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A DINÂMICA DE POPULAÇÕES MICROBIOLÓGICAS NA ESTABILIZAÇÃO AERÓBIA DE RESÍDUOS ORGÂNICOS DE FECULARIAS DE MANDIOCA (1) Samuel Murgel BRANCO No presente trabalho foi estudada a biologia da estabilização aeróbia de re- síduos da extração industrial de amido e farinhas, das raízes de «mandioca bra- va» (Manihot esculenta), planta nativa do Brasil e de grande importância eco- nômica dado seu alto valor nutritivo. Os resíduos líquidos dessa extração apre- sentam elevado teor de materia orgânica proteica e possuem ácido cianídrico, sendo inconveniente, por essas razões, seu lançamento aos rios sem prévia es- tabilização. Essa estabilização tem sido obtida, satisfatoriamente, por intermé- dio de instalações de valos de oxidação. Os objetivos almejados com o estudo da biologia do sistema eram, principalmente: 1. Conhecer a composição bioló- gica e a estrutura microscópica dos flocos formados por aeração; 2. Determi- nar as causas e, eventualmente, o processo de correção do fenômeno do intu- mescimento do lôdo («bulking») que freqüentemente ocorre nessas instalações; 3. Determinar a seqüência de populações microbiológicas que se desenvolvem no decorrer do processo de estabilização, de modo a possibilitar o controle mi- croscópico da eficiência do sistema de tratamento. Através da aeração do re- síduo, em laboratório e comparando os resultados da análise microscópica com os dados que permitiam verificar a evolução do processo de estabilização, foi possível obter-se os seguintes resultados: 1. Os flocos são constituídos de uma massa biológica em que predominam fungos filamentosos (Fig. 2). 2. Êsses flocos, sendo pouco compactos, originam o fenômeno do intumescimento. 3. A adição de fósforo ao sistema produz modificação radical na biologia e na es- trutura dos flocos, determinando predominância de bactérias, formação de flo- cos compactos e desaparecimento do fenômeno de intumescimento (Fig. 1; Fig. 2c). 4. Foi estabelecida a seqüência de microrganismos bem como as suas re- lações de natureza ecológica com as distintas etapas na evolução do processo de estabilização de modo a permitir o reconhecimento microscópico dessas eta- pas e controle do funcionamento e eficiência do sistema (Fig. 3). Recebido para publicação em 13-10-1967. (1) Da Disciplina Autônoma de Hidrobiologia da Faculdade de Higiene e Saúde Pública da USP, com subvenção da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. INTRODUÇÃO O fabrico de farinhas e extração de amido de raízes da chamada "mandioca brava" ou "mandioca amarga" (Manihot esculenta) outrora, como ainda hoje na maior parte do território nacional, é rea- lizado em pequenas indústrias domésticas, geralmente por processos muito primiti- vos. Atualmente, entretanto, a sua pro- dução em larga escala, através de um processo realmente industrial vem assu- mindo importância, com o aparecimento das grandes fecularias (fábricas de fari- nha e de raspa) e amidonarias (indús- trias extrativas de amido) no Estado de São Paulo e em alguns outros Estados da Federação. Como conseqüência da con- centração da produtividade em áreas res- tritas, surge o problema da poluição das

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A DINÂMICA DE POPULAÇÕES MICROBIOLÓGICAS NAESTABILIZAÇÃO AERÓBIA DE RESÍDUOS ORGÂNICOS

DE FECULARIAS DE MANDIOCA (1)

Samuel Murgel BRANCO

No presente trabalho foi estudada a biologia da estabilização aeróbia de re-síduos da extração industrial de amido e farinhas, das raízes de «mandioca bra-va» (Manihot esculenta), planta nativa do Brasil e de grande importância eco-nômica dado seu alto valor nutritivo. Os resíduos líquidos dessa extração apre-sentam elevado teor de materia orgânica proteica e possuem ácido cianídrico,sendo inconveniente, por essas razões, seu lançamento aos rios sem prévia es-tabilização. Essa estabilização tem sido obtida, satisfatoriamente, por intermé-dio de instalações de valos de oxidação. Os objetivos almejados com o estudoda biologia do sistema eram, principalmente: 1. Conhecer a composição bioló-gica e a estrutura microscópica dos flocos formados por aeração; 2. Determi-nar as causas e, eventualmente, o processo de correção do fenômeno do intu-mescimento do lôdo («bulking») que freqüentemente ocorre nessas instalações;3. Determinar a seqüência de populações microbiológicas que se desenvolvemno decorrer do processo de estabilização, de modo a possibilitar o controle mi-croscópico da eficiência do sistema de tratamento. Através da aeração do re-síduo, em laboratório e comparando os resultados da análise microscópica comos dados que permitiam verificar a evolução do processo de estabilização, foipossível obter-se os seguintes resultados: 1. Os flocos são constituídos de umamassa biológica em que predominam fungos filamentosos (Fig. 2). 2. Êssesflocos, sendo pouco compactos, originam o fenômeno do intumescimento. 3. Aadição de fósforo ao sistema produz modificação radical na biologia e na es-trutura dos flocos, determinando predominância de bactérias, formação de flo-cos compactos e desaparecimento do fenômeno de intumescimento (Fig. 1; Fig.2c). 4. Foi estabelecida a seqüência de microrganismos bem como as suas re-lações de natureza ecológica com as distintas etapas na evolução do processode estabilização de modo a permitir o reconhecimento microscópico dessas eta-pas e controle do funcionamento e eficiência do sistema (Fig. 3).

