a educação jurídica na desmobilização do epistemicídio: o
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GT3: Educação em Direitos Humanos e Processos de Democratização/Redemocratização
A Educação Jurídica na desmobilização do epistemicídio: o caso do Programa
Direito e Relações Raciais na Universidade Federal da Bahia.
Autor: Vitor Luis Marques dos Santos
Universidade Federal da Bahia - UFBA
E-mail: [email protected]
Coautora: Gabriela Batista Pires Ramos
Universidade Federal da Bahia – UFBA
E-mail: [email protected]
Resumo:
O presente trabalho visa investigar o papel da educação jurídica no
enfrentamento ao epistemicídio vigente dentro do modelo universitário brasileiro,
tomando como estudo de caso o Programa Direito e Relações Raciais da Universidade
Federal da Bahia. Para tanto, com apoio no conjunto de narrativas sobre as relações
raciais no Brasil, analisará o processo constituição da relação entre o Estado e o
fenômeno do racismo, entendendo este como uma realidade histórica e cultural que
estabelece uma hierarquia racial a partir do fenótipo. Assim, preocupado em
compreender o lugar da população negra na construção do ideário de formação da
sociedade brasileira, tomando como base o pós-abolição, discutirá os efeitos
institucionais e políticos das teorias do branqueamento, do racismo científico e do mito
da democracia racial na sedimentação de uma assimetria racial, desembocando em
desigualdades sistêmicas. No bojo da discussão sobre a formação da cultura jurídica
nacional, percebe como a branquitude cruzada com o bacharelismo jurídico e o
patrimonialismo subisidiu ao racismo institucional elementos para sedimentação de uma
narrativa jurídica positivista e baseada em um monoculturalismo eurocêntrico, que,
como característica do paradigma de universidade vigente, conforma uma vivência
acadêmica onde o epistemicídio se faz presente. Para efeitos deste artigo, compreende-
se como epistemicídio o processo desenvolvido pela estrutura colonial na destituição da
racionalidade, da cultura e da civilização do Outro, cujo apogeu, destaca, foi o
racialismo do século XIX. Ainda, apresenta a experiência do Programa Direito e
Relações Raciais da Universidade Federal da Bahia como um projeto que inteciona
refletir o que está consolidado enquanto formação jurídica e o quadro estrutural da
universidade brasileira, defendendo a sua refundação e uma ampla reforma de suas
bases epistemológicas, teóricas, metodológicas e simbólicas, reforma esta que lhe
proporcione aprender com a diversidade e a pluralidade cultural dos diversos agentes
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coletivos que lhe integram, o reconhecimento às distintas formas de produção de
conhecimento e construção de uma relação comunitária que subsidie o enfrentamento ao
racismo e as variadas violências e sistemas de poder que estruturam toda a sociedade
brasileira.
Palavras-chave: Educação Jurídica. Direito e Relações Raciais. Epistemicídio.
1. Introdução
O desafio de reflexão e intervenção sobre as bases epistemológicas e
metodológicas de produção do conhecimento no Brasil, sobretudo no conjunto de
experiências acadêmicas em torno do direito e das ciências sociais aplicadas de uma
maneira geral, reforça os sentidos apontados ao longo da história recente do país pelos
movimentos sociais negros e sua intelectualidade. A formação social e institucional
brasileira tem como eixo fundante e estrutural a realidade histórica e cultural promovida
pelo racismo, contexto expresso desde o modelo eurocêntrico que conformou as
universidades nacionais até os enfrentamentos contemporâneos, a exemplo da luta pela
efetivação da Lei nº 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino da história e cultura
africana e afrobrasileira nas instituições de ensino público e privado, além da disputa
pelo reconhecimento de formas plurais de transmissão de saberes.
Este trabalho visa discutir o papel da educação jurídica no enfrentamento ao
epistemicídio, entendendo este como um desdobramento do genocídio cultural que nega
a alteridade e possibilidade existencial do Outro no que tange à produção do discurso de
conhecimento, refletindo, a partir da trajetória do Programa Direito e Relações Raciais,
programa de extensão da Universidade Federal da Bahia, um projeto de universidade
onde se construa bases sólidas para afirmação da multiculturalidade dentro do campo
acadêmico, o enfrentamento às opressões e violências sistêmicas que permeiam a
realidade universitária e a efetivação dos valores essenciais da democracia, como
respeito à dignidade da pessoa humana, respeito à diversidade e pluralidade e máxima
efetividade dos direitos fundamentais.
2. Estado, Racismo e Relações Raciais: Os discursos de dominação racial no Brasil
e a formação dos centros de saber científico.
O contexto posterior à independência do Brasil do julgo colonial português
impôs à elite intelectual local a necessidade de elaboração de teses que contribuissem
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para a construção do novo Estado-Nação, desafio que perpassava desde a organização
administrativa e alocação da nova burocracia pública até a disseminação de valores que
assegurassem a autonomia e estabilidade dos novos dirigentes perante a população e a
comunidade internacional.
Dentro dessa meta, a formação de uma identidade nacional, do elo
intersubjetivo que garantisse a legitimidade do sistema político em vigor era
fundamental, visto que a afirmação deste sentimento demonstrava o desejo de um
determinado povo em promover o desenvolvimento social, econômico e cultural de um
país, aliando a ideia de progresso com unicidade cultural. Contudo, é preciso dizer que a
formação populacional apresentou características coerentes com o seu próprio processo
de constituição enquanto colônia, ou seja, estrutura política que estava à serviço da
exploração econômica da metrópole portuguesa à produção agropecuária em todas as
suas potencialidades, como era característico do capitalismo comercial vigente.
A tradição historiográfica brasileira costuma demarcar a influência das
civilizações negro-africanas no projeto nacional brasileiro a partir do processo de
escravização e da chegada dos distintos povos escravizados1 através do que se
convencionou chamar de tráfico negreiro.
