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A Doutrina da Mortificação
A. W. Pink (1886-1952)
Traduzido, Adaptado e
Editado por Silvio Dutra
Ago/2017
2
P655
Pink, A. W. – 1886 -1952
A doutrina da mortificação – A. W. Pink
Tradução , adaptação e edição por Silvio Dutra – Rio de
Janeiro, 2017.
42p.; 14,8 x 21cm
1. Teologia. 2. Vida Cristã 3. Graça 4. Fé. 5.Santificação
6. Alves,
Silvio Dutra I. Título
CDD 230
3
Introdução pelo Tradutor
O que possuíam em comum todos os puritanos
históricos que viveram entre os séculos XVI e
XVIII, e depois deles Jonathan Edwards, John
Wesley, George Whitefield, Charles Haddon
Spurgeon, e muitos outros? É fácil responder: a
verdadeira nobreza do real caráter cristão que
consiste em várias coisas, e dentre as quais
destacamos:
- Uma verdadeira busca do real poder da graça de
Deus para mortificarem todos os seus pecados, a
partir da fonte dos mesmos, a saber, da sua
natureza terrena decaída em razão do pecado
original.
- A citada mortificação tinha em vista possibilitar
o êxito em todo o empenho deles em se revestirem
de todas as virtudes de Cristo, especialmente
marcadas por:
a) uma devoção completa à vontade de Deus
sobretudo para ser obedecida e praticada nos
deveres da vida cotidiana.
b) uma honestidade e sinceridade absolutas.
c) uma virilidade no trato pessoal que excluía
todos os tipos de trejeitos, exasperações,
4
covardias, conversações vãs, maledicências, iras,
porfias, chocarrices, duplicidade, infâmia, e tudo
o que fosse contrário à paz e à seriedade no viver.
d) um amor absoluto e incondicional à verdade,
tal como se encontra revelada nas Escrituras, para
ser praticada na vida, a que custo fosse.
e) um profundo interesse no progresso do Reino
de Cristo, sobretudo no que se refere à conquista
e edificação de almas, em cumprimento à Sua
comissão de se fazer discípulos em todas as
nações.
f) uma dedicação real à prática da oração, da
vigilância e da meditação e prática da Palavra de
Deus.
g) o cultivo de uma linguagem sã e irrepreensível
que glorifique a Deus.
h) tudo fazer não em interesse próprio mas para o
de Deus e para a Sua exclusiva glória.
i) estarem dispostos a renunciar a tudo, inclusive
aos afetos mais queridos, quando estes se
interpõem entre eles e a vontade de Deus.
j) rejeitarem toda a forma de mal, inclusive a
própria aparência do mal, e sempre vencer o mal
com o bem.
5
l) tudo fazer movidos pelo amor a Deus e ao
próximo, estando dispostos a suportar ofensas e
perseguições, e a perdoar setenta vezes sete,
abençoando e nunca maldizendo, a ponto de amar
inclusive seus inimigos.
Muitas outras coisas podem ser acrescentadas à
lista, mas, por estas poucas é possível entender por
que muitos não têm o mínimo interesse em se
tornarem cristãos, mas todos quantos têm se
disposto a isto, têm recebido da parte de Deus o
Seu bem-vindo à verdadeira nobreza.
6
"Porque se viverdes segundo a carne, haveis de
morrer; mas, se pelo Espírito mortificardes as
obras do corpo, vivereis." (Romanos 8:13)
O termo "doutrina" tem um significado muito
mais amplo na Palavra de Deus do que geralmente
é concebido hoje. Inclui muito mais do que os
"cinco pontos" do calvinismo. Assim lemos sobre
"a doutrina que é de acordo com a piedade" (1
Timóteo 6: 3), que é muito mais do que uma
espécie de proposição intelectual destinada a
instruir nossos cérebros, a saber, a enunciação de
fatos espirituais e princípios sagrados, para o
aquecimento do coração e para a regulação de
nossas vidas.
"A doutrina que é de acordo com a piedade"
define de uma só vez a natureza da doutrina
divina, insinuando como faz que seu desígnio ou
fim seja inculcar uma disposição correta de mente
e despertamento para a vida de Deus: é pura e
purificadora. Os objetos que são revelados à fé
não são abstrações nuas que devem ser aceitas
como conceitos verdadeiros, nem mesmo
sublimes e elevados, a serem admirados - que
tenham um efeito poderoso em nossa caminhada
diária. Não há doutrina revelada nas Escrituras
para um conhecimento meramente especulativo,
mas tudo tem em vista exercer uma poderosa
7
influência sobre a conduta. O propósito de Deus
em tudo o que Ele nos revelou, é a purificação de
nossas afeições e a transformação de nossos
caracteres. A doutrina da graça nos ensina a negar
à impiedade e às concupiscências mundanas e a
viver com sobriedade, justiça e piedade neste
mundo presente (Tito 2:11, 12). De longe, a maior
parte da doutrina (João 7:16) ensinada por Cristo
não consistia na explicação de mistérios, mas sim
naquilo que corrigia os desejos dos homens e
reformava suas vidas. Tudo na Escritura tem em
vista a promoção da santidade.
Se é um absurdo afirmar que não importa o que
um homem acredita enquanto ele faz o que é certo,
igualmente errôneo é concluir que, se meu credo
for sólido, pouco importa como eu vivo. "Mas, se
alguém não cuida dos seus, e especialmente dos
da sua família, tem negado a fé, e é pior que um
incrédulo." (1 Timóteo 5: 8), pois ele se mostra
desprovido de afeto natural. Assim, é possível
negar a fé por meio da conduta, bem como por
palavras. A negligência de realizar o nosso dever
é tão real repúdio à Verdade, como é uma renúncia
aberta, pois o Evangelho, igualmente com a Lei,
exige que os filhos honrem seus pais. Observe
como dessa horrível lista de caracteres
reprováveis mencionados em 1 Timóteo 1: 9,10, é
dito ser "contrário à sã doutrina" - oposto à sua
8
natureza benéfica e tendência espiritual: essa é a
conduta que o padrão de Deus exige.
Observe também como esse espírito de avareza ou
amor de dinheiro é designado como errante "da
fé" (1 Timóteo 6:10): é uma espécie de heresia,
um afastamento da doutrina que é segundo a
piedade - um exemplo horrível do que temos no
caso de Judas.
