de Sorocaba, no aspecto político e no período estudado, a figura proeminente
era Luiz Vergueiro. Ele entendia que, para uma cidade estritamente industrial, a educação
primária e um ensino profissionalizante, visando a melhorar a mão de obra, já eram suficientes,
tornando-se desnecessário pensar num ensino secundário ou até mesmo uma Escola Normal.
A elite sorocabana não se incomodava com o fato de não ter uma escola de ensino secundário
na cidade, uma vez que, normalmente, enviavam seus filhos para Campinas ou São Paulo, onde
cursariam o ensino secundário.
Apesar do combate a todas as formas de exploração promovidas pela burguesia, os
anarquistas não conseguiram sair vencedores. Muitos dos idealistas acabaram curvando-se ou
resignando-se sobre a sociedade capitalista. Foi o caso de Giovani Rossi, que materializou seu
idealismo numa experiência linda, capaz de servir de exemplo para a humanidade, um lugar de
igualdade e respeito entre os homens, a chamada Colônia Cecilia, em terras do Paraná na última
década do século XIX mas que sucumbiu, diante de tantas dificuldades impostas pela sociedade
capitalista.
O mesmo ocorreu mais próximo, na fábrica Votorantim, com o idealista Angelo Vial,
que acabou cedendo, seduzido pelo belo discurso do capital, talvez também desiludido, como
ele mesmo confessara a Salvadora Lopes, cansado de ser incompreendido enquanto líder
operário.
Houve também as filhas de Vicente de Caria, um dos maiores apoiadores do anarquismo
em Sorocaba, que preferiram, quando adultas, não se envolver nesses assuntos. Por que o
desinteresse, se sempre viveram nesse meio?
Com o fortalecimento dos patrões adotando medidas repressivas à união dos operários,
como a conhecida lista negra dos operários de Sorocaba, o movimento operário foi
enfraquecendo. A legislação se intensificou com deportações e prisões de militantes operários,
a ponto de imigrantes alertarem, com veemência, que o Brasil era um país para o qual não se
devia emigrar. E entenderam que o fim da exploração aconteceria apenas com a fim da
imigração, quando cessasse essa fonte inesgotável de mão de obra barata.
251
A educação não foi negada para impedir, aos pobres, o acesso ao conhecimento
simplesmente, mas por tudo o que ela poderia propiciar enquanto entendimento de mundo e
disposição para a mudança da sociedade. Nesse fato, residia a preocupação dos patrões e do
governo com a expansão das ideias de esquerda, que acabariam chegando ao conhecimento das
crianças e jovens. Pelas vicissitudes da vida, a classe operária não se tornou silenciosa, foi
silenciada... mas a marca indelével deixada pela luta operária não pode ser apagada.
252
REFERÊNCIAS
ALEIXO IRMÃO. José. A Perseverança III e Sorocaba. 1889 –1930. Da queda da Monarquia ao fim
da Primeira República. Sorocaba: Fundação Ubaldino do Amaral, 1994, vol. I.
_________. A Perseverança III e Sorocaba: da fundação à proclamação da República. Sorocaba-SP:
Fundação Ubaldino do Amaral, 1999, vol.II.
ALMEIDA, Aluisio. História de Sorocaba. Sorocaba: IHGGS, 1969.
ALVIN, Zuleika M.F. A participação da mulher no início da industrialização em São Paulo. Revista
de História. São Paulo, n. 114, abr 1983.
AMBRIS, Alceste. “Il movimento operaio nello Stato de São Paulo”. 1906. In: PINHEIRO, P.S; HALL,
Michael. A classe operária no Brasil. 1889-1930 – Documentos. São Paulo-SP: Alfa-Ômega, 1979.
ANANIAS, Mauricéia. As escolas para o povo em Campinas: 1860 – 1889. Origens, ideário, contexto.
Dissertação de Mestrado – UNICAMP: Campinas-SP, 2000.
ARAUJO JR. Mozart. Grupo Escolar e espaço arquitetônico: um estudo sobre os dispositivos
materiais de produção da escola graduada (1893 – 1917). Dissertação de Mestrado – UNISO: Sorocaba-
SP, 2007.
ARAUJO NETO, Adalberto Coutinho de. Sorocaba operária. Sorocaba-SP: Crearte, 2005.
BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Viver e sobreviver em uma vila colonial. In: BONADIO,
Geraldo. Sorocaba: a cidade industrial. Espaço urbano e vida social sob o impacto da atividade fabril.
Sorocaba-SP: do autor, 2004.
BADDINI, Cássia Maria. Sorocaba no Império: comércio de animais e desenvolvimento urbano. São
Paulo: Annablume: Fapesp, 2002.
BARREIRA, Luis Carlos. Escola, periodismo e vida urbana: imprensa operária e a formação da
classe trabalhadora em São Paulo. (1888 – 1925). Trabalho apresentado no II Congresso Brasileiro
de Educação realizado em Natal-RN, em nov de 2002 e publicado pela SBHE/UFRN, nos Anais
Eletrônicos do Congresso.
__________, Entre o profano e o sagrado: imagens de mulher nas páginas do jornal sorocabano
O Operario (1909 – 1913). Quaestio Revista de Estudos de Educação. vol. 6, n. 2, 2004.
BAUSBAUM, Leôncio. História sincera da República. 1889-1930. 6ª ed. São Paulo-SP: Alfa-Omega,
vol 2, 1975-1976.
BEIGUELMAN, Paula. Os companheiros de São Paulo. São Paulo-SP: Ed. Símbolo, 1977.
253
BIBLIOTECA SOROCABANA. História (e memórias). Sorocaba-SP: Crearte Editora, 2005.
BONADIO, Geraldo. Sorocaba: a cidade industrial. Espaço urbano e vida social sob o impacto da
atividade fabril. Sorocaba-SP: do autor, 2004.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. Lembranças de velhos. 3ª. ed. São Paulo-SP: Companhia das
Letras, 1994.
CAMPOS, Raquel Discini. No rastro de velhos jornais: considerações sobre a utilização da
imprensa não pedagógica como fonte para a escrita da história da educação. Revista Brasileira de
História da Educação. Campinas-SP, v. 12, n.1(28), p. 45-70, jan-abr 2012.
CANABRAVA, Alice Piffer. O algodão em São Paulo. 1861-1875. 2ª ed. São Paulo-SP: T. A. Queiroz,
1984.