Tráfico negreiro2 era a atividade comercial desenvolvida sob o controle jurídico,
político, econômico e ideológico dos colonizadores durante os quatro séculos de
existência da escravidão, através do qual se empreendeu o sequestro, a desumanização,
mercantilização e a consequente diáspora forçada das comunidades negro-africanas para
servirem de mão-de-obra não remunerada nas terras recém ocupadas. Munanga e
Gomes (2004) assinalam que o tráfico negreiro é compreendido, pela sua amplitude e
duração, como:
uma das maiores tragédias da história da humanidade. Ele durou
séculos e tirou da África subsaariana (região do continente africano
abaixo da linha do deserto do Saara) milhões de homens e mulheres
1 Neste trabalho, utilizar-se-á o termo escravizado para referir-se a toda aquela pessoa que, privada de
sua condição de humanidade, do gozo de direitos civis e assujeitada ao regime normativo da escravidão,
em detrimento do termo convencional “escravo”, por entender que este denota uma característica
essencializadora que não condiz com o quadro histórico da constituição político-jurídica africana. 2 Ressalva-se que no Brasil o tráfico negreiro foi legalmente proibido através da Lei de 7 de Novembro de
1831, onde erão impostas aos chamados importadores penas corporais e multa de 200.000 réis a serem
cobrados por cada escravizado encontrado na embarcação. Contudo, a efetividade do fim desta atividade
se deu apenas na segunda metade do século XIX, mediante pressões internacionais, o que acarretou, no
plano legislativo interno, a edição da Lei Eusébio de Queirós.
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que foram arrancados de suas raízes e deportados para três
continentes: Ásia, Europa e América. (...) Os europeus foram os
maiores responsáveis pelo tráfico transatlântico, através do qual 40 a
100 milhões de africanos foram derportador para a Europa e América.
(MUNANGA; GOMES, 2004, pg. 18-19)
O debate sobre os efeitos da escravidão e o seu regime jurídico não serão alvo
desse texto. No entanto, apontá-los enquanto dado histórico para entender a construção
do ideário social brasileiro é elementar para iniciar o debate sobre o que está por trás do
conjunto de desigualdades que estão colocadas para a população negra ainda hoje e
desafiar o discurso que atribui à escravidão a responsabilidade plena sobre as
desigualdades sociorraciais que ainda vigem mesmo quando se vive uma democracia
constitucional que estende a tutela protetiva de direitos fundamentais à população negra.
Segundo Moore (2007), a resposta para tais inquietações foi construída por uma
realidade histórica e cultural anterior ao próprio processo de escravização a que foi
submetida as civilizações negro-africanas durante a modernidade. Ele aponta que foi o
racismo, fenômeno que está presente na raiz dos arranjos e pactos sociais vivenciados
em praticamente todos os países do mundo, a razão para o desenvolvimento dessas
desigualdades e negação da posição negra como sujeito político ativo, dotado de
subjetividade, considerando-o como a “última fronteira do ódio no planeta” (MOORE,
2007, p. 280).
Entende-se por racismo o sistema de poder que a partir da defesa da
superioridade de um determinado grupo racial em detrimento do “outro”, e tomando o
fenótipo (conjunto de características físicas externas, como a cor da pele, o formato do
nariz ou a textura do cabelo) como mecanismo de identificação do seu alvo, empreende
uma série de restrições ao gozo da dignidade da pessoa humana, direitos, oportunidades
e condições de desenvolvimento pleno de toda uma coletividade racial ou grupo étnico.
A presença do racismo estrutural enquanto elemento caracterizador da sociedade
brasileira é um eixo fundamental para entender a constituição de um fenômeno parte
dele, que é o racismo institucional, onde a produção da desigualdade racial se dá pelo
conjunto de ações ou omissões sistemáticas por parte de instituições públicas e/ou
privadas no processo de acesso/negação à direitos e oportunidades para a população
negra. No Brasil, o racismo institucional, malgrado o fim do regime formal da
escravidão em 1888 e o advento do regime republicano no ano seguinte, não deteve a
produção normativa (legislativa e administrativa) contra a restrição de direitos para a
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população negra. Essa característica esteve presente claramente no ordenamento
jurídico brasileiro através de normas jurídicas, como por exemplo a que instituia a
obrigatoriedade dos templos de religiões de matriz africana pedirem autorização ao
Poder Público para poder realizar suas atividades litúrgicas. Este cenário de
discriminação negativa começa a se alterar com a promulgação da Constituição Federal
de 1988, onde, cumulado a tratados e convenções internacionais e legislações espassas
anteriores ao novo texto constitucional, constituiu-se um microssistema jurídico de
enfrentamento ao racismo e de promoção da igualdade racial.
2.1 O pós-abolição e o branqueamento como tática de extermínio racial.
O fim da escravidão após 400 anos, como afirma Paixão e Gomes (2010), legou
às mais distintas sociedades, inclusive o Brasil (que foi um dos últimos países a aboli-la
e que abarcou cerca de 40% de todos negros africanos escravizados), um desafio às
populações negras remanescentes no que tange à sobrevivência no contexto pós-
emancipatório, sofrendo as agruras do desemprego, da fome e da perseguição policial,
assim como para as elites intelectuais, que entre o final do século XIX e início do século
XX, começaram a empreender novas formas de garantir o desenvolvimento econômico
ao mesmo tempo em que visavam apagar a “mancha negra” do povo brasileiro.
A abolição não foi acompanhada de políticas públicas que garantissem
terras, educação e direitos civis plenos aos descendentes de escravos e
libertos. Pelo contrário, políticas públicas urbanas e higienistas
refundaram as diferenças sob novas bases sociais e étnicas. (PAIXÃO;
GOMES, 2010, pg. 47)
Uma das primeiras e mais salutares ferramentas que serviram como instrumento
de dominação racial foi a política de embranquecimento, estimulada pelo Estado e
aplaudida pelas elites intelectuais. Abdias do Nascimento (1978) nos retrata que desde o
período da escravidão o branqueamento da população negra3 se dava por meio da
utilização do estupro de mulheres negras escravizadas ou libertas por homens brancos,
no uso de sua autoritas enquanto perfomance dominante, gerando o processo de
3 Na obra homônima à referência, Abdias do Nascimento defende o branqueamento como uma ferramenta
do projeto formulado pela elite política branca brasileira era de concretizar o extermínio deliberado do
grupo racial negro (com ênfase nos negros-africanos), demonstração de como a cultura estatal brasileira
está arraigada pelo racismo institucional, que não encara a população negra como sujeitos de direito, e
utilizando de instrumentos muito semelhantes aos hodiernos, como a morte física pelas forças policiais.