Recebido para publicação em 13-10-1967.(1) Da Disciplina Autônoma de Hidrobiologia da Faculdade de Higiene e Saúde Pública da

USP, com subvenção da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

INTRODUÇÃO

O fabrico de farinhas e extração deamido de raízes da chamada "mandiocabrava" ou "mandioca amarga" (Manihotesculenta) outrora, como ainda hoje namaior parte do território nacional, é rea-lizado em pequenas indústrias domésticas,geralmente por processos muito primiti-vos. Atualmente, entretanto, a sua pro-dução em larga escala, através de um

processo realmente industrial vem assu-mindo importância, com o aparecimentodas grandes fecularias (fábricas de fari-nha e de raspa) e amidonarias (indús-trias extrativas de amido) no Estado deSão Paulo e em alguns outros Estados daFederação. Como conseqüência da con-centração da produtividade em áreas res-tritas, surge o problema da poluição das

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águas receptoras dos refugos resultantesdo processamento da mandioca, detritosestes particularmente nocivos não só pelaDemanda Bioquímica de Oxigênio (DBO)de que são causa, como também pelas ele-vadas concentrações de ácido cianídricoque os caracterizam. Várias tentativas detratamento biológico desses resíduos re-sultaram infrutíferas, até que HESS 7

(1962) obteve, experimentalmente, a suaestabilização através da aeração prolon-gada. Esse princípio foi aplicado na prá-tica, pelo mesmo autor, para tratamentode resíduos de indústrias extrativas emvárias cidades do Estado de São Paulo,sendo usado, geralmente, o sistema deValos de Oxidação.

O estudo pormenorizado, do mecanis-mo bioquímico da estabilização dos sub-produtos da mandioca merece interesseespecial, entre nós, por duas principaisrazões: A primeira, por ser essa umafonte de amido quase exclusiva e caracte-rística de nosso meio. Segundo HOEHNE 8

(1939) a mandioca é originária do Brasil,possivelmente de Minas Gerais ou Bahia,onde podem ser encontradas ainda em es-tado selvagem, 130 das 160 espécies co-nhecidas do gênero Manihot. Essas plan-tas teriam sido cultivadas e selecionadaspelo nativos e, daqui, irradiado, há mui-tos séculos, para outras áreas tropicais daAmérica do Sul, tendo como limite extre-mo sul, o Paraguai. A segunda razão re-laciona-se com o fato de, como fonte deamido, esta apresentar a peculiaridade deser extremamente tóxica, o que traz con-seqüências não só para o processo de ex-tração como, principalmente, para o des-tino a ser dado aos resíduos resultantes doseu processamento. Esses resíduos, con-tendo ainda ácido cianídrico em concen-trações da ordem de 250 mg/1 6 podemser extremamente nocivos aos peixes; poroutro lado, se submetidos a tratamentobiológico, poderão alterar profundamenteo quadro ecológico, determinando, em eta-pas primárias da estabilização, a seleçãode microrganismos resistentes ou até ca-pazes de utilizar o ácido cianídrico como

alimento, assunto que será estudado maispormenorizadamente em trabalhos futu-ros.

No presente trabalho procuraremos es-tabelecer a natureza e estrutura micros-cópica do floco biológico formado poraeração, bem como a seqüência de gruposde microrganismos que se vão sucedendono meio aeróbio constituído pelo resíduolíquido da extração, aerado mecânicamen-te, à medida que esse substrato vai sofren-do as modificações de natureza físico-quí-micas características da chamada "esta-bilização bioquímica". Esse estudo qua-litativo da dinâmica das populações micro-biológicas, a par de revelar situações eco-lógicas de interesse teórico, possibilitauma evidente aplicação prática, que é ade permitir o reconhecimento de etapasdessa estabilização, através do quadro mi-croscópico e, dessa maneira, evidenciar,rapidamente, falhas ou deficiências exis-tentes no sistema.

A bibliografia sobre dinâmica de popu-lações microbiológicas em sistemas de Iô-dos ativados é extremamente escassa.hawkes6 (1963) e também mckinney10

(1962) resumem os principais dados deque se dispõe a respeito. De acôrdo comestes, desenvolve-se, no decorrer do pro-cesso de estabilização, uma sucessão demicrorganismos correspondentes às carac-terísticas de distintos ambientes ecológi-cos que se vão substituindo no tempo.Bactérias geralmente heterótrofas (comexceção de nitrobactérias) ocupam, ge-ralmente, um nicho físico constituído pe-lo floco, que é o primeiro e o principalelemento ativo, adsorvente-oxidante, noprocesso de depuração e que sedimenta-do em massas, constitui o chamado lôdobiológico ou lôdo ativo. As espécies bac-terianas predominantes variam muito, deacordo com a natureza do despejo a sertratado, a ponto de terem os flocos asmesmas características morfológicas e bio-químicas quando se desenvolvem em re-síduos contendo compostos orgânicos es-truturalmente análogos. Assim, os flocosdesenvolvidos em ambiente contendo

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quaisquer tipos de pentoses, são sempreidênticos, porém, distintos dos que seformam em presença de hexoses ENGEL-BRECHT & mckinney4 (1957). Umavez formados os flocos, estes serão (aocontrário do líquido antes de flocular)suficientemente ricos em proteínas de mol-de a permitir um maior desenvolvimentode bactérias proteolíticas que passam apredominar sobre as não-proteolíticasALLEN 1 (1944). A não existência desuficiente proporção de compostos nitro-genados ou a presença de elevadas concen-trações de carbohidratos no meio poderesultar na proliferação e predominânciade organismos indesejáveis, tais como asbactérias filamentosas do gênero Sphaero-tilus e fungos, responsáveis pelo fenôme-no conhecido por intumescimento do lôdo("bulking"), ou seja, formação de umlôdo ativo muito volumoso, de elevadoteor de umidade e pequeno peso específi-co e que, por esse motivo, tende a ser le-vado com o efluente.

