a educaÇÃo geogrÁfica nos anos iniciais do ensino ... · contexto da pesquisa na formação e no...

12
A D IVERSIDADE DA G EOGRAFIA B RASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO 5081 A EDUCAÇÃO GEOGRÁFICA NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL: A CONTRIBUIÇÃO HUMANISTA NO ESTUDO DO LUGAR MARIA DO SOCORRO P. DE SOUSA ANDRADE 1 ARMSTRONG MIRANDA EVANGELISTA 2 Resumo: O trabalho discute pesquisa realizada sobre a educação geográfica com alunos dos anos iniciais do Ensino Fundamental, tendo como fundamentação teórica referenciais da geografia humanista, na perspectiva fenomenológica, para estudar o conceito de lugar. Descreve a opção metodológica utilizada no desenvolvimento do trabalho, baseada na pesquisa-ação de cunho hermenêutico-fenomenológico ou prático colaborativa, desenvolvida com pedagogos que lecionam geografia com o intuito de buscar a ressignificação do conceito de lugar. Para isso comenta sobre a análise da conceituação das professoras e a mediação pedagógica desse conceito conforme orientações teórico-metodológicas da geografia Escolar, tendo como produção um conjunto de metodologias de ensino desenvolvidas através do trabalho colaborativo. Palavras-chave: Geografia; fenomenologia; lugar. Abstract: The paper discusses survey on geographical education with students of the early years of elementary school, having as theoretical basis references of humanistic geography, phenomenological perspective, to study the concept of place. Describes the methodological approach used in development work, based on research-action- hermeneutic phenomenological or collaborative practical nature, developed with teachers who teach geography in order to seek the redefinition of the concept of place. For that comments on the analysis of the concept of the teachers and the mediation of this concept as theoretical and methodological guidelines of the School geography, with the production a set of teaching methodologies developed through the collaborative work. Key-words: geography; phenomenology; place. 1 Acadêmico do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Piauí E-mail de contato: [email protected] 2 Docente do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Piauí. E-mail de contato: [email protected]

Upload: dangthu

Post on 25-Jan-2019

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO

DE 9 A 12 DE OUTUBRO

5081

A EDUCAÇÃO GEOGRÁFICA NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO

FUNDAMENTAL: A CONTRIBUIÇÃO HUMANISTA NO ESTUDO DO LUGAR

MARIA DO SOCORRO P. DE SOUSA ANDRADE1 ARMSTRONG MIRANDA EVANGELISTA2

Resumo: O trabalho discute pesquisa realizada sobre a educação geográfica com alunos dos anos iniciais do Ensino Fundamental, tendo como fundamentação teórica referenciais da geografia humanista, na perspectiva fenomenológica, para estudar o conceito de lugar. Descreve a opção metodológica utilizada no desenvolvimento do trabalho, baseada na pesquisa-ação de cunho hermenêutico-fenomenológico ou prático colaborativa, desenvolvida com pedagogos que lecionam geografia com o intuito de buscar a ressignificação do conceito de lugar. Para isso comenta sobre a análise da conceituação das professoras e a mediação pedagógica desse conceito conforme orientações teórico-metodológicas da geografia Escolar, tendo como produção um conjunto de metodologias de ensino desenvolvidas através do trabalho colaborativo. Palavras-chave: Geografia; fenomenologia; lugar. Abstract: The paper discusses survey on geographical education with students of the early years of elementary school, having as theoretical basis references of humanistic geography, phenomenological perspective, to study the concept of place. Describes the methodological approach used in development work, based on research-action-hermeneutic phenomenological or collaborative practical nature, developed with teachers who teach geography in order to seek the redefinition of the concept of place. For that comments on the analysis of the concept of the teachers and the mediation of this concept as theoretical and methodological guidelines of the School geography, with the production a set of teaching methodologies developed through the collaborative work. Key-words: geography; phenomenology; place.

1 Acadêmico do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Piauí E-mail de

contato: [email protected] 2 Docente do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Piauí.

