a dupla face de salomão

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teologia

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  • UNIVERSIDADE METODISTA DE SO PAULO

    FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS DA RELIGIO

    TANIA APARECIDA DA SILVA CALONGA

    A DUPLA FACE DE SALOMO

    MEMRIAS DE UMA ESCOLA DE ESCRIBAS NO

    SCULO X A.C.

    SO BERNARDO DO CAMPO

    2012

  • TANIA APARECIDA DA SILVA CALONGA

    A DUPLA FACE DE SALOMO

    MEMRIAS DE UMA ESCOLA DE ESCRIBAS NO

    SCULO X A.C.

    Tese apresentada em cumprimento

    s exigncias do curso de Ps-

    Graduao em Cincias da Religio

    para obteno do grau de Doutor.

    rea de concentrao: Literatura e

    religio no mundo bblico.

    Orientao: Prof. Dr. Trcio

    Machado Siqueira.

    SO BERNARDO DO CAMPO

    2012

  • A tese de doutorado sob o ttulo A dupla face de Salomo Memrias de uma Escola

    de Escribas no sculo X a.C, elaborada por Tania Aparecida da Silva Calonga foi

    defendida e aprovada em 11 de Maio de 2012, perante a banca examinadora composta

    por Prof. Dr. Tercio Machado Siqueira, Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia, Prof. Dr. Edson

    de Faria Francisco, Prof. Dr. Benedito Ferraro, Prof. Dr. Renatus Porath.

    __________________________________________

    Prof. Dr. Tercio Machado Siqueira

    Orientador e Presidente da Banca Examinadora

    ___________________________________________

    Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos

    Coordenador do Programa de Ps-Graduao

    Programa: Ps-Graduao em Cincias da Religio

    rea de Concentrao: Literatura e Religio no Mundo Bblico

    Linha de Pesquisa: Estudos Histricos-Literrios do Mundo Bblico

  • Este texto foi escrito com o apoio do CNPQ

    sob a forma de bolsa de estudos.

  • AGRADECIMENTOS

    A Deus, fonte de toda sabedoria. Meu companheiro de todas as horas.

    Inspirao nos momentos mais difceis e solitrios no decorrer dessa jornada.

    Ao Ronaldo, esposo e amigo que me apoiou e incentivou em todos os sentidos.

    Aos meus filhos Ana Clara e Renato que souberam compreender as minhas

    ausncias.

    A todos os amigos que estiveram ao meu lado me ajudando nos estudos ou com

    palavras de conforto e de carinho. Em especial ao Clio Silva, Fernando Cndico e

    Shirley Antoni .

    Ao Prof. Dr. Trcio Machado Siqueira por seu apoio, compreenso e orientao

    ao final dessa pesquisa.

    Aos professores e funcionrios do curso de Ps-Graduao em Cincias da

    Religio.

    Ao apoio financeiro do CNPq, sob a forma de bolsa de estudos.

  • Dedicatria

    In Memorian

    Dedico essa tese ao meu orientador Milton Schwantes (26/04/1946

    01/03/2012).

    Agradeo ao mestre, orientador, amigo, pastor honrado, cristo comprometido,

    militante nas causas sociais, idealista, motivador, eterno incentivador na difcil

    caminhada em prol das transformaes sociais to urgentes, principalmente em nossa

    Amrica Latina.

    Este profeta da atualidade tinha uma alegria contagiante, um entusiasmo

    marcante e uma maneira especial para ensinar as lies da vida e a vivncia do amor

    com intensidade e plenitude.

    Seu entusiasmo pela vida foi um exemplo. Mesmo com as limitaes que a

    doena lhe causou, nunca deixou de reconhecer e agradecer a Deus pelo dom da vida.

    Fez-nos e nos far sempre beber da fonte de gua fresca, que supri nossa sede de

    conhecimentos, de mudanas e de comprometimento.

    Sua luz no se apagou entre ns. Permanecer vivo, guiando-nos pelo caminho

    do bem. No podemos mais ouvir sua voz, a voz dos humanos, mas ele sempre nos

    falar com a voz da alma, pois, ser eterno em nossos coraes, em nossas lembranas e

    em nossas memrias.

    Obrigada pelas palavras de sabedoria no processo de orientao, nas aulas e at

    mesmo nas nossas divertidas conversas.

    A voc, minha eterna gratido.

  • Na Amrica Latina, a Bblia se manifesta como

    memria inquietadora. Sua reserva de sentido est

    sendo recriada pelos oprimidos, desde o reverso

    da histria, como denncia conscientizadora da

    opresso e anncio da libertao. A inquietude que

    aflora atravs de tal reminiscncia no se esgota

    em um novo sentido, mas, basicamente, se compe

    de um novo sujeito histrico: os oprimidos em

    processo de organizao.

    Milton Schwantes

  • CALONGA, Tania Aparecida da Silva, A dupla face de Salomo Memrias de uma Escola de Escribas no sculo X a.C., Universidade Metodista de So Paulo -

    Faculdade de Humanidades e Direito. Programa de Ps-Graduao em Cincias

    da Religio. So Bernardo do Campo. 2012.

    Sinopse

    O memravel rei Salomo passou para a histria como um sbio por excelncia.

    Ainda na atualidade, a maioria das pessoas relaciona o seu nome com a sabedoria. Mas

    a partir do momento que passamos a ter conhecimento dos textos que se referem a

    Salomo, de como foram construdos e quais as ideologias ali presentes (tanto as

    favorveis quanto as contrrias), surgem muitos questionamentos, em especial, quando

    se busca metodicamente dissociar a histria da memria. Ao que parece a historiografia

    tradicional sobre Salomo, ainda encontra-se muito dependente da figura idealizada de

    Salomo. Resultado de uma construo feita desde a sua poca, pelas mos de seus

    escribas, como tambm em tempos posteriores, de acordo com os interesses de cada

    poca. Conclu-se que a sabedoria de Salomo nada mais do que uma construo

    ideolgica. A partir dessa perspectiva, surge o desafio de buscar outra memria de

    Salomo, a fim de propor um caminho alternativo, que nos permita produzir uma nova

    historiografia a respeito de Salomo. Uma historiografia que no se firma na memria

    oficial, mas que siga na direo contrria, a partir das memrias dos que no se

    deixaram influenciar pela ideologia do poder. Dessa forma, poderemos alcanar a

    comprovao de nossa tese: a existncia de duas memrias conflitantes a respeito de

    Salomo, dentro da Escola de Escribas da corte de Jerusalm no sculo X a.C.

    Infelizmente, as fontes disponveis sobre esse assunto so realmente escassas, o que

    temos so textos, isto , memrias sobre Salomo. Escolheu-se um texto crtico a

    Salomo. Trata-se de 1Rs 1-2, texto que pertence a chamada Histria da Sucesso de

    Davi, acreditando-se que a partir dele, consiga-se produzir uma historiografia diferente

    da historiografia tradicional. Conclumos que dentro da Escola de Escribas Salomnica

    existiam duas ideologias conflitantes. Os que eram a favor de Salomo, defendiam os

    interesses urbanos. Aqueles que pertenciam escola anti-Salomnica e anti-Jerusalm,

    representavam os interesses dos camponeses explorados e oprimidos pelo poder.

    Palavras-chave: histria, memria, monarquia, sabedoria, campo, cidade.

  • CALONGA, Tania Aparecida da Silva, A dupla face de Salomo Memrias de uma Escola de Escribas no sculo X a.C., Universidade Metodista de So Paulo -

    Faculdade de Humanidades e Direito. Programa de Ps-Graduao em Cincias

    da Religio. So Bernardo do Campo. 2012.

    ABSTRACT

    The memorable king Solomon entered into history as a wise man for excellence.

    Even nowadays most people link his name to wisdom. But, when we get knowledge of

    texts that refer to Solomon, of how they were written and which ideologies they have

    (the favourable and the opposite ones), then many questions are made, in special when

    they search methodically to dissociate the history from memory. It seems the traditional

    historiography about Solomon has been found much dependent of his idealized figure

    yet. Result of a construction made as since his time by his scribess hands as in later

    times, too, according to interests of each epoch. The conclusion is that Solomons

    wisdom is not more than an ideological construction. Since this perspective, urge the

    challenge in searching another memory of Solomon, with the aim of suggesting an

    alternative way which may allow us to produce a new historiography about him. A

    historiography that may not be based on the oficial memory, but that one which may

    follow in the opposite way, from memories of those who were not influenced by the

    ideology of power. And, finally, to verify our thesis about the existence of two opposite

    memories about Solomon in the school of scribes in the court of Jerusalenm in 10th

    century b. C. Unfortunately, available sources about this issue are scarce, for we only

    have texts or memories about Solomon. We refer to 1Rs 1-2, that belongs to the so

    called History of succession believing that, from that narrative, it is possible to construct

    a historiography that might be different of that traditional one. We conclude that within

    the Solomonic school of scribes there were two opposite ideologies: Those which were

    favourable to Solomon and were used to defend the urban interests, and those that

    belonged to anti-Solomonic school and anti-Jerusalem, which were used to represent the

    interests of peasants who were explored and oppressed by the power.

    Palavras-chave: history, memory, monarchy, wisdom, field, city

  • SUMRIO

    Introduo 11

    1. O peso do ouro que chegava a Salomo Contexto histrico-arqueolgico de Salomo no debate historiogrfico28 1.1. Introduo 29

    1.2. A historiografia tradicional sobre Salomo 30 1.3. Do reinado de Salomo 32 1.3.1. O programa de construo de fortalezas 49

    1.3.2. Reorganizao do exrcito 50

    1.3.3. Estruturao tcnico-administrativa 51

    1.3.4. Integrantes do gabinete na administrao de Salomo 56

    1.3.5. Cargos que j haviam sido institudos sob Davi 59

    1.3.6. Os novos cargos que foram acrescentados 65

    1.4. Concluso 70

    2. A sabedoria de Salomo foi maior que a de todos os filhos do Oriente A sabedoria salomnica como propaganda memorial 75 2.1. Introduo 76

    2.2. O reino de Salomo histria e memria 76 2.2.1. A sabedoria de Salomo no contexto do Antigo Oriente 79 2.2.2. Poltica e propaganda de Salomo, o Sbio 89 2.2.3. Da escola de escribas 96

    2.3. Concluso 109

    3. Disse Adonias... Sou eu que vou reinar! Desafios memria de Salomo em 1Rs 1-2 112 3.1. Introduo 113

    3.2. A fonte relato sobre a sucesso de Davi 115 3.3. O nascimento de Salomo 121

    3.4. O texto de 1Rs 1-2 124

    3.4.1. Delimitao 124 3.4.2. Contedos 126

    3.4.2.1. Como Salomo ascendeu ao trono: anlise de 1Rs 1 126 3.4.2.2. Os partidos 135 3.4.2.2.1. O partido de Adonias 135 3.4.2.2.2. O partido de Salomo 139 3.4.2.3. Da eliminao dos adversrios: anlise de 1Rs 2 144

    3.4.3. Memrias crticas e uma outra historiografia 149 3.5. Concluso 195

    4. Concluso 199

    5. Referncias bibliogrficas 207

  • 11

    INTRODUO

    O memravel rei Salomo passou para a histria como um sbio por excelncia.