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mulatização, que impedia o crescimento da população negro-africana. Uma outra faceta
no uso da mestiçagem enquanto ferramenta para prática genocida do negro brasileiro,
segundo ele, seria o estímulo à uniões entre homens negros e mulheres brancas.
Afora as relações socioafetivas, que são abarcadas pelos ditames políticos, o
campo institucional racista brasileiro, através da política imigratória, tentou repovoar o
território brasileiro a partir de políticas de ação afirmativa destinadas à imigrantes
europeus, que fugiam das guerras em busca de trabalho e segurança. Diz Nascimento:
Fato inquestionável é que as leis de imigração nos tempos pós-
abolicionistas foram concebidas dentro da estratégia maior: a
erradicação da “mancha negra” na população brasileira. Um decreto
de 28 de junho de 1890 concede que: É inteiramente livre a entrada,
nos portos da República, dos indivíduos válidos e aptos para o
trabalho (...) Excetuados os indígenas da Ásia ou da África, que
somente mediante autorização do Congresso Nacional poderão ser
admitidos. (NASCIMENTO, 1978, pg. 71)
Todavia, as técnicas de branqueamento da população não foram as únicas
estratégias de efetivação do processo de genocídio, sendo, posteriormente,
complementadas com a produção de um discurso de suspeita na construção do sentidos
sobre a vida das comunidades negras no século XX.
2.2. A formação jurídica brasileira: o bacharelismo humanista e as teorias raciais
nas primeiras décadas do século XX.
O discurso normativista tradicional vem, nas últimas décadas, abrindo espaço
para novas vertentes da história do direito, reconhecendo-a como uma importante
ramificação da ciência jurídica que, na esteira da proposta metodológica da história,
objetiva estudar o conjunto de experiências jurídicas do passado, questionando as
origens do fenômeno do direito, das mentalidades, de seus intelectuais, instituições e,
inclusive, questionando as bases colocadas pelo positivismo jurídico, ampliando a
necessidade de estudar a historicidade dos fenômenos fora de perspectivas anacrônicas,
legalistas e universalizantes, ampliando os sentidos sobre o que é o direito (FONSECA,
2013).
Nesse diapasão, entende-se que o início da cultura jurídica brasileira se deu com
a instalação dos primeiros cursos jurídicos criados no Brasil através da Lei de 11 de
agosto de 1827, instrumento pelo qual o então Imperador Dom Pedro I instituiu nas
províncias de São Paulo e Olinda os centros de formação em Ciências Jurídicas e
Sociais. A tomada de posição pelo estabelecimento do ensino superior jurídico como
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prioridade da política educacional do Estado logo após a independência do status de
colônia é bem representativo, segundo Junqueira (1993), pois apresenta o projeto
político representado pelo que se chamou de bacharelismo jurídico.
O Bacharelismo jurídico foi o grande modelo de ensino jurídico instalando no
século XIX, cuja formação intelectual era voltada à uma perspectiva filosófico-
humanista, de pouco contato com a técnica-jurídica, e voltada à preparação de seu corpo
discente para desempenhar profissionalmente tarefas políticos-administrativas dentro da
nova burocracia estatal do Império, que prescindia de autonomia do direcionamento
intelectual da metrópole (Falcão, 1994; Venancio Filho, 1982; Adorno, 1988 apud
JUNQUEIRA, 1993, pg.18). Esta motivação, guardada as devidas proporções, não foi
diferente na guinada do Império para a República, onde através da Reforma Benjamim
Constant (Decreto 1231-H de 31 de outubro de 1891), já sob os auspícios da influência
do positivismo, o Estado promoveu a descentralização progressiva do ensino jurídico
pelo território nacional, autorizando e subvencionando, inclusive, o funcionamento de
instituições de ensino superior chamadas de “não-officiaes”, visto que eram providas
por particulares, sem intervenção do poder público, mas cumprindo mesmo regime
curricular das instituições públicas, sendo reconhecido as mesmas prerrogativas delas.
Contudo, cabe salientar que o bacharelismo jurídico não foi a única
característica da formação jurídica desse período. Nas primeiras três décadas do século
XX, como aponta o acúmulo bibliográfico sobre a questão racial nas últimas décadas, a
tradição acadêmica brasileira estava reverberando e produzindo conhecimento sob a
influência de linhas de pensamento que colocavam o negro em uma condição de
subalternidade e que foi desdobramento de diversos acontecimentos históricos violentos
na formação da identididade nacional, a exemplo dos efeitos promovidos pelo racismo
científico e do mito da democracia racial, na acepção freyriana.
2.2.1 Racismo científico
A partir das ideias da eugenia desenvolvidas na Europa pelo Conde Arthur de
Gobineau ou ainda dos estudos da antropologia criminal desenvolvidos na Itália por
Cesare Lombroso, no século XIX, a ciência moderna provocou o resgate da categoria
“raça”, muito utilizada pela Biologia, para demarcar o conjunto de seres que
compartilham de características genéticas próximas, determinantes para o seu
desenvolvimento.
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No contexto social, a utilização da raça enquanto conceito de hierarquização de
diferentes seres humanos foi parte do processo de desumanização dos negros-africanos
realizado pela escravidão e fundamento da exploração da mão-de-obra negra. Mais à
frente, a raça foi fundamento para a construção de uma série de discursos de suposta
cientificidade que atestavam, através do uso de técnicas como medição do crânio e de
outras partes do corpo, e da análise do comportamento das pessoas negras,
desembocando em uma série de teorias raciais que foram utilizadas na Academia e em
políticas públicas que afirmavam a degeneração da raça negra, considerando esta como
dotada de uma criminalidade e imoralidade inata à sua compleição física, psicológica e
social, gerando para o Estado, a partir do seu poder de polícia, a necessidade de envidar
esforços para reprimir e conter as manifestações da população negra que supostamente
ameaçavam a estabilidade social branca.