E-mail de contato: [email protected]

A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO

DE 9 A 12 DE OUTUBRO

5082

1 Introdução

O presente trabalho tem como objetivo apresentar a discussão desenvolvida na

pesquisa que realizamos acerca da educação geográfica com crianças nos anos

iniciais do ensino fundamental buscando como aporte as bases conceituais

humanistas no estudo do lugar. Essa pesquisa emergiu da minha experiência como

professora da disciplina de Geografia nos Anos Iniciais em escola da rede privada

de Teresina e da necessidade de aperfeiçoamento dos conhecimentos no tocante a

conteúdos e metodologias específicas da Geografia, especialmente a busca por

aprofundamento e atualização conceitual. Nesse sentido, este trabalho consistiu no

estudo de um conceito-chave da Geografia diretamente relacionado ao espaço

concreto de vivência das crianças iniciantes no processo de alfabetização

geográfica. Acreditamos que a partir da compreensão das primeiras noções sobre o

espaço elas poderão desenvolver com eficácia o senso de lugar e entender melhor

outras dimensões da análise geográfica no transcurso de sua trajetória escolar,

sendo capazes de articular diversas escalas de abordagem da realidade. Assim,

investigamos o desenvolvimento de uma proposta de ensino desse conceito na

perspectiva humanista de matriz fenomenológica, envolvendo professores de

Geografia do 2º, 3º e 5º ano dos anos iniciais do Ensino fundamental de uma escola

da rede pública de Teresina, valendo-se de atividades que articulavam afetividade,

interesse e aperfeiçoamento de faculdades cognitivas. A opção metodológica para a

realização da pesquisa foi a Pesquisa-ação de inspiração hermenêutica-

fenomenológica, ou prático-colaborativa, por seu potencial formativo ao procurar

compreender e interpretar os fenômenos relacionados ao processo de ensino

realizado no trabalho docente. Buscamos para isso sustentação teórica em Martins

(1992), Bicudo ( 2011), Holzer (1992), Franco e Lisita (2014), Diniz-Pereira (2011),

Kemmis e Wilkinson (2011), Thiollent (2011), Pimenta (2012), Sánchez Gamboa

(2012), Machado (2014) e Flickinger 2014). Na pesquisa-ação, procuramos

aproximar sujeito e objeto, assumindo a colaboração como essencial ao processo de

intervenção para descobrir os sentidos da realidade. Para compor a base teórica da

pesquisa foram realizados estudos sobre o conceito de lugar na Geografia e sobre

seu ensino, especialmente na vertente humanista, partindo de autores expressivos

A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO

DE 9 A 12 DE OUTUBRO

5083

da área, tais como Straforini (2011),Cavalcanti (2011), Callai (1998), Tuan (1983),

Kaercher (2014), Buttimer (1982), Marandola Jr.(2012) e Lowenthal (1985). Outra

vertente teórica convergente para o objeto de pesquisa diz respeito aos trabalhos

sobre afetividade e cognição por reconhecer sua importância para os estudos

envolvendo a aprendizagem de crianças, principalmente as contribuições de Arantes

(2003) e Oliveira (1992). Acreditamos que esse trabalho constitui-se em uma

contribuição importante para a Geografia Escolar nas séries iniciais, especialmente

para o entendimento das etapas de alfabetização geográfica dos alunos ao

desenvolverem a leiturização do espaço vivido durante o seu processo de formação

para a cidadania.

2 A pesquisa-ação prático-colaborativa: uma possibilidade de pesquisar fenomenologicamente

“O mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que vivo, sou aberto ao mundo,

me comunico indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável.”

(Merleau-Ponty)

Acreditamos que a abordagem dos conteúdos de Geografia, fundadas no

conceito de lugar segundo a perspectiva da Geografia Humanista, será capaz de

oportunizar condições ao aluno para que compreenda várias relações no espaço

geográfico, envolvendo aspectos cognitivos e afetivos, através da interação com o

lugar em que vive, possibilitando-lhe conhecer melhor a sua constituição identitária e

seus determinantes multiescalares, no espaço e no tempo. Assim, estudando o lugar

o aluno poderá entender melhor o mundo e intervir nele criativamente.

