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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE LETRAS A Edição do Livro Indígena: O processo de surgimento do livro de Bartolomeu Warakuxi da etnia Manoki Iuri França de Queiroz

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE LETRAS

A Edição do Livro Indígena:

O processo de surgimento do livro de Bartolomeu

Warakuxi da etnia Manoki

Iuri França de Queiroz

2

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE LETRAS

A Edição do Livro Indígena:

O processo de surgimento do livro de Bartolomeu

Warakuxi da etnia Manoki

Monografia apresentada ao curso de Graduação em Letras/UFMG como requisito parcial à obtenção do titulo de Bacharel em Letras com ênfase em Edição. Orientadora: Profª Maria Inês de Almeida

Iuri França de Queiroz

2011

3

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................4

OS MANOKI.....................................................................................8

A LÍNGUA ......................................................................................13

O PROCESSO DE EDIÇÃO...........................................................17

O ESPAÇO DO LIVRO ..................................................................19

RELATO DA EXPERIÊNCIA........................................................22

CONCLUSÃO.................................................................................27

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. ERRO! INDICADOR NÃO

DEFINIDO.

4

Introdução

O termo Literatura indígena é ainda novo e, para alguns, causa bastante

controvérsia devido ao peso que a palavra Literatura possui na “cultura ocidental”. O fato é

que os povos indígenas e suas tradições orais estão, com cada vez mais força, adentrando o

universo da escrita alfabética, e isso traz conseqüências novas e interessantes para diversas

culturas e também para a cultua do impresso.

Este trabalho propôs-se a acompanhar e registrar o processo de algo que vem

acontecendo há alguns anos na Universidade Federal de Minas Gerais, mais

especificamente no Núcleo de Pesquisas Literaterras da Faculdade de Letras: a produção de

livros – material didático, literatura escrita, oral e audiovisual – de autoria indígena. Esse

acompanhamento foi feito através da participação na feitura de um livro por Bartolomeu

Warakuxi, professor indígena da etnia Manoki, do estado do Mato Grosso. O projeto foi

escolhido por ser idealizado por um autor indígena de uma comunidade que, apesar de bem

pequena, ainda possui falantes da “língua materna” – como foi chamada pelo próprio

Bartolomeu, mesmo sendo o português sua primeira língua. Esse termo, “materna”, é

pertinente porque a língua de seus ancestrais, de sua origem, da origem do seu povo, é o

Manoki. Dessa forma, a questão linguística será um ponto crucial: além da enorme

importância para qualquer cultura, a língua, para os indígenas, é uma grande ferramenta

para conseguir maior força política para vencerem a luta pela terra, pela sobrevivência e

pelo reconhecimento de suas culturas dentro de um território nacional com tradição

totalizadora.

5

Os Manoki são uma etnia com cerca de 400 representantes, dividindo o território

brasileiro com outros cerca de 400 mil indígenas (reconhecidos pela FUNAI) de outras

etnias, compondo a população brasileira incrivelmente diversificada de 190.732.694

pessoas1. Como já citado antes, os Manoki são uma população reduzida, e por isso sofreram

muito com o contato com os brancos, levando a uma quase total perda da língua, devido às

missões jesuíticas que ocupavam sua região de origem.

Hoje em dia, o livro indígena é, em quase todos os casos, principalmente em etnias

que possuem poucos falantes da língua “materna” – decidi usar o mesmo termo que

Bartolomeu – uma “tomada de fôlego” da cultura em meio ao mar hegemônico do

português e do ocidente. Em toda democracia, a diversidade e o respeito a ela é algo de

enorme importância, e é por isso que acredito que a luta pelos direitos indígenas deva ser

uma causa prioritária em nossa sociedade. Luto para que esses povos sejam reconhecidos e

valorizados, caso contrário estaremos vivendo no “1984”2 de George Orwell.

Apesar da enorme importância da questão cultural e de todas outras questões que a

envolvem, é importante ressaltar que esse trabalho de pesquisa é essencialmente um

trabalho de edição, e que as questões culturais, linguísticas, de autoria, são problemáticas

que existem em todo tipo de publicação, não só nas indígenas. Por isso, uma parte desse

trabalho será dedicada a explicar o que é a edição, o papel do editor, do preparador de

originais, do ilustrador, enfim, de todos os profissionais e processos necessários para que se

transforme um texto em um livro.

Vale ser mencionada também a questão da autoria que costuma “vir à tona” durante

diversas produções artísticas e culturais dos indígenas. No caso dos livros, em sua maioria

1 Dados do IBGE. 2 Obra de George Orwell que possui como tema principal a liberdade social.

6

são criados coletivamente, por representantes da etnia, que geralmente não se apresentam

como autores, e mesmo que se apresentem noto, por experiência própria, que a postura

deles é muito mais de copistas3 que de autores. Paulo Evaristo Arns lista a tarefa do escriba

em seu livro A Técnica do Livro Segundo São Jerônimo: “copiar o texto, confrontá-lo com

o exemplar, corrigi-lo, e ficar atento a qualquer inadvertência que pudesse causar novos

erros”. Para os indígenas, a “transcrição” é feita do conhecimento e sabedoria dos velhos, e

observo o mesmo cuidado de escriba no processo de registro desse conhecimento que, na

realidade, é um conhecimento comunitário. Por isso, na grande maioria das produções,

como pude observar através de minha participação em meio à produção de diversas

publicações indígenas no Núcleo Literaterras, a literatura indígena possui o nome, ou

marca4 da etnia na capa, ou às vezes não possui nenhuma identificação no lugar que ficaria

o nome do autor na “Literatura ocidental”. Isso talvez se deva à coletividade em que as

sociedades indígenas geralmente se organizam, e em que seus livros também são

organizados. Para ALMEIDA, “a autoria se encontra diluída entre transmissores orais,

escritores – tradutores e transcritores, recriadores...”5. Dessa forma, “é o processo editorial

que passa a representar, neste caso, o princípio literário de autoria”6.