CAPELATTO, Maria Helena Rolim. Imprensa e história do Brasil. São Paulo- SP: Contexto/EDUSP,
1988.
CARONE, Edgard. Movimento operário no Brasil. (1877-1944) 2ª. ed. São Paulo- SP: Difel, 1984.
CARVALHO, Marta Maria Chagas de. A escola e a República. São Paulo-SP: Brasiliense, 1989.
CARVALHO. Rogério Lopes Pinheiro de. (org) O Operário. Edição fac-similar. Sorocaba-SP: Crearte,
2007.
CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Memória operária. Sorocaba-SP: Crearte, 2009.
_____________, Salvadora. Sorocaba-SP: LINC, 2001.
CERTEAU. Michel. A operação histórica. In: LE GOFF, J; NORA, P. (Org) História: novos
problemas. Rio de Janeiro –RJ: Editora Francisco Alves, 1974.
COLOMBO, Cleusa Beraldi. Ideiais sociais espíritas. In: CARVALHO. Rogério Lopes Pinheiro de.
(org) O Operário. Edição fac-similar. Sorocaba-SP: Crearte, 2007.
COSTA, Emília Viotti. Da Monarquia à República: momentos decisivos. São Paulo-SP: Editorial
Grijalbo, 1977.
CRUZ, Heloisa de Faria. São Paulo em papel e tinta: periodismo e vida urbana – 1890-1915. São
Paulo-SP: EDUC; FAPESP; Arquivo do estado de São Paulo; Imprensa Oficial SP, 2000.
CRUZEIRO DO SUL 30.000 edições. Sorocaba: Fundação Ubaldino do Amaral, 2005.
DAMIANI, Gigi. “Il movimento sindicalista nel Brasile”, 1920. In: PINHEIRO, Paulo Sérgio; HALL,
Michael M. A classe operária no Brasil. 1889-1930. Documentos. São Paulo-SP: Alfa-Ômega, 1979.
254
DAVATZ, Thomas. Memórias de um colono no Brasil. 1850. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia: São Paulo:
Ed. Universidade de São Paulo, 1980.
DEAN, Warren. A industrialização de São Paulo (1880-1945). Trad. de Otavio Mendes Cajado, 3ª ed.
São Paulo-Rio de Janeiro: Difel, s/d.
DECCA, Maria Auxiliadora Guzzo. Vida fora das fábricas. Cotidiano operário em São Paulo. 1920-
1934. Rio de Janeiro-RJ: Paz e Terra, 1987.
________ Indústria, trabalho e cotidiano. Brasil – 1889 -1930. 4ª ed. São Paulo: Atual, 1991.
DESSOTTI, Isabel Cristina Caetano. História da educação de Votorantim: do apito da fábrica à sineta
da escola. Sorocaba-SP: Crearte, 2009.
DIAS, Everardo. História das lutas sociais no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Alfa Ômega, 1977.
DIWAN, Pietra. Raça pura. Uma história da eugenia no Brasil e no mundo. São Paulo: Contexto, 2007.
DONATO, Hêrnani. Prefácio. In: SCHMIDT, Afonso. Colônia Cecilia. Romance de uma experiência
anarquista. 3ª ed. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1980.
ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Trad. B.A. Schumann. São
Paulo-SP: Boitempo, 2010. (Mundo do trabalho; Coleção Marx-Engels)
FAUSTO, Boris. História do Brasil. 11ª ed. São Paulo-SP: Editora da Universidade de São Paulo, 2003.
(Coleção Didática, 1)
________, Trabalho urbano e conflito social. São Paulo-Rio de Janeiro: Difel, 1976 (Corpo e Alma
do Brasil).
FERREIRA, Maria Nazareth. A imprensa operária no Brasil. 1880-1920. Petrópolis-RJ: Vozes, 1978.
FERRER Y GUARDIA. A escola moderna. São Paulo-SP: Terra Livre, 2014.
FOOT, Francisco; LEONARDI, Victor. História da indústria e do trabalho no Brasil. São Paulo-SP:
Global Editora, 1982. (Teses 6).
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Nascimento da prisão; trad. Raquel Ramalhete. 22ª ed.
Petrópolis: Vozes, 1987.
GASPAR, Francisco Antonio. Minhas memórias. São Paulo-SP: Cupolo, 1967.
GALLO, Silvio Donizetti de Oliveira. Prefácio à edição brasileira “O futuro deve brotar da escola”. In:
FERRER Y GUARDIA. A escola moderna. São Paulo-SP: Terra Livre, 2014.
GATTAI, Zélia. Anarquistas, graças a Deus. 20ª ed. Rio de Janeiro-RJ: Record, 1994.
255
__________ Città di Roma. 2ª ed. Rio de Janeiro-RJ: Record, 2000.
GOMES, Angela de Castro; FLAKSMAN, Dora Rocha; STOTZ, Eduardo. Velhos militantes.
Depoimentos. Rio de Janeiro-RJ: Jorge Zahar Editor Ltda, 1988.
HOBSBAWM, Eric J. A era dos extremos. O breve século XX. 1914-1991. Trad. Marcos Santarrita.
2ª ed. São Paulo-SP: Companhia das Letras, 1995.
____________ A era das revoluções. 1789 – 1848. Trad. Maria Tereza Teixeira; Marcos Penchel. 25ª
ed. São Paulo-SP: Paz e Terra, 2010.
___________ Os trabalhadores. Estudos sobre a história do operariado. Trad. Marina Leão Teixeira
Viriato de Medeiros. São Paulo-SP: Paz e Terra, 2000.
___________ Prefácio. In: ENGELS, F. La situation de la classe laborieuse em Angleterre. Paris:
Éditions Sociales, 1961, p.8.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Tradução, Prefácio e Notas. In: DAVATZ, Thomas. Memórias de um
colono no Brasil. 1850. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia: São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1980.
IANNI, Constantino. Homens sem paz. Os conflitos e os bastidores da emigração italiana. Rio de
Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1972.
JOB, Vera Ravagnani. “Origens e importância do ciclo do tropeirismo”. In: Tropeirismo e
identidade cultural da região de Sorocaba. Sorocaba, SP: Academia Sorocabana de Letras,
maio de 1983, pp. 5-10.
