a educação jurídica na desmobilização do epistemicídio: o

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1 GT3: Educação em Direitos Humanos e Processos de Democratização/Redemocratização A Educação Jurídica na desmobilização do epistemicídio: o caso do Programa Direito e Relações Raciais na Universidade Federal da Bahia. Autor: Vitor Luis Marques dos Santos Universidade Federal da Bahia - UFBA E-mail: [email protected] Coautora: Gabriela Batista Pires Ramos Universidade Federal da Bahia UFBA E-mail: [email protected] Resumo: O presente trabalho visa investigar o papel da educação jurídica no enfrentamento ao epistemicídio vigente dentro do modelo universitário brasileiro, tomando como estudo de caso o Programa Direito e Relações Raciais da Universidade Federal da Bahia. Para tanto, com apoio no conjunto de narrativas sobre as relações raciais no Brasil, analisará o processo constituição da relação entre o Estado e o fenômeno do racismo, entendendo este como uma realidade histórica e cultural que estabelece uma hierarquia racial a partir do fenótipo. Assim, preocupado em compreender o lugar da população negra na construção do ideário de formação da sociedade brasileira, tomando como base o pós-abolição, discutirá os efeitos institucionais e políticos das teorias do branqueamento, do racismo científico e do mito da democracia racial na sedimentação de uma assimetria racial, desembocando em desigualdades sistêmicas. No bojo da discussão sobre a formação da cultura jurídica nacional, percebe como a branquitude cruzada com o bacharelismo jurídico e o patrimonialismo subisidiu ao racismo institucional elementos para sedimentação de uma narrativa jurídica positivista e baseada em um monoculturalismo eurocêntrico, que, como característica do paradigma de universidade vigente, conforma uma vivência acadêmica onde o epistemicídio se faz presente. Para efeitos deste artigo, compreende- se como epistemicídio o processo desenvolvido pela estrutura colonial na destituição da racionalidade, da cultura e da civilização do Outro, cujo apogeu, destaca, foi o racialismo do século XIX. Ainda, apresenta a experiência do Programa Direito e Relações Raciais da Universidade Federal da Bahia como um projeto que inteciona refletir o que está consolidado enquanto formação jurídica e o quadro estrutural da universidade brasileira, defendendo a sua refundação e uma ampla reforma de suas bases epistemológicas, teóricas, metodológicas e simbólicas, reforma esta que lhe proporcione aprender com a diversidade e a pluralidade cultural dos diversos agentes

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GT3: Educação em Direitos Humanos e Processos de Democratização/Redemocratização

A Educação Jurídica na desmobilização do epistemicídio: o caso do Programa

Direito e Relações Raciais na Universidade Federal da Bahia.

Autor: Vitor Luis Marques dos Santos

Universidade Federal da Bahia - UFBA

E-mail: [email protected]

Coautora: Gabriela Batista Pires Ramos

Universidade Federal da Bahia – UFBA

E-mail: [email protected]

Resumo:

O presente trabalho visa investigar o papel da educação jurídica no

enfrentamento ao epistemicídio vigente dentro do modelo universitário brasileiro,

tomando como estudo de caso o Programa Direito e Relações Raciais da Universidade

Federal da Bahia. Para tanto, com apoio no conjunto de narrativas sobre as relações

raciais no Brasil, analisará o processo constituição da relação entre o Estado e o

fenômeno do racismo, entendendo este como uma realidade histórica e cultural que

estabelece uma hierarquia racial a partir do fenótipo. Assim, preocupado em

compreender o lugar da população negra na construção do ideário de formação da

sociedade brasileira, tomando como base o pós-abolição, discutirá os efeitos

institucionais e políticos das teorias do branqueamento, do racismo científico e do mito

da democracia racial na sedimentação de uma assimetria racial, desembocando em

desigualdades sistêmicas. No bojo da discussão sobre a formação da cultura jurídica

nacional, percebe como a branquitude cruzada com o bacharelismo jurídico e o

patrimonialismo subisidiu ao racismo institucional elementos para sedimentação de uma

narrativa jurídica positivista e baseada em um monoculturalismo eurocêntrico, que,

como característica do paradigma de universidade vigente, conforma uma vivência

acadêmica onde o epistemicídio se faz presente. Para efeitos deste artigo, compreende-

se como epistemicídio o processo desenvolvido pela estrutura colonial na destituição da

racionalidade, da cultura e da civilização do Outro, cujo apogeu, destaca, foi o

racialismo do século XIX. Ainda, apresenta a experiência do Programa Direito e

Relações Raciais da Universidade Federal da Bahia como um projeto que inteciona

refletir o que está consolidado enquanto formação jurídica e o quadro estrutural da

universidade brasileira, defendendo a sua refundação e uma ampla reforma de suas

bases epistemológicas, teóricas, metodológicas e simbólicas, reforma esta que lhe

proporcione aprender com a diversidade e a pluralidade cultural dos diversos agentes

2

coletivos que lhe integram, o reconhecimento às distintas formas de produção de

conhecimento e construção de uma relação comunitária que subsidie o enfrentamento ao

racismo e as variadas violências e sistemas de poder que estruturam toda a sociedade

brasileira.

Palavras-chave: Educação Jurídica. Direito e Relações Raciais. Epistemicídio.

1. Introdução

O desafio de reflexão e intervenção sobre as bases epistemológicas e

metodológicas de produção do conhecimento no Brasil, sobretudo no conjunto de

experiências acadêmicas em torno do direito e das ciências sociais aplicadas de uma

maneira geral, reforça os sentidos apontados ao longo da história recente do país pelos

movimentos sociais negros e sua intelectualidade. A formação social e institucional

brasileira tem como eixo fundante e estrutural a realidade histórica e cultural promovida

pelo racismo, contexto expresso desde o modelo eurocêntrico que conformou as

universidades nacionais até os enfrentamentos contemporâneos, a exemplo da luta pela

efetivação da Lei nº 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino da história e cultura

africana e afrobrasileira nas instituições de ensino público e privado, além da disputa

pelo reconhecimento de formas plurais de transmissão de saberes.

Este trabalho visa discutir o papel da educação jurídica no enfrentamento ao

epistemicídio, entendendo este como um desdobramento do genocídio cultural que nega

a alteridade e possibilidade existencial do Outro no que tange à produção do discurso de

conhecimento, refletindo, a partir da trajetória do Programa Direito e Relações Raciais,

programa de extensão da Universidade Federal da Bahia, um projeto de universidade

onde se construa bases sólidas para afirmação da multiculturalidade dentro do campo

acadêmico, o enfrentamento às opressões e violências sistêmicas que permeiam a

realidade universitária e a efetivação dos valores essenciais da democracia, como

respeito à dignidade da pessoa humana, respeito à diversidade e pluralidade e máxima

efetividade dos direitos fundamentais.