A diferença essencial do livro indígena para outros tipos de publicação está ligada,

além da tradição oral e da língua, à grande valorização da imagem que essas culturas

promovem: vemos isso nas vestimentas, nas pinturas, nos apetrechos, e agora também nos

livros desses povos que chamamos de índios. Nesses livros, abundantes em desenhos e

3 A palavra “copistas” aqui se refere àquele que reproduzia, em séculos passados, os conhecimentos contidos nos livros, principalmente nos da Igreja. 4 Marca aqui tem o sentido de grife. Krenak, Maxakali, Pataxó, esses nomes inscritos na capa de um livro funcionam como instrumento de afirmação, reforço ou até divulgação dos povos. Porém, acima de tudo, representam um estilo. 5 pg. 222 6 pg. 198

7

detalhes, percebemos também uma valorização da imagem da letra. Charles Bicalho, em

sua tese de doutorado sobre a poética Maxakali, explica:

...pode-se pensar numa “letra” maxakali, na medida em que escrever livros, para os índios, conscientemente, vai muito além da mera transmissão de seus contos, mitos, cantos e significados; [...] Talvez se possa pensar também que a maior importância da escrita para eles é mesmo essa, além de sua função transmissora de mensagens: a da letra enquanto objeto manipulado para troca, sobretudo simbólica, com o outro. 7

A letra não é apenas uma ferramenta, um instrumento para difundir uma mensagem,

ela é a própria mensagem. O significado que o livro e a letra têm para os brancos é

assimilado, reutilizado, “reinventado”, “incorporando assim um importante aspecto da

sociedade alienígena que os envolve”8. No livro Desocidentada, Maria Inês de Almeida

também propõe: “os povos indígenas se apropriam da escrita alfabética porque vêem nela

antes uma dimensão não-alfabética”. Essa dimensão não-alfabética da escrita é uma além

do mundo do poder e da propriedade, “é o do convívio estético”, de um princípio artístico

aonde significado e significante não se separam. Por isso, o projeto gráfico, que é

geralmente resultante de oficinas coletivas, é o que tem, talvez, um dos papéis mais

importantes em uma publicação indígena: a história, a cultura, a marca de um povo

indígena gira em torno de imagens, e com o livro não é diferente:

O produto final aponta para um modelo de texto cuja leitura demandaria antes os cinco sentidos do corpo, ao invés de um modelo logocêntrico, racional. [...] ...pude observar que o texto verbal não tem predominância absoluta na produção de sentidos, como se dá normalmente com a literatura escrita. Podemos sobrepor ao conceito de livro, o de projeto gráfico, considerando esse termo na sua literalidade...

7 Pg. 202 8 pg. 202

8

Enfim, o livro indígena, seja Manoki, seja de qualquer outra etnia, é um assunto

novo – em vários aspectos – e, por isso, problematizações não faltam. Tanto o livro é algo

novo no mundo indígena, quanto à autoria indígena é nova no mundo do impresso. Esse

tipo de experiência, tão fresca e tão única, precisa ser registrada para que trabalhos futuros

se inspirem e se concretizem a partir de diversas informações importantes que aparecem

através do relato. Por isso, incluí nesse trabalho uma pequena descrição da trajetória, do

que foi produzido e como aconteceu a visita de Bartolomeu Warakuxi à Belo Horizonte,

aonde ele permaneceu uma semana trabalhando na criação do livro de seu povo.

Devido à escassez de bibliografia sobre o assunto, exatamente por ser algo tão

contemporâneo, boa parte da informação que será discutida aqui não virá dos livros –

apesar do assunto ser esse, ironicamente – mas sim da minha própria experiência de

construir um livro junto a um autor indígena, de trabalhar como monitor em um curso de

formação de professores indígenas (FIEI) e da experiência de outras pessoas que participam

ativamente da produção de livros indígenas. Acredito que essas sejam as melhores fontes de

informação que existam hoje sobre esse assunto: pessoas que trabalham na prática fazendo

livros indígenas. Por isso, foram entrevistados a professora Maria Inês de Almeida,

coordenadora do Núcleo de Pesquisas Literaterras, responsável pela publicação de

inúmeros títulos de autoria indígena; e o próprio Bartolomeu Warakuxi, autor indígena que

esteve em Belo Horizonte de 13 a 20 de outubro para trabalhar na organização editorial de

seu livro.

Os Manoki

9

Os Manoki, conhecidos também como Iranxe ou Irantxe, é um povo que vive no

município de Brasnorte, no Mato Grosso, em duas terras indígenas: a TI Irantxe, na região

do rio Cravari e a TI Myky, às margens do rio Papagaio. A TI Myky é habitada pelos

Myky, um povo parente dos Manoki, porém com uma história diferente: só vieram a ter

contato com o homem branco a partir dos anos 1970, e por isso, ainda possuem a língua

indígena como primeira língua, ao contrário dos Manoki, que possuem apenas alguns

falantes da língua, sábios idosos. A Terra Indígena Irantxe:

vem sendo ocupada desde a década de 80 por grandes empreendimentos agrícolas com predomínio de culturas mecanizadas (produção de soja, arroz, milho e cana, com alto índice de utilização fertilizantes industriais e defensivos agrícolas) e a presença de uma intensa atividade pecuária. O resultado tem sido o desmatamento crescente, o envenenamento das fontes de água, o empobrecimento da fauna e flora regionais e restrições à movimentação dos Manoki fora de sua área demarcada.9

Os Manoki são falantes de uma língua que não possui proximidade com outras

famílias lingüísticas, trata-se de uma língua isolada. O Instituto Sócio Ambiental (ISA)

oferece a seguinte informação sobre a história dos Manoki:

Em meados do século XX, a maior parte dos sobreviventes não viu alternativa senão viver em uma missão jesuítica, responsável por profunda desestruturação sócio-cultural do grupo. Em 1968, os Manoki receberam do governo federal uma terra fora de sua área de ocupação histórica, cujas características ambientais inviabilizaram o uso tradicional dos recursos. Destino um pouco diverso teve os Myky, grupo Manoki que se manteve isolado da sociedade nacional até 1971. Desde então, passaram a sofrer igualmente as conseqüências do cerco da especulação imobiliária em seu território.10

Dessa forma, os Myky mantêm sua língua, enquanto os Iranxe buscam revitalizar a sua.