KOVAL, Boris. História do proletariado brasileiro. 1857 a 1967. Trad. Clarice Lima Avierina. São
Paulo-SP: Ed. Alfa-Ômega, 1982.
LAMOUNIER, Maria Lucia. Entre a escravidão e o trabalho livre. Escravos e imigrantes nas obras
de construção das ferrovias no Brasil no século XIX. Economia, Selecta, Brasilia (DF), v.9, n.4, p.
215-245, dez 2008.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Trad. Suzana Ferreira Borges. Campinas-SP: Editora da
UNICAMP, 1990.
LEUENROTH, Edgard. Anarquismo. Roteiro da libertação social. 2ª ed. São Paulo: CCS-SP
Achiamé, 2007.
LIMA, Junia de Souza. Fiandeiras e tecelãs: O cotidiano de operárias têxteis fabris em Minas
Gerais no final do século XIX - Um estudo na Cia. de Fiação e Tecidos Cedro e Cachoeira
(1872-1930), s/d.
256
MALATESTA, Errico. Anarquistas, Socialistas e Comunistas. Trad. Plinio Augusto Coêlho. São
Paulo-SP: Cortez, 1989 (Coleção pensamento e ação: 5)
___________ Concepção ética do anarquismo. In: LEUENROTH, Edgard. Anarquismo. Roteiro da
libertação social. 2ª ed. São Paulo: CCS-SP Achiamé, 2007
MANIFESTO DOS PIONEIROS DA EDUCAÇÃO NOVA, 1932.
MARTINS, José de Souza. Conde Matarazzo. O empresário e a empresa. 2ª ed. São Paulo: Hucitec,
1976.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista 1848. Trad. Sueli Tomazini de
Barros Cassal. Porto Alegre-RS: L&PM, 2001.
MARX, Karl. O 18 Brumário de Luis Bonaparte. São Paulo-SP: Boitempo, 2011.
MENON, Og Natal. Educação escolarizada em Sorocaba: entre o Império e a República. Tese
(Doutorado em História) – Pontifícia Universidade Católica: São Paulo-SP, 2000.
NAGLE, Jorge. Educação e sociedade na Primeira República. 2ª ed. Rio de Janeiro-RJ: DP&A, 2001.
OSTUNI, Maria Rosária. Notas para a história da emigração italiana para o Brasil: fontes documentais.
In: DEL ROYO, José Luiz. Trabalhadores do Brasil: imigração e industrialização. Trad. Ivan
Esperança Rocha. São Paulo-SP: Ícone, 1990.
PENTEADO, Jacob. Belènzinho, 1910. Retrato de uma época. 2ª ed. São Paulo-SP: Carrenho
Editorial/Narrativa Um, 2003.
PERROT, Michelle. Os excluídos da História. Operários, mulheres, prisioneiros. Trad. Denise
Bottmam. 2ª ed. Rio de Janeiro-RJ: Paz e Terra, 1992.
PINHEIRO, Paulo Sérgio; HALL, Michael M. A classe operária no Brasil. 1889-1930. Documentos.
São Paulo-SP: Alfa-Ômega, 1979.
_________ , Imigração e movimento operário no Brasil: uma interpretação. In: DEL ROYO, José Luiz
Trabalhadores no Brasil: imigração e industrialização. Trad. Ivan Esperança Rocha. São Paulo: Ícone,
1990.
PINTO JR. Arnaldo. A invenção da “Manchester Paulista”: embates culturais em Sorocaba (1903-
1914). Dissertação de Mestrado-UNICAMP: Campinas-SP, 2003.
PRADO JR. Caio. História Econômica do Brasil. 28ª ed. São Paulo-SP: Editora Brasiliense, 1983.
REIS FILHO, Casemiro dos. A educação e a ilusão liberal: origens do ensino público paulista.
Campinas-SP Autores Associados, 1995 (Coleção Memória da Educação)
257
RODRIGUES, Edgar. Socialismo e Sindicalismo no Brasil. 1675-1913. Rio de Janeiro-RJ: Ed.
Laemmert, 1969.
___________ Prefácio. In: CARVALHO. Rogério Lopes Pinheiro de. (org) O Operário. Edição fac-
similar. Sorocaba-SP: Crearte, 2007.
SAFÓN, Ramón. O racionalismo combatente. Francisco Ferrer y Guardia. Trad. Plinio Augusto
Coêlho. São Paulo-SP: Ed. Imaginário, 2003.
SAVIANI, Dermeval. História das ideias pedagógicas no Brasil. 3ª ed. rev. Campinas-SP: Autores
Associados, 2010. (Coleção Memória da educação).
________. Breves considerações sobre fontes para a História da Educação. In: LOMBARDI, J.C.;
NASCIMENTO, M. I. M. (orgs.) Fontes, História e Historiografia da educação. Campinas-SP:
Editores Associados: HISTEDBR, 2004. (Coleção Memória da Educação)
SCHMIDT, Afonso. Colônia Cecilia. Romance de uma experiência anarquista. 3ª ed. São Paulo: Ed.
Brasiliense, 1980.
SILVA, Ivanilson Bezerra da. Apontamentos sobre a Maçonaria, abolição e a educação dos filhos
de escravos na cidade de Sorocaba no final do século XIX. Revista HISTEDBR on-line Campinas,
n.27, p. 95-111 set 2007.
SILVA, Vanderlei da. A participação da Loja Maçônica Perseverança III na educação escolar em
Sorocaba: do final do segundo reinado ao final da primeira república. Sorocaba-SP: Crearte, 2013.
SIMÃO, Aziz. Sindicato e Estado. Suas relações na formação do proletariado de São Paulo. São Paulo-
SP: Dominus Editora, 1966.
SODRÉ, Nelson Werneck. Formação histórica do Brasil. 3ª ed. São Paulo-SP: Editora Brasiliense,
s/d.
SOROCABA 350 anos. Uma história ilustrada. Fundação Ubaldino do Amaral, 2004.
SOUZA, Rosa Fátima de. Templos de civilização. A implantação da escola primária graduada no
Estado de São Paulo (1890-1910). São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.
THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa. A maldição de Adão. Trad.
Renato Busato Neto e Claudia Rocha de Almeida. 2ª ed. São Paulo-SP: Paz e Terra, 2012.