2. Estado, Racismo e Relações Raciais: Os discursos de dominação racial no Brasil

e a formação dos centros de saber científico.

O contexto posterior à independência do Brasil do julgo colonial português

impôs à elite intelectual local a necessidade de elaboração de teses que contribuissem

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para a construção do novo Estado-Nação, desafio que perpassava desde a organização

administrativa e alocação da nova burocracia pública até a disseminação de valores que

assegurassem a autonomia e estabilidade dos novos dirigentes perante a população e a

comunidade internacional.

Dentro dessa meta, a formação de uma identidade nacional, do elo

intersubjetivo que garantisse a legitimidade do sistema político em vigor era

fundamental, visto que a afirmação deste sentimento demonstrava o desejo de um

determinado povo em promover o desenvolvimento social, econômico e cultural de um

país, aliando a ideia de progresso com unicidade cultural. Contudo, é preciso dizer que a

formação populacional apresentou características coerentes com o seu próprio processo

de constituição enquanto colônia, ou seja, estrutura política que estava à serviço da

exploração econômica da metrópole portuguesa à produção agropecuária em todas as

suas potencialidades, como era característico do capitalismo comercial vigente.

A tradição historiográfica brasileira costuma demarcar a influência das

civilizações negro-africanas no projeto nacional brasileiro a partir do processo de

escravização e da chegada dos distintos povos escravizados1 através do que se

convencionou chamar de tráfico negreiro.

Tráfico negreiro2 era a atividade comercial desenvolvida sob o controle jurídico,

político, econômico e ideológico dos colonizadores durante os quatro séculos de

existência da escravidão, através do qual se empreendeu o sequestro, a desumanização,

mercantilização e a consequente diáspora forçada das comunidades negro-africanas para

servirem de mão-de-obra não remunerada nas terras recém ocupadas. Munanga e

Gomes (2004) assinalam que o tráfico negreiro é compreendido, pela sua amplitude e

duração, como:

uma das maiores tragédias da história da humanidade. Ele durou

séculos e tirou da África subsaariana (região do continente africano

abaixo da linha do deserto do Saara) milhões de homens e mulheres

1 Neste trabalho, utilizar-se-á o termo escravizado para referir-se a toda aquela pessoa que, privada de

sua condição de humanidade, do gozo de direitos civis e assujeitada ao regime normativo da escravidão,

em detrimento do termo convencional “escravo”, por entender que este denota uma característica

essencializadora que não condiz com o quadro histórico da constituição político-jurídica africana. 2 Ressalva-se que no Brasil o tráfico negreiro foi legalmente proibido através da Lei de 7 de Novembro de

1831, onde erão impostas aos chamados importadores penas corporais e multa de 200.000 réis a serem

cobrados por cada escravizado encontrado na embarcação. Contudo, a efetividade do fim desta atividade

se deu apenas na segunda metade do século XIX, mediante pressões internacionais, o que acarretou, no

plano legislativo interno, a edição da Lei Eusébio de Queirós.

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que foram arrancados de suas raízes e deportados para três

continentes: Ásia, Europa e América. (...) Os europeus foram os

maiores responsáveis pelo tráfico transatlântico, através do qual 40 a

100 milhões de africanos foram derportador para a Europa e América.

(MUNANGA; GOMES, 2004, pg. 18-19)

O debate sobre os efeitos da escravidão e o seu regime jurídico não serão alvo

desse texto. No entanto, apontá-los enquanto dado histórico para entender a construção

do ideário social brasileiro é elementar para iniciar o debate sobre o que está por trás do

conjunto de desigualdades que estão colocadas para a população negra ainda hoje e

desafiar o discurso que atribui à escravidão a responsabilidade plena sobre as

desigualdades sociorraciais que ainda vigem mesmo quando se vive uma democracia

constitucional que estende a tutela protetiva de direitos fundamentais à população negra.

Segundo Moore (2007), a resposta para tais inquietações foi construída por uma

realidade histórica e cultural anterior ao próprio processo de escravização a que foi

submetida as civilizações negro-africanas durante a modernidade. Ele aponta que foi o

racismo, fenômeno que está presente na raiz dos arranjos e pactos sociais vivenciados

em praticamente todos os países do mundo, a razão para o desenvolvimento dessas

desigualdades e negação da posição negra como sujeito político ativo, dotado de

subjetividade, considerando-o como a “última fronteira do ódio no planeta” (MOORE,

2007, p. 280).

Entende-se por racismo o sistema de poder que a partir da defesa da

superioridade de um determinado grupo racial em detrimento do “outro”, e tomando o

fenótipo (conjunto de características físicas externas, como a cor da pele, o formato do

nariz ou a textura do cabelo) como mecanismo de identificação do seu alvo, empreende

uma série de restrições ao gozo da dignidade da pessoa humana, direitos, oportunidades

e condições de desenvolvimento pleno de toda uma coletividade racial ou grupo étnico.

A presença do racismo estrutural enquanto elemento caracterizador da sociedade

brasileira é um eixo fundamental para entender a constituição de um fenômeno parte

dele, que é o racismo institucional, onde a produção da desigualdade racial se dá pelo

conjunto de ações ou omissões sistemáticas por parte de instituições públicas e/ou

privadas no processo de acesso/negação à direitos e oportunidades para a população

negra. No Brasil, o racismo institucional, malgrado o fim do regime formal da

escravidão em 1888 e o advento do regime republicano no ano seguinte, não deteve a

produção normativa (legislativa e administrativa) contra a restrição de direitos para a

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população negra. Essa característica esteve presente claramente no ordenamento

jurídico brasileiro através de normas jurídicas, como por exemplo a que instituia a

obrigatoriedade dos templos de religiões de matriz africana pedirem autorização ao

Poder Público para poder realizar suas atividades litúrgicas. Este cenário de

discriminação negativa começa a se alterar com a promulgação da Constituição Federal

de 1988, onde, cumulado a tratados e convenções internacionais e legislações espassas

anteriores ao novo texto constitucional, constituiu-se um microssistema jurídico de

enfrentamento ao racismo e de promoção da igualdade racial.