Ambas as línguas são muito similares, praticamente iguais.

Os Manoki, por terem sofrido tanta opressão em sua história de contato intenso com

os brancos, são um povo com necessidade urgente de registro e afirmação de sua cultura e

9 http://pib.socioambiental.org/pt/povo/menky-manoki 10 Idem

10

de sua língua. Ruth Monserrat, linguísta que pesquisou a língua Myky relata que o povo

Myky foi “[...] desgarrado da sociedade Iranxe desde o massacre do córrego Tapuru –

ocorrido em 1900, promovido por Domingos Antonio Pinto, seringueiro que explorava a

região do vale do Rio Cravari -, só reencontrado e contatado em 1971-72”11. Os Myky são

um grupo de cerca de 80 indivíduos que, ainda hoje, são falantes de sua língua materna.

Esse fato é muito interessante, porque é algo que faz os Manoki se diferenciarem da

maioria das etnias que estão em processo de perda da língua indígena: eles têm a chance de

aprender a própria língua, que se perdeu por causa do contato com o homem branco,

através do contato com os Myky. Na língua, o termo “myky” significa “gente” ou “pessoa”.

Esta, assim como inúmeras outras palavras, são iguais em ambos os vocabulários, Myky e

Manoki.

Especula-se que a população Iranxe, muito pequena hoje, era de mais de mil pessoas

no começo do século XX, segundo uma reconstituição feita em 1992, por Pivetta12 com

auxílio de velhos Manoki. Quando as aldeias Manoki foram localizadas pela primeira vez,

em 1947, a população era de 258 pessoas, “constituindo já um reduzido número de

sobreviventes dos massacres, epidemias e ataques dos Tapayuna e Rikbaktsa”13. Apesar de

altos e baixos na população, segundo dados da OPAN (Operação Amazônia Nativa) do ano

2000, o número de pessoas se manteve relativamente o mesmo: 250. Quanto aos Myky,

desde o contato, nunca sofreram diminuição populacional. Eram 23 indivíduos em 72; 28

em 82; 33 em 1983; 31 em 1986; em 1997 eram 67; e em 2004 contavam 76 pessoas.

11 Ruth Monserrat em A língua do povo Myky. 12 PIVETTA, Darci Luiz. Processo de ocupação das dilatadas chapadas da Amazônia Meridional : Iranxe - educação etnocida e desterritorialização. Cuiabá : UFMT, 1993. 250 p. (Dissertação de Mestrado) 13 http://pib.socioambiental.org/pt/povo/menky-manoki

11

O modo de vida Manoki sofreu muito devido à perda populacional, expulsão de seu

território tradicional, catequese etc. As famílias costumavam cada uma fazer uma roça perto

da aldeia, aonde plantavam mandioca brava, milho fofo, batata doce, cará, batata, feijão

costela, feijão fava, araruta, urucum, algodão, amendoim e outras espécies. Hoje, de acordo

com o levantamento do ano 2000 realizado pela OPAN, “de 70 a 80% do solo da terra

indígena apresenta acidez elevada e fertilidade baixa. Nos outros 20 a 30% da área, os solos

são ainda mais pobres e inadequados ao tipo de plantio tradicional dos Manoki”. Os

Manoki foram retirados de seu território de ocupação tradicional, provavelmente por causa

de conflitos com fazendeiros, e assentados onde hoje é sua Terra Indígena. O Mato Grosso

deve assumir no ano de 2011 o primeiro lugar no ranking dos estados que mais desmatam

para criar pastos e plantações, segundo dados do Greenpeace14.

As roças tradicionais continuam a ser realizadas, algumas vezes (cada vez mais raras) acompanhadas dos ritos tradicionais. Porém, há uma crescente saída dos homens mais jovens para trabalhar em fazendas do entorno, ocasionando uma reorganização do padrão tradicional de divisão de trabalho e da composição das unidades de produção. Nesse quadro, o abandono gradativo e forçado de suas práticas agrícolas promove também a impossibilidade da transmissão destas práticas para as novas gerações, assim como dos rituais e conhecimentos associados.15

Diante de tantas dificuldades, o povo Irantxe luta para manter o pequeno espaço de

terra que possui, como ilustra o mapa da Terra Indígena Irantxe, retirado do Trabalho de

Conclusão de Curso em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Mato Grosso, de

Bartolomeu Warakuxi:

14 http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,agricultura-mais-do-que-pasto-impulsiona-desmatamento-em-mt,766397,0.htm 15 http://pib.socioambiental.org/pt/povo/menky-manoki

12

Mapa da Terra Indígena Irantxe

Esse trabalho, realizado pelo professor indígena, é um dos poucos documentos acadêmicos

sobre esse povo, e tem a importância de ter sido feito por um integrante dessa etnia, através

do curso de formação de professores indígenas de Barra do Bugres-MT, nos

proporcionando, assim, uma visão em primeira mão de quem é esse povo, tão pequeno e tão

pouco conhecido pela sociedade brasileira.

Acredito que quanto mais informação é produzida de forma escrita sobre uma etnia,

mais força sua comunidade ganha em nossa sociedade, onde a cultura do impresso, dos

documentos e da burocracia impera. É preciso lidar com o mundo como ele é, e não como

gostaríamos que ele fosse, por isso a importância desses povos com culturas

tradicionalmente orais aprenderem a cultura do impresso hoje: a cultura dominante tem o

poder de engolir as outras, caso não se adaptem a certas coisas. Grupos tradicionais se

veem muito dependentes do governo hoje em dia, devido à destruição do meio ambiente

natural, da floresta, que é de onde vêm toda tradição e todo o conhecimento desses povos.

13

As matas foram desmatadas e esses povos precisam se adaptar a isso para continuarem

sobrevivendo, até um dia, quem sabe, suas matas voltarem.

Dessa forma, vejo o interesse dos índios pelo impresso como nada mais, nada

menos que uma necessidade, porém um bem necessário que lhes foi tirado, e não um que

nunca existiu para eles. A escrita, pensada como algo muito além da escrita alfabética,

existe no modo de vida tradicional indígena, em suas vestimentas, em seu traço, em sua

pele, em seus rituais. O objetivo deles com o livro, além de serem levados a sério por nós,

brancos, é, principalmente, manter essa escrita através do impresso. Pois essa escrita é o

que os define, é o que os mantêm vivos.