    Ainda na atualidade, a maioria das pessoas relaciona o seu nome com a sabedoria. A

    narrativa do julgamento de Salomo (1Rs 3, 16-28) parece ter incutido nas pessoas uma

    memria salmonica de rei sbio e justo. Mas a partir do momento que passamos a ter

    conhecimento dos textos que se referem a Salomo, de como foram construdos e quais

    as ideologias ali presentes (tanto as favorveis quanto as contrrias), surgem muitos

    questionamentos, em especial, quando se busca metodicamente dissociar a histria da

    memria. E, por fim, no ser essa exatamente a tarefa do historiador? Afinal, como nos

    lembra Nora, com o nascimento do cuidado historiogrfico, a histria que se coloca

    no dever de perseguir nela o que no ela, se descobrindo vtima da memria e se

    esforando para dela se livrar.1

    Seu reinado parece ter sido marcado por uma corte luxuosa e alianas realizadas

    com os reinos vizinhos. No entanto, pode-se afirmar que este governou com mos de

    ferro. Imps grande jugo sobre o povo, cobrando pesados impostos e instituindo a

    corvia. O resultado de tanta opresso foi a diviso do estado, logo depois da sua morte,

    em dois reinos: o reino do norte Israel e o reino do sul Jud. A histria do reinado de

    Salomo indica uma situao paradoxal, a riqueza do estado e a pobreza do povo,

    levando a um ponto extremo de opresso. O que intriga que a situao de revolta

    interna ficou latente at a morte de Salomo. Isso demonstra que durante o seu governo

    no foi possvel, sequer, tentar uma insurreio, consequentemente, se conclui que

    Salomo imps sua hegemonia at o final de seu reinado. evidente que Salomo

    buscou mecanismos para se manter no poder, inibindo qualquer tipo de manifestao

    interna contra seu poderio.

    O que se pretende estudar na histria de Israel, o perodo do governo de

    Salomo, no sculo X a.C., pesquisando a lgica social, poltica e econmica, com o

    objetivo de investigar de que forma a sabedoria e o poder foram utilizados durante o seu

    1 NORA, Pierre. Les lieux de mmoire. Paris: Gallimard, 1984, p.xii.

  • 12

    reinado para ativar a(s) memria(s) que agora se faz(em) presente(s) nos textos bblicos.

    Buscaremos responder s seguintes questes: qual a relao existente entre a sabedoria

    atribuda a Salomo e o poder desse monarca? Quais os meios utilizados por Salomo

    para justificar seu poder? Qual a estratgia que Salomo utilizou para garantir a

    centralizao do poder? So questes como essas que podem nos ajudar a desestabilizar

    a memria coletiva de Israel sobre Salomo para encaminhar, por fim, histria.

    Acreditamos que a historiografia tradicional sobre Salomo, ainda encontra-se

    muito dependente da figura idealizada de Salomo. Partindo do pressuposto que a

    sabedoria de Salomo nada mais do que uma construo ideolgica, muito bem

    elaborada por seus escribas, a fim de justificar seu poder, nossa proposta para esse

    estudo buscar uma historiografia que no se firme na memria oficial, mas que siga

    na direo contrria, a partir das memrias dos que no se deixaram influenciar pela

    ideologia do poder.

    As fontes para nossa pesquisa so textos, isto , memrias, sobre Salomo.

    Escolheu-se um texto crtico a Salomo. Trata-se de 1Rs 1-2, texto que pertence a

    chamada Histria da Sucesso de Davi, acreditando-se que a partir dele, consiga-se

    produzir uma historiografia diferente da historiografia tradicional. Nossa hiptese de

    que o autor da Histria da Sucesso de Davi era um escriba na corte de Jerusalm,

    durante o reinado de Salomo. Se nossa hiptese estiver correta, poderemos ao final

    dessa pesquisa comprovar nossa tese: a existncia de duas memrias conflitantes a

    respeito de Salomo, dentro da Escola de Escribas da corte de Jerusalm no sculo X

    a.C.

    Assim, poderemos concluir que a ideologia salomnica encontrou resistncia no

    seio da escola de escribas, praticamente o corao do poder. Dessa escola que saiam

    os administradores, conselheiros e escritores. Os responsveis pelo sucesso das medidas

    polticas e econmicas adotadas pelo rei, bem como, os construtores ideolgicos da

    imagem do rei ideal, designado por Iahweh para reinar e agraciado com a sabedoria

    divina.

  • 13

    Nesse sentido, a presente pesquisa tem como finalidade abordar alguns aspectos

    importantes a respeito do reinado de Salomo. Pelo fato da pesquisa estar relacionada

    com a historiografia, acredita-se ser importante tecer algumas consideraes tericas

    acerca do uso dos textos bblicos como documentao para uma pesquisa historiogrfica.

    Alm disso, no se pode deixar de lado a profunda reviso pela qual a histria de Israel

    tem passado na atualidade. Uma grande parte da produo historiogrfica a respeito do

    antigo Israel teve a Bblia como a principal fonte de pesquisa. Atualmente, muitos

    autores questionam o uso da Bblia como fonte histrica, alguns at se perguntam se

    realmente possvel escrever a histria de Israel.2 Talvez, por isso, caminhamos cada vez

    mais para o estudo da memria, ou seja, aquela histria que no est ocupada com o

    passado em si, mas somente com o passado da forma que relembrado.3 Aqui, outra

    agenda se impe: analisar os elementos mticos na tradio e descobrir sua agenda

    oculta.4

    Ao eleger a Bblia como um documento vlido para a historiografia de Israel

    preciso considerar que, se por um lado, a pertinncia histrica do texto bblico pode

    consistir na coerncia com um sistema geral de crenas (coerncia interna do relato);

    por outro, pode consistir na correspondncia do relato aos fatos.5 Dessa forma, pode-se

    entender que um texto pode no corresponder fielmente aos fatos narrados, mas que

    fornece informaes significativas a partir da memria que flui da narrativa no que

    se refere ao poder daqueles que o fabricaram. Portanto, possvel afirmar que o texto

    bblico ainda pode nos auxiliar na descrio da sociedade e da cultura do povo que o

    produziu.6 O grande problema saber: como identificar tais memrias e como se deve

    abord-las para se escrever a histria?

    Segundo Ranke, um dos fundadores da histria cientfica na Alemanha, o

    trabalho do historiador consistia na apresentao dos fatos puros, sem interpretaes:

    se algum estabelecer de maneira competente um fato histrico estabeleceu-o para

    2 Assim, por exemplo, DAVIES, Philip. In Search of Ancient Israel, 2 edio. Sheffield: Sheffield

    Academic Press, 1995. 3 DAVIES, Philip. Memories of Ancient Israel: An Introduction to Biblical History. Louisville:

    Westminster John Knox Press, 2008. 4 ASSMANN, Jan. Moses the Egyptian: the Memory of Egypt in Western Monotheism. Cambridge:

    Harvard University Press, 1997, p.10. 5 FOX, Robin Lane. Bblia , verdade e fico. So Paulo: Companhia das Letras, p. 15. 6 Veja YERUSHALMI, Yosef. Zakhor: histria judaica e memria judaica. Rio de Janeiro: Imago, 1992,

    p.37.

  • 14

    todos os investigadores interessados. 7 Contudo, levando-se em considerao que

    impossvel alcanar os fatos puros deve-se procurar verificar a exatido dos fatos.

    Ele deve procurar focalizar todos os fatos conhecidos, ou que possam ser conhecidos, e

    que tenham alguma importncia para o tema em que est empenhado e para a

    interpretao a que se props escreve Carr. 8 Se se considerar tais afirmaes pode-se

    concluir que o fato histrico depende da interpretao do historiador. Para Hobsbawm,

    ao se tomar conscincia de que a histria pode muitas vezes ser usada de forma

    maldosa, como por exemplo, para legitimar interesses polticos, imprescindvel

    estabelecer a diferena entre fato e fico,9 o que pode facilmente nos remeter

    diferena igualmente insistente da escola francesa entre histria e memria.10

    Com relao identificao dos fatos histricos na Bblia, alm do uso da

    arqueologia e da histria, possvel lanar mo da anlise dos diversos gneros

    literrios contidos no Antigo Testamento, que podem ajudar o historiador a discernir

    entre fato e fico, histria e memria. Para tanto, preciso ter conhecimento do

    processo de formao do texto bblico e ter em mente que qualquer tipo de documento

    poder refletir apenas uma viso parcial do fato. Segundo Carr, nenhum documento

    pode nos dizer mais do que aquilo que o autor pensava [...] ou talvez apenas o que ele

    queria que os outros pensassem que ele pensava, ou mesmo apenas o que ele prprio

    pensava pensar.11 Da a necessidade de conhecer o lugar social preciso em que a obra

    foi produzida.12

    Alm disso, preciso considerar que a histria de Israel no pode ser entendida

    tendo como base conceitos ocidentais, especialmente os que os gregos e romanos

    deixaram como legado para a definio do termo historiografia. A utilizao de um

    texto bblico como fonte para uma pesquisa historiogrfica implica em reconhecer que

    no possvel recuperar o passado como ele realmente aconteceu, mas interpretar a

    7 SCHAFF, Adam. Os fatos histricos e a sua seleo: histria e verdade. Paulo: Martins Fontes,

    1978, p. 204. 8 CARR, Edward H. Que histria?, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 27. 9 HOBSBAWM, Eric. Sobre histria. Ensaios. So Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 18. 10

    Assim, sobretudo, LE GOFF, Jacques. Histria e memria. Campinas: Editora da Unicamp, 1990,

    p.423-478. 11 CARR, Edward H. Que histria?, p. 27. 12

    Confira SCHWANTES, Milton. A origem social dos textos. Estudos Bblicos, Petrpolis, Vozes, n.16, 1988, p.31-37.

  • 15

    ideologia dos grupos que escreveram a respeito de determinada poca. Nesse caso, se

    buscar a memria de Salomo, sua construo ideolgica, seus usos e abusos. No se

    pode buscar nos textos bblicos uma fonte direta e positivista para a pesquisa

    historiogrfica, mas como construo da memria de uma poca, de um acontecimento

    ou de um personagem.

    Quando se estuda a construo da memria preciso levar em considerao a

    pluralidade por parte das fontes de que se est investigando e os possveis fatores que

    contriburam para a formao da identidade do indivduo ou grupo que reflete sua

    memria. preciso reconhecer que a memria pode ter vrias faces, vrias verdades,

    mostrando a seleo de fatos que convenham ao narrador. Portanto, prudente

    selecionar os dados disponveis e procurar entrelaar os pontos em comum buscando

    dar mais clareza ao texto. No cabe aqui, nem o intuito fazer uma explanao

    minuciosa sobre o desenvolvimento do estudo a respeito da memria e sua relao com

    o estudo da histria. Apenas apresentar-se- de forma bastante sucinta algumas

    consideraes a respeito do estudo da memria que acreditamos nos ajudar no

    desenvolvimento dessa pesquisa.