Acerca de Lombroso e sua contibuição para consolidação do racismo científico
enquanto ferramenta assecratória dos prinvilégios raciais, diz Gould que
Lombroso engendrou praticamente todos os seus argumentos de forma
a torná-los imunes à contestação; portanto, do ponto de vista
científico, eram todos inócuos. Embora mencionasse abundantes
dados numéricos para conferir um ar de objetividade à sua obra, esta
continuou sendo tão vulnerável que até mesmo os membros da escola
de Broca se opuseram à sua teoria do atavismo. Toda vez que
Lombroso topava com um fato que não se enquadrava nessa teoria,
recorria a algum tipo de acrobacia mental que lhe permitisse
incorporá-lo ao seu sistema. (GOULD, 1999, pgs. 124-125)
O comportamento de Lombroso não era isolado. Como ele, diversos teóricos de
outras áreas do conhecimento científico empenharam energia fossem degradantes para
alguns grupos sociais e raciais. Através de meios como a imprensa, suas elaborações
teóricas ganharam repercussão no meio social e fizeram com que os discursos
pseudocientíficos mais aviltantes se tornassem senso-comum e, portanto, gozassem de
credibilidade social quase incontestável. A educação jurídica brasileira no início do
século XX, a exemplo, utilizou dessas correntes não só na medicina legal e na
criminologia, mas em todos os campos em que podia formar sujeitos para operar as
instituições jurídicas na lógica da biopolítica de que trata Foucault. É esse contexto que
deriva uma série de comportamentos e de controle sobre os corpos e todas as dimensões
da vida das pessoas negras no Brasil, a exemplo do histórico de perseguições à terreiros
de candomblé, ao exercício da capoeira, a negação de acesso à educação pública, a
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marginalização e construção de barreiras simbólicas de acesso aos espaços centrais e
privilegiados urbanos (processo descrito pela escritora Carolina Maria de Jesus como o
lançamento da população negra nos “Quartos de Despejo”).
Hodiernamente, mesmo com os estudos que comprovaram a inexistência de
distinções severas entre os seres humanos que justifiquem a defesa de que o homo
sapiens sapiens possuiria gradações relevantes na sua constituição, o conceito de raça é
reconhecido como um importante marco na construção identitária da população negra e
para a demarcação de espaço na luta por direitos, como Moore (2007) nos aponta:
Os avanços da ciência nos últimos cinqüenta [sic] anos do século XX
esclarecem um grave equívoco oriundo do século XIX, que
fundamenta o conceito de “raça” na biologia. Raça não é um conceito
que possa ser definido segundo critérios biológicos. Porém, raça
existe: ela é uma construção sociopolítica, o que não é o caso do
racismo, um fenômeno que antecede sua própria definição.”
(MOORE, 2007, pg. 38)
2.2.2 Mito da democracia racial
Gilberto Freyre em 1936, a partir da sua obra Casa Grande e Senzala, instaura
uma nova abordagem de análise das relações raciais no Brasil. Visualizando o declínio
do racismo científico e a inefetividade das políticas eugenistas, que não conseguiam
efetivar o decréscimo da população negra, Freyre retorna a um dos eixos centrais da
teoria do branqueamento (trabalhado neste texto em passagens anteriores): a
miscigenação. Substituindo a ideia de raça por cultura, defenderá que a reunião de três
matrizes civilizatórias distintas (brancos europeus, indígenas e negros-africanos) na
conformação do povo brasileiro ocorreu a partir de uma correspondência sexual
característica da harmonia em que a formação social brasileira se deu.
Pacheco (2008), em sua tese doutoral “Branca para casar, mulata para f...., negra
para trabalhar: escolhas afetivas e significados de solidão entre mulheres negras em
Salvador, Bahia”, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
da Unicamp, afirma, segundo Freyre, que a miscigenação:
Foi propiciada devido a três fatores: a capacidade de mobilidade, de
miscibilidade e de aclimatabilidade dos colonizadores portugueses.
Tal capacidade explicaria a “facilidade” destes em se adaptar aos
trópicos, herdadas da posição geográfica entre duas culturas – a
européia [sic] e a africana – as quais teriam influenciado no seu
caráter “indefinido” e “flexível, tornando-os propensos à
miscigenação. Aliado a estes fatores, a escassez de mulheres brancas
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possibilitaria uma maior reciprocidade entre as mulheres escravas e os
colonizadores portugueses. (PACHECO, 2008, pg.59)
Lélia González (1984) contesta a posição de Gilberto Freyre, apontando o
racismo e o sexismo como eixos estruturais para se compreender a trajetória da cultura
brasileira, sobretudo no que tange ao conjunto de violências e estereótipos de
hipersexualização e subordinação das mulheres negras ao longo do tempo. Um ponto
crucial trazido por ela é a romantização feita por Freyre sobre o processo de
miscigenação, dando pouco relevo ao estupro como ferramenta de opressão e
asseguramento da dominação e invisibilizando o conjunto de resistências articuladas
pelas mulheres negras ao escravismo. Como resposta à esse conjunto de construções
discursivas sobre o legado africano e afrobrasileiro, Lélia coloca o desafio de ocupação
negra sobre os mais diferentes espaços públicos e privados, com vista a fazer com que a
sociedade brasileira, por dentro, possa pensar a si própria e o legado do racismo nas
relações sociais e identitárias da nação, além da emancipação e articulação política dos
outrora colonizados dos seus colonizadores.
MOORE (2007) indica que a democracia racial é, em verdade, uma
“mitoideologia” que impinge uma insensibilidade nos seres humanos e o impulsiona a
negar o Outro. Com a mitoideologia da democracia racial, hoje, a maioria das teorias e
conhecimentos ditos científicos que eram explícitos nessas investidas racistas-
genocidas-eugenistas, hoje são escamoteadas nos discursos da universalidade; mas o
universal continua sendo o padrão epistemológico que sempre esteve em vigor e tudo
que dele difere, permanece sendo o Outro.