A Língua

A língua portuguesa no Brasil nem sempre foi hegemônica como é hoje. Antes do

início da colonização, há uma estimativa de que existiam 1,2 mil línguas indígenas faladas

no território brasileiro16. GUIMARÃES17 define para o processo de hegemonização da

língua portuguesa no Brasil quatro períodos distintos: primeiro, o início efetivo da

colonização portuguesa em 1532 até a saída dos holandeses do Brasil em 1654, quando se

relacionavam o português, o holandês, as línguas indígenas e a língua geral, que era uma

língua de raiz Tupi falada pela maioria da população, chamada de brasílica, uma língua

franca vinda do Tupinambá:

16 Dados apresentados na Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (Rodrigues, 1993a, 1993b) 17 http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?pid=S0009-67252005000200015&script=sci_arttext

14

Apesar da grande diversidade de povos nativos no interior mais imediato à costa atlântica, uma característica da colonização européia do Brasil, não só da portuguesa, mas também das tentativas francesas, foi a de privilegiar o conhecimento do idioma dos tupinambás que era, como já no fim do século XVI foi consignado no título da gramática feita por José de Anchieta, "a língua mais usada na costa do Brasil" (Anchieta, 1595).18

No entanto, é preciso distinguir duas Línguas Gerais no período Brasil Colônia: a

paulista, que era falada pelos bandeirantes exploradores dos sertões, influenciando muito a

linguagem dos brasileiros; e a amazônica, que se desenvolveu a partir do Tupinambá nos

séculos XVII e XVIII, a partir do século XIX foi conhecida também pelo nome Nheengatu

(ie’engatú = “língua boa”), e hoje ainda é utilizada por alguns povos, como os Baré e os

Arapaço.

Depois, o segundo período foi do momento da saída dos holandeses até a chegada

da família real no Rio de Janeiro em 1808, que foi um período que “caracteriza-se por ser

aquele em que Portugal, dando andamento mais específico ao processo de colonização,

toma também medidas diretas e indiretas que levam ao declínio das línguas gerais”,

exemplos dessas medidas são a proibição do uso da língua geral nas escolas e o “Diretório

dos Índios”, de 1757, que, por iniciativa do Marques de Pombal, proíbe o uso de qualquer

outra língua na colônia que não a portuguesa.

O terceiro momento vai da chegada da família real em 1808 até 1826 - nesse

período, D. João VI cria a imprensa e a Biblioteca Nacional, que ajuda a circular a língua,

criando “um certo efeito de unidade do português para o Brasil”19.

O quarto período começa em 1826, data da formulação da política lingüística

nacional no parlamento, se transformando “de língua do colonizador em língua da nação

brasileira”. Hoje, esse processo totalizador da língua vem sendo questionado, e línguas

18 Idem 19 http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?pid=S0009-67252005000200015&script=sci_arttext

15

indígenas, como o Manoki do povo Irantxe, estão sendo valorizadas pela sociedade e um

novo processo de ressurgimento e reforço dessas línguas vem surgindo, apesar da língua

portuguesa ainda ser uma força quase esmagadora para elas, devido aos anos de imposição

histórica e ao forte contato direto com a sociedade envolvente.

Presentemente, são faladas em território nacional cerca de 180 línguas indígenas,

umas mais semelhantes entre si do que outras devido à proximidade ou distância dos

troncos e famílias lingüísticas. No Brasil, há dois grandes troncos lingüísticos – o Tupi e o

Macro-Jê – além de 19 famílias lingüísticas que não possuem traços semelhantes o

suficiente para serem incluídos em troncos. Existem também famílias de apenas uma

língua, denominadas “línguas isoladas” por não se identificarem com nenhuma outra língua

conhecida, como é o caso da língua Manoki falada pelos Irantxe. O Instituto Sócio-

Ambiental disponibilizou em seu site organogramas que identificam os troncos, famílias e

línguas indígenas do Brasil, com informações retiradas do livro de Ayron Dall’Igna

Rodrigues20:

20 Ayron Dall’Igna Rodrigues, Línguas brasileiras – para o conhecimento das línguas indígenas (São Paulo, Edições Loyola, 1986, 134 p.)

16

17

Hoje, as escolas indígenas, de maneira geral, procuram ensinar a escrita das línguas

indígenas, mas isso ainda é muito recente. Bartolomeu Warakuxi, professor de língua

indígena, relata que esse ensino começou a apenas cinco anos atrás (2006) nas escolas

Manoki. Na história do Brasil, a escola foi uma das grandes responsáveis pelo

enfraquecimento e desprestígio de muitas línguas indígenas: os índios eram alfabetizados

apenas em português, mesmo quando essa era uma língua que eles não falavam. Hoje, a

alfabetização em português é necessária e útil para os povos indígenas, pois é nessa língua

que as leis, a constituição, documentos e títulos estão escritos. É preciso ter o conhecimento

de português para, simplesmente, saber quais são os direitos indígenas. A alfabetização em

língua indígena, no entanto, significa aumentar seu prestígio e sua funcionalidade, e, mais

ainda, a possibilidade de uma literatura com voz própria, tornando essa posição de

dominação da língua portuguesa menos invasiva e esmagadora.

O processo de edição

É necessário descrever rapidamente as etapas que compõe a edição de um livro

impresso, já que esse trabalho se propõe a servir de auxílio ao estudante ou profissional de

Edição. Resumindo, o processo de edição se compõe de três elementos básicos: a edição do

texto escrito, a preparação de originais e a criação/execução do projeto gráfico.

