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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE COMUNICAÇÃO Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social KLEBER MAZZIERO DE SOUZA A DESMUSICALIZAÇÃO DA MÍDIA EM TEMPOS DE HIPERMIDIATIZAÇÃO DA MÚSICA: o empobrecimento estético da música popular na programação televisiva brasileira São Bernardo do Campo, 2014

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE COMUNICAÇÃO

Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social

KLEBER MAZZIERO DE SOUZA

A DESMUSICALIZAÇÃO DA MÍDIA EM TEMPOS DE HIPERMIDIATIZAÇÃO DA MÚSICA:

o empobrecimento estético da música popular na programação televisiva brasileira

São Bernardo do Campo, 2014

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE COMUNICAÇÃO

Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social

KLEBER MAZZIERO DE SOUZA

A DESMUSICALIZAÇÃO DA MÍDIA EM TEMPOS DE HIPERMIDIATIZAÇÃO DA MÚSICA:

o empobrecimento estético da música popular na programação televisiva brasileira

Tese apresentada em cumprimento parcial à exigências do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), para a obtenção do grau de doutor. Orientador: Prof. Dr. Laan Mendes de Barros

São Bernardo do Campo, 2014

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FOLHA DE APROVAÇÃO

A tese A DESMUSICALIZAÇÃO DA MÍDIA EM TEMPOS DE HIPERMIDIATIZAÇÃO DA MÚSICA: o empobrecimento estético da música popular na programação televisiva brasileira, elaborada por Kleber Mazziero de Souza, foi defendida no dia ....... de ............................. de 2014, tendo sido:

( ) Reprovada

( ) Aprovada, mas deve incorporar nos exemplares definitivos modificações sugeridas pela Banca Examinadora, até 60 (sessenta) dias a contar da data da defesa.

( ) Aprovada

( ) Aprovada com louvor

Banca Examinadora:

________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ Área de concentração: Processos Comunicacionais Linha de Pesquisa: Comunicação midiática nas interações sociais

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Agradecimentos

Agradeço ao Prof. Dr. Laan Mendes de Barros pela dedicação, companheirismo e contribuição intelectual que definiram os limites ao mesmo tempo em que ampliaram os horizontes que consolidaram a trajetória de concretização deste trabalho.

Agradeço ao corpo docente da Universidade Metodista de São Paulo, cujos saberes trazidos nas respectivas disciplinas ministradas emprestaram a esta pesquisa grande parte de seu estofo teórico e metodológico.

Agradeço ao Prof. Dr. Daniel Galindo que, além de orientar, desempenhou papel de importância extrema na concretização da Dissertação de Mestrado deste pesquisador, projeto que anteceu e embasou este que ora finda.

Agradeço à Profa. Dra. Simone Luci Pereira e ao Prof. Dr. José Salvador Faro, que compuseram juntamente com meu orientador a Banca de Qualificação deste trabalho, momento no qual sugeriram procedimentos e argumentos que foram valiosos para a definição dos caminhos e consequente redação final do texto que ora se inicia.

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SOUZA, Kleber Mazziero de. A desmusicalização da mídia em tempos de hipermidiatização da música: O empobrecimento estético da música popular na programação televisiva brasileira, 2014. 213 f. Tese (Doutorado em Comunicação Social) – Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo. Resumo O trabalho aborda o empobrecimento estético-discursivo da canção popular massiva exposta na mídia televisiva brasileira, na comparação entre o contexto histórico-midiático-musical das décadas de 1960 e 1970 e o contexto da primeira metade da segunda década do século XXI. Para definir tal empobrecimento discursivo encontrou-se o conceito de “desmusicalização da mídia televisiva”. O trabalho, de natureza teórica, tem como objetivo apontar que a mídia televisiva tem papel preponderante e parte importante da responsabilidade pelo empobrecimento na construção do discurso da música popular brasileira. Para tanto, primeiramente, por meio da análise poético-estética dos elementos estruturais das linguagens musical e literária de uma canção popular, delimitou-se a espécie de obra musical estruturada com acuro poético, que a ela empresta um padrão estético de excelência. Tais canções tinham espaços de veiculação nas grades de programação da mídia televisiva de outrora e nos dias atuais não mais os têm. Em seguida, por meio de pesquisas bibliográfica, documental e empírica, descreve-se de modo analítico-interpretativo o período histórico em que ocorreu essa desmusicalização da mídia. Por fim, constata-se que a partir da popularização da Internet e da proliferação de diversas mídias que permitem ao ouvinte o acesso, o armazenamento, o compartilhamento de repertórios musicais e, sobretudo, a audição em movimento, a canção popular massiva pautada pelo acuro poético deixou de estar presente na mídia televisiva e passou a figurar em outras diversas mídias. Essa ampla presença da Música nas mídias digitais definiu-se pelo conceito de “hipermidiatização da música”, que seria um dos componentes da “desmusicalização da mídia televisiva”. Palavras-chave: Desmusicalização da mídia televisiva. Hipermidiatização da música. Mediações culturais. Mídia televisiva. Canção popular massiva brasileira.

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SOUZA, Kleber Mazziero de. A desmusicalização da mídia em tempos de hipermidiatização da música: O empobrecimento estético da música popular na programação televisiva brasileira, 2014. 213 f. Tese (Doutorado em Comunicação Social) – Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo. Resumen El documento aborda el empobrecimiento estético-discursivo de la canción popular masiva expuesta en los medios de comunicación la televisión brasileña, comparando el contexto histórico-mediático-musical de los 60s y 70s y el contexto de la primera mitad de la segunda década de este siglo. Para definir un empobrecimiento discursivo se creó el concepto de "desmusicalización de la Televisión" La obra, de carácter teórico, pretende señalar que el medio de comunicación Televisión tiene un papel fundamental y parte importante de la responsabilidad por el empobrecimiento del discurso en la construcción de la música popular brasileña. Para ello, en primer lugar, mediante el análisis estética de elementos poéticos-estructurales del lenguaje musical y literario de una canción popular, fue delimitado el tipo de trabajo musical estructurado con esmero poético, que imparte un estándar estético a la canción. Estas canciones eran veiculadas por los medios televisivos en los 60s y 70s, hoy en día no más. Luego, por medio de bibliográfica investigación, documental y empírica, describe de manera analítica y interpretativa el período histórico en el que ocurrió la desmusicalización televisiva. Por último, se encontró que a partir de la popularización de Internet y la proliferación de diversos medios de comunicación que permiten el acceso, el almacenamiento, el intercambio de repertorios musicales y, sobre todo, la escucha en movimiento, la canción popular masiva compuesta con esmero poético ya no está presente en la Televisión y llegó a aparecer en varios otros medios de comunicación. Esta amplia presencia de la música en los medios digitales fue definida por el concepto de "hipermidiatización de la Musica", lo que sería un componente de la "desmusicalización de la Televisión". Palabras clave: Desmusicalización de la Televisión. Hipermidiatización de la Musica. Mediaciones culturales. Media televisiva. Canción popular massiva brasileña.

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SOUZA, Kleber Mazziero de. A desmusicalização da mídia em tempos de hipermidiatização da música: O empobrecimento estético da música popular na programação televisiva brasileira, 2014. 213 f. Tese (Doutorado em Comunicação Social) – Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo. Abstract

The paper approaches the aesthetic-discursive impoverishment of massive popular song in Brazilian television media, comparing the historical-media-musical context of the 1960s and 1970s and the context of the first half of the second decade of this century. To delimit the discursive impoverishment was defined the concept of “unmusicalization of television media”. This work, of theoretical nature, aims to point out that the television media has a key role and important part of the responsibility for the impoverishment of discourse in the construction of Brazilian popular music. To do so, first, by analyzing poetic-aesthetic structural elements of musical and literary language of a popular song, was delimited the kind of structured musical work with poetic concern, that imparts an aesthetic standard of excellence. These songs were offered by the Television in the 60s and 70s, today no more. Afterwards, through research literature, documentary and empirical, describes analytical and interpretative way the historical period in which occurred the unmusicalization of television media. Finally, it is concluded that from the popularization of the Internet and the proliferation of various media that allow the access, storage, sharing musical repertoires and, above all, the listening on the move, the mass popular brazilian song, composed with concern poetic no more be longer present in Television and went on to appear in several other media. This broad presence of music in digital media was defined by the concept of "hyper-mediatization of music", that would be a component of the “unmusicalization of television media”. Keywords: Unmusicalization of television media. Hyper-mediatization of music. Cultural mediations. Television media. Massive popular Brazilian song.

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Sumário

INTRODUÇÃO _____________________________________________________________ 13

CAPÍTULO 1 – O REFERENCIAL TEÓRICO ___________________________________ 25

A discussão estética _________________________________________________________ 27

Cotidiano, mediações e midiatização __________________________________________ 53

Os hábitos de escuta ________________________________________________________ 73

Dos conceitos ______________________________________________________________ 93

CAPÍTULO 2 – DO CONCEITO DE MÚSICA E DOS ELEMENTOS DE ANÁLISE __ 103

Música __________________________________________________________________ 105

CAPÍTULO 3 – DA ANÁLISE POÉTICO-ESTÉTICA ___________________________ 123

As canções da segunda metade da década de 1960 ______________________________ 129 Domingo no Parque, de Gilberto Gil _________________________________________ 129 Sabiá, de Tom Jobim e Chico Buarque ________________________________________ 155 Doce de Coco, de Wanderley Cardoso e Cláudio Fontana _________________________ 177

Considerações a partir das análises – canções da segunda metade da década de 1960. 186

As canções da segunda metade da década de 1960 ______________________________ 190 Vidro Fumê, de Carlos Colla e Kaliman Chiappini ______________________________ 190 Além, Porém Aqui, de Fernando e Gustavo Anitelli _____________________________ 202

Considerações a partir das análises – canções das décadas de 1960 e 1970 __________ 220

Correlações das canções e definição de linhas evolutivas comparadas ______________ 225

CAPÍTULO 4 – O percurso histórico-interpretativo ______________________________ 231

A Televisão e a Música brasileiras – a herança do Rádio na década de 1950 _________ 234

O final da década e o acuro discursivo musical da Bossa Nova ____________________ 242

A Música como elemento constitutivo da grade de programação da TV Tupi ________ 246

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A “conduta minimalista” da Bossa Nova e da TV Excelsior ______________________ 249

O compromisso da emissora com a música brasileira ____________________________ 252

A programação da TV Record e o embrião dos Festivais _________________________ 258

O I Festival de Música Popular Brasileira – TV Excelsior, 1965 ___________________ 264

Um programa dedicado exclusivamente à “música brasileira de alta qualidade” _____ 265

O II Festival de Música Popular Brasileira – TV Record, 1966. ___________________ 268

O programa televisivo sazonal, o Festival, e o programa televisivo pertencente à grade 269

O contexto sócio-midiático-musical anterior ao “Festival da Virada” ______________ 273

O III Festival de Música Popular Brasileira – TV Record, 1967 ___________________ 280

A mediação cultural imediata – o uso visionário do microfone sobre a plateia _______ 284

O sucesso da fórmula – I Bienal do Samba TV Record, 1968 _____________________ 288

O III Festival Internacional da Canção, TV Globo, 1968 _________________________ 291

A Era dos Festivais em revista sob diversos pontos de vista _______________________ 297

O desenvolvimento da canção popular massiva brasileira ________________________ 299

A decadência do sucesso da fórmula – o fim dos Festivais da TV Record ___________ 303

O início da década de 1970 – o V Festival Internacional da Canção ________________ 312

O estreitamento de laços entre a mídia televisiva e o regime militar ________________ 317

O VII FIC da TV Globo, os erros sucessivos, e o fim da Era dos Festivais ___________ 322

Tentativas esparsas de recuperação do sucesso da fórmula _______________________ 329

A inversão da natureza midiática que impulsionava o mercado da canção popular ___ 332

A nociva ingerência do mercado fonográfico ___________________________________ 337

A morte da intérprete – o vazio dos compositores e a ausência de referência ________ 343

A definição de novos formatos de programas televisivos de cunho musical __________ 347

O Rock Brasileiro – a década de 1980, o abandono da identidade musical brasileira __ 351

Mulher 80 – as intérpretes e a ausência de uma geração de grandes compositores ____ 361

Série Grandes Nomes – a consolidação das gerações de compositores ______________ 362

Chico & Caetano – o meado da década de 1980 ________________________________ 364

Homem 90 – os intérpretes e a ausência de uma geração de grandes compositores ___ 365

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Os programas especiais produzidos pelas emissoras _____________________________ 366

A ressalva – o fator geracional a reforçar as consequências do procedimento da mídia 371

A teia produção-divulgação-veiculação _______________________________________ 375

A consolidação do modelo midiático-mercadológico – as décadas de 1980 e 1990 _____ 378 O Novo Pagode e o Pagode Romântico _______________________________________ 379 O sucesso meteórico e o desaparecimento quase instantâneo da Lambada ____________ 383 As lições aprendidas com a Lambada e o Axé Music _____________________________ 385

Os programas da grade fixa de programação das emissoras de televisão ____________ 389 O Forró Eletrônico e o Forró Universitário _____________________________________ 392

A ausência de opções e a massificação dos movimentos musicais __________________ 395 A Música Sertaneja e o Sertanejo Universitário _________________________________ 397 O Funk e os gêneros similares_______________________________________________ 403

O resgate histórico da perda de identidade e do empobrecimento do discurso musical 407

A contribuição da mídia televisiva ___________________________________________ 408

A evolução tecnológica de aparatos de gravação, reprodução e apreensão de música _ 409

Os recursos de gravação e reprodução sonora – da década de 1950 à Era Digital ____ 410

A audição musical em movimento ____________________________________________ 413

A performance áudio-visual e a audição estática ________________________________ 415

A Internet e a proliferação de plataformas midiáticas ___________________________ 417

Os novos hábitos de escuta e a revolução do movimento _________________________ 420

A Música como “trilha sonora do cotidiano” ___________________________________ 422

As estratégias de reação da mídia televisiva e do mercado fonográfico _____________ 425

O cenário mercadológico-midiático-musical da década de 2010 ___________________ 433

O segmento de visão: crítico no conteúdo, saudosista na forma ___________________ 436

CONCLUSÃO ______________________________________________________________ 439

REFERÊNCIAS ____________________________________________________________ 455

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ANEXOS___________________________________________________________________465

Anexo 1 – Glossário de termos específicos_____________________________________467

Anexo 2 – Partitura da canção Domingo no Parque, de Gilberto Gil _______________481

Anexo 3 – Partitura da canção Sabiá, de Tom Jobim e Chico Buarque _____________487

Anexo 4 – Partitura da canção Doce de Coco, de Wanderley Cardoso e C. Fontana __491

Anexo 5 – Partitura da canção Vidro Fumê, de Carlos Colla e Kaliman Chiappini ___495

Anexo 6 – Partitura da canção Além, Porém Aqui, de Fernando e Gustavo Anitelli ___499

Anexo 7 – Primeira semana de programação da TV Tupi do Rio de Janeiro________503

Anexo 8 – Ilustração da programação televisiva do dia 5 de junho de 1966_________509

Anexo 9 – Ilustração da programação televisiva – semana de julho de 1965 ________513

Anexo 10 – Ilustração da programação televisiva – semana de agosto de 1971 ______529

Anexo 11 – Ilustração da programação televisiva – semana de setembro de 1986____541

Anexo 12 – Ilustração da programação televisiva – semana de outubro de 1995_____557

Anexo 13 – Ilustração da programação televisiva – semana de novembro de 2007___573

Anexo 14 – Ilustração da programação televisiva – semana de maio de 2014_______589

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Introdução A Música Popular ocupou o papel de protagonista entre as manifestações artísticas

que permearam a sociedade brasileira das décadas de 1960 e 1970, notadamente as porções

urbanas dessa sociedade. Os festivais de música realizados entre os anos de 1965 e 1968, mais do

que permear, de certo modo pautaram os modos de ser, agir e pensar de uma geração de ouvintes

de música, que estava a meio caminho entre a surpresa e a indignação com os processos de

mudanças de rumos políticos, econômicos, sociais e culturais impostos pelo golpe militar de

1964; a mesma geração, em dezembro de 1968, conheceria ainda o endurecimento do regime de

exceção com a publicação do Ato Institucional No. 5, veria seus ídolos musicais serem cassados,

banidos, exilados, e passaria a ouvir o repertório das músicas então compostas sob o crivo de uma

censura que intervinha de modo bastante pronunciado na criação musical dos compositores de

música popular no Brasil.

A década seguinte herdou o procedimento do regime autoritário da década de 1960 e

a produção de música popular no Brasil dos anos setentas mesclava os interesses dos artistas, os

anseios da população, e a deliberada ação do governo militar no incentivo à composição de

músicas que enalteciam feitos, fatos e ideário oficiais. Desse modo, se por um lado parte das

músicas produzidas na década de 1970 ecoavam as insatisfações com as arbitrariedades do

regime militar, por outro lado outra gama de músicas fazia odes a um país que assistia ao

chamado “milagre brasileiro”, mas cuja maior parte da população deste não desfrutava.

No entanto, fosse influenciada pela música que contestava o regime militar, fosse

influenciada por aquela que compactuava com o regime de exceção, parte da sociedade urbana

brasileira era influenciada direta e fortemente pela música popular, a manifestação artística que

protagonizou a cena cultural daquele momento histórico.

Herdeiros, entre diversas linguagens expressivas, da sofisticada linguagem

harmônico-melódica da Bossa Nova, uma parte considerável dos compositores que encamparam

a produção da música popular brasileira que contestava o regime militar primava não apenas por

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complexas construções literárias plenas em conteúdo e lirismo como, também, pelo sofisticado

uso dos recursos de linguagem musical de que dispunham; tais compositores produziam uma

música popular de acuro poético, que proporcionava a construção de um repertório musical de

elevado padrão estético, tanto no que tange a seus aspectos textuais, lírico-literários, quanto no

que tange a seus aspectos musicais, harmônico-rítmico-melódicos. Os compositores

comprometidos com o acuro poético no uso dos recursos de linguagem na estruturação literário-

musical de suas canções, tornaram-se as referências para os artistas da música brasileira que

iniciariam suas trajetórias pela primeira metade da década de 1980, para o ouvinte de música no

Brasil e para parte do mercado de consumidores de música brasileira no exterior – a referência de

uma espécie de produção musical definida pelo rigor discursivo composicional, tanto de letras

quanto de músicas, que definia aquela espécie de canção popular como uma produção musical de

alto padrão estético.

Neste período de tempo, pouco mais de duas décadas, a programação da mídia

televisiva brasileira (exclusivamente aberta à altura, pois não havia emissoras de TV fechadas)

ressaltava o protagonismo da música popular produzida no Brasil. Os Festivais de Música

Popular Brasileira produzidos e exibidos em épocas específicas do ano pelas emissoras de

televisão Excelsior (I Festival de Música Popular Brasileira, em 1965; Festival Nacional de

Música Popular Brasileira, em 1966), Globo (Festival Internacional da Canção, entre 1966 e

1972; Festival Abertura, em 1975), Record (Festival de Música Popular Brasileira, entre 1966 e

1969; I Bienal do Samba, em 1968) e Tupi (Festival de MPB, em 1979), na já não mais insipiente

fase de implantação do veículo de comunicação no Brasil, e a produção e veiculação de

programas de conteúdo exclusivamente musicais exibidos nas grades fixas de programação das

emissoras de televisão Excelsior (Em Bossa Nove, em 1960; Brasil 60, em 1960; Brasil 61, em

1961; Brasil 62, em 1962), Globo (Som livre exportação, em 1971; Sábado Som, em 1974),

Record (O Fino da Bossa, entre 1965 e 1967; Programa Bossaudade, entre 1965 e 1968); Essa

noite se improvisa, entre 1966 e 1968; Programa Divino Maravilhoso, entre 1967 e 1968) e Tupi

(A grande chance, em 1966; Um instante, maestro!, em 1967) contemplavam diversos

repertórios, abriam espaço de veiculação para grandes compositores, intérpretes e canções, e

ocupavam faixas de horários de grande audiência televisiva.

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Tais programas primavam por encontrar e manter a exposição de artistas e a

veiculação de suas obras e produções musicais pautadas pelo que podemos chamar de

“excelência discursiva musical”; esses programas, fossem sazonais (como no caso dos Festivais

de Música Popular), fossem pertencentes às grades fixas de programação das emissoras de

televisão brasileiras, trouxeram à tona artistas, obras e produções musicais que marcaram e

influenciaram a história da música popular brasileira.

É importante ressalvar desde este início de exposição que a espécie de programação

musical mencionada acima não era a única presente no universo midiático televisivo da época.

Cohabitavam nas grades de programações fixas das emissoras de televisão programas que

traziam em seu conteúdo a mencionada “excelência discursiva musical” e programas que

apresentavam artistas e obras musicais que não primavam por uma estruturação literário-musical

baseada no acuro no uso dos recursos de linguagem, que não visavam necessariamente ao

aprimoramento e ao desenvolvimento do discurso da canção popular massiva brasileira.

Nas mesmas emissoras de televisão eram exibidos programas que veiculavam artistas

e obras que se distiguiam entre a negligência e a busca pelo acuro discursivo. As emissoras de

televisão Excelsior (Moacir Franco Show, entre 1963 e 1965, apresentado por Moacir Franco),

Globo (A Buzina do Chacrinha, entre 1967 e 1972, apresentado por Chacrinha), Record (Corte

Rayol Show, entre 1967 e 1968, comandado pelo Agnaldo Rayol e pelo humorista Renato Corte

Real) e Tupi (Os galãs Cantam e Dançam na TV, em 1970, apresentado pelos cantores

Wanderley Cardoso, Paulo Sérgio e Antônio Marcos) exibiam também programas de conteúdo

musical não necessariamente ligados ao repertório de uma música popular brasileira pautada pelo

esmero no uso dos recursos de linguagem literário-musical na estruturação de seu discurso.

Também se faz necessária a ressalva que dá conta de notar o fato de que nem todas as

canções apresentadas nos Festivais de Música Popular espelhavam a produção musical de acuro

poético; nem todas as canções concorrentes apresentavam o rigor discursivo do repertório que

compunha parte daqueles Festivais. Assim como não eram todos os programas das grades fixas

de programação das emissoras que traziam grandes artistas e grandes obras musicais aos ouvintes

de música popular, também os programas sazonais (notadamente os Festivais de Música Popular)

não eram pautados exclusivamente por uma produção musical de acuro poético e consequente

padrão estético.