__________ Eighteen-Century English Society: Class Stryggle whithout Class? In: Social History, vol.
3, nº 2 maio 1978.
TRAGTEMBERG, Mauricio. Introdução. In: MALATESTA, Errico. Anarquistas, Socialistas e
Comunistas. Trad. Plinio Augusto Coêlho. São Paulo-SP: Cortez, 1989 (Col. pensamento e ação: 5)
258
VALENTE, Marcélia Picanço. Imprensa operária e educação: registro da escrita feminina no jornal
O Operario (1909-1913). Dissertação de Mestrado-UNISO: Sorocaba-SP, 2014.
VIEIRA, Porphirio Rogich. Sorocaba não esperou o 13 de maio. Pesquisa histórica sobre a
emancipação antecipada dos escravos em Sorocaba. Sorocaba: Editora da Fundação Ubaldino do
Amaral, 1988.
JORNAIS - Gabinete de Leitura Sorocabano
A Conquista do Bem – jan 1897
A Arrelia, jul 1901
A Terra livre, fev 1907
A Voz do Povo, dez 1892 – mar 1897
A Cidade de Sorocaba, mar 1908 – out 1911
Colombo, jun 1876 – jan 1878
Cruzeiro do Sul, jun 1903 (em circulação)
Diário de Sorocaba, nov 1880 – abr 1893
Gazeta do Além Ponte - 1992
Gazeta Commercial, out 1874 – ago 1875
Jornal do Commercio - 1910
La Bataglia - 1912
O Araçoiaba, set 1866 – mar 1867
O Operário, jul 1909 – fev 1913; out/nov 1913
O 15 de Novembro, nov 1892 – jan 1908
O Sorocabano, fev 1870 – abr 1871
Ypanema, abr 1872 – mar 1880
LIVROS DE REGISTRO (Arquivo Municipal de Sorocaba)
Livro para registro dos estabelecimentos particulares de instrucção, neste municipio de 1887
ALMANAQUES E REVISTAS (Gabinete de Leitura Sorocabano)
Almanach de Sorocaba 1903. Ed. Fac-similar. Taquarituba, São Paulo, 2007.
Almanach de Sorocaba 1904. Ed. Fac-similar. Taquarituba, São Paulo, 2007.
259
Almanach Illustrado de Sorocaba. 1914. Ed. Fac-similar. Taquarituba, São Paulo, 2006.
Revista O fim do século. 1897.
LEGISLAÇÃO
Anuário do Ensino do Estado de São Paulo de 1917
Lei nº. 81 de 6 de abril de 1887
Lei nº. 641 de 26 de junho de 1852
Lei nº 88 de 8 de setembro de 1892
Lei nº 1.195 de 24 de dezembro de 1909
Regimento Interno das Escolas Públicas do Estado de São Paulo de 1894
260
MEMORIAL (APÊNDICE)
Escrever um memorial não é uma tarefa fácil, ao menos para mim. Só posso falar sobre
aquilo que tenho vivido. Se devo falar da minha vida, tenho que relatar o que foi significativo
para mim. Por mais que as finalidades sejam acadêmicas, é dificil me apartar dos sentimentos,
valores, alegrias e tristezas, conquistas e desilusões. Quase sempre tive uma vida ajuizada, sem
grandes loucuras, porque não tenho muita disposição para sofrer. Mesmo sendo ajuizada, troco
o certo pelo incerto e, mesmo quando tenho medo, enfrento, pois aprendi que, quando se tem
medo, vive-se pela metade.
Nasci na rua Heitor Avino, nº 100 na vila operária da Chave, em Votorantim. Meu pai
se chamava Antonio, já é falecido e minha mãe, Marina, estava com 87 anos, quando comecei
esta escrita. Sou a terceira das cinco filhas que tiveram. São elas: Maria Amélia, já falecida,
Lucia Helena, eu, Ana Célia e Rita de Cássia. Quando nasci, meu pai trabalhava na fábrica de
cimento Santa Helena e minha mãe na fábrica de tecidos Votorantim, ambas localizadas em
Votorantim e pertencentes ao grupo de mesmo nome. Nós nos enquadrávamos na categoria
“muito pobres” e isso foi por muito tempo. A nossa casa pertencia à fábrica. Era bem pequena,
três cômodos apenas. Uma sala, um quarto, uma cozinha e o banheiro ficava no quintal,
separado da casa. Nessa vila, as casas eram estreitas e geminadas, então o quarto não tinha
janelas e nem porta, era varado, como diziam, pois ficava entre a sala e a cozinha.
Desde muito pequena, lembro-me de ter de acordar de madrugada para seguir com
minha mãe para a fábrica. Antes do apito das cinco horas, eu já estava na creche que ficava
dentro da fábrica e, quando apitasse cinco horas, ela deveria estar na seção para mais um dia
exaustivo de trabalho. Quase sempre eu acordava irritada e não queria ir para a creche, ficava
choramingando e não tomava o café com leite para sair. Até que um dia meu pai me deu uns
tapas no traseiro porque estávamos muito atrasados. Fui contrariada, injuriada, chorando e jurei
nunca mais tomar café com leite e ainda mantenho esse juramento.
Quando chegávamos à portaria da fábrica, eu, mesmo sem conhecer os números, retirava
a chapa da minha mãe e passava para a chapeira daqueles que tinham vindo trabalhar. Ainda
me lembro do tilintar das chapinhas de metal caindo ao mesmo tempo, afinal eram tantos
operários e tantas chapas, dia após dia, a mesma rotina e quase nenhuma possibilidade de
mudança de vida nem para nós, nem para os outros.
Minha mãe sempre estava trabalhando. Após cumprir sua jornada na fábrica, chegava
em casa, lavava roupa, limpava a casa, passava roupa, fazia a comida, pois precisava preparar
as marmitas para o dia seguinte, cuidava das filhas. Apesar de meu pai e minha mãe trabalharem
261
bastante, nós não tínhamos muitas coisas. Principalmente aquelas que eram importantes na
visão de uma criança, ou seja, brinquedos e comida gostosa. A cada pedido feito para se comprar
alguma coisa, vinha sempre a mesma resposta. “Isso é para quem pode, nós não podemos”.
Mesmo sem conhecer as bases da sociedade capitalista, pensava comigo: “Por que alguns
podem e nós não? Quando que nós vamos poder?” Eu só pensava, não adiantava ficar
questionando muito. Normalmente minha mãe, mais pragmática, finalizava a conversa
concluindo: “a vida é assim, tem de se conformar”.