Com relação à sucessão de protozoáriose microrganismos de maiores dimensões,observa-se também, seqüência idêntica.Neste caso, parece que o principal fatorecológico a determinar a evolução da po-pulação refere-se mais à natureza físicados substratos nutritivos que, propriamen-te, à sua composição química. Protozoá-rios saprozoicos — especialmente rizopo-dos e flagelados — que disputam com asbactérias o alimento existente na formasolúvel, inicialmente predominante noambiente, dão lugar a uma predominân-cia de seres holozoicos que se nutrem daspróprias bactérias. Entre estes, desenvol-vem-se primeiramente ciliados que se lo-comovem livremente no meio líquido, osquais, entretanto, sendo muito exigentesquanto ao valor energético do meio, dadasua grande motilidade, entram em declí-nio, quando as fontes energéticas passama se tornar escassas. Seu lugar é entãoocupado por ciliados sésseis, perítricos.Finalmente, em estágios muito avançadosda estabilização, quando o nível energé-tico do meio cai a valores relativamente

baixos, podem surgir em grandes núme-ros, microrganismos de maior talhe, taiscomo rotíferos e nematoides ou até lar-vas de insetos como quironomídeos, osquais se alimentam de fragmentos de flo-cos ou mesmo de protozoários.

Trabalhos recentes têm contribuído pa-ra a compreensão de alguns aspectos dadinâmica das populações bacterianas co-mo função da vazão de líquido circulante(CASSELL, SULZER, LAMB III2, 1966).Com relação à população de protozoáriosciliados, trabalhos de CURDS & vandyke3

(1966) vieram elucidar vários pontos deimportância, referentes à predominânciade diferentes espécies de ciliados em fun-ção da existência ou predominância de di-ferentes espécies bacterianas. Esses auto-res puderam verificar que bactérias nor-malmente presentes em sistemas de lôdosativados, podem exercer distintas ações fi-siológicas quando ingeridas por distin-tas espécies de protozoários, como únicafonte de alimento. Assim, por exemplo,Escherichia coli é tóxica a Parameciumcaudatum; "desfavorável" a Vorticellamicrostoma e a Opercularia coarctata,mas favorece a proliferação de Epistylisplicatilis e Histriculus vorax. Essa "pre-ferência" manifestada pelos ciliados, comrelação às espécies bacterianas que inge-rem parece comprovar a existência de umaestreita correlação entre a dinâmica daspopulações bacterianas e os protozoáriosholozoicos, no processo de estabilizaçãobiológica de resíduos.

MATERIAL E MÉTODOS

No que se refere ao método de obten-ção do resíduo orgânico a ser tratado eao processo de aeração, a técnica seguidafoi, em linhas gerais, a mesma utilizadapor HESS7 (1962) em seu trabalho pio-neiro: pedaços de raiz de "mandioca bra-va" (Manihot escutenta) foram tritura-dos com água em um liqüidificador, dei-xando-se repousar, durante várias horas,para sedimentação e eliminação do amido.O líquido resultante, de composição idên-

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tica ao resíduo proteico derivado do pro-cessamento normal das fecularias de man-dioca, era então submetido à aeração comauxílio de um aerador comum, de aquá-rio, após ser inoculado com pequena pro-porção de lôdo ativo retirado dos valosde oxidação de uma instalação em funcio-namento na cidade de Mogi Mirim, Estadode São Paulo. Esse resíduo líquido é ricoem proteínas vegetais ("gluten") e pos-sui aspecto opalescente devido a umapequena porcentagem de amido não sedi-mentável. Na presente experiência, o re-síduo em processo de tratamento foi man-tido, durante todo o tempo, em incubadei-ra de temperatura constante (20°C). Dia-riamente eram retiradas, dessas amostras,alíquotas destinadas à realização dos se-guintes ensaios:

1. Volume do lôdo: alíquotas de 100ml eram colocadas em provetas graduadase deixadas em repouso por espaço de meiahora e uma hora, anotando-se o volumede lôdo constituído pelos flocos biológicosformados no processo de estabilização.

2. Teste de estabilidade relativa — Oteste de estabilidade ao azul de metileno(STANDARD Methods for the Examinationof Water and Waste Water11, 1960) erautilizado tendo em vista avaliar empirica-mente o grau de estabilização atingido pe-lo resíduo em fase de aeração. Dada asimplicidade de sua execução e tendo emvista tratar-se sempre de resíduos de idên-tica composição, pareceu-nos ser esse mé-todo, no presente caso, perfeitamente ade-quado à apreciação da evolução do pro-cesso de estabilização, assim como à ava-liação do grau de nocividade potencial (re-lativa à demanda de oxigênio) que o eflu-ente poderia eventualmente causar a umcurso dágua que o recebesse.

3. Medidas de pH — foram reali-zadas, na maior parte das vezes, por meiode papel indicador "Merck". Algumas de-terminações foram realizadas, comparati-vamente, com auxílio de potenciômetro.

4. Aspectos físicos e organolépticos —O odor e o aspecto ótico foram experimen-tados diariamente, do ponto de vista qua-litativo.

5. Exames microscópicos

a) Exames qualitativos: as amostraseram examinadas diariamente ao micros-cópico, com a finalidade de estudar e de-senhar a estrutura e composição biológi-ca dos flocos formados, assim como iden-tificar os vários tipos de microrganismospresentes. Além das técnicas de rotina,foi empregada na evidenciação de carac-teres morfológicos de protozoários, umasolução de "Separan NP-10" descrita co-mo um polímero sintético de uma amidado ácido acrílico, de elevado peso mole-cular, a qual é empregada como auxiliarda floculação no processo de tratamentode águas. Dada a alta viscosidade etransparência desse composto, ocorreu-nosutilizá-lo como "freio" à rápida movimen-tação dos ciliados, possibilitando sua me-lhor observação. A sua presença no meiorevelou-se praticamente inócua do pontode vista fisiológico, aos ciliados, não pro-duzindo sua morte ou modificações de for-ma, a não ser para algumas espécies que,após alguns minutos, passaram a encis-tar-se.

b) Determinações quantitativas: esti-mativas do número dos vários microrga-nismos presentes eram obtidas, através decontagens por campo, em uma gota de vo-lume conhecido, colocada entre lâmina elamínula. Para densidades muito gran-des, foi empregada a sub-divisão do cam-po, com auxílio de retículos quadricula-dos adaptados à ocular do microscópio.