    Para Halbwachs, a memria reconstruo de um acontecimento passado tendo

    como ponto de partida um conjunto de lembranas que podem ser apenas do indivduo,

    do grupo social ao qual ele pertence ou mesmo de outro grupo social. Mesmo admitindo

    que possa haver uma memria individual, Halbwachs acredita que de qualquer maneira

    ela sofreria algum tipo de interveno do coletivo. Portanto, para se ter maior segurana

    para construir a memria preciso resgatar e analisar estas lembranas de maneira que

    coincidam com a maioria das pessoas.13

    A memria de cada pessoa est atrelada, pois, memria do grupo e a esta

    ltima ligada tradio, isto , a memria coletiva de cada sociedade. Dessa forma, a

    explicao tradicional de que a memria reflete o que aconteceu verdadeiramente e a

    histria simplesmente reproduz a memria se apresenta de maneira muito simplista. Na

    13 HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva. So Paulo: Editora Vrtice, 1990, 280p.

  • 16

    verdade, o estudo acadmico da memria coletiva oferece uma importante ajuda

    intelectual para o entendimento das representaes bblicas sobre o passado de Israel.14

    Smith discute a questo dos escritos bblicos como produtos de seus prprios

    autores em sua prpria poca; em outras palavras, como os trabalhos bblicos

    constituem a memria coletiva de seus autores.15 Smith aplica as teses daqueles que ele

    denomina de historiadores da memria nos escritos bblicos. A partir do pensamento

    desses estudiosos, Smith elenca sete pontos que podem nortear o estudo da memria

    cultural do antigo Israel:

    1) A Bblia no s registra fato ou fico, histria ou literatura (geralmente

    distines modernas de considervel valor e dificuldade). Em vez disso,

    muitos textos bblicos poderiam ser caracterizados melhor como constituindo

    o registro da memria cultural de Israel. 16 Neste tpico, apoiando-se nas

    teses de Halbwachs e Nora, Smith considera que a principal finalidade de

    grande parte dos textos bblicos o ensinamento. Os autores dos textos

    bblicos estavam mais preocupados em recordar o passado para que os erros e

    acertos servissem de instruo para as geraes presente e futura. Mas essa

    constatao no descarta os elementos histricos contidos nesses relatos.

    Smith afirma que houve uma significativa mudana de paradigma ao

    considerar a Bblia em geral, no como o locus do registro histrico de Israel

    (ou no), mas como o registro parcial das memrias culturais de Israel sobre

    seu passado e que contm uma quantidade de informao acuradamente

    histrica. 17 Podem ser citados alguns exemplos como os Salmos 78, 105,

    106, xodo 12-13 e com certeza incluir a Histria Deuteronomista (Josu-

    2Reis), que como vimos anteriormente foi elaborada com a inteno de

    entender o presente buscando as repostas no passado de Israel/Jud.

    14 SMITH, Mark S. O memorial de Deus Histria, memria e a experincia do divino no Antigo Israel.

    So Paulo: Paulus, 2006, p.183. 15 SMITH, Mark S. O memorial de Deus, p.37. 16 SMITH, Mark S. O memorial de Deus, p.191. 17 SMITH, Mark S. O memorial de Deus, p.191.

  • 17

    2) Reconhecer o papel da memria de nossas prprias tradies religiosas que

    tem influenciado, no somente o interesse inicial dos especialistas bblicos

    em entrar no campo dos estudos bblicos, mas tambm nosso interesse e

    nossos horizontes, bem como nossas perguntas e nossas respostas. 18

    3) Analisar o papel do contexto social e do poder dos grupos ao moldarem

    suas memrias coletivas. 19 A esse respeito, Smith afirma que muito se tem

    escrito a respeito do poder social na produo dos textos, deixando de

    analisar o papel dos grupos sociais e sua influncia na produo das

    memrias culturais do Israel bblico. Com base nas teses de Halbwachs e

    Aris, Smith afirma a importncia da famlia em moldar a memria e sobre

    a implicao da monarquia emergente na submerso e imerso das memrias

    coletivas.20 Ele faz uma comparao entre a memria dos santurios

    familiares e os lugares altos dos cls, o sacerdcio de vrios santurios e o

    sacerdcio nomeado em santurios reais. Enfatizando o impacto do

    sacerdcio e da realeza de Jerusalm no pr e no ps-exlio ao gerarem

    amplas narrativas sociais que submergem e co-optam as memrias coletivas

    da famlia e da linhagem sacerdotal no-jerosolimita.21

    4) Neste ponto, Smith trata da importncia de analisar o papel que os locais

    fsicos reais tiveram ao moldar a memria cultural. 22 Pode-se citar o

    exemplo de Davi, no livro 2Samuel, ele apresentado pela histria oficial

    com uma figura ideal e sua memria com o passar do tempo foi se tornando

    cada vez mais gloriosa. Exceo a histria de seu adultrio com Bateseba,

    que pode ter sido escrita por aqueles que no aprovavam a memria ideal e

    oficial de Davi. Smith conclui que a maior parte dos personagens bblicos,

    so sacramentados em histrias oficiais no simplesmente de acordo com os

    18 SMITH, Mark S., O memorial de Deus, p.192. 19 SMITH, Mark S., O memorial de Deus, p.193. 20 SMITH, Mark S., O memorial de Deus, p.193. 21 SMITH, Mark S., O memorial de Deus, p.193. 22 SMITH, Mark S., O memorial de Deus, p.194.

  • 18

    fatos histricos, mas de acordo com os locais onde suas reputaes foram

    sacramentadas. 23

    5) Smith no concorda, ao menos, no caso do antigo Israel, com a tese de Nora

    quanto ao fato de o surgimento da escrita e das fontes escritas da histria

    marcar uma transio que afasta a considerao da memria oral como forma

    de prestgio cultural de recordao. 24 muito provvel que em Israel a

    transmisso oral continuou como um expressivo elemento na memria social

    de Israel por um perodo maior. Foi a partir do sculo VIII a.C. que a

    memria cultural perdeu seu prestgio. Nessa poca, surge uma grande

    quantidade de material escrito, Smith cita as chamadas fontes Javista e

    Elosta; o contexto neo-Assrio alegado pelo Deuteronmio 12-26; as

    redaes alegadas pela Histria Deuteronomista (Josu-2Reis) durante os

    reinados de Ezequias e Josias; as primeiras obras profticas separadas no

    sculo VIII a.C.; uma redao do sculo VII a.C. alegada a Isaas; e a

    redao de Provrbios 25-29 pelos homens de Ezequias (Provrbios

    25,1). 25

    6) Nesse tpico, Smith discorre sobre a importncia da tragdia social na

    produo da escrita sobre o passado.26 Essa prtica de recorrer s grandes

    tragdias para orientar o futuro clara nas narrativas bblicas, como j se

    constatou anteriormente. Os perodos de maior produo de escritos

    histricos foram aqueles nos quais Israel passou por perdas irreparveis. O

    sculo VII a.C. com a queda do reino do Norte (722), marco que levou ao

    incio da Histria Deuteronomista, e, provavelmente, uma parte da narrativa

    do Pentateuco. Posteriormente, a queda de Jerusalm e a destruio do

    Templo em 586 a.C., foram os episdios que motivaram o surgimento de

    escritos como os livros de Esdras-Neemias, Crnicas e Ester e uma posterior

    redao da Histria Deuteronomista. Smith afirma que escrever sobre o

    23 SMITH, Mark S. O memorial de Deus, p.194. 24 SMITH, Mark S. O memorial de Deus, p.196. 25 SMITH, Mark S. O memorial de Deus, p.197. 26 SMITH, Mark S. O memorial de Deus, p.197.

  • 19

    passado captar o movimento atravs das perdas do presente em direo ao

    futuro. 27

    7) Smith utiliza-se da tese de Hervieu-Lger sobre a destruio e a re-

    estruturao da memria tradicional, a fim de aplic-la por analogia religio

    israelita. Para isso, Smith faz uso das conexes defendidas por Hervieu-Lger:

    a natureza conflitante da memria coletiva; os esforos em homogeneizar a

    memria coletiva; e o papel da fraternidade eletiva. 28 Ele analisa da seguinte

    forma: a religio tradicional a religio dos cls, com lugares altos e

    santurios locais; essa tradio acaba por submergir com o surgimento do

    Estado e dos santurios reais, isto , a ascenso da monarquia. Especialmente

    durante o perodo do oitavo ao sexto sculo acontece um recuo dessa religio

    tradicional devido perda de patrimnios locais, das linhagens e dos

    santurios no-reais. Esta perda acarreta o aparecimento de novas formas de

    fraternidade eletiva, que nesse caso caracterizado pelo movimento

    proftico e talvez sacerdotais e deuteronmicos. 29 No caso da transmisso

    oral da memria pode ocorrer que a tradio lembra apenas do que til e

    esquece o que no se usa mais. Quanto transmisso da memria Smith

    escreve que uma vez que a memria escrita transferida para um corpo de

    textos tradicionais, a tradio no parece jogar fora o que ela esquece; ao invs

    disso, ela tende a reescrever o que no lembrado.30

    Nesta perspectiva, a meu ver, deve-se reconsiderar o mtodo histrico crtico

    para uma avaliao adequada do valor e do sentido dos textos bblicos, fonte principal

    para qualquer avaliao historiogrfica dos tempos memorveis de Salomo. Destaco,

    primeiramente, que o mtodo histrico-crtico constitui-se de vrios mtodos de anlise

    de um determinado texto. As etapas essenciais do mtodo so: traduo e crtica textual,

    crtica literria, histria traditiva, histria redacional, histria da forma, histria

    27 SMITH, Mark S., O memorial de Deus, p.198. 28 SMITH, Mark S. O memorial de Deus, p.198. 29 SMITH, Mark S. O memorial de Deus, p.198. 30 SMITH, Mark S. O memorial de Deus, p.199.

  • 20

    temtica, anlise de detalhes, contedo teolgico e inteno, conforme Mueller.31 Ser

    tambm empregado o mtodo da historiografia comparada32, utilizando-se de material

    extra bblico, referentes ao Egito e a Mesopotmia, para que de posse dessas

    informaes, se possa, por analogia, compreender alguns aspectos da memria

    historiogrfica de Israel nos tempos de Salomo.

    Os primeiros onze captulos dos livros de Reis narram a histria do reinado de

    Salomo filho do rei Davi e Bate-Seba. Os captulos 1-2 apresentam a narrativa de

    como Salomo sucedeu seu pai e a forma como ele se estabeleceu definitivamente no

    trono de Israel e Jud no sculo X a.C. Os captulos seguintes (3-10) trazem os grandes

    feitos de Salomo, exaltando sua sabedoria, suas construes, suas riquezas e sua fama

    internacional. Terminando com os pontos negativos de seu reinado relatados no captulo

    11.