A escolha da minha pesquisa em boa medida deve-se a essa situação vivida e sofrida.
Ao passar por dentro da fábrica, via as máquinas tão barulhentas que não paravam nunca. Tanta
gente trabalhando, parecia até que todos viviam a mesma vida. Trabalhar na fábrica, morar na
vila, não ter dinheiro para quase nada. E essa mesma vida reservada para os filhos. Talvez a
pretensão desta pesquisa seja tentar explicar por que as coisas eram desse jeito.
Guardo lembranças do tempo que frequentei a creche da fábrica. Havia professoras, mas
não me lembro de atividades que desenvolvessem nossas capacidades cognitivas plenamente.
Pensando com a minha cabeça de criança, acredito que eu não gostava muito daquele lugar.
Não tenho muitas lembranças desse tempo, certamente porque os momentos divertidos eram
poucos. E aqui remeto-me ao pensamento de Adélia Prado: “O que a memória ama, fica eterno”.
E não era o caso. As principais atividades das quais me lembro eram: jardinagem, que consistia
em tirar os “matinhos” dos canteiros, brincadeiras de roda, pular corda, não me lembro de
nenhuma atividade de escrita. A comida não era gostosa, sempre a mesma coisa: arroz, feijão
e carne com mandioca e, de sobremesa, uma banana enorme que mal cabia em nossas pequenas
bocas, muito raramente havia pudim. A única festa de que me lembro era a de São João (não
junina, pois não havia questões religiosas naquele tempo), ocasião em que dançávamos a
quadrilha. Quando chegava o Natal, a fábrica dava para cada filho dos operários um corte de
pano, de gosto duvidoso, e um pacote de balas. Era para nós uma alegria, principalmente pelas
balas, que minha mãe repartia entre todos e um pouco por dia para render mais. O tecido dava
para fazer um vestido. Muitas vezes o pano era horrível, mas o vestido saía assim mesmo.
Em 1969, entrei no primeiro ano da escola no colégio Santa Escolástica, em Sorocaba,
colégio tradicional católico, de qualidade e pago. Mas nesse tempo o turno da manhã era
gratuito. Meu pai era muito católico e sempre valorizou a escola; por isso fez de tudo para que
pudéssemos estudar, principalmente naquele colégio. Na verdade, ele sempre lamentou o fato
de ter sido obrigado a interromper seus estudos no 2º ano primário para trabalhar na roça.
Quando entrei na escola, ia de ônibus com minha irmã mais velha, Lúcia. Ela cursava
o 4º ano e eu o 1º ano. Não sei explicar a razão, mas não fui alfabetizada pela cartilha “Caminho
262
Suave”, como era a prática na época. Pelo que me lembro, fui alfabetizada de uma maneira
muito próxima ao Construtivismo de hoje. Ocorreu que no primeiro ano eu não aprendi a ler
nada. Fui para o segundo ano sem saber ler e escrever e, para piorar a minha situação, minha
irmã deixou de estudar no colégio, pois o ensino gratuito era somente até o quarto ano. Eu ia
para a escola de ônibus. Quando terminavam as aulas, ia para o ponto de ônibus, mas não sabia
ler o nome do ônibus que ia para Votorantim e entrava em desespero, pois via que as minhas
amigas iam embora e eu ficava lá sozinha, sem saber o que fazer. Muitas vezes abria a boca a
chorar até que alguma boa alma me ajudava a identificar o ônibus. Para resolver esse terrível
problema que tanto me afligia, minha irmã Lúcia escreveu num papel, em letras de forma, da
mesma maneira que vinha escrito no letreiro do ônibus. Assim, eu ia conferindo o nome do
ônibus e o nome que estava no papel, até que um dia a empresa trocou alguns ônibus e o letreiro
passou a ser escrito diferente. Mas nesse ponto eu já estava lendo um pouco e pude me sair
bem.
Quando passei para o 4º. ano, o colégio deixou de oferecer ensino gratuito. Entretanto,
a madre diretora ofereceu ao meu pai uma bolsa de estudos integral para mim. Passei a estudar
à tarde junto com os alunos que pagavam. Foi nessa época que eu descobri o que era diferença
de classes sociais. Eu sempre fora uma aluna com certos problemas de comportamento, pois
gostava de brincar, conversava bastante durante as aulas, tinha amizade com todas da classe e,
com a nova turma, simplesmente me apaguei. Vários alunos nem conversavam comigo. Não
tenho boas lembranças desse tempo, pois fui extremamente discriminada pela minha visível
pobreza, desde o meu uniforme, meu material escolar, o meu lanche, os meus sapatos, tudo
diferente daqueles dos que tinham dinheiro. Mas tive a sorte de ter, naquele ano, uma professora
muito competente e bonita, professora Vânia, que veio a ser minha professora outras vezes.
Como o meu círculo de amizades ficou muito reduzido, apliquei-me nos estudos e era
considerada uma boa aluna, pelas notas que eu tirava. Aconteceu que, no final do 4º. ano, que
seria o meu último ano de estudos naquele colégio, a madre diretora ofereceu a continuidade da
bolsa de estudos para eu cursar as séries seguintes e o 2º grau. Tratava-se de uma boa oferta,
certamente a garantia de uma boa educação. Minhas irmãs estudavam em escolas públicas, os
gastos com material, uniformes, condução ficariam mais pesados. Além desses motivos, não
me atraía a ideia de ficar por muito mais tempo num lugar que não me sentia à vontade. Eu era
pobre e bem resolvida quanto a nossa pobreza, porém me incomodava um pouco aquela
situação. Foi então que pedi a meu pai para vir estudar na escola pública em Votorantim. Ele
certamente ponderou os gastos que teria e aceitou. Entretanto, não posso deixar de reconhecer
que tive uma boa base de estudos naquele colégio. Passei a estudar na única escola de
263
Votorantim e fui muito feliz e vim a ser, depois de alguns anos, diretora dessa escola e também
fui feliz.