2.1 O pós-abolição e o branqueamento como tática de extermínio racial.

O fim da escravidão após 400 anos, como afirma Paixão e Gomes (2010), legou

às mais distintas sociedades, inclusive o Brasil (que foi um dos últimos países a aboli-la

e que abarcou cerca de 40% de todos negros africanos escravizados), um desafio às

populações negras remanescentes no que tange à sobrevivência no contexto pós-

emancipatório, sofrendo as agruras do desemprego, da fome e da perseguição policial,

assim como para as elites intelectuais, que entre o final do século XIX e início do século

XX, começaram a empreender novas formas de garantir o desenvolvimento econômico

ao mesmo tempo em que visavam apagar a “mancha negra” do povo brasileiro.

A abolição não foi acompanhada de políticas públicas que garantissem

terras, educação e direitos civis plenos aos descendentes de escravos e

libertos. Pelo contrário, políticas públicas urbanas e higienistas

refundaram as diferenças sob novas bases sociais e étnicas. (PAIXÃO;

GOMES, 2010, pg. 47)

Uma das primeiras e mais salutares ferramentas que serviram como instrumento

de dominação racial foi a política de embranquecimento, estimulada pelo Estado e

aplaudida pelas elites intelectuais. Abdias do Nascimento (1978) nos retrata que desde o

período da escravidão o branqueamento da população negra3 se dava por meio da

utilização do estupro de mulheres negras escravizadas ou libertas por homens brancos,

no uso de sua autoritas enquanto perfomance dominante, gerando o processo de

3 Na obra homônima à referência, Abdias do Nascimento defende o branqueamento como uma ferramenta

do projeto formulado pela elite política branca brasileira era de concretizar o extermínio deliberado do

grupo racial negro (com ênfase nos negros-africanos), demonstração de como a cultura estatal brasileira

está arraigada pelo racismo institucional, que não encara a população negra como sujeitos de direito, e

utilizando de instrumentos muito semelhantes aos hodiernos, como a morte física pelas forças policiais.

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mulatização, que impedia o crescimento da população negro-africana. Uma outra faceta

no uso da mestiçagem enquanto ferramenta para prática genocida do negro brasileiro,

segundo ele, seria o estímulo à uniões entre homens negros e mulheres brancas.

Afora as relações socioafetivas, que são abarcadas pelos ditames políticos, o

campo institucional racista brasileiro, através da política imigratória, tentou repovoar o

território brasileiro a partir de políticas de ação afirmativa destinadas à imigrantes

europeus, que fugiam das guerras em busca de trabalho e segurança. Diz Nascimento:

Fato inquestionável é que as leis de imigração nos tempos pós-

abolicionistas foram concebidas dentro da estratégia maior: a

erradicação da “mancha negra” na população brasileira. Um decreto

de 28 de junho de 1890 concede que: É inteiramente livre a entrada,

nos portos da República, dos indivíduos válidos e aptos para o

trabalho (...) Excetuados os indígenas da Ásia ou da África, que

somente mediante autorização do Congresso Nacional poderão ser

admitidos. (NASCIMENTO, 1978, pg. 71)

Todavia, as técnicas de branqueamento da população não foram as únicas

estratégias de efetivação do processo de genocídio, sendo, posteriormente,

complementadas com a produção de um discurso de suspeita na construção do sentidos

sobre a vida das comunidades negras no século XX.

2.2. A formação jurídica brasileira: o bacharelismo humanista e as teorias raciais

nas primeiras décadas do século XX.

O discurso normativista tradicional vem, nas últimas décadas, abrindo espaço

para novas vertentes da história do direito, reconhecendo-a como uma importante

ramificação da ciência jurídica que, na esteira da proposta metodológica da história,

objetiva estudar o conjunto de experiências jurídicas do passado, questionando as

origens do fenômeno do direito, das mentalidades, de seus intelectuais, instituições e,

inclusive, questionando as bases colocadas pelo positivismo jurídico, ampliando a

necessidade de estudar a historicidade dos fenômenos fora de perspectivas anacrônicas,

legalistas e universalizantes, ampliando os sentidos sobre o que é o direito (FONSECA,

2013).

Nesse diapasão, entende-se que o início da cultura jurídica brasileira se deu com

a instalação dos primeiros cursos jurídicos criados no Brasil através da Lei de 11 de

agosto de 1827, instrumento pelo qual o então Imperador Dom Pedro I instituiu nas

províncias de São Paulo e Olinda os centros de formação em Ciências Jurídicas e

Sociais. A tomada de posição pelo estabelecimento do ensino superior jurídico como

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prioridade da política educacional do Estado logo após a independência do status de

colônia é bem representativo, segundo Junqueira (1993), pois apresenta o projeto

político representado pelo que se chamou de bacharelismo jurídico.

O Bacharelismo jurídico foi o grande modelo de ensino jurídico instalando no

século XIX, cuja formação intelectual era voltada à uma perspectiva filosófico-

humanista, de pouco contato com a técnica-jurídica, e voltada à preparação de seu corpo

discente para desempenhar profissionalmente tarefas políticos-administrativas dentro da

nova burocracia estatal do Império, que prescindia de autonomia do direcionamento

intelectual da metrópole (Falcão, 1994; Venancio Filho, 1982; Adorno, 1988 apud

JUNQUEIRA, 1993, pg.18). Esta motivação, guardada as devidas proporções, não foi

diferente na guinada do Império para a República, onde através da Reforma Benjamim

Constant (Decreto 1231-H de 31 de outubro de 1891), já sob os auspícios da influência

do positivismo, o Estado promoveu a descentralização progressiva do ensino jurídico

pelo território nacional, autorizando e subvencionando, inclusive, o funcionamento de

instituições de ensino superior chamadas de “não-officiaes”, visto que eram providas

por particulares, sem intervenção do poder público, mas cumprindo mesmo regime

curricular das instituições públicas, sendo reconhecido as mesmas prerrogativas delas.

Contudo, cabe salientar que o bacharelismo jurídico não foi a única

característica da formação jurídica desse período. Nas primeiras três décadas do século

XX, como aponta o acúmulo bibliográfico sobre a questão racial nas últimas décadas, a

tradição acadêmica brasileira estava reverberando e produzindo conhecimento sob a

influência de linhas de pensamento que colocavam o negro em uma condição de

subalternidade e que foi desdobramento de diversos acontecimentos históricos violentos

na formação da identididade nacional, a exemplo dos efeitos promovidos pelo racismo

científico e do mito da democracia racial, na acepção freyriana.