O editor de texto possui inúmeras responsabilidades. Ele deve primeiramente fazer

uma leitura rápida do manuscrito, observando o estilo, a linguagem e a organização para

que as necessidades da obra sejam percebidas e as lacunas preenchidas. Ele deve definir

com o diagramador, o corpo e a mancha do texto, e também o tipo, de acordo com o padrão

18

que for adotar: se for um livro de uma coleção, por exemplo, ele deverá seguir os padrões

dela. O que mais precisar de ajustes, pelo autor ou por algum técnico ou profissional da

linguagem, deve ser explícito no interior do manuscrito, assim como as observações já

citadas, de forma a, só assim, os originais ficarem definidos para chegar às mãos do

preparador.

O preparador de originais então realiza a normalização21 do texto de acordo com o

conteúdo e o estilo desejados, de forma a deixar os originais prontos para a diagramação:

“...o preparador entra, podendo ainda melhorar a construção de uma frase, a paragrafação,

observar as falhas de estilo do autor, sempre com objetividade, não permitindo em

momento nenhum que interfira sua subjetividade”.22 O preparador precisa ter, além da

capacidade técnica para lidar com a linguagem, um bom conhecimento crítico do texto e de

tudo que envolve esse texto: um manuscrito redigido por um indígena, por exemplo, deve

ser cuidadosamente analisado, para que não se crie nenhuma discrepância de idéias devido

a diferenças culturais. A subjetividade e a diferença devem ser respeitadas, as preferências

pessoais do preparador jamais podem interferir na “autoria” do texto. No caso do texto

indígena, a autoria muitas vezes não é individual, o que torna mais difícil essa não

interferência. De qualquer forma, é essencial ter contato e discutir qualquer mudança com o

autor/autores, tendo sempre “jogo de cintura”, como diz Mitsue Morisawa em seu artigo na

Revista Viva Voz: Editoração, Arte e Técnica:

O jogo de cintura refere-se ainda ao fato de que não existe padrão normativo absoluto. O que vale num caso pode permanecer em aberto ou mesmo não ser aplicável em outro. Nesse jogo de possibilidades, o importante é conseguir a melhor solução para cada caso. Muitas

21 “...compreende os acertos de estilo, vocabulário, paragrafação, ortografia, reduções, realce gráfico, notas e remissivas, bibliografia e indexação. Dentro dessa escala de acertos incorporam-se a pesquisa onomástica, estatística, a verificação de dados, etc.” (Viva Voz, editoração arte e técnica, pg.10) 22 Viva Voz, editoração arte e técnica.

19

vezes a melhor solução dissolve a regra e faz a sensibilidade prevalecer sobre o rigor da norma.

A edição de livros indígenas pode ser definida por essa passagem. A norma para esses

livros não tem padrão rígido, porque, mesmo que a língua seja o português, a linguagem é

carregada de elementos extraocidentais: uma linguagem próxima à terra, à mata, à

paisagem, com muitos elementos locais.

Esses elementos vão além da palavra e além da escrita, e são muitas vezes

traduzidos nos livros indígenas por imagens. O cuidado com as imagens não é um mero

capricho, a maioria dos povos indígenas possuem imagens ancestrais23 que os definem

como povo. Dessa forma, o editor precisa ter o conhecimento necessário para saber tratar o

texto, valorizando o que deve ser valorizado em cada caso.

O Espaço do livro

O espaço de um livro vai além do corpo textual escrito que ele abriga. Título, nome

do autor, epígrafe, orelha, dedicatória, bibliografia, sumário, todos esses textos

“periféricos” são elementos importantes na composição do livro. Esses elementos

constituem o “paratexto”, e “é através dele que um texto se torna livro”24.

O livro antigo, anterior à imprensa, funcionava como uma cópia do discurso oral

apresentava-se de forma contígua, sem pontuação ou qualquer outro tipo de informação

além do título, que servia meramente como uma espécie de etiqueta. Em minha experiência,

no trabalho com textos indígenas e literatura indígena, observo que exatamente essa forma

23 O povo Kaxinawá, por exemplo, possui um conjunto de imagens chamado de Kenê. Cada imagem está relacionada a um significado ou a uma história. 24 Eliana Scotti Muzzi em seu artigo na Revista Viva Voz, editoração, arte e técnica.

20

“antiga” diferencia o texto dessas sociedades periféricas em relação aos demais. Por mais

que a produção moderna de livros tenha sido inserida nessas comunidades indígenas atuais

pelos brancos e, dessa maneira, sejam produzidas com alfabetos introduzidos por lingüistas

brancos e regras ensinadas a esses povos, observamos a presença do estilo da narrativa oral

muito forte na escrita.

Dessa forma, a questão que diferencia o paratexto de muitas das publicações

indígenas é a autoria. Como já foi dito, os livros indígenas costumam ser feitos

coletivamente e os indivíduos que participam não se apresentam como autores, mas têm

uma postura quase como de copistas. Por isso, em muitas produções de literatura indígena,

o nome do autor, comumente colocado na primeira capa de praticamente todas as

publicações do ocidente, é substituído pelo nome do povo, do grupo ou da língua,

funcionando como uma espécie de marca da etnia.

Pode-se dizer que o papel do livro, hoje em dia, para os povos indígenas, seja de

resgatar conhecimentos, além de preservá-los. Muitos povos têm a consciência de que estão

em franca mudança, de que suas tradições estão se distanciando, seja em razão do contato

intenso com os brancos, seja por outros motivos. O Popol Vuh, livro da cosmogonia Maia,

foi escrito em meados do século XVI sobre pele de veado, e uma de suas passagens diz o

seguinte: “Escrevemos isto dentro da lei de Deus, no Cristianismo, tiraremos a luz, porque

já não se vê o Popol Vuh, assim chamado, onde se via claramente a vinda do outro lado do

mar, a narração de nossa escuridão, e se via claramente a vida”. Vendo seu povo sendo

exterminado e dominado, e sua cultura desaparecendo, os sacerdotes Maias sentiram

necessidade de escrever a história que um dia foi escrita em seus templos, hoje em ruínas: a

escrita como ferramenta de preservação e resistência.