A mortificação, portanto, é claramente uma das
doutrinas práticas da Sagrada Escritura, como
esperamos mostrar em abundância no que se
segue.
Romanos 8:13 fornece a descrição mais
abrangente de nosso assunto a ser encontrada em
qualquer versículo único da Bíblia, estabelecendo
como faz o maior número de suas características
principais: "Pois, se você viver de acordo com a
carne, você morrerá, mas se você, através do
Espírito, mortificar as ações do corpo, você
viverá." Este é um versículo mais solene e de
busca, e um que tem pouco lugar no ministério
moderno, seja ele oral ou escrito. Mas muitos se
recusaram a enfrentar suas afirmações e
implicações.
Cinco coisas nele afirmadas requerem a nossa
melhor atenção:
9
Primeiro, as pessoas abordadas.
Em segundo lugar, o horrível aviso aqui
estabelecido diante deles.
Em terceiro lugar, o dever encarregado a eles.
Em quarto lugar, a ajuda efetiva fornecida.
Em quinto lugar, a promessa feita a eles.
Quanto melhor para concentrar nossas mentes, e
para nos permitir lidar com as dificuldades que
não poucos encontraram no verso, antes de
procurar preencher nosso esboço, vamos fazer
uma série de questões pertinentes.
Qual é a relação entre o nosso texto e o contexto?
Por que os dois membros estão na forma
hipotética - "se"? O "você" em cada metade do
versículo faz referência às mesmas pessoas, ou
existem duas classes completamente diferentes?
Se o último for o caso, então, por qual princípio
válido de exegese podemos explicar isso? Por que
não mudar um deles para "nenhum" ou "eles"?
O que significa "viver segundo a carne"? É
possível que um verdadeiro cristão faça isso?
Caso contrário, e se não são pessoas regeneradas
que são mencionadas, então, por que é dito que
"morrerão", visto que eles já estão mortos
10
espiritualmente? Os termos "morrer" e "viver"
aqui são usados de forma figurativa e
relativamente, ou literal e absolutamente? O que é
entendido por "mortificar" e por que "as ações do
corpo" em vez de "as luxúrias da carne"?
Se o "você" executar essa tarefa, então, "através
do Espírito"? Se Ele é o principal trabalhador,
então, por que é o mortificante também
convocado a fazer tal trabalho? Se há ação
conjunta, então, como os dois fatores devem ser
ajustados? De que maneira a promessa "você
viverá" será feita boa, já que eles já estão vivos
espiritualmente? Não conhecemos nenhum
comentador que tenha feito uma tentativa real de
lidar com esses problemas.
Todo o contexto deixa bem claro que classes
específicas de pessoas são abordadas aqui:
Primeiro, são os que estão em Cristo Jesus, sobre
os quais agora não há condenação (versículo 1).
Em segundo lugar, são aqueles que foram
libertados da lei do pecado e da morte, e tiveram
a justiça de Cristo imputada a eles (versículos 2-
4).
Terceiro, são aqueles que dão a prova de que são
os beneficiários de Cristo, caminhando não
11
segundo a carne, mas segundo o espírito
(versículo 4).
No que se segue imediatamente, é dada uma
descrição de duas classes radicalmente diferentes:
1. Os que estão de acordo com a carne,
2. Aqueles cuja posição legal não está na carne,
mas no espírito, que são espiritualmente
conscientes, porque são habitados pelo Espírito de
Deus (versículos 5-11).
Em quarto lugar, a respeito do último - "nós" em
oposição ao "eles" do versículo 8 - o apóstolo
descreve uma conclusão simples e prática:
"Portanto, irmãos, somos devedores, não à carne,
para viver segundo a carne" (Verso 12) - a
denominação cativante que Paulo não nos deixa
em dúvida quanto ao tipo particular de caracteres
que ele abordava. Thomas Manton escreveu um
sermão muito capaz sobre este verso, e nós,
principalmente na nossa própria língua,
personificamos sua exposição.
O homem ficaria de bom grado entregue à sua
disposição. A linguagem de seu coração é "nossos
lábios são nossos: quem é o Senhor sobre nós?"
(Salmo 12: 4). Ele afeta a supremacia e reivindica
o direito de domínio sobre suas próprias ações.
12
Mas sua reivindicação é inválida, ele foi criado
por Outro e, portanto, ele é um "devedor".
Negativamente, não à carne, que é mencionada
porque esse princípio corrupto sempre exige
sujeição a ele. Positivamente, ele é devedor
daquele que lhe deu o ser.
Os cristãos são devedores tanto como criaturas
quanto como novas criaturas, sendo inteiramente
dependentes de Deus por seu ser e seu bem-estar,
por sua existência e preservação. Como nosso
Criador, Deus é nosso Proprietário, e sendo nosso
Proprietário Ele é, portanto, nosso Governador e,
por consequência, nosso Juiz. Ele tem uma
propriedade absoluta sobre nós, um poder
incontestável sobre nós, para comandar e dispor
de nós como Ele quiser. Não temos nada além do
que recebemos dele. Somos responsáveis perante
ele por nosso tempo e nossos talentos. Todo
benefício que recebemos aumenta nossa
obrigação para com ele. Não temos o direito de
nos agradar em nada. Esta dívida é indissolúvel:
enquanto dependermos de Deus, enquanto
estivermos ligados a Ele. O pecado não cancelou
nossa obrigação, pois, embora o homem caído
tenha perdido o poder de obedecer, o Senhor não
perdeu o Seu poder de mandar.
Em virtude de seu ser espiritual, o santo ainda é
mais devedor de Deus:
13
Primeiro, por causa de sua redenção por Cristo,
pois ele não é dele, mas comprado por um preço
(1 Coríntios 6: 9). O estado do qual ele foi
redimido era uma escravidão lamentável, pois era
escravo de Satanás. Agora, quando um cativo foi
resgatado, tornou-se a propriedade absoluta do
comprador (Levítico 25: 45,46). O fim que Cristo
tinha em vista prova o mesmo: Ele "nos redimiu
para Deus" (Apocalipse 5: 9).
Segundo, por causa de sua regeneração. A nova
natureza então recebida se inclina para Deus:
somos criados em Cristo Jesus para boas obras
(Efésios 2:10). Tendo nos trazido da morte para a
vida, nos renovou à Sua imagem, nos conferiu o
status e os privilégios da filiação, e devemos,
nossa força e nosso serviço a Deus como Seus
beneficiários. A nova criatura é desviada do seu
uso adequado se vivermos segundo a carne.