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O fato que se intenta comprovar neste trabalho é o de que, nas décadas de 1960 e

1970, havia a produção de programas televisivos dedicados à veiculação de artistas e obras

musicais comprometidos com o aprimoramento da estruturação do discurso da canção popular

massiva brasileira. Por conseguinte, ficava estabelecido uma espécie de entrelaçamento mídia

televisiva – música popular, que disponibilizava ao telespectador ouvinte de música a

possibilidade da apreensão estética de obras cuja poética ocupava-se da busca por um

enriquecimento discursivo tanto literário quanto estritamente musical (nas instâncias da

harmonia, da melodia e do ritmo).

No entanto, na década de 1980, notadamente a partir de sua segunda metade, é

possível notar um esvaziamento duplo da programação musical que primava pela veiculação do

repertório de música popular brasileira comprometido com o acuro poético, tanto nas grades fixas

de programação das emissoras de televisão quanto em programas especiais sazonais: por um

lado, os programas de conteúdo exclusivamente musical foram paulatinamente substituídos por

outros gêneros (humorísticos, jornalísticos, talk shows, reality shows, entre outros); por outro, os

momentos musicais dos programas de entretenimento passaram a contar somente com artistas

provindos de determinados gêneros musicais, de movimentos musicais específicos, a

interpretarem sucessos produzidos e gravados em discos lançados pelas gravadoras que

compunham e dominavam o mercado fonográfico brasileiro.

Tais artistas, fenômenos de massa cuja produção musical era desprovida tanto de

acuro poético quanto de ocupação com o padrão estético, em regra cantores-de-um-sucesso-

apenas, em exposição midiática constante, reverberavam canções inseridas em gêneros

determinados e pré-definidos por produtores musicais (nem sempre profissionais da música

suficientemente preparados) que habitavam o âmbito das gravadoras. A exposição midiática

extensa fomentava a venda de CDs e, após o imediato e avassalador sucesso, os artistas e suas

canções-de-sucesso caíam no esquecimento e, por vezes, em definitivo ostracismo.

O esvaziamento da programação musical do repertório de música popular

comprometido com o acuro discursivo, além de apresentar um caráter duplo do ponto de vista da

formatação das grades de programação das emissoras de televisão, revela um caráter duplo

também quanto à sua natureza intrínseca, discursiva, em sua relação com o ouvinte de música

brasileira, suas mediações sociais, suas apropriações estéticas. Por um lado, a quase ausência de

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ambição quanto ao padrão estético da produção musical dos já mencionados fenômenos de

massa, os cantores-de-um-sucesso-apenas, que tomaram conta da mídia de massa da época, a

televisão, empobreceu o discurso literário-musical da canção popular massiva brasileira; por

outro, a aderência do repertório de tais fenômenos midiáticos-mercadológicos na sociedade

revelou, de certa forma, um empobrecimento estético-discursivo do ouvinte brasileiro.

Tal processo de empobrecimento duplo, tanto do discurso literário-musical da canção

popular massiva brasileira veiculada extensivamente na mídia televisiva brasileira, ocorrido no

polo da poética, quanto da capacidade de apreensão do ouvinte de música em sua relação com a

programação da mídia televisiva brasileira, no polo da estética, perpassou toda a década de 1990

e chegou às primeiras décadas do século XXI. A esse processo chamaremos aqui de

“desmusicalização da mídia televisiva”.

É necessário ressalvar desde este ponto do trabalho que o termo “desmusicalização”

não descreve uma diminuição do tempo midiático destinado à exposição de artistas e seus

repertórios musicais, tampouco a ausência de programas de conteúdo musical sejam eles

especiais sazonais, sejam pertencentes às grades fixas de programação das emissoras; o conceito

de “desmusicalização” surge aqui com o sentido de descrever o fato de que, apesar de a mídia

televisiva apresentar ao longo de todo o período mencionado farto repertório musical, este não ser

comprometido com as características de uma música brasileira que primara, até aquele momento

histórico, por uma deliberada busca por um padrão estético de excelência em suas produções, o

que caracterizava parcela importante da música presente na programação da mídia televisiva à

época.

Em suma, se pela segunda metade da década de 1960, ao ligar o aparelho televisor, o

telespectador brasileiro frequentemente encontrava-se com o requinte rítmico-melódico-

harmônico-literário de canções cujo discurso era composto por elementos estruturantes que

definiam a canção popular massiva brasileira como uma entre as mais bem construídas do

mundo, a partir da segunda metade da década de 1980 tal encontro entre telespectador e

repertório musical, entre o polo da poética comprometido com o acuro discursivo e o polo da

estética afeito a tal discurso musical, escasseava e tornava-se, num processo acelerado, cada vez

mais raro.

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Desse modo, não apenas o espectador televisivo brasileiro era privado da

possibilidade de encontrar a alternativa musical pautada pela riqueza discursiva como era

bombardeado pela exposição de uma produção musical cujo discurso revelava extremas

simplicidade e pobreza de uso dos recursos de linguagem.

Do ponto de vista da estruturação discursiva, tal empobrecimento no uso dos recursos

de linguagem é definido por elementos estritamente musicais: harmonias que, em regra, não

extrapolam a sequência de quatro acordes do Modo Maior, melodias de fácil absorção justamente

porque pautadas por intervalos diatônicos das notas da tessitura máxima de uma escala

concernente à tonalidade, elemento rítmico restrito à repetição de células que definem a fórmula

de compasso e mantêm a pulsação da execução; e é definido, também, pelo elemento literário

componente do gênero musical da canção popular: letras que apresentam erros de construção no

âmbito da prosódia, cuja linguagem apresenta não raras vezes pouco comprometimento como o

escorreito uso da língua portuguesa, construídas em torno de temáticas românticas ou que tendem

a uma espécie de erotização implícita em jogo de palavras e, por vezes, explícita nos movimentos

das coreografias dos artistas que interpretam tal repertório. Essa estruturação discursiva

empobrecida, presente na ampla maioria do cancioneiro popular midiatizado, não empresta à

produção da canção popular massiva exposta pela mídia televisiva um padrão estético de

excelência.

Concomitantemente a tal cenário estético-midiático ocorreu, a partir da segunda

metade da década de 1995, um fenômeno tecnológico que transformaria de modo contundente

tanto o modo de se ouvir e se apropriar de música quanto o modo de se produzir música no

Brasil. Também este fenômeno apresenta uma característica dupla: de um lado, a proliferação de

meios de armazenamento, reprodução e compartilhamento de grande gama de músicas; de outro,

permitem ao ouvinte a possibilidade de mobilidade e consequente multiplicidade de atividades e

execução de tarefas no momento da audição musical. A tal fenômeno chamaremos aqui de

“hipermidiatização da música”.

Cabe trazer aqui a ressalva que dá conta de fazer notar que o componente conceitual

“midiatização”, contido no termo, especifica apenas um de seus aspectos, a saber, aquele que

indica a proliferação de diversos meios pelos quais o consumidor de música acessa, armazena,

reproduz e compartilha música, além de ouvir, em movimento, o repertório por ele escolhido.

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A “hipermidiatização da música”, tal como tomada aqui, em certa medida levou o

mercado musical brasileiro a uma fragmentação, a uma diluição, que engendrou um novo modo

de apropriação da música. Além disso, permitiu novos modos e meios de produção e divulgação

de produtos midiáticos-musicais gerados a partir das facilidades trazidas aos produtores de

música que não mais necessitavam de um estúdio profissional, de uma gravadora, de uma

complexa teia industrial e mercadológica, mas apenas de um computador, um programa de

gravação e um canal na internet para viabilizar a exposição de sua produção. A partir do contexto

da revolução digital-tecnológica, compositores, intérpretes e músicos não mais precisavam de

uma gravadora, necessitavam apenas de um gravador. Como afirmou Sérgio A. Silveira:

Nunca foi tão fácil reproduzir uma música. Em nenhum outro momento da história, as pessoas tiveram tamanho acesso às gravações sonoras. A distribuição da música nas redes digitais permitiu que artistas desconsiderados pela indústria fonográfica pudessem expor sua produção para milhares de pessoas, ultrapassando os limites impostos pelos controladores do mercado de bens artístico-culturais e pela indústria do entretenimento (SILVEIRA, 2009, p.).

Assim, somada à desmusicalização da mídia televisiva, a hipermidiatização da

música alterou o contexto no qual se inserem o polo da produção de música e o polo da apreensão

de música, o sujeito-ouvinte brasileiro desse princípio de século XXI, e portanto interfere de

modo contundente tanto no modo como a música popular é apropriada por esse ouvinte quanto na

configuração da própria produção da canção massiva brasileira, seu acuro poético e seu

consequente padrão estético. É preciso notar que o interregno de cerca de 30 anos de um contexto

midiático-musical definido pelo empobrecimento discursivo da canção massiva brasileira

eventualmente tenha cerceado o surgimento de gerações de compositores brasileiros

comprometidos com o padrão estético de excelência que pautara parte da produção da música

brasileira de cunho popular.

Produção (o polo da poética), apropriação (o polo da estética), midiatização (a

instância dos meios de produção e circulação) e mediações (tomadas aqui como a instância das

apropriações, ainda delimitadas pela égide das “mediações culturais da comunicação”, de Jesús

Martín-Barbero, antes de sua revisão à identificação levada às “mediações comunicacionais da

cultura”) da música brasileira transformaram-se de modo perceptível nos mais recentes 50 anos.

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Este trabalho se propõe a transformar o fenômeno “perceptível” em argumentação

comprovável, partindo da hipótese que parte da premissa de que o fenômeno de empobrecimento

discursivo da manifestação cultural musical do gênero música popular passa pela análise de dois

componentes sociais fundamentais, interdependentes e concomitantes: a desmusicalização da

mídia televisiva e a hipermidiatização da música. A primeira apresenta a possibilidade de a mídia

televisiva do Brasil, sobretudo a partir da segunda metade da década de 1980, ter direcionado sua

programação para longe da canção popular massiva brasileira plena em requinte e sofisticação

discursiva, dando lugar a produções que apresentavam traços de indefectível empobrecimento

estético (revelado inclusive numa espécie de estreitamento da diversidade cultural brasileira, por

conta da perda de matrizes regionais até então presentes nas manifestações musicais trazidas

pelas mídias radiofônica e televisiva); a segunda considera a transformação dos aportes

tecnológicos, que fez proliferar dispositivos de acesso, armazenamento e compartilhamento de

música, além da possibilidade de deslocamento no momento da audição, todos estes, ferramentas

de descentralização da produção e da apropriação da manifestação artística musical por parte da

sociedade brasileira.

Assim, a hipótese principal deste trabalho fundamenta-se, primeiramente, na

discussão situada no campo específico da estética. O empobrecimento estético do discurso

literário-musical brasileiro encontrou ressonância na sociedade brasileira, caso contrário não teria

se configurado em altos índices de audiência e de vendagem de discos. Se, por um lado, nas

décadas de 1960 e 1970 a exposição midiática de artistas e repertório comprometidos com o

acuro discursivo eram apreciados e apreendidos por parte do público ouvinte de música do Brasil

que, em suas mediações sociais e culturais reverberavam e propagavam na sociedade os ecos

daquela espécie de produção musical, por outro lado os fenômenos de massa produzidos pelas

gravadoras e veiculados pela mídia televisiva, desmusicalizada a partir da década de 1980 e ao

longo da década seguinte, encontraram um público que, em suas mediações sociais e culturais

reverberavam e propagavam na sociedade os ecos daquela espécie de produção musical, o que

pode revelar uma natural proximidade do ouvinte brasileiro com a linguagem musical

empobrecida tanto em seu aspecto musical (as melodias, harmonias e ritmos dos sucessos de

vendas de grande exposição midiática) e literário (as letras das canções componentes desse

repertório).

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Entretanto, o público ouvinte de música brasileira, a partir da segunda metade da

década de 1990, e sobretudo ao longo das duas primeiras décadas dos anos 2000, encontrou nos

dispositivos tecnológicos que hipermidiatizaram a música um dispositivo tático (expressão

formada a partir do conceito estabelecido por Michel De Certeau) que permite a ele burlar as

estratégias (termo aqui utilizado também em sintonia com o conceito fundamentado pelo referido

autor) dos procedimentos mercadológicos-midiáticos de modo a permitir a escolha, o acesso

gratuito e o compartilhamento de um repertório que não seja necessariamente aquele sugerido

pelo mercado fonográfico em sintonia com a mídia; o consumidor de música brasileira do século

XXI tem, ainda, a possibilidade de levar consigo em seus deslocamentos o repertório por ele

definido.

Desse modo, possivelmente a canção popular massiva brasileira cuja produção é

definida pela estruturação de um discurso rico do ponto de vista do uso dos recursos da

linguagem literário-musical na busca por um padrão estético de excelência não tenha

desaparecido mas, sim, migrado da mídia televisiva para outros suportes midiáticos de produção

e apreensão.

Em seguida à fundamentação estética, a hipótese principal deste trabalho ancora-se

no decurso histórico-evolutivo, no intuito de indicar um fator que evidencia o empobrecimento

poético-estético mencionados acima: a exposição midiática de grandes intérpretes, compositores

e canções em programas de televisão produzidos e veiculados ao longo das décadas de 1960 e

1970 estimulava o surgimento e a sucessão de canções, intérpretes e compositores

comprometidos com o acuro poético e um consequente padrão estético de excelência; ao

contrário, a superexposição midiática em programas de televisão produzidos e veiculados ao

longo das décadas de 1980 e 1990 de intérpretes-de-um-sucesso-apenas, compositores com

recursos de linguagem limitados e canções empobrecidas do ponto de vista discursivo, estimulava

apenas o surgimento e a sucessão de compositores cuja linguagem literário-musical limitada

estruturava peças musicais cujos discursos eram pobres, interpretadas por artistas que repetiam

performances desprovidas de consistência técnico-interpretativas e canções que faziam sucesso

tanto instantâneo quanto efêmero.

A fundamentação da hipótese principal deste trabalho abre o campo para, ao menos,

duas hipóteses secundárias: primeiramente a que dá conta de que, ao momento histórico vivido

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pela segunda metade da década de 1960 e por toda a década seguinte, privada da possibilidade de

manifestação formal sindical, estudantil ou política, a sociedade urbana brasileira tenha

encontrado na arte sua única possibilidade de demonstrar a insatisfação com o regime ditatorial

vigente à época – a manifestação artística mais próxima da imensa maioria da população

brasileira à altura, inclusive pelo fato de amalgamar música e letra, seria a música popular; a

mídia televisiva brasileira, à época, espelharia o ambiente social e abrigaria um sua grade de

programação fixa e em programas especiais sazonais conteúdos dedicados à canção popular

massiva brasileira comprometida com o acuro discursivo, o que estimularia uma espécie de

apreensão estética de um repertório musical definido pelo acuro poético; a mídia televisiva,

assim, contribuiria significativamente para o desenvolvimento do discurso da canção massiva

brasileira.

A outra hipótese secundária aponta para o fato de que, livre da ditadura militar, a

sociedade brasileira eventualmente tenha se encontrado sob a égide de outra forma ditatorial: a

ditadura das gravadoras multinacionais em sintonia com o aparato midiático televisivo, que

tomaram o mercado fonográfico brasileiro de assalto. Distantes dos compromissos sociais ou

mesmo estéticos, visando apenas ao seu próprio desempenho econômico, as gravadoras

multinacionais fabricavam movimentos musicais, fenômenos de massa, artistas-de-uma-música-

apenas, que eram expostos exaustivamente em programas de televisão (e também tinham suas

canções executadas fartamente nas programações radiofônicas), faziam grande sucesso de vendas

de discos no primeiro momento para, em seguida, desaparecerem do cenário musical brasileiro; o

ambiente social no qual a mídia televisiva estava inserida seria espelhado por ela e, tanto em sua

grade de programação fixa quanto em programas especiais sazonais, abrigaria conteúdos

dedicados à canção popular massiva brasileira descompromissada com o acuro discursivo, o que

estimularia uma espécie de apreensão estética de um repertório musical de teor poético

empobrecido; a mídia televisiva contribuiria significativamente para a estagnação e o

empobrecimento do discurso da canção massiva brasileira.

A discussão de fundo que permeia este trabalho é delimitada pela indagação-macro

acerca da perda de importância da música na sociedade brasileira nos mais recentes 50 anos.

Teria, de fato, a canção popular massiva comprometida com o acuro na estruturação do discurso

literário-musical perdido o posto de protagonista das manifestações artísticas brasileiras e

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deixado de ser o mais importante referencial cultural brasileiro? Estaria a música popular, desse

modo, a cambiar de função; em lugar de objeto artístico poético motivador do desenvolvimento

da apreensão estética, estaria relegada à função de trilha sonora do cotidiano, de preenchimento

dos silenciosos espaços vazios consuetudinários, de companhia, de composição de ambiente para

determinadas atividades (a música-de-academia, a música-de-festa, a música-para-acalmar-no-

trânsito, a música-para-namorar etc.). Nesse caso, é mister encontrar respostas para a pergunta:

Qual a responsabilidade da mídia televisiva nesse processo de empobrecimento estético-cultural?

Ou, ao contrário, a canção popular massiva comprometida com o acuro na

estruturação do discurso literário-musical continuaria a ocupar o lugar de protagonista que

ocupou, sobretudo durante as décadas de 1960 e 1970, porém agora habitando fartos outros

canais midiáticos, pois empobrecida em seus recursos discursivos quando do repertório inserido

no contexto da mídia televisiva brasileira? Estaria a música popular, nesse caso, salvaguardada

em sua função poético-estética e a hipermidiatização da música desempenharia a função de

“antídoto” ao processo de desmusicalização da mídia televisiva e consequente empobrecimento

do discurso literário-musical da canção popular massiva brasileira. Descentralizada da mídia

televisiva, diluída em canais midiáticos, a produção e a veiculação de tal espécie de repertório

musical alcançaria, eventualmente, um público menor porém mais específicamente próximo

àquela construção discursiva; não atingiria um público massivo, mas permitiria a integração e até

mesmo a interação com um público tanto mais restrito quanto mais disposto a estar preparado

esteticamente.

Desmusicalização da mídia televisiva e hipermidiatização da música podem se

constituir em elementos de fundamental importância na composição de um novo e distinto

cenário musical-mercadológico-midiático brasileiro, cujas transformações teriam se constituído a

partir da década de 1980, consolidado-se pelo final do século XX e se configurado pelas duas

décadas deste princípio de novo século.

Após esta Introdução, apresentamos um resumo das macro-sessões que compõem o

presente trabalho.

Ao longo do primeiro capítulo, intitulado O Referencial Teórico, apresentaremos o

estofo filosófico e epistemológico, além da definição dos conceitos fundamentais do trabalho.

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Dividido, assim, em quatro partes, apresenta primeiramente a discussão estética que visa a

estabelecer com precisão a definição de uma produção musical cujo acuro poético a ela empresta

um padrão estético de excelência. Em seguida, ao abordar as instâncias do cotidiano, das

mediações e da midiatização, encaminhamos a discussão para um referencial menos próximo da

manifestação musical em si, mais próximo da Música-na-mídia. Um passo adiante e encontramos

a abordagem que apresenta as questões acerca dos hábitos de escuta, que delimita os âmbitos da

excperiência estética dos ouvintes de música. Finalmente, o capítulo traz a definição dos

conceitos de “Desmusicalização da Mídia Televisiva” e “Hipermidiatização da Música”

propriamente ditos.

O segundo capítulo, Do Conceito de Música e dos Elementos de Análise, é

instrumental por definição. Intenta construir o conceito do objeto a ser analisado, a saber, a

“canção popular massiva brasileira” e, em seguida, especificar os elementos que serão analisados

a fim de detectar o uso dos recursos de linguagem na estruturação do discurso de obras musicais

nas décadas de 1960 e 1970 e na segunda década do século XXI.

O terceiro capítulo, Da Análise Poético-Estética, de natureza ilustrativa, disseca a

estrutura de cinco canções (três produzidas e veiculadas midiaticamente na década de 1960 e

duas produzidas e veiculadas midiaticamente na década de 2010) segundo aspectos estritamente

musicais (harmonia, melodia e ritmo), literários (a letra) e de elementos de performance

(arranjo/instrumentação, interpretação vocal, técnicas de gravação e reprodução, contexto de

apresentação e apreensão).

O quarto capítulo, O Percurso Histórico-Interpretativo, é de cunho argumentativo-

interpretativo. Mais do que um resgate histórico das instâncias da canção popular massiva e da

mídia televisiva brasileira, nele intenta-se construir uma visão historiográfica baseada tanto na

pesquisa bibliográfica, que possibilita a descrição dos fatos ocorridos nas histórias da música e da

mídia brasileira nas mais recentes décadas, quanto emdepoimentos de personagens que

protagonizaram a cena midiático-musical no período abordado, o que empresta o caráter

interpretativo à narrativa.

Findo o quarto capítulo, apresentamos a Conclusão do trabalho.

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Capítulo 1

O referencial teórico

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1. O referencial teórico

A discussão estética

A argumentação central da presente pesquisa tem como base a afirmação de que o

fenômeno aqui nomeado “desmusicalização da mídia televisiva” revela a perda de espaço, o

empobrecimento do discurso e o declínio de importância da linguagem musical na TV aberta no

Brasil. No entanto, a rigor, é preciso notar que a mídia televisiva brasileira não está, de todo,

“desmusicalizada”; ao contrário, a música permeia grande parte das grades de programações,

incluindo diversos programas voltados exclusivamente para o público interessado em música.

Assim, o debate que aqui se estabelece dá conta da escassa presença daquela a que nomeamos

“boa música” ou “música de qualidade” (a produção musical cujo acuro poético empresta à obra

um padrão estético de excelência) nas grades de programação da mídia televisiva aberta

brasileira.

Desde esse ponto de vista, é fundamental, portanto, empenharmos primeiramente a

discussão acerca do que seria uma “música de qualidade”, a discussão estética em torno do

“belo”, que emprestaria o caráter de “qualidade” à produção musical veiculada pela televisão.

Para tanto, trazemos de início o referencial filosófico que primeiro sistematizou o

pensamento ocidental quanto à questão estética: a obra do filósofo ateniense Platão.

No contexto do século IV A.C., Platão, fundador da Academia de Atenas,

considerada a primeira universidade do Mundo Ocidental, estabeleceu o conceito de uma

educação fundamentada e devidamente difundida, que seria a única possibilidade de levar o ser

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humano comum ao estágio do filósofo; somente o ser humano, em paideia1, poderia observar os

valores essenciais constituintes do Mundo das Ideias: “A educação pela música é capital, porque

o ritmo e a harmonia penetram mais fundo na alma e afetam-na mais fortemente” (PLATÃO,

1983, p. 104). O homem, nascido bom e devidamente educado, seria aquele cujo controle da

concupiscência do corpo era adestrado pelos exercícios da ginástica e o controle das vicissitudes

da alma era desenvolvido pelo aprendizado da música: “a boa qualidade do discurso, da

harmonia, da graça e do ritmo dependem da qualidade do caráter.” (PLATÃO, 1983, p. 147).