2.2.2. As faculdades de direito e o projeto de epistemicídio no Brasil.
O Brasil, atualmene, segundo a Ordem dos Advogados do Brasil, possui mais
1.300 cursos de direito em todo o território nacional. Este cenário, reflexo do processo
de mercantilização da educação pública de ensino superior advindo das políticas
neoliberais dos anos 1990, à primeira vista, parece ser um fator positivo de
democratização do acesso ao conhecimento jurídico, elemento salutar para a construção
de um projeto de cidadania plena, sem tutelas. Todavia, esta realidade esboça mais um
desafio posto à construção de uma cultura jurídica que fuja aos moldes tradicionais e ao
processo de hermetização, tecnicismo e dogmatização do fenômeno jurídico
apresentado por Junqueira (1994), ao longo do século XX.
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Contrapondo as bases defendidas pelo bacharelismo humanista, a atual formação
jurídica contempla excessivamente o eixo profissionalizante e os dilemas postos pela
dogmática jurídica, pouco se preocupando com a construção de vetores epistemológicos
e metodológicos que debatam o potencial de cientificidade do direito perante o conjunto
de outras áreas de conhecimento; e que questionem o paradigma de cultura jurídica que
burocrática, liberal, patrimonialista e acientífica (Junqueira, 1994). Contudo, o que se
pretende discutir neste ponto, para além de uma crítica ao regime das políticas
educacionais contemporâneas, é como essa formação jurídica vem sendo um
instrumento para o desenvolvimento do epistemicídio no Brasil.
Boaventura de Sousa Santos, em um texto intitulado “Da ideia de universidade à
universalidade de ideais”, publicado em 1989, afirma que o modelo de universidade
vigente vem, progressivamente, recebendo maiores exigências por parte da sociedade ao
mesmo tempo em que as políticas de financiamento por parte do Estado estão ficando
cada vez mais constritas (realidade não muito diferente da dinâmica política brasileira),
demandando desta instituição a reflexão sobre uma reforma profunda de seu projeto.
Com objetivo perene de produção e construção do conhecimento (e, dentro dos
moldes sacralizados do paradigma científico dominante, a própria produção da verdade
sobre um dado objeto, respeitando os princípios de distanciamento e neutralidade
valorativa em relação à ele), Santos (1989) aponta que a partir dos questionamentos
realizados durante as movimentações políticas da década de 1960, os fins principais da
universidade passaram a ser “a investigação, o ensino e a prestação de serviços” (pg.13).
No entanto, o aumento radical da população universitária, a concepção utilitarista do
conhecimento (fomentada pelo capitalismo) e a expansão do ensino superior provocou
a explosão de funções que, muitas vezes, colidem entre si. A falta de uma gestão
adequada desta crise, segundo o sociólogo, provocou a geração de três crises que
envolvem a universidade: primeiramente, uma crise de hegemonia, a cada vez que uma
condição social não é por ela resolvida, não sendo considerada necessária, única e
exclusiva, a exemplo da manutenção da ideia da universidade como um lugar de
produção de alta cultura e conhecimento científico (considerado como mais válido que
as demais formas de produção de saber); uma crise de legitimidade, agravada a cada vez
que os objetivos coletivamente acordados deixam de ser cumpridos; e, em terceira via,
uma crise institucional, manifestada a cada momento em que se tentam aplicar modelos
de outras organizações para o gerenciamento das demandas das universidades.
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Malgrado essa importante reflexão, no caso do Brasil, outros elementos
precisam ser associados a essa discussão, afinal de contas, já foi apontado neste trabalho
que as instituições brasileiras (e a universidade é uma delas) apresentam em sua
estrutura um elemento central nas relações sociais: o racismo. O modelo de
universidade que foi implantado no Brasil, como assinala Vida (2008), segue uma linha
ideológica iniciada com a modernidade, sendo parte de um projeto universalista que
toma a experiência civilizacional branca europeia como “espaço de legitimação das
fantasias supremacistas etnocêntricas, chanceladas com a aura de cientificidade e
academicismo, responsáveis pela hegemonização civilizatória do planeta” (pg.01).
Aqui, a necessidade apontada pelas elites no processo de formação da
intelligentzia que assumiria os rumos da produção intelectual e de riquezas no país
“(...) desde o primeiro momento optou pelo caminho monoculturalista
e intolerante, diante de outros aportes civilizatórios e epistemológicos
legados pelos povos ameríndios e africanos. Prosseguiu sua missão
epistemicida, desqualificando as expressões civilizatórias ameríndias e
africanas, relegando-as a objeto de especulação pseudo-científica, e
rotulando-as como folclore e cultura popular. Assumiu, assim, uma
postura institucionalmente racista.” (VIDA, 2008, pg. 01)
A sociedade brasileira tem na sua formação ao menos três matrizes
civilizatórias, mas adotou apenas uma delas na centralidade da orientação de seus
pilares tradicionais. Com isso, tudo que não descende dessa matriz civilizatória ou por
ela não é legitimada (ou mesmo apropriada) não recebe validade social, política e
científica. Sendo a educação jurídica um meio de aprendizado para lidar com o
fenômeno do Direito, é essa mesma matriz civilizatória que foi eleita como a produtora
hegemônica do conhecimento jurídico. A hegemonia de uma matriz em detrimento das
demais mantém uma relação de colonialidade, conforme preleciona Quinjano:
No processo que levou a esse resultado, os colonizadores exerceram
diversas operações que dão conta das condições que levaram à
configuração de um novo universo de relações intersubjetivas de
dominação entre a Europa e o europeu e as demais regiões e populações
do mundo, às quais estavam sendo atribuídas, no mesmo processo,
novas identidades geoculturais. Em primeiro lugar, expropriaram as
populações colonizadas – entre seus descobrimentos culturais – aqueles
que resultavam mais aptos para o desenvolvimento do capitalismo e em
benefício do centro europeu. Em segundo lugar, reprimiram tanto como
puderam, ou seja, em variáveis medidas de acordo com os casos, as
formas de produção de conhecimento dos colonizados, seus padrões de
produção de sentidos, seu universo simbólico, seus padrões de
expressão e de objetivação da subjetividade. (QUINJANO, 2005, pgs.