Terceiro, por nossa própria dedicação (Romanos
12: 1). Uma conversão genuína envolve a
renúncia ao mundo, à carne e ao diabo, e a entrega
de nós mesmos ao Senhor (2 Coríntios 8: 5).
Como a nossa obediência a Deus é uma dívida,
não pode haver mérito nisto (Lucas 17:10); mas se
não pagarmos isso, incorremos em dívidas de
punição (Mateus 6: 12,15). Como a carne não tem
direito de comando, a gratificação é a rendição a
um usurpador tirano (Romanos 6: 12,14). Quando
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solicitado pela carne, o crente deve responder:
"Eu sou do Senhor".
"Pois, se viverdes de acordo com a carne,
morrereis, mas se pelo Espírito mortificardes as
ações do corpo, vivereis". Aqui estão duas
proposições bem contrastadas, cada uma sendo
expressa condicionalmente. Duas hipóteses são
claramente apresentadas. Duas suposições são
mencionadas, e o resultado inevitável de cada uma
claramente indicado. Ambas as partes do
versículo afirmam que, se um certo
comportamento for seguido de forma constante
(pois está longe de ser ações isoladas a que se
refere), um certo resultado inevitavelmente se
seguirá. Esta forma hipotética de apresentar a
Verdade é bastante comum nas Escrituras. Os
servos de Cristo são informados de que "se os"
ministros "do versículo 5," os trabalhadores "do
versículo 9, forem "servos de Cristo", trabalhem
cumprindo o que ele construiu sobre ele, ele
receberá uma recompensa. Se o trabalho de
alguém [do "ministro"] for queimado, ele sofrerá
dano" (1 Coríntios 3:14, 15). Outros exemplos
bem conhecidos são: "porque, se eu ainda
agradasse os homens, não seria servo de Cristo" e
"Porque, se torno a edificar aquilo que destruí,
constituo-me a mim mesmo transgressor."
(Gálatas 1 : 10; 2:18). "Como escaparemos, se
negligenciarmos tão grande salvação?" (Hebreus
15
2: 3 e cf. 10:26). Nosso texto, então, é paralelo
com: "Porque quem semeia na sua carne, da carne
ceifará a corrupção; mas quem semeia no Espírito,
do Espírito ceifará a vida eterna." (Gálatas 6: 8).
Há duas coisas que o povo de Deus sempre
precisa: avisos fiéis e incentivos gentis. As
advertências fidedignas são para conter suas
propensões pecaminosas - os incentivos gentis são
pra animar suas graças espirituais ao cumprimento
do dever, especialmente quando são abatidos
pelas dificuldades do caminho ou estão de luto por
seus fracassos. Aqui também, um equilíbrio
precisa ser cuidadosamente preservado.
Os crentes inexperientes têm pouca compreensão
das dificuldades e perigos diante deles, e os
corações dos mais velhos são tão enganosos que
cada um precisa ser corrigido de forma clara e
frequente e exortado a prestar atenção aos sinais
de perigo que Deus criou ao longo do nosso
caminho. É impressionante e solene observar com
que frequência o Salvador soou a nota de aviso,
não só para os ímpios, mas especialmente para os
discípulos. Ele lhes mandou:
"Atender ao que ouvem" (Marcos 4:24);
"Ter cuidado com os falsos profetas" (Mateus
7:15);
16
"Veja, portanto, que a luz que está em você não
seja escuridão" (Lucas 11:35);
"Lembre-se da esposa de Ló." (Lucas 17:32).
"Olhai por vós mesmos; não aconteça que os
vossos corações se carreguem de glutonaria, de
embriaguez, e dos cuidados da vida, e aquele dia
vos sobrevenha de improviso como um laço.".
(Lucas 21:34).
Para um, que ele curou: "não peques mais, para
que não te suceda coisa pior." (João 5:14).
A palavra "carne" é usada na Escritura em vários
sentidos, mas, em todo o capítulo oitavo de
Romanos, significa a natureza corrupta e
depravada que está em nós desde que entramos
neste mundo. Essa natureza ou princípio do mal é
designado de diversas formas. É chamado de
"pecado" (Romanos 7: 8), "guerreando contra a lei
da minha mente" (versículo 23). Mas mais
comumente se chama "a carne" (João 3: 6;
Romanos 7:25; Gálatas 5:17).
É assim denominado porque é transmitido de pai
para filho, porque é propagado pela geração
natural, porque é fortalecido e atraído por objetos
carnais, por causa de seu caráter vil e degenerado.
Não foi no homem quando ele foi formado pela
17
mão de seu Criador e foi pronunciado por Ele
"muito bom". Em vez disso, foi algo que ele
adquiriu na Queda. O princípio do pecado como
elemento estranho, como um extra, como agente
invasor, entrou nele, viciando todo o seu ser
natural - à medida que a geada entra e arruína
vegetais, e quando a praga se apodera deles.
A "carne" é o inimigo aberto, implacável,
inveterado e irreconciliável da santidade, sim, é
"inimizade contra Deus" (Romanos 8: 7) - um
"inimigo" pode ser reconciliado e não ter tanta
"inimizade". Então, que coisa má e abominável é
a carne: em desacordo com o Santo, um rebelião
contra a Sua Lei! É, portanto, nosso inimigo, sim,
é de longe o pior inimigo que o crente tem. O
Diabo e o mundo exterior, fazem todo o seu mal
às almas dos homens pela carne que está no
interior deles.
"A carne é o útero onde todo o pecado é concebido
e formado, a bigorna sobre a qual tudo é forjado,
os falsos Judas que nos traem, o inimigo secreto
dentro da guarnição que está pronto em todas as
ocasiões para abrir as portas aos assediadores"
(Thomas Jacomb, 1622-87).
Devemos distinguir fortemente entre estar na
carne e viver de acordo com a carne. Assim, "pois
quando estávamos na carne" (Romanos 7: 5) faz
18
referência aos cristãos em sua condição não
regenerada, como "os que estão na carne não
podem agradar a Deus" fala dos não salvos;
considerando que "Mas você não está na carne,
mas no espírito" (8: 8,9) é relacionado aos crentes.
"Na carne" se refere à posição e ao estado de uma
pessoa diante de Deus; viver segundo a carne
descreve seu curso e conversação. Aquele
inevitavelmente segue e corresponde ao outro: o
caráter e a conduta de uma pessoa concordam com
sua condição e caso.