Fui crescendo e continuei estudando em escolas públicas. Fiz o 2º grau na Escola
Técnica “Rubens de Faria e Souza”, em Sorocaba. Como estava em vigor a Lei 5.692/71, o
ensino profissionalizante era obrigatório nas escolas de 2º grau. Optei por cursar Eletrotécnica,
um curso em que não havia nada que me atraía, na verdade eu nem sabia direito sobre o que
estava aprendendo. Eu gostava muito de ler, e lia bastante. Gostava das disciplinas de História,
Geografia, Português, mas mesmo assim fiz Eletrotécnica. Entretanto, na 3ª série, como a
matriz curricular era formada praticamente por disciplinas profissionalizantes, tive a minha
primeira derrota enquanto estudante, fui retida. Apesar de ter repetido de ano, decidi continuar
nessa escola e no mesmo curso de Eletrotécnica. E foi uma boa decisão, pois nesse ano conheci
e comecei a namorar meu futuro marido, pois estávamos na mesma sala e estamos juntos até
agora. Novamente repeti de ano, tudo por causa da eletrotécnica. Resolvi ir para outra escola,
afinal não gostava daquele curso e já tinha arrumado namorado. Concluí o 2º grau na outra
escola.
Nesse tempo eu já trabalhava e nem cogitava parar os estudos. Era início da década de
1980, vivíamos a ditadura militar e eu precisava me decidir sobre o que estudar no ensino
superior. Desde pequena, sempre alimentei o desejo de ser professora, mesmo com toda a
desvalorização da profissão. Decidi-me por fazer licenciatura em História, na Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Sorocaba, que posteriormente viria a se transformar em
universidade, a UNISO. Comecei a fazer História em 1983.
Trabalhava durante o dia na Siderúrgica Nossa Senhora Aparecida, em Sorocaba, na
parte de escritório, e estudava à noite. Tempos difíceis. Saía de casa muito cedo para trabalhar
e ia direto para a faculdade sem tomar banho, sem jantar e cansada. Retornava a noite, quase
nem via minha mãe durante a semana. Meu pai não tinha condições de me ajudar
financeiramente, então eu mesma paguei o curso. Apesar de gostar muito de História, hoje
avalio que o curso não foi bom. Em que pese o momento político da época ser a ditadura militar,
talvez os professores fossem cerceados no exercício de uma prática mais dinâmica. Mas guardo
comigo algumas dúvidas sobre isso. A meu ver, faltava conhecimento e domínio para alguns
deles. O curso foi pobre em leituras e nas discussões ideológicas, que na verdade nunca
existiram.
Quando faltava pouco para terminar o curso de História, resolvi sair da fábrica onde eu
trabalhava. Nunca gostei do serviço da fábrica. Ficava o dia todo num lugar, sem produzir nada
que me realizasse e ganhando tão pouco. Queria fazer algo de útil, que fosse prazeroso. Foi
264
então que comecei a trabalhar como professora eventual, afinal, não estava formada ainda. Devo
dizer que minhas primeiras experiências como professora eventual não foram nada prazerosas.
Deparei-me com a realidade da sala de aula e com a minha realidade enquanto
professora. De um lado, a minha inexperiência e o pouco domínio do conhecimento, por falta
de suporte da faculdade, e, do outro, a escola simplesmente “jogar” o professor na sala de aula,
sem dar nenhuma orientação. É você por você mesmo.
Precisei escolher um caminho pedagógico a seguir. Invoquei meus melhores
professores, procurando relembrar aqueles cujas aulas eu gostava. Enfim, lancei mão da
imitação, recurso muito utilizado pelos professores iniciantes. Passei a estudar muito, a
aprender aquilo que não aprendera. Preparava todas as aulas com muito zelo, e num nível muito
elevado para os pequenos alunos das 5ª séries que estavam em minhas mãos. Queria ensinar-
lhes o máximo, mas eles pouco aprendiam. Entendi que precisava dosar melhor o conteúdo das
aulas. Encontrei ainda uma situação interessante quanto aos hábitos escolares dos alunos na
disciplina de História. Eles estavam acostumados com o método catequético, no qual o
professor fazia o questionário já com as respostas e os alunos decoravam. Foi um trabalho
demorado para fazê-los entender que essa não era a melhor forma de estudar e nem de entender
a história. Sempre procurei e procuro estimular o pensamento crítico dos alunos, fazê-los
pensar.
Em 1986, já formada, consegui substituir uma professora por alguns meses na EE Prof.ª
Edith Maganini, em Votorantim. Essa escola era de 1º grau, ou seja, de 1ª a 8º série. O corpo
docente era composto, na maioria, de professoras experientes, bem próximas da aposentadoria.
Eu, com animação própria dos iniciantes, sempre propunha algo diferente para melhorar a
escola, para torná-la mais atraente para os alunos e recebia um sonoro “aqui isso não dá certo”.
Até que um dia, após propor algo diferente e ter recebido novamente essa resposta um professor
me disse:
- Não espere nada dessa velharada, porque elas estão muito desanimadas. Mas você não
perca essa animação. Bom professor é aquele que é animado sempre.
Considerei muito as palavras desse professor e, apesar de todas as dificuldades
encontradas, não desanimei e procuro manter-me assim até hoje. São bem poucas as pessoas
que nos aconselham positivamente no início de carreira.
Nesse mesmo ano de 1986, casei-me e logo engravidei. Em 1987, nasceu meu filho
Vinícius. As aulas foram aparecendo, naquele momento já apareciam aulas livres e eu sempre
estudava e me preparava para as aulas, pois temia que algum aluno me perguntasse algo que eu
não soubesse responder.
265
Quando faltava uma semana para o meu filho fazer dois anos, nasceu minha filha, Elise.
Eu trabalhava numa escola pequena, recém-criada, onde havia aulas de História para mim e
aulas de Geografia para uma outra professora. Como ela era formada em Estudos Sociais, podia
ministrar as duas disciplinas, eu não. Por motivos pessoais, no ano seguinte ela escolheu as
aulas de História e eu fiquei sem nada, sendo obrigada a sair dessa escola. Fiquei muito
revoltada com essa situação e decidi que não ficaria dependendo da bondade dos outros para
ter trabalho. Resolvi fazer Pedagogia. Fiz o vestibular e fiquei classificada em 3º lugar.