110-111)
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Mas é Sueli Carneiro quem nos dará subsídios para definir, efetivamente, quais
são as bases e qual o modo de operação que compõem esta faceta do genocídio cultural
imposto à população cujas matrizes civilizatórias não se situam na Europa. Em sua tese
doutoral, defendida junto ao Programa de Filosofia da USP em 2005, Carneiro demarca
a existência de um dispositivo de racialidade, enquadrado na categoria de biopoder de
Michel Foucault, que, segundo ela, age sobre a sociedade brasileira como um
instrumento articulador de uma rede de elementos bem definida pelo
Contrato Racial que define as funções (atividades no sistema
produtivo) e papéis sociais, este recorte interpretativo localiza neste
cenário o epistemicídio como um elemento constitutivo do dispositivo
de racialidade/biopoder. (CARNEIRO, 2005, pg.96)
Carneiro (2005) visitará a obra de Boaventura de Sousa Santos, onde o
epistemicídio é analisado como um dos instrumentos utilizados pela colonialidade para
a manutenção da dominação racial de um grupo sob o outro, retirando a legitimidade de
outras formas de produção de conhecimento, assim como promovendo a negação do
Outro enquanto sujeito da produção de saber. Para ela, essa concepção sobre o
epistemicídio torna possível compreender o processo desenvolvido pela estrutura
colonial na destituição da racionalidade, da cultura e da civilização do Outro, cujo
apogeu, destaca, foi o racialismo do século XIX. Para Santos
o genocídio que pontuou tantas vezes a expansão européia [sic] foi
também um epistemicídio: eliminaram-se povos estranhos porque
tinham formas de conhecimento estranho e eliminaram-se formas de
conhecimento estranho porque eram sustentadas por práticas sociais e
povos estranhos. Mas o epistemicídio foi muito mais vasto que o
genocídio porque ocorreu sempre que se pretendeu subalternizar,
subordinar, marginalizar, ou ilegalizar práticas e grupo sociais que
podiam ameaçar a expansão capitalista ou, durante boa parte do nosso
século, a expansão comunista tanto no espaço periférico, extra-
europeu e extra-norte-americano, contra os trabalhadores, os índios, os
negros, as mulheres e as minorias em geral (étnicas, religiosas,
sexuais). (Santos apud Carneiro, 1995, pg. 328).
Contudo, Carneiro assinala que a própria experimentação do epistemicídio,
quando associado ao contrato racial vigente nas experiências societais pós-colonização,
persiste em uma certeira indulgência cultural, sobretudo através da negação de acesso a
uma educação de qualidade, pelo discurso de inferiorização da produção intelectual
negra, quando não do uso dos diferentes instrumentos de retirada de legitimidade da
pessoa negra enquanto produtora de conhecimento, além do rebaixamento cognitivo e
retirada da capacidade racional. Assim, para a população negra, o epistemicídio
14
apresenta-se como “uma forma de seqüestro [sic] da razão em um duplo sentido: pela
negação da racionalidade do Outro ou pela assimilação cultural que em outros casos lhe
é imposta.” (Carneiro, 2005, pg. 97). A negação da humanidade do outro ou a falta de
reconhecimento do seu potencial racional para a produção de um conhecimento válido
afirma a civilização branca europeia como hierarquicamente superior, homogeneizando
suas concepções sobre o que é o conhecimento e sobre como construí-lo, ainda que
dentro dos parâmetros do paradigma dominante, gerando a compreensão de que o Não-
Ser (o sujeito que não é apto a produzir o conhecimento) é o fundamento de legitimação
do Ser, imbuído de características como: autocontrole, cultura, desenvolvimento,
progresso e civilização (2005: 99-100). O epistemicídio se projeta sob o contexto social
de diversas maneiras que rearticulam e se metamorfoseiam. Essa realidade é essencial
para entender qual o seu modo de operação no sistema educacional brasileiro e na
produção de uma formação jurídica baseada em correntes teóricas e metodológicas
desenvolvidas no paradigma de dominação racial.
O crescimento do debate sobre os efeitos desse fenômeno na Universidade
brasileira cresceu na última década devido ao êxito da política de ações afirmativas em
educação, processo derivado das lutas do Movimento Negro brasileiro que sempre
encarou a Academia como uma importante trincheira da preservação de privilégios à
pessoas brancas. No caso da Universidade Federal da Bahia, que implantou o sistema de
reserva de vagas por cotas entre 2004 e 2005, hoje, a realidade da composição racial de
sua população discente saltou de 2% em 2001 para mais de 40%, um crescimento
vertiginoso e que vem impondo uma agenda que, como coloca Vida (2005) perpassa: a
efetivação e aplicação transversal da Lei Nº 10639/2003 nos currículos e programas
adotados pelos cursos; o enfrentamento ao monoculturalismo acadêmico e a negação do
protagonismo negro na escala de produção de conhecimento científico; as referências
bibliográficas e imposição de uma agenda teórica não condizente com os interesses dos
orientandos de pesquisa, além do desmantelamento do conjunto de simbologias que
compõem o imaginário institucional da universidade a partir do referencial eurocêntrico.
2.2.4. O Programa Direito e Relações Raciais da Universidade Federal da Bahia e o
projeto de uma educação jurídica antirracista e democrática.
Dentro dos processos políticos de contestação ao regime universitário durante as
movimentações da década de 1960, uma das questões mais levantadas era a necessidade
15
da Universidade assumir a sua responsabilidade social e contribuir com as demandas
advindas dos campos sociais e comunitários, seja na contribuição e/ou diminuição dos
conflitos sociais, seja na articulação dos seus saberes para a garantia de direitos.
Como assinala Santos (1989), dessas reivindicações, muitas delas feitas pelo
corpo estudantil, efetivou-se a discussão sobre os projetos de extensão universitária
como um mecanismo de diálogo e conexão entre a Universidade e a comunidade. Essa
abertura possibilitou à instituição dirimir o conjunto de críticas ao seu isolacionismo
purista e o reforço ao discurso de que a formação acadêmica tem de corresponder com
algum tipo de contrapartida ao conjunto de indivíduos que sustentam os seus custos.
Contemporaneamente, por disposição constitucional, a extensão constitui-se como um
dos pilares do chamado tripé universitário, completado pelo ensino e pela pesquisa.