R E S U L T A D O S

1. Evolução do processo de estabilização

Em 8 meses consecutivos de experiên-cias e observações foram obtidos váriosciclos completos, do processo de estabili-zação, os quais diferem muito pouco en-tre si, no que diz respeito a suas caracte-

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rísticas principais. Em linhas gerais, es-ses ciclos, do ponto de vista físico e quí-mico, parecem, ainda, idênticos ao queHESS 7 (1962) descreve sumariamente,com exceção do fenômeno de intumesci-mento, que não ocorreu na fase experi-mental de seu trabalho, provavelmente emvirtude de terem sido empregadas, comoinoculum, amostras de lôdo ativo de esta-ções de tratamento de esgotos domésticos,o que provavelmente enriquecia o meioem nutrientes minerais.

Os principais elementos físico-químicosque nos permitiram avaliar as sucessivasetapas do processo de estabilização foram:

a) Odor: Depois de passadas algu-mas horas desde a trituração da mandio-ca para preparo do líquido a ser utiliza-do na experiência, observa-se com intensi-dade crescente, um odor cianídrico, em pHentre 4 e 5 devido, provavelmente, à hi-drólise da amigdalina que é o glicosídiocianogenético presente nas raízes frescasdo vegetal. Com o passar dos dias, emprocesso de aeração, esse odor é substituí-do pelo cheiro característico de "leite aze-do", o qual se mantém, via de regra, inal-terado, até o 2.° ou 3.° dia de aeração,coincidindo com um pH situado em tornode 5,0. Em seguida, este dá lugar aoodor típico de "mofo", ou intermediárioentre mofo e solo molhado, que caracte-riza uma rápida elevação do pH além deoutros acontecimentos de natureza químicae biológica indicativos de franca estabili-zação do meio. Algumas vezes esse odorse altera ou se associa ao odor típico demaçã e, sempre que a estabilização atingeum grau muito elevado, desprende-se chei-ro amoniacal, coincidindo com pH em tor-no de 9,0.

b) pH: Durante os primeiros 2 a 3dias de aeração, o pH mantem-se em tor-no de 5,0 para em seguida subir rapida-mente a um valor próximo de 6,5 e, já no4.° dia, atingir valôres situados em redorde 8,0, que se mantém, com ligeiras osci-lações, até que, obtido o grau máximode estabilização, a citolise bacteriana e

conseqüente liberação de matérias nitro-genadas leva à formação de amôniâ, ele-vando o pH a valores mais altos. Essaúltima etapa não ocorre, entretanto, quan-do o meio é re-alimentado periodicamen-te com novas cargas orgânicas a serem es-tabilizadas.

c) Aspecto macroscópico: o extratolíquido da mandioca é turvo, opalescente,permanecendo com esse aspecto, geralmen-te até o 3.° dia de aeração, quando entãose inicia a formação de flocos, os quaissedimentam com maior ou menor rapidez.Os flocos variam de coloração, desde bran-cos até pardos ou pardo-cinzentos; o líqui-do sobrenadante mantém-se geralmenteamarelado. Os flocos apresentam textu-ra macroscópica frouxa ou compacta, de-pendendo das condições, como será dis-cutido adiante. No primeiro caso, freqüen-temente se vêm flocos pequenos que semantêm em suspensão, sem sedimentar.

d) Estabilidade relativa: Nos primei-ros dias, o azul de metileno se descora nomesmo instante em que é adicionado àamostra. A partir do terceiro dia de ae-ração, via de regra, observa-se já, umapequena estabilidade, permanecendo a corazul por cerca de 30 minutos. Somentena segunda semana de tratamento é queesse valor se eleva a 24 horas, progredin-do, então, rapidamente, até à estabilida-de ideal de 20 dias, a não ser nos casosem que há intumescimento do lôdo, comoserá discutido a seguir. Prosseguindo-secom a aeração, e iniciada a fase de autó-lise celular e degenerescencia do floco, aestabilidade tende a decrescer novamente.

e) Volume do lôdo: Na maior partede nossas experiências, os sistemas em ae-ração não foram recarregados periodi-camente com resíduo fresco, pois o nossoobjetivo era o de apreciar todas as eta-pas por que passa o sistema até sua com-pleta estabilização. Assim sendo, a sim-ples medida do volume de lôdo sedimen-tado em 30 minutos e em uma hora nospareceu suficiente para avaliar a evolu-

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ção do sistema e a eventual existência deintumescimento sem que houvesse necessi-dade de medir o índice de Mohlmann, ouíndice de lôdo. Constitui este um dos as-pectos mais importantes no processo daestabilização específica dos resíduos demandioca. Em geral, observa-se já no3.° dia de aeração, a formação de lôdoconstituído de flocos biológicos de textu-ra muito frouxa, o qual representa umaproporção de 150 a 200 ml/1, proporçãoesta que se eleva, no 4.° dia, a 400 a500 ml/1, reduzindo-se, por adensamen-to, a valores situados em torno de 150nos dias subseqüentes. A observação mi-croscópica desse lôdo revelou ser ele for-mado, realmente, de flocos de texturamuito frouxa, constituído predominante-mente de um micélio de fungos filamen-tosos, com muitos espaços intersticiais, aocontrário dos flocos compactos, constituí-dos sobretudo de bactérias unicelulares,característicos dos lôdos bem formados.Esse fato levou-nos à suposição de que omeio ecológico, constituído pelo resíduolíquido da mandioca, apresentasse defi-ciências quanto ao teor de nutrientes in-