2.2.1 Racismo científico

A partir das ideias da eugenia desenvolvidas na Europa pelo Conde Arthur de

Gobineau ou ainda dos estudos da antropologia criminal desenvolvidos na Itália por

Cesare Lombroso, no século XIX, a ciência moderna provocou o resgate da categoria

“raça”, muito utilizada pela Biologia, para demarcar o conjunto de seres que

compartilham de características genéticas próximas, determinantes para o seu

desenvolvimento.

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No contexto social, a utilização da raça enquanto conceito de hierarquização de

diferentes seres humanos foi parte do processo de desumanização dos negros-africanos

realizado pela escravidão e fundamento da exploração da mão-de-obra negra. Mais à

frente, a raça foi fundamento para a construção de uma série de discursos de suposta

cientificidade que atestavam, através do uso de técnicas como medição do crânio e de

outras partes do corpo, e da análise do comportamento das pessoas negras,

desembocando em uma série de teorias raciais que foram utilizadas na Academia e em

políticas públicas que afirmavam a degeneração da raça negra, considerando esta como

dotada de uma criminalidade e imoralidade inata à sua compleição física, psicológica e

social, gerando para o Estado, a partir do seu poder de polícia, a necessidade de envidar

esforços para reprimir e conter as manifestações da população negra que supostamente

ameaçavam a estabilidade social branca.

Acerca de Lombroso e sua contibuição para consolidação do racismo científico

enquanto ferramenta assecratória dos prinvilégios raciais, diz Gould que

Lombroso engendrou praticamente todos os seus argumentos de forma

a torná-los imunes à contestação; portanto, do ponto de vista

científico, eram todos inócuos. Embora mencionasse abundantes

dados numéricos para conferir um ar de objetividade à sua obra, esta

continuou sendo tão vulnerável que até mesmo os membros da escola

de Broca se opuseram à sua teoria do atavismo. Toda vez que

Lombroso topava com um fato que não se enquadrava nessa teoria,

recorria a algum tipo de acrobacia mental que lhe permitisse

incorporá-lo ao seu sistema. (GOULD, 1999, pgs. 124-125)

O comportamento de Lombroso não era isolado. Como ele, diversos teóricos de

outras áreas do conhecimento científico empenharam energia fossem degradantes para

alguns grupos sociais e raciais. Através de meios como a imprensa, suas elaborações

teóricas ganharam repercussão no meio social e fizeram com que os discursos

pseudocientíficos mais aviltantes se tornassem senso-comum e, portanto, gozassem de

credibilidade social quase incontestável. A educação jurídica brasileira no início do

século XX, a exemplo, utilizou dessas correntes não só na medicina legal e na

criminologia, mas em todos os campos em que podia formar sujeitos para operar as

instituições jurídicas na lógica da biopolítica de que trata Foucault. É esse contexto que

deriva uma série de comportamentos e de controle sobre os corpos e todas as dimensões

da vida das pessoas negras no Brasil, a exemplo do histórico de perseguições à terreiros

de candomblé, ao exercício da capoeira, a negação de acesso à educação pública, a

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marginalização e construção de barreiras simbólicas de acesso aos espaços centrais e

privilegiados urbanos (processo descrito pela escritora Carolina Maria de Jesus como o

lançamento da população negra nos “Quartos de Despejo”).

Hodiernamente, mesmo com os estudos que comprovaram a inexistência de

distinções severas entre os seres humanos que justifiquem a defesa de que o homo

sapiens sapiens possuiria gradações relevantes na sua constituição, o conceito de raça é

reconhecido como um importante marco na construção identitária da população negra e

para a demarcação de espaço na luta por direitos, como Moore (2007) nos aponta:

Os avanços da ciência nos últimos cinqüenta [sic] anos do século XX

esclarecem um grave equívoco oriundo do século XIX, que

fundamenta o conceito de “raça” na biologia. Raça não é um conceito

que possa ser definido segundo critérios biológicos. Porém, raça

existe: ela é uma construção sociopolítica, o que não é o caso do

racismo, um fenômeno que antecede sua própria definição.”

(MOORE, 2007, pg. 38)

2.2.2 Mito da democracia racial

Gilberto Freyre em 1936, a partir da sua obra Casa Grande e Senzala, instaura

uma nova abordagem de análise das relações raciais no Brasil. Visualizando o declínio

do racismo científico e a inefetividade das políticas eugenistas, que não conseguiam

efetivar o decréscimo da população negra, Freyre retorna a um dos eixos centrais da

teoria do branqueamento (trabalhado neste texto em passagens anteriores): a

miscigenação. Substituindo a ideia de raça por cultura, defenderá que a reunião de três

matrizes civilizatórias distintas (brancos europeus, indígenas e negros-africanos) na

conformação do povo brasileiro ocorreu a partir de uma correspondência sexual

característica da harmonia em que a formação social brasileira se deu.

Pacheco (2008), em sua tese doutoral “Branca para casar, mulata para f...., negra

para trabalhar: escolhas afetivas e significados de solidão entre mulheres negras em

Salvador, Bahia”, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

da Unicamp, afirma, segundo Freyre, que a miscigenação:

Foi propiciada devido a três fatores: a capacidade de mobilidade, de

miscibilidade e de aclimatabilidade dos colonizadores portugueses.

Tal capacidade explicaria a “facilidade” destes em se adaptar aos

trópicos, herdadas da posição geográfica entre duas culturas – a

européia [sic] e a africana – as quais teriam influenciado no seu

caráter “indefinido” e “flexível, tornando-os propensos à

miscigenação. Aliado a estes fatores, a escassez de mulheres brancas

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possibilitaria uma maior reciprocidade entre as mulheres escravas e os

colonizadores portugueses. (PACHECO, 2008, pg.59)

Lélia González (1984) contesta a posição de Gilberto Freyre, apontando o

racismo e o sexismo como eixos estruturais para se compreender a trajetória da cultura

brasileira, sobretudo no que tange ao conjunto de violências e estereótipos de

hipersexualização e subordinação das mulheres negras ao longo do tempo. Um ponto

crucial trazido por ela é a romantização feita por Freyre sobre o processo de

miscigenação, dando pouco relevo ao estupro como ferramenta de opressão e

asseguramento da dominação e invisibilizando o conjunto de resistências articuladas

pelas mulheres negras ao escravismo. Como resposta à esse conjunto de construções

discursivas sobre o legado africano e afrobrasileiro, Lélia coloca o desafio de ocupação

negra sobre os mais diferentes espaços públicos e privados, com vista a fazer com que a

sociedade brasileira, por dentro, possa pensar a si própria e o legado do racismo nas

relações sociais e identitárias da nação, além da emancipação e articulação política dos

outrora colonizados dos seus colonizadores.