21

Como já foi dito, hoje muitos povos utilizam a escrita e os livros para obter esse tipo

de preservação, porém, com o fim da repressão a essas culturas – se não repressão, a

marginalização dessas culturas foi comum até a criação da constituição de 1988 – e o

prestígio das línguas e culturas indígenas aumentando dentro da sociedade brasileira, o

objetivo que carrega o livro, de resgatar e disseminar conhecimentos tradicionais,

aumentando o alcance da língua e da cultura, é uma das principais ferramentas de

sobrevivência e resistência desses povos. A luta pela terra, o maior desafio de todos os

povos indígenas em território nacional hoje, depende desses conhecimentos, do

reconhecimento por parte das autoridades e da aceitação por parte da população local

(muitas vezes, as comunidades são assentadas fora de seu território tradicional de origem e

não são bem aceitas pelos vizinhos). Porém, a escrita em língua indígena ainda está

engatinhando, longe de ser cristalizada como no caso do português. Por isso é tão

importante esse exercício, de produção de material, para seu fortalecimento.

Dessa forma, é possível perceber que a relação com a terra está presente não apenas

no conteúdo da maioria das publicações indígenas, mas também em seu “paratexto”: as

cores, a paginação, as bordas, as imagens. O livro indígena é imagético. Proponho

pensarmos que a escrita fica em segundo plano, e que o mais importante que o conteúdo,

para o indígena, é a imagem do livro. Segundo MUZZI25 “A função básica assumida pelo

paratexto desde sua criação está sempre presente: exibir o texto, apresentá-lo, encená-lo”,

porém, podemos pensar na literatura indígena como uma inversão de valores: seria o

próprio texto quem apresenta o livro? O livro indígena pode ser pensado como um objeto

com função em si mesmo, como uma obra de arte? As culturas indígenas possuem o traço

do aprendizado através da observação da natureza, como está escrito no poema de Kent

25 Eliana Scotti Muzzi em seu artigo na Revista Viva Voz, editoração, arte e técnica.

22

Nerburn, em seu livro “Neither Wolf nor Dog. On Forgotten Roads with an Indian Elder”,

com a tradução para o português achada na internet26:

ÍNDIOS NÃO TEM MEDO DO SILÊNCIO Nós os índios, conhecemos o silêncio, não temos medo dele. Na verdade, para nós ele é mais poderoso do que as palavras. Nossos ancestrais foram educados nas maneiras do silêncio e eles nos transmitiram esse conhecimento. "Observa, escuta, e logo atua", nos diziam. Esta é a maneira correta de viver. Observa os animais para ver como cuidam se seus filhotes; observa os anciões para ver como se comportam; observa o homem branco para ver o que querem. Sempre observa primeiro, com o coração e a mente quietos, e então aprenderás. Quanto tiveres observado o suficiente, então poderás atuar. Com vocês, brancos e pretos, é o contrário. Vocês aprendem falando. Dão prêmios às crianças que falam mais na escola, em suas festas, todos tratam de falar. No trabalho estão sempre tendo reuniões nas quais todos interrompem a todos, e todos falam cinco, dez, cem vezes e chamam isso de "resolver um problema". Quando estão numa habitação e há silêncio, ficam nervosos. Precisam preencher o espaço com sons. Então, falam compulsivamente, mesmo antes de saber o que vão dizer. Vocês gostam de discutir, nem sequer permitem que o outro termine uma frase. Sempre interrompem. Para nós isso é muito desrespeitoso e muito estúpido. Se começas a falar, eu não vou te interromper. Te escutarei, mas talvez deixe de escutá-lo se não gostar do que estás dizendo, mas não vou te interromper. Quando terminares, tomarei minha decisão sobre o que disseste,mas não te direi se não estou de acordo, a menos que seja importante. Do contrário, simplesmente ficarei calado e me afastarei. Terás dito o que preciso saber. Não há mais nada a dizer. Mas isso não é suficiente para a maioria de vocês. Deveriam pensar nas suas palavras como se fossem sementes. Deveriam plantá-las, e permiti-las crescer em silêncio. Nossos ancestrais nos ensinaram que a terra está sempre nos falando, e que devemos ficar em silêncio para escutá-la. Existem muitas vozes além das nossas, muitas vozes. Só vamos escutá-las em silêncio.

Assim, podemos pensar no livro indígena como algo que ensina pela imagem, quase

como uma obra de arte? As histórias, que estão próximas da oralidade, possuem uma

estrutura mítica, uma estrutura em si imagética. A descrição depende sempre de outros

elementos além da letra.

Relato da experiência

A vinda do professor indígena Bartolomeu Warakuxi, para fazer uma cartilha de

alfabetização em língua Manoki, já estava sendo planejada a muito tempo, desde o ano

passado, 2010, quando a colega Carolina Canguçu (que trabalha na ONG Filmes de

Quintal, que possui projetos conjuntos com o Núcleo Literaterras) foi à Aldeia Paredão e 26 http://www.ecolmeia.org.br/blog/indios-nao-tem-medo-do-silencio/

23

fez essa ponte entre a Universidade e o povo Manoki. O próprio Bartolomeu, então, dirigiu

um filme através do Vídeo nas Aldeias – projeto que busca a inserção do áudio-visual em

comunidades indígenas. Com ajuda da Carolina, marcamos a data de 13 a 20 de outubro

para que ele fosse à Belo Horizonte trabalhar na editoração de seu livro sobre a língua

Manoki.

Depois de muita expectativa, Bartolomeu chegou a Belo Horizonte, trazendo de sua

aldeia muito material bruto: um caderno cheio de palavras e frases traduzidas do português

para o Manoki, também com exercícios e histórias na língua; uma pasta com desenhos das

crianças estudantes da escola Manoki; uma pasta com desenhos e seus respectivos

traduzidos para Manoki; um dicionário Myky-Português com diversas alterações do Myky

para o Manoki, à caneta; uma cartilha Myky de alfabetização; papéis com histórias em

português; e diversas cópias de textos e livros, de autores brancos, sobre a língua e o povo

Manoki.

O primeiro passo foi decidir o que fazer com todo esse material, que tipo de livro

era possível criar a partir dele? A vontade de Bartolomeu era fazer uma cartilha de

alfabetização em língua Manoki. Ele, mesmo sendo professor de “língua materna”, não é

falante fluente dessa língua. Seu pai é um dos cerca de 15 falantes da língua que restaram

em toda comunidade Manoki, por isso, Bartolomeu entende tão bem a necessidade urgente

de registrar essa língua, como ele mesmo disse: “os velhos já estão indo, e se a gente não

aproveitar os velhos que têm, que estão restando, o que será de nós daqui uns anos?”27.