dispensáveis a um maior desenvolvimentode bactérias, o que favoreceria à prolife-ração de fungos filamentosos. Conside-rando a existência de compostos orgâni-cos suficientes para assegurar o suprimen-to de carbono, assim como a farta aera-ção permitindo ambiente permanentemen-te rico em oxigênio, os elementos faltan-tes seriam, certamente, micronutrientesminerais, tais como nitrogênio e fósforosendo provavelmente este último o fatorlimitante, visto ser o resíduo em questãorico em compostos orgânicos nitrogenados(gluten e os próprios cianetos) como jáfoi mencionado. Foi realizada, então, umasérie de experiências, em que se acrescen-tavam, sais de nitrogênio ou de fósforoou ambos simultaneamente, que vieram acomprovar, realmente, a deficiência emfósforo, no sistema. Resultados da adiçãode fósforo, com relação ao volume de lôdoformado, podem ser apreciados nos gráfi-cos típicos constantes da Figura 1. Re-sultados idênticos foram obtidos ao seadicionar fósforo na proporção de 10 a15 mg de P (40 a 60 mg de Na2 HP04)por litro, em amostras retiradas do pró-

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prio valo de oxidação de uma dessas ins-talações industriais, e que apresentava sé-rio problema de intumescimento do lôdo.Essa propprção de fósforo foi baseada narelação DBO : P = 100: 0,5 a 100 : 0,7indicada em IMHOFF 8 (1966).

2. Microscopia.

a) Estrutura dos flocos.

Via de regra, após 24 horas de aera-ção, o meio se apresenta ricamente po-voado de bactérias, de forma bacilar, quese mantêm isoladamente em suspensão,ou formando pequenos filamentos cons-tituídos de 2 a 3 células. Estimativasgrosseiras revelaram números da ordemde 14 milhões de células por mililitro deamostra. O pH do meio mantém-se emtorno de 5,0 acompanhado do cheiro ca-racterístico de leite azedo. Quando aamostra não é previamente mantida emrepouso o tempo suficiente, encontram-segrãos de amido, com diâmetro variávelentre 7 e 12 micra. Entre 24 e 48 horas,principiam a aparecer leveduras de for-ma tipicamente elipsoidal apresentandoum grande vacúolo além de 1 ou 2 va-cúolos esféricos menores, com tamanho de4,5 a 6 micra, em seu maior eixo. O nú-mero dessas células é da ordem de 1,5 a3 milhões por ml, em 48 horas, elevan-do-se a mais de 20 milhões/ml nos diassubseqüentes. As primeiras hifas de fun-gos filamentosos principiam a aparecer,também, com 48 horas de aeração, emnúmero de 2 a 4 mil filamentos por ml,isoladas, em suspensão. Com 72 horas,o número de filamentos se eleva a 15-25mil por ml, com muitos filamentos rami-ficados iniciando a formação de micéliosmuito frouxos que constituem a estrutu-ra fundamental dos futuros flocos. A par-tir de então, bactérias e células de leve-duras principiam a aderir a esses fila-mentos, dando origem a flocos com gran-des espaços intersticiais, capazes de se-dimentar, porém, formando um lôdo mui-to volumoso. A partir do 5.° dia de aera-

ção os flocos vão-se tornando mais com-pactos, com hifas mais estreitamente en-trelaçadas e com a adesão de novos ele-mentos, tais como cistos de ciliados, comforma esférica e, mais tarde ciliados sés-seis isolados ou coloniais. Na Fig. 2 estárepresentada, em a, a organização geralde um desses flocos em formação e em 6,um floco já bem formado, aos 15 dias deaeração. A partir da formação de flocos,o número de bactérias e de leveduras dis-persas passa a reduzir-se rapidamenteatingindo números relativamente peque-nos aos 10-15 dias.

Êsse tipo de floco, de textura frou-xa, com um arcabouço constituído de fi-lamentos de fungos é idêntico ao que en-contramos em amostras colhidas em ins-talações industriais de tratamento de re-síduos de mandioca e foi o único tipo queconseguimos obter em laboratório, par-tindo de aeração desses resíduos sem aadição de nutrientes minerais. Ao mes-mo tempo, sua presença foi sistematica-mente associada à formação de lôdo in-tumescido.

A partir de 17 a 20 dias de aeraçãosem haver recarga orgânica, o floco passaa degenerar. Formam-se, então, peque-nos flocos que não sedimentam, manten-do-se em suspensão. A turbidez da faselíquida aumenta sensivelmente. Pareceque a autólise das células participan-tes do floco, a qual é certamente de-vida à escassez de alimento no meioricamente oxigenado, leva à liberaçãode compostos orgânicos solúveis quevão, novamente, enriquecer o meio, cons-tituindo substrato ao desenvolvimento denovas bactérias livres (porém em pH mui-to elevado, próximo de 9,0) e de um gran-de número de minúsculos protozoáriosflagelados. Não há, porém, uma degene-rescência total. Amostras que permane-ceram no laboratório, por 6 meses, are-jadas continuamente, exibem ainda seulôdo intumescido, constituído de flocosque contêm a mesma estrutura filamen-tosa, no interior dos quais se observambactérias e cistos de ciliados. Apenas de-

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sapareceram, quase totalmente, os micror-ganismos independentes do floco e dota-dos de atividade locomotora, que passa-ram a ser representados por raros cilia-dos. O pH mantém-se em torno de 6,7.