MOORE (2007) indica que a democracia racial é, em verdade, uma

“mitoideologia” que impinge uma insensibilidade nos seres humanos e o impulsiona a

negar o Outro. Com a mitoideologia da democracia racial, hoje, a maioria das teorias e

conhecimentos ditos científicos que eram explícitos nessas investidas racistas-

genocidas-eugenistas, hoje são escamoteadas nos discursos da universalidade; mas o

universal continua sendo o padrão epistemológico que sempre esteve em vigor e tudo

que dele difere, permanece sendo o Outro.

2.2.2. As faculdades de direito e o projeto de epistemicídio no Brasil.

O Brasil, atualmene, segundo a Ordem dos Advogados do Brasil, possui mais

1.300 cursos de direito em todo o território nacional. Este cenário, reflexo do processo

de mercantilização da educação pública de ensino superior advindo das políticas

neoliberais dos anos 1990, à primeira vista, parece ser um fator positivo de

democratização do acesso ao conhecimento jurídico, elemento salutar para a construção

de um projeto de cidadania plena, sem tutelas. Todavia, esta realidade esboça mais um

desafio posto à construção de uma cultura jurídica que fuja aos moldes tradicionais e ao

processo de hermetização, tecnicismo e dogmatização do fenômeno jurídico

apresentado por Junqueira (1994), ao longo do século XX.

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Contrapondo as bases defendidas pelo bacharelismo humanista, a atual formação

jurídica contempla excessivamente o eixo profissionalizante e os dilemas postos pela

dogmática jurídica, pouco se preocupando com a construção de vetores epistemológicos

e metodológicos que debatam o potencial de cientificidade do direito perante o conjunto

de outras áreas de conhecimento; e que questionem o paradigma de cultura jurídica que

burocrática, liberal, patrimonialista e acientífica (Junqueira, 1994). Contudo, o que se

pretende discutir neste ponto, para além de uma crítica ao regime das políticas

educacionais contemporâneas, é como essa formação jurídica vem sendo um

instrumento para o desenvolvimento do epistemicídio no Brasil.

Boaventura de Sousa Santos, em um texto intitulado “Da ideia de universidade à

universalidade de ideais”, publicado em 1989, afirma que o modelo de universidade

vigente vem, progressivamente, recebendo maiores exigências por parte da sociedade ao

mesmo tempo em que as políticas de financiamento por parte do Estado estão ficando

cada vez mais constritas (realidade não muito diferente da dinâmica política brasileira),

demandando desta instituição a reflexão sobre uma reforma profunda de seu projeto.

Com objetivo perene de produção e construção do conhecimento (e, dentro dos

moldes sacralizados do paradigma científico dominante, a própria produção da verdade

sobre um dado objeto, respeitando os princípios de distanciamento e neutralidade

valorativa em relação à ele), Santos (1989) aponta que a partir dos questionamentos

realizados durante as movimentações políticas da década de 1960, os fins principais da

universidade passaram a ser “a investigação, o ensino e a prestação de serviços” (pg.13).

No entanto, o aumento radical da população universitária, a concepção utilitarista do

conhecimento (fomentada pelo capitalismo) e a expansão do ensino superior provocou

a explosão de funções que, muitas vezes, colidem entre si. A falta de uma gestão

adequada desta crise, segundo o sociólogo, provocou a geração de três crises que

envolvem a universidade: primeiramente, uma crise de hegemonia, a cada vez que uma

condição social não é por ela resolvida, não sendo considerada necessária, única e

exclusiva, a exemplo da manutenção da ideia da universidade como um lugar de

produção de alta cultura e conhecimento científico (considerado como mais válido que

as demais formas de produção de saber); uma crise de legitimidade, agravada a cada vez

que os objetivos coletivamente acordados deixam de ser cumpridos; e, em terceira via,

uma crise institucional, manifestada a cada momento em que se tentam aplicar modelos

de outras organizações para o gerenciamento das demandas das universidades.

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Malgrado essa importante reflexão, no caso do Brasil, outros elementos

precisam ser associados a essa discussão, afinal de contas, já foi apontado neste trabalho

que as instituições brasileiras (e a universidade é uma delas) apresentam em sua

estrutura um elemento central nas relações sociais: o racismo. O modelo de

universidade que foi implantado no Brasil, como assinala Vida (2008), segue uma linha

ideológica iniciada com a modernidade, sendo parte de um projeto universalista que

toma a experiência civilizacional branca europeia como “espaço de legitimação das

fantasias supremacistas etnocêntricas, chanceladas com a aura de cientificidade e

academicismo, responsáveis pela hegemonização civilizatória do planeta” (pg.01).

Aqui, a necessidade apontada pelas elites no processo de formação da

intelligentzia que assumiria os rumos da produção intelectual e de riquezas no país

“(...) desde o primeiro momento optou pelo caminho monoculturalista

e intolerante, diante de outros aportes civilizatórios e epistemológicos

legados pelos povos ameríndios e africanos. Prosseguiu sua missão

epistemicida, desqualificando as expressões civilizatórias ameríndias e

africanas, relegando-as a objeto de especulação pseudo-científica, e

rotulando-as como folclore e cultura popular. Assumiu, assim, uma

postura institucionalmente racista.” (VIDA, 2008, pg. 01)

A sociedade brasileira tem na sua formação ao menos três matrizes

civilizatórias, mas adotou apenas uma delas na centralidade da orientação de seus

pilares tradicionais. Com isso, tudo que não descende dessa matriz civilizatória ou por

ela não é legitimada (ou mesmo apropriada) não recebe validade social, política e

científica. Sendo a educação jurídica um meio de aprendizado para lidar com o

fenômeno do Direito, é essa mesma matriz civilizatória que foi eleita como a produtora

hegemônica do conhecimento jurídico. A hegemonia de uma matriz em detrimento das

demais mantém uma relação de colonialidade, conforme preleciona Quinjano:

No processo que levou a esse resultado, os colonizadores exerceram

diversas operações que dão conta das condições que levaram à

configuração de um novo universo de relações intersubjetivas de

dominação entre a Europa e o europeu e as demais regiões e populações

do mundo, às quais estavam sendo atribuídas, no mesmo processo,

novas identidades geoculturais. Em primeiro lugar, expropriaram as

populações colonizadas – entre seus descobrimentos culturais – aqueles

que resultavam mais aptos para o desenvolvimento do capitalismo e em

benefício do centro europeu. Em segundo lugar, reprimiram tanto como

puderam, ou seja, em variáveis medidas de acordo com os casos, as

formas de produção de conhecimento dos colonizados, seus padrões de

produção de sentidos, seu universo simbólico, seus padrões de

expressão e de objetivação da subjetividade. (QUINJANO, 2005, pgs.