    Assim, possvel constatar que nesse conjunto de captulos existem pelo menos

    duas partes bem distintas. Enquanto os captulos 1-2 trazem crtica severa a Salomo

    demonstrando que o autor possua verdadeira averso por esse monarca, os outros

    captulos, com exceo do captulo 11, evidenciam que o autor ou autores procurou

    enaltecer Salomo como o mais sbio dos reis que j existiram. Alm disso,

    estilisticamente so bastante diferentes. Os dois primeiros captulos revelam histria

    intrigante contada com riqueza de detalhes, revelando aos poucos a inteno e o papel

    de cada personagem de uma histria repleta de interesses, jogos de poder e mentiras. O

    que no ocorre nos demais captulos, os quais apresentam apenas as narrativas dos

    feitos de Salomo. A partir de pequena anlise j possvel se perceber que essas duas

    partes que compem 1Rs 1-11 no pertencem mesma fonte, ou para ressignificar a

    terminologia, no pertencem a uma mesma memria.

    31 MUELLER, Enio R. O Mtodo Histrico-Crtico: uma avaliao, In: FEE, Gordon / STUART,

    Douglas, Entendes o que Ls? So Paulo: Vida Nova, 1984, p.256-260. 32

    Confira BARROS, Jos DAssuno. Histria Comparada: Atualidade e Origens de um campo disciplinar, In: Histria Revista, Goinia: Revista da Faculdade de Histria do Programa de Ps-

    Graduao de Histria da Universidade Federal de Goinia, 2007, v.12, n.2, p. 279-315. Para uma

    abordagem comparada prpria ao mundo do Antigo Oriente e Israel, veja os passos metodolgicos de

    MALAMAT, Abraham. Mari and the Bible. Leiden: Brill, 1998, p.1-10.

  • 21

    A histria dos reis de Israel e Jud foram narradas nos livros dos Reis (1-2Rs),

    abrangendo um perodo aproximado de 400 anos (970 a 561 a.C.), iniciando com a

    morte de Davi e terminando com o exlio na Babilnia. Os livros dos reis (1-2 Reis)

    formam juntamente com os livros de Josu, Juzes e 1-2 Samuel o bloco que se chama

    de Profetas Anteriores. Esses livros esto intimamente ligados entre si e apresentam, em

    parte, a mesma teologia e estilo do Deuteronmio, formando com este um corpo

    literrio homogneo.

    medida que se aprofunda na leitura dos livros dos Reis possivel perceber as

    semelhanas com o livro do Deuteronmio. Pode-se citar dois dos principais traos

    peculiares entre os dois livros, o estilo literrio, como a utilizao de uma frmula fixa

    para a apresentao dos reis e a fraseologia usada em determinados discursos e

    reflexes.33 Tambm no sentido teolgico, 1-2 Reis apresentam afinidade com as ideias

    centrais do Deuteronmio, como a adorao exclusiva a Iahweh, a importncia do

    templo como nico santurio legtimo e o papel central da Tor.

    Baseando-se nesses e em outros aspectos literrios alguns estudiosos, sendo que

    o primeiro deles foi Noth, formularam a hiptese de que os livros de Josu, Juzes,

    Samuel e Reis faziam parte de uma grande obra histrica. Como os autores dessa obra

    inspiraram-se nos princpios teolgicos do Deuteronmio, convencionou-se cham-la de

    Histria Deuteronomista. Seu contedo compreende desde a morte de Moiss at o

    indulto concedido ao rei Jeconias em sua priso na Babilnia.

    O processo de formao dos livros dos reis ainda est em discusso entre os

    especialistas, mas mesmo assim pode-se afirmar que por enquanto existe coincidncia

    fundamental entre as vrias teorias, o fato de que foi uma obra composta durante o

    exlio com a finalidade de explicar teologicamente (e/ou memoravelmente?) a

    expatriao, a destruio do templo e a queda de Jerusalm. O exlio na Babilnia

    trouxe consigo inmeros questionamentos a respeito das promessas e alianas

    estabelecidas entre Iahweh e Israel. Era preciso entender o que havia acontecido e

    principalmente sobreviver ao desastre. Os exilados foram buscar as respostas no

    33

    Os elementos fraseolgicos foram destacados exemplarmente por WEINFELD, Moshe. Deuteronomy and the Deuteronomic School. Winona Lake: Eisenbrauns, 1992, p.320-359.

  • 22

    passado e a partir da reconstruram seus paradigmas. Pode-se entender os captulos 1Rs

    3-11 nessa perspectiva.

    Os autores deuteronomistas fizeram uso de diversas fontes para compor a sua

    obra histrica: as fontes histricas como, por exemplo, os anais de Salomo (1Rs

    11,41); os anais dos reis de Israel (1Rs 14,19); os anais dos reis de Jud 1Rs (14,29); as

    listas de funcionrios e de cargos militares (2Sm 20,23-26; 1Rs 4); atas oficiais (1Rs 6

    7; 9,15-25); as fontes histricas no oficiais como a histria da ascenso de Davi ao

    trono (1Sm 16-2Sm 5), a histria da sucesso ao trono de Davi (2Sm 7-20; 1Rs 1-2), a

    histria do cisma (1Rs 12-14), narrativas cujos primeiros autores foram pessoas que

    viveram muito prximas desses acontecimentos; as fontes populares transmitidas ao

    longo do tempo que incluem relatos e tradies; as fontes profticas como os trs ciclos

    de Elias (1Rs 17-2Rs 1), de Eliseu (2Rs 2-8) e de Isaas (2Rs 18-20); algumas sees

    dedicadas a Nat (2Sm 7); As de Silo (1Rs 11,14), entre outras.

    Embora a principal finalidade da Histria Deuteronomista tenha sido de ordem

    teolgica no se pode negar que se trata tambm de uma obra historiogrfica. Konings

    escreve que:

    histria como cincia, com documentos e verificaes metdicas algo que

    surgiu com a Modernidade, com a imprensa, as descobertas, as grandes

    universidades a partir do sculo XVII. Na Antiguidade, histria o que hoje

    chamamos de crnica, relato, no necessariamente cientificamente

    estabelecido. Mais que trazer fatos constatados e verificados importava a arte

    de bem contar a histria, de modo que fosse facilmente gravada na memria e

    conhecida por todos 34

    Segundo Smith:

    a histria da composio textual de todos estes assim chamados livros

    histricos pode, na verdade, ter variado um pouco antes de sua amalgamao

    maior na Histria Deuteronomista. Alm disso, a partir de uma anlise crtica

    destes trabalhos, pode parecer que eles passaram, no de um estgio anterior de

    34KONINGS, Johan. A historiografia de Israel nos Livros Histricos, em: Estudos Bblicos. Petrpolis: Editora Vozes, 2001, n.71, p.9.

  • 23

    tradio oral para uma posterior fase escrita, mas sim por vrios estgios, com

    verses orais e escritas, com uma influenciando potencialmente a outra. Chegar

    histria nos assim chamados trabalhos histricos no tarefa simples.

    Certamente, seria errado entender estes trabalhos como histria, se

    entendssemos por histria uma apresentao do passado sem uma reflexo

    crtica da natureza e da qualidade das fontes usadas.35

    dentro desta Histria Deuteronomista que encontramos as narrativas a cerca do

    perodo salomnico. Segundo tal memria, Salomo foi o terceiro e o ltimo dos

    monarcas que governaram os reinos unidos de Israel e Jud. O primeiro deles foi Saul.

    Durante seu governo se deu a passagem do sistema tribal para o sistema estatal. Pode-se

    considerar o perodo desse rei como intermedirio entre a sociedade tribal e a sociedade

    monrquica. Alguns autores preferem classific-lo como o ltimo dos juzes. Sob seu

    governo no ocorreram grandes mudanas, visto que sua principal preocupao estava

    voltada para a defesa dos territrios tribais.

    Ento, foi sob o reinado de Davi que a monarquia comeou a se consolidar. O

    modelo adotado foi o das naes vizinhas, principalmente dos reinos das cidades-estado

    de Cana. Davi conseguiu derrotar os inimigos e empreendeu campanhas para a

    expanso do territrio de Israel. Resolvidos os problemas externos era o momento de

    cuidar da organizao interna do Estado. Para isso, Davi tomou algumas medidas

    importantes em direo consolidao do sistema monrquico. O rei era da tribo de

    Jud e durante sete anos governou em Hebrom. Mas, como havia certa rivalidade entre

    as tribos do norte e as do sul, Davi precisava de uma capital que estivesse mais

    centralizada geograficamente e que tambm se constitusse num territrio neutro sem

    influncias dos dois lados. Conquistou uma cidade jebusita chamada Jerusalm, que

    posteriormente ficou tambm conhecida como a cidade de Davi.

    O texto 2Sm 8,17-18 traz alguns nomes importantes na administrao de Davi,

    dois deles eram jebuseus, o sacerdote Sadoc e o comandante militar Banaas, os quais

    foram incorporados ao quadro administrativo. Provavelmente, Sadoc passou a ser um

    35

    SMITH, Mark S., O memorial de Deus Histria, memria e a experincia do divino no Antigo Israel, So Paulo, Paulus, 2006, p.33.

  • 24

    poderoso e importante aliado de Davi, sendo que nesse acordo entre eles, Davi ficaria

    com o poder poltico e Sadoc com o poder religioso. Certamente, Davi aproveitou o

    modelo monrquico j existente em Jerusalm e empregou pessoas influentes em sua

    administrao.

    Outra medida importante tomada por Davi foi sua iniciativa de transladar a Arca

    da Aliana para Jerusalm, aps fixar a nova capital. Isto significou em primeiro lugar a

    retomada das relaes entre a monarquia e o sacerdcio, que estavam estremecidas

    desde os tempos de Saul. Em segundo lugar, a Arca dentro de Jerusalm passa a ser

    vinculada ao rei, legitimando religiosamente a monarquia. No foi somente na questo

    estrutural e administrativa que Davi deixou se influenciar pelos povos vizinhos, mas

    tambm no que se refere instituio de uma dinastia davdica e a aplicao da

    ideologia da filiao divina dos reis. Dessa forma o rei passa a ser o intermedirio entre

    Deus e o povo, funo muito bem justificada por uma suposta aliana eterna entre Davi

    e Iahweh, atravs da qual o poder estava garantido nas mos de seus descendentes. Essa

    aliana passa a ser o centro da ideologia real, incutindo na mente do povo que a sua

    dinastia fora escolhida por Deus.