A adição de fósforo ao meio levou auma evolução sensivelmente diferente, dofloco, em correspondência ao que foi ob-servado em relação ao comportamento dolôdo. Embora se observe, ainda, a for-mação de grande número de hifas de fun-gos, as quais constituem o substrato físi-co do floco, o número de bactérias quese agrega a esses filamentos é muitomaior, preenchendo quase todos os in-terstícios, formando uma estrutura muitomais compacta. Aos 15 dias de aeração,os filamentos de fungos praticamente de-saparecem ou estão totalmente encober-tos pelas bactérias (Fig. 2c). Os flocossão muito menores, ocupando, no campodo microscópio, áreas muito menores queos anteriores. Além disso tendem a serrelativamente menores, também, o núme-ro de hifas de fungos e de células de le-veduras. Fenômeno idêntico foi obtidoquando se acrescentou fósforo a amostrasretiradas dos valos de oxidação e manti-das em laboratório, com re-cargas diáriasde resíduos líquidos do processamento damandioca.

b) Populações de protozoários

O desenvolvimento das populações deprotozoários, em relação à evolução doprocesso de estabilização pode ser visua-lizado através das curvas típicas repre-sentadas esquematicamente na Figura 3.Os seguintes grupos de protozoários ca-racterizam, distintas fases desse processo.

I. Flagelados — Desde os primeirosdias de aeração, surgem protozoários fla-gelados, entre os quais predomina o gê-nero Cercobodo, alimentando-se saprozoi-camente de matéria orgânica em soluçãoou mesmo holozoicamente, englobando atémesmo pequenos grãos de amido. Emuma amostra colhida de um valo de oxi-dação de resíduos de mandioca, foi en-

contrado, em abundância, o gênero Tre-pomonas. Os flagelados atingem maiornúmero (cerca de 500 organismos por ml)por volta do 7.° dia de aeração, elevan-do-se, ainda, seu número lentamente até o15.° dia. A partir de então — e coin-cidindo com uma involução, já descrita,da estrutura dos flocos — surge uma po-pulação riquíssima, com números quechegam, algumas vezes, por volta do22.° dia, até 50.000 organismos por ml,de flagelados muito pequenos, do gêneroBodo.

II. Ciliados — Quando o meio é ricoem bactérias, e o pH principia a elevar-se, inicia-se intensa proliferação de ci-liados de locomoção muito rápida, entreos quais predomina o gênero Calpoda,atingindo máxima população por voltado 11.° dia de aeração. Entretanto, já apartir do 4.° ou 5.° dia, coincidindo como início da floculação, tais organismospassam a transformar-se, em proporçõescada vez maiores, em cistos de forma es-férica, os quais aderem aos flocos, pas-sando a fazer parte de sua estrutura. Es-se fenômeno se verifica em escala cres-cente, à medida que os flocos se vão de-senvolvendo e em que, conseqüentemente,o número de bactérias em suspensão —as quais constituem seu principal alimento— vai se tornando escasso. Via de regra,do 10.° dia em diante, quando o núme-ro de ciliados ativos ultrapassa 40.000/ml,o número de cistos sobrepuja em muito onúmero de formas ativas, fazendo comque a curva de crescimento dessas passea declinar rapidamente. Esse declínio dálugar ao aparecimento de ciliados sésseisperítricos cujos pedúnculos se prendemá superfície dos flocos, e cujo númeropassa a elevar-se até atingir a casa dos1.500/ml, por volta do 15.° dia, quandopassam, também, a declinar. Nas pre-sentes observações, predominaram, entreos perítricos, os gêneros: Opercularia,Epistylis, Pyxidium e uma forma sem pe-dúnculo que não pudemos identificar.Finalmente, o declínio dessas formas —e também degenerescência dos flocos —

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é acompanhada do aparecimento de no-vas formas de ciliados livre-natantes, po-rém gymnostomata, de dimensões muitomaiores que os anteriores, os quais se ali-mentam de pedaços dos flocos desfeitos,flagelados, e até mesmo de outros cilia-dos. Entre êsses ciliados predominam osgêneros Liotus, Amphileptus e Loxodes.

De um modo geral pôde-se observarque a adição de fósforo ao meio não pro-duz uma modificação qualitativa, no qua-dro da população de protozoários, masapenas uma antecipação, no tempo, nodesenvolvimento de cada uma das formasdescritas.

c) Microinvertebrados

Nematoides de vida livre apareceram,pela primeira vez, a partir do 13.°-14.°dia. Entretanto, em experiências ulterio-res, em que a amostra a ser aerada era,previamente, semeada com lôdo das an-teriores, os nematoides passaram a apare-cer antes, desenvolvendo-se em maior nú-mero (cerca de 1.000/ml). Em uma dasexperiências feitas com acréscimo de fós-foro, surgiram a partir do 5.° dia de ae-ração. Rotíferos do gênero Philodina apa-receram, em número muito grande, emuma das experiências de aeração do lí-quido colhido do valo de oxidação, coinci-dindo seu desenvolvimento com a etapade grande desenvolvimento dos ciliados pe-rítricos, sésseis.

D I S C U S S Ã O

O primeiro fato a chamar a atençãono desenvolvimento da presente experiên-cia é o do intumescimento dos lôdos coin-cidindo com a presença de grande núme-ro de fungos nos flocos. Vários autorestêm já relacionado o fenômeno do intu-mescimento com a presença de organis-mos filamentosos, especialmente bactériasdo gênero Sphaerotilus e FINSTEIN &HEUKELEKIAN 5 (1967), revendo o pro-blema, confirmaram a opinião de que, apredominância de seres filamentosos nãoé apenas coincidente, mas constitui real-

mente a causa da pequena sedimentabili-dade do floco. A predominância de fun-gos em sistemas de lôdos ativados está ge-ralmente associada à existência de pHbaixo, assim como à presença de concen-trações elevadas de carbohidratos e à de-ficiência de alguns nutrientes minerais,entre os quais se destacam o nitrogênio eo fósforo. No presente caso, nota-se queo pH, nos primeiros dias de aeração, érealmente baixo, permitindo o desenvol-vimento desses tipos de vegetais, em gran-de abundância. A adição de fósforo aomeio resultou benéfica, do ponto de vistada formação de flocos mais compactos,pesados e ricos em bactérias, embora adiferença somente se fizesse sentir em eta-pas posteriores do processo de estabiliza-ção. Deve ser lembrado, entretanto, quena maior parte das experiências descritas,o sistema não era recarregado continua-mente com novas quantidades de resíduosorgânicos. A recarga sistemática, depoisde formados os flocos compactos e, com apermanente adição de fósforo, leva à ma-nutenção do pH acima de 7, não permi-tindo o reaparecimento de fungos, fatoque pôde ser verificado quando arejamos,em laboratório, amostras colhidas dos va-los de oxidação de uma instalação indus-trial, com substituição periódica de par-te do líquido por novas quantidades deresíduo fresco às quais adicionávamos fós-foro. Nessas condições — que são maisou menos as condições reais de um siste-ma de lôdos ativados em funcionamentonormal — não ocorrem grandes variaçõesna composição do meio, mantendo-se umequilíbrio constante do grau de estabili-zação e, conseqüentemente, do quadro depopulações microbiológicas característicodesse ambiente ecológico constante. Aadição de nitrogênio + fósforo, por outrolado, proporcionou resultados idênticosaos da simples adição de fósforo, o queindica não ser o nitrogênio, no caso, fa-tor limitante, o que era de se prever, umavez que os resíduos do processamentoda mandioca são ricos em nitrogênio or-gânico na forma de gluten, ou proteínavegetal.

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O fenômeno do intumescimento do lôdoparece, pois, estar ligado a uma causade natureza estrutural do floco. Real-mente, examinados os flocos ao microscó-pio e comparados aos flocos normais, semfilamentos, observa-se que, enquanto queesses últimos apresentam um aspecto ma-ciço, em que a maior parte de sua massaé constituída por bactérias intimamenteassociadas entre si e, freqüentemente in-ter-ligadas por matriz gelatinosa, como éo caso dos "clássicos" flocos formados porbactérias do gênero Zooglea, os flocosconstituídos de fungos são, por outro la-do, de aparência muito mais frouxa, apre-sentando inúmeros espaços formados noentrelaçamento desses filamentos, o quelhes comunica a aparência leve de umchumaço de algodão. Tais flocos, embo-ra tenham propriedades adsorventes pos-sivelmente idênticas às dos demais, ocu-pam espaço muito grande e, se removidosdo meio, apresentam teor de umidademuito maior, isto é, muito menor propor-ção de matéria seca. Ademais, pequenasporções desses flocos chegam a destacar-se da massa geral de lôdo e, sendo pouco

densos, são mantidos em suspensão nafase líquida, fazendo com que esta perma-neça com baixo grau de estabilidade re-lativa. Essa fase líquida, que constituio efluente de uma instalação normal delôdos ativados, permanece, assim, com ele-vada demanda bioquímica de oxigênio,embora a matéria orgânica causadora des-sa instabilidade não mais esteja em so-lução, mas sim floculada e mantida emsuspensão.

A sucessão observada, de microrganis-mos no decorrer do processo de estabili-zação pode ser indicativa de distintas eta-pas dessa evolução. Primeiramente emmeio ao grande número de bactérias eleveduras em suspensão, existentes desdeo início da aeração, inicia-se a prolife-ração muito rápida de hifas isoladas defungos, ainda em pH situado em tornode 5. Essas hifas, depois de atingiremcerto tamanho, passam a emitir ramifica-ções, dando ensejo à formação de peque-nos micélios, constituídos de poucos fila-

mentos. Nessa etapa, caracterizada pelapresença de grande quantidade de alimen-to orgânico em forma solúvel, podem pro-liferar, já, alguns protozoários flageladoscapazes de utilizar essa forma de alimen-to e de viver em ambiente ácido. A for-mação dos primeiros flocos, pelo entrela-çamento de vários desses pequenos micé-lios e adesão, à superfície dos filamentos,de grande número de bactérias e tambémcélulas de levedos, coincide com a eleva-ção brusca do pH do meio. O início ea rápida proliferação dos ciliados de livrelocomoção, que se dá, também, nessa eta-pa pode ser explicada pelo grande núme-ro de bactérias e levedos existentes emsuspensão, os quais lhe servem de ali-mento, em forma de partículas, que è aúnica forma que pode ser utilizada atra-vés do sistema de cilios de apreensão quecaracteriza esses seres. Seu aparecimentoem etapa anterior é dificultado, certamen-te, pelo pH muito baixo. Uma única vezem que esses protozoários apareceram jáno 2.° dia de aeração, esse aparecimentocoincidiu com elevação, também anômalado pH, nesse mesmo período.

Na medida em que essas bactérias elevedos em suspensão vão desaparecendodo meio e aderindo aos flocos em suspen-são, os ciliados livre-locomotores vão assu-mindo à forma de cistos — que tambémaderem aos flocos — o que é indicativo dodepauperamento do meio líquido, que sevai tornando insuficiente para suportar vi-da tão ativa e conseqüentemente tão exi-gente em fontes energéticas. Esse fato (oda formação crescente de cistos) e o apare-cimento imediato de ciliados fixos, poucoativos e pouco exigentes quanto ao valornutritivo do meio, é grandemente signifi-cativo, em relação à evolução do processode estabilização, ou seja, a queda pro-gressiva do valor energético do sistema.Em uma instalação de lôdos ativados, emfuncionamento normal, a taxa de recar-gas orgânicas deve ser proporcionada deforma a manter o sistema permanente-mente nessa etapa, que é a de máximaprodutividade.