Com a presente pesquisa reconhecemos a importância dessas questões no

ensino da Geografia. De início, constatamos dificuldades a respeito da identidade

geográfica pelo aluno, referentes ao conhecimento do espaço vivido no cotidiano. Na

verdade, notamos a prevalência de aspectos pontuais, fragmentários acerca do

mundo, com pouca organização de certas relações que se manifestam

espacialmente de grande significância para o aprendizado geográfico, havendo

mesmo pouca orientação pedagógica valorizando o estudo do lugar; fato

A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO

DE 9 A 12 DE OUTUBRO

5084

comprometedor de um discernimento fenomenológico dessa dimensão da

abordagem geográfica.

Compreendemos que tal orientação pedagógica, pode ser alcançada através

da contribuição do conhecimento disponível pela Geografia Escolar, fundamentos

que devem constar nos programas de formação inicial do pedagogo e nos

programas de formação continuada das instituições escolares ou das redes de

ensino nas quais trabalham esses professores. Isso exige um maior investimento

teórico-metodológico no aperfeiçoamento e atualização curricular da geografia

ensinada na escola fundamental, bem como nos programas de formação continuada

do pedagogo.

O presente estudo nos assegura essa interpretação ao relatar uma experiência

de ensino de geografia com crianças 2º, 3º e 5º ano do Ensino Fundamental, nos

quais nos propusemos a mediar o estudo dos fundamentos do conceito de lugar

para esse nível de ensino. Essa experiência foi desenvolvida em colaboração com

as professoras de Geografia dessas turmas, baseando-se em um corpus de

atividades inspiradas em referenciais fenomenológicos. Nesse sentido, buscamos

apoio nos trabalhos metodológicos de cunho colaborativo que enfatizam o binômio

pesquisa-ação, modalidade investigativa que trataremos de caracterizar daqui por

diante.

Na perspectiva de novas tendências epistemológicas da pesquisa educativa,

como a “pesquisa participante” e a “pesquisa-ação”, pressupõe-se “que o

conhecimento seja essencialmente um produto social, que se expande ou muda

continuamente, da mesma maneira que se transforma a realidade concreta, e que,

como ato humano, não está separado da prática”. (SÁNCHEZ GAMBOA, 2012,

p.31). Nessas modalidades de pesquisa o objetivo central é a transformação da

realidade social e o melhoramento da vida dos sujeitos envolvidos nessa realidade.

Nesse sentido, Pimenta (2012) propõe que os procedimentos metodológicos

inscrevam-se em metodologias qualitativas, com vistas a procedimentos formativos

e emancipatórios, “que emanam dos pressupostos epistemológicos que nos

identificam enquanto grupo”. A partir desse entendimento, com a intenção de realizar

uma investigação para além do visível, do aparente das práxis, é que elegemos a

pesquisa-ação de inspiração hermenêutica-fenomenológica ou prático-colaborativa

A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO

DE 9 A 12 DE OUTUBRO

5085

para a realização desta pesquisa com a professora colaboradora. O mote do estudo

sobre a prática pedagógica da professora foram os conhecimentos da Geografia

relevantes nessa etapa da escolaridade, elegendo dentre estes o conceito de lugar

conforme o pensamento geográfico atual. Como os significados dos conceitos

variam conforme a tendência de pensamento considerada, optamos aqui pelo

estudo do lugar na perspectiva da Geografia Humanista, sob influência do método

fenomenológico.