A carne é radical e totalmente má: como Romanos
7:18, declara, não há "nada bom" nela, está além
da recuperação, sendo incapaz de qualquer
melhoria. Pode, de fato, vestir um traje religioso,
assim como os fariseus, mas abaixo não há senão
a podridão. O fogo pode ser destruído logo que
disposições sagradas e movimentos sejam
produzidos pelo pecado residente. Como a
"carne" opõe-se continuamente àquilo que é bom,
por isso, ela inclina a alma para o que é mau.
Porque "caminhar, ou viver segundo a carne"
(ambos os verbos têm a mesma força) é uma
pessoa se comportar como todos os não
regenerados, dominados, motivados e movidos
por nada além de sua natureza caída. "Viver
segundo a carne" não se refere a um único ato,
nem mesmo a um hábito ou a uma série de atos
em uma direção; mas sim para todo o homem ser
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governado e guiado por este princípio vil. Esse é
o caso de todos os que estão fora de Cristo: seus
desejos, pensamentos, fala e ações procedem
dessa fonte corrupta. É pela carne que as suas
almas estão em movimento e todo o seu curso é
conduzido. Tudo é dirigido por alguma
consideração carnal. Eles agem de si mesmos, ou
para si mesmos. A glória de Deus não é nada para
eles, a carne é tudo em tudo.
(Nota do tradutor: Esta última consideração pode
parecer a muitos que seja algo exagerado, todavia,
é a mais pura verdade, pois todo aquele que não
nasceu de novo do Espírito Santo, não possuindo
portanto uma nova natureza espiritual, tudo pensa
ou faz segundo o homem natural, de modo que até
mesmo tudo o que faça de bom, não está
relacionado aos motivos e à ação do Espírito
Santo neles, uma vez que todos aqueles que não
têm a Cristo como Senhor e Salvador,
consequentemente não tem também o Espírito
Santo habitando neles. E conforme afirmou Jesus:
tudo o que é nascido da carne é carne, e somente
o que é nascido do Espírito é espírito. Conclui-se
portanto que tudo o que a natureza terrena pode
produzir é somente aquilo que é relativo à carne,
da mesma forma que a natureza espiritual não
pode produzir o que é carnal, senão somente o que
é espiritual. Não há portanto, necessariamente e
apenas, um conotação moral no que está sendo
20
enfocado, senão realidades distintas relativas à
condição intrínseca de cada pessoa perante Deus:
se dotada de uma única natureza (a carnal – não
convertidos) ou de duas (a carnal e a espiritual -
convertidos). E nisto, pouco importa o que o
homem julgue possuir, mesmo no caso daqueles
que pensam estar agindo em nome de Deus, pois
é possível viver em autoilusão, em autoengano por
anos sucessivos, até o dia da morte, pensando-se
que se servia a Deus, quando na verdade, não
havia qualquer relacionamento real e pessoal com
Ele, por meio da fé em Jesus Cristo, e mediante a
habitação do Espírito Santo. Por isso somos
convocados a buscar evidências de conversão
naquilo que afirmam as Escrituras e na
testificação do Espírito Santo com o nosso
espírito, e não em convicções religiosas que sejam
o fruto da nossa imaginação ou da influência
recebida de terceiros que não correspondam à
verdade revelada.)
A carne é um princípio dinâmico, ativo e
ambicioso e, portanto, é falada como sendo uma
luxúria. Assim, lemos sobre "os desejos da carne",
sim, da "vontade da carne" (Efésios 2: 3 -
margem) pois seus desejos são veementes e
imperiosos. "Mas [o pecado], tomando ocasião
[sendo agravado] pelo mandamento [" você não
deve cobiçar"], forçou em mim todo tipo de
concupiscência" (Romanos 7: 8).
21
Educação e cultura podem resultar em um exterior
refinado; treinamento familiar e outras influências
podem levar a uma amizade à religião, como é o
caso da grande maioria dos pagãos; considerações
egoístas podem até mesmo provocar,
voluntariamente, grandes austeridades e
privações, como o budista para alcançar o
Nirvana, o maometano para ganhar o paraíso, o
romanista para merecer o Céu - mas o amor de
Deus não conduz a nenhum deles, nem a sua
glória é o seu objetivo. Embora o cristão seja "não
na carne" quanto ao seu estado, a carne como
princípio do mal (sem mudança) ainda está nele, e
"luta contra o Espírito" (Gálatas 5:17) ou nova
natureza, E, portanto, somos exortados: "Não
reine o pecado, isto é, a carne", no seu corpo
mortal, para que você obedeça as suas
concupiscências." (Romanos 6:12).
É preciso apontar que há um duplo andar ou viver
de acordo com a carne: o mais grosseiro e
manifesto, e o outro mais indiscernível.
O primeiro ocorre em concupiscências e atos
abertos e corporais, como gula, embriaguez ou
imoralidade: isto é "a imundície da carne".
O segundo é quando a carne se exerce nas
concupiscências do coração interno, que são mais
ou menos escondidas de nossos companheiros,
22
que estão ardendo e penetrando dentro de nossa
alma, como o orgulho, a incredulidade, o amor
próprio, a inveja e a avareza; esta é a imundície
"do espírito" (2 Coríntios 7: 1).
Em Gálatas 5: 18,19, o apóstolo dá um catálogo
das cobiças da carne em ambos os aspectos. Ele
faz isso para expor uma falácia comum. É
geralmente assumido que andar ou viver "de
acordo com a carne" é limitado à primeira forma
mencionada, e a segunda é pouco considerada.
Enquanto os homens se abstêm de uma
intemperança grosseira, palavrões aberrantes,
sensualidade brutal, eles pensam que tudo está
bem com eles, enquanto eles podem estar bastante
livres de todas as práticas grosseiras e ainda serem
culpados de viver segundo a carne. Sim, tal é o
caso de todos em cujo coração há afeições
excessivas ao mundo, um espírito de
autoexaltação, avareza, malícia, ódio, carnalidade
e muitas outras concupiscências censuráveis.
(Nota do tradutor: A isto acrescento a principal
característica dos que têm a forma da piedade mas
não o seu poder – a saber, eles não têm qualquer
consideração para com Deus ou com a Sua
vontade revelada nos Seus mandamentos, e no
tipo de vida santificada que exige de todos aqueles
que pretendem dEle se aproximar. Assim,
segundo Deus, é de pouco valor mesmo uma vida
moralmente impoluta, quando Ele é deixado de
23
lado, e a pessoa caminha baseando-se em sua
justiça própria e autoglorificação.)