Nesse cenário de disputa pela afirmação da relevância da extensão no campo da
formação jurídica está o Programa Direito e Relações Raciais. Criado em 2003 a partir
da articulação entre membros da comunidade negra dentro da Academia (estudantes e
um professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia), o PDRR,
como é conhecido, foi reconhecido pelo Departamento de Direito Privado da Faculdade
de Direito da Universidade Federal da Bahia. Ao longo de sua trajetória o PDRR
constituiu-se como um espaço de natureza transdisciplinar onde se desenvolvem
atividades de pesquisa, iniciação científica e extensão em torno da temática do Direito e
Relações Raciais.
A reflexão em torno do direito e as relações raciais se constitui num
campo novo na abordagem acerca do racismo e suas implicações na
sociedade brasileira. A ausência de preocupação acadêmica com o
assunto reflete o descaso político e a amplitude do mito da democracia
racial brasileira. Coloca-se, hoje, como desafio fundamental a
articulação entre o acúmulo experimentado no campo dos movimentos
negros e a tradição jurídico-institucional de resolução dos conflitos no
interior da sociedade. (PDRR, 2014, pg. 01)
O PDRR possui uma estrutura organizacional baseada no princípio da
autogestão e do estabelecimento da corresponsabilidade colegiada como pressuposto de
sua dinâmica administrativa, distribuindo seus membros em quatro grupos de trabalho:
Gestão e Articulação Institucional, responsável pelo gerenciamento e política de
comunicação com entidades públicas e privadas, ONG’s, movimentos sociais negros,
16
etc; Comunicação, cuja atribuição é administrar a política de marketing e socialização
de informações sobre o programa; Formação, cuja competência é a organização das
atividades de discussão teórico-política e técnico-jurídica; e Pesquisa, responsável por
administrar as linhas de pesquisa, orientar os pesquisadores no quantum sobre eventos
científicos, além de ministrar oficinas de formação metodológica.
Formado majoritariamente por pessoas negras, sobretudo estudantes que
ingressaram no curso de direito a partir da política de reserva de vagas pelo critério da
autodeclaração racial, o PDRR vem ao longo desses anos discutindo a presença negra
no espaço universitário, avaliando a experiência vivida no Brasil nesses últimos treze
anos, como a realização de conjunto de políticas de ações afirmativas na área de
educação, após décadas de lutas e reinvindicações promovidas pela comunidade negra,
que apontavam a inegável desigualdade racial no acesso ao ensino superior público e
privado.
Apesar do seu reconhecido sucesso, no que tange ao asseguramento da
pluralidade racial no acesso aos cursos de graduação, essas políticas ainda não
conseguiram reverter o fosso de ausência e invisibilização da produção negra nos
programas de disciplinas, sendo este um desdobramento do próprio epistemicídio. O
contexto das faculdades de Direito, ainda envolvidas em uma cultura jurídica
bacharelista e tecnicista, é anulação quase completa do debate racial transversalizado
por um estudo de institutos jurídicos e marcos normativos que restringem todo o
potencial discursivo, político e teórico do fenômeno jurídico ao estudo da norma
jurídica a partir de escolas doutrinárias europeias, em sua grande maioria.
O PDDR tem uma sistematização que pretende não isolar os sujeitos que dele
participam no ambiente acadêmico. Por isso, seus encontros são semanais, mas intercala
reuniões de formação com reuniões político-administrativas4. No encontros de formação
são discutidos textos que tratam da questão racial ou que, de modo reflexo, apresentem
contribuições para a temática. Nesses encontros, dois participantes, resguardada
prioritariamente a paridade de gênero, atuam como facilitadores da discussão,
realizando apresentações prévias do texto determindo. Os textos são divulgados com
4 Mesmo tendo como coordenador um professor da Faculdade de Direito, por questões burocrático-
institucionais, o seu funcionamento é gerido coletivamente.
17
antecedência por via das redes sociais para que haja leitura prévia e a discussão possa
ser melhor aproveitada.
O programa conta, atualmente, com a intervenção/participação sistemática de
professores e professoras Doutoras, Mestres, Mestrandos e Doutorando, além dos
graduandos e graduados nas mais diversas áreas do conhecimento de diversas
instituições de ensino que exorbitam a redoma da Faculdade de Direito da UFBA. Essa
heterogeneidade implica num maior amadurecimento acadêmico e intelectual de todos
os participantes posto que não há hierarquização nas participações, sendo as discussões
todas operacionalizadas de forma horizontal. São elegíveis à facilitadores dos textos
todo e qualquer participante que se disponibilize, dos graduandos aos Doutores e
Doutoras. Essa dinâmica não hierarquizada promove, inclusive, um intercâmbio
bastante rico entre estudantes de graduação e pós-graduação, algo que a própria
Universidade estimula, mas faz restritamente por meio do tirocínio docente, imputando
uma verticalidade que não colabora como deveria para o amadurecimento de todos os
envolvidos. Isto cria uma realidade geradora de algumas distorções sobre a concepção
do que é uma Universidade, a docência e a vida acadêmica.
Com o fomento a diversas discussões que são silenciadas dentro das instituições
de ensino jurídico, diversas pesquisas também são iniciadas e submetidas a eventos
científicos para apresentação, tendo logrado diversos êxitos na aceitação e repercussão
dos resultados. No mesmo sentido, o GT de Pesquisa fica atento aos eventos científicos
que ocorrem no país, estimulando e facilitando o acesso às informações para os
participantes e, quando possível, inscrevendo Grupos de Trabalho para recepcionar e
discutir o Direito e as Relações Raciais.
O Programa ainda colabora com o acesso dos membros aptos aos processos de
seleção de pós-graduação stricto sensu, com a disponibilização dos membros mais
experientes na trajetória acadêmica para auxiliar nos estudos para as provas e também
para a construção dos projetos de pesquisa. Esse ano de 2016, por exemplo, quatro
membros elegíveis à acessar o mestrado foram selecionados, dois para a Universidade
de Brasília e dois para a própria Universidade Federal da Bahia.