A pesquisa prático-colaborativa de inspiração hermenêutica-fenomenológica é

uma modalidade da pesquisa-ação. Kemmis e Wilkinson (2011), ao discutirem o

contexto da pesquisa na formação e no trabalho docente, fazem referência a

aspectos que interessam a nossa pesquisa; eles caracterizam a pesquisa-ação

como sendo participativa, além de prática e colaborativa, dentre outras

características. Para os autores essa abordagem investigativa é participativa porque

“envolve pessoas para o exame de seu conhecimento (entendimentos, habilidades e

valores) e categorias interpretativas (os modos pelos quais elas interpretam a si

mesmas e sua ação no mundo social e material)”. Cada indivíduo do grupo procura

participar, nesse processo, “da condução de como seu conhecimento modela sua

noção de identidade e de ação, e refletir criticamente sobre como seu conhecimento

atual estrutura e restringe sua ação”. A pesquisa-ação é também prática e

colaborativa na medida em que “envolve as pessoas para o exame das ações que

as ligam a outras pessoas na interação social”. (KEMMIS E WILKINSON, 2011, p.

42). Podemos entender que nesse processo de investigação a interação entre as

pessoas permite explorar seus atos de comunicação, produção e organização social.

Sobre a concepção de pesquisa-ação na formação docente, Franco e Lisita

(2014, p. 50) ressaltam que “quando se fala em pesquisa-ação, há que se definir o

sentido epistemológico que lhe estamos imprimindo”. As autoras destacam Grundy

(1988) que, fundamentando-se no pensamento habermasiano, identifica três

modalidades de pesquisa-ação: técnico científica, prático-colaborativo e crítico-

emancipatória. Essa autora caracteriza a Pesquisa-ação prático-colaborativa como

uma pesquisa que tem como base filosófica a Fenomenologia, valendo-se dos

seguintes aspectos: a) da hermenêutica e da historicidade; b) da natureza múltipla

da realidade pesquisada, construída e multirreferencial; c) do problema definido em

A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO

DE 9 A 12 DE OUTUBRO

5086

situação; d) da relação sujeito/objeto interacional, subjetivista e dialógica; e) do foco

de ação voltado para a compreensão mútua e a busca de sentidos por mecanismo

indutivo; do caráter descritivo da produção do conhecimento; f) da duração

relativamente longa da mudança, na dependência dos sujeitos; g) da compreensão e

ressignificação dos eventos por meio de trabalho reflexivo; h) do propósito da

pesquisa em compreender os contextos em que se vive para descobrir os sentidos

atribuídos.

Como já mencionamos, interessamo-nos por essa linha de investigação com o

intuito de compreender aspectos da consciência das professoras, para descobrir os

sentidos que elas atribuíam ao conceito de lugar no ensino de Geografia dos anos

iniciais do Ensino Fundamental. A partir dessa compreensão, mediar

pedagogicamente o estudo do lugar segundo referenciais teórico-metodológicos da

Geografia Escolar e sugerir o desenvolvimento de atividades de ensino com o

estudo desse conceito na perspectiva da Geografia Humanista sob a influência do

método fenomenológico. Este método permite desvendar o fenômeno pesquisado

além da aparência, não se limitando a uma descrição3 passiva. “É simultaneamente

tarefa de interpretação4 (tarefa da Hermenêutica) que consiste em pôr a descoberto

os sentidos menos aparentes, os que o fenômeno tem de mais fundamental”.

(MASINI, 2006, p.63).

O nosso estudo procurou levar em conta a fenomenologia existencial de

Merleau Ponty como o fundamento teórico para o método desenvolvido. As

concepções existenciais deste autor são os conceitos-chave que levam à elaboração

da trajetória para a pesquisa fenomenológica, seguindo os seguintes passos: a

descrição, a redução, a análise e a interpretação fenomenológicas; a análise

ideográfica e a análise nomotética, desvelando e descrevendo as verdades gerais

sobre a concepção de lugar das professoras que ensinam Geografia nos anos

iniciais do Ensino Fundamental da escola pesquisada. Buscamos, assim, revelar a

3 Descrição- em fenomenologia é um caminho de aproximação do que se dá, da maneira que se dá e

tal como se dá, ou seja, refere-se ao percebido do fenômeno, pressupõe alcançar sua essência. 4 Interpretação- trabalho do pensamento que consiste em decifrar o sentido aparente, em desdobrar

os sinais de significação implicados na significação literal... há interpretação onde houver sentido múltiplo e é na interpretação que a pluralidade de sentidos torna-se manifesta.”