A educação pela música no processo de paideia platônico passava, necessariamente,

pelo conceito fundamental de sua filosofia, o conceito de ideia2, as formas ideais, pertencentes ao

Mundo das Ideias, não sensíveis, apenas inteligíveis, que seriam apreendidas pelos sentidos

humanos no Plano do Real qual representações; na natureza visível, apreensível pelos sentidos,

habitariam espécies semelhantes aos modelos ideais, apenas cognoscíveis pelo intelecto do

filósofo, devidamente desenvolvido.

Por um lado, as formas em si, como modelos, jazem na natureza, por outro lado, as outras coisas se parecem com elas e lhes são semelhantes, e a participação como tal das outras coisas nas formas não consiste senão em se parecerem aquelas com estas (PLATÃO, 2006, p. 70).

1 O conceito atrelado ao termo grego παιδεία (paideía) tem a conotação mais ampla que a palavra educação pode ter. Presumia, entre outros processos, o convívio dos melhores cidadãos da pólis em comunas nas quais passariam por três estágios educacionais, nos quais lapidariam as qualidades do corpo, por intermédio da ginástica; da alma, por meio do aprendizado musical; e, então, empenhariam um processo de noésis: o mais profundo saber, a proximidade com o “Intelecto divino”, somente reservado ao filósofo, àquele que “ama o saber”.

2 O termo ιδέα (idéa) é utilizado por Platão como delimitador fundamental de sua filosofia em estreita consonância com o termo ουσία (ousía), cujo conceito mais próximo é o de essência, de substância, o ideal das coisas concretizadas e representadas na natureza. Em verdade, ambos os termos estabelecem a divisão que Platão propõe entre o Mundo do Sensível (aquele apreendido pelos sentidos humanos) e o Mundo Ideal (aquele a ser atingido por um processo de noésis – ver nota anterior).

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É possível notar que Platão introduz um conceito que será balizador da teoria estética

de Aristóteles, seu discípulo, o conceito de imitação3. Se as formas reais têm a consistência maior

de sua participação nas formas ideais por um traço de parecença, podemos estabelecer um

parâmetro subjacente às palavras do autor; as formas reais, em certa medida, “imitam” as formas

ideais. O conceito de mímisis, de imitação, não se restringe às formas reais da natureza, mas se

estende a uma atividade humana: a confecção das representações artísticas. Produtor de obras

artísticas e apreciadores de tais obras estariam envolvidos, necessariamente, pelo conceito de

imitação. No diálogo Teeteto, Platão designa à personagem “estrangeiro” a função de dialogar

com Teeteto. A personagem, então, principia seu texto com uma indagação:

Ora, conheces alguma forma de brincadeira mais sábia e mais graciosa que a mimética? [...] Assim, o homem que se julgasse capaz, por uma única arte, de tudo produzir, como sabemos, não fabricaria, afinal, senão imitações e homônimos das realidades. Hábil, na sua técnica de pintar, ele poderá, exibindo de longe os seus desenhos, aos mais ingênuos meninos dar-lhes a ilusão de que poderá igualmente criar a verdadeira realidade, e tudo o que quiser fazer (PLATÃO, 2007, p. 96).

Ao concretizar sua produção artística, o homem estaria a imitar, primeiramente, o

mundo real, que ele apreende pelos sentidos, e, por conseguinte, o Mundo das Ideias, referencial-

primeiro a ser imitado. Assim, podemos inferir que, ao realizar uma obra artística, o homem

estaria a imitar as formas Ideais. Tais formas Ideais são as formas chamadas em si. A imitação

artística, portanto, faria referência às formas-em-si. Desse modo, a representação do Belo4

responderia ao belo-em-si, o Belo universal, ideal, essencial.

3 O conceito de imitação provém do termo grego μίμησης (mímisis), derivado do nome da Deusa da memória Mnemosine, mãe das Musas (primeiramente em número de nove irmãs, que compunham um coro que entoava hinos em louvor à vitória de Zeus e dos deuses do Olimpo sobre os seis filhos de Urano, os Titãs).

4 O Belo, em Platão, é encontrado no termo όμορφος (ómorfos), em regra ladeado pelo Bom καλός (kalós) e pelo Justo δίκαιος (díkaios). Seriam o Bom, o Belo e o Justo as três maiores Virtudes αρετή (aretí) pertencentes e constituintes do Mundo das Ideias. Mais adiante será apresentado o conceito de complacência kantiano, que traz em si o mesmo radical do Belo grego.

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[...] há muitas coisas belas e muitas coisas boas e outras da mesma espécie, que dizemos que existem e que distinguimos pela linguagem [...] E existe o belo em si, e o bom em si, e, do mesmo modo, relativamente a todas as coisas que então postulamos como múltiplas, e, inversamente, postulamos que a cada uma corresponde uma idéia, que é única, e chamamos-lhe a sua essência [...] E diremos ainda que aquelas são visíveis, mas não inteligíveis, ao passo que as idéias são inteligíveis, mas não visíveis (PLATÃO, 1983, p. 302).

Em consonância com seu mestre, Aristóteles, em seu livro Poética, parte do conceito

de Belo como um Bem-em-si, o Belo em sintonia estreita com o Bom, e empenha seus esforços

na definição dos conceitos e, sobretudo, dos gêneros dramáticos em voga nos meados do século

IV A.C. (O filósofo, neste estudo esotérico5, visava a compreender, delimitar e catalogar o drama

encenado: as representações cênicas que, cerca de 70 anos antes da produção de seu texto, faziam

parte de um evento cívico anual, realizado em teatros a céu aberto, e que deram origem aos

gêneros literários da tragédia, de comédia e da epopeia; vale ressaltar que o objeto principal do

estudo aristotélico é menos a encenação e mais a construção do texto encenado).

Aristóteles tem como princípio de sua discussão acerca da estética o pólo da produção

da mensagem artística (posto o texto tratar da instância da poética), delimitada pelo conceito de

“imitação”, já apontado por Platão; a criação artística teria sua origem na necessidade intrínseca e

na capacidade natural de o ser humano imitar aquilo que lhe encanta primordial e primeiramente

pelo sentido da visão.

É possível perceber que toda a poética tem na sua origem duas causas, ambas naturais. De fato, no ser humano a propensão à imitação é instintiva desde a infância, e nisso ele se distingue de todos os outros animais: ele é o mais imitativo de todos, e é através da imitação que desenvolve seus primeiros conhecimentos. É igualmente por intermédio dela que todos experimentam naturalmente prazer. É indício disso um fato comum, a saber, experimentamos prazer com a visão de imagens sumamente fiéis de coisas que contemplaríamos penosamente, do que

5 Os textos aristotélicos são divididos basicamente entre aqueles denominados “esotéricos” e os chamados “exotéricos”. Os primeiros seriam as obras produzidas a partir de estudos realizados internamente no Liceu, a escola de Aristóteles, na qual o Estagirita praticava sua filosofia; os segundos seriam as obras produzidas para leitores também não-pertencentes ao Liceu.

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constituem exemplos as formas dos animais selvagens mais repugnantes e dos cadáveres (ARISTÓTELES, 2011, p. 44).

É possível notar que, atrelado ao conceito de imitação, Aristóteles apresenta o

conceito de prazer6; a rigor, neste caso, o prazer estético. O filósofo distingue precisamente uma

faculdade pertencente ao esteta frente a uma obra de arte, pois nota o procedimento natural de

adequação da observação ao universo da representação, em detrimento do âmbito do real; o

observador, ao contemplar a obra de arte, coloca-se na posição de esteta e tem como ponto de

partida a abstração intrínseca à obra de arte, ainda que esta tenha como propósito imitar a

realidade.

O prazer, na concepção aristotélica, mantém vínculo estreito com o conhecimento;

especificamente o prazer estético, por sua vez, não poderia deixar de mantê-lo. Aristóteles tem o

cuidado de ressaltar, no entanto, distintas dimensões de conhecimento e, por conseguinte, de

prazer; naturalmente, o prazer estético de maior dimensão é aquele que pode ser atingido por

aquele que tem como modo de vida a busca pelo conhecimento: o filósofo. Tais distintas

dimensões de prazer teriam sua gradação dada pela capacidade de compreensão racional daquilo

que se vê. Portanto, Aristóteles insere o prazer estético na concepção do entendimento; àquele

que melhor entende a obra de arte é proporcionado o maior prazer estético.

A explicação é que o conhecimento proporciona regozijo não apenas em filósofos, como igualmente a todas as demais pessoas, embora estas últimas tenham nisso uma menor participação. Olhar imagens faz as pessoas experimentarem prazer, porquanto essa visão resulta na compreensão e no raciocínio em relação ao significado de cada elemento das imagens, conduzindo ao discernimento a essa ou àquela pessoa (ARISTÓTELES, 2011, pp. 44-45).

De modo preciso e cauteloso, Aristóteles não deixou de considerar a espécie de

obra de arte que não tem um caráter primordialmente imitativo. Ainda que raras no momento 6 O conceito de prazer, em Aristóteles, tem caráter bastante amplo e não se limita apenas e tão somente à sensação; o prazer aristotélico, cunhado pelo termo ευχαρίστηση (efcharístisi), tem vínculo estreito com a noção de completude e de gratidão pelo compartilhar, no termo derivado ευχαριστία (efcharistía), posto a tradução para o latim apontar para a expressão gratiarum actio, o sentido pleno do termo eucaristia. O mesmo termo terá, na filosofia de Kant, a declinação para o conceito de complacência – ver nota 13, p. 28.

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histórico grego, as obras cuja ficcionalidade se distanciavam largamente do objeto real

proporcionariam ao esteta ainda outra possibilidade de prazer, também ligada ao entendimento

(ou à suposição de entendimento) do observador no que concerne a elementos técnicos ou

conceituais empregados pelo artista: “Se, porventura, acontecer de o objeto representado não

haver sido ainda visto, não é a imitação que gera o prazer, mas sim a execução da obra, a cor ou

uma outra causa semelhante” (ARISTÓTELES, 2011, pp. 44-45).

Ocupado em dissecar o fazer poético, Aristóteles determinava parte do fazer

estético, adentrava a seara da experiência estética, a saber, a faculdade de o apreciador da obra de

arte separar em dois grandes campos obras de caráteres distintos: a obra definida por um traço

indefectível de qualidade7 e a obra desprovida de uma construção rica em elementos expressivos;

numa palavra, a obra de arte de qualidade e a obra de arte sem qualidade poética:

Como a imitação nos é natural, tal como o são a harmonia e o ritmo (é evidente que a métrica faz parte dos ritmos), originalmente aqueles dotados de talentos naturais no que se refere a essas coisas aos poucos se desenvolveram e, a partir de improvisações, criaram a poesia. Esta subdividiu-se em dois ramos, em consonância com o caráter moral de seus criadores, ou seja, os indivíduos mais sérios dedicaram-se à imitação de ações nobres e daqueles que a realizavam, ao passo que os indivíduos mais vulgares representavam a ação de pessoas vis, tendo eles iniciado produzido invectivas, enquanto os primeiros produziam hinos e encômios [...] Tal como Homero foi o poeta máximo dos assuntos sérios (já que foi preeminente não apenas do prisma da qualidade como também naquele da criação da imitação dramática), foi igualmente o primeiro a esboçar as formas da comédia (ARISTÓTELES, 2011, p. 45).

A poesia encenada dividiu-se, nesse primeiro momento, em dois ramos: aquelas

construídas por autores “sérios”, pautadas pelo rigor na busca pela qualidade e as construídas por

autores “vulgares”, pautadas pela ausência de rigor na busca pela qualidade. As matrizes do que 7 A relação entre os conceitos de poesia, poética e qualidade fica evidenciada pelo radical do termo grego. Ποίησης (poíisis), Ποιητικός (poiitikós), Ποιότητα (poiótita). Os conceitos, entreleçados, partem do radical Ποί (poí) e se distinguem apenas nas declinações. Vale ressaltar que o termo que designa poesia Ποίησης (poíisis) carrega consigo um significado muito mais amplo do que aquele dado apenas à confecção de textos métricos ou rimados. O termo indica uma espécie de “fazer”, uma atividade de realização humana ligada primordialmente à arte mas que se apresenta igualmente a toda e qualquer atividade produtiva do homem sobre a Terra.

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chamamos de “tragédia” e “comédia” estavam ali dadas por Homero, o autor-maior, que

inaugurou ambos os gêneros e, rapidamente, abandonou o segundo em favor do primeiro.

Como dissemos, a comédia é imitação de caracteres mais inferiores, ainda que não completamente viciosos; mais propriamente, o ridículo constitui parte do disforme. O ridículo, de fato, compreende qualquer defeito e marca de deformidade que não implicam em dor ou destruição [...] Ora, as etapas de desenvolvimento relativas à tragédia, bem como os autores nela envolvidos, têm sido lembrados por nós, ao passo que a história inicial da comédia mergulhou no esquecimento, porque não despertou nenhum sério interesse. (ARISTÓTELES, 2011, p. 47).

Inserido no gênero da tragédia, o Poema Épico permitiu a Aristóteles um par de

reflexões fundamentais para o estudo da estética: 1) há o texto de boa e o texto de má qualidade;

2) há a definição dos gêneros, precisamente delimitada pelo uso dos recursos de linguagem:

“Assim, aquele que sabe discernir entre a tragédia de boa qualidade e a deficiente, sabe o mesmo

no tocante à epopeia, visto que os recursos da epopeia são encontrados na tragédia, enquanto nem

todos os recursos da tragédia são encontrados na epopeia.” (ARISTÓTELES, 2011, p. 48). O

qualificativo intrínseco à obra e, por conseguinte, ao uso dos recursos de linguagem por parte de

seu autor, tem a mesma raiz em ambos os termos poética e qualidade.

O vínculo entre o objeto de estudo de Aristóteles, o Drama Encenado, e o objeto

do presente estudo, a Música, se dá mais pelo modelo constitutivo do gênero do que pela

encenação do gênero, realizado em festas cívicas anuais cerca de 70 anos antes da concepção do

texto do livro Poética. Os dramas eram encenados mantendo o diálogo entre um coro cênico e um

conjunto de, no máximo, três protagonistas; o texto dos dramas, no entanto, ocupação primordial

do autor, era rimado e não raras vezes entoado pelos autores qual cânticos e hinos. Desse modo,

um elemento era vital na construção do texto encenado: a métrica dos versos, encampada pelo

ritmo das falas (ou dos cantos). No estudo específico do gênero da tragédia, Aristóteles aponta a

importância dos elementos musicais e define ali, ainda que não fosse músico, o que se conhece

até os dias de hoje como as partes constitutivas da Música: ritmo, harmonia e melodia8.

8 ρυθμος και αρμονία και μελος (rythmon kai armonian kai melos). Os três elementos fundamentais da Música. O primeiro, que tange, à dimensão dupla da perspectiva e da profundidade dos sons distintos no

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Ocupemo-nos agora da tragédia, tomando a definição de sua essência. Tragédia é, assim, a imitação de uma ação séria, completa, que possui certa extensão, numa linguagem tornada agradável mediante cada uma de suas formas em suas partes [...] Entendo por agradável, no que respeita à linguagem, o que reúne ritmo e harmonia e, por separação de suas formas, o fato de que algumas partes são transmitidas exclusivamente pela métrica, enquanto outras pela melodia (ARISTÓTELES, 2011, p. 49).

O Estagirita, reforçando o conceito de essência, herdado de Platão, amalgamou os

principais conceitos da instância poética, da produção da mensagem artística, e da instância

estética, da apreciação da mensagem artística. No entanto, necessário seria definir o conceito

intrínseco à própria mensagem. Necessariamente, no caso da tragédia, o elemento constitutivo de

seu caráter de obra plena em qualidade. De onde proviria a qualidade da obra? De sua estrutura:

“Apresentadas essas definições, discutamos na sequência as qualidades necessárias à estrutura

dos fatos, visto ser esta algo primordial e o mais importante da tragédia” (ARISTÓTELES, 2011,

p. 52).

O modo de estruturar a obra de arte (no caso específico, a tragédia, mas o conceito

é extensivo a toda produção artística), o modo como o artista estrutura a sua mensagem, define o

caráter da obra entre aquela que busca a qualidade e aquela que prescinde desta. O artista que

melhor domina a língua específica de uma arte pode se valer de modo mais preciso do uso dos

recursos de linguagem e, assim, pode melhor conceber a estruturação do discurso de sua obra;

pode, enfim, melhor imitar o Belo pertencente ao Mundo das Ideias de Platão ou a Forma do Belo

aristotélico.

Interessa que a imitação seja uma e integral e que as partes sejam estruturadas de tal maneira que, se uma ou outra delas for deslocada ou removida, o todo será modificado e abalado, uma vez que aquilo cuja presença ou ausência carece de uma clara significação não constitui uma parte integrante do todo (ARISTÓTELES, 2011, p. 54).

tempo, o segundo à dimensão vertical dos sons executados simultaneamente, o terceiro à dimensão horizontal dos sons executados separadamente.

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O pensamento de ambos os autores gregos é utilizado neste trabalho no sentido de

estabelecer e definir com precisão o conceito de “belo”, pois ao dividir as espécies de produção

musical entre aquelas a que chamamos de música de qualidade e aquelas às quais definimos

como estruturadas sobre escasso aproveitamento dos recursos de linguagem, estamos, em certa

medida, a atrelar o que chamamos de qualidade musical à estruturação de seu discurso

harmônico, melódico, rítmico e literário; a qualidade, portanto, vem ligada a elementos

estruturantes definidos e definíveis; assim, a beleza de uma obra de arte (no caso específico, mais

precisamente, de uma obra musical), ligada intrinsecamente à sua qualidade constitutiva,

estrutural, responde ao Belo-em-si, ao Belo “essencial” como o denominou Platão e à “Forma”

do Belo, como o definiu Aristóteles.

Além do conceito de Belo, encontraremos em Platão e Aristóteles também o conceito

de “arte” e, mais do que isso, da Música como forma de arte discursiva, pois atrelada à literatura

(ao tratarmos da exposição de produção musical dentro da mídia televisiva estaremos tratando de

música popular; portanto, a música em regra somada à letra).

Platão traz o conceito de Música como o elemento primordial da Educação, da

paideia, o processo que pode elevar a alma do homem comum (porém submetido ao processo de

Educação) ao patamar de “filósofo”. Aristóteles, por sua vez, apresenta o conceito da produção

artística – notadamente da Música – como a poiesis propriamente dita. Ao tratarmos da instância

da produção musical, portanto, encontramos a poética aristotélica.

Ainda traremos da obra de Aristóteles o conceito de qualidade ligado necessariamente

à estrutura da obra, conceito este que permite o elo entre o seu pensamento e o pensamento do

filósofo alemão Immanuel Kant.

Distante (no tempo) cerca de 2100 anos, os filósofos têm proximidade pronunciada

no que tange às concepções de poética, estética e qualidade de uma obra de arte.

Em verdade, o traço de similaridade entre os pensamentos acerca da estruturação da

obra de arte como elemento balizador do que se chama “qualidade” artística vai para além

daquele a ser estabelecido entre Kant e Aristóteles; remonta a Platão. Ao mencionar uma situação

hipotética ligada a uma das artes plásticas, Platão inaugura o pensamento sobre a estrutura como

cerne da qualidade, absolutamente independente de todo e qualquer aparato não pertencente a ela.

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Era como se estivéssemos a pintar uma estátua e alguém nos abordasse para nos censurar, dizendo que não aplicávamos as tintas mais belas nas partes mais formosas do corpo (de fato, os olhos, sendo a coisa mais linda, não seriam sombreados com cor de púrpura, mas a negro). Parece que nos defenderíamos convenientemente replicando: “Meu caro amigo, não julgues que devemos pintar os olhos tão lindos que não pareçam olhos, nem as restantes partes, mas considera se, atribuindo a cada uma o que lhe pertence, formamos um todo belo” (PLATÃO, 1983, pp. 188-189).

Portanto, para Platão, o Belo, que empresta o teor de qualidade a uma obra de arte, é

ligado necessariamente à sua estruturação. A essência da obra não depende de elementos

extrínsecos à sua estrutura.

Aristóteles reafirma o mesmo pensamento de seu mestre ao partir de seu

referencial ligado à tragédia, mas direcionando a exemplificação também a uma das artes

plásticas (definindo o desenho como o elemento-primeiro de uma pintura, como o elemento

estruturante da obra de arte que em breve receberá as cores). O entrelaçamento entre os textos

produzidos é notável:

Assim, a narrativa (roteiro) é o princípio e, por assim dizer, a alma da tragédia [...] algo semelhante é válido na arte do desenho e da pintura: se um artista cobrir uma superfície das mais belas cores, porém o fazendo casualmente, nos proporcionará menos prazer do que mediante uma imagem bem traçada num desenho sem pintura (ARISTÓTELES, 2011, p. 51).

Kant, mais de dois milênios depois, também se vale das artes plásticas em seu

exemplo que define a estrutura como elemento determinante na qualificação de uma obra de arte.

O grifo é do próprio autor:

Na pintura, na escultura, enfim em todas as artes plásticas; na arquitetura, na jardinagem, na medida em que são belas artes, o desenho é o essencial, no qual não é o que deleita na sensação, mas simplesmente o que apraz por sua forma o que constitui o fundamento de toda a disposição para o gosto. As cores que iluminam o esboço pertencem ao atrativo; elas, na verdade, podem vivificar o objeto em si para a sensação, mas não torná-lo belo e digno de intuição; antes, elas em grande parte são limitadas muito por aquilo que a forma bela requer, e mesmo lá, onde o atrativo é admitido, são enobrecidas unicamente por ela. (KANT, 2002, p. 71).

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O filósofo alemão mantém concordância com Platão, pois caracteriza a experiência

estética no âmbito da contemplação9, contudo, aproxima-se ainda mais de Aristóteles quando

divide as áreas de interesse do observador entre dois conceitos: o de “objeto artístico” e o de

“objeto natural”. Diferentemente de Platão, a quem importa sobremaneira o caráter de imitação

dos (assim chamados por Kant) objetos da natureza, para Kant importam os (em suas próprias

palavras) “objetos artísticos”. Ao definir que os objetos confeccionados pelo Homem, os “objetos

artísticos”, são passíveis e, a rigor, não deveriam prescindir da opinião, do juízo estético de quem

os aprecia, o autor estende o conceito de contemplação platônico para uma espécie de

“contemplação ativa”; vale dizer, uma contemplação na qual o observador partilha a experiência

da obra de arte na medida em que somente nele (e no julgamento que ele faz sobre a obra) se

completa a relação poética-estética que se estabelece entre autor, obra e apreciador.