Nosso texto nos deixa clara a importância
fundamental e vital do dever aqui enunciado, pois
nosso desempenho ou não desempenho é
literalmente uma questão de vida e morte. A
mortificação não é opcional, mas imperativa. As
alternativas solenes são claramente declaradas: a
negligência garante a miséria eterna, o
cumprimento disso assegura a felicidade eterna. O
versículo inteiro é manifestamente dirigido aos
santos, e eles são fielmente avisados: "Se você
viver segundo a carne, você morrerá" - isto é,
morrerá eternamente, como em 5:12, 21; 7:23; 8:
6, "morte" inclui todas as consequências penais do
pecado aqui e a seguir; então, em nosso texto,
"morrer" significa manifestamente "sofrer a
segunda morte", que é "o lago que queima com
fogo e enxofre" (Apo 21: 8). A razão expressa está
aqui citada por que os cristãos não devem viver
segundo a carne: eles não são devedores a ela para
fazê-lo (versículo 12): se eles se renderem ao seu
domínio, o salário do pecado certamente será pago
a eles. "A carne pertence ao mundo, e o homem
que cede às suas inspirações está no mundo,
vivendo como o mundo e perecendo com o
mundo" (J. Stifler).
24
Foi ao ceder aos desejos da carne que Adão trouxe
a morte sobre si mesmo e toda a sua posteridade.
E se eu vivo segundo a carne, isto é, se sou
governado e guiado pela minha natureza antiga,
agindo habitualmente de acordo com suas
inclinações - pois é um curso de conduta
persistente e contínuo que é mencionado aqui -
então, não importa o que seja minha profissão
religiosa, eu perecerei no meu pecado. É
gratificando e servindo a carne, em vez da vontade
de Deus, que arruína as almas eternamente.
"Pode-se perguntar se alguém que recebeu a graça
de Deus na verdade pode viver segundo a carne.
Viver em um curso contínuo de pecado é contrário
à graça de Deus, mas a carne pode prevalecer e
influenciar grandemente a vida e a conversação
por um tempo. Por quanto tempo este pode ser o
caso de um verdadeiro crente sob o retrocesso,
através do poder das corrupções e das tentações,
não pode ser conhecido, mas é certo que não deve
ser sempre assim com ele." (John Gill).
Todo o nosso versículo pertence a professantes
cristãos, e no momento presente. O Apóstolo não
disse simplesmente: "Se você está na carne", pois
esse é o caso de toda alma não regenerada. Mas se
você agora viver segundo a carne, "você morrerá"
- no pleno significado dessa palavra. É uma
afirmação geral de uma verdade universal.
25
Concordamos plenamente com a explicação
fornecida por B.W. Newton, que era um calvinista
decidido. "Uma expressão desse tipo é dirigida a
nós por dois motivos. Primeiro, porque na igreja
professante o apóstolo sabia que havia e haveria
crentes nominais e falsos. Portanto, sempre que há
o endereçamento a corpos coletivos, ele sempre
usa palavras que implicam incerteza e dúvida,
porque há jugo entre o trigo. E segundo, os
próprios crentes verdadeiros (embora a graça
possa preservá-los) tenham, no entanto, sempre
uma tendência neles nos mesmos caminhos.
Portanto, descrições como esta, que são
verdadeiras para os que meramente professam,
podem ainda que ser corretamente aplicadas a
todos os que estão vagando por esses caminhos."
Exemplos disso são encontrados em passagens
como Gálatas 4:20 e 6: 8; Efésios 5: 5-7;
Colossenses 3: 5, 6.
“Eu bem quisera estar presente convosco agora, e
mudar o tom da minha voz; porque estou perplexo
a vosso respeito.” (Gál 4.20).
“Porque quem semeia na sua carne, da carne
ceifará a corrupção; mas quem semeia no Espírito,
do Espírito ceifará a vida eterna.” (Gál 6.8).
26
“Porque bem sabeis isto: que nenhum devasso, ou
impuro, ou avarento, o qual é idólatra, tem
herança no reino de Cristo e de Deus. Ninguém
vos engane com palavras vãs; porque por estas
coisas vem a ira de Deus sobre os filhos da
desobediência. Portanto não sejais participantes
com eles.” (Efésios 5.5-7).
“Exterminai, pois, as vossas inclinações carnais; a
prostituição, a impureza, a paixão, a vil
concupiscência, e a avareza, que é idolatria; pelas
quais coisas vem a ira de Deus sobre os filhos da
desobediência; nas quais também em outro tempo
andastes, quando vivíeis nelas; mas agora
despojai-vos também de tudo isto: da ira, da
cólera, da malícia, da maledicência, das palavras
torpes da vossa boca; não mintais uns aos outros,
pois que já vos despistes do homem velho com os
seus feitos, e vos vestistes do novo, que se renova
para o pleno conhecimento, segundo a imagem
daquele que o criou;” (Colossenses 3.5-10).
Deve-se ter em mente que um cristão retrocedente
se desviou do caminho estreito de negar a si
mesmo, e que, se ele segue o caminho de
autoagrado até o amargo final, a destruição o
aguarda .
Veja aqui a fidelidade de Deus em tão claramente
advertir do terrível destino que aguarda todos os
27
que vivem segundo a carne. Em vez de pensar
com dureza de Deus por Suas ameaças, devemos
agradecê-las. (Nota do tradutor: pois nos dá a
oportunidade de examinarmos pela falta ou
presença de evidências de um andar no Espírito
em nós, se estamos ou não de fato na fé, de modo
a buscarmos lugar de um verdadeiro
arrependimento que nos conduza à salvação, no
caso da falta das citadas evidências que são
citadas abundantemente nas Escrituras.) Veja a
justiça de Deus. Ter prazer e continuar na
apostasia da humanidade e, portanto, a sentença
original (Gênesis 2:17) está em vigor contra os
que andam somente segundo a carne. É desprezo
de Deus, e é medido pela grandeza daquele que é
ofendido (1 Samuel 2:25). Além disso, eles
recusam o remédio e, portanto, são duplamente
culpados.