    Davi possua um aparato militar constitudo pelo exrcito de Israel, sob o

    comando do general Joab e um grupo de mercenrios, os feleteus e os cereteus, cujo

    comandante era Banaas; a respeito desses homens Dreher escreve que o grupo dos

    trinta seria um squito composto por Davi, para sua proteo, para seu aconselhamento

    e para representaes. Comporia uma guarda pessoal diferenciada da guarda real,

    comandada por Benaia, um dos Trinta. 36 Esse grupo de mais ou menos trinta homens

    teria se tornado uma instituio em Israel; alguns autores defendem a ideia de que teria

    sido inspirada numa instituio egpcia da qual se tem notcia atravs de uma inscrio

    tumular tebana, que faz meno a um bando dos trinta a acompanhar Ramss II,

    compreendendo-o como um grupo de soldados de elite, participantes do squito real.37

    A respeito da burocracia estatal h duas listas de funcionrios. Uma em 2Sm

    8,16-18 Joab, filho de Srvia, comandava o exrcito. Josaf, filho de Ailud, era o 36 DREHER, Carlos A. A constituio dos exrcitos no Reino de Israel. So Paulo: Paulus, 2002, p.59. 37 DREHER, Carlos A. A constituio dos exrcitos no Reino de Israel, p.58.

  • 25

    arauto. Sadoc e Abiatar, filhos de Aquimelec, filho de Aquitob, eram sacerdotes; Saraas

    era secretrio; Banaas, filho de Joiada, comandava os cereteus e os feleteus. E a outra

    em 2Sm 20,23-26 Joab era o comandante supremo do exrcito; Banaa, filho de Joiada,

    comandava os cereteus e os feleteus; Adoram controlava a corvia; Josaf, filho de

    Ailud, era o arauto; Siva era secretrio; Sadoc e Abiatar eram sacerdotes. Alm desses,

    tambm Ira, o jairita, era sacerdote de Davi. Pode-se perceber a criao de um novo

    cargo o chefe da corvia assumido por Adoram. Isso significa que Davi recrutou

    trabalhadores para servios gratuitos para o estado.

    Salomo assumiu o trono de Israel e Jud quando seu pai ainda estava vivo. Foi

    co-regente de Davi. Esse fato ocorreu devido formao de dois partidos na corte onde

    lutavam pela sucesso do trono, visto que at ento no havia nenhuma legislao a

    respeito. Um partido defendia o direito de Adonias, o filho mais velho de Davi; era

    formado por Joab, general do exrcito e pelo sacerdote Abiatar. O outro favorvel a

    Salomo era composto por Nat, Sadoc, Banaas e os soldados da guarda pessoal de

    Davi.

    O autor da Histria da Sucesso de Davi (1Rs 2, 1-46) narra com detalhes como

    Salomo livrou-se de todos os seus inimigos. Derrotado os oponentes, Salomo pode

    reinar absoluto sobre os reinos de Israel e Jud. A tradio no nos conta que Salomo

    tenha empreendido alguma ao blica e certamente no interveio nenhuma guerra.

    Procurou centralizar seus projetos de governo na poltica interna. Dedicou construes

    tanto em Jerusalm, como em outras cidades do reino. Tambm as questes

    administrativas e burocrticas sofreram mudanas significativas em direo

    consolidao da monarquia. Com a diviso do territrio de Israel em doze distritos ele

    criou uma eficiente estrutura para a arrecadao de impostos. Alm disso, desenvolveu

    um extraordinrio sistema de trabalhos forados e obrigatrios.

    Salomo procurou manter relaes amigveis com as naes vizinhas,

    estabelecendo com elas acordos de paz e tratados comerciais. evidente que Salomo

    pretendeu igualar-se aos monarcas do Antigo Oriente e deixou se influenciar pelo

    modelo de Estado desses pases, principalmente do Egito. Essa complexa estrutura

    administrativa, poltica e econmica que Salomo instituiu em Israel e Jud precisava de

  • 26

    uma base slida a fim de conseguir os recursos necessrios para sua manuteno,

    desenvolvimento e principalmente a centralizao do poder. Salomo optou por

    fundamentar seu governo na sabedoria, tanto que at hoje ele lembrado como um

    sbio por excelncia.

    A partir da tenso exposta acima entre as memrias bblicas e a escrita da

    histria, nosso objetivo, no primeiro captulo obter uma viso geral do reinado de

    Salomo em Israel e Jud no sculo X a.C. Para realizar tal estudo escolhemos nos

    apoiar na historiografia de Donner. No incio do captulo faremos um breve comentrio

    a respeito da obra Histria de Israel e dos povos vizinhos de Donner. Em seguida

    buscaremos enfocar os principais aspectos do reinado de Salomo, tendo como base os

    escritos de Donner, mas tambm levando em considerao a opinio de outros autores.

    Optamos em seguir sequncia dos assuntos proposta por Donner. Finalizando,

    buscaremos entender como todas as mudanas ocorridas durante o reinado de Salomo

    atingiram a vida da populao rural. Seguimos aqui, portanto, uma narrao

    historiogrfica tradicional com o intuito principal de avaliar o quo dependente tal

    historiografia da memria bblica.

    No segundo captulo, desejamos desfazer o novelo da memria bblica no intuito

    de dela se livrar (Nora)38. Este captulo tem como principal objetivo estabelecer a

    relao existente entre sabedoria e poder durante o reinado de Salomo em Jud e Israel

    no sculo X a.C.. O rei Salomo passou para a histria como um sbio por excelncia.

    Seu reinado foi marcado por grandes construes; muitos empreendimentos comerciais;

    uma corte luxuosa e alianas realizadas com os reinos vizinhos. No entanto, poderemos

    afirmar que estamos aqui diante de memrias fortemente financiadas pelo prprio

    complexo palaciano. Localizar sociologicamente tais memrias elogiosas de Salomo

    no interior da escola de escribas ser importante para responder algumas questes

    relativas ao poder e sabedoria: qual a relao existente entre a sabedoria atribuda a

    Salomo e o poder desse monarca? Quais os meios utilizados por Salomo para

    justificar seu poder? Qual a estratgia que Salomo utilizou para garantir a centralizao

    do poder?

    38

    NORA, Pierre. Les lieux de mmoire. Paris: Gallimard, 1984, p.xii.

  • 27

    No terceiro captulo, queremos compreender como se deu a ascenso de

    Salomo ao trono de Israel e Jud e como ele se consolidou no poder. Acreditamos que

    as narrativas que compem 1Rs 1-2 trazem os elementos necessrios para que possamos

    responder a essas questes, considerando que a inteno do autor da Histria da

    Sucesso de Davi no foi narrar a histria de Davi, ao contrrio, seu principal objetivo

    foi apontar os jogos de interesse e as ideologias existentes na corte de Jerusalm, bem

    como os expedientes utilizados por Salomo a fim de se consolidar no poder. No final

    do captulo esperamos chegar concluso quanto autoria da Histria da Sucesso de

    Davi. Como possvel ainda termos acesso a uma memria conflitiva em relao ao

    governo salomnico? Qual teria sido seu lugar sociolgico preciso? A escola de escribas

    e a sabedoria podem tambm ter criado memria contestatria s grandes organizaes?

    Ao recobrar tal memria dissidente, caminharemos, por fim, para uma historiografia no

    retificadora da memria facilmente elogiosa.

    Eis o tempo de rever as duas faces de Salomo...

  • 28

    CAPTULO I

    O PESO DO OURO QUE CHEGAVA PARA SALOMO

    CONTEXTO HISTRICO-ARQUEOLGICO DE SALOMO NO DEBATE HISTORIOGRFICO

  • 29

    1.1. Introduo

    Neste primeiro captulo, o principal objetivo obter uma viso geral do reinado

    de Salomo em Israel e Jud no sculo X a.C. Para realizar tal estudo, escolheu-se

    apoiar em diversas obras historiogrficas: Historia y Poder - Comentario sobre el Libro

    de Reyes, de Adolfo Ham, Histria de Israel: dos primrdios at Bar Kochba e de

    Theodor Herzl at nossos dias, de Antonius H. J. Gunneweg, Histria Poltica de Israel

    desde as origens at Alexandre Magno, de Henri Cazelles, A Histria de Israel a partir

    dos pobres, de Jorge Pixley, Nueva Historia de Israel De los Orgenes a Bar Kochba,

    de J. Alberto Soggin, Para alm da Bblia - Histria antiga de Israel, de Mario Liverani,

    Historia de Israel, de Martin Noth, Historia de Israel en la poca del Antiguo

    Testamento, de Siegfried Herrmann, Histria de Israel, de John Bright e Histria de

    Israel e dos povos vizinhos, de Herbert Donner. Optou-se por privilegiar a obra de

    Herbert Donner, por ser representativo de uma ala historiogrfica mais usual - a de

    reconstruir o real perodo de Salomo.

    Com base nas consideraes que se fez na introduo desse trabalho a respeito

    da historiografia com relao histria de Israel e levando-se em conta que o mtodo

    escolhido foi o histrico-crtico, acredita-se que Donner seria um excelente referencial

    terico, afinal sua proposta para uma anlise do texto bblico dispensa o pressuposto

    teolgico de que Israel o povo escolhido e de que toda sua histria se deve s

    manifestaes divinas. Como o prprio nome do livro aponta, a histria de Israel deve

    estar inserida na histria dos povos vizinhos do Antigo Oriente Mdio. Na pesquisa de

    Donner, os textos bblicos so analisados como qualquer outra fonte. Segundo o autor,

    desde a explorao das culturas do Oriente Antigo vizinhas de Israel, estamos na

    situao favorvel de possuir, alm das fontes de origem israelitas, tambm material

  • 30

    extra-israelita para a histria de Israel: material cujo volume aumenta ano a ano. Essa

    circunstncia permite que se olhe para a histria de Israel a partir de dentro e de fora. 39

    No incio do captulo, far-se- um breve comentrio a respeito da obra Histria

    de Israel e dos povos vizinhos de Donner. Em seguida, se buscar enfocar os

    principais aspectos do reinado de Salomo, tendo como base a obra de Donner, mas

    tambm levando em considerao a opinio dos autores citados acima.

    Optou-se em seguir a sequncia dos assuntos proposta por Donner. Assim ser

    analisado as relaes internacionais, os tratados comerciais e as alianas feitas por

    Salomo, uma delas selada pelo casamento do rei com uma princesa egpcia, bem como

    sua poltica defensiva com relao aos possveis inimigos externos o que resultou na

    perda de parte do territrio conquista por Davi, depois das rebelies de Hadad e Rezom,

    destacando as consequncias posteriores a Salomo.

    Quanto poltica interna sero tratados assuntos como as construes de

    Salomo, incluindo a construo do templo e seu significado dentro de Israel. A reforma

    poltica e administrativa imposta por ele: a diviso do territrio de Israel em doze

    distritos e o sistema de arrecadao de impostos; a ampliao da corveia; a

    reorganizao do exrcito e a ampliao do gabinete administrativo com a criao de

    novos cargos.