Kant mantém vínculo estreito com Platão e Aristóteles no que tange ao conceito de

universalidade; para o autor, o Belo, que qualifica a obra de arte, é um conceito universal: “Belo

é o que apraz universalmente” (KANT, 2002, p. 64). Porém, Kant mantém vínculo apenas com

Aristóteles no que tange à apreciação e ao entendimento de uma obra; para ele, a percepção do

Belo e da qualidade da obra passam, necessariamente, pelo julgamento racional (por uma postura

ativa, portanto) do apreciador, precisamente ligado à sua capacidade de entender o que está

contido na obra.

Uma representação, que como singular e sem comparação com outras todavia possui uma concordância com as condições da universalidade, a qual constitui a tarefa do entendimento em geral, conduz as faculdades do conhecimento à proporcionada disposição que exigimos para todo o conhecimento e que por isso também consideramos válida para qualquer

9 ενατένιση (enaténisi), traduzido primeiramente para o latim contemplationis, tem, em ambos os mundos (grego e romano) o sentido de uma contemplação à qual poderíamos chamar de “contemplação passiva”, aquela na qual o observador não age sobre a obra, não interfere na obra, sequer interage com a obra. Vale ressaltar que o termo foi utilizado por Platão para se referir ao momento no qual o filósofo ascende ao Mundo das Ideias e contempla as Virtudes essenciais. Em Kant o termo ganha nova conotação pois justamente se refere aos “objetos artísticos”, criações humanas, não pertencentes a outro Mundo que não aquele em que o Homem vive.

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um que esteja destinado a julgar através do entendimento e sentidos coligados (para todo homem). (KANT, 2002, pp. 63-64).

Vale apontar aqui que o autor atrela as “faculdades do conhecimento” à “tarefa do

entendimento”. Desse modo, é necessário identificar que, em Kant, o conceito de entendimento

engloba as instâncias do entender e do compreender. Se a experiência estética engloba objeto

estático e percepção estética, naturalmente é gerada a interpretação do objeto no âmbito da

percepção. O processo de interpretação, na perspectiva da hermenêutica, extrapola “o que está

contido na obra” e encampa uma “tarefa do entendimento” que está para além da explicação,

mais próxima da compreensão, pois no polo da estética10 ocorre uma nova poética11.

Contudo, se para Kant o caráter especial da experiência estética provém da atitude do

observador frente a obra, tal “atitude” tem um caráter denominado “observação desinteressada”,

pois o observador não mantém vínculo de interesse com a obra, ela não lhe tem serventia ou

utilidade. A obra é o objeto de sua cognição; sua observação da obra tem como objetivo central

defini-la no sentido universal como uma obra que prima pela qualidade ou por uma obra que

prescinde dessa busca. Tal observação, encampada conscientemente pelo observador, não seria,

em hipótese nenhuma, uma observação passiva, pois a “atitude do observador” o coloca como

partícipe da existência da obra. Poderíamos, assim, estender a expressão “observação

desinteressada” para uma “observação desinteressada mas não passiva”: a observação que tem

como objetivo a atitude que reconhece o Belo Essencial (a rigor, nas palavras do autor,

“universal”) na obra de arte. A estética kantiana não abre mão do sentido do observador (que

capta a obra) e do entendimento do observador (que a qualifica).

Aquilo que na representação de um objeto é meramente subjetivo, isto é, aquilo que constitui a sua relação com o sujeito e não com o objeto é a natureza estética dessa representação; mas aquilo que nela pode servir ou é utilizado para a determinação do objeto (para o conhecimento) é a sua

10 αίσθησης (aísthi̱si̱s) é o termo grego traduzido para o Português como “percepção”, “capacidade de apreender”; o conceito é utilizado aqui como o local onde o objeto poético se completa, a instância do observador, do fruidor da obra de arte.

11 Ver nota 7, p. 19.

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validade lógica. No conhecimento de um objeto dos sentidos aparecem ambas as relações (KANT, 2002, pp. 32-33).

A contribuição de Kant é ainda mais valiosa quando a discussão se direciona para a

questão do conceito aristotélico de prazer. A pergunta é recorrente: Ora, se a apreciação da obra

de arte é dominada pela sensação de prazer ou desprazer de quem observa, como o conceito

estético pode se arvorar a ser universal?

A resposta é dada categoricamente e é fundamentada no conceito de entendimento,

tomado menos na chave da explicação, mais na chave da compreensão, como notado acima. O

grifo é do autor.

Porém, aquele elemento subjetivo numa representação que não pode de modo nenhum ser uma parte do conhecimento é o prazer ou desprazer, ligados àquela representação; na verdade através dele nada conheço no objeto da representação, ainda que eles possam ser até o efeito de um conhecimento qualquer (KANT, 2002, p. 33).

O prazer, cujo conceito na segunda metade do século XVIII já muito diferia do

conceito grego encontrado em Aristóteles, é definido por Kant na instância pessoal, que jamais

pode ser confundida com a instância universal, na qual se encontra o Belo e a qualidade da obra.

O prazer obtido na apreciação de uma obra de arte (a rigor também de outras atividades e

situações) é um juízo privado, no qual o apreciador tem a sensação de agradabilidade; não

mantém vínculo, portanto, com a qualidade intrínseca à estruturação de uma obra de arte.

Com respeito ao agradável, cada um resigna-se com o fato de que seu juízo, que ele funda sobre um sentimento privado e mediante o qual ele diz de um objeto que ele lhe apraz, limita-se também simplesmente a sua pessoa. Por isso, ele de bom grado contenta-se com o fato de que se ele diz: “o vinho espumante das Canárias é agradável”, um outro corrige-lhe a expressão e recorda-lhe que deve dizer “ele me é agradável”; e assim não somente no gosto da língua, do céu da boca e da garganta, mas também no que possa ser agradável aos olhos e ouvidos de cada um (KANT, 2002, pp. 56-57).

Em contrapartida, o Belo tem o caráter universal, é uma constituição de natureza

estruturante qualificada e habita, portanto, a própria coisa; a beleza é uma propriedade das coisas

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(retomaremos o conceito de coisa em breve). Em consonância com o conceito de Ser12 em Platão,

poderíamos afirmar que, segundo Kant, a beleza é.

Com o belo passa-se de modo totalmente diverso. Seria (precisamente ao contrário) ridículo se alguém que se gabasse de seu gosto pensasse justificar-se com isto: este objeto (o edifício que vemos, o traje que ele veste, o concerto que ouvimos, o poema que é apresentado ao ajuizamento é para mim belo. Pois ele não tem que denomina-lo belo se apraz meramente a ele. Muita coisa pode ter agrado e atrativo para ele, com isso ninguém se preocupa; se ele, porém, toma algo por belo, então atribui a outros precisamente a mesma complacência: ele não julga simplesmente por si, mas por qualquer um e neste caso fala da beleza como se ela fosse uma propriedade das coisas. Por isso ele diz: a coisa é bela (KANT, 2002, p. 57).

Chegamos, então, ao conceito kantiano de gosto. Para o autor, o gosto tem conotação

diametralmente oposta à opinião e ao agradável. O gosto kantiano situa-se muito próximo do

conceito de “apreensão do Belo”. Ao trazer o conceito de gosto, Kant introduz outro conceito

fundamental para toda a teoria estética: o conceito de complacência13.

Diferentemente do sentido usual de “permissividade”, complacência, em Kant,

responde ao conceito de prazer em Aristóteles. Para o filósofo alemão, complacência é o conceito

que completa toda a experiência estética; é o “ter prazer com”, “compartilhar o prazer”, no

sentido aristotélico. A complacência frente a uma obra de arte é o estágio em que o observador

entra em contato com a obra e consegue perceber conscientemente seu grau de qualidade e,

assim, entra em contato com o Belo. Tal momento é um momento em que observador e obra

12 Ον (on), o Ser, também utilizado Οντας (ontas), o Ser da coisa, é um conceito fundamental em Platão e abriu toda a discussão que perpassou a história da filosofia. Para Platão, as coisas naturais respondiam a um Ser, essencial, que não as habitava (pois habitava o Mundo das Ideias), mas que lhes permitia imitar a Forma.

13 O termo complacência, em Kant, mantém estreita ligação com a origem da palavra grega συμμόρφωση (symmórfoosi), traduzida comumente por “estado de observação”, “observância”. No entanto, Kant o utiliza com o sentido de “compartilhar do prazer”, de “comprazer-se”, de “comprazer-se com e pelo outro”, aproximando-se sobremaneira do conceito aristotélico de prazer Ευχαρίστηση (efcharístisi), já comentado anteriormente. Vale ressaltar que, em consonância com Platão, Kant utiliza o termo cujo radical grego όμορφος (ómorfos) aponta para o conceito grego de Belo – ver nota 4.

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partilham daquilo a que Platão chamaria de “contemplação do Mundo das Ideias”. Se observador

e obra partilham o mesmo prazer, podemos afirmar que autor, obra e observador compartilham

daquele prazer, se “comprazem”: “Gosto é a faculdade de ajuizamento de um objeto ou de um

modo de representação mediante uma complacência ou descomplacência independente de todo

interesse. O objeto de uma tal complacência chama-se belo” (KANT, 2002, p. 55).

Ancorados no pensamento filosófico apresentado até aqui, podemos entrelaçar uma

tríade de conceitos que nos serão vitais para a discussão estética acerca da produção musical

veiculada pela televisão: 1) há o Belo em si e este pode ser encontrado nas representações

artísticas; 2) o Belo se revela na produção da obra que apresenta a busca pela qualidade e o

esmero na construção de cada passo nessa busca; 3) a qualidade de uma obra de arte é

diretamente proporcional à capacidade do artista ao estruturar o seu discurso empregando os

recursos de linguagem que tem à sua disposição.

Vale notar que, nesta tríade, estamos ainda no âmbito restrito do objeto estético, na

instância da poética, portanto. Em adendo ao primeiro item da tríade, podemos sinalizar desde

aqui que o Belo, além de ser encontrado nas representações artísticas, também se concretiza na

percepção estética, na estética-em-si, na apreensão do receptor, marcada pelas mediações de seu

contexto cultural, em seu universo de compreensão, que está para além do entendimento, do

complexo decodificação-explicação, daquilo que foi proposto pelo autor. Voltaremos a isso.

No entanto, em busca de um quarto conceito, direcionamos este referencial teórico ao

pensamento do filósofo Friedrich Hegel.

Em regra considerado em oposição ao pensamento estético de Immanuel Kant, o

pensamento de Hegel não é aqui apresentado, em absoluto, com o intuito de ressaltar os pontos

em que ambos divergem. É sabido o ponto de discordância entre os pensamentos: se Kant

reforçava a experiência estética como a experiência pura do Belo, distante dos interesses (fossem

estes cognitivo, ético ou sensorial), Hegel tem o Belo atrelado aos interesses (sobretudo ético e

cognitivo) que a arte propicia, pois seriam as obras de arte, “o belo através do prisma do objeto

particular, contingente e sensível, embora ele seja, durante longos séculos, o mediador do

movimento do espírito” (HEGEL, 2010, p.174).

No entanto, nosso interesse é encontrar as similaridades entre os dois pensadores,

pois é possível fazer notar bastantes similaridades entre as filosofias de Kant e Hegel no que

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tange às questões estéticas. Tais similaridades trarão contribuição preciosa para nossa

argumentação. Ademais, foram expostas primeiramente pelo próprio Hegel, que menciona a

filosofia kantiana como aquela que trouxe como protagonista o conceito aristotélico (em

complemento ao platônico) de um Belo que não habita um locus abstrato mas, sim, a realidade

tangível da natureza.

O belo artístico foi reconhecido como um dos meios que resolve e reconduz a uma unidade aquela contraposição e contradição entre o espírito que repousa em si mesmo abstratamente e a natureza [...] A filosofia kantiana sentiu este ponto de unificação em sua necessidade, como também o reconheceu e o representou de modo determinado” (HEGEL, 2008, p.74).

Para Hegel, portanto, não há uma dicotomia entre os pensamentos de Platão e

Aristóteles quanto ao Belo, pois é possível trazer a ideia de Belo, pertencente ao Mundo das

Ideias de Platão, para o plano do real: “o belo é a Idéia enquanto unidade imediata do conceito e

de sua realidade” (HEGEL, 2008, p.131).

No entanto, para fazer a ligação entre Platão e Aristóteles, Hegel lança mão do

conceito de conceito.

Diferentemente do que poderia parecer no primeiro instante, apesar de atrelar “belo,

ideia e conceito”, o conceito hegeliano afasta-se de ser uma representação abstrata da realidade.

Hegel utiliza o termo platônico justamente para não se referir a uma espécie abstrata de

universalidade; do mesmo modo, não o utiliza em concordância com o Kant definira como “uma

representação universal daquilo que é comum a vários objetos” (KANT, 2002, p. 66); para Hegel,

o conceito está para além do plano da representação e até mesmo do plano cognitivo,

pertencendo, assim, ao plano ontológico, pois “o conceito possui uma dominância sobre a

realidade, uma vez que esta é autodesenvolvimento daquele” (HEGEL, 2008, p.134). A realidade

da obra de arte é a concretização do conceito hegeliano. Vale notar a proximidade, mencionada

pelo próprio autor, com o pensamento aristotélico no sentido de aproximar conceito (em Hegel) e

potência (em Aristóteles), pois o primeiro seria a segunda que “se efetiva, se realiza, na sua

realidade sem se perder nela” (HEGEL, 2008, 133) e, num amálgama bastante sólido, juntar-se,

também, pela primeira vez na história da filosofia, a Platão, aproximando conceito, potência e

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ideia: “A Idéia é um todo segundo os dois lados do conceito subjetivo e objetivo, mas ao mesmo

tempo a concordância e unidade mediadas, que eternamente se realizam e se realizaram, destas

totalidades (HEGEL, 2001, 125).

A inegável contribuição de Hegel para o pensamento estético reside, assim, no

resgate daquilo a que ele chama de uma “união espiritual” entre o objetivo (no caso específico da

arte, a obra) e o subjetivo (o que o observador concretiza dentro de si quando em exposição à

obra, em seu processo de interpretação – e consequente compreensão – de um Belo que está para

além do entendimento do que está contido numa obra de arte). A obra de arte imita a ideia

essencial, se concretiza num objeto poético, é apreendida pelo sentido do observador e este tem a

possibilidade de vislumbrar aquilo que não é apreensível pelos sentidos:

Uma segunda forma da união espiritual entre o objetivo e o subjetivo é a Arte: ela aparece mais na realidade sensível do que a religião; na sua mais nobre atitude ela deve representar não, na verdade, o espírito de Deus, mas a forma do deus — e depois, o divino, o espiritual, em geral. Ela torna o divino visível para a imaginação e os sentidos (HEGEL, 2001, p.59)

No entanto, outras duas contribuições fundamentais são trazidas por Hegel: a

primeira delas trata da intrínseca ligação entre conteúdo e forma numa obra de arte. A

estruturação da obra não pode, segundo o autor, prescindir da riqueza de concepção do conteúdo

em detrimento da forma; tampouco, de modo inverso, esta deve ser plenamente bem estruturada

em detrimento daquele.

Para tanto, Hegel recorre novamente a Aristóteles e, dele, empresta os conceitos de

justa medida14 (“o razoável”) e de finalidade15 (“um objetivo em si mesmo”):

14 δίκαιο μέτρο (díkaio métro) ou μέσον (méson) indicam, em Aristóteles, a justa medida, o conceito fundamental da ética aristotélica, segundo o qual os extremos são perigosos e, próximo ao meio-caminho entre eles, encontra-se a Virtude.

15 τέλος (télos) é um conceito-chave da filosofia aristotélica, a finalidade, atrelada à autossuficiência. Segundo o Estagirita, as ações humanas devem ter um fim para as quais eles foram preparadas e geradas; em lugar da ação-que-leva-a-outra-ação, as ações finais trazem em si a essência de sua própria existência. O conceito se estende do âmbito das ações para todo o restante da vida humana.

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O conteúdo e a forma estão ligados tão intimamente em um trabalho de arte, que o primeiro só pode ser clássico até o ponto onde o último o seja. Com um fantástico conteúdo que não se limita intrinsecamente — o razoável é exatamente aquilo que tem uma medida e um objetivo em si mesmo — a própria forma se torna desmesurada, e informe ou (ao inverso do conteúdo) insignificante e limitada (HEGEL, 2001, p.77).

A segunda contribuição será encontrada no conceito hegeliano de uma arte ligada

intrinsecamente à história. Hegel situa a arte como um “fenômeno histórico” e como uma

“articulação lógica do espírito” (HEGEL, 2001, p. 174). Nota-se a ocupação do autor em inserir,

qual Kant o fizera, a experiência estética também no âmbito do entendimento; a razão, de modo

lógico, categorizaria e qualificaria o objeto apreendido pelo observador. Contudo, Hegel desloca

o locus da experiência estética de Kant e nos leva à necessidade de se encontrar o tempo da

produção da obra de arte e o momento histórico-cultural onde ela se encontra nas sociedades. A

arte, juntamente com a filosofia, são elementos constituintes de um povo, de uma construção

social que se dá tanto no espaço quanto no tempo, adquirindo, assim, importância similar aos

elementos da natureza e da geopolítica. A experiência estética, portanto, extrapola em muito os

limites da contemplação e ganha referenciais sociais, políticos, geográficos e, sobretudo,

históricos.

[...] a constituição de um povo é feita da mesma matéria e do mesmo espírito de sua arte e filosofia ou, pelo menos, de sua inventividade, seus pensamentos e sua cultura geral — para não se mencionar as outras influências exteriores do clima, de seus vizinhos e de sua posição no mundo (HEGEL, 2001, p. 96).

Hegel propõe a superação da “imediatez da experiência estética”, delimitando a

função determinante do tempo histórico da obra de arte. Partindo do contexto do mundo grego

(ligado à mitologia até o século V A.C e que traçou um arco de transformações sociais, políticas e

artísticas ao longo de aproximadamente 200 anos até ver-se ligado à presença, existência e,

primordialmente, consciência do Homem na Terra), o autor realça a importância da experiência

estética como uma das formas de constituição da realidade propriamente dita.

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A realidade observada e observável é uma base mais sólida para a história do que a transitoriedade dos mitos e dos épicos. Uma vez que um povo atingiu a individualidade estável, essas formas deixam de ser a sua essência histórica (HEGEL, 2001, p.45)

A tríade conceitual de que dispúnhamos transformou-se numa tétrade: 1) há o Belo

em si e este pode ser encontrado nas representações artísticas; 2) o Belo se revela na produção da

obra que apresenta a busca pela qualidade e o esmero na construção de cada passo nessa busca; 3)

a qualidade de uma obra de arte é diretamente proporcional à capacidade do artista ao estruturar o

seu discurso empregando os recursos de linguagem que tem à sua disposição; 4) a obra de arte,

seja ela estruturada mediante o excelente uso dos recursos de linguagem, seja ela estruturada com

recursos de linguagem parcos, está inserida num contexto histórico e, portanto, sociocultural.

O quarto item da tétrade conceitual nos aproxima da instância da estética, qual

sinalizamos no adendo à tríade anterior16. Não mais restritos ao âmbito do objeto estético,

circunscritos à instância da poética portanto, podemos notar que a obra de arte está inserida num

contexto histórico-sociocultural tanto no que diz respeito ao momento de sua criação quanto no

que diz respeito a todos os momentos históricos subsequentes de sua fruição por receptores

inseridos em distintos contextos socioculturais.

Há pouco sinalizamos que retomaríamos um termo colhido durante a construção do

elo entre os pensamentos de Kant e Platão, a saber, o conceito de coisa17.

Martin Heidegger, já pelo meado do século XX, encampou a discussão estética a

partir do ponto de vista da análise da própria obra de arte enquanto tal. Interessava ao autor

descortinar a origem da obra de arte, título de seu livro. O pensamento do autor é, em princípio,

aparentemente discrepante, pois em lugar de lançar o olhar-primeiro ao observador, empenha a

discussão estética a partir da obra de arte:

16 Ver p. 41.

17 Ver p. 40.

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Originário significa aqui aquilo de onde e através do que algo é o que ele é e como ele é. A isto o que algo é, como ele é, chamamos sua essência. O originário de algo é a proveniência de sua essência. A pergunta pelo originário da obra de arte pergunta pela proveniência de sua essência (HEIDEGGER, 2012, p. 15)

Porém, um segundo e mais detido olhar apresenta uma discrepância ainda maior: o

autor direciona o olhar para a instância da produção da obra de arte, para o artista em sintonia

profunda com sua obra, de modo a não-serem um sem o outro:

A obra surge através e a partir da atividade do artista, segundo a opinião corrente. Porém, de onde e através do que o artista é o que é? Através da obra, pois dizer-se que uma obra faz o mestre significa que somente a obra deixa o artista aparecer como um mestre da arte. O artista é a origem da obra. A obra é a origem do artista. Nenhum é sem o outro. Do mesmo modo também nenhum dos dois sustenta sozinho o outro. Artista e obra são em-si e em sua mútua referência através de um terceiro, que é o primeiro, ou seja, através daquilo a partir de onde artista e obra de arte têm seu nome, através da arte (HEIDEGGER, 2012, p. 15).

Somente pela terceira mirada encontramos o fundamento do pensamento do autor:

Heidegger intenta encontrar a essência da Arte, propriamente dita. Completando o ciclo

filosófico, o pensador alemão resgata o conceito platônico de essência para encontrar o Ser da

arte.

[...] a pergunta pelo originário da obra de arte torna-se a pergunta pela essência da arte. Uma vez que é preciso ficar em aberto se e como a arte é em geral, deveremos procurar achar a essência da arte lá onde indubitável e realmente vigora. A arte vige na obra de arte. Mas o que é e como é uma obra de arte? (HEIDEGGER, 2012, p. 15).

Heidegger inicia a busca pelo Ser da arte introduzindo o conceito de coisa18. O autor,

novamente, parece tomar um rumo discrepante de pensamento, afinal, principia o raciocínio

18 Utilizaremos nesta nota a explicação do próprio Heidegger, encontrada no próprio texto que se segue à citação: “Estas denominações não são quaisquer nomes. Nelas fala, o que aqui não é mais para mostrar, a fundamental experiência grega do ser do ente, no sentido de presença. Porém, através destas determinações fundamenta-se, desde então, a interpretação normativa da coisidade da coisa e se fixou a interpretação ocidental do ser do ente. Ela começa com a recepção das palavras gregas no pensamento

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acerca de Ser justamente pelo ente, a coisa. No entanto, desta feita, já no primeiro olhar notamos

a intenção do autor: respeitando todo o seu caminho filosófico, Heidegger está a olhar o ente

justamente porque tem o ente como o Ser-aí.