Em 1990 iniciei o curso de Pedagogia na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de
Sorocaba e consegui eliminar algumas disciplinas, sendo classificada no 2º ano. O curso era de
três anos de duração. Nesse curso, tive a satisfação de reencontrar com a minha professora do
4ª ano do colégio Santa Escolástica, professora Vânia e ela continuava ótima professora. Voltei
a ser aluna de alguns professores do meu curso de História, que continuavam com as mesmas
fichas de aulas amareladas e aplicando as mesmas provas. Fiz a Pedagogia com mais
maturidade, era uma aluna responsável e comprometida com os estudos, discutia mais e agora
podia contar com a minha experiência docente. Cheguei, inclusive, a ter embates ideológicos
com alguns professores. Mas o curso transcorreu de maneira muito semelhante ao da minha
primeira graduação, e o momento político não servia mais para justificativa, uma vez que a
ditadura militar havia acabado.
Aconteceu, porém, que novamente engravidei. Meu terceiro filho, Lucas, nasceu no
final do 1º semestre do último ano, um dia depois da última prova. Passei por mais uma situação
complicada quando retornei da licença maternidade. Por vários motivos, não tinha onde deixar
o meu bebê, então como faltavam menos de três meses para concluir o curso, passei a levá-lo
comigo para as aulas. E devo dizer que ele sempre se comportou muito bem durante as aulas e
também pude contar com a colaboração dos professores.
A cada filho que nascia, mais eu trabalhava. Quando terminei o curso de Pedagogia, fui
obrigada, por questões financeiras, a trabalhar também em escola particular. Fui contratada por
uma escola de alunos pertencentes à classe alta. Tempos difíceis. Três filhos pequenos e eu me
dividindo entre as aulas das escolas pública e particular. Cheguei a dar 53 aulas por semana.
Mas isso não é bom para o professor e nem para o aluno. A experiência nessa escola particular
não foi prazerosa. Estava acostumada a trabalhar com crianças que consideravam e respeitavam
o professor e, na escola particular, os alunos (não todos) viam o professor como mais um
empregado deles.
Na década de 1990, eu não era professora titular de cargo, mas não ficava sem aulas,
pois havia poucos professores efetivos e sobravam aulas. Foram anos de agitação quanto ao
266
trabalho do professor. As greves eram constantes e eu sempre participava intensamente delas.
Entendia que precisava participar da luta para conseguir melhores condições de trabalho.
Indignavam-me aqueles professores que, a meu ver, eram acomodados e cheguei até a entrar
em atrito com colegas. Numa situação de greve, um professor da escola onde eu trabalhava foi
categórico em dizer “eu não faço greve”. Perguntei-lhe o porquê dessa atitude, afinal tínhamos
de lutar pela nossa classe. Ele respondeu-me:
- Quando eu era criança, passei muita fome por causa de greve. Meu pai era operário e
participava dos movimentos grevistas e, por isso, não parava em emprego nenhum e nós, muitas
vezes, não tínhamos o que comer.
Com o tempo fui aprendendo que muitas vezes não é que as pessoas não querem fazer
coisas, elas simplesmente não podem ou não conseguem. Comecei a exercitar mais a alteridade.
Passei a observar com mais atenção a condução do movimento quanto a atuação dos membros
do sindicato dos professores, especialmente a APEOESP e fui me convencendo de que não
podia ficar esperando dos outros para melhorar.
Em 1994, na escola em que eu era professora de História, vagou o cargo de vice-diretor
e fui escolhida pelo Conselho de Escola para ocupar o cargo, a contragosto do diretor. Essa
experiência não foi muito boa, nem para mim e nem para ele, pois o relacionamento não era
adequado. Mas, por sair da sala de aula, tive condições de enxergá-la diferente e aprendi mais.
Fiquei nessa função por um ano e meio, quando houve a reorganização das escolas estaduais e
fui transferida para outra escola, voltando a ser professora.
Apesar do trabalho excessivo, sempre mantive a ideia de continuar com meus estudos
em nível de pós-graduação, no entanto, os programas de mestrado e doutorado eram poucos e
para poucos. Fiz, então, um curso lato sensu na UNISO sobre a História da América, com aulas
aos sábados, por um ano e meio. Foi um curso muito bom. A maior parte dos professores era
da USP. Entretanto, mais uma vez, recebi críticas de familiares por deixar os filhos para estudar.
Passado mais algum tempo, comecei a amadurecer a ideia de tentar um mestrado e as
opções seriam USP e UNICAMP, pois não havia outras universidades mais próximas, nem
outros programas. Antes de qualquer tentativa nesse sentido, em 1996, minha vida deu uma
reviravolta.
Minha irmã mais velha estava grávida e, por uma série de fatores de toda ordem, teve
complicações no parto e veio a falecer, sem saber que tinha dado à luz uma menina, Mariana.
Alegando não ter condições para cuidar do bebê, o pai, uma pessoa inqualificável, pediu-me
para ficar com ela por um certo tempo. Assim, até um dia eu tinha três filhos e, no dia seguinte,
267
tinha quatro. Foram tempos difíceis, de muito sofrimento, quando ele quis levá-la embora. Mas
ela ficou.
Nessa época, eu estava na EE Prof. Azarias Mendes, devido à reorganização. Fiquei um
ano como professora e, no ano seguinte, assumi o cargo de Professor Coordenador. Passei a
trabalhar mais próximo com os professores. Gostava do que fazia e me dediquei bastante nessa
nova função.
Com quatro filhos pequenos, os planos de prosseguir com os estudos foram adiados por
mais tempo, mas não esquecidos. Foi então que prestei a segunda prova do concurso para
Diretor de Escola. Nesse concurso, considerado o mais demorado (foram 5 anos entre a
inscrição e o resultado final) e mais difícil da história do magistério de São Paulo, fui a única
pessoa aprovada na minha cidade e a primeira colocada em nível de Diretoria de Ensino, num
total de 5 pessoas. Para mim, foi uma grande vitória, pois estava atravessando uma fase muito
difícil na vida.
Em 1998, assumi meu cargo de diretora na EE Profª Clotilde Belini Capitani, em
Votorantim. Essa escola funcionava de 1ª. a 8ª série do ensino fundamental e contava com
classes de supletivo, também de ensino fundamental. Encontrei pessoas muito boas nessa
escola. Mas, como eu sou muito intensa nas coisas que faço, assustei um pouco os professores
no início, pois estavam acostumados com a outra diretora que era boa, mas bem mais calma que
eu. A direção de escola muda a vista do seu ponto e você enxerga a educação de outra maneira.