Veja aqui a sabedoria de Deus ao nomear o maior
castigo para conter a grandeza da tentação. Os
prazeres do pecado são apenas por uma
temporada, mas os caminhos do pecado são para
sempre: se estes últimos fossem profundamente
crentes e seriamente considerados, o primeiro não
prevaleceria tão facilmente conosco. Veja a
santidade de Deus: uma alma não mortificada é
imprópria para Sua presença. Os vasos de glória
devem primeiro ser temperados com graça. A
28
conformidade com Cristo se adapta ao Céu, e
onde isso faltar não pode haver entrada.
"Pois, se viverdes de acordo com a carne,
morrereis, mas se pelo Espírito mortificardes as
ações do corpo, vivereis". (Romanos 8:13). O
conjunto deste versículo pertence aos crentes, que
são "devedores, não à carne, para viver segundo a
carne" (versículo 12); mas, em vez disso,
devedores a Cristo que os redimiu e, portanto,
para viver para a Sua glória; devedores do Espírito
Santo que os regenerou e os habitou e, portanto,
vivem em obediência ao Seu controle absoluto.
Nesta ocasião, indicaremos muito brevemente o
que significa "mortificar", dando uma explicação
mais completa da natureza precisa deste dever.
Primeiro, por estar aqui colocado em oposição
com "viver segundo a carne", seu sentido negativo
é mais ou menos óbvio. Porque "viver segundo a
carne" deve ser completamente controlado pelo
pecado interior, estar completamente sob o
domínio de nossas corrupções inatas. Assim, a
mortificação consiste em um curso de conduta que
é apenas o contrário. Importa no seguinte: não
respeite as exigências da sua natureza antiga, mas
sim subjugue-as. Não sirva, não aprecie seus
desejos, mas mate-os: "não façam provisão para a
carne, para cumprir suas concupiscências"
29
(Romanos 13:14). Os desejos naturais e os
apetites do corpo físico requerem disciplina, de
modo que sejam nossos servos e não nossos
mestres; é nossa responsabilidade moderá-los,
regulá-los e subordiná-los às partes mais elevadas
do nosso ser. Mas os desejos do corpo do pecado
devem ser prontamente recusados e negados
severamente. A vida espiritual é retardada apenas
na medida em que produzimos subserviência às
nossas paixões do mal.
A necessidade imperiosa dessa obra de
mortificação surge da presença contínua da
natureza do mal no cristão. Ao crer em Cristo para
a salvação, ele foi imediatamente libertado da
condenação da lei divina e libertado do poder
reinante do pecado; mas "a carne" não foi
erradicada de seu ser, nem suas vis propensões
foram purgadas ou mesmo modificadas. Essa
fonte de imundície ainda permanece inalterada até
o fim de sua carreira terrena.
Não somente isto, mas é sempre ativa em sua
hostilidade a Deus e à santidade: "A carne luta
contra o Espírito [ou nova natureza], e o Espírito
contra a carne" (Gálatas 5:17). Assim, há um
conflito incessante no santo entre o pecado
interior e a graça inerente. Consequentemente, há
uma necessidade perpétua de mortificar não
apenas as atuações da corrupção residente, mas
30
também o próprio princípio. Ele é chamado a se
envolver em guerras incessantes e não permitir a
tentação de levá-lo ao cativeiro para suas
concupiscências.
A proibição divina é "não ter comunhão com as
obras infrutíferas das trevas [não entrar em trégua,
sem aliança], mas sim repreendê-las" (Efésios
5:11). Diga com Efraim do passado: "O que tenho
a ver com os ídolos?" (Oseias 14: 8).
Não é possível uma verdadeira comunhão com
Deus, enquanto as concupiscências pecaminosas
permanecem intactas. Permitir o mal. . .
Entristece o coração de Deus,
Enreda as afeições,
Desconjunta a alma e
Provoca o Santo para fechar Seus ouvidos às
nossas orações: "Filho do homem, estes homens
deram lugar nos seus corações aos seus ídolos, e
puseram o tropeço da sua maldade diante da sua
face; devo eu de alguma maneira ser interrogado
por eles?" (Ezequiel 14: 3).
Deus não pode de modo algum se deleitar em uma
alma não mortificada; porque Ele fazer isso, seria
negar a Si mesmo ou agir de forma contrária à Sua
31
própria natureza. Ele não tem prazer na
perversidade, e não pode olhar com a menor
aprovação para o mal. O pecado é uma lama, e
quanto mais nós pecamos - menos adequados
somos para os Seus olhos (Salmos 40: 2). O
pecado é uma lepra (Isaías 1: 6), e quanto mais se
espalha - menos o Senhor estará conosco.
Deliberadamente, manter o pecado vivo é
defendê-lo contra a vontade de Deus e desafiar e
combater com o Altíssimo.
O pecado não mortificado é contra todo o desígnio
do Evangelho - como se o sacrifício de Cristo se
destinasse a nos livrar do pecado, em vez de nos
redimir. O propósito da morte de Cristo foi a
morte do pecado.
Embora ressuscitados com Cristo, suas vidas se
esconderam com Ele em Deus, e eles certamente
aparecerão com Cristo em glória, mas os santos
são exortados a mortificar seus membros que
estão sobre a terra (Colossenses 3: 1-5). Pode
parecer estranho quando notamos quais os
membros específicos que o apóstolo especificou.
Não eram pensamentos vãos, frieza de coração,
caminhadas imprudentes - mas os membros
visíveis e mais repulsivos do velho homem:
"imoralidade sexual, impureza, luxúria, desejos
malignos e ganância, que é idolatria"; e nos
versículos 8 e 9 ele lhes pede novamente: "
32
despojai-vos também de tudo isto: da ira, da
cólera, da malícia, da maledicência, das palavras
torpes da vossa boca; não mintais uns aos outros,
pois que já vos despistes do homem velho com os
seus feitos.” Assustador e solene é achar que é
exigido dos crentes que mortifiquem pecados tão
grosseiros e sujos como aqueles - ainda que não
seja mais do que é necessário. Os melhores
cristãos na terra têm tanta corrupção dentro deles,
que habitualmente os dispõe para essas
iniquidades (tão grandes e hediondas quanto elas),
e o Diabo se adequará às suas tentações, como
certamente atrairá suas corrupções para atos
abertos, a menos que eles mantenham uma mão
apertada e uma vigilância íntima sobre eles
mesmos no exercício constante da mortificação.