A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO

DE 9 A 12 DE OUTUBRO

5087

intencionalidade dessas professoras ao ensinarem a construção do conceito de

lugar na Geografia.

3 A construção do conceito de lugar no ensino de Geografia nos primeiros

anos do ensino fundamental

A compreensão dos sentidos atribuídos pelas professoras ao conceito de lugar

no ensino da Geografia levou-nos a constatar limites em relação à compreensão

desse conceito na perspectiva da Geografia Humanista. Nessa linha de pensamento

o sentido de lugar revela-se “enquanto essência da experiência geográfica (ser-no-

mundo)5, ligados de diferentes maneiras à paisagem e ao território”. (MARANDOLA

JR., 2012, p.XV). A noção de lugar nessa perspectiva não deve se confundir com a

definição de espaço ocupado, com sítio, povoação, localidade, região, país, posição

geográfica, etc. como é comum encontrarmos em consulta aos dicionários ou

mesmo no ensino da Geografia Tradicional. É essa ideia que, geralmente, está na

mente das professoras quando definem lugar ao ensinarem Geografia para as

crianças, como uma crença unívoca do conceito de lugar. Por meio de processos

reflexivos, ela pode ser problematizada, mediante a suspensão dessa crença.

Assim, surgiu a possibilidade de transformar as expressões habituais das

professoras em expressões próprias que sustentam o discurso do conceito de lugar

na perspectiva da análise geográfica que nos propomos nesse estudo. Para isso,

procuramos discutir com as professoras o conceito de lugar à luz de concepções

teórico-conceituais atuais da área possibilitando assim a compreensão dos

significados dos dados obtidos no universo do conhecimento científico.

Para ressignificar a noção de lugar realizamos uma espécie de suspensão da

crença conceitual das professoras e mediamos pedagogicamente o estudo do lugar

segundo referenciais teórico-metodológicos da Geografia Escolar. Os nossos

estudos envolveram discussões acerca das temáticas: “Geografia e a realidade

escolar contemporânea: avanços, caminhos, alternativas” (CAVALCANTI, 2010);

5 Em Ser e Tempo, com o conceito de ser-no-mundo, Heidegger pretendia caracterizar a

simultaneidade de mundo e homem, mostrando que a existência do homem recebe seu sentido da sua relação com o mundo e que este obtém sua significação através do homem.

A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO

DE 9 A 12 DE OUTUBRO

5088

“Conceitos geográficos, conhecimento e autonomia do aluno” (COSTELLA, 2012);

“O significado do Lugar na Geografia” (EVANGELISTA et all, 2010) e “Estudar o

lugar para compreender o mundo” (CALLAI, 2012). A partir desse estudo planejamos

as intervenções pedagógicas para possibilitar a construção do conceito de lugar na

perspectiva humanista-fenomenológica da Geografia Escolar.

Machado (2010, p. 13), desejando encontrar um novo jeito de pensar a

infância questiona: “Existe uma educação fenomenológica a ser dada às crianças?”.

Ao perceber que esse questionamento continha um “erro metodológico”, a autora

ressalta que para “atingir uma pedagogia fenomenológica” é fundamental considerar

que esta, em coerência com o método em questão, é uma pedagogia sem

pressupostos iniciais, delineada pela compreensão da forma como a criança

compreende o mundo, tal qual ela se apresenta. Concordando com Machado(2010),

descobrimos na Fenomenologia uma justificativa para a nossa maneira de pensar a

educação e o ensino de Geografia que praticávamos.