    Finalizando, buscar-se- entender como todas as mudanas ocorridas durante o

    reinado de Salomo atingiu a vida da populao rural.

    1.2. A historiografia tradicional sobre Salomo

    39 DONNER, Herbert. Histria de Israel e dos povos vizinhos dos primrdios at a formao do

    Estado, v.1. So Leopoldo: Sinodal, 1997, p. 260.

  • 31

    Donner inicia a obra apresentando os pressupostos do seu estudo. Entende que a

    histria de Israel deve ser apresentada a partir das fontes, da o nome do seu primeiro

    captulo. Faz ento algumas reflexes sobre o acervo de fontes e sobre a interpretao

    do material. Lamenta o fato de o Antigo Testamento ser a fonte principal e, em alguns

    casos, a nica fonte, mas afirma que o tratamento dado a ela o mesmo utilizado para

    qualquer documento da antiguidade. Assim, trabalha com a interpretao histrico-

    crtica das fontes. Segundo Donner, para a histria de Israel o Antigo Testamento no

    entra em cogitao a no ser como coletnea de documentos histricos de carter

    diferenciado e de valor muito diverso. 40

    O autor classifica dois tipos de fontes: o material literrio e material

    arqueolgico. Quanto ao material literrio, comemora o fato de, a cada ano, estar

    aumentando o material extra-israelita, atravs da explorao de culturas de povos do

    Oriente Antigo. Assim a histria de Israel olhada tambm a partir de fora. Donner

    classifica esse material por regies: Egito, Mesopotmia, Sria e Palestina. Nesse

    trabalho historiogrfico, os documentos contemporneos so preferidos a outros que se

    refiram a acontecimentos e pessoas da histria a partir de uma distncia cronolgica

    mais ou menos grande. Crtica textual, crtica literria, crtica da forma e do gnero,

    histria das tradies, histria da redao e histria da interpretao so os mtodos e

    procedimentos de pesquisa defendidos pelo autor, que afirma que s atravs deles as

    fontes de fato comeam a ser visualizadas e se tornam utilizveis.

    O livro ainda cita a dificuldade de se obter documentos histricos de um povo

    que viveu como nmade: Israel um povo no-autctone. 41 Sob esse ponto de vista,

    o autor entende que Israel revestiu as suas origens, a sua pr-histria e a sua histria

    primitiva com o manto da saga e estas no podem ser consideradas como documentos

    histricos primrios. Donner menciona autores que atravs de seus estudos tiveram uma

    contribuio especial para a pesquisa como Hermann Gunkel e Hugo Gressmann;

    depois vieram Martin Noth e Albrecht Alt, destacando a contribuio de Noth que

    enriqueceu a pesquisa histrico-crtica com a abordagem histrico-traditiva. Donner

    conclui que a consequncia disso foi uma rigorosa desmontagem do quadro tradicional

    40 DONNER, Herbert. Histria de Israel, p. 18. 41 DONNER, Herbert. Histria de Israel, p. 25.

  • 32

    transmitido pelo Pentateuco, Josu e Juzes. Com relao crtica das formas, o autor

    concorda com as crticas contrrias ao mtodo adotado por Alt e Noth, explicando que

    somente o uso da metodologia da probabilidade interna na anlise das tradies do

    Antigo Testamento no seria suficiente para a pesquisa das fontes literrias. O ideal a

    combinao da probabilidade interna com a evidncia externa, que nada mais do

    que levar em considerao os dados externos objetivos, como por exemplo, a

    arqueologia.

    Por fim, apresenta as fontes arqueolgicas. Depois de conceitu-las, menciona os

    seus dois mtodos de trabalho: atravs das escavaes e da explorao arqueolgica de

    superfcie. Diz que a arqueologia bblica surgiu no sculo XIX a partir do interesse pela

    Bblia e que faz uso dos mtodos acima citados. Ele faz um alerta com relao

    arqueologia bblica que, em sua opinio, os resultados da pesquisa arqueolgica nas

    terras bblicas so muitas vezes usados erroneamente para confirmar as informaes da

    Bblia. Donner conclui argumentando que a Bblia no precisa de confirmao. Ela

    prpria fonte de conhecimento para a cincia histrica, como tambm o so os restos

    materiais que a arqueologia traz tona e interpreta. Portanto as duas disciplinas

    devem completar-se criticamente. 42

    Quanto a Salomo, o autor escreve que o estudo de 1Rs 3-11 torna-se complexo

    e extremamente delicado, visto que, esse conjunto literrio constitudo por textos que

    foram produzidos em diferentes pocas, elaborados sob ticas diversas e com objetivos

    distintos. Segundo Donner, dentro de 1Rs 3-11 esto misturadas vrias imagens de

    Salomo, tornando impossvel sua distino: o Salomo histrico do sculo X a.C., o

    Salomo deuteronomista e o Salomo ideal da histria da interpretao, chegando at os

    tempos ps-exlicos.43 Em decorrncia disso, tem-se considerado como histricas

    muitas informaes acrescentadas ao texto durante os sculos posteriores a Salomo.

    1.3. Do Reinado de Salomo

    42 DONNER, Herbert. Histria de Israel, p. 32. 43 DONNER, Herbert. Histria de Israel p. 250.

  • 33

    Os captulos que compem 1Rs 3-11 foram organizados ao redor de um assunto

    central, a construo do templo, apresentando tradies a respeito do incio e do fim da

    era salomnica. Os materiais utilizados para compor essa obra tm diversas origens,

    como informaes registradas nos anais oficiais do reino, uma coletnea intitulada

    Livro da Histria de Salomo citada em 1Rs 11,41, listas de funcionrios e de cargos

    militares (2Sm 20,23-26; 1Rs 4), as fontes histricas no oficiais como a histria da

    sucesso ao trono de Davi (2Sm 7-20; 1Rs 1-2), a histria do cisma (1Rs 12-14),

    narrativas cujos primeiros autores foram pessoas que viveram muito prximas desses

    acontecimentos, as fontes populares transmitidas ao longo do tempo que incluem relatos

    e tradies, as interpretaes deuteronomistas. Dessa forma, seria um equvoco afirmar

    que 1Rs 3-11 em sua composio final poderia ser resultado da descrio

    deuteronomista de Salomo. 44 Quanto ao Livro da Histria de Salomo,

    mencionado acima, Soggin escreve que preciso ter cautela quando se trata deste

    material, pois o texto bblico no nos oferece extratos seguros, somente referncias

    genricas. Mas, se admitirmos sua existncia, a lista dos funcionrios estatais em 1Rs

    4,1-6, a lista dos distritos e dos governadores de cada um (1Rs 4,7-19), a pequena nota

    sobre os trabalhos forados em 1Rs 5,27, as referncias aos empreendimentos

    comerciais patrocinados por Salomo (1Rs 10,11ss. 22,28ss.), so textos que poderiam

    ter sido retirados desse livro.45

    Diante de tal complexidade, Donner afirma que a pesquisa cientfica em busca

    do Salomo histrico se assemelha a um processo de reduo: preciso descartar

    penosamente tudo aquilo com que a histria deuteronomista e a histria da interpretao

    posterior retocaram a figura de Salomo. 46

    O autor caracteriza o reinado de Salomo como um perodo de paz; por essa

    razo, afirma que no houve um aumento do imprio de Davi durante o governo de

    Salomo. Para Donner, o nome Shelomoh contm o elemento shalom, isto , tanto o

    nome Shelomoh quanto o vocbulo shalom so derivados da mesma raiz verbal, que

    possui acepes de manter a paz, viver em paz, deixar em paz etc., e conjetura que o

    44 DONNER, Herbert. Histria de Israel, p. 251. 45 SOGGIN, J. Alberto. Nueva Historia de Israel. Bilbao: Editorial Descle de Brouwer S.A, 1997, p. 109-110. 46 DONNER, Herbert. Histria de Israel, p. 250.

  • 34

    nome pode ter sido adotado pelo rei, como um nome de trono no incio de governo.47

    Como no havia ameaas externas ao territrio, Salomo no se preocupou com

    operaes militares e acabou pagando um alto preo por no dar ateno devida

    questo territorial. Seu interesse estava voltado para a consolidao da monarquia. Para

    realizar tal objetivo era preciso aprimorar a poltica interna, as relaes exteriores e a

    cultura. Salomo pretendia manter relaes amigveis com as naes vizinhas. Muitos

    acordos polticos foram selados atravs de matrimnios. Esses casamentos fortaleciam

    os laos polticos e asseguravam as boas relaes entre as naes amigas. Donner

    escreve:

    alguma coisa historicamente confivel, todavia, pode ser dita. Salomo

    pretendia iniciar e cultivar relaes internacionais. Alcanou isso, no por

    ltimo, por meio de seu harm i. atravs da aplicao daquele sadio

    princpio poltico que, milnios mais tarde, os habsburgos austracos

    tornaram famoso: Deixa outros travarem guerras tu, Israel feliz, casa!48

    No Antigo Oriente Mdio a poligamia fazia parte da cultura da poca. Mas,

    apesar disso, era um luxo que poucos podiam ter. Pode-se dizer que era um privilgio

    real. No Egito, o harm era uma instituio. Desde os primrdios os faras possuam

    muitas mulheres e uma grande parte do harm era constituda por mulheres estrangeiras,

    dadas ao fara como garantia de acordos polticos. Mas, foi no Novo Imprio que o

    harm se tornou o centro da poltica externa do fara. O rei passa a receber princesas

    estrangeiras a fim de selar os acordos com outros pases. H notcias que Tutmsis III

    recebeu trs concubinas srias acompanhadas de 30 escravas. Seu sucessor, Tutimsis

    IV casou-se com uma das filhas do rei de Mitanni. O fara Amenfis III tambm casou-

    se com Gilukipa, filha de Shutama II, rei de Mitanni. Esta trouxe consigo um squito de

    317 mulheres, como confirma o escaravelho comemorativo que Amenfis mandou

    fazer. Amenfis tambm possua em seu harm 40 mulheres originrias de Gaza. Era

    casado com uma irm do rei dos cassitas. Da mesma forma, Ramss II contraiu

    matrimnio com vrias princesas estrangeiras. A primeira delas, e a nica que se sabe o

    nome egpcio que recebeu por ocasio do casamento, foi a princesa hitita Maat-Hor-

    47 DONNER, Herbert. Histria de Israel, p. 251. 48 DONNER, Herbert. Histria de Israel, p. 252.

  • 35

    Neferu Re, filha de Hattusili III. O casamento se deu no 34 ano de reinado de Ramss

    II, a fim de selar um acordo de paz concludo a mais de uma dcada. Maat-Hor-Neferu

    Re foi recebida com muita festa e grande pompa, pois foi uma das sete mulheres que

    durante o reinado de Ramss II recebeu o ttulo de grande esposa real. Depois dela o

    fara se casou com mais duas princesas hititas.