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O aparecimento dos flagelados livres, detamanho relativamente grande, indicaurna etapa já muito avançada, caracteri-zada por uma involução, do ponto de vis-ta da estabilização do sistema. A sobre-vivência dos flocos, constituidos princi-palmente de fungos e bactérias, depende,sempre, da existência de certa quantida-de de nutrientes orgânicos em forma so-lúvel, no meio. Submetidos à intensa ae-ração e portanto, em ativo processo derespiração ou oxidação bioquímica, osmicrorganismos que o compõem necessi-tam quantidades proporcionalmente gran-des de "combustíveis" a serem oxidados.Quando estes passam a se tornar escassosno meio e, havendo prosseguimento daaeração, esses microrganismos passam aum processo de "autofagia", oxidandosuas próprias reservas orgânicas intrace-lulares. Suas membranas celulares, são,em geral, muito resistentes a essa açãoenzimática, sendo as últimas a se des-truirem. No momento em que isso acon-tece, o conteúdo celular, parcialmente di-gerido, é novamente devolvido ao meio,em forma de compostos orgânicos solú-veis, acompanhados de certa concentra-ção de amônia resultante da digestão doscompostos orgânicos nitrogenados. Esseselementos permitem, agora, o desenvolvi-mento de novas espécies de bactérias eflagelados capazes de viver em ambientede elevado pH, nutrindo-se de compostossolúveis. Essa degenerescência dos flocosé acompanhada da proliferação de gran-des ciliados capazes de ingerirem frag-mentos de flocos, flagelados e até mesmociliados menores. Organismos que têm omesmo significado são também, os rotífe-ros e, provavelmente, nematoides.

C O N C L U S Õ E S

As seguintes conclusões resultam dopresente estudo:

1. Os resíduos líquidos originados doprocessamento da mandioca são suficien-temente ricos em matéria orgânica nitro-

genada, para permitir o desenvolvimentode rica população microbiológica aeróbia,quando submetidos à aeração mecânica, oque leva à possibilidade, demonstrada pri-meiramente por HESS7 (1962), de suaestabilização por esse processo. A floraque aí se desenvolve, em seus estágios ini-ciais, é certamente resistente à presençade cianetos, que caracterizam aqueles re-síduos, assunto que, entretanto, será reser-vado para futuras publicações. Entretan-to, a deficiência em fósforo, nos resíduosda mandioca, não permite um desenvolvi-mento bacteriano suficientemente grandepara impedir, por concorrência, uma pre-dominância (em volume) de fungos fila-mentosos, o que dá origem ao fenôme-no de intumescimento do lôdo.

2. O intumescimento do lôdo está in-timamente correlacionado com o aspectofísico, microscópico, dos flocos, de textu-ra muito frouxa, formado por microrga-nismos filamentosos. Tais flocos são mui-to volumosos, contendo elevada porcen-tagem de água nos interstícios ou "vazios"que resultam do entrelaçamento das hifasde fungos. A introdução de maior con-centração de fósforo no sistema, leva aoaumento da densidade de bactérias nofloco, desaparecimento progressivo dosfungos, resultando diretamente disso, aformação de flocos mais compactos e pe-sados e correção do fenômeno do intu-mescimento.

3. Observa-se uma seqüência bio-di-nâmica caracterizada por quadros micros-cópicos sucessivos de estrutura e aparên-cia perfeitamente distintas, no decorrerda evolução do processo de estabilização,os quais poderiam ser sumariamente des-critos da seguinte forma: a) bactérias,levedos, hifas isoladas, flagelados, caracte-rizando uma fase de baixo pH e abun-dância de matéria nutritiva solúvel; b)ciliados livre-locomotores, caracterizandoelevação progressiva do pH e grande abun-dância de alimento na forma de partí-culas diminutas (bactérias e levedos) ;c) ciliados encistados, formação de flo-

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cos, ciliados sésseis, caracterizando am-biente de alta estabilidade, e baixo valorenergético; d) flagelados minúsculos, pHmuito elevado, ciliados livre-locomotoresmuito grandes, rotíferos e nematoides, ca-racterizando degenerescência dos flocospor autólise das bactérias e outros mi-crorganismos que o compõem, e queda daestabilidade do sistema.

4. Um sistema de lôdos ativados des-tinado ao tratamento de resíduos dessetipo, deveria ser mantido permanentementeno estágio c acima descrito,, através da apli-cação de recargas orgânicas adequadas eadição de fósforo, a fim de se obter máxi-ma produtividade, evitando, ao mesmo tem-po, perda de DBO pelo fenômeno do in-tumescimento do lôdo. O controle mi-croscópico da eficiência do sistema não sóé possível e desejável, como até mesmodemonstrou ser o mais adequado, no pre-sente caso.

S U M M A R Y

In the present paper, the biology ofaerobic stabilization of proteinaceouswastes from starch extraction and maniocmeal manufacture from "mandioca bra-va" roots is studied. "Mandioca brava"(Manihot esculenta) is a native plant ofgreat economic importance in Brazil.Wastes from this manufacture have highconcentration of organic matter and cya-nide and so they are improper to be dis-charged into rivers without previous sta-bilization. This stabilization has beenachieved successfully through oxidationditches treatment. The main purposes tobe attained with these biological studieswere: 1. to know the biological compo-sition and the microstructure of the floesobtained by aeration; 2. to determinethe causes and eventually the process ofcorrecting the bulking which often appearsin these systems; 3. to know the se-quence of microbiologic populations whichappear during the stabilization process inorder to make possible the use of micros-

copy to control effectiveness of the treat-ment. Aeration of the waste was done inthe laboratory and results of the micros-copic examination were compared withthe data as: pH, odor, amount of sludgeand relative stability as indicators of thestabilization process evolution. The follo-wing conclusions are attained: 1. Thefloes are formed of a biological masswhere filamentous fungi and yeast cellspredominate (Fig. 2) ; 2. These floesare loose and so, responsible for thebulking: 3. Addition of phosphorus tothe system produces complete biologicalmodification and changes the microstruc-ture of the floes. It produces more fa-vorable conditions to bacteria growth anda heavier floe results (Fig. 1, Fig. 2c) ;4. The sequence of microscopic organismsas well as their ecological relation withdifferent steps of the process are stablished.So it was possible to recognise thosesteps by microscopic examination and tocontrol the effectiveness of stabilization(Fig. 3).

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