Foi com base nesse método, aperfeiçoado por Merleau-Ponty, que procuramos

construir o conceito de lugar com crianças das turmas em estudo, assumindo junto

aos partícipes uma atitude fenomenológica. Nesse sentido, procuramos organizar

um conjunto de atividades sobre o conceito de lugar na perspectiva em tela. Na

seleção do conteúdo levamos em conta a programação que já vinha sendo

desenvolvida pelas professoras, com notória influência do livro didático. O diferencial

seria trabalhar o conteúdo a partir dos aspectos ligados ao conceito de lugar.

A educação de uma forma em geral precisa compreender melhor as

percepções infantis para elaborar situações didáticas que valorizem a forma da

criança de ser e estar no mundo para auxiliar no seu desenvolvimento cognitivo.

Assim, no 2º ano as atividades foram elaboradas com o objetivo de trabalhar as

percepções do aluno em relação aos lugares de vivência e mediar a construção do

conceito de lugar por meio das diferentes linguagens: escrita, gráfica (desenhos) e

oral. Ao pensar, sentir e refletir sobre o que as crianças nos disseram sobre esses

espaços vividos, percebemos que eles tornaram-se significativos pelas relações

afetivas envolvidas geradoras de aconchego e segurança.

A casa, nessa perspectiva, assume a condição daquele lugar expresso por

Dorothy Gale no filme “O mágico de Oz” ao despertar nela o sentimento que permitiu

A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO

DE 9 A 12 DE OUTUBRO

5089

a ela afirmar que não existe lugar como o nosso lar. Nessa perspectiva não se trata

de considerar casa como “objeto”, não objetiva-se valorizar a descrição da

habitação, mas a importância do habitar, de compreender o valor da casa como

espaço vital, como nosso enraizamento, como “nosso canto no mundo”

(BACHELARD, 1988, p.111-112). Outras atividades como essa foram desenvolvidas

com o intuito de ampliar a dimensão espacial da criança, utilizando-se outras formas

de linguagem como o desenho.

No 3º e 5º ano planejamos uma aula de campo em consequência da afirmação

da professora de que os alunos não tinham a cidade de Teresina como referência de

vivência espacial. Essa abordagem metodológica pode ser vista como possibilidade

de propiciar ao aluno o interesse pelo estudo do lugar vivido e a compreensão de

que pertence a este lugar. Interessava-nos apresentar Teresina de alguma forma

para essas crianças, portanto decidimos planejar essa aula elaborando um roteiro

que levasse-nas a percorrerem as áreas mais conhecidas de Teresina, aquelas que

mais identificam essa cidade.

Em campo, orientamos o olhar das crianças desde a partida, observando o

entorno da escola e continuando com essa orientação ao percorremos as principais

ruas da cidade para que reconhecessem e interpretassem as paisagens do lugar.

Para não nos limitarmos em levar as crianças apenas a “verem”, dialogamos com

elas procurando entender o “porquê” da existência desses lugares, ora explicando,

ora ouvindo-nas sobre o que sabiam sobre eles. Isto porque concordamos com

Flickinger (2014, p.85), baseado no pensamento de Gadamer, que o diálogo vivo é

visto tradicionalmente como o meio em que a verdade aparece, mas que “está hoje

marginalizado, suplantado que foi pela primazia do ver. Dessa forma, o registro da

compreensão dos alunos ocorreu por meio da linguagem oral, em debate sobre as

percepções do lugar, por meio de desenhos e produção textual.

Considerando que as crianças do 3º ano, em sua maioria, ainda apresentavam

dificuldades para registrar por escrito a sua compreensão, além da oralidade

proporcionada pelo diálogo, pedimos que elas desenhassem o que aprenderam

sobre Teresina na aula de campo. Na perspectiva metodológica da nossa pesquisa

a análise dos desenhos ou de qualquer outra forma de expressão acerca da

construção do conhecimento pelas crianças, é realizada por meio de descrições que

A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO

DE 9 A 12 DE OUTUBRO

5090

fazemos no intuito de narrar a maneira dela de ser e estar na relação com o espaço

vivido nesse momento da pesquisa. Segundo Machado (2010, p.104) “é próprio da

descrição fenomenológica não fazer juízo de valor”, portanto não analisamos os

desenhos estabelecendo classes segundo etapas de desenvolvimento do desenho e

nem julgando se a criança desenha bem ou mal, certo ou errado, se apresentam

perspectivas, proporções entre os elementos desenhados, etc.