Sendo assim, o grande objetivo do autor é revitalizar sua língua, fazer com que as crianças

aprendam as palavras, a ler e a escrever nela. Mas cada conhecimento conta como ele disse:

“o aluno tem que saber que mais tarde ele vai precisar, não agora. Ele tem que saber que ele

27 Retirado da entrevista feita com o autor.

24

vai fazer faculdade, vai estudar coisa de branco, mas lá na faculdade ele vai precisar!”.

Mesmo que o aluno saia da aldeia e vá morar na cidade, essas pequenas palavras em

Manoki que ele aprender na escola irão fixar o lugar dele no mundo, como indígena, como

Manoki.

Sem mesmo decidir que tipo de livro fazer, nós resolvemos começar digitalizar o

material, para que pudéssemos pelo menos visualizar as letras de forma a ser possível

modifica-las no computador. Logo surgiu o primeiro problema: o alfabeto utilizado para se

escrever na língua Manoki não é o alfabeto latino, mas sim um alfabeto adaptado, uma

mistura do alfabeto fonético e latino: “Para escrever em língua materna Manoki usamos 18

letras, cinco dígrafos (duas letras juntas) e cinco sinais diacríticos, correspondendo aos

fonemas: a a= e h i j k kj l m mj n nj o p pj r s t tj u w x y í ~ ̂ ¥ -”28.

Foi preciso baixar uma fonte especial, chamada “SILDoulosIPA”, para se escrever com

esse tipo de grafia no programa Microsoft Word.

Resolvido esse programa, começamos o trabalho. Digitamos 408 palavras em

português com tradução em Manoki. Essas palavras foram coletadas por Bartolomeu junto

aos mais velhos, sábios falantes da língua, da Terra Indígena Irantxe. Muitas palavras foram

comparadas com as listadas no Dicionário Myky-Português, e foi feito um trabalho de

confirmação ou não da semelhança entre as duas línguas. As palavras que não eram as

mesmas sofreram as devidas alterações à caneta no próprio dicionário (trabalho esse feito

na aldeia com os velhos). Porém, esse trabalho de comparação com a língua Myky ainda

não estava completo, e muitas palavras conhecidas ficaram de fora da lista, por conta disso.

28 Retirado do material em anexo.

25

A parte mais trabalhosa foi essa, digitar e confirmar o som e o significado das palavras em

Manoki. Essa parte durou três dias: 17, 18 e 19 de outubro.

Antes desse trabalho, no fim de semana, Bartolomeu conheceu um pouco da cidade,

andou de Metrô pela primeira vez, visitou praças, etc. Aprendi muito convivendo essa

semana com ele, suas observações eram todas muito inteligentes. Primeiramente, achei o

ritmo dele devagar, ele parecia ficar sempre “pra trás” quando estávamos indo a algum

lugar, mas depois entendi o seu ritmo. Lembro-me dele dizendo “é preciso ter paciência

para conseguir viver aqui, em tudo é preciso ter paciência aqui, para atravessar a rua temos

que esperar, há filas em todos os lugares, para tudo...”. Absorvi seu conhecimento: às vezes

realmente não paramos para pensar no que estamos fazendo, fazemos “no automático”,

devido ao ritmo de vida acelerado da cidade. Aprendi, observando o Bartolomeu, a ter mais

paciência e ficar menos ansioso. Essa vontade imediata que temos de fazer, falar e mostrar,

nos faz mal quando não conseguimos. Esse próprio trabalho de conclusão de curso chegou

a ser motivo de angústia para mim. Não sabia se ia dar certo, se o professor indígena

conseguiria vir mesmo para Belo Horizonte etc. Trabalhando com os indígenas aprendemos

a conviver com essa inconstância, essas incertezas. A vinda dele, não só me tranqüilizou

quanto a meu trabalho, como também mostrou que sofrimento e preocupação por

antecipação não adiantam de nada, que é preciso ter paciência para conseguir fazer

qualquer coisa.

As palavras que digitamos me pareceram um pouco “jogadas ao léu”, por isso

pensei que, em um livro didático, como era nossa intenção fazer, era preciso ter algum

direcionamento para os alunos. Por isso, digitamos e descrevemos rapidamente o alfabeto

utilizado no vocabulário. Colocamos, também no início do livro, fora da lista de palavras, o

nome das cores básicas e dos números. Característica bem curiosa possui a contagem dos

26

Manoki: só possui nome para os números de 1 a 5 e, a partir do 6, os nomes dos números

são os mesmos, diferenciando apenas os pares dos ímpares.

Pelo material que tínhamos em mãos decidimos, através da coordenação da

professora Maria Inês, que, primeiramente, ao invés de fazermos uma cartilha de

alfabetização, iríamos fazer uma espécie de glossário, ou pequeno dicionário, que irá se

chamar “ja)lI)ja ta)jeitjany) – vamos ler e escrever o nosso idioma – Vocabulário Manoki”.

Esse título foi tirado de uma das frases que haviam sido traduzidas pelos velhos, e estava

escrito no caderno que Bartolomeu trouxe. O título encaixou bem na proposta, podemos até

pensar em utiliza-lo como título de uma pequena coleção – já que a intenção é fazer mais

livros junto aos Manoki – mudando, nas próximas publicações, apenas o subtítulo em

português. Para aproveitarmos mais os desenhos, resolvemos criar também alguns

exercícios simples em que o aluno deva escrever o nome da figura embaixo dela, em língua

materna.