110-111)

13

Mas é Sueli Carneiro quem nos dará subsídios para definir, efetivamente, quais

são as bases e qual o modo de operação que compõem esta faceta do genocídio cultural

imposto à população cujas matrizes civilizatórias não se situam na Europa. Em sua tese

doutoral, defendida junto ao Programa de Filosofia da USP em 2005, Carneiro demarca

a existência de um dispositivo de racialidade, enquadrado na categoria de biopoder de

Michel Foucault, que, segundo ela, age sobre a sociedade brasileira como um

instrumento articulador de uma rede de elementos bem definida pelo

Contrato Racial que define as funções (atividades no sistema

produtivo) e papéis sociais, este recorte interpretativo localiza neste

cenário o epistemicídio como um elemento constitutivo do dispositivo

de racialidade/biopoder. (CARNEIRO, 2005, pg.96)

Carneiro (2005) visitará a obra de Boaventura de Sousa Santos, onde o

epistemicídio é analisado como um dos instrumentos utilizados pela colonialidade para

a manutenção da dominação racial de um grupo sob o outro, retirando a legitimidade de

outras formas de produção de conhecimento, assim como promovendo a negação do

Outro enquanto sujeito da produção de saber. Para ela, essa concepção sobre o

epistemicídio torna possível compreender o processo desenvolvido pela estrutura

colonial na destituição da racionalidade, da cultura e da civilização do Outro, cujo

apogeu, destaca, foi o racialismo do século XIX. Para Santos

o genocídio que pontuou tantas vezes a expansão européia [sic] foi

também um epistemicídio: eliminaram-se povos estranhos porque

tinham formas de conhecimento estranho e eliminaram-se formas de

conhecimento estranho porque eram sustentadas por práticas sociais e

povos estranhos. Mas o epistemicídio foi muito mais vasto que o

genocídio porque ocorreu sempre que se pretendeu subalternizar,

subordinar, marginalizar, ou ilegalizar práticas e grupo sociais que

podiam ameaçar a expansão capitalista ou, durante boa parte do nosso

século, a expansão comunista tanto no espaço periférico, extra-

europeu e extra-norte-americano, contra os trabalhadores, os índios, os

negros, as mulheres e as minorias em geral (étnicas, religiosas,

sexuais). (Santos apud Carneiro, 1995, pg. 328).

Contudo, Carneiro assinala que a própria experimentação do epistemicídio,

quando associado ao contrato racial vigente nas experiências societais pós-colonização,

persiste em uma certeira indulgência cultural, sobretudo através da negação de acesso a

uma educação de qualidade, pelo discurso de inferiorização da produção intelectual

negra, quando não do uso dos diferentes instrumentos de retirada de legitimidade da

pessoa negra enquanto produtora de conhecimento, além do rebaixamento cognitivo e

retirada da capacidade racional. Assim, para a população negra, o epistemicídio

14

apresenta-se como “uma forma de seqüestro [sic] da razão em um duplo sentido: pela

negação da racionalidade do Outro ou pela assimilação cultural que em outros casos lhe

é imposta.” (Carneiro, 2005, pg. 97). A negação da humanidade do outro ou a falta de

reconhecimento do seu potencial racional para a produção de um conhecimento válido

afirma a civilização branca europeia como hierarquicamente superior, homogeneizando

suas concepções sobre o que é o conhecimento e sobre como construí-lo, ainda que

dentro dos parâmetros do paradigma dominante, gerando a compreensão de que o Não-

Ser (o sujeito que não é apto a produzir o conhecimento) é o fundamento de legitimação

do Ser, imbuído de características como: autocontrole, cultura, desenvolvimento,

progresso e civilização (2005: 99-100). O epistemicídio se projeta sob o contexto social

de diversas maneiras que rearticulam e se metamorfoseiam. Essa realidade é essencial

para entender qual o seu modo de operação no sistema educacional brasileiro e na

produção de uma formação jurídica baseada em correntes teóricas e metodológicas

desenvolvidas no paradigma de dominação racial.

O crescimento do debate sobre os efeitos desse fenômeno na Universidade

brasileira cresceu na última década devido ao êxito da política de ações afirmativas em

educação, processo derivado das lutas do Movimento Negro brasileiro que sempre

encarou a Academia como uma importante trincheira da preservação de privilégios à

pessoas brancas. No caso da Universidade Federal da Bahia, que implantou o sistema de

reserva de vagas por cotas entre 2004 e 2005, hoje, a realidade da composição racial de

sua população discente saltou de 2% em 2001 para mais de 40%, um crescimento

vertiginoso e que vem impondo uma agenda que, como coloca Vida (2005) perpassa: a

efetivação e aplicação transversal da Lei Nº 10639/2003 nos currículos e programas

adotados pelos cursos; o enfrentamento ao monoculturalismo acadêmico e a negação do

protagonismo negro na escala de produção de conhecimento científico; as referências

bibliográficas e imposição de uma agenda teórica não condizente com os interesses dos

orientandos de pesquisa, além do desmantelamento do conjunto de simbologias que

compõem o imaginário institucional da universidade a partir do referencial eurocêntrico.

2.2.4. O Programa Direito e Relações Raciais da Universidade Federal da Bahia e o

projeto de uma educação jurídica antirracista e democrática.

Dentro dos processos políticos de contestação ao regime universitário durante as

movimentações da década de 1960, uma das questões mais levantadas era a necessidade

15

da Universidade assumir a sua responsabilidade social e contribuir com as demandas

advindas dos campos sociais e comunitários, seja na contribuição e/ou diminuição dos

conflitos sociais, seja na articulação dos seus saberes para a garantia de direitos.