Sabemos da importância do desenvolvimento dessas noções para as

construções e representações do espaço pela criança no processo de alfabetização

cartográfica. No entanto, o nosso objetivo com a atividade do desenho não envolvia

essa abordagem, mas uma abordagem que nos permitisse compreender a relação

que se estabeleceu entre a criança e a percepção que tiveram de Teresina, de como

ela vivenciou a experiência de observar e reconhecer a cidade como um espaço de

pertencimento.

No quinto ano, o registro da percepção dos alunos acerca da cidade de

Teresina como espaço vivido6 ocorreu por meio de uma produção textual orientada

por um roteiro que conduzia a sistematização das ideias solicitando informações

sobre a identidade da cidade, a importância dela para os discentes, a afetividade

pelo lugar e a descrição da experiência oportunizada pela aula de campo.

Defendemos a ideia de que a prática de escrita e leitura é responsabilidade de todas

as áreas do conhecimento, de tal forma que os textos produzidos apresentaram

conteúdo significativo em relação ao conceito em construção. O trecho a seguir

exemplifica o nível dos textos produzidos:

Teresina é a melhor cidade que existe porque tem coisas típicas importantes como a lenda do Cabeça-de-cuia, o rio Parnaíba e o encontro dos rios. Também tem suas comidas típicas como: o baião-de-dois, creme de galinha e a maria-isabel [...] eu amo viver em Teresina, não só eu, mas todos os que vivem nela [...] sabe o que eu mais gostei? Foi quando a gente viu o encontro dos rios, foi a coisa mais linda [...] (J. Ávila –aluna do 5º ano).

As práticas que ora descrevemos baseia-se na concepção de que, o aluno será

mais capaz para analisar outras identidades espaciais se entender melhor a sua, se

6 Espaço vivido: “conjunto contínuo dinâmico, no qual o experimentador vive, desloc-se e busca um

significado. É um horizonte vivido ao longo do qual as coisas e as pessoas são percebidas e valorizadas”. (BUTTIMER,1982, p. 174). “[...] conclusões similares sobre a experiência de lugar”. (BUTTIMER,1982,p.178)

A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO

DE 9 A 12 DE OUTUBRO

5091

o lugar de vivência fizer parte significativamente de sua leitura geográfica do mundo.

Concordando com Costella (2012, p. 65), “o entendimento do contexto do aluno, de

como ele se vê, como se reconhece nesse lugar, como reconhece os outros, é o

primeiro passo para que compreenda outros elementos identitários em diferentes

escalas geográficas”.

4 Considerações Finais

Acreditamos que a partir de abordagens metodológicas como essas que

propusemos, propiciadoras do reconhecimento do espaço vivido, os alunos de

Geografia dos anos iniciais, etapa de ensino que ainda é empobrecida pela carência

dos fundamentos da Geografia Escolar, serão capazes de reconhecer a sua

identidade enquanto sujeitos pertencentes ao seu lugar de vivência. Com esse

reconhecimento construirá conhecimentos para agir como cidadãos responsáveis

pelas transformações espaciais de sua realidade. Além de que serão capazes de

comparar as paisagens locais e distantes nas suas manifestações naturais e

culturais com maior eficácia. Dessa forma, criam-se para esses alunos

possibilidades melhores de ser e estar no mundo.