O que é em verdade a coisa enquanto é uma coisa? Quando assim perguntamos, queremos conhecer o ser-coisa (a coisidade) da coisa. Trata-se de experienciar a coisidade da coisa. Para isso temos que conhecer o âmbito ao qual pertence todo aquele ente que nós há muito designamos com o nome coisa (HEIDEGGER, 2012, p. 17).

Definido o conceito de coisa, o passo seguinte é estabelecer que o conceito não se

reduz aos objetos visíveis e palpáveis mas, também, ao invisível e ao impalpável. Em perfeita

consonância com Platão e Kant, o autor propõe que o ente é a coisa e a coisa que não aparece é a

coisa-em-si, o Ser da coisa, o Ser-aí. Lentamente somos conduzidos à esfera intangível do

universo do observador das coisas, do apreciador de uma obra de arte, daquilo a que chamamos

polo da estética.

A pedra no caminho é uma coisa e também o torrão de terra. A jarra é uma coisa bem como a fonte no caminho. Mas o que dizer do leite na jarra e da água da fonte? Também estes são coisas, se as nuvens no céu e o cardo no campo, se a folha no vento do outono e o açor sobre a floresta se denominam de fato coisas. Tudo isto tem que ser efetivamente denominado uma coisa, se até se designa também com o nome coisa o que propriamente não se mostra como o enumerado até agora, quer dizer, o que não aparece. Uma tal coisa, que como tal não aparece, uma “coisa-em-si”, é, segundo Kant, por exemplo, a totalidade do mundo, uma tal coisa é até mesmo o próprio Deus. Coisas-em-si e coisas que aparecem, todo ente que é, chama-se na linguagem filosófica uma coisa (HEIDEGGER, 2012, p. 17).

romano-latino. Hypokeimenon torna-se subjectum; hypostasis torna-se substantia; symbebekós torna-se accidens. Esta tradução dos nomes gregos para a língua latina não é de modo algum um fato sem conseqüências em relação a eles, como hoje ainda é julgado. Por detrás da tradução [Übersetzung], aparentemente literal e com isso preservadora, esconde-se muito mais um transpor [“uber-setzen] da experiência grega para um outro modo de pensar. O pensar romano assume as palavras gregas, traduzidas sem a experienciação igualmente originária que corresponda ao que elas dizem, sem a experiencial palavra grega. Com este traduzir começa a carência de chão firme do pensamento ocidental.”

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Tal como Hegel, Heidegger pensa indissociáveis forma e conteúdo. No entanto, pensa

o Ser da coisa para além do conteúdo da coisa. O Ser da coisa está para além da própria coisa

pensada no âmbito restrito do objeto estético, que se encontra sob a égide do fazer poético. O Ser

da coisa, qual sentido estético, estaria revelado na experiência estética, que envolveria os atores

(e seus contextos históricos-socioculturais) do processo que se concretiza na apreensão estética.

O autor, então, vale-se dos termos gregos para encontrar o conceito de subtância,

substrato, fundamento.

Claramente a coisa não é somente a reunião de características e também não é a acumulação das propriedades através das quais então surge o con-junto. A coisa é, como qualquer um acredita saber, aquilo em torno do qual as propriedades se reuniram. Fala-se então do cerne das coisas. Os gregos devem ter nomeado isto to hypokeimenon. Este caráter de cerne da coisa era para eles, de certo, o que servia de fundamento e o já sempre existente. Porém, as características se denominam ta symbebekota, aquilo que também sempre já foi posto com cada existente e em virtude disso com ele aparece (HEIDEGGER, 2012, p. 18).

Finalmente, a partir do instante em que o autor explicita o conceito de coisa como o

substrato, o fundamento, a substância daquilo que se vê, que é apreendido pelos sentidos,

adentramos a seara heideggeriana da discussão estética. Para o autor, a Arte é um dos meios pelos

quais o Homem se recorda do Bem Essencial platônico, que tem sua morada no Mundo das

Ideias, re-velado e apreendido no Mundo do Sensível por intermédio das obras de arte. O

pensador alemão une em sua filosofia, finalmente, o polo da poética, no qual o artista “velaria” o

Ser nas entranhas da obra de arte, e o polo da estética, no qual a obra se “re-velaria” ao

observador. Em certa medida, encontra-se aqui a essência da estética: o fruidor da mensagem

artística se vê revelado na obra de arte. Entretanto, Heidegger parte de um pressuposto que,

aparentemente, contraria tanto Kant quanto Hegel: a faculdade racional pode, porventura, ao

longo do tempo, ter violado o aspecto essencial das coisas observadas. A vulgarização do

conceito de coisa relativizaria sua característica de essencialidade. A razão corriqueira,

consuetudinária, poderia estar a impedir a apreensão do Ser da obra de arte.

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De vez em quando temos ainda o sentimento de que há muito já se usou de violência em relação à coisidade das coisas e que, nesta violentação, o pensar está em jogo, razão pela qual se renega o pensamento, em lugar de se esforçar para que o pensamento se torne mais pensante. Mas então que valor deve ter, numa determinação da essência da coisa, um sentimento ainda tão seguro, quando apenas o pensar pode ter a palavra? Todavia, talvez, o que aqui e em semelhantes casos denominamos sentimento ou disposição de ânimo [Stimmung], seja mais racional ou seja mais perceptível, porque é mais aberto ao ser do que toda a razão, a qual, neste ínterim, tornada ratio, foi como racional mal compreendida. Nisso, o olhar vesgo em direção ao ir-racional, aborto do racional impensado, prestou serviços estranhos. Certamente, o conceito corriqueiro de coisa serve a cada momento para cada coisa. Contudo, não concebe em seu apreender a coisa essencial, mas a agride (HEIDEGGER, 2012, p. 19).

Não seria exatamente a razão (ou, ao menos, não o seria exclusivamente), porém, a

culpada única de tal agressão. A experiência estética seria prejudicada menos pela razão, mais

por uma necessidade de premência em construir (e, possivelmente, emitir) uma opinião sobre a

obra: “No conceito de coisa agora mencionado não há tanto uma agressão à coisa mas muito mais

a tentativa excessiva de trazer para nós a coisa numa maior imediatez possível” (HEIDEGGER,

2012, p. 20). É preciso ressaltar, à guisa de precisão histórico-conceitual, que o autor se refere a

uma espécie de julgamento que teria se vulgarizado com o passar do tempo. A construção do

pensamento de Kant e Hegel distam cerca de 120 anos do pensamento de heideggeriano.

Tomando um conceito de seu mestre Edmund Husserl, Heidegger apresenta a solução

para o juízo precipitado que agrediria a coisa, o Ser da obra de arte: a suspensão do juízo, o

observador em epokhé19.

Pode-se talvez evitar uma tal agressão? E como? Claro, desde que concedamos à coisa como que um campo livre para que ela mostre imediatamente seu caráter de coisa. Tudo o que se queira colocar entre a coisa e nós como concepção e enunciação sobre a coisa, precisa ser antes afastado. Só então nos abandonamos à irremovível presença da coisa. Mas este imediato deixar-se encontrar com as coisas não precisamos nem em princípio exigir nem de modo algum dispor. Acontece desde sempre. Naquilo que o sentido da vista, da audição e do tato nos trazem enquanto

19 εποχη (epókhé) é um conceito que indica uma espécie de “suspensão do juízo”; a rigor, “suspensão do pré-juízo” seria a expressão mais precisa. O observador, ante a obra de arte, deveria estar completamente isento de qualquer pré-julgamento para, enfim, poder absorver tudo o que a obra tem a oferecer.

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sensações da cor, do som, do áspero, do duro, as coisas literalmente afetam já nosso corpo. (HEIDEGGER, 2012, p. 19).

Em consonância com Hegel, conteúdo (matéria) e forma são um todo indivisível para

Heidegger e é justamente dessa junção que provém a “coisidade da coisa”. De certo modo,

poderíamos considerar que, valendo-se do estofo platônico, o autor estaria a propor que a coisa já

se consistiria de si mesma em ideia antes de se consistir real pelas mãos do artista, que imita a

ideia da coisa que está a representar. Ao atrair o observador, tal obra pode ser vista, avaliada e

qualificada (sob a suspensão do pré-juízos) pelo esteta, onde ela se completa. A experiência

estética se daria na possibilidade de o observador apreender o cerne, a substância-primeira da

obra de arte.

Aquilo que dá às coisas o que é constante e seu cerne, mas que ao mesmo tempo também causa o modo de seu afluxo sensível, o colorido, o sonoro, a dureza, o maciço, é a materialidade das coisas. Nesta determinação da coisa como matéria (hylé) já está com-posta a forma (morphé). O constante de uma coisa, a consistência, consiste no fato de que uma matéria está reunida com uma forma. A coisa é uma matéria formada. Esta interpretação da coisa refere-se ao aspecto imediato com o qual a coisa através de sua forma (eidos) nos atrai. (HEIDEGGER, 2012, p. 20).

Finalmente, Heidegger propõe a constituição do binômio fundamental matéria-forma

sob a égide de uma estrutura. Em verdade, o autor propõe, em instância anterior, de modo

fundamental, uma estrutura-da-estruturação; a estruturação de uma obra de arte pela conjunção de

suas matéria e forma estaria sob a égide da estrutura conceitual ela mesma, a propor a

indissociabilidade entre matéria e forma. A estrutura primal da estética seria aquela que

compreende o ente da obra de arte (o objeto percebido pelos sentidos) como o Ser-aí da obra de

arte (a percepção do sentido, em epokhé, a perceber e apreender a essência da obra de arte):

A indicação em relação à ampla utilização desta estrutura conceitual na Estética poderia levar a pensar antes que matéria e forma seriam determinações provenientes da essência da obra de arte e somente a partir daí transferidas para a coisa (HEIDEGGER, 2012, p. 20-21).

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Se, por um lado, o pensamento de Heidegger não acrescenta um elemento novo à

tétrade conceitual já estabelecida para dar suporte à argumentação que aqui se desenvolverá, por

outro, arremata o ciclo filosófico proposto na presente pesquisa. O filósofo alemão resgata o

pensamento grego sem estabelecer a costumeira rotulação de uma dicotomia entre Platão e

Aristóteles (não raras vezes chamando o momento grego de “a filosofia de Platão e Aristóteles”)

e fecha o círculo que perpassa a construção da conceituação estética de Kant e Hegel.

Resta, por fim, embasado pelas ideias de matéria e forma trazida por Heidegger,

apontar um fator que será resgatado e amplamente discutido no terceiro item deste referencial

teórico: a matéria prima da arte à qual nos debruçamos, a Música.

Étienne Sorieau, já na segunda metade do século XX, com o intuito de estabelecer a

correspondência entre as artes (empreitada que dá nome ao seu livro), retoma o mito do

nascimento das Musas para definir e categorizar as denominadas “7 artes”. Para celebrar a vitória

dos deuses do Olimpo sobre os Titãs, os seis filhos de Urano, Zeus permaneceu por 10 dias em

companhia da deusa da memória Mnemosine e desse encontro nasceram as Nove Musas. As nove

irmãs compunham um coro que entoava hinos em louvor à batalha decisiva, capitaneada por

Zeus. Assim, o primeiro momento das Musas era dominado pela arte da Música, a mãe das artes.

Em seguida, as deusas das artes foram procurando formas de expressões específicas, que se

concretizaram em sete espécies de manifestações: Arquitetura, Arte das Iluminuras (que viria a se

transformar no Cinema), Dança, Desenho, Literatura, Música e Pintura.

No entanto, mais do que a apresentação do mito, o autor francês indica um fator de

fundamental importância para a determinação de tais artes e, no caso específico deste estudo, da

Música. Segundo Sorieau, cada uma das artes se caracteriza como tal por conta de seu qualia20,

termo empregado para definir a “matéria prima” da qual a arte é feita.

20 O termo qualia provém do latim e significa, em tradução literal, “tal como”; no entanto, é utilizado no contexto da correspondência das artes para identificar cada uma das expressões artísticas como “tal como é feita”, “tal como é produzida”, “de que matéria prima é constituída fundamentalmente”.

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As artes e seus qualias

ARTE QUALIA

Arquitetura Volume

Arte das Iluminuras (Cinema) Luz

Dança Movimento

Desenho Linha

Literatura Palavra

Pintura Cor

Música Som

Segundo o autor, o qualia da Música é o som, motivo pelo qual esta é única arte que

pode prescindir do sentido da visão tanto na instância da produção quanto na instância da

apreciação: “O qualia da Música é o som, que distingue a música das outras manifestações

artísticas por não precisar fazer uso da imagem na construção de seu edifício sonoro”

(SORIEAU, 1986, p. 87).

De aqui podemos extrair o quinto conceito fundamental para dar suporte à nossa

argumentação: a Música é a arte cujo qualia é o som e este, por intangível e não-visível, é

documentado numa linguagem específica grafada na partitura.

Temos, assim, completa a teia conceitual que dará suporte à argumentação na

discussão em torno da estética: 1) há o Belo em si e este pode ser encontrado nas representações

artísticas; 2) o Belo se revela na produção da obra que apresenta a busca pela qualidade e o

esmero na construção de cada passo nessa busca; 3) a qualidade de uma obra de arte é

diretamente proporcional à capacidade do artista ao estruturar o seu discurso empregando os

recursos de linguagem que tem à sua disposição; 4) a obra de arte, seja ela estruturada mediante o

excelente uso dos recursos de linguagem, seja ela estruturada com recursos de linguagem parcos,

está inserida num contexto histórico e, portanto, sócio-cultural; 5) a Música tem seu registro

documental numa linguagem específica, grafada na partitura, pela qual podemos observar e

entender o modo como cada peça musical foi estruturada.

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Portanto, embasados pelos cinco conceitos expostos, podemos estabelecer a partitura

como um dos territórios onde se dará parte da discussão estética acerca da qualidade musical da

programação da midia televisiva aberta brasileira.

Cotidiano, mediações e midiatização

O referencial teórico acima descrito, que dá conta da discussão estética, tem como

matriz o pensamento grego do século IV A.C. No entanto, o momento histórico da Grécia antiga

foi tanto específico quanto episódico. A apreciação estética, já a partir do momento histórico

subsequente, encontra menos o indivíduo em contemplação do objeto artístico, mais o cidadão

inserido num contexto social do qual esse objeto artístico faz parte, é um elemento dentre o

conjunto de fatos, ações, fenômenos que se dão no âmbito do cidadão comum, que compõem o

seu cotidiano. Como alerta Georg Lukács, em sua Teoria del romanzo, “Nosso mundo se tornou

infinitamente maior e por toda parte mais rico de dádivas e perigos que o mundo dos gregos”

(LUKÁCS, 1972, p.41).

Contudo, mesmo no mundo grego, a partir do conceito aristotélico de “homem

político”21, o cidadão que habita a pólis22 grega, que vive em sociedade, a apreciação estética não

mais se resguarda a um indivíduo em contemplatio23, mas a um cidadão imerso numa realidade

social que o remete a uma apreciação inserida em seu cotidiano; a fruição de uma obra de arte

passa gradativamente de apreciação estética essencial a apreciação estética inserida no cotidiano

do indivíduo em sociedade.

21 άνθρωπος φύσει πολιτικόν ζώον (ánthro̱pos fýsei politikón zó̱on), “o homem é por natureza um animal político”, é a frase encontrada no Livro I, da Política, de Aristóteles. O Estagirita revela aqui parte do escopo de seu pensamento, que aproxima a questão do Ser do universo da sociedade humana, vivenciada no convívio da pólis (ver nota 17), da cidade grega.

22 πόλης (póli̱s) é o conceito grego relativo ao conceito moderno de “Cidade”. Em verdade, tomado originalmente como “Cidade-Estado”, o conceito de pólis é aqui tomado como o espaço de convivência social, similar ao que se compreende pelo espaço de uma cidade.

23 Ver nota 9, p. 37.

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Assim, este trabalho, que situa o objeto de pesquisa a partir da segunda metade do

século XX, um tempo social amplamente distinto e distante da realidade da Grécia Antiga,

estabelece uma tríade de campos de estudo como sustentáculo e apoio para a melhor

compreensão da apreciação estética a que se refere: a instância do cotidiano, as mediações

culturais e a midiatização.

Como a apreciação estética dista da conceituação essencial platônica e se aproxima

de um conceito mais ligado a uma fruição da mensagem artística do indivíduo enquanto ser

social, principiamos pela instância do Cotidiano.

Partimos da conceituação encontrada em Agnes Heller, em seu O cotidiano e a

história, obra na qual a autora define a vida cotidiana como

... a vida do homem inteiro; ou seja o homem participa na vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade. Nela, colocam-se “em funcionamento” todos os seus sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidades manipulativas, seus sentimentos, paixões, ideias, ideologias. O fato de que todas as suas capacidades se coloquem em funcionamento, determina também, naturalmente, que nenhuma delas possa realizar-se, nem de longe, em toda sua intensidade. (HELLER, 2008, p.31).

Em grande medida, o pensamento da autora contribui para um deslocamento

conceitual de uma arte bela-em-si, de uma arte intimamente ligada ao pensamento platônico –

que a define como essência –, no sentido de uma conceituação mais próxima do universo do

apreciador consuetudinário da arte: “Na cotidianidade, parece natural a desagregação, a separação

de ser e essência” (HELLER, 2008, p.57).

Desse modo, para o caso específico do presente estudo, adentramos a seara dos

modos como o consumidor de música se apropria da arte em seu dia a dia, em seu cotidiano. Não

mais restrita a aparelhos de som situados nas salas das casas, mas acessível a qualquer

possibilidade de reprodução e deslocamento, a Música, possivelmente, tenha trocado seu lugar de

recepção e apreciação no cotidiano de seu consumidor.

Tomamos o conceito de “consumidor” em lugar de “apreciador da música” com base

no pensamento do francês Michel De Certeau, que encaminha de modo preciso a discussão

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estética para o âmbito do cotidiano, delegando ao consumidor possibilidades de manobras de

interação social por intermédio de produtos culturais.

A uma produção racionalizada, expansionista, além de centralizada, barulhenta e espetacular, corresponde outra produção, qualificada de ‘consumo’: esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios, mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante (DE CERTEAU, 1994, p.39).

O consumidor de música, imerso num contexto social difuso, encontra maneiras de

percorrer caminhos independentes e inesperados que o levam a concretizar sua rotina cotidiana,

pautada muitas das vezes por “desejos diferentes” daqueles determinados de antemão pelos

“organizadores de sistemas” sociais e, naturalmente, culturais. Passando ao largo da

sistematização do pensamento sociocultural dominante, as trajetórias do consumidor de música

levam-no a estabelecer consumo e comportamento distintos do esperado. De Certeau aponta para

uma espécie de comportamento do consumidor que o faz imune ao poderio regulador dos meios

de comunicação de massa e de sua intencionalidade de prescrever deliberadamente as sintaxes

homogeneizantes dos sistemas social e cultural nos quais o consumidor encontra-se inserido, dos

quais o consumidor escolhe ser distinto, com os quais o consumidor se imiscui numa mistura

heterogênea. Segundo o autor, os consumidores

[...] traçam 'trajetórias indeterminadas', aparentemente desprovidas de sentido porque não são coerentes com o espaço construído, escrito e pré-fabricado onde se movimentam. São frases imprevisíveis num lugar ordenado pelas técnicas organizadoras de sistemas. Embora tenham como material os vocabulários das línguas recebidas (o vocabulário da TV, o do jornal, o do supermercado ou das disposições urbanísticas), embora fiquem enquadrados por sintaxes prescritas (modos temporais dos horários, organizações paradigmáticas dos lugares etc), essas 'trilhas' continuam heterogêneas aos sistemas onde se infiltram e onde esboçam as astúcias de interesses e de desejos diferentes (DE CERTEAU, 2008, pp. 91-92).

O consumidor de música, portanto, nem sempre realiza seu processo de apropriação

cultural e produção de sentidos segundo as diretrizes propostas pelas estratégias da indústria do

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entretenimento24; ao contrário, o consumidor cria táticas de procedimentos de natureza

consuetudinária, que emprestam a ele possibilidades de burlar o que De Certeau chama de

“racionalização estratégica” de gravadoras nacionais, multinacionais, emissoras de televisão,

divulgadores, programadores de rádio, apresentadores de programas, dentre outros elementos da

teia de produção, programação e veiculação homogêneas e de intenção massificantes. O grande

sistema produtor e veiculador de cultura (no caso específico do presente estudo, de música) nas

sociedades e sua conduta centrada na racionalização estratégica, que "procura em primeiro lugar

distinguir de um ‘ambiente’ um ‘próprio’25, isto é, o lugar do poder e do querer próprios." (DE

CERTEAU, 1998, p. 93), nem sempre consegue distinguir ambientes e próprios ou anular as

táticas do consumidor de música em seu cotidiano.

Apresentados acima, tanto o conceito de “estratégia” quanto o de “tática” são também

colhidos no pensamento de Michel de Certeau, em sua obra A invenção do cotidiano, na qual

descreve os procedimentos das instituições em geral (e de modo mais específico, para o presente

estudo, as instâncias de produção e comercialização de produtos ligados à música) como

"estratégicos". O autor define estratégia como: 24 Optamos por empregar aqui o termo “indústria do entretenimento” em lugar de “indústria cultural” a fim de não antecipar a menção ao conceito encontrado em Adorno e exposto logo adiante (p. 31) por José Luiz Braga. Paradoxalmente, Adorno expôs o conceito numa conferência radiofônica (um veículo de comunicação de massa), no ano de 1963. No início do pronunciamento, o autor refere-se a uma publicação feita juntamente com Horkheimer no ano de 1947, em Amsterdam: Em nossos esboços se falava em "cultura de massas". Substituímos esta expressão por "indústria cultural", para desligá-la desde o início do sentido cômodo dado por seus defensores: o de que se trata de algo como uma cultura que brota espontaneamente das próprias massas, da forma que assumiria, atualmente, a arte popular. Dela a indústria cultural se diferencia de modo mais extremo. Ela combina o consuetudinário com uma nova qualidade. Em todos os seus setores são fabricados de modo mais ou menos planejado, produtos talhados para o consumo de massas e este consumo é determinado em grande medida por estes próprios produtos. Setores que estão entre si analogamente estruturados ou pelo menos reciprocamente adaptados. Quase sem lacunas, constituem um sistema. Isto lhes é permitido, tantos pelos hodiernos instrumentos da técnica, como pela concentração econômica e administrativa. Indústria cultural é a integração deliberada, pelo alto, de seus consumidores.