    Em Jud e Israel, os costumes no eram diferentes. De Saul h um texto que se

    refere a uma de suas concubinas: Havia uma concubina de Saul chamada Resfa, filha

    de Aas, e Abner a tomou. Isbaal disse a Abner: Por que te aproximaste da concubina

    de meu pai? (2Sm 3,7). Outro texto se refere s mulheres de Saul, mas no informa a

    respeito da quantidade de mulheres que o rei mantinha em seu harm: Nat disse a

    Davi: Esse homem s tu! Assim diz Iahweh, Deus de Israel: Eu te ungi rei de Israel, eu

    te salvei das mos de Saul, eu te dei a casa do teu senhor, eu coloquei nos teus braos as

    mulheres do teu senhor, eu te dei a casa de Israel e Jud, e se isso no suficiente, eu te

    darei qualquer coisa. (2Sm 12,7-8).

    Quanto a Davi, seu harm parece ter sido maior que o de Saul, o prprio texto

    acima diz que as mulheres de Saul passaram ao seu sucessor. Enquanto reinava em

    Hebrom, Davi possua seis mulheres: Os filhos nascidos a Davi em Hebrom foram: o

    seu primognito Amnon, de Aquinoam de Jezrael; o segundo, Quelead, de Abigail, que

    fora mulher de Nabal de Carmel; o terceiro, Absalo, filho de Maaca, a filha de Tolmai,

    rei de Gessur; o quarto, Adonias, filho de Hagit; o quinto, Safatias, filho de Abital; o

    sexto, Jetraam, nascido de Egla, mulher de Davi. Esses nasceram em Hebrom (2Sm

    3,2-5). Em Jerusalm o rei tomou mais esposas e concubinas: A sua chegada de

    Hebron, tomou Davi ainda concubinas e mulheres em Jerusalm, e nasceram-lhe filhos

    e filhas. (2Sm 5,13).

    Com relao a Salomo, a tradio informa que seu harm era composto por

    setecentas mulheres princesas e trezentas concubinas (1Rs 11,3), sendo que dentre

    elas estavam muitas mulheres estrangeiras: alm da filha do fara, o rei Salomo amou

    muitas mulheres estrangeiras: moabitas, amonitas, edomitas, sidnias e heteias (1Rs

    11,1). Trata-se de um texto deuteronomista e o nmero de mulheres soa como um

  • 36

    exagero. Para Donner, um nmero redondo, sagrado e suspeito. 49 Tambm no se

    pode afirmar a nacionalidade de suas mulheres estrangeiras. Sabe-se que a me de

    Roboo era amonita (1Rs 14,21) e que Salomo casou-se com uma princesa egpcia. A

    respeito desse casamento encontramos cinco menes em 1Rs 3-11. A primeira nos

    informa do casamento propriamente dito, dizendo que Salomo tornou-se genro do

    fara, rei do Egito (1Rs 3,1). A segunda, diz que Salomo construiu uma casa

    semelhante sua para a filha do fara (1Rs 7,8). A terceira conta que o fara entregou a

    Salomo a cidade de Gezer, aps te-la tomado dos cananeus, como dote pelo casamento

    da filha. A quarta relata a mudana da princesa da Cidade de Davi para a casa que o rei

    havia construdo para ela (1Rs 9,24) e a quinta refere-se s mulheres estrangeiras de

    Salomo, entre as quais estava a princesa egpcia. Infelizmente, no se pode afirmar

    com segurana quem foi o fara que fez aliana com Salomo. importante ressaltar

    que esses acordos eram feitos entre os governantes e no entre os Estados. Aps a morte

    de pelo menos um dos reis o relacionamento poltico j no era obrigatrio. O

    casamento diplomtico de Salomo, provavelmente, garantiu uma poca de paz entre

    Israel e Egito. No entanto, logo aps sua morte o fara Shoshenk I atacou Israel,

    demonstrando que a aliana feita entre Salomo e o fara anterior j no estava em

    vigor. Conforme Donner,

    no 5 ano de governo de Roboo (922), o fara Shoshenk I empreendeu

    uma campanha militar na Palestina [...] Shoshenk I mandou afixar uma

    extensa lista das localidades conquistadas s vezes talvez apenas visitadas

    numa das paredes externas meridionais do grande templo de Amom em

    Tebas-Karnak, no chamado portal dos dinastas de Bubstis. Nessa lista

    faltam completamente localidades do ncleo do territrio judata, as

    montanhas e a regio de colinas. Isso corresponde a 1 Rs 14, 25-28, segundo

    o qual Roboo ofereceu o tesouro do palcio e do templo de Jerusalm para

    comprar a liberdade para si e sua zona de domnio. Shoshenk avanou at o

    territrio do Reino de Israel, alcanou a Plancie de Meguido e de l, enviou

    unidades de suas tropas para diversas direes do pas, tambm para a

    Transjordnia. Em Meguido at deixou uma estela com seu nome conservada

    fragmentriamente.50

    49 DONNER, Herbert. Histria de Israel, p. 253. 50 DONNER, Herbert. Histria de Israel, p. 286-287.

  • 37

    Segundo Soggin, no fcil comprovar a veracidade do matrimnio de Salomo

    devido ao estado atual das fontes e das investigaes. Mas, se realmente trata-se de um

    fato histrico, pode ser considerado como um xito internacional de notvel

    importncia, por duas razes: a primeira porque Salomo recebeu como dote a cidade

    de Gezer e a segunda, porque os faras nunca davam suas filhas em casamento para os

    soberanos estrangeiros. Outra concluso de Soggin de que o fato do fara ter

    conquistado e destrudo Gezer demonstra que o Egito no estava passando por um

    perodo de declnio, como afirmam alguns autores. Noth, por exemplo, afirma que se

    tratava de uma filha do harm de um dos insignificantes faras da XXI dinastia

    egpcia. 51 Para Soggin, o dote representa que o fara era favorvel ao casamento e que

    tratava-se de um acordo entre iguais. 52 Na opinio de Bright, difcil imaginar que o

    fara empreenderia uma campanha to rdua apenas para conquistar uma cidade para o

    rei israelita. Ele argumenta que talvez o fara tivesse a inteno de restabelecer o

    domnio egpcio sobre a Palestina, com esse intuito, tivesse lanado uma campanha

    contra as cidades filistias, dentre as quais estava a cidade fronteiria de Gezer, mas,

    tendose defrontado com tropas mais fortes do que imaginara, nos moldes do exrcito

    de Salomo, considerou mais sbio (ou a isto foi impelido) a entregar a concesso

    territorial e proclamar a paz. 53

    Das relaes internacionais exercidas por Salomo merecem destaque seus

    acordos com a costa fencia, especialmente com a cidade de Tiro. Donner afirma que

    havia um legtimo tratado de comrcio entre Israel e a cidade-Estado de Tiro, cujo rei

    chamava-se Hiro. Esse contrato estabelecia que Hiro fornecesse madeira e mo-de-

    obra especializada para as construes de Salomo. Como pagamento, Salomo lhe

    enviaria azeite e trigo (1Rs 5, 24-25). Donner considera o texto 1Rs 5,15-26 como

    deuteronomista. Alm desse acordo, Hiro tambm participava das expedies da

    marinha mercante de Salomo para Ofir e Trsis, disponibilizando navios e marinheiros

    experientes (1Rs 9, 26-28; 10, 11; 22), que alm das viagens tambm auxiliaram

    Salomo na construo de seus navios, chamados navios de Trsis, tinham esse nome

    por causa da colnia fencia de Tartessos margem do Guadalquivir, no sul da Espanha.

    51

    NOTH, Martin, Historia de Israel. Barcelona: Ediciones Garriga, 1966, p. 204. 52 SOGGIN, J. Alberto. Nueva Historia de Israel, p. 124-125. 53 BRIGHT, John. Histria de Israel. 5. ed. So Paulo: Edies Paulinas, 1995, p. 278.

  • 38

    O porto de Eziom-Geber situava-se na extremidade setentrional do Golfo de

    caba.54

    Para Soggin, no possvel afirmar com certeza para onde se dirigiam tais

    expedies, visto que a localidade de Ofir no pode ser identificada, afirmando que

    juntamente com Tarsis, formassem parte de uma geografia puramente mtico-

    simblica, sem relao alguma com a realidade. Tambm questiona o tempo de

    durao dessas viagens, trs anos (1Rs 10, 22), tendo em vista que se considerarmos

    que as tcnicas navais da poca somente permitiam a navegao de barcos de pequena

    cabotagem, impossvel que esses se distanciassem muito da costa africana ou asitica

    do Mar Vermelho. 55 Herrmann escreve que no se sabe se Ofir era o pas de origem

    das numerosas riquezas ou era somente uma parada intermediria naquela via

    comercial. Mas acredita que Salomo fundou uma cidade porturia e realizou viagens

    martimas com o apoio do rei de Tiro. 56

    Por motivos desconhecidos Salomo acabou por entregar 20 localidades na

    regio de Kabul, (9, 10-14) na Baixa Galileia, razo pela qual Donner interpreta que a

    relao entre Israel e Tiro era caracterizada como uma relao de dependncia. 57

    Segundo Soggin, Hiro de Tiro deve ter concedido a Salomo credito ilimitado (1Rs

    9,10-14), do qual Salomo provavelmente usou alm do que podia, chegando ao ponto

    de no mais conseguir honrar com seus compromissos, sendo obrigado a ceder vinte

    populaes situadas, possivelmente, na Galileia ocidental. Mesmo assim, Hiro no

    ficou satisfeito com o pagamento, considerando ser insuficiente para saldar as dvidas

    contradas por Salomo. Posteriormente, o autor de 2Cr 8,1-6 procurou inverter a

    situao afirmando que Hiro havia entregue as cidades a Salomo. Para Soggin, a tese

    de 1Rs mais verdadeira, pois se encaixa perfeitamente na questo da mxima

    explorao dos recursos financeiros da nao.58

    54 DONNER, Herbert. Histria de Israel, p. 253-254. 55 SOGGIN, J. Alberto. Nueva Historia de Israel, p. 121-122. 56 HERRMANN, Siegfried. Historia de Israel en la poca del Antiguo Testamento. Salamanca: Ediciones Sgueme, 1985, p. 229. 57 DONNER, Herbert. Histria de Israel, p. 253. 58 SOGGIN, J. Alberto. Nueva Historia de Israel, p. 122-123.