Finalizamos a descrição das intervenções realizadas com a aspiração de que

elas sejam interpretadas como proposições que possam contribuir com o

desenvolvimento de práticas significativas para a educação geográfica,

principalmente para os professores pedagogos que trabalham com o ensino de

crianças dos anos iniciais do Ensino Fundamental, mas que não têm formação

específica na área, carecendo muitas vezes do domínio conceitual e metodológico

da Geografia Escolar.

REFERÊNCIAS

ARANTES, V. A. Afetividade na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Sumus, 2003. BICUDO, M. A. V. Pesquisa qualitativa segundo a visão fenomenológica. São Paulo: Cortez, 2011. BUTTIMER. A. Aprendendo o dinamismo do mundo vivido. In Antonio Cristofoleti (Org.). Perspectivas da Geografia. São Paulo: Difel, 1982, p. 165.193 CALLAI, H. C. Aprendendo a ler o mundo: A geografia nos anos iniciais do ensino fundamental. Cad. Cedes, Campinas, vol. 25, n. 66, p. 227-247, maio/ago. 2005. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br

A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO

DE 9 A 12 DE OUTUBRO

5092

CAVALCANTI, L. S. Geografia e práticas de ensino. Goiânia: Alternativa, 2002. CAVALCANTI, L.S. A Geografia Escolar e a Sociedade Brasileira Contemporânea. In TONINI, I. M. Porto Alegre: Ufrgs, 2011. DINIZ-PEREIRA, J. E. A pesquisa dos Educadores como estratégia para a construção de modelos críticos de formação docente. In DINIZ-PEREIRA, J. E. e ZEICHNER, K.M.(Orgs.): A pesquisa na formação e no trabalho docente. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. EVANGELISTA, A. M. et all. Fundamentos de Didática da Geografia. Teresina: EDUFPI/UAPI, 2010. FLICKINGER, H-G. Gadamer e a Educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014. HOLZER, W. O conceito de lugar na Geografia Cultural Humanística: uma contribuição para a Geografia Contemporânea. GEOgrafia - Ano –V Nº10 – 2003 KAERCHER, N. A. Se a geografia escolar é um pastel de vento o come a geografia crítica. Porto Alegre: Evangraf, 2014. KEMMIS, S.; WILKINSON, M. A pesquisa-ação participativa e o estudo da prática. In DINIZ-PEREIRA, J. E. e ZEICHNER, K.M.(Orgs.): A pesquisa na formação e no trabalho docente. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. LOWENTHAL, D. Geografia, experiência e imaginação: em direção a uma epistemologia geográfica. In: Christofoletti. A. ( Org.). Perspectivas da Geografia. São Paulo: DIFEL, 1985. p. 105. MACHADO. M. M.. Merleau-ponty & a Educação . Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. MARANDOLA JR. E. Sobre ontologias. In Marandola Jr. E. et. Al. (org.). Qual o espaço do lugar? São Paulo: Perspectiva, 2012. MARTINS, J. Um enfoque fenomenológico do currículo: educação como poíesis. São Paulo: Cortez, 1992.

MARTINS J., BICUDO M.A. A pesquisa qualitativa em psicologia: fundamentos e recursos básicos. São Paulo: Moraes,1989. MASINI, E. S. Enfoque fenomenológico da pesquisa em educação. In: Fazenda, I. (Org.). Medologia da pesquisa educacional. São Paulo: Cortez, 2003. MORIN, E; CIURANA, E-R.; MOTTA, R. D. Educar na era planetária: o pensamento complexo como método de aprendizagem pelo erro e incerteza humana. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2009. OLIVEIRA, M. K. Vygotsky e o processo de Formação de Conceitos. In Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas em discussão/ Yves de La Taille, Marta Kohl de Oliveira, Heloysa Dantas. São Paulo: Summus, 1992. SILVA, T. T. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. SILVA, T. T. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. TUAN, Yi-FU. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência; tradução de Lívia de Oliveira. – São Paulo: DIFEL, 1983. TUAN, Yi-FU. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente; tradução de Lívia de Oliveira. – São Paulo/Rio de Janeiro: DIFEL, 1980.