Como assinala Santos (1989), dessas reivindicações, muitas delas feitas pelo

corpo estudantil, efetivou-se a discussão sobre os projetos de extensão universitária

como um mecanismo de diálogo e conexão entre a Universidade e a comunidade. Essa

abertura possibilitou à instituição dirimir o conjunto de críticas ao seu isolacionismo

purista e o reforço ao discurso de que a formação acadêmica tem de corresponder com

algum tipo de contrapartida ao conjunto de indivíduos que sustentam os seus custos.

Contemporaneamente, por disposição constitucional, a extensão constitui-se como um

dos pilares do chamado tripé universitário, completado pelo ensino e pela pesquisa.

Nesse cenário de disputa pela afirmação da relevância da extensão no campo da

formação jurídica está o Programa Direito e Relações Raciais. Criado em 2003 a partir

da articulação entre membros da comunidade negra dentro da Academia (estudantes e

um professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia), o PDRR,

como é conhecido, foi reconhecido pelo Departamento de Direito Privado da Faculdade

de Direito da Universidade Federal da Bahia. Ao longo de sua trajetória o PDRR

constituiu-se como um espaço de natureza transdisciplinar onde se desenvolvem

atividades de pesquisa, iniciação científica e extensão em torno da temática do Direito e

Relações Raciais.

A reflexão em torno do direito e as relações raciais se constitui num

campo novo na abordagem acerca do racismo e suas implicações na

sociedade brasileira. A ausência de preocupação acadêmica com o

assunto reflete o descaso político e a amplitude do mito da democracia

racial brasileira. Coloca-se, hoje, como desafio fundamental a

articulação entre o acúmulo experimentado no campo dos movimentos

negros e a tradição jurídico-institucional de resolução dos conflitos no

interior da sociedade. (PDRR, 2014, pg. 01)

O PDRR possui uma estrutura organizacional baseada no princípio da

autogestão e do estabelecimento da corresponsabilidade colegiada como pressuposto de

sua dinâmica administrativa, distribuindo seus membros em quatro grupos de trabalho:

Gestão e Articulação Institucional, responsável pelo gerenciamento e política de

comunicação com entidades públicas e privadas, ONG’s, movimentos sociais negros,

16

etc; Comunicação, cuja atribuição é administrar a política de marketing e socialização

de informações sobre o programa; Formação, cuja competência é a organização das

atividades de discussão teórico-política e técnico-jurídica; e Pesquisa, responsável por

administrar as linhas de pesquisa, orientar os pesquisadores no quantum sobre eventos

científicos, além de ministrar oficinas de formação metodológica.

Formado majoritariamente por pessoas negras, sobretudo estudantes que

ingressaram no curso de direito a partir da política de reserva de vagas pelo critério da

autodeclaração racial, o PDRR vem ao longo desses anos discutindo a presença negra

no espaço universitário, avaliando a experiência vivida no Brasil nesses últimos treze

anos, como a realização de conjunto de políticas de ações afirmativas na área de

educação, após décadas de lutas e reinvindicações promovidas pela comunidade negra,

que apontavam a inegável desigualdade racial no acesso ao ensino superior público e

privado.

Apesar do seu reconhecido sucesso, no que tange ao asseguramento da

pluralidade racial no acesso aos cursos de graduação, essas políticas ainda não

conseguiram reverter o fosso de ausência e invisibilização da produção negra nos

programas de disciplinas, sendo este um desdobramento do próprio epistemicídio. O

contexto das faculdades de Direito, ainda envolvidas em uma cultura jurídica

bacharelista e tecnicista, é anulação quase completa do debate racial transversalizado

por um estudo de institutos jurídicos e marcos normativos que restringem todo o

potencial discursivo, político e teórico do fenômeno jurídico ao estudo da norma

jurídica a partir de escolas doutrinárias europeias, em sua grande maioria.

O PDDR tem uma sistematização que pretende não isolar os sujeitos que dele

participam no ambiente acadêmico. Por isso, seus encontros são semanais, mas intercala

reuniões de formação com reuniões político-administrativas4. No encontros de formação

são discutidos textos que tratam da questão racial ou que, de modo reflexo, apresentem

contribuições para a temática. Nesses encontros, dois participantes, resguardada

prioritariamente a paridade de gênero, atuam como facilitadores da discussão,

realizando apresentações prévias do texto determindo. Os textos são divulgados com

4 Mesmo tendo como coordenador um professor da Faculdade de Direito, por questões burocrático-

institucionais, o seu funcionamento é gerido coletivamente.

17

antecedência por via das redes sociais para que haja leitura prévia e a discussão possa

ser melhor aproveitada.

O programa conta, atualmente, com a intervenção/participação sistemática de

professores e professoras Doutoras, Mestres, Mestrandos e Doutorando, além dos

graduandos e graduados nas mais diversas áreas do conhecimento de diversas

instituições de ensino que exorbitam a redoma da Faculdade de Direito da UFBA. Essa

heterogeneidade implica num maior amadurecimento acadêmico e intelectual de todos

os participantes posto que não há hierarquização nas participações, sendo as discussões

todas operacionalizadas de forma horizontal. São elegíveis à facilitadores dos textos

todo e qualquer participante que se disponibilize, dos graduandos aos Doutores e

Doutoras. Essa dinâmica não hierarquizada promove, inclusive, um intercâmbio

bastante rico entre estudantes de graduação e pós-graduação, algo que a própria

Universidade estimula, mas faz restritamente por meio do tirocínio docente, imputando

uma verticalidade que não colabora como deveria para o amadurecimento de todos os

envolvidos. Isto cria uma realidade geradora de algumas distorções sobre a concepção

do que é uma Universidade, a docência e a vida acadêmica.

Com o fomento a diversas discussões que são silenciadas dentro das instituições

de ensino jurídico, diversas pesquisas também são iniciadas e submetidas a eventos

científicos para apresentação, tendo logrado diversos êxitos na aceitação e repercussão

dos resultados. No mesmo sentido, o GT de Pesquisa fica atento aos eventos científicos

que ocorrem no país, estimulando e facilitando o acesso às informações para os

participantes e, quando possível, inscrevendo Grupos de Trabalho para recepcionar e

discutir o Direito e as Relações Raciais.

O Programa ainda colabora com o acesso dos membros aptos aos processos de

seleção de pós-graduação stricto sensu, com a disponibilização dos membros mais

experientes na trajetória acadêmica para auxiliar nos estudos para as provas e também

para a construção dos projetos de pesquisa. Esse ano de 2016, por exemplo, quatro

membros elegíveis à acessar o mestrado foram selecionados, dois para a Universidade

de Brasília e dois para a própria Universidade Federal da Bahia.