  • 39

    O casamento com a filha do fara o mais famoso dos matrimnios de Salomo

    e o acordo comercial entre Salomo e Hiro de Tiro o mais conhecido. Mas as

    relaes internacionais de Salomo no se limitaram apenas a esses dois tratados. As

    ambies de Salomo eram bem maiores. O rei pretendia de uma vez por todas

    consolidar o regime monrquico nos moldes existentes entre as naes vizinhas, a fim

    de inserir Israel no cenrio de sua poca. Para garantir a paz e expandir o reino,

    Salomo passa a usar, ao invs da guerra, a diplomacia e faz vrias alianas com os

    pases vizinhos. Para conseguir realizar seus inmeros projetos Salomo no poupou

    esforos, revelando um excelente estrategista comercial. O rei acabou comandando uma

    das maiores e mais valiosas rotas de comrcio de sua poca. Bright escreve: o

    verdadeiro gnio de Salomo, contudo, estava no setor da indstria e comrcio. Ele

    era capaz de compreender a significao econmica de sua posio estratgica,

    abarcando as maiores rotas de comrcio norte-sul do Egito e da Arbia at o norte da

    Sria, e tambm de captar as possibilidades de sua aliana com Tiro.59

    Outro aspecto das atividades comerciais de Salomo se refere ao comrcio de

    carros de combate e cavalos, os quais ele importava da sia Menor e do Egito,

    respectivamente, no podendo descartar a possibilidade de que realmente Salomo

    tenha estabelecido um monoplio comercial desses produtos. Soggin cita que o

    comrcio dos carros e cavalos implicava tambm alguns soberanos menores como os

    hititas e os reis de Aram, comentado que a posio da Palestina como nao-ponte

    entre a sia e a frica evidentemente favorecia estas operaes comerciais. 60 Noth

    escreve que Salomo realizava um comrcio ativo, e seguramente muito proveitoso,

    com os carros de combate e os cavalos, por mediao dos mercadores reais. Os carros e

    cavalos procediam do Egito, mas, importavam-se tambm cavalos da Cilcia, os quais

    eram vendidos aos reis dos hititas e aos reis de Aram. 61

    Segundo Siqueira, Salomo foi o precursor na explorao das rotas comerciais,

    servindo-se da posio estratgica ocupada por Israel, na regio que posteriormente

    recebeu o nome de crescente frtil. Para ele, a visita da rainha de Sab, relacionada com

    59 BRIGHT, John. Histria de Israel, p. 281. 60 SOGGIN, J. Alberto. Nueva Historia de Israel, p.122. 61

    NOTH, Martin, Historia de Israel, p. 204.

  • 40

    a sabedoria de Salomo, trata-se, na verdade, de uma visita de negcios. A expresso

    pedir por algo desejado (verso 13) refere-se troca de bens entre dois monarcas.

    bom lembrar que durante as negociaes entre Salomo e Hiro (1Rs 5, 22-24), o rei

    fencio usou a mesma expresso. Ele defende a tese de que Salomo controlava as

    rotas comerciais e as regies em que as caravanas rabes percorriam em direo s

    terras do Crescente Frtil, assim os rabes dependiam do intermdio de Salomo para

    assegurar o transporte regular de seus produtos. Afirma ainda que:

    As expresses ansei hatarim, homens de comrcio, mishar haroklim, o

    trfico dos comerciantes (1Rs 10,15) e soharei hammelek, os comerciantes do

    rei (1Rs 10,28). Embora a histria dos patriarcas fale de suas atividades

    comerciais (conferir Gn 34, 10.21; 42,34), as evidncias de uma atividade

    comercial mais formalizada est na narrativa do governo de Salomo. Os

    termos tarim e roklim e a expresso soharei hammlek levam a crer que o rei

    participava diretamente do comrcio numa escala internacional. 62

    As reconstrues e fortificaes de importantes cidades como Hazor, Megido e

    Gezer, executadas por Salomo, foi devido posio estratgica dessas cidades,

    situadas ao longo da rota comercial. Essas trs cidades estavam situadas nos pontos

    mais estratgicos da Via Maris: Gezer, ao p da Sefela, guardando a passagem para a

    montanha de Jud; Meguido, como chave do acesso para a grande plancie de Jezrael; e

    Hazor, ltima praa forte antes de abandonar o territrio da Palestina a caminho de

    Damasco, conforme Echegaray. 63 Segundo Siqueira, a grande razo das naes

    preferirem a Palestina e a Sria como ponte de ligao e passagem, para o Egito e

    Mesopotmia, justificada pela denominao Crescente Frtil. A Palestina forma a

    parte central da lua crescente deste solo produtivo. sua margem leste, fica o estril

    deserto e, oeste est o Mar Mediterrneo. Assim, a limitao martima e a

    impossibilidade de viajar pelo deserto, restou aos Egpcios e aos povos da Mesopotmia

    a passagem via Palestina. Na verdade, este pequeno territrio constituiu-se, por alguns

    milnios, na passagem mais vivel e econmica entre as maiores potncias comerciais

    62 SIQUEIRA, Trcio Machado, O povo da terra no perodo monrquico, Tese (Doutorado em Cincias da Religio), UMESP - Universidade Metodista de So Paulo, So Paulo, 1997, p. 98. 63

    ECHEGARAY, Joaqun Gonzlez, O crescente frtil e a Bblia, Petrpolis, Vozes, 1993, p.128.

  • 41

    da regio. 64 Salomo transformou essas rotas comerciais em uma importante fonte de

    receitas para o Estado, cobrando impostos sobre as mercadorias em circulao. 65

    Para Donner, os ganhos obtidos atravs de tais empreendimentos dificilmente

    beneficiavam o povo. Os lucros alcanados faziam parte do tesouro real e eram

    empregados na manuteno da corte e nas obras de construes. Na poca de Salomo

    no se pode falar da existncia daquela proximidade e familiaridade que Davi tinha

    com os homens de Jud e Israel. Toda riqueza se concentrava na corte de Jerusalm e

    os grandes beneficirios eram aqueles que estavam ao redor do rei. 66

    Quanto sabedoria de Salomo, Donner prefere ser bem cauteloso, pois

    historicamente, nada muito confivel no que se refere a esse assunto. Ele entende como

    lenda a visita da rainha de Sab (1Rs 10,1-3) e o julgamento salomnico (1Rs 3, 16-28).

    Considera 1Rs 5, 9-14 como um texto no deuteronomista, mas admite a dificuldade em

    datar o texto. Discorda de Von Rad quanto expresso iluminismo salomnico,

    afirmando que o conceito iluminismo tem seu lugar na histria do pensamento do

    Ocidente, denominando a a emancipao do esprito ocidental de suas origens. Fica

    evidente que na poca de Salomo razo e emancipao significavam algo diferente do

    que na Europa do sculo XVIII. 67 Soggin tambm critica tal expresso, argumentando

    que apesar das escolas de escribas, abertas para a formao dos futuros funcionrios, nada

    indica que esses eram possuam o ttulo de sbios. Pode-se considerar que a poca de

    Salomo foi um perodo de abertura e que houve um desenvolvimento do conhecimento,

    favorecido pelos contatos internacionais e pela riqueza em circulao no pas. Com

    relao s tradies atribudas a Salomo, ainda preciso ter certa prudncia devido ao

    silncio das fontes. 68 Segundo Noth, o que o captulo 5 diz referindo-se a Salomo, sem

    dvida poderia ser aplicado perfeitamente a toda a sua poca, e possvel que a tradio

    tardia procurasse centrar na pessoa do rei o que podia aplicar-se a todo o Israel na poca

    64 SIQUEIRA, Trcio Machado, O povo da terra no perodo monrquico, p. 127-128. 65 Trcio Siqueira fez um importante estudo a respeito do comrcio internacional, analisando detalhadamente as principais rotas comerciais, destacando a duas mais importantes: o Caminho do Mar (Via Maris) e o Caminho Real, conferir SIQUEIRA, Trcio Machado, O povo da terra no perodo monrquico, p. 127-138. 66 DONNER, Herbert. Histria de Israel, p. 254. 67 DONNER, Herbert. Histria de Israel, p. 257. 68 SOGGIN, J. Alberto. Nueva Historia de Israel, p. 122-123.

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    de Salomo, em cuja corte e entre os funcionrios reais ia se formando uma classe mais

    culta. Para ele os altos funcionrios deveriam estar aptos no somente para exercer os

    trabalhos da administrao interna, como tambm desempenhar outras funes junto s

    outras naes como exigia as relaes internacionais. Com o tempo, a cultura acaba

    atraindo outras camadas da populao despertando novos anseios intelectuais. 69

    Para Herrmann, se quisermos saber at que ponto Jerusalm tomou um rumo

    prprio e o rei submergiu na atmosfera internacional daquela poca, basta prestar ateno

    a certas notcias que nos do a entender sua participao na vida cultural de maneira geral,

    a qual no estava vinculada apenas ao mbito religioso. O conceito de sabedoria abre-se a

    um campo mais amplo de atividades intelectuais e grandes iniciativas dentro da corte

    consolidada, que no esto somente relacionadas pessoa do rei. Afirma que em

    Jerusalm se dedicaram confeco de listas ou catlogos enciclopdicos, que

    abarcavam o mundo e seus objetos, como as listas conhecidas tanto na Mesopotmia,

    como no Egito. Um exemplo egpcio da cincia enciclopdico-catalogal o onomstico

    de Amenope, que data de 1100 a.C. Da o texto 1Rs 5,13, falou das plantas, desde o

    cedro que cresce no Lbano at o hissopo que sobe pelas paredes: falou tambm dos

    quadrpedes, das aves, dos rpteis e dos peixes. Assim, sua sabedoria comparada com

    a sabedoria de outros povos, inclusive dos egpcios (1Rs 5,10). bem provvel que

    Salomo tenha ordenado aos escribas coletarem sentenas de sabedoria prtica, de

    princpios tico-morais, procurando registr-las por escrito, dessa forma, 1Rs 5,12

    menciona os provrbios e os cnticos de Salomo. 70

    Segundo Bright, difcil afirmar a respeito da fama internacional de Salomo

    como autor de provrbios, levando-se em conta que no temos conhecimento das sbias

    palavras atribudas a ele, mas considera que a tradio, da qual o livro dos Provrbios a

    essncia, teve incio nessa poca. Ele escreve:

    Apesar de Os Provrbios serem um livro ps-exlico, no h nenhuma razo

    para considerar a sabedoria hebraica como um desenvolvimento ps-exlico, e

    menos ainda para supor que representa uma aquisio tardia de supostas fontes

    edomitas ou norte-arbicas. Uma literatura gnmica existira j no segundo

    69 NOTH, Martin, Historia de Israel, p. 206. 70 HERRMANN, Siegfried. Historia de Israel en la poca del Antiguo Testamento, p. 239-240.

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    milnio, e muito antes em todo o mundo antigo, particularmente no Egito, mas

    tambm em Cana (como os provrbios nas Cartas de Amarna, os textos de Ras

    Shamra, etc., como o indicam os canaanismos do Livro dos Provrbios). Sabe-

    se que parte de Os Provrbios (cf. cc. 22 a 24) baseia-se nas Mximas Egpcias

    de Amenemope (que datam do final do segundo milnio). No h razo para se

    duvidar que a sabedoria tenha florescido em Israel no sculo dcimo,

    provavelmente atravs da mediao canaanita, e cultivada na corte de Salomo.

    Para Pixley:

    os primeiros documentos israelitas que se podem reconstruir provm desta

    primeira poca monrquica. Tudo o que h de mais anti