Ninguém, senão o Santo de Deus, poderia
verdadeiramente dizer: "o príncipe deste mundo
vem e não tem nada em Mim" (João 14:30), que
pudesse ser acendido por seus dardos ardentes.
Assim, os servos de Deus não considerem em seu
julgamento qualquer pecado como sendo
pequeno, e considerando ser questão trivial,
dizendo: "(porventura não é pequeno?), e viverá a
minha alma.” (Gênesis 19:20); então o ministro
fiel irá pressionar sobre todo o povo de Deus que
eles não devem desconsiderar nenhum pecado
porque é grande e doloroso e dizer dentro de si
mesmos: "Isto não é um grande pecado? E minha
33
alma jamais o cometerá.". Assim, devemos
depender da graça perdoadora de Deus para nos
preservar da comissão de pecados grandes e
dolorosos. É por causa de sua autoconfiança e
descuido que às vezes os mais graciosas e
experientes de repente se veem surpreendidos
com as faltas mais terríveis.
Quando o pregador se dirige aos seus ouvintes,
exortando-lhe a terem cuidado de não
assassinarem, não blasfemarem, não se tornarem
apóstatas em sua profissão de fé, ninguém senão
somente os autojustos dirão com Hazael: "Que é
o teu servo, que não é mais do que um cão, para
fazer tão grande coisa?" (2 Reis 8:13). Não há
crime, por mais enorme, nenhuma abominação,
por mais vil que seja, senão o que qualquer um de
nós é capaz de cometer - se não trouxermos a cruz
de Cristo nos nossos corações por uma
mortificação diária!
Mas por que "mortificar as ações do corpo"? Em
vista do balanceamento estudado das várias
cláusulas nesta frase antitética, esperávamos que
fosse lido "mortifique a carne". No capítulo
sétimo e nos versículos iniciais do oitavo, o
apóstolo havia tratado do pecado interior como a
fonte de todas as ações malignas; e aqui ele insiste
na mortificação da raiz e dos ramos da corrupção,
34
referindo-se ao dever sob o nome dos frutos que
ele tem.
As "ações do corpo" não devem ser restritas a
meros trabalhos externos, mas devem ser
entendidas como incluindo também as fontes das
quais elas procedem. Como John Owen disse com
razão: "O machado deve ser colocado na raiz da
árvore". Em nosso julgamento, "o corpo" aqui tem
uma dupla referência. Primeiro, à natureza do mal
ou ao pecado interior, que em Romanos 6: 6 e 7:24
é comparado a um corpo, a saber, "o corpo dos
pecados da carne" (Colossenses 2:11). É um corpo
de corrupção que engloba a alma: daí lemos sobre
"seus membros que estão sobre a terra"
(Colossenses 3: 5). As "ações do corpo" são as
obras que a natureza corrupta produz, ou seja,
nossos pecados. Assim, o "corpo" é aqui usado
objetivamente referindo-se à "carne".
Em segundo lugar, o "corpo" aqui inclui a casa em
que a alma agora habita. É especificado para
denotar a maldade degradante que existe no
pecado, reduzindo seus escravos a viver como se
não tivessem almas. É mencionado para importar
a tendência do pecado residente, ou seja, agradar
e cuidar da parte mais baixa do nosso ser - e a alma
sendo transformada pelo homem exterior. O corpo
é aqui referido com o objetivo de nos informar
que, embora a alma seja a residência original da
35
"carne", o quadro físico é o principal instrumento
de suas ações.
Nossas corrupções são principalmente
manifestadas em nossos membros externos: é lá
que o pecado interior é principalmente encontrado
e sentido. Os pecados são denominados "as ações
do corpo" não só porque são o que os desejos da
carne tendem a produzir, mas também porque são
executados pelo corpo (Romanos 6:12). Nossa
tarefa, então, não é transformar "a carne", mas
matá-la: recusar seus impulsos, negar suas
aspirações, matar seus apetites pecaminosos.
Mas quem é suficiente para tal tarefa - uma tarefa
que não é uma obra da natureza, mas totalmente
espiritual? É muito além dos poderes sem ajuda
do crente. Meios e ordenanças não podem, por si
só, afetá-lo. Está além da província e capacidade
do pregador - a onipotência deve ter a principal
participação no trabalho.
"Se você, através do Espírito, mortificar", isto é "o
Espírito de Deus, o Espírito de Cristo" de
Romanos 8:12 - o Espírito Santo; pois Ele não é
apenas o Espírito de santidade em Sua natureza,
mas também em Suas operações. Ele é a principal
causa eficiente de mortificação. Deixe-nos
admirar e adorar a graça divina que nos forneceu
um ajudante! Reconheçamos e percebamos que
36
estamos tão endividados e dependentes das
operações do Espírito como estamos com a
eleição do Pai e com a redenção do Filho. Embora
a graça seja forjada nos corações do regenerado,
ainda não está em seu poder para agir. Aquele que
transmitiu a graça - deve renová-la, excitá-la e
direcioná-la.
Os crentes podem empregar os auxílios da
disciplina interior e do rigor, e praticar a
moderação e a abstinência externas, e enquanto
eles podem, por um tempo, verificar e reprimir
seus maus hábitos - a não ser que o Espírito opere
Seu poder neles, não haverá verdadeira
mortificação. E como ele opera neste trabalho
específico? De muitas maneiras diferentes.
Primeiro, no novo nascimento, ele nos dá uma
nova natureza. Então, nutrindo e preservando essa
natureza. Ao fortalecer-nos com o Seu poder no
homem interior. Ao conceder novos suprimentos
de graça dia a dia. Trabalhando em nós, uma
repugnância pelo pecado, uma tristeza por causa
dele, um abandono dele. Ao pressionar sobre nós
as reivindicações de Cristo, fazendo-nos dispostos
a assumir nossa cruz e segui-Lo. Ao trazer algum
preceito ou aviso à nossa mente. Selando uma
promessa sobre o coração. Ao nos mover para
orar.
37
No entanto, seja cuidadosamente observado que
nosso texto não diz: "Se o Espírito mortificar", ou
mesmo "Se o Espírito através de você mortificar",
mas, em vez disso, "Se você através do Espírito":
o crente não é passivo nesse trabalho, mas ativo.