Com esses mecanismos, o PDRR vem atuando no debate sobre o direito e a

construção de uma formação jurídica que incorpore, efetivamente, os valores de

18

pluralidade de ideias e reconhecimento do Outro em toda a sua potencialidade

produtiva, como sujeito de produção de conhecimento jurídico, que encare esse desafio

como elemento essencial para máxima efetivação dos direitos fundamentais, sobretudo

o direito à educação da população negra que acessa o espaço universitário, mas que tem

a sua criatividade e potencial cognitivo ceifado pela cultura jurídica epistemicida,

positivista e conservadora. O Direito não pode mais ser encarado como um objeto a ser

vivido por um grupo restrito de pessoas. Ele, em verdade, é um grande mecanismo de

efetivação da cidadania, sobretudo em um contexto social onde a racialidade, o gênero,

a classe e as relações de territorialidade impinge à população negra um grau de

violações muito grande, como é próprio do racismo institucional.

Não podemos olvidar do contexto colonial e escravocrata em que esse educação

jurídica emergiu no país, circundado pela recente independência da metrópole, mas

ainda com todos os seus alicerces políticos e comportamentais fincados na relação de

colonialismo o que, na modernidade, se constituiria em colonialidades do poder-saber.

A Universidade e o ambiente acadêmico tem se mostrado como ambiente hostil à

presença negra, sobretudo com o advento das ações afirmativas que impulsionaram a

massificação desses corpos negros nesses lugares que lhes eram interditos. Enquanto era

exceção, ou uma "mente negra brilhante" no mar alvo das intelectualidades

hegemônicas, havia o racismo institucional, as discriminações subjetivas, mas nada que

não pudesse recrudescer quando os grupos contramajoritários fossem mais vistos.

O epistemicídio como categoria de morte da própria essência civilizatória de um

grupo, se perfez através da negação de diferentes formas de conhecimento produzidos

pelos grupos dominados e, em sua esteira, de seus integrates enquanto sujeitos de

conhecimento (Carneiro, 2005). Não se pode negligenciar os aspectos de biopolítica

imbricados nessa concepção de epistemicídio, a interação inescusável de um biopoder

que possibilita o controle sobre as vidas e a regulação dos sujeitos. O controle do

conhecimento e a exclusividade no domínio das verdades científicas (que se tornam, em

algum momento, tambpem sociais), implicam na subjugação de corpos e

subalternização de capacidades intelectuais.

Importante, nesse ínterim, destacar que o epistemícidio está no bojo de uma

tragédia (não casual) ainda maior e melhor elaborada que é o genocídio de dois povos,

indígena e negro-africana, e o Direito foi importante criador dessas mortes ao

fundamentar os regimes de escravidão, servidão e mesmo as diversas violências. Hoje, o

19

Direito permanece servindo a essas mortes, ao relegar diversas questões caras às

comunidades negras e indígenas à invisibilidade travestida de universalidade ou, como

aponta Boaventura de Sousa Santos (2003), "paradigma dominante" que entrou em crise

na pós-modernidade, mas que todos aguardam que haja a imersão de um novo, como se

fosse necessário colocar na crista do mundo, um novo centro de domínio, que

provavelmente não irá emergir de matrizes e grupos civilizatórios ainda subalternizados.

3. Conclusão

O epistemicídio se apresenta como uma das mais incisivas formas de atuação do

racismo na estrutura da sociedade brasileira, racismo este que, tal como outros vetores

de opressão, tem a capacidade de transmutar-se para permanecer em vigor, mantendo as

relações hierarquizadas com outros tons, até mesmo dos constitucionalismos

emergentes, todos democráticos – nele coube a emersão da lúdica democracia racial,

realizando não só o silenciamento do Outro, mas a progressiva morte de toda uma teia

de conhecimentos e saberes advindos de outras matrizes culturais.

O que está posto para a formação jurídica e o quadro estrutural da universidade

brasileira é a sua refundação, é uma ampla e profunda reforma de suas bases

epistemológicas, teóricas, metodológicas e simbólicas, reforma esta que lhe proporcione

aprender com a diversidade e a pluralidade cultural dos diversos agentes coletivos que

lhe integram e lhe constroem. O reconhecimento às distintas formas de produção de

conhecimento e a construção de uma relação comunitária que subsidie o enfrentamento

ao racismo e as variadas violências e sistemas de poder que estruturam toda a sociedade

brasileira não será alcançada se continuarmos nos moldes formais de tutela do discurso

como se os sujeitos negros não fossem capaz de falar por si.

É necessário possibilitar às populações marginalizadas o contínuo acesso à

esfera pública institucional, a Universidade, as faculdades de Direito e aos espaços onde

a produção de saber sobre aquilo que regerá a vida da comunidade está sendo

produzido. A popularização do acesso e produção do direito, além da sua demarcação

enquanto um objeto cultural que tem uma cor/raça, um gênero, um lugar de fala

significa, não obstante, o caminhar para o redimensionamento do lidar com as outras

20

matrizes civilizatórias que construíram o país, autonomizando-as e permitindo que elas

possam se expressar em toda a sua potencialidade.

O PDRR, neste processo, tem apontado algumas ações para a desmobilização do

epistemicídio na educação jurídica à medida que não somente incita a leitura de

diversos autores/acadêmicos negros e negras que o tecnicismo racializado e dogmatismo

jurídicos invisibilizam, mas, também, impulsiona aos seus participantes a também

produzirem e criarem trajetória acadêmica discutindo as relações raciais, eixo

imprescindível para uma educação em direitos humanos e para a busca da verdadeira

acepção de democracia num país racializado como o Brasil; a desconstrução do discurso

formalista e universalizante do direito, que desconhece e esvazia as categorias analíticas

da interseccionalidade e parte de pressupostos hegemônicos para reflexão da vida; à

revolução do panorama de técnica-jurídica considerada neutra, sobretudo do ponto de

vista de raça-gênero-classe social; e o enfrentamento à cultura jurídica e universitária

brasileira, que cada vez mais tem o seu potencial de violência interseccional desvelado

pelo grave adoecimento de seus integrantes e por diversas denúncias. É na atribuição de

legitimidade ao discurso que o Outro enuncia que será possível construir novas bases

epistemológicas que levem a sociedade brasileira a efetivar o reconhecimento da

população negra como amparada de dignidade humana e de potencialidade de

participação na vida política e social do país, promovendo o alcance do projeto de

democracia tanto esperado.

21

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