Com esses mecanismos, o PDRR vem atuando no debate sobre o direito e a
construção de uma formação jurídica que incorpore, efetivamente, os valores de
18
pluralidade de ideias e reconhecimento do Outro em toda a sua potencialidade
produtiva, como sujeito de produção de conhecimento jurídico, que encare esse desafio
como elemento essencial para máxima efetivação dos direitos fundamentais, sobretudo
o direito à educação da população negra que acessa o espaço universitário, mas que tem
a sua criatividade e potencial cognitivo ceifado pela cultura jurídica epistemicida,
positivista e conservadora. O Direito não pode mais ser encarado como um objeto a ser
vivido por um grupo restrito de pessoas. Ele, em verdade, é um grande mecanismo de
efetivação da cidadania, sobretudo em um contexto social onde a racialidade, o gênero,
a classe e as relações de territorialidade impinge à população negra um grau de
violações muito grande, como é próprio do racismo institucional.
Não podemos olvidar do contexto colonial e escravocrata em que esse educação
jurídica emergiu no país, circundado pela recente independência da metrópole, mas
ainda com todos os seus alicerces políticos e comportamentais fincados na relação de
colonialismo o que, na modernidade, se constituiria em colonialidades do poder-saber.
A Universidade e o ambiente acadêmico tem se mostrado como ambiente hostil à
presença negra, sobretudo com o advento das ações afirmativas que impulsionaram a
massificação desses corpos negros nesses lugares que lhes eram interditos. Enquanto era
exceção, ou uma "mente negra brilhante" no mar alvo das intelectualidades
hegemônicas, havia o racismo institucional, as discriminações subjetivas, mas nada que
não pudesse recrudescer quando os grupos contramajoritários fossem mais vistos.
O epistemicídio como categoria de morte da própria essência civilizatória de um
grupo, se perfez através da negação de diferentes formas de conhecimento produzidos
pelos grupos dominados e, em sua esteira, de seus integrates enquanto sujeitos de
conhecimento (Carneiro, 2005). Não se pode negligenciar os aspectos de biopolítica
imbricados nessa concepção de epistemicídio, a interação inescusável de um biopoder
que possibilita o controle sobre as vidas e a regulação dos sujeitos. O controle do
conhecimento e a exclusividade no domínio das verdades científicas (que se tornam, em
algum momento, tambpem sociais), implicam na subjugação de corpos e
subalternização de capacidades intelectuais.
Importante, nesse ínterim, destacar que o epistemícidio está no bojo de uma
tragédia (não casual) ainda maior e melhor elaborada que é o genocídio de dois povos,
indígena e negro-africana, e o Direito foi importante criador dessas mortes ao
fundamentar os regimes de escravidão, servidão e mesmo as diversas violências. Hoje, o
19
Direito permanece servindo a essas mortes, ao relegar diversas questões caras às
comunidades negras e indígenas à invisibilidade travestida de universalidade ou, como
aponta Boaventura de Sousa Santos (2003), "paradigma dominante" que entrou em crise
na pós-modernidade, mas que todos aguardam que haja a imersão de um novo, como se
fosse necessário colocar na crista do mundo, um novo centro de domínio, que
provavelmente não irá emergir de matrizes e grupos civilizatórios ainda subalternizados.
3. Conclusão
O epistemicídio se apresenta como uma das mais incisivas formas de atuação do
racismo na estrutura da sociedade brasileira, racismo este que, tal como outros vetores
de opressão, tem a capacidade de transmutar-se para permanecer em vigor, mantendo as
relações hierarquizadas com outros tons, até mesmo dos constitucionalismos
emergentes, todos democráticos – nele coube a emersão da lúdica democracia racial,
realizando não só o silenciamento do Outro, mas a progressiva morte de toda uma teia
de conhecimentos e saberes advindos de outras matrizes culturais.
O que está posto para a formação jurídica e o quadro estrutural da universidade
brasileira é a sua refundação, é uma ampla e profunda reforma de suas bases
epistemológicas, teóricas, metodológicas e simbólicas, reforma esta que lhe proporcione
aprender com a diversidade e a pluralidade cultural dos diversos agentes coletivos que
lhe integram e lhe constroem. O reconhecimento às distintas formas de produção de
conhecimento e a construção de uma relação comunitária que subsidie o enfrentamento
ao racismo e as variadas violências e sistemas de poder que estruturam toda a sociedade
brasileira não será alcançada se continuarmos nos moldes formais de tutela do discurso
como se os sujeitos negros não fossem capaz de falar por si.
É necessário possibilitar às populações marginalizadas o contínuo acesso à
esfera pública institucional, a Universidade, as faculdades de Direito e aos espaços onde
a produção de saber sobre aquilo que regerá a vida da comunidade está sendo
produzido. A popularização do acesso e produção do direito, além da sua demarcação
enquanto um objeto cultural que tem uma cor/raça, um gênero, um lugar de fala
significa, não obstante, o caminhar para o redimensionamento do lidar com as outras
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matrizes civilizatórias que construíram o país, autonomizando-as e permitindo que elas
possam se expressar em toda a sua potencialidade.
O PDRR, neste processo, tem apontado algumas ações para a desmobilização do
epistemicídio na educação jurídica à medida que não somente incita a leitura de
diversos autores/acadêmicos negros e negras que o tecnicismo racializado e dogmatismo
jurídicos invisibilizam, mas, também, impulsiona aos seus participantes a também
produzirem e criarem trajetória acadêmica discutindo as relações raciais, eixo
imprescindível para uma educação em direitos humanos e para a busca da verdadeira
acepção de democracia num país racializado como o Brasil; a desconstrução do discurso
formalista e universalizante do direito, que desconhece e esvazia as categorias analíticas
da interseccionalidade e parte de pressupostos hegemônicos para reflexão da vida; à
revolução do panorama de técnica-jurídica considerada neutra, sobretudo do ponto de
vista de raça-gênero-classe social; e o enfrentamento à cultura jurídica e universitária
brasileira, que cada vez mais tem o seu potencial de violência interseccional desvelado
pelo grave adoecimento de seus integrantes e por diversas denúncias. É na atribuição de
legitimidade ao discurso que o Outro enuncia que será possível construir novas bases
epistemológicas que levem a sociedade brasileira a efetivar o reconhecimento da
população negra como amparada de dignidade humana e de potencialidade de
participação na vida política e social do país, promovendo o alcance do projeto de
democracia tanto esperado.
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