Não deve ser suposto que o Espírito nos ajude sem
a nossa concordância, também enquanto estamos
dormindo como acordado, quer mantendo ou não
uma vigilância próxima sobre nossos
pensamentos e obras, e não exercendo mais do
que um ligeiro desejo ou uma oração lenta para a
mortificação de nossos pecados. Os crentes são
obrigados a se comprometerem com seriedade na
tarefa. Se, por um lado, não podemos cumprir este
dever sem a habilidade do Espírito - por outro
lado, ele não ajudará se somos muito indolentes
para fazer esforços sérios. Então, deixe o cristão
preguiçoso imaginar que ele nunca conseguirá a
vitória sobre suas luxúrias.
A graça e o poder do Espírito não oferecem
licença para a ociosidade, mas sim nos chamam
para o uso diligente dos meios e olhando para Ele
para Sua benção sobre o mesmo. Somos
expressamente exortados, "nos purifiquemos de
toda a imundície da carne e do espírito,
aperfeiçoando a santidade no temor de Deus" (2
Coríntios 7: 1), e isso deixa claro que o crente não
é uma parte passiva neste trabalho. As graciosas
operações do Espírito, nunca foram concebidas
38
para substituir o dever de serviço do cristão.
Embora Sua ajuda seja indispensável, ainda assim
não nos liberta de nossas obrigações.
"Filhinhos, guardai-vos dos ídolos" (I João 5:21)
enfatiza a nossa responsabilidade e demonstra que
Deus exige muito mais do que a nossa espera para
que nos mova à ação. Nossos corações são
terrivelmente enganadores, e precisamos estar
muito prevenidos contra o fato de esconder um
espírito de apatia sob uma aparente zelosa
consideração pela glória do Espírito. Não é
necessário um esforço próprio para escapar das
armadilhas de Satanás, recusando-se a andar nos
caminhos que Deus proibiu? Não é necessário um
esforço próprio para separar-nos da companhia
dos ímpios?
A mortificação é uma tarefa para a qual todo
cristão deve aplicar-se com diligência de oração e
firmeza resoluta. O regenerado tem uma natureza
espiritual dentro daquilo que se adapta a eles para
a ação sagrada, caso contrário, não haveria
diferença entre eles e os não regenerados. Eles são
obrigados a fazer valer a morte de Cristo, para
amargar-lhes pelos pecados neles. Eles devem
usar a graça recebida para produzir os frutos da
justiça.
39
No entanto, é uma tarefa que transcende os nossos
fracos poderes. É somente "através do Espírito"
que qualquer um de nós pode aceitável ou
efetivamente (em qualquer grau) "mortificar as
ações do corpo". Ele é quem nos pressiona sobre
as reivindicações de Cristo: lembrando-nos que,
na medida em que morreu pelo pecado, não
devemos poupar esforços para morrer para o
pecado, lutando contra ele (Hebreus 11: 4),
confessando-o (1 João 1: 9) ), abandonando-o
(Provérbios 28:13). Ele é quem nos preserva de
dar lugar ao desespero e encoraja-nos a renovar o
combate. Ele é o que aprofunda nossos anseios
pela santidade e nos move a clamar: "Crie em mim
um coração limpo, ó Deus!" (Salmos 51:10).
"Se você, através do Espírito, mortificar as ações
do corpo". Marque, meu leitor, o equilíbrio da
verdade que está aqui tão cuidadosamente
preservado: enquanto a responsabilidade do
cristão é rigorosamente cumprida, a honra do
Espírito é definitivamente mantida e a graça
divina é ampliada. Os crentes são os agentes neste
trabalho, mas eles o realizam pela força de Outro.
O dever é deles - mas o sucesso e a glória são dEle.
As operações do Espírito são realizadas de acordo
com a constituição que Deus nos deu, trabalhando
dentro e sobre nós como agentes morais. O
mesmo trabalho é, em um ponto de vista, de Deus;
e em outro nosso. Ele ilumina o entendimento e
40
nos torna mais sensíveis ao pecado residente. Ele
torna a consciência mais sensível. Ele aprofunda
nossos anseios pela pureza. Ele trabalha em nós
para querer e fazer a vontade de Deus.
Nosso negócio é atender suas convicções,
responder aos Seus impulsos sagrados, implorar
Seu auxílio, contar com Sua graça.
"Se você, através do Espírito, mortificar as ações
do corpo, você viverá". Aqui está a promessa
encorajadora estabelecida diante do crente
extremamente provado. Deus não será devedor de
nenhum homem: sim, é um recompensador
daqueles que o buscam diligentemente (Hebreus
11: 6). Se então, pela graça, concordamos com o
Espírito, negando a carne, buscando a santidade,
devemos ser recompensados.
A promessa deste dever se opõe à morte ameaçada
na frase precedente: como "morrer" inclui todas as
consequências penais do pecado - então "viver"
compreende todas as bênçãos espirituais da graça.
Se, por meio da habilidade do Espírito e nosso uso
diligente dos meios divinamente designados,
sinceramente e constantemente nos opusermos e
recusarmos as solicitações do pecado residente,
então - mas somente então - viveremos uma vida
de graça e conforto aqui e uma vida de glória
eterna E a felicidade a seguir.
41
Nós mostramos em outro lugar que a "vida eterna"
(1 João 2:25) é a possessão presente do crente
(João 3:36; 10:28) e também o objetivo dele
(Marcos 10:30; Gálatas 6: 8; Tito 1: 2 ). Ele agora
tem um título e direito; ele a tem pela fé e na
esperança; ele tem a semente dela em sua nova
natureza. Mas ele ainda não tem plena posse e
fruição.
"As promessas do Evangelho não são feitas para
o trabalho, mas para o trabalhador, e para o
trabalhador não por sua obra, mas de acordo com
sua obra, por causa da obra de Cristo. A promessa
da vida, portanto, não é feita para a obra de
mortificação, mas para aquele que mortifica a sua
carne, e não para a sua mortificação, mas porque
está em Cristo, do qual esta mortificação é a
evidência. Que aqueles que mortificam a carne
devem viver, é bastante consistente com a verdade
que a vida eterna é o dom gratuito de Deus, e na
entrega dele, não há respeito ao mérito do
receptor. Isto descreve o caráter de todos os que
recebem a vida eterna e é de grande importância.
Isto afasta todo o fundamento de esperança
daqueles que professam conhecer a Deus, mas que
por suas obras o negam." (Robert Haldane).
A condicionalidade da promessa, portanto, não é
a causa de incerteza - mas de coerência e conexão.
Uma vida de glória não passa da mortificação