a doutrina social da constituição pastoral gaudium et spes

20
DOCUMENTOS Concílio Vaticano II A doutrina social da Constituição Pastoral "Gaudium et Spes" 1. Na sua última congregação geral, em 6 de Dezembro de 1965, o Concílio Vaticano II aprovou, globalmente, um documento, até então comummente conhecido por «esquema XIII», que a partir desse voto ficou transformado em Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo deste Tempo. Promulgada pelo Papa, conjunta- mente com os Padres Conciliares, no dia seguinte, 7 de Dezembro, após uma derradeira votação em que se registaram 2309 votos favoráveis, 75 contrários e 7 nulos, essa Constituição abre pelas palavras Gaudium et Spes, que doravante, de acordo com a tradi- ção eclesiástica, a designarão correntemente. Trata-se de um longo documento, que abrange 93 artigos, na sua quase totalidade subdivididos em diversos parágrafos. As matérias nele abordadas encontram-se repartidas de acordo com o seguinte plano geral: Antelóquio Exposição Preliminar: A Condição Humana no Mundo de Hoje — l. a Parte: A Igreja e a Vocação Humana Cap. I: A Dignidade da Pessoa Humana Cap. II: A Comunidade Humana Cap. III: A Actividade Humana no Universo Cap. IV: O Papel da Igreja no Mundo deste Tempo — 2. a Parte: Sobre alguns Problemas mais Urgentes Cap. I: Dignidade do Casamento e da Família Cap. II: A Elevação da Cultura Cap. III: A Vida Económico-social Cap. IV: A Vida da Comunidade Política 327

Upload: nmbarreira

Post on 25-Nov-2015

13 views

Category:

Documents


3 download

TRANSCRIPT

  • DOCUMENTOS

    ConclioVaticano II A doutrina social

    da Constituio Pastoral"Gaudium et Spes"

    1. Na sua ltima congregao geral, em 6 de Dezembro de1965, o Conclio Vaticano II aprovou, globalmente, um documento,at ento comummente conhecido por esquema XIII, que a partirdesse voto ficou transformado em Constituio Pastoral sobre aIgreja no Mundo deste Tempo. Promulgada pelo Papa, conjunta-mente com os Padres Conciliares, no dia seguinte, 7 de Dezembro,aps uma derradeira votao em que se registaram 2309 votosfavorveis, 75 contrrios e 7 nulos, essa Constituio abre pelaspalavras Gaudium et Spes, que doravante, de acordo com a tradi-o eclesistica, a designaro correntemente.

    Trata-se de um longo documento, que abrange 93 artigos, nasua quase totalidade subdivididos em diversos pargrafos. Asmatrias nele abordadas encontram-se repartidas de acordo como seguinte plano geral:

    Antelquio Exposio Preliminar: A Condio Humana no Mundo

    de Hoje l.a Parte: A Igreja e a Vocao Humana

    Cap. I: A Dignidade da Pessoa HumanaCap. II: A Comunidade HumanaCap. III: A Actividade Humana no UniversoCap. IV: O Papel da Igreja no Mundo deste Tempo

    2.a Parte: Sobre alguns Problemas mais UrgentesCap. I: Dignidade do Casamento e da FamliaCap. II: A Elevao da CulturaCap. III: A Vida Econmico-socialCap. IV: A Vida da Comunidade Poltica

    327

  • Cap. V: A Defesa da Paz e a Construo da Comuni-dade das Naes

    Concluso.

    2. A Exposio Preliminar descreve alguns traos funda-mnetais do mundo actual, tais como o Conclio os encarou, isto :define a perspectiva em que os Padres Conciliares se situaram,relativamente actual evoluo da humanidade e aos problemasque nessa evoluo se levantam. A l.a Parte expe os princpios,conceitos e valores fundamentais de uma concepo o mundo, dasociedade e do homem; mais precisamente, explicita o significadoreligioso e humanstico essencial, atribudo pelo Conclio men-sagem crist, em funo do mundo contemporneo. A 2.a Parteaplica os princpios, conceitos e valores, anteriormente expostos,a um certo nmero de problemas actuais, considerados maisurgentes problemas da vida familiar, da vida cultural, da vidaeconmico-social, da vida poltica e da vida internacional.

    No se justificaria, decerto, e de qualquer modo no seriapossvel, publicar nesta Revista uma traduo integral de to amplodocumento, que na verdade excede, pela extenso, perspectiva enatureza de muitas das questes nele tratadas, o mbito das preo-cupaes e o plano de interesses do Gabinete de InvestigaesSociais. Porm, uma vez que a definio dos problemas sociais,em qualquer sociedade, fortemente influenciada pelas concepese atitudes doutrinais que, nessa sociedade, desfrutam de audinciacolectiva, e dado que a chamada doutrina social da Igreja certa-mente dispe em Portugal de considervel receptividade, enten-deu-se que o prprio interesse do Gabinete por aqueles problemasconstitua razo bastante para a publicao de alguns extractosde Gaudium et Spes. Seleccionaram-se, pois, os que mais directa-mente se prendem com os temas de que o Gabinete se ocupa e pro-moveu-se a sua traduo. Sem dificuldades, a escolha recaiu sobrea Exposio preliminar e sobre o Captulo III da 2.a Parte: A vidaeconmico-social.

    3. A traduo foi efectuada no Gabinete, sobre a versofrancesa estabelecida por iniciativa (e pode quase dizer-se: sob aresponsabilidade) do Episcopado de Frana. A rigorosa fiedigni-dade dessa verso garantida pela circunstncia de ter beneficiadoda assistncia de Mons. HAUBTMANN, que desempenhou papel fun-damental na redaco do texto latino.

    Conservou-se, na verso em portugus, seguidamente apresen-tada, a numerao original dos artigos, pargrafos e notas. Pre-tendeu-se, assim, tornar possvel efectuar eventuais citaes apartir deste texto portugus, segundo a melhor norma para acitao de documentos desta natureza (designao corrente do

  • documento neste caso: Gaudium et Spes> seguida do nmerodo artigo e do nmero do pargrafo).

    Em prximo nmero, Anlise Social publicar alguns comen~trios aos textos ora traduzidos.