Uma vez que o livro ainda está sendo idealizado, irei fazer uma breve descrição

física de como ele foi pensado, de acordo com o que foi discutido com o autor e com a

professora Maria Inês: a capa contará com um dos desenhos feito pelos alunos da escola

Manoki, o título na parte posterior e o nome de Bartolomeu Warakuxi na parte inferior, sem

orelhas; A 1ª folha de rosto contará com essas mesmas informações, porém sem o desenho,

e a 2ª com a ficha catalográfica e quaisquer outras informações necessárias; haverá um

sumário; o livro será feito em papel off-set, 70g/m²; terá cerca de 66 páginas: os grupos de

palavras serão organizados por letra – do alfabeto latino, das palavras em português do

vocabulário – e cada letra será encaixada em uma ou duas páginas, de acordo com a

quantidade de palavras, junto com um dos desenhos disponíveis; capa e miolo terão cerca

27

de 210x148 mm; mancha 170x108 mm; brochura com costuras e cola, sem capa dura;

número de linhas irá variar em cada página; a fonte que será utilizada para escrever as

palavras em Manoki será a “SILDoulosIPA”.

Com a necessidade ainda de uma cartilha de alfabetização, ficou decidido que uma

será construída no próximo ano, 2012, a partir da consultoria da linguísta Ruth Monserrat

que possui vasta experiência em alfabetização indígena e na língua Myky, e dará uma

oficina na Aldeia Paredão para a construção desse material. A idéia de se criar um livro de

histórias em língua Manoki também existe, Bartolomeu pretende realiza-la também no ano

de 2012. Para isso, ele contará com um gravador de voz doado pelo Núcleo Literaterras

para gravar os velhos contando as histórias na língua Manoki. Dessa forma, vemos que esse

tipo de trabalho é contínuo, pode ser infinito, se estendendo e se aprofundando de acordo

com o interesse do autor, dos leitores e da comunidade.

Com a volta de Bartolomeu à sua aldeia, o livro agora fica inteiramente em nossas

mãos, nas mãos da universidade. Porém, há de se entender que ele não é nada nosso. Ele

não pode ser criado a partir da nossa individualidade – apesar disso sempre ficar um pouco

em todo trabalho que fazemos –, devemos nos desprender, nos desapegar dela, que é tão

forte em nossa cultura branca. O livro indígena é também nosso na medida em que

compartilhamos algo em comum com ele, que vemos beleza nele, porém o sentido, o

significado é deles. É preciso ter muito cuidado com o material indígena.

Conclusão

Esse trabalho de conclusão de curso foi realizado principalmente com a intenção de

ajudar a amenizar a carência de informações que existe sobre a questão indígena. A

28

tendência eurocêntrica que observo dentro da Universidade, de forma generalizada, é a

mesma que vejo na grande mídia e em meios sociais com maior poder econômico e

político. No entanto, cabe ao mundo acadêmico, que possui ambiente propício para a crítica

e grande credibilidade social, tentar contornar essa tendência. Parece algo óbvio de se dizer,

mas não ouço o bastante, nem em ambientes acadêmicos, nem em ambientes escolares,

muito menos fora deles: os povos indígenas deveriam ser muito mais valorizados em nosso

país. Eles são detentores de um conhecimento de vida importantíssimo que, ironicamente, o

mundo inteiro busca hoje: a sustentabilidade e a harmonia com a natureza. Espero que, com

essa mudança que ocorre no mundo, haja uma influência positiva no Brasil para que as

pessoas tenham mais interesse e aprendam mais sobre esses povos, busquem entende-los,

valorizar sua história e suas línguas. Espero que o livro indígena tenha um papel importante

também nesse processo.

No mundo de hoje, um povo se torna muito menos vulnerável quando domina a

escrita alfabética e, com popularização a internet, fincar sua bandeira no meio desse mar de

informação é uma chance para que a maioria das comunidades periféricas exista para o

mundo. Por isso, sinto que fui parte de algo muito importante fazendo o trabalho que fiz,

poderia dizer que fiz o papel de um escriba do escriba. Meu conhecimento técnico

computacional ajudou a registrar o conhecimento dos velhos sábios Manoki, que por sua

vez foram registrados à mão pelo professor indígena Bartolomeu Warakuxi. O ideal seria,

um dia, esse processo todo ser feito dentro da aldeia, sem a mão do branco, e é esse o

objetivo de nossa ajuda. Porém, para que isso chegue realmente a acontecer, é preciso haver

um respeito maior com os povos indígenas, uma valorização, uma consideração por sua

autonomia como povo diferente. Acho que dessa forma ajudaremos a construir um mundo

melhor e uma vida melhor até para nós mesmos, pois a diferença convivendo em harmonia,

29

faz bem. Espero que mais trabalhos como esse surjam dentro da Universidade, pois acho

que esse é o verdadeiro papel dela, que infelizmente nem sempre é realizado: melhorar o

mundo e ajudar as pessoas através do conhecimento e da pesquisa.

Dessa forma, esse trabalho de edição foi para mim muito mais do que diagramação,

preparação de originais, etc, foi uma formação humana, uma experiência de vida, um

aprendizado para a vida, e que, aliás, continuará enquanto os trabalhos continuarem.

Participando desse processo de construção do livro, percebemos que um livro não é

apenas um objeto, ele é muito mais. São as pessoas, as culturas, as florestas, os animais.

Somos nós. O livro, em si, é um objeto coletivo. Ele vai além do autor, de suas crenças e de

sua cultura. Vai além das fronteiras e das línguas. É um objeto muito complexo, tão

complexo que, com essa pesquisa, não chegou a ser arranhada a superfície do

conhecimento sobre esse objeto.

Acredito muito no livro como catalisador de mudança. Assim como Deus, na Bíblia,

criou o mundo através da palavra, essa é a grandiosidade do poder que, pra mim, o livro

possui.

Quando culturas orais riquíssimas descobrem o livro, algo muito legal acontece, é

como um nascimento. O livro volta a ter esse significado, essa função espiritual, de

“guardião de conhecimentos”, que também não deixa de ser científica, e que é sempre tão

importante para a educação e para a vida de qualquer ser humano.

Espero também que mais se faça para ajudar os povos indígenas, para valoriza-los,

para que eles não desapareçam, e para fazer com que nós, brasileiros, nos vejamos nesses

povos, de forma a, no futuro, nos orgulharmos deles. O que falta para isso acontecer é,

simplesmente, conhece-los.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1999. Belo Horizonte : UFMG, 1999. 228 p. (Tese de Doutorado)

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