25 “Próprio: é uma vitória do lugar sobre o tempo. Permite capitalizar vantagens conquistadas, preparar expansões futuras e obter assim para si uma independência em relação à variabilidade das circunstâncias. E um domínio do tempo pela fundação de um lugar autônomo." (DE CERTEAU, 1998, p. 94 – grifo do autor).

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O cálculo (ou a manipulação) das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolado. A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e ser a base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças (os clientes ou os concorrentes, os inimigos, os campos em torno da cidade, os objetivos e objeto da pesquisa etc) (DE CERTEAU, 1998, p. 93).

Já os procedimentos do cotidiano das pessoas comuns, não-produtoras (no caso

específico, as instâncias de recepção e apreciação de produtos ligados à música), são definidos

pelo autor como "táticos". De Certeau parte do princípio de que “a tática é a arte do fraco” (DE

CERTEAU, 1998, p.95), pois imersa e difusa entre os seres sociais desprovidos do poder

organizador e manipulador das instituições que podem se valer de procedimentos estratégicos:

“Sem lugar próprio, sem visão globalizante, cega e perspicaz como se fica no corpo a corpo sem

distância, comandada pelos acasos do tempo, a tática é determinada pela ausência de poder,

assim como a estratégia é organizada pelo postulado de um poder” (DE CERTEAU, 1998, p.95).

Desse modo, o autor nos traz o conceito de “tática” como sendo:

A ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio. Então nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de autonomia. A tática não tem lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha. Não tem meios para se manter em si mesma, à distância, numa posição recuada, de previsão e de convocação própria: a tática é movimento "dentro do campo de visão do inimigo", como dizia von Büllow, e no espaço por ele controlado. Ela não tem, portanto, a possibilidade de dar a si mesma um projeto global nem de totalizar o adversário num espaço distinto, visível e objetivável. Ela opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as "ocasiões" e delas depende, sem bases para estocar benefícios, aumentar a propriedade e prever saídas. O que ela ganha não se conserva (DE CERTEAU, 1998, pp. 94-95).

A definição dos papéis e dos modos de ação de instituições (e suas estratégicas) e

consumidores de música (e suas táticas) encaminha a argumentação ao segundo campo de

estudos apontado no início desta sessão: as mediações. Isso porque tais procedimentos (tanto

estratégicos quanto táticos) ocorrem, sobretudo, no campo das interações sociais. No caso

específico das táticas e estratégias ligadas à produção e apropriação de música, estamos a falar

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das mediações sociais que se dão no âmbito da cultura; mais precisamente, das mediações sociais

que se dão no âmbito de uma cultura midiatizada.

Em fato, se estamos a observar o fenômeno de apropriação de conteúdos produzidos

pela mídia e a produção de sentidos que se dá quando da interação social entre consumidores de

música que partilham, comentam, emitem opiniões, estamos deslocando a discussão do campo

dos meios para o campo das mediações.

José Luiz Braga, ao abordar a expressão que dá título ao livro de Jesús Martín-

Barbero, Dos meios às mediações, faz notar um par de fatores de extrema importância: 1) a

superação da visão crítica de uma indústria cultural26 onipotente, plena em vilania, em

contraposição a uma sociedade passiva, refém dos desmandos daquela. O autor define a

expressão “dos meios às mediações”: “Essa expressão praxiológica desde sua formulação, realiza

duas ações cognitivas relevantes. Por um lado, propõe a superação de uma visão objetiva dos

meios (da indústria cultural, suas tecnologias, seus produtos), a serem redirecionados para uma

visão relacional na sociedade” (BRAGA, 2012, p. 33). 2) Ao deslocar a discussão para o campo

das mediações, o autor traz ao centro da cena a figura do receptor, do consumidor dos produtos

culturais midiatizados, que interage em sociedade, interage com a mídia, com os produtos

midiáticos e, por vezes, contrapõe-se e enfrenta essa mídia.

Por outro [lado], introduz uma preocupação da área com a composição daquelas mediações, com os elementos que aí se realizam - mas sobretudo com o modo, a intensidade, a eficácia de tais mediações (culturais) no enfrentamento de seu par relacional (a mídia com seus produtos). Essa percepção é relevante, não apenas porque põe em cena o receptor integrado em seus ambientes - mas também porque começa a fazer perceber os processos midiatizados (BRAGA, 2012, p. 33).

Resgatando o conceito de “consumidor” proposto por Michel de Certeau, ao definir o

consumo como uma forma de produção, igualam-se, em certa medida, as instâncias de emissão e

recepção, de produção e mediação de uma mensagem imersa num ambiente cultural. Não se trata,

aqui, de pensar uma indústria cultural que impõe seus produtos midiáticos a um receptor passivo

e indefeso, mas trata-se de pensar um consumidor cultural que, em suas interações sociais, 26 Ver nota 24, p. 56.

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redefine os sentidos das mensagens produzidas pela mídia. O receptor passa a ser definido não

mais pelo termo “passivo” mas, sim, pelo termo “ativo”; o receptor não mais é considerado um

alvo, não mais desempenha a função de objeto, ao contrário, passa a ser considerado também um

produtor de sentidos, tem a função de sujeito do processo comunicacional. Ao discutir a

produção de sentidos inserida num contexto espaço-sócio-temporal, Laan Mendes de Barros

ressalta "a condição ativa do receptor como sujeito do processo comunicacional e a experiência

estética, presente nas dinâmicas de fruição e interpretação, como lugar de produção de sentidos,

que se estende no tempo e circula no contexto social em dinâmicas de interação entre mídia e

sociedade" (BARROS, 2012, P. 79).

O deslocamento do processo de produção de sentidos para o campo das mediações

sociais amplia sobremaneira a sua abrangência. Não mais restrita ao polo de emissão, o polo da

veiculação de produtos midiáticos e representações da mídia, a produção de sentidos também não

mais se dá no consumo individual e passivo do polo da recepção; em lugar do consumo

individual, a produção de sentidos se dá na interação dos consumidores em suas relações sociais,

nas quais intervêm o tempo, o espaço, a história de cada um, o repertório distinto dos indivíduos,

o ambiente sociocultural no qual cada um dos consumidores está inserido. Para além disso,

encontra-se ainda a transformação dos sentidos previamente constituídos pelo polo da veiculação

de produtos midiáticos, transformação esta motivada pelas forças de argumentação e

convencimento que ocorrem nas interações entre os consumidores. As mensagens contidas nos

produtos midiáticos circulam nas interações dos contextos socioculturais e tais sistemas de

circulação, difusos, imprevisíveis e incontroláveis, ampliam os processos de produção de sentidos

para muito além do que poderia apontar um contexto cujo protagonismo fosse exclusivo de uma

indústria cultural.

Laan Mendes de Barros, ressaltando que José Luiz Braga propõe o conceito de

“sistemas de circulação diferida e difusa” (BRAGA, 2006, p. 19) para definir esse contexto de

circulação de mensagens e produção de sentidos, faz notar a ampliação das fronteiras contidas no

complexo meio-mensagem. Os sistemas de circulação, em fato diferidos e difusos, diluem uma

suposta imposição massificante dos produtos da mídia justamente porque alteram o caráter

passivo do papel do receptor; este não mais é um alvo de mensagens unidirecionais igualadoras,

mas um indivíduo pertencente a um lugar social, que interage e medeia os produtos midiáticos de

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modo a transformar a produção de sentidos, inicialmente intentada, numa gama de interpretações

concernentes com sua história, seu repertório, suas experiências, seu “lugar social”.

Esses sistemas de circulação ampliam, no tempo e no espaço, os processos de produção de sentidos, que extrapolam, assim, não só os limites das representações da mídia, mas também os movimentos restritos da recepção. A recepção passa a ser vista não mais como algo individual, mecânico e efêmero mas como processo que se prolonga no tempo e se difunde no contexto sociocultural. A produção de sentidos se dá nas apropriações vivenciadas pelos receptores em seu lugar social, em interação com seus pares, marcada por experiências de interpretação, balizada por mediações socioculturais (BARROS, 2012, p.80).

Segundo José Luiz Braga, essa circulação de sentidos deu-se desde as primeiras

interações sociais com os produtos midiáticos e desempenha funções tanto no sentido da mídia

para sociedade (pois esta medeia os sentidos dos produtos elaborados por aquela) quanto no

sentido inverso (pois a sociedade age não apenas sobre os produtos veiculados pela mídia como

também sobre os próprios meios de comunicação, emprestando a ambos um sentido social):

“Desde as primeiras interações midiatizadas, a sociedade age e produz não só com os meios de

comunicação, ao desenvolvê-los e atribuir-lhes objetivos e processos, mas sobre seus produtos,

redirecionando-os e atribuindo-lhes sentido social” (BRAGA, 2006, pp. 21-22).

Laan Mendes de Barros contribui com José Luiz Braga no sentido de especificar não

apenas o fato de que, ao pensar as mediações sociais como o local onde ocorrem os processos de

apropriação cultural e produção de sentidos, extrapolam-se os limites tanto dos meios quanto das

mensagens, mas sobretudo no sentido de salientar que o processo de produção de sentidos

extrapola, também, o âmbito do entendimento do receptor, do fruidor da mensagem, alcançando o

âmbito de sua compreensão; a produção de sentidos passa pelo receptor e se completa em sua

interação social.

No campo da recepção, o processo de produção de sentidos extrapola o exercício da decodificação de mensagem recebida; ele se dá a partir das apropriações feitas pelos receptores, à luz de seu campo semântico e pragmático. O sentido não está, portanto, nos limites do composto meio-mensagem; mas, presente nas dinâmicas que envolvem os sujeitos do processo comunicacional: emissor e receptor, seres sociais, em interação com outros indivíduos, instituições e movimentos sociais (BARROS, 2012, p. 90).

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A circulação de sentidos produzidos pelos receptores em seu cotidiano em sociedade

não apenas altera o sentido original dos produtos culturais veiculados (e, não raras vezes,

produzidos) pela mídia, como também altera a própria concepção de cultura na sociedade. José

Luiz Braga, no livro A sociedade enfrenta sua mídia, apresenta o conceito de um “terceiro

sistema de processos midiáticos”, ao qual chama de “sistema de resposta social”. Tal “sistema de

resposta” desloca a discussão da produção de sentidos de uma concepção sintático-semântica

para uma concepção semântico-pragmática e delimita um “sistema de interação social sobre a

mídia”, no qual a circulação de sentidos, diferida e difusa, pertencente ao campo da cultura,

transforma a própria mídia; essa circulação influencia tanto as produções culturais provindas da

mídia quanto a própria cultura-em-si: “O sistema de interação social sobre a mídia (seus

processos e produtos) é um sistema de circulação diferida e difusa. Os sentidos midiaticamente

produzidos chegam à sociedade e passam a circular nesta, entre pessoas, grupos e instituições,

impregnando e parcialmente direcionando a cultura. Se não circulassem, não estariam na cultura”

(BRAGA, 2006, p. 27).

O sistema de resposta social proposto por José Luiz Braga diferencia com nitidez dois

campos de ação passíveis de análise. 1) a ação da mídia, a produzir e veicular conteúdos; 2) a

ação do receptor em sociedade, a circular os sentidos absorvidos, produzidos e debatidos, acerca

daqueles conteúdos.

Devemos então distinguir: o que a mídia veicula (que se caracteriza, na verdade, como sistema de produção) e o que, tendo sido veiculado pela mídia, depois circula na sociedade. Estamos tratando dessa segunda ordem de processos, a não ser confundida com a primeira. Nesse tipo de circulação o que nos interessa é que vamos encontrar o que a sociedade faz com sua mídia: é, portanto, uma resposta (BRAGA, 2006, p. 29).

Evidencia-se no pensamento do autor uma estreita consonância com a formulação das

“mediações culturais da comunicação” (MARTÍN-BARBERO, 1987, p. 228), de Martín-Barbero,

ainda antes de flexionar o conceito para as “mediações comunicativas da cultura” (MARTÍN-

BARBERO, 1997, p. 279).

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Nota-se, também, um distanciamento com relação ao conceito de uma indústria

cultural onipotente, que mantém a sociedade refém de uma ação cultural padronizadora; ao

contrário, o autor propõe uma sociedade que interage com a mídia, enfrenta-a e causa

transformações em seu modo de proceder. Ainda que tal ação social sobre a mídia não fosse de

todo comprovada, José Luiz Braga indica a viva possibilidade de que a ação pudesse ser

concretizada.

Longe das características monolíticas e de padronização da ação midiática na sociedade (que algumas posições analíticas tendem a assumir), a sociedade "elabora" e trabalha uma diversidade significativa de perspectivas. Não só "vê" o objeto segundo ângulos diferenciados, mas, ao fazê-lo, faz circular essa variedade. A sociedade dispõe (pelo menos potencialmente) de processos de enfrentamento que, por sua pluralidade mesmo, por pouco que haja, (ou houvesse) acesso a essa diversidade, seriam estimuladores de reflexão, cotejo e aprendizagem. Os dispositivos sociais elaboram múltiplas perspectivas e as fazem circular (BRAGA, 2006, pp. 307-308).

Desse modo, as mediações culturais que ocorrem no âmbito do cotidiano da

sociedade podem ser definidas aqui em consonância com José Luiz Braga:

Em perspectiva epistemológica, trata-se do relacionamento do ser humano com a realidade que o circunda, que inclui o mundo natural e a sociedade. A ideia de mediação corresponde à percepção de que não temos um conhecimento direto dessa realidade - nosso relacionamento com o "real" é sempre intermediado por um "estar na realidade" em modo situacionado, por um ponto de vista - que é social, cultural, psicológico. O ser humano vê o mundo pelas lentes de sua inserção histórico-cultural, por seu "momento" (BRAGA, 2012, p. 32).

Assim, estabelecemos o elo entre as teorias do cotidiano e as das mediações culturais.

Em verdade, as mediações culturais ocorrem no convívio social, prática que se dá no âmbito do

cotidiano do indivíduo em seu cotidiano em sociedade. Laan Mendes de Barros, comentando o

universo de tensões e conflitos nas práticas sociais e nas relações culturais, proposto por

Raymond Williams, une ambos os universos teóricos e define com precisão as “mediações

socioculturais, que estruturam os processos de recepção e subsidiam a produção de sentidos,

vivenciada nas experiências cotidianas do receptor, em suas relações com o outro, em sua

condição cultural, construída no espaço da coletividade (BARROS, 2012, p. 83).

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Martín-Barbero, ao apresentar a proposição da teoria das mediações, de pronto situa o

receptor para além de seu espaço limitado e desloca a recepção para o espaço de circulação de

sentidos. Além disso, insere a comunicação como elemento inscrito partícipe do âmbito da

cultura: “Devemos começar diferenciando nossa proposta daquela análise denominada “dos usos

e gratificações”, já que estamos tratando de retirar o estudo da recepção do espaço limitado por

uma comunicação pensada em termos de mensagens que circulam, de efeitos e reações, para re-

situar sua problemática no campo da cultura (MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 302).

A amplitude engendrada pela abordagem estruturada na teoria das mediações

enriquece a abordagem do que seria o desafio apresentado pela indústria cultural; afinal, ao

considerarmos as mediações culturais, notamos que se estabelece também um desafio em ordem

inversa: o consumidor de cultura, em seu convívio e suas interações sociais, torna-se ativo e

desafia a indústria cultural. Tal desafio se estabelece primordialmente pela atividade

comunicativa do consumidor; é pela via da comunicação que se inverte a ordem pré-estabelecida.

Tamanhamente relevantes são o papel da comunicação e o elo que se define entre cultura e

comunicação, que Martín-Barbero propõe até mesmo uma redefinição dos sentidos tanto da

política quanto da cultura:

Na redefinição da cultura, é fundamental a compreensão de sua natureza comunicativa. Isto é, seu caráter de processo produtor de significações e não de mera circulação de informações, no qual o receptor, portanto, não é um simples decodificador daquilo que o emissor depositou na mensagem, mas também um produtor. O desafio apresentado pela indústria cultural aparece com toda a sua densidade no cruzamento dessas duas linhas de renovação que inscrevem a questão cultural no interior do político e a comunicação, na cultura (MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 289).

A comunicação, ocupando papel central na estruturação da sociedade, pois inscrita no

âmbito da cultura – que, por sua vez se inscreve no âmbito da política –, não mais obedece a

parâmetros apenas quantitativos de medição: “Abre-se assim ao debate um novo horizonte de

problemas, no qual estão redefinidos os sentidos tanto da cultura quanto da política, e do qual a

problemática da comunicação não participa apenas a título temático e quantitativo – os enormes

interesses econômicos que movem as empresas de comunicação – mas também qualitativo”

(MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 289).

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Martín-Barbero mantém estreita relação com o pensamento de De Certeau, na medida

em que este aponta uma dificuldade que os grandes conglomerados institucionais enfrentariam no

intuito de mensuração de resultados de suas estratégias. O autor, ao tratar das estatísticas de redes

institucionais, nota uma faceta tática pertencente ao universo das mediações sociais: "contabiliza-

se aquilo que é usado, não as maneiras de utilizá-lo. Paradoxalmente, estas se tornam invisíveis

no universo da codificação e da transparência generalizadas [...] as práticas do consumo são os

fantasmas da sociedade que leva o seu nome. Como os 'espíritos' antigos constituem o postulado

multiforme e oculto da atividade produtora." (DE CERTEAU, 1998, p. 92).

A relação entre os pensamentos de ambos os autores se estende ainda mais quando a

temática da cotidianidade, presente em De Certeau, aparece na conceituação de tempo

fragmentado organizado pela televisão, na proposição de inserção da cotidianidade no mercado,

de Martín-Barbero.

Enquanto em nossa sociedade o tempo produtivo, valorizado pelo capital, é o tempo que “transcorre” e é medido, o outro, constituinte da cotidianidade, é um tempo repetitivo, que começa e acaba para recomeçar, um tempo feito não de unidades contáveis, mas sim de fragmentos. E a matriz cultural do tempo organizado pela televisão não seria justamente esta, a da repetição e do fragmento? E não seria ao se inserir no tempo do ritual e da rotina que a televisão inscreve a cotidianidade no mercado? (MARTÍN-BARBERO, 1997, pp. 297-298)

A menção de Martín-Barbero à Televisão, parte fundamental do escopo do presente

estudo, abre o caminho para o terceiro campo de estudos da tríade que sustenta esse bloco de

argumentação: a questão da midiatização.

O processo de midiatização das sociedades da América Latina, segundo o autor, teve

início próximo ao tempo histórico em que situamos o presente trabalho. A ideia de

desenvolvimento, sublinhada pelo autor, dominante em relação à ideia de Nação, àquela altura

passaria por uma espécie de avanço tecnológico dos países periféricos: “Se a primeira versão

latino-americana da modernidade teve como eixo a ideia de Nação – chegarem a ser nações

modernas –, a segunda, no princípio dos anos 1960, estará associada ‘a ideia de

desenvolvimento.” (MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 250).

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Abandonada a ideia de Nação em favor da ideia de desenvolvimento, a América

Latina passou a almejar um caráter “transnacional”, de certo modo imposto pelos países

dominantes, pautado pelas regras do capitalismo e cujo papel de protagonista cabe ao campo das

tecnologias de comunicação.

A questão transnacional designa mais do que a mera sofisticação do antigo imperialismo: uma nova fase do desenvolvimento do capitalismo, em que justamente o campo da comunicação passa a desempenhar um papel decisivo [...] Como a transnacionalização opera principalmente no campo das tecnologias de comunicação – satélites, telemática –, é no campo da comunicação que a questão nacional hoje encontra seu ponto de fusão (MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 285).

O aporte de aparatos tecnológicos, sedutor por natureza, ligado intrinsecamente ao

consumo, confundiu-se, no primeiro momento, com a própria noção de cultura; uma nova

dinâmica cultural, fincada sobre as produções provindas de corporações institucionais de

comunicação e veiculadas por novos meios, aumentou exponencialmente o raio de influência de

uma indústria cultural homogeneizante e transnacional.

Desde uma perspectiva bastante crítica do ponto de vista político-econômico da

construção das identidades nacionais ou, mais precisamente, da perda de identidades nacionais na

América Latina, Martín-Barbero situa o fenômeno de transnacionalização baseado nas

tecnologias de comunicação pelo início da década de 1960.

A partir dos anos 1960, a cultura popular urbana passa a ser tomada por uma indústria cultural cujo raio de influência se torna cada vez mais abrangente, transpondo modelos em larga medida buscados no mercado transnacional. A proposta cultural se torna sedução tecnológica e incitação ao consumo, homogeneização dos estilos de vida desejáveis, banimento do nacionalismo para o “limbo anterior ao desenvolvimento tecnológico” e incorporação dos antigos conteúdos sociais, culturais e religiosos à cultura do espetáculo (MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 271).

O novo quadro cultural tem um principal interlocutor e, de modo pontificante, o autor

define-o: “E no centro da nova dinâmica cultural, no papel de grande interlocutor, estará a

televisão.” (MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 271).

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A televisão, pelo início dos anos 1960, contava uma década de vida na América

Latina. Contava, então, com um número apenas razoável de aparelhos nas regiões urbanas dos

países sedentos pela modernização e pela inserção no cenário transnacional. No entanto, mais do

que o número de lares providos de aparelhos retransmissores, crescia a importância da Televisão

enquanto veículo de comunicação. O encantamento provocado pela emissão de imagens

juntamente com sons, a possibilidade de um aparato tecnológico audiovisual nas habitações,

ampliava a capacidade de influência daquele meio de comunicação sobre a sociedade. Em grande

medida, a Televisão tornava-se a porta-voz da massificação, da homogeneização dos discursos –

tanto midiáticos quanto sociais.

[...] erigida em critério de uma única modernização para todo o país, a televisão decide sobre o que é atual e o que é anacrônico, tanto no campo dos utensílios quanto no das falas. O rádio nacionalizou o idioma, mas preservou alguns ritmos, sotaques, tons. A televisão unifica para todo o país uma fala na qual, exceto para efeito de folclorização, a tendência é para a erradicação das entonações regionais (MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 271).

A televisão seria, então, o meio massivo de comunicação pelo qual as grandes

instituições econômicas – àquele tempo, em vários países da América Latina, imiscuídas às

instituições políticas – estabeleceriam suas estratégias de dominação e homogeneização. O

quadro econômico e social desses países revelava um extremo poderio da Televisão na

experiência de consumo de produtos midiáticos de grande parte da população: “enquanto uma

classe normalmente só pede informação à televisão, porque vai buscar em outra parte o

entretenimento e a cultura – no esporte, no teatro, no livro e no concerto –, outras classes pedem

tudo isso só à televisão” (MARTÍN-BARBERO, 1997, p.301).