    CONSTITUIO PASTORAL GAUDIUM ET SPES(Extractos)

    I

    A CONDIO HUMANA NO MUNDO DE HOJE

    4. Esperanas e angustias 1. Para bem cumprir a tarefa que lhe cabe, a Igreja deve

    perscrutar incessantemente os sinais dos tempos e interpret-los luz do Evangelho, de modo a poder responder, por forma adap-tada a cada gerao, s eternas interrogaes dos homens quantoao sentido da sua vida presente e futura e quanto s suas mtuasrelaes. Importa, pois, conhecer e compreender este mundo emque vivemos, suas espectativas e aspiraes, e o carcter por vezesdramtico de que estas se revestem. Eis seguidamente, tais comonos possvel esbo-los, alguns traos fundamentais do mundoactual.

    2. O gnero humano vive hoje uma nova idade da sua his-tria, caracterizada por profundas e rpidas transformaes, que,a pouco e pouco, se estendem a todo o globo. Transformaes queo homem, pela sua inteligncia e actividade criadora determina,mas que sobre ele se reflectem, nos seus juzos, nas suas aspira-es individuais e colectivas,, nos seus modos de pensar e de agir,quer em relao s coisas, quer em relao aos seus semelhantes.A tal ponto que nos j possvel falar de uma verdadeira meta-morfose social e cultural, cujos efeitos se repercutem na prpriavida religiosa.

    3. Como qualquer outra crise de crescimento, uma tal trans-formao no ocorre sem grandes dificuldades. Assim, ao passoque o poder do homem to largamente se acrescenta, nem sempreconsegue control-lo. No esforo de mais profundamente penetrarnas mais recnditas zonas do seu ser, quantas vezes manifesta,acerca de si mesmo, maior incerteza. Conhece pouco a poucq, ecada vez com maior clareza, as leis da vida social, mas hesitaquanto orientao a imprimir-lhe.

  • 4. Jamais o gnero humano possuiu tantas riquezas, tantaspossibilidades, tamanho poderio econmico; e, no entanto, umaparte considervel dos habitantes da Terra padece ainda a fomee a misria e toda uma multido de seres humanos nem sequersabe ler e escrever. Jamais os homens possuram um to vivo sen-tido da liberdade; mas, simultaneamente, novas formas surgemde servido social e psquica. No prprio momento em que o mundotoma vigorosa conscincia da sua unidade e da dependncia rec-proca de todos numa necessria solidariedade, ei-lo violentamentedividido pela oposio de foras que se entrechocam: rduasdissenes polticas, sociais, econmicas, raciais e ideolgicas per-sistem ainda e o perigo duma guerra, de consequncias terrveis,subsiste. Aumenta a permuta de ideias; mas as prprias palavras,utilizadas para exprimir conceitos de importncia fundamental,revestem-se de acepes diferentes, conformes diversidade dasideologias. Finalmente, procura-se aturadamente uma organizaotemporal mais perfeita sem que este progresso se acompanhe deidntico surto espiritual.

    5. Marcados por uma situao a tal ponto complexa, muitosso os homens do nosso tempo a quem difcil discernir quaisos valores permanentes; simultaneamente, no lhes possvel har-moniz-los com as descobertas recentes. Tomados de ansiedade,interrogam-se, num misto de esperana e angstia, acerca daevoluo actual do mundo. Esta, desafiando o homem, obriga-osimultaneamente a procurar-lhe resposta.

    5. Uma profunda mutao

    1. A presente alterao dos modos de pensar e a transfor-mao das condies de vida encontram-se ligadas a uma globalmutao que tende, nos aspectos de formao intelectual, para apredominncia das cincias matemticas, naturais ou humanas e,nos aspectos de aco, para a predominncia da tcnica, de basecientfica. O esprito cientfico introduziu modificaes profundasna cultura e nos modos de pensar. Os progressos da tcnica voat ao ponto de transformar a face da Terra e lanam-se j conquista do espao.

    2. A inteligncia humana domina tambm, de certo modo,o prprio tempo; o passado, pelo conhecimento histrico; o futuro,pela prospectiva e pela planificao. Os progressos das cinciasbiolgicas, psicolgicas e sociais, no s permitem ao homem ummelhor conhecimento de si prprio, como lhe fornecem meios de

  • exercer influncia directa sobre a vida das sociedades,, medianteutilizao de tcnicas adequadas. Simultaneamente, a humanidadebusca, por forma cada vez mais generalizada, prever e controlaro seu prprio desenvolvimento demogrfico.

    3. A histria progride to rapidamente, que se torna dif-cil seguir o seu movimento. O destino da comunidade humanaunifica-se, deixando de se diversificar em histrias nacionais sepa-radas. O gnero humano passa, em suma, de uma noo estticada ordem das coisas, a uma concepo mais dinmica e evolutiva,o que d origem a toda uma incomensurvel problemtica nova,que incita a novas anlises e novas snteses.

    6. Transformaes na ordem social

    1. Surgem,, simultaneamente, alteraes cada vez mais im-portantes nas comunidades locais tradicionais (famlias patriar-cais, clans, tribos, aldeias), nos diferentes grupos e nas relaessociais.

    2. Desenvolve-se a pouco e pouco uma sociedade de tipoindustrial, que conduz certos pases a uma economia de opulnciae transforma radicalmente as concepes e as condies secula-res da vida em sociedade. Do mesmo modo, a civilizao urbanae a atraco por ela exercida intensificam-se, quer pela multipli-cao das cidades e dos seus habitantes, quer pela extenso domodo de vida urbano ao prprio mundo rural.

    3. Novos meios de comunicao social, cada vez mais aper-feioados,, favorecem o conhecimento dos acontecimentos e a difu-so extremamente rpida e universal das ideias e dos sentimentos,suscitando assim numerosas reaces em cadeia.

    4. No se pode tambm ignorar que numerosos so oshomens que, levados por mltiplos motivos emigrao, por issomesmo modificam o seu modo de vida.

    5. Em suma, as relaes do homem com os seus semelhan-tes multiplicam-se incessantemente e a prpria socializao dorigem a novos laos, sem que porm seja sempre favorecido, comodeveria s-io, o pleno desenvolvimento da pessoa e das relaesverdadeiramente pessoais, isto : a personalizao.

    6. Sem dvida, esta evoluo manifesta-se sobretudo nos

    881

  • pases que beneficiam j das vantagens do progresso econmico etcnico; mas surge tambm nos povos em vias de desenvolvimento,que aspiram a dotar os seus pases dos benefcios da industriali-zao e da urbanizao. Tais povos, sobretudo se possuem tradi-es mais antigas, sentem, simultaneamente, que lhes necessrioexercer a sua liberdade de maneira mais adulta e mais pessoal.