Passa a compreender o papel da família na vida escolar dos alunos, seus limites e suas
possibilidades, evitando os julgamentos. O mesmo ocorre com o olhar que se tem dos
professores. Encontrei professores limitados, mas também encontrei professores excelentes que
comungavam das mesmas ideias que eu. Talvez por isso os considere tão bons.
Apesar de gostar muito dessa escola, no final de 1999, apareceu-me a oportunidade de
substituição de um cargo vago na supervisão de ensino. Ponderei quanto a distância, o salário
e o trabalho mais tranquilo que na escola e fui. Entretanto, o supervisor de ensino ainda é visto
pelos membros das escolas como aquele profissional que só serve para fiscalizar, apontar erros
e aplicar a lei. Essa nunca foi a minha postura enquanto supervisora, porém essa imagem do
supervisor está arraigada no imaginário das escolas e emperra qualquer tentativa de trabalho
diferente desse modelo.
Estava com a minha vida relativamente estabilizada profissionalmente. Um dia, no
início de 2004, um amigo convidou-me para dar uma aula sobre Paulo Freire num cursinho que
ele havia montado para um concurso de professores no município. Eu já estava há um bom
tempo distante da sala de aula, mas me preparei e fui. Acabei dando outras aulas. Na aula sobre
268
Paulo Freire, trabalhava o livro Pedagogia da autonomia e, num dado momento, ao explicar o
pensamento do autor, uma das alunas, aproveitando-se do trecho do livro, comentou que era “
imperioso” que eu fosse dar aulas em faculdade. Dizia que eu explicava bem e as outras alunas
concordaram.
Comecei a considerar essa possibilidade, apesar de achá-la muito improvável.
Encaminhei um curriculum para a Universidade Paulista - UNIP de Sorocaba em fins de janeiro
e também me inscrevi no mestrado em educação da UNISO como aluna especial. Fui aceita
como aluna especial e, dois meses depois, fui contratada pela UNIP, onde estou até hoje.
Em 2005, fui aprovada como aluna regular no Mestrado em Educação da UNISO. Para
poder cursar o mestrado, pedi licença sem remuneração do serviço público. O mestrado foi
muito bom. Conheci pessoas interessantes, fiz amigos e as aulas eram de excelente qualidade,
gostava das aulas. Quando fui aceita no programa, o professor que me entrevistou gostou do
meu tema que, segundo ele, era “apaixonante” e, de imediato, dispôs-se a ser meu orientador.
Pela minha história de vida, filha de operários, professora de História, quis tratar sobre a história
da educação na vila operária de Votorantim, pois até então não havia nenhuma pesquisa no
município sobre esse tema. Seria a minha contribuição para preservação da memória e história
da cidade.
Aconteceu que, no semestre seguinte, esse professor fora fazer um curso de
aperfeiçoamento no exterior e tive a oportunidade, - o privilégio! - de ter aulas com o professor
José Luis Sanfelice, cuja conduta ideológica estava bem próxima do que eu pretendia
desenvolver no trabalho de pesquisa. E o inevitável aconteceu, pedi a ele para ser meu
orientador, e ele aceitou. Entretanto, o mais desagradável foi comunicar ao outro professor que
eu estava trocando de orientador. Apesar de ele ter dito a mim que aquilo era totalmente normal
na academia, ficou um bom tempo sem me dirigir a palavra.
Em agosto de 2007, defendi minha dissertação de mestrado, cujo título é: “História da
educação de Votorantim: do apito da fábrica à sineta da escola”. Minha mãe estava presente
nesse dia e chorou quando viu que dediquei o trabalho “a todos os meninos e meninas, entre
eles minha mãe, que tiveram a infância roubada pelo trabalho na fábrica”. Também não podia
deixar de dedicar ao meu pai, que sempre quis que as filhas estudassem tudo o que ele não pôde.
Terminado o mestrado, retornei, em 2008, para o meu cargo de diretor de escola, agora
na EE Prof. Daniel Verano, em Votorantim, a mesma escola em que estudei da 5ª. a 8ª. série.
A minha intenção era ficar naquela escola até a aposentadoria. Uma escola grande, com muitos
problemas, onde me dediquei muito. Os próprios alunos reconheciam que a escola estava
melhorando. Os professores, que no início resistiram, reconheceram o trabalho e colaboraram
269
bastante. Fui muito feliz nessa escola e sentia-me realizada. Entretanto, nesse ano abriu
concurso para Supervisor de Ensino. Prestei a prova, sem muito compromisso, e infelizmente
fui aprovada e consegui uma vaga na Diretoria de Ensino de Votorantim.
Em fevereiro de 2009, assumi o cargo de supervisor de ensino e foi com muita tristeza
que escrevi a carta pedindo minha exoneração do cargo de diretor de escola. No final desse ano,
foi o lançamento do meu livro, fruto da minha dissertação de mestrado. O dia do lançamento
foi emocionante, quando que eu poderia imaginar que escreveria um livro? Também nesse ano,
resolvi apresentar um projeto de pesquisa para o doutorado em educação na UNICAMP, mas
não fui aceita. A minha entrevista foi desastrosa, principalmente pelo meu nervosismo.
Em 2010, consegui realizar um sonho de muito tempo, desde os tempos de criança. Eu,
nascida na Chave, onde nada era para gente, fui para a Europa. Foi uma viagem linda. Mas meu
marido não me acompanhou. Nesse ano, tentei novamente o doutorado na UNICAMP e desta
vez fui aceita.
Ingressei em 2011 e, novamente, tive oportunidade de conhecer pessoas interessantes,
excelentes professores, ótimas aulas. Aprendi muito. O melhor foi a oportunidade de ter
novamente como orientador o professor Sanfelice. Mas fazer o doutorado tem sido uma das
coisas mais difíceis da minha vida. Que desafio!
Até aqui eu escrevi para a qualificação, acreditando que nada mais pudesse acontecer
para retardar a minha defesa, só me faltava terminar o texto. Mas fazemos um plano e a vida
faz outros. A maior tristeza da minha vida ainda estava por vir. Minha mãe foi embora. A
revisão mais difícil feita no texto foi, nas referências que fiz a ela, passar os verbos para o
passado. E, finalmente, com mais de um ano de atraso, em junho de 2017, defendi minha tese.