A massificação, não mais apoiada no populismo político, mas no aporte tecnológico

dos meios, sofreu transformações em seus dois polos: com relação aos meios e em relação às

massas. Martín-Barbero desenvolve a argumentação acerca desse assunto partindo da pergunta:

“Qual o lugar e o papel dos meios massivos na nova fase da modernização da América Latina?

Ou, em outros termos: quais são as mudanças produzidas na massificação com relação aos meios

e em relação às massas?” (MARTÍN-BARBERO, 1997, P. 251). Logo em seguida, a autor

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encampa a resposta dividindo os períodos históricos pela crise econômica mundial da década de

1980:

Para respondermos a tais questões é necessário distinguir o que se passa nos anos de euforia e dos “milagres” do desenvolvimentismo – a partir do início dos anos 1960 e em alguns países desde alguns anos antes, até meados da década de 1970 – do que ocorre nos anos 1980 com a crise mundial que agrava na América Latina a contradição entre o caráter nacional da estrutura política e o caráter transnacional da estrutura econômica (MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 251).

Portanto, com relação aos meios, o caráter da massificação sofreu a transformação da

presença de extensas populações em cidades, vivenciando desigualdade econômica por conta de

inabilidade política, homogeneização de comportamento e estímulo a consumo por intermédio de

mensagens produzidas e veiculadas midiaticamente a um grande número de pessoas com acesso a

aparatos tecnológicos.

Diferentemente do que aconteceu durante o populismo, quando o massivo designava sobretudo a presença das massas na cidade, com sua ambiguidade política, mas também com sua carga explosiva de realidade social, nos “anos do desenvolvimento” o massivo passa a designar apenas os meios de homogeneização e controle das massas (MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 252 – grifo do autor).

Já em relação às massas, segundo o autor, a transformação se daria “enquanto

tendência”; os meios deixariam de mediar as relações sociais e passariam a se portar como

fossem desarticuladores dessas relações.

A massificação será detectável mesmo onde não houver massas. E de mediadores, a seu modo, entre o Estado e as massas, entre o rural e o urbano, entre as tradições e a modernidade, os meios tenderão cada vez mais a constituírem-se no lugar da simulação e da desativação dessas relações. E embora os meios continuem “mediando” e a simulação já existisse na própria origem de sua entrada em cena, algo vai mudar, neles, enquanto tendência (MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 252).

De modo assaz crítico, Martín-Barbero analisa também a relação entre a mídia e o

consumidor; vale dizer, entre os produtores e veiculadores de produtos culturais (o polo da

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emissão de mensagens, denominados “emissores-dominantes”) e o consumidor dos produtos

culturais (o polo de recepção da mensagem, denominados “receptores-dominados”). Segundo o

autor, encontramos um receptor passivo, incapaz de interagir com os produtos midiáticos, refém

de mensagens homogeneizantes e alienantes: “Entre emissores-dominantes e receptores-

dominados, nenhuma sedução, nem resistência, só a passividade do consumo e a alienação

decifrada na iminência de uma mensagem-texto nunca atravessada por conflitos e contradições,

muito menos por lutas.” (MARTÍN-BARBERO, 1997, p.279).

No entanto, o autor aponta uma mudança significativa no cenário midiático da

América Latina a partir da década de 1980, que é de grande relevância para a pesquisa ora

apresentada. A hegemonia da Televisão entrou em discreta e paulatina decadência, pois

encontrou a concorrência de novos aparatos tecnológicos: “Desde finais dos anos 1980, o cenário

da comunicação na América Latina é protagonizado pelas “‘novas tecnologias’” (MARTÍN-

BARBERO, 1997, p.255).

O protagonismo das novas tecnologias, crescente a partir da década de 1980,

apontado por Martín-Barbero, permite-nos avançar na seara do campo de estudos da

midiatização. Para tanto, partimos de uma definição do próprio termo “midiatização”, proposta

por Maria Ângela Mattos e Ricardo Costa Vilaça, em referência ao pensamento de Fausto Neto:

Processo que atinge não apenas determinados âmbitos das sociedades, mas que se desenvolve e engloba todas as instâncias sociais, chegando a constituir-se como nova forma de sociabilidade. O termo sugere mudança de perspectiva em relação ao lugar ocupado pelas mídias no funcionamento das sociedades e na construção dos parâmetros pelos quais essas sociedades criam suas "realidades" (MATTOS; VILAÇA, 2011, p. 12).

Fausto Neto, no texto Fragmentos de uma analítica da midiatização, indica,

primeiramente, a ampliação do alcance e da importância das mídias, que perdem o “lugar de

auxiliaridade e passam a se constituir em uma referência engendradora no modo de ser da própria

sociedade e nos processos e interação entre as instituições e os atores sociais” (FAUSTO NETO,

2008, p. 93) para, em seguida, avançar na discussão acerca da midiatização e propor o conceito

de “sociedade midiatizada”, segundo o qual, outras distintas práticas sociais perpassam e se

imiscuem às práticas midiáticas; o autor aponta ainda para o fato de que tais práticas sociais não

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respeitam necessariamente a lógica da midiatização. Essa espécie de autonomia da sociedade em

relação aos meios desloca o enfoque e direciona o olhar, em consonância com o pensamento de

Martín-Barbero, dos meios às mediações.

Entretanto, os processos de referenciação da realidade, estruturados em torno da lógica da midiatização, não se acantonam apenas nas fronteiras das próprias práticas midiáticas. Migram para outras práticas sociais, atravessando-as e afastando-as por operações significantes, cujo emprego é condição para que as mesmas passem a ser reconhecidas. Em segundo lugar, a compreensão que o próprio trabalho teórico tem sobre esses processos de autonomização e, sobretudo, dos seus efeitos, ao refletir sobre as transformações da “sociedade dos meios” na “sociedade midiatizada” (FAUSTO NETO, 2008, p. 95).

Em certa medida, o autor sinaliza um entrelaçamento entre os conceitos de

midiatização e de mediações sociais. A sociedade, midiatizada, medeia os produtos culturais

veiculados pela mídia, transforma tais conteúdos e influencia a própria mídia.

No entanto, se o conceito de midiatização depende necessariamente de sua inserção

nas práticas sociais, o conceito de mediações não mantém dependência intrínseca obrigatória em

relação à mídia; afinal, as interações sociais nem sempre dependem da mídia para acontecer.

Laan Mendes de Barros sintetiza a confluência e a distinção entre ambos os conceitos: "Enquanto

‘midiatização’ vem sendo pensada como uma nova forma de sociabilidade, decorrente de uma

lógica midiática, ‘mediação’ traz já de algum tempo o sentido de interações sociais, que nos dias

de hoje se dão essencialmente – mas não exclusivamente – por intermédio da mídia.” (BARROS,

2012, p. 88).

José Luiz Braga aprofunda a proposta de Fausto Neto ao entrelaçar ainda mais os

conceitos de midiatização e de mediações, na medida em que torna esta complementar àquela. A

circulação – diferida e difusa – de mensagens produzidas e veiculadas pela mídia, que ocorre no

polo de recepção do complexo comunicacional, na instância do receptor, complementa a

midiatização, que ocupa o polo de produção de mensagens, a instância do emissor. Tal circulação

altera a concepção inicial dos produtos midiáticos, pois comentada no convívio social, mediada

pelo receptor em sociedade; por conseguinte, em certa medida, altera o próprio fazer da mídia. O

processo de midiatização, assim, somente se completa quando apreendido pelo receptor e, em

seguida, mediado por este em suas relações em sociedade: “A mesma sociedade que, por alguns

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de seus setores, grupos e linhas de ação, gera midiatização enquanto sistema produtivo, por

outros setores e atividades complementa essa midiatização por meio de operações de trabalho e

de circulação comentada daquilo que o sistema produtivo oferece ao sistema de recepção”

(BRAGA, 2012, P. 39).

Tomando a frase de Martín-Barbero "É preciso assumir não a prioridade dos meios,

mas sim que o comunicativo está se transformando em protagonista de uma maneira muito forte"

(MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 152), José Luiz Braga ressalta as ênfases (os “meios” e o

“comunicativo”) apontadas pelo pensador colombiano, justamente valorando as confluências e as

distinções entre os conceitos de midiatização e de mediações sociais, tal como fora sinalizado por

Laan Mendes de Barros. Ao expor os dois processos relativos aos conceitos, José Luiz Braga

categoriza a midiatização como aquele que amplia as possibilidades de acesso a aparatos

tecnológicos para os indivíduos em sociedade, expandindo as capacidades de comunicação, o que

transformaria até mesmo o conceito de comunicação de massa: "dois processos reduzem o

estranhamento da mídia. Um deles, processo tecnológico, corresponde à disponibilização de

ações comunicativas midiatizadas para largas parcelas da população, dosando e redirecionando a

comunicação massiva” (BRAGA, 2012, p. 34). Segundo o autor, “o surgimento das novas

tecnologias crescentemente disponibiliza possibilidades de midiatização para setores "não-

midiáticos": das mais diversas instituições aos grupos ad-hoc e aos indivíduos” (BRAGA, 2006,

p. 36).

Em seguida, José Luiz Braga expõe o processo relativo ao conceito de mediações

sociais, segundo o qual o receptor, agora com amplo acesso a produtos midiáticos, pois os

processos tecnológicos da midiatização a ele ofereceram tal possibilidade, assume uma postura

crítica com relação ao que lhe é oferecido como produto pela mídia; tal procedimento distaria em

muito da intencionalidade-primeira da mídia, que dele esperava resposta distinta.

O outro, processo social, diz respeito a uma entrada experimental de participantes sociais nas práticas e processos antes restritos à indústria cultural - por crítica social, por reinvindicações de regulação pública da indústria, por ações sociais organizadas para ocupar espaços de produção e difusão; e certamente pela ativação crítica e intencionada das mediações culturais, por apropriações "em desvio" das interpretações preferenciais da produção. (BRAGA, 2012, p. 34).

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Naturalmente, as mediações sociais afetam a cultura e transformam-se em mediações

culturais. Ganha consistência o esforço de “reconceitualização” da cultura encampado por

Martín-Barbero, pois passam a ocorrer transformações na própria conformação das sociedades; o

convívio social assiste ao surgimento de novos sujeitos, movidos e motivados por fatores ainda

não conhecidos, o que impele um novo e distinto conceito de cultura. O sujeito social, até

determinado ponto passivo e silente, passa a ativo e resistente. Tal transformação requer uma

nova configuração, que se dá no âmbito da cultura.

Mas algo radicalmente diferente acontece quando o cultural assinala a percepção de dimensões inéditas do conflito social, a formação de novos sujeitos – regionais, religiosos, sexuais, geracionais – e formas de rebeldia e resistência. Reconceitualização da cultura que nos confronta com essa outra experiência cultural que é a popular, em sua existência múltipla e ativa não apenas na memória do passado, mas também na conflitividade e na criatividade atuais (MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 287).

A constatação de Martín-Barbero distancia a discussão da comunicação de uma

questão unicamente tecnológica, pois há que se levar em alta conta o aspecto sociocultural da

comunicação, e corrobora o deslocamento por ele mesmo proposto, que leva o processo de

comunicação a ser pensado não mais a partir dos meios, mas, sim, das mediações: “Pensar os

processos de comunicação neste sentido, a partir da cultura, significa deixar de pensá-los a partir

das disciplinas e dos meios. Significa romper com a segurança proporcionada pela redução da

problemática da comunicação à das tecnologias” (MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 287).

Fausto Neto, ao discorrer acerca do conceito de “sociedade da midiatização”, também

aborda o âmbito da cultura, ao apontar a questão de uma “cultura midiática”. Para o autor, esta é

o pilar sobre o qual se fundamenta uma ampla estrutura social: “A cultura midiática se converte

na referência sobre a qual a estrutura sócio-técnica-discursiva se estabelece, produzindo zonas de

afetação em vários níveis de organização e da dinâmica da própria sociedade” (FAUSTO NETO,

2008, p. 93). Laan Mendes de Barros, em sintonia com Martín-Barbero, ao comentar o

pensamento de Fausto Neto, ressalta a midiatização como o processo social em que se

compreende a aproximação da comunicação com o universo da cultura e o distanciamento da

comunicação de um referencial exclusivamente tecnológico: “A ideia de midiatização da

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sociedade se afasta, portanto, de uma visão instrumental de comunicação, onde a mídia é vista

apenas como suporte, em sua dimensão técnica” (BARROS, 2012, p. 101).

José Luiz Braga, ratificando o pensamento de Laan Mendes de Barros, sintetiza o

conceito de midiatização e sua função necessariamente interacional, pois pertencente ao âmbito

da sociedade. Ao evitar, deliberadamente, restringir o termo midiatização a uma “espécie de

penetração tecnológica”, o autor reputa as invenções de aparatos tecnológicos como menos

importantes do que uma “invenção social” que propiciasse a interação dos indivíduos com as

mídias e dos indivíduos entre si; o aparato tecnológico estaria a serviço; em definitiva instância,

existiria justamente para proporcionar essa mais plena interação social.

É preciso um componente diretamente social no processo. Sobre a tecnologia disponibilizada é preciso ainda que se desenvolvam invenções sociais de direcionamento interacional. Essas invenções são, talvez, a parte mais importante da questão. É porque a sociedade decide acionar tecnologias em um sentido interacional que estas se desenvolvem – na engenharia e na conformação social (BRAGA, 2006, p. 36).

Desse modo, ao tratar das mediações sociais que se dão no âmbito da cultura,

notamos que, de certa forma, estas subvertem a ordem pré-intencionada dos produtores

institucionalizados de música e dos grandes veículos de mídia; a elaboração e veiculação de

mensagens massificantes e homogeneizantes pelos mais abrangentes canais de transmissão não

preveem a apropriação, decodificação e circulação crítica, diferida e difusa, por parte do receptor

dessas mensagens em seus processos de mediações sociais. Tal subversão situa-se principal e

necessariamente no cotidiano do homem comum, que dispõe de táticas individuais para superar

as estratégias corporativas; dessa forma, atrelam-se produtor e consumidor, cultura e

comunicação, mídia e sociedade, num processo ambivalente de apropriação e produção de

sentidos, no qual as figuras de emissor e receptor ganham paridade social, política e, portanto,

cultural.

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Os hábitos de escuta Em seu artigo Cultura das bordas: comunicação e cultura em movimentos, Laan

Mendes de Barros contribui significativamente para a sedimentação de uma formulação que será

balizadora do presente trabalho: as táticas de Michel De Certeau27, engendradas pelo consumidor

de música brasileira nas mais recentes décadas, se estabelecem, entre outras searas, no campo do

movimento (ou da possibilidade de deslocamento) do consumidor de música.

Por conta da proliferação de dispositivos móveis de escuta, notadamente a partir da

segunda metade da década de 1980, as estratégias das corporações de produção e veiculação de

música no Brasil enfrentam dificuldades até então desconhecidas. Em precisa concordância com

o autor, partimos do princípio de que “a subversão da ordem institucionalizada se dá na forma de

movimento” (BARROS, 2013, p. 15).

O pensamento de Laan Mendes de Barros permite, ainda, encontrar um elo bastante

sólido entre os conceitos e, principalmente, entre as práticas dos consumidores em suas

mediações sociais quando apreendem e circulam os sentidos provindos dos produtos culturais de

uma sociedade midiatizada; o autor afirma que a produção de sentidos ganha uma “dimensão

coletiva e social” (BARROS, 2012, p.178) quando da apreensão de produtos produzidos e

veiculados pela mídia por parte do consumidor. Essa dimensão tem um componente nitidamente

ligado à proliferação das novas tecnologias de comunicação, sobretudo os meios de difusão

permitidos pela Internet que, segundo Alejandro Piscitelli, em seu livro Ciberculturas 2.0: em la

era de las máquinas inteligentes, “horizontalizou” o processo comunicacional e, naturalmente,

alterou a “ecologia dos meios”, pois tornou “simétricas” as instâncias da produção e da recepção,

o que deslocou o polo de “poder” dos produtores de música (PISCITELLI, 2002, p. 172).

Sérgio Amadeu da Silveira, em seu texto A música na época de sua reprodutibilidade

digital, no livro O futuro da música depois da morte do CD, aponta o sentido do deslocamento

proposto por Piscitelli. Segundo o autor, nas mais recentes décadas o “poder” vem migrando

rapidamente dos grandes conglomerados multinacionais para os consumidores de música

propriamente ditos.

27 Ver pp. 56-57.

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Até o surgimento e expansão das redes digitais quase ninguém se importava se as pessoas copiavam as músicas em fitas K7 para os vizinhos ou se as fazia circular em algum fã-clube. Henry Jenkins lançou a hipótese de que as corporações sabiam que essas ações aconteciam em toda a parte, todos os dias, mas não sabiam quem as faziam concretamente. Conforme essas transações deixaram de ocorrer a portas fechadas, começaram a representar uma ameaça. (SILVEIRA, 2009, p. 31).

A proliferação de tais “transações” de cópias e compartilhamentos de músicas

ressaltou uma característica inata à Música: sua imaterialidade. Não mais circunscrita a um

número restrito de formatos, cuja produção e veiculação pertenciam a instituições e

conglomerados nacionais ou multinacionais, a Música abandonaria o caráter exclusivo de

produto-a-ser-comercializado e voltaria a ser reconhecida como um bem que transcende a

materialização da obra de arte: “O mundo digital realça a característica imaterial da música, as

possibilidades de sua reprodutibilidade infinita e sua condição de bem dependente dos fluxos

culturais, do que é tipicamente comum.” (SILVEIRA, 2009, p. 31).

A Música, na perspectiva de um bem dependente do que é tipicamente comum, passa

a ser vista aqui tanto como o objeto poético essencial da criação do artista, quanto como o objeto

estético, inserido no contexto social, apreendido e mediado pelo consumidor em seu cotidiano. A

obra de arte é, assim, vista como parte integrante dos discursos sociais, sujeita às restrições

inerentes ao polo da produção e às condições pertencentes ao polo da recepção de discursos

específicos; vale notar que, como bem definiu Eliseo Verón, para além de tais condições há uma

condição de interação entre as restrições daquele e as condições deste, o que permite a alteração,

a transformação, o enriquecimento dos discursos, sejam eles os específicos (no caso do presente

estudo, os discursos musicais e os discursos da mídia), sejam eles os sociais.

As condições produtivas dos discursos sociais têm a ver, ou com as determinações que dão conta das restrições de geração de um discurso e de um tipo de discurso, ou com as determinações que definem as restrições de sua recepção. Chamamos as primeiras condições de produção e as segundas, condições de reconhecimento. Os discursos são gerados sob determinadas condições também determinadas. É entre esses dois conjuntos de condições que circulam os discursos sociais (VERÓN, 1996, p. 127 – tradução do pesquisador).

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Faz-se fundamental, desse modo, compreender o discurso da Música como parte do

discurso social; o discurso musical é tanto o discurso contido na partitura composta pelo artista

no polo da produção quanto aquele contido no polo da recepção, vinculado às condições de

escuta do consumidor musical. Tais condições de escuta abarcam desde o universo de repertório

prévio de quem ouve até seu estado de espírito no momento da audição, passando pelo local da

escuta, pela disponibilidade de atenção para a escuta, pelo equipamento de escuta, pelos diversos

fatores, enfim, que compõem os seus hábitos de escuta. Dirigimos, dessa forma, o olhar tanto

para o objeto poético quanto para a experiência estética; o objeto poético, ao ser apreendido pelos

sentidos do espectador, do consumidor (no caso específico do presente estudo, o consumidor de

música), passa assim a ser considerado como um objeto estético.

Faremos bom uso da definição de Mikel Dufrenne do que seria o objeto estético. O

filósofo francês, de modo radical, estabelece a função vital do esteta frente a obra poética;

segundo o autor, a obra de arte, sem o polo da apreensão, sequer existiria: “O objeto estético é a

obra de arte que pretende exclusivamente a beleza e que provoca a percepção estética onde essa

beleza será realizada e consagrada, na falta da qual a obra não é mais do que um objeto qualquer”

(DUFRENNE, 1998, p. 243). Para o autor, a experiência estética é o ponto de chegada do

objetivo-primeiro da obra de arte, é o momento em que ocorre a troca de posições na qual o esteta

contribui para a construção da obra do poeta; a obra de arte não apenas se completa na instância

da apreensão, da fruição, mas é enriquecida pela gama de interpretações distintas que ampliam

seus significados. Segundo Dufrenne, o mais importante na experiência estética: “É que o objeto

estético se enriqueça ao estar frente a essa pluralidade de interpretações que se ligam a ele: o

objeto se enriquece à medida em que a obra encontra um público mais vasto e uma significação

mais diversificada. Tudo ocorre como se o objeto estético se metamorfoseasse (DUFRENNE,

1992, p. 103 – tradução do pesquisador).

Ao estabelecer o conceito de “valor estético”, Mikel Dufrenne propõe o deslocamento

da valoração da obra de arte desde o polo da produção em direção ao polo da recepção; em

igualdade de importância, fazer poético e experiência estética habitam o Ser da obra de arte. A

obra, qual o cosmos, sempre inacabada, encontra sua completude, sua finalidade, seu fim, no

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espectador. Utilizando o conceito de télos28, proposto primeiramente por Aristóteles, a obra teria

como ato final, destino-último, teria como “finalidade”, encontrar o espectador; é ele o seu fim.

O espectador também é necessário para o advento dos valores estéticos: é ele quem separa o estético do religioso, do mágico ou do utilitário, quem apreende o valor em sua pureza e que, no museu imaginário, compõe o cosmos sempre inacabado. O espectador também tem uma tarefa: o apelo que da obra a ser feita se eleva ao artista, eleva-se da obra feita ao espectador; pois essa obra também quer ser percebida e que, na glória do sensível, pelo ato comum daquele que sente e do sentido, brilhe o valor estético. (DUFRENNE, 1998, p. 59).

Como finalidade da obra de arte, a experiência estética – e, por conseguinte, os

valores estéticos construídos nas apreciações das obras de arte – têm a incumbência de reativar o

valor já intrínseco à própria obra. Segundo o autor, a importância da atribuição de tais valores

estéticos por parte do consumidor à obra de arte é preponderante; assim, Mikel Dufrenne propõe

um “estatuto dos valores estéticos”, segundo o qual ele estabelece a “via de mão dupla” que é

criada entre o objeto poético e a experiência estética quando da exposição do esteta ao objeto

estético. Criação artística e reativação do valor artístico da obra são partes vitais e inseparáveis do

complexo obra de arte – apreciação: “Através disso se entrevê o estatuto dos valores estéticos.

Estatuto duplamente precário porque os valores têm, ao mesmo tempo, de ser criados pelo

trabalho artístico e reativados pela experiência estética do espectador” (DUFRENNE, 1998, p.

59).