    7. Transformaes psicolgicas, morais e religiosas

    1. A transformao das mentalidades e das estruturas con-duz muitas vezes a uma contestao dos valores tradicionais, parti-cularmente pelos jovens, que, frequentemente, no suportam a suacondio. Mais ainda: por um lado, a inquietao gera neles arevolta; mas, por outro lado, conscientes da sua importncia navida social, desejam assumir o mais cedo possvel as suas respon-sabilidades. Eis por que no raro que os pais e os educadoresexperimentem dificuldades crescentes no desempenho das suasfunes.

    2. Os quadros de vida, as leis, os modos de pensar e desentir, herdados do passado, nem sempre parecem adequados aoactual estado de coisas; donde, a instabilidade de certos compor-tamentos e, por vezes, das prprias normas de conduta.

    3. Finalmente, as novas condies afectam a prpria vidareligiosa. Por um lado, o surto do esprito crtico purifica-a deuma certa concepo mgica do mundo e de determinados resduossupersticiosos, exigindo uma adeso f cada vez mais pessoale activa; numerosos so assim aqueles que atingem um sentidomais profundo de Deus. Por outro lado, as multides que se afas-tam, na prtica, da religio so cada vez mais numerosas. RecusarDeus ou a religio, no ter preocupaes a tal respeito, deixou deser, como outrora, um acto excepcional, restrito a apenas algunsindivduos; com efeito, hoje, tal comportamento frequentementeapresentado como uma exigncia do progresso cientfico ou de al-gum novo humanismo. Em numerosas regies, esta negao ouindiferena no se exprime apenas em nvel filosfico; afecta igual-mente e em grande extenso a literatura, a arte, a interpretaodas cincias humanas e da histria e a prpria legislao: daa perturbao de muitos.

    8. Os desequilbrios do mundo moderno

    1. Uma evoluo to rpida, realizando-se frequentemente

    332

  • por forma desordenada, e, mais ainda, a tomada de conscincia,progressivamente mais aguda, das divises de que o mundo sofre,engendram ou agravam contradies e desequilbrios mltiplos.

    2. Ao nvel da prpria pessoa,, surge frequentemente umdesequilbrio entre a inteligncia prtica moderna e um pensa-mento especulativo que se mostra incapaz de dominar a massados seus conhecimentos e de os ordenar em snteses satisfatrias.Desequilbrio igualmente entre a preocupao da eficcia concretae as exigncias da conscincia moral, e, no menos frequente*mente, entre as condies colectivas da existncia e as exignciasdo pensamento pessoal ou da contemplao. Desequilbrio, final-mente, entre a especializao da actividade humana e uma visoglobal da realidade.

    3. No interior das famlias, aparecem tenses devidas, quera condies demogrficas,, econmicas e sociais difceis, quer aconflitos de geraes, quer ainda s novas relaes sociais quese estabelecem entre o homem e a mulher,

    4. Desequilbrios graves surgem tambm entre as raas,entre as diversas categoriais sociais, entre pases ricos, menosricos e pobres; finalmente, entre as instituies internacionais,nascidas da aspirao dos povos paz, e as propagandas ideol-gicas ou os egosmos colectivos que se manifestam no seio dasnaes e dos outros grupos.

    5. Da resultam desconfianas, inimizades, conflitos e des-truies, de que o homem , simultaneamente, causador e vtima.

    9. A universalizao das aspiraes do gnero humano

    1. Cresce, entretanto, a convico de que o gnero humanopode e deve, no apenas reforar a sua capacidade de dominar acriao, mas tambm instituir uma ordem poltica, social e econ-mica progressivamente mais apta para servir o homem e que per-mita a cada indivduo e a cada grupo afirmar e desenvolver a suadignidade prpria.

    2. Nascem da as vigorosas reivindicaes de muitos que,claramente conscientes das injustias e desigualdades na distribui-o dos bens, se consideram lesados. Os pases em vias e desenvol-vimento, como por exemplo aqueles que recentemente alcanarama independncia, desejam participar nos benefcios da civilizao

    m

  • moderna, tanto no plano econmico, como no plano poltico,e desempenhar livremente o seu papel na cena mundial. Porm,entre estes pases e os mais ricos, cujo desenvolvimento se revelamais rpido, o desnvel torna-se cada vez maior, bem como, fre-quentemente, a dependncia, compreendendo a dependncia econ-mica. Os povos da fome interpelam os povos da opulncia. Asmulheres, nos pases onde ainda no a obtiveram, reclamam aparidade de direito e de facto com os homens. Os trabalhadores,da indstria e dos campos, desejam no apenas ganhar a vida,mas desenvolver a sua personalidade atravs do trabalho, ou me-lhor: participar na organizao da vida econmica, social, polticae cultural. Pela primeira vez na histria, a humanidade inteirano mais hesita em acreditar que os benefcios da civilizaopodem e devem realmente estender-se a todos os povos.

    3. Subjacente a todas estas reivindicaes, oculta-se, porm,uma aspirao mais profunda e mais universal: as pessoas e osgrupos tm sede de uma vida plena e livre, duma vida digna dohomem, servida por todas as imensas possibilidades que lhes ofe-rece o mundo actual. As naes, por seu lado, realizam corajososesforos para atingir uma certa forma de comunidade universal-

    4. O mundo moderno surge-nos, assim, ao mesmo tempopoderoso e frgil, capaz do melhor como do pior; os caminhosque se lhe abrem para o futuro so igualmente os da liberdadee os da servido, os do progresso e os da regresso,, os da fraterni-dade e os do dio. Por outro lado, o homem toma conscincia de quedele depende a orientao das foras cujo movimento desencadeou,mas que o podem ou esmagar ou servir. Eis por que se interrogaa si prprio.

    10. As interrogaes profundas do gnero humano

    1. Os desequilbrios do mundo moderno encontram-se, comefeito, ligados a um outro desequilbrio mais fundamental, enrai-zado no prprio corao do homem. , na verdade, no ntimo do ho-mem que se trava o combate entre diversos elementos contrrios.Por um lado, como criatura, faz a experincia dos seuvS mltiploslimites; por outro lado, sente-se ilimitado nos seus desejos e cha-mado a uma vida superior. Solicitado de tantas maneiras, v-seincessantemente forado a escolher e a renunciar. Fraco e pecador,faz frequentemente o que no quer e no faz o que quereriafazer1. Em suma, a diviso encontra-se nele prprio e causa

    i Cf. Rom., 7, 14 s.

    884

  • de que surjam, no seio da sociedade, tantas e to graves discr-dias. Sem dvida que muitos so aqueles cuja vida, impregnadade materialismo prtico, os leva a alhear-se duma clara percep-o desta situao dramtica; ou os que, esmagados pela mis-ria, permanecem incapazes de a aperceber. Outros, em grandenmero, julgam encontrar a tranquilidade em diversas explica-es do mundo que lhes so propostas. Outros ainda confiam tosomente no esforo do homem para atingir a plena e autntica liber-tao do gnero humano e persuadem-se de que o reino vindourodo homem sobre a Terra responder a todas as suas aspiraes.H ainda aqueles que, desesperando do sentido da vida, exaltamos audaciosos que, tendo a vida humana, por desprovida em si mes-ma de qualquer significao, tentam conferir-lha, mas fundadosapenas na sua inspirao. , porm, cada vez maior o nmero dosque, em face da actual evoluo do mundo, se interrogam acercadas questes mais fundamentais ou que, pelo menos, delas se aper-cebem com nova acuidade. Que o homem? Que significam osofrimento, o mal, a morte, que subsistem apesar de tantos pro-gressos? Para qu tais vitrias, se pagas a um tal preo? Quepode o homem oferecer sociedade? Que lhe possvel esperardela? Que o espera depois da morte?

    2. A Igreja cr que o Cristo, morto e ressuscitado por to-dos, oferece ao homem, por intermdio do seu Esprito, luz e for-as que lhe permitem responder sua mais alta vocao. Cr queno existe sobre a Terra outro nome do qual se possa esperar sal-vao. Cr que a chave, o centro e o fim de toda a histria humanase encontram no seu Senhor e Mestre. Afirma ainda que, por sobtodas as transformaes, muitas coisas permanecem, cujo funda-mento ltimo se encontra em Cristo, o mesmo ontem, hoje e sem-pre. Eis por que, luz de Cristo, imagem de Deus invisvel, pri-mognito de toda a criatura, o Conclio pretende dirigir-se a todos,a fim de aclarar o mistrio do homem e auxiliar o gnero humanona busca de soluo para os problemas maiores do nosso tempo.

    II

    A VIDA ECONMICO-SOCIAL

    63. Alguns aspectos da vida econmica

    1. Tambm na vida econmico-social, necessrio consa-grar e promover a dignidade da pessoa humana, a sua vocao

    SSf>

  • integral e o bem da sociedade no seu conjunto. O homem , na ver-dade, o autor, o centro e o fim de toda a vida econmico-social.

    2. Como todo e qualquer outro domnio da vida social,a economia moderna caracteriza-se por um poderio crescente dohomem sobre a natureza, pela multiplicao e intensificao dasrelaes e das interdependncias entre indivduos, grupos e povose pela maior frequncia das intervenes do poder poltico. Simul-taneamente, o progresso nas formas de produo e na organizaodas trocas de bens e servios transformou a economia num instru-mento apto a satisfazer de modo mais adequado as acrescidasnecessidades da famlia humana.

    3. Os motivos de inquietao no escasseiam, porm. Mui-tos indivduos, sobretudo nas regies do mundo economicamentedesenvolvidas, parecem encontrar-se como que dominados peloeconmico: quase toda a sua existncia pessoal e social se encon-tra imbuda de um certo economismo, e isso verifica-se tanto nospases favorveis economia colectivista como nos outros. Nummomento em que o desenvolvimento da economia, orientado e coor-denado de maneira racional e humana, permitiria atenuar as desi-gualdades sociais, verifica-se muito frequentemente o agrava-mento destas e mesmo, em certos casos, a regresso das condiessociais dos mais dbeis e o desprezo dos pobres. Enquanto quemultides imensas sofrem ainda a privao do estritamente neces-srio, uma pequena minoria, mesmo nas regies menos desenvol-vidas, vive na opulncia e no incontado desperdcio. O luxo cami-nha a par da maior misria. Ao passo que um pequeno nmero deindivduos dispe dum muito amplo poder de deciso, numerososso os que se encontram privados de quase toda a possibilidade deiniciativa pessoal e de responsabilidade, continuando ainda, fre-quentemente, presos a condies de vida e de trabalho indignasda pessoa humana,

    4. Existem anlogos desequilbrios econmicos e sociaisentre o sector agrcola, o sector industrial e os servios, como tam-bm entre as diversas regies de um mesmo pas. Entre as naeseconomicamente mais desenvolvidas e as restantes, manifesta-se,uma oposio cada vez mais aguda, que susceptvel de fazer peri-gar a prpria paz mundial.

    5. Os homens do nosso tempo apercebem-se, cada vez maisvivamente, destas disparidades e esto convictos de que as novastcnicas e a maior abundncia de recursos econmicos, de que oinundo dispe, poderiam e deveriam corrigir este lamentvel estado

    336

  • de coisas. Mas para que tal objectivo possa ser atingido, so neces-srias numerosas reformas na vida econmico-social; e tambmnecessria uma geral reconverso das mentalidades e das atitudes.Com esta finalidade, a Igreja, no decorrer dos sculos, explicitou, luz do Evangelho, princpios de justia e equidade que a rectarazo exige, tanto no que se refere vida individual e social, comono atinente vida internacional; por ela foram proclamado, sobre-tudo no ltimos tempos. Tendo em conta a presente situao, oConclio entende dever confirm-los e indicar algumas orientaes,atendendo particularmente s exigncias do desenvolvimentoeconmico 1.

    SECO 1

    O DESENVOLVIMENTO ECONMICO

    64. O desenvolvimento econmico ao servio do homem

    Hoje mais do que nunca, para enfrentar o aumento da popu-lao e responder s aspiraes mais amplas do gnero humano,procura-se justamente elevar o nvel da produo agrcola e indus-trial, assim como o volume dos servios oferecidos. Eis por que setorna necessrio encorajar o progresso tcnico, o esprito de ino-vao, a criao e o desenvolvimento de empresas, a adaptao dosmtodos, os esforos continuados de todos aqueles que participamna produo, isto , numa palavra, tudo o que pode contribuirpara o desenvolvimento. O objectivo fundamental de um tal incre-mento da produo no , porm, apenas a multiplicao dos bens,nem o lucro ou o poderio; o servio do homem, de todo o homem,segundo a hierarquia das suas necessidades materiais e das exi-gncias da sua vida intelectual, moral, espiritual e religiosa; detodo o homem, e tambm de todos os grupos de homens, sem dis-tines de raa ou de continente. por este motivo que a actividadeeconmica^ , conduzida segundo os seus mtodo e leis prprias,deve exercer-se dentro dos limites da ordem moral2, a fim decorresponder aos desgnios de Deus a respeito da humanidade3.

    1 Cf. Pio XII, Mensagem de 23 de Maro de 1952: A.A.8., XLIV (1952),p. 273; Joo XXHI, Aloc o aos A.C.L.I., 1 de Maio de 1959: A.A.S., LI(1959), p. 358.

    2 Cf. Pio XI, enccl. Quadragsimo Anno: A.A.8., XXIII (1931),p. 190 s,; Pio x n , Mensagem de 23 de Maro de 1952: A.A.8., XLIV (1952),p. 276 s.; Joo XXin, enccl. Mater et Magistra: A.A.8., LIII (1961), p. 450;H Conclio do Vaticano, decreto Inter mirifiica. cap. I, n.2 6: A.A.8., LVI(1964), p. 147.

    s Cf. Mat. 16, 26; Lua, 16, 1-31; Col., 3, 17.

    881

  • 65. Controle do homem sobre o desenvolvimento econmico

    1. O desenvolvimento deve permanecer sob o controle dohomem. No deve ser entregue ao arbtrio dum pequeno nmerode indivduos ou de grupos detentores de um poderio econmicoexcessivo, nem ao da sociedade poltica ou ao de algumas naesmais poderosas. Convm, pelo contrrio, que o maior nmero pos-svel de indivduos, em todo os nveis, e, no plano internacional,o conjunto das naes, possa tomar parte activa na sua orienta-o. igualmente indispensvel que as iniciativas espontneas dosindivduos e das suas livres associaes sejam coordenadas com aaco dos poderes pblicos e mutuamente ajustadas e harmoniza-das.

    2. O desenvolvimento no pode ser confiado, nem ao sim-ples jogo quase automtico da actividade econmica dos indiv-duos, nem exclusivamente aos poderes pblicos. Importa, por con-seguinte, denunciar os erros das doutrinas que se opem s refor-mas indispensveis, em nome duma falsa concepo da Uberdade,bem como os das doutrinas que sacrificam os direitos fundamen-tais das pessoas e dos grupos organizao colectiva da produ-o4.

    3. Por outro lado, os cidados devem ter presente comoseu direito e dever (e o poder civil deve reconhec-lo) contribuir, deacordo ccxm as suas possibilidades, para o verdadeiro progresso dacomunidade a que pertencem. Sobretudo nos pases em vias dedesenvolvimento, nos quais a utilizao de todos os recursos dispo-nveis se impe com carcter de urgncia, aqueles que mantmimprodutivos os seus recursos atentam gravemente contra o bem--comum; e o mesmo se pode dizer salvaguardando, porm, o di-reito pessoal de migrao daqueles que privam a sua comuni-dade dos meios materiais e espirituais de que ela necessita.

    66. necessrio pr termo s imensas disparidades econmico--sociais

    1. Para corresponder s exigncias da justia e da equi-dade, necessrio um esforo vigoroso, que leve em conta osdireitos pessoais e o carcter prprio de cada povo, no sentido de

    4 Cf. Leo XIII, emccl. Liberta, 20 de Junho de 1888: A.A.S., XX,1887-1888, p. 597 s.; Pio XI, enccl. Quadragsimo Anno: A.A.8., XKIU(1931), p. 191 i\; idem, Divini Redemptoris: A.A.8., XXXIX (1937), p. 655;Pio Xn, Mensagem de Natal de 1941: A.A&., XXXIV (1942), p. 10 s.;Joo XXIII, encicl. Mater et Magistra: A.A.8., LIII (1961), p. 401-464.

    sss

  • fazer desaparecer, o mais rapidamente possvel, as enormes desi-gualdades econmicas que se acompanham de discriminaes indi-viduais e sociais; nos nossos dias, tais desigualdades, no s exis-tem, como frequentemente se agravam. Do mesmo modo, em mui-tas regies, dadas as especiais dificuldades da produo e comer-cializao no sector agrcola, importa auxiliar os agricultores aaumentar a sua produo e a vend-la, assim como a efectuaras transformaes e inovaes indispensveis, a fim de que, final-mente, possam obter um rendimento equitativo; de contrrio,continuaro a ser, como demasiado frequentemente acontece, cida-dos de segundo plano. Por seu lado, os agricultores, sobretudo osjovens, devem dedicar-se com energia ao aperfeioamento da suaformao profissional, sem a qual a agricultura no poderia pro-gredir 5.

    2. Do mesmo modo, a justia e a equidade exigem que amobilidade, necessria s economias em progresso, seja orientadapor forma a proteger os indivduos e as suas famlias de condiesde vida instveis e precrias. Em especial, dever ser evitada todae qualquer espcie de discriminao, em matria de remuneraoou de condies de trabalho, contra o trabalhadores que, prove-nientes doutros pases ou doutras zonas, contribuem para o desen-volvimento econmico de um determinado povo ou duma certaregio. Todos os membros da sociedade e, em particular, os pode-res pblicos, devem considerar esses emigrantes como pessoas eno como um simples factor de produo, facilitando a presenajunto deles das suas famlias, auxiliando-os na procura de aloja-mentos convenientes e favorecendo a sua integrao na vida socialdo pas ou da regio em que se encontram. Na medida do possvel,deve-se, porm, criar-lhes novas ocupaes nas suas prprias re-gies de origem.

    3. Nas economias actualmente em fase de transio, assimcomo nas novas formas da sociedade industrial, caracterizadasnomeadamente pelos progressos da automao, torna-se necessrioter a preocupao de assegurar a cada indivduo, no s um em-prego suficiente e adequado, como tambm a possibilidade dumaconveniente formao tcnica e profissional. Devem garantir-seainda meios de existncia e dignidade humana queles que, sobre-tudo por motivo de doena ou de idade avanada, se encontramem situao mais difcil.

    5 Sobre os problemas agrcolas, cf. sobretudo Joo XXm, enccl. Materet Magistra: A.A.8., LIH (1961), p. 431 s.

    8S

  • SECO 2

    PRINCPIOS DE ORIENTAO PARA O CONJUNTODA VIDA ECONMICO-SOCIAL

    67. Trabalho, condies de trabalho, tempos livres

    1. O trabalho dos homens, aquele que se exerce na pro-duo e troca de bens e na prestao de servios econmicos, temprimazia sobre todos os outros elementos da vida econmica, queapenas assumem valor de instrumentos.

    2. Com efeito, o trabalho, quer autnomo, quer prestadomediante contrato a um empresrio, procede directamente da pes-soa humana: de certo modo, esta impe natureza a sua marca esubmete-a aos seus desgnios. Pelo seu trabalho, o homem assegurahabitualmente a sua subsistncia e a da sua famlia, associa-seaos seus irmos e presta-lhes servio, pode praticar uma verda-deira caridade e cooperar no completamente da criao divina.Mais ainda: pela homenagem prestada a Deus mediante o seu tra-balho, o homem associa-se obra redentora de Jesus Cristo, oqual, trabalhando com suas prprias mos em Nazar, conferiuao trabalho uma eminente dignidade. De tudo isto decorrem, paratodos os homens, o dever de trabalhar lealmente e o direito aotrabalho. Em funo das circunstncias concretas, a sociedadedeve, por seu lado, auxiliar os cidados, oferecendo-lhes adequadaspossibilidades de emprego. Finalmente, tendo em conta as funese a produtividade de cada um, a situao da empresa e o bem-comum, a remunerao do trabalho deve assegurar ao homem re-cursos que lhe permitam, e sua famlia, o acesso a uma vidadigna no plano material, social, cultural e espiritual6.

    3. Uma vez que a actividade econmica, na maior partedos casos, resulta do trabalho associado dos homens, injusto edesumano organiz-la e orden-la em detrimento dos trabalha-dores, quaisquer que sejam. Ora, demasiado frequente, mesmonos nosso dias, que aqueles que trabalham se encontrem de certomodo sujeitos a uma servido ao seu prprio trabalho; as cha-

    e Cf. Leo Xirt, enccl. Rerum Novarum: A.A.8., XXII (1890-1891),p. 469, p. 662; Pio XI, enccl. Quadragsimo Anno: A.A.8., XXIII (1931),p. 200-201; idem, ejnccl, Divini Redemptors: A.A.8., XXIX (1937), p. 92;Pio XII, Mensagem radiofnica do Natal de 1942: AJL.8., XXXV (1943),p. 20; idem, Alocuo de 13 de Junho de 1943: A.A.8., XXXV (1943), p. 172;idem, Mensagem radiofnica aos operrios espanhis, de 11 de Maro de1951: A.A.8., XLUL (1951), p. 215; Joo XXIII, enccl. Mater et Magistra:A.A.8., LHE (1961), p. 419.

  • madas leis econmicas de nenhum modo justificam uma tal situa-o. Importa, por conseguinte, adaptar todo o processo do trabalhoprodutivo s necessidades da pessoa humana e s diversas formasda sua existncia, em particular no atinente vida familiar (sobre-tudo no caso das mes-de-famlia) e levando sempre em conta asdiversidades de sexo e de idade. Os trabalhadores devem tambmter a possibilidade de desenvolver as suas qualidades e a sua per-sonalidade no exerccio do sou mesmo trabalho. No deixando,pois, de nele aplicar conscienciosamente o seu tempo e as suasforas, que todos disponham de um tempo de repouso e de lazersuficiente, que lhes permita igualmente manter uma vida familiar,cultural, social e religiosa. Mais ainda: devem ter a possibilidadede livremente exercer faculdades e capacidades que, provavel-mente, tero poucas oportunidades para utilizar no seu trabalhoprofissional.

    68. Participao na empresa e na organizao econmica global*Conflitos do trabalho

    1. Nas empresas, so pessoas isto : seres livres e aut-nomos, criados imagem de Deus que se encontram associadasentre si. Deste modo, atendendo s diversas funes dos proprie-trios, empresrios, quadros e operrios e salvaguardando a ne-cessria unidade de direco, torna-se necessrio promover,segundo modalidades a determinar pela melhor forma, a partici-pao activa de todos na gesto da empresa7. E como, muitofrequentemente, no j ao nvel das empresas, mas ao de instn-cias superiores, que so tomadas as decises econmicas e sociaisde que depende o futuro dos trabalhadores e dos seus filhos, devemigualmente os trabalhadores participar nessas decises, querdirectamente, quer por intermdio do seus representantes livre-mente escolhidos.

    2. Deve-se considerar como direito fundamental da pessoa,o direito dos trabalhadores a fundar livremente associaes capazesde os representar por forma vlida e de colaborar na boa organi-zao da vida econmica, assim como o direito a participar livre-mente nessas associaes, sem correr o risco de represlias. Graasa esta participao organizada, aliada ao progresso da formao

    7 Cf. Joo XXIII, emccl. Mater et Magistra: A.A.8., LJH (1961),pp. 408, 424, 427; o termo curatione extrado do texto latino da encclicaQuadragsimo Anno: A.A.8., XXUL (1931), p. 199. Para a evoluo do pro-blema, cf. tambm: Pio XII, Alocuo de 3 de Junho de 1950: A.A.8., XLH(1950), p. 485-488; Paulo VI, Alocuo de 8 de Junho de 1964: A.A.8., LVT(1964), pp. 574-579.

  • econmica e social, o sentido das responsabilidades desenvolver-se-em todos os indivduos, que assim viro a sentir-se associados,segundo os seus meios prprios e as suas aptides pessoais, aodesenvolvimento econmico e social global, bem como realizaodo bem-comum universal.

    3. No caso de conflitos econmico-sociais, deve-se pro-curar obter uma soluo pacfica. Todavia, embora se deva semprerecorrer em primeiro lugar ao dilogo sincero entre as partes, agreve pode, mesmo nas circunstncias actuais, continuar a serum meio necessrio, se bem que de ltimo recurso, defesa dosdireitos prprios e realizao das justas aspiraes dos traba-lhadores. Que as vias da negociao e do dilogo sejam, porm,retomadas, logo que possvel, a fim de se chegar a um acordo.

    69. Os bens da Terra destinam-se a todos os homens 1. Deus destinou a Terra e tudo o que ela contm para serem

    usados por todos os homens e todos os povos. Todos os bens dacriao devem assim afluir, equitativamente, a todos os homens,segundo a regra da justia, inseparvel da caridade8. Esta desti-nao universal dos bens deve ser sempre salvaguardada, quaisquerque sejam as formas da propriedade, adaptadas s legtimas insti-tuies dos povsi, segundo circunstncias diversas e mutveis.Eis por que o homem, ao servir-se desses bens, jamais deve consi-derar aqueles que legitimamente possui como pertena exclusivade si prprio, mas encar-los tambm como comuns, no sentidode que deles possam beneficiar, no s ele mesmo, mas tambmos outros 9. Todos os homens se encontram, alis, investidos nodireito de possuir uma quantidade de bens que lhes seja suficientee s suas famlias. Tal o pensamento dos Padres e Doutores daIgreja, ao apontarem como dever o auxlio aos pobres e no apenaspor meio da ddiva do suprfluo 10. Quanto quele que se encontraem condies de extrema necessidade, seu direito obter para si

    s Cf. Pio XII, enccl. Sertum Laetitiae: A.A.8., XXXI (1939), p. 642;Joo XXni, Alocuo ao Consistrio: A.A.8., LII (1960), p. 5-11; enccl.Mater et Magistra: A.A.8., LIII (1961), p 411.

    s Cf. So Tomais, Suma Teolgica, II-II. q. 32, art. 5, ad. 2; Ibidem,q. 66, a. 2; cf. explicao em Leo XIII, enccl. Rerum Novarum; A.A.8.,XXm (1890-1891), p. 651; cf, tambm Pio XII, Alocuo de 1 de Junho de1941: A.A.8., XXXIII (1941), p. 199; idem, Mensagem radiofnica do Natalde 1954: A.A.S., XLVII (1955), p. 27.

    io Cf. So Baslio, Homilia sobre uma passagem de Lucas Destruamhorrea mea, n. 2 (P.G., XXXI, p. 263); Lactando, Divinarum Institutionum,1. V, A justia (P.L., VI, 565 B); Santo Agostinho, Comentrios sobre 8. Joo,tr. 50, n. 6 (P.L., XXXV, 1760); Enarratio in Pr. CXLVTI, 12 (P.L., XXXVII,192); So Gregrio Magno, Homilias sobre o Evangelho hom. 20 (PX,,

  • mesmo o indispensvel, a; expensas das riquezas de terceiros".Perante um to grande nmero de indivduos com fome no mundo,o Conclio insiste, junto de todos e junto das autoridades, paraque seja recordada a palavra dos Padres da Igreja: D de comerquele que morre de fome, pois se no o alimentaste, tu mesmo lhedeste a morte 12. ainda dever de todos, segundo as possibilidadesde cada um, a repartio e utilizao dos bens, de modo a for-necer aos indivduos e aos povos, primordialmente, os meios quelhes permitam ajudar-se a si mesmos e realizar o seu prpriodesenvolvimento.

    2. Frequentemente, nas sociedades economicamente menosdesenvolvidas, a destinao comum dos bens realiza-se parcialmenteatravs de costumes e tradies comunitrias, que garantem a cadamembro a obteno dos meios mais necessrios. Sem dvida que indispensvel no considerar certos costumes como absolu-tamente inalterveis, se porventura no correspondem s novasexigncias dos nossos tempos; inversamente, no dever, porm,atentar-se imprudentemente contra costumes respeitveis, quesejam susceptveis, mediante uma salutar modernizao, de prestarainda importantes servios. Analogamente, nos pases eoonmica-itente muito desenvolvidos, a destinao comum dos bens poderealizar-se, em parte, atravs de uma rede de instituies sociaisde seguros e de segurana. Importa prosseguir o desenvolvimentodos servios familiares e sociais, principalmente daqueles que con-tribuem para a cultura e a educao. Na ordenao de todas estasinstituies, importa, porm, evitar que o cidado seja induzidoa adoptar para com a sociedade uma atitude passiva, de irres-ponsabilidade ou de recusa ao servio.LXXVI, 1165); Regulae Pastoralis liber, III Parte, Cap. XXI (P.L., LXXVII,87); So Boaventura, III Sent., d. 33 dub. 1 (Ed. Quaracchi, III, 728); IV8ent., d. 15, p. II, art. 2, q. 1 (Ed. cit., IV, 371 b); qu. de suprfluo (ms.Assise Bibl. commum. 186, ff. 112-113)t: Santo Alberto Magno, III Sent.,d. 33, art. 3, soL 1 (Ed. Borguet, XXVIII, 611); IV Sent., d. 15, art. 16 (Ed.cit, XXIX, 494-497). No que respeita determinao do suprfluo nos nossosdias, cf. Joo XXIII, Mensagem raldiotelevisada de 11 de Setembro de 1962:A.A.8., LIV (1962), p. 682: Dovere di ogni uomo, dovere impellente deicristiano di considerare il suprfluo con Ia misura delle necessita altrui,e di ben vigilare perche ramministrazione e Ia distribuzione dei beni creativenga posta a vantaggio di tutti.

    11 Aqui vale o antigo princpio: in extrema necessitate omnia suntcommunia, id est comirunicanda. Por outro lado, no que respeita exten-so e s modalidades segundo as quais este princpio se aplica no texto,alm dos autores modernos conhecidos", cf. So Toms, Suma Teolgica II-II,q. 66, art. 7. 33 evidente que para uma aplicao exacta desta passagem,todas as condies moralmente requeridas devem, estar preenchidas.

    12 Cf. Decreto de Graciano, cap,. XXI, dist. LXXXVT (Ed. Friedberg,I, 302). Esta passagem encontra-se j em PJJ., LIV, 591 A (cf. Antonianum,27, 1952, p. 349-366).

  • 70. Investimentos e questo monetria

    Os investimentos devem,, por seu lado, tender a assegurarempregos e rendimentos suficientes, tanto populao activa dopresente, como do futuro. Os responsveis por esses investi-mentos e pela organizao da vida econmica (indivduos, grupos,poderes pblicos) devem ter presentes os seguintes objectivos emanter-se conscientes das suas graves obrigaes: por um lado,tomar disposies susceptveis de corresponder s necessidadesdum nvel de vida decente, tanto para os indivduos, como para acomunidade; prever, por outro lado, o futuro e assegurar um justoequilbrio entre as necessidades do consumo actual (individual ecolectivo) e as exigncias de investimento para as geraes vin-douras. Devem igualmente ser tidas em conta as necessidadesprementes das naes e regies economicamente menos desen-volvidas. Por outro lado ainda, e em matria monetria, deve-seevitar atentar contra o interesse do seu prprio pas ou contrao de outras naes. Igualmente se deve assegurar que os economi-camente dbeis no viro a ser injustamente lesados por altera-es no valor da moeda.

    71. O acesso propriedade e ao poder privado sobre os bens.Problema dos latifndios

    1. A propriedade e as outras formas de poder privadosobre os bens exteriores contribuem para a expresso da pessoa efornecem-lhe ocasio para exercer a sua responsabilidade na socie-dade e na economia. Importa, assim, favorecer o acesso dos indi-vduos e dos grupos a um certo poder sobre os bens exteriores.

    2. A propriedade privada, ou um certo poder sobre os bensexteriores, asseguram a cada indivduo uma indispensvel esferade autonomia pessoal e familiar. Necessrio oonsider-Ios comoum prolongamento da liberdade humana. Por outro lado, estimu-lando o exerccio da responsabilidade, constituem uma das con-dies das liberdades civis13.

    3. As formas de tal poder ou propriedade so presente-13 Cf. Leo XIE, eniccl, Rerum Novarum: A.A.8., XXIII (1890-1891),

    p. 643-646; Pio XI, ejnccl. Quadragsimo Anno: A.A.8., XXIII (1931), p. 191;Pio XII, Mensagem radiofnica de 1 de Junho de 1941: A.A^S,, XXXm(1941), p. 199; idem, Menagem radiofnica das vsperas do Natal de 1942:A.A.8., XXXV (1943), p. 17; idem, Mensagem radiofnica de 1 de Setembrode 1944: A.A.8, XXXVI (1944), p. 253; Joo XXIII, enccl. Mater et Magis-tra: A.A.8, LUI (1961), p. 428-429

  • mente, diversas e a sua diversidade no cessa de aumentar. Todascontinuam a ser, porm, ao lado dos fundos sociais, dos direitose servios garantidos pela sociedade, uma fonte importante desegurana. Isto no apenas verdadeiro em relao s proprie-dades materiais, mas tambm no que respeita aos bens imateriais,como a capacidade profissional.

    4. A legitimidade da propriedade privada no constitui, noentanto, obstculo de diversas formas de propriedade pblica,sob a condio de a transferncia de bens para o domnio pblicoser efectuada somente pela autoridade competente, de acordo comas exigncias do bem-comum, dentro dos limites deste e medianteuma indemnizao equitativa. O Estado tem, alis, competnciapara impedir o abuso da propriedade privada, contrariamente aobem-comum14.

    5. Pela sua prpria natureza, a propriedade privada pos-sui tambm um carcter social, fundado na lei da comum desti-nao dos bensls. Quando esse carcter social no respeitado, apropriedade pode tomar-se ocasio frequente de cobias e de gra-ves desvirtuaes, que serviro de pretexto queles que contestamo prprio direito de propriedade.

    6. Em diversas regies economicamente menos desenvol-vidas, existem extensos e por vezes imensos domnios rurais medo-cremente cultivados ou postos em reserva com fins especulativos,enquanto que a maioria da populao se encontra desprovida deterras ou apenas as possui em quantidades irrisrias e que, poroutro lado, o aumento da produo agrcola apresenta carcter deevidente urgncia. Sequentemente, aqueles que se encontram aoservio dos proprietrios desses grandes domnios, ou que cultivampequenas parcelas arrendadas, apenas recebem salrios ou rendi-mentos indignos do homem; no dispem de alojamentos conve-nientes e so explorados por intermedirios. Desprovidos de todaa segurana, vivem numa tal dependncia pessoal, que qualquerpossibilidade de iniciativa ou responsabilidade lhes est vedada,bem como toda a promoo cultural e toda a participao na vidasocial e poltica. Impe-se, portanto, que sejam efectuadas refor-mas tendentes, segundo os casos, a aumentar os rendimentos mo-netrios, a melhorar as condies de trabalho e a segurana do em-

    14 Cf. Pio XI, enccl. Quadragsimo Anno: A.A.8., XX3H (1931), p. 214;Joo XXirt, enccl. Mater et Magistra: A.A.8., LIII (1961), p. 429

    is Cf. Pio XII, Mensagem radiofnica, Pentecostes de 1941: A.A.8..XLIV (1941), p. 199; Joo XXJJET, encScl. Mater et Magistra: A.A.8., LIII(1961), p. 430.

  • prego, a favorecer a iniciativa pessoal e mesmo a repartir aspropriedades insuficientemente cultivadas em benefcio de homenscapazes de as fazer valer. Neste caso, os recursos e instrumentosindispensveis devem ser-lhes assegurados, em particular os meiosde educao e a possibilidade duma justa organizao de tipocooperativo. Sempre que as necessidades do bem-comum exijam aexpropriao, a indemnizao dever ser apreciada segundo a equi-dade, tendo em conta todas as circunstncias.

    72. A actividade econmico-social e o reino de Cristo

    1. Os cristos que participam activamente no desenvolvi-mento econmico-social e na luta pelo progresso da justia e dacaridade, devem persuadir-se de qu, pela sua aco, muito podemfazer pela prosperidade da humanidade e pela paz do mundo. Queeles se distingam, nessas vrias actividades, pelo seu exemplo,individual e colectivo. Revestidos da indispensvel competncia eexperincia, que mantenham, atravs da sua actividade na terra,uma justa hierarquia dos valores, fiis a Cristo e ao seu Evan-gelho, por forma a que toda a sua vida, tanto individual comosocial, seja penetrada pelo esprito das bem-aventuranas e, emparticular, pelo esprito de pobreza.

    2. Todo aquele que, seguindo a Cristo, busca em primeirolugar o reino de Deus, nele encontra um amor mais forte e maispuro, para ajudar todos os seus irmos e realizar, sob o impulsodo amor, uma obra de justia16.

    (Traduo do Gabinete)

    i6 Sobre o bom uso dos bens, segundo a doutrina do Novo Testamento,.cf. Luc, 3, 11; 10, 30 s>; 11, 41; 11, 41; Ia Pedro 5,2; Mar., 8, 36; 12, 29-31;Tiago, 5, 1-6; 1* Tim. 6,8; Efs., 4, 28; 2* Cor., 8, 13 s.; 1* Jo., 3, 17 s.