Aproximando a conceituação estética sintetizada pelo pensamento de Mikel Dufrenne

do campo específico da Música, encontramos em Simone Luci Pereira a definição daquilo que

seriam a finalidade da obra de arte e a importância vital do esteta na construção do complexo

objeto poético musical – objeto estético musical: “A obra se perfaz, enfim, quando há um

receptor, ouvinte pois ela só se completa, se realiza, se efetiva, nele.” (PEREIRA, 2003, p. 6).

28 τελος (télos), conceito aristotélico de finalidade. O Estagirita propõe, no livro Ética a Nicômaco, que as ações humanas tendem a um fim e a finalidade do Homem sobre a Terra é a autossuficiência, a ευδαιμονία (ev̱daimonía), comumente traduzida por “felicidade”, porém com o sentido de “bem-aventurança”; imposto pelo radical ευ (ev̱), o prefixo auto, em português, é imprescindível para a compreensão do conceito.

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Desse modo, podemos afirmar que a produção de sentidos, que se dá no âmbito do

cotidiano, nas práticas das mediações sociais, transforma a própria obra de arte por meio dos

discursos sociais de valoração estética proferidos pelos consumidores de música.

Definidos os objetos poético e estético, suas interações sociais, sua interdependência

de discursos, sua inserção no âmbito do cotidiano do consumidor de música, o presente

referencial teórico passa a contemplar a discussão sobre dois dos diversos fatores que poderiam,

porventura, engendrar o que será chamado de aqui adiante de “desmusicalização da mídia

televisiva”: 1) uma espécie de “hipermidiatização” da Música, provocada pela proliferação de

aparelhos de gravação, armazenamento e reprodução de música e 2) a consequente

“desritualização” do momento de audição de música por conta da mobilidade possibilitada pelos

suportes de armazenamento e reprodução de música que, se por um lado permitem ao ouvinte

estar acompanhado da Música durante grande parte do tempo, além de permitirem ao ouvinte

escolher e decidir pelo repertório a que quer ter acesso, por outro lado pode banalizar o ato de

ouvir música, de modo a transformar a fruição da mensagem contida na obra artística num mero

componente entre outras atividades que se dão em movimento.

Em síntese, a argumentação em torno dos dois fatores elencados acima poderá indicar

uma transformação no hábito de escuta do consumidor de música: a partir do momento social em

que a música deixa de ser ouvida na sala da casa e o hábito de escuta se desloca para o quarto da

casa; deste, para o automóvel; do automóvel à academia de ginástica; do local onde o ouvinte se

encontra parado durante o momento de fruição aos locais para onde ele pode se dirigir ouvindo

música; pouco a pouco a obra de arte deixa de ser a protagonista da ação do ouvinte e se

transforma na companhia do ouvinte que se desloca, que realiza outra e qualquer atividade

simultaneamente à audição de música. Como concluímos ser o consumidor de música parte

integrante do complexo objeto poético musical – objeto estético musical, em tese a transformação

do papel da música na ação cotidiana do ouvinte (de protagonista a coadjuvante) pode engendrar

um empobrecimento na construção do discurso musical.

Desse modo, utilizaremos o conceito de “escuta nômade”, encontrado no livro Por

uma escuta nômade: a música dos sons da rua, de Fátima dos Santos, que propõe uma nova

espécie de escuta, pautada pela possibilidade de deslocamento do ouvinte no momento de sua

audição. A autora aponta uma espécie de “desterritorialização da música” que se dá tanto no polo

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da produção, pois a facilidade de produzir e veicular música muito se potencializou com a

chegada dos computadores, softwares de gravação e canais de divulgação de música na Internet,

quanto no polo do consumo da música, que se dá em novos, móveis e inesperados contextos

geográficos sociais.

... a escuta como construtora e não mais como receptora de uma música dada a priori. Ou seja, tais noções acabam desterritorializando a música daquele território que já lhe era ponto passivo. E é assim que, ao retirar a música do seu território, até então claramente demarcado pela tradição, não apenas o ruído, o silêncio e as paisagens tornam-se música, como também a música passa a ser aquela música do silêncio, do ruído e das paisagens. (SANTOS, 2004, p. 97).

O conceito de escuta nômade, como se depreende da proposição de Fátima Santos,

está diretamente ligado ao conceito de “desterritorialização”. É preciso, no entanto, compreender

“desterritorialização” não apenas como a perda de território – em fato, as gravadoras, detentoras

de um monopólio de produção e veiculação de música ao longo de quase todo o século XX,

perderam territórios de dominação –, mas como a ampliação tamanhamente indefinida e

indefinível do espectro de alcance da música, que levou Giuliano Obici, em seu livro Territórios

sonoros – territórios individuais e escuta coletiva, a contextualizar o elo de similaridade entre a

música e o conceito de “panóptico” trazido do livro Vigiar e punir: nascimento da prisão, de

Michel Foucault (FOUCAULT, 1987, p. 157), justamente pela “presença constante do som que

está em todo lugar”, de forma análoga ao “olho que tudo vê” (OBICI, 2008, p. 108).

O espaço de escuta, amplamente aumentado, desterritorializado, inverte, em certa

medida, o conceito de “sincronização” entre o tempo do indivíduo e o tempo da cidade, do

cotidiano, trazido por José Eugênio Menezes em seu livro Rádio e Cidade, Vínculos Sonoros,

quando o autor situa o veículo de comunicação (o Rádio) como um ativo agente sincronizador

entre os tempos sociais. O Rádio, segundo o autor, por sua característica intrínseca de permitir ao

produtor sonoro não estar presente nos locais em que sua produção é ouvida, trouxe ao cotidiano

de uma incipiente sociedade midiatizada a possibilidade de sincronia entre o indivíduo e seu

locus por conta do raio de ação e alcance das ondas sonoras, que transmitiam mensagens a muita

gente, em locais distintos, definindo uma espécie de ritmo coletivo na sociedade, sobretudo no

âmbito social urbano.

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O rádio mantém uma profunda relação com o espaço social mais próximo, preocupa-se com o entorno, e busca situar-se nele; promove a inter-relação de espaços a partir do local; cria um pulsar rítmico do cotidiano, sincronizando pelo tempo as atividades de uma comunidade (MENEZES, 2007, p.17).

No entanto, com o advento das mídias sonoras móveis, a possibilidade de maior

abrangência de uma ação sincronizadora nas cidades se dissipa, pois a audição passa a ser

extremamente individualizada. A simultaneidade de transmissão dá lugar à particularidade e à

especificidade da audição em inúmeros âmbitos: do tempo, do local, do repertório, do hábito de

escuta.

A mudança nos hábitos de escuta do consumidor de música por conta da proliferação

das mídias sonoras móveis amplia e estende seus efeitos para além do polo de recepção da

mensagem musical, atingindo o polo da produção musical. Se o ouvinte se desloca, munido de

seu próprio repertório montado no set list de sua mídia sonora móvel, ao produtor de música se

apresenta uma nova missão, dividida em três momentos de dificuldade: figurar nesse set list; para

figurar, é preciso ingressar nesse set list e, por fim, ali permanecer. Tal missão pode prescindir da

mídia televisiva, o que pode explicar, ao menos em parte, a tese de um fenômeno de

“desmusicalização da mídia”, aqui sustentada. O receptor de música não mais se vê vinculado a

um meio de comunicação sobre o qual ele não tem controle; ao contrário, prescinde deste e se

transforma em seu próprio programador musical. Assim, é possível afirmar que a mudança nos

hábitos de escuta necessariamente altera o modo de produção da música veiculada e consumida

pela sociedade midiatizada.

A partir do momento em que se deu a expansão das mídias sonoras móveis, a

Televisão, como o poderoso veículo de comunicação de massa da segunda metade do século XX,

ligada intrinsecamente ao conceito de massa, passou a encontrar dificuldades para se aproximar

do ouvinte individual; afinal, este requer um repertório individualizado e ora tem a opção de se

manter distante de um repertório massificado.

Em verdade, é preciso considerar essa questão desde o momento histórico do

surgimento do Rádio, o principal veículo de comunicação de massa da primeira metade do século

XX.

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Como fazem notar Heloísa Valente e Mônica Rebecca Nunes, o protagonismo do

Rádio enquanto veículo de comunicação de massa há que ser compreendido em toda a sua

amplitude e abrangência sociais: o Rádio como o fenômeno de comunicação que interveio

definitivamente no ambiente social e alterou até mesmo a sonoridade da vida cotidiana tanto nas

cidades quanto fora delas. As autoras referem-se ao conceito de paisagem sonora, ao qual

voltaremos em breve29. No entanto, vale ressaltar desde já a intervenção do Rádio na ambiência

sonora e social brasileira (tanto do ponto de vista espacial quanto do ponto de vista temporal) na

primeira metade do século XX, sinalizada pelas autoras primordialmente nas instâncias da

memória cultural e da música. O fenômeno comunicacional alterou os parâmetros culturais de

representação e, por conseguinte, o modo de se ouvir e de se fazer música.

O que salientamos não é apenas a disposição pedagógica do rádio, mas, fundamentalmente, o quanto a memória da ambiência espaço-temporal interage continuamente com a paisagem sonora, por sua vez, estendida em paisagem urbana em determinado lugar. Para isto, temos que nos remeter aos eixos espaço-tempo como codificadores da memória cultural em todas as suas representações, em particular, a mídia radiofônica e a música (VALENTE; NUNES, 1998, p. 170).

Em fato, a música brasileira ouvida antes do surgimento do Rádio tinha alcance de

público menor, portanto menor reverberação social. Circunscrita aos salões das classes abastadas,

às partituras para piano editadas e comercializadas entre poucos estabelecimentos comerciais e

poucos executantes ou aprendizes do piano, aos espetáculos musicais realizados em casas

noturnas urbanas, aos saraus musicais nas casas da então classe média brasileira, às rodas de

chorões do subúrbio da capital federal, às serenatas nas sacadas das casas das cidades, às duplas

de violeiros dos sertões do Brasil e sua estreita audiência, a música brasileira definitivamente não

“atingia as massas” antes do advento do Rádio; não se dava a conhecer, então, uma “música

popular massiva”, como conceituou Jeder Janotti Jr30. A música erudita, não a música de cunho

29 Ver pp. 81-82.

30 Ver p. 81.

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popular31, era a veiculada pelas partituras ou executada nos salões, nos saraus e nos espetáculos

das casas noturnas das grandes cidades; dessa forma, era consumida por um público restrito. A

música de cunho popular era executada por pequenos grupos (sextetos, heptetos, duos) em

reuniões que aglomeravam alguns espectadores; dessa forma era, também, consumida por um

público restrito. A chegada do Rádio veiculou, em princípio, ambas as músicas, porém, em curto

espaço de tempo, massificou a música popular.

Em termos midiáticos, pode-se relacionar a configuração da música popular massiva ao desenvolvimento dos aparelhos de reprodução e gravação musical, o que envolve as lógicas mercadológicas da indústria fonográfica, os suportes de circulação das canções e os diferentes modos de execução e audição relacionados a essa estrutura. (JANOTTI JR., 2006, p. 34).

É possível notar que Janotti aponta para as “lógicas mercadológicas”, que a partir de

então também se transformariam. O mercado de partituras tinha uma determinada abrangência e

poderio, pois movimentado por um público restrito; o mercado fonográfico ganharia abrangência

e poderio inúmeras vezes maior, pois movimentado por um público massivo. De tal forma

abrangente e poderoso, o Rádio alterou até mesmo a configuração da sonoridade social. O som da

sociedade passou a contar com a interferência do som provindo dos aparelhos rediofônicos.

Murray Schafer, em seu livro A afinação do mundo, analisa a intervenção do Rádio enquanto

veículo de comunicação que alterou a concepção da sonoridade social e, para muito além da

sociedade, teria alterado a sonoridade do ambiente natural no qual o indivíduo está inserido –

mais do que o som da sociedade, o veículo de comunicação teria alterado o som da Natureza. O

autor propõe o conceito de “parede sonora” para delimitar o alcance de tais transformações: “O

rádio foi a primeira parede sonora, encerrando o indivíduo com aquilo que é familiar e excluindo

o inimigo [...] O rádio, na verdade, tornou-se a canção dos pássaros da vida moderna, a paisagem

sonora ‘natural’, excluindo as forças inimigas de fora.” (SCHAFER, 1977, p. 137).

O conceito de paisagem sonora (soundscape), proposto acima por Murray Schafer,

traz em si a noção de compreensão e, sobretudo, de identificação dos diversos ambientes sonoros

31 A discussão acerca dos gêneros musicais (neste caso, os gêneros de Música Erudita e Música Popular) será encampada a partir da p. 107.

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que perpassam a vida cotidiana do consumidor de música. Simone Pereira de Sá, ao comentar o

conceito de paisagem sonora, estabelece uma relação entre a paisagem captada pelo sentido da

audição e a paisagem apreendida pelo sentido da visão: “Tal como a noção de paisagem para a

visualidade, soundscape diz respeito à dimensão acústica do meio-ambiente, traduzindo-se por

uma ou mais sonoridades ligadas a um lugar, seja um bairro, uma cidade ou um microambiente”

(PEREIRA de SÁ, 2010, p. 93). A autora propõe, ainda, uma diversidade bastante ampla e

abrangente, tanto do ponto de vista da especificidade quanto do alcance do conceito: “Assim, a

paisagem sonora é uma escala de unidade variável, e pode se referir tanto a uma composição

musical como a um programa de rádio ou a um ambiente acústico mais amplo tal como o

polifônico espaço urbano da metrópole (PEREIRA de SÁ, 2010, p. 93).

No entanto, a transformação da paisagem sonora (natural, como propõe Schafer, ou

sócio-comunicacional, como sugere Pereira de Sá) carregaria consigo uma flagrante perda

sonora, no sentido estrito do som reproduzido. A entidade sonora, analisada desde o ponto de

vista físico, o que é absorvido auditivamente pela vibração medida em hertz, ao mesmo tempo em

que ganharia amplificação, perderia qualidade de forma significativa. Béla Bartók, o compositor

húngaro, expoente da etnomusicologia32 na primeira metade do século XX, no ensaio que proveio

de sua conferência intitulada “Música mecânica”, proferida no ano de 1937, ao tratar de um passo

de fundamental importância para a midiatização musical, o advento da gravação elétrica que, em

1925, fez migrar a captação do som do funil para o microfone e a emissão do som dos elementos

acústicos para os alto-falantes, apontou com propriedade os problemas da mecanização do som,

tanto quando se trata da captação sonora (por conta das vibrações altas, as notas mais agudas)

quanto da emissão sonora (por conta da dinâmica e da característica do som, chamada pelo

compositor de “plasticidade”).

32 Etnomusicologia, denominada primeiramente em 1885 por Guido Adler como “musicologia comparativa”, é o ramo da musicologia que teria como tarefa: “a comparação das obras musicais, especialmente as canções folclóricas dos vários povos da terra, para propósitos etnográficos, e a classificação delas de acordo com suas várias formas”. Japp Kunst, em seu livro Musicologica: A Study of the Nature of Ethno-Musicology, its Problems, Methods and Representative Personalities, de 1950, propõe a alteração do nome para “etnomusicologia”. O surgimento do fonógrafo, em 1877, possibilitou a gravação de manifestações musicais em aldeias distantes dos grandes centros urbanos e, assim, colaborou sobremaneira com a difusão e o aprimoramento da etnomusicologia.

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O resultado assim obtido é incomparavelmente melhor, mas resulta, todavia, insatisfatório. Antes de tudo, por que o microfone, quer dizer, a membrana receptora, ainda se revela insensível aos sons de frequência particularmente elevada e, assim, não pode registrar certos harmônicos e o timbre de alguns instrumentos se altera. Em segundo lugar, não se consegue reproduzir os limites extremos da dinâmica sonora com os pianíssimo e fortíssimo. Há outro motivo de insatisfação: quando se deve gravar várias fontes sonoras, na transmissão perdemos completamente a plasticidade do som (BARTÓK, 1976, p. 226 – tradução do pesquisador).

Bartók, compositor ligado ao universo da música erudita, distante das manifestações

da música popular massiva do início do século XX, aponta uma única possibilidade de

compreensão completa da sonoridade de uma música sinfônica por parte do ouvinte quando de

sua audição por um aparelho radiofônico: o ouvinte deveria estar munido da partitura da peça

musical que está sendo executada. Quando transmitida pelas ondas sonoras provindas dos

aparelhos de rádio, a linguagem polifônica, intrínseca ao discurso da música erudita, permeada

por sobreposições de acordes, utilização de extrema amplitude de espectro timbrístico, pautada

pelo contraponto envolto nas estruturas de dinâmica de execução, imporia intransponíveis

dificuldades ao ouvinte, que não captaria com sua limitada audição as sutilezas instrumentais e de

interpretação da orquestra ou do grupo de câmara: “A compreensão da música polifônica pelo

rádio é mais difícil do que qualquer outra, ao menos que o ouvinte leia ao mesmo tempo a

partitura” (BARTÓK, 1976, p. 231 – tradução do pesquisador).

Impaciente com tal perda, o compositor sentencia tanto o veículo quanto o ouvinte, à

altura encantado pela emissão das ondas do Rádio, como os culpados pelo empobrecimento do

discurso sonoro: “À determinada distância, o som do rádio se transforma num grasnado e num

estrondo pestilentos. Este fato não preocupa minimamente a gente desprovida de bom gosto, que

faz soar os aparelhos com as janelas abertas” (BARTÓK, 1976, p. 231 – tradução do

pesquisador).

No entanto, no distante ano de 1937, ainda que demonstrando impaciência com o

ouvinte do Rádio, Béla Bartók já se apercebia de uma capacidade do polo receptor de cultura que

faria com que o polo de emissão de mensagens tivesse o devido cuidado ao pensar sua relação

com o ouvinte: a possibilidade de desligar o botão do aparelho a qualquer momento em que a

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emissão não mais lhe agradasse. Em certa medida, Bártok considerava o ouvinte (mesmo aquele

“desprovido de bom gosto”) um sujeito ativo no processo comunicacional. A passividade do

receptor poderia ser ressaltada no aspecto de sua não-intervenção na programação das emissoras;

contudo, ao desligar o aparelho radiofônico, o receptor traria à tona seu caráter ativo, que rejeita

uma mensagem distante daquela que por ele era a esperada: “A música radiofônica, em geral, se

presta à audição superficial da peça musical e, para tanto, a uma deplorável inconstância,

justamente porque é muito fácil girar o botão do rádio, ligá-lo e desligá-lo” (BARTÓK, 1976, p.

231 – tradução do pesquisador). O compositor, por fim, alerta para um fato que concerne à

qualidade da espécie de audição a que se submete o ouvinte quando de sua exposição à

programação radiofônica: “Além do mais, enquanto se ouve, podemos fazer mil coisas; falar, por

exemplo” (BARTÓK, 1976, p. 231 – tradução do pesquisador). A audição desritualizada da

Música, imersa em diferentes atividades comezinhas, levaria a arte a um patamar distinto daquele

que requer um ritual de apreciação; aproximaria a arte da característica de ser um elemento entre

vários outros que compõe um ambiente de atividades cotidianas. A música midiatizada causaria,

naturalmente, este malefício à Música. Vale notar, contudo, que Béla Bartók se refere à audição

de música erudita pelo Rádio, uma música que, à altura, se arvorava a dimensões orquestrais

extremas, a alcançar uma sonoridade com requintes de sutileza até então inéditos; o compositor

não se refere à música de cunho popular, concebida e interpretada por pequenos grupos

instrumentais, cujo conteúdo musical (tanto sonoro quanto discursivo) sequer tem a natureza

semelhante à música do próprio Bartók.

Assim como a captação do som passou do funil para o microfone e a emissão do som

passou dos elementos acústicos para os alto-falantes, outros novos e diversos aportes

tecnológicos foram incorporados ao universo do Rádio com o intuito de tornar a sonoridade

captada e emitida pelo aparelho radiofônico cada vez mais próxima da sonoridade real de

instrumentos e vozes, da sonoridade ideal. Começando pela estruturação física dos estúdios de

rádio, Rudolf Arnheim descreve as transformações pelas quais estes passaram, a partir da

segunda metade da década de 1940, visando à melhoria da qualidade de captação e emissão

sonora: “As paredes do estúdio não deveriam ter ressonância perceptível, deveriam refletir o som

apenas o suficiente para lhe dar brilho e plenitude. Abolindo as noções do espaço real, a

consciência subjetiva do espaço acústico pode se soltar livremente” (ARNHEIM, 2005, p. 70).

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Em consonância com Arnheim, Paulo Borges faz notar, detalhadamente, o acuro acústico das

reformas feitas nos antigos e as consequentes exigências necessárias para a construção de novos

estúdios:

... estúdios construídos com paredes não paralelas e geometrias irregulares, revestidas de materiais especiais para absorver as altas frequências e para minimizar e atenuar as ressonâncias e reverberações comuns em ambientes pequenos e médios. Ao ampliar a distância para a onda percorrer o estúdio, o espaço de tempo para esse som ser percebido diretamente pelo ouvido de quem se encontra no estúdio também é aumentado, diminuindo sua intensidade e podendo o tempo de reverberação chegar a zero (BORGES, 2012, p. 463).

Emily Thompson extrapola a arquitetura do estúdios de rádio e, a partir da

perspectiva acústica engendrada pelas reformas arquitetônicas de grandes salas de espetáculo dos

Estados Unidos da América do Norte (Symphony Hall, em Boston, e Radio City Music Hall, em

Nova York), distancia-se do viés naturalístico de Murray Schafer e enfatiza o aspecto cultural e

tecnologicamente mediado da relação do ouvinte com a paisagem sonora: “soundscape é

simultaneamente um ambiente físico e uma forma de perceber este ambiente; é ao mesmo tempo

um mundo e uma forma culturalmente construída de perceber este mundo” (THOMPSON, 2004,

p. 1 – tradução do pesquisador). Segundo a autora, as primeiras quatro décadas do início do

século XX na América do Norte são pautadas pelo debate entre os discursos técnicos, pela

intervenção de arquitetos e engenheiros acústicos em busca de “um som moderno”. Segundo a

autora, para além dos debates, o período histórico, no âmbito da construção e das reconstruções

de salas para audição musical, seria marcado pelos esforços em busca de uma definição teórica e

de uma aplicação prática do que seria uma “boa qualidade sonora” (THOMPSON, 2004, p. 3 –

tradução do pesquisador).

Os investimentos em tecnologia de captação e emissão sonoras visavam a solucionar,

em tese, os problemas apontados por Béla Bartók, vale dizer, captar todos os espectros sonoros

de uma execução e transmiti-los fielmente ao ouvinte, tanto na produção de programação

radiofônica quanto na produção discográfica e, até mesmo, nas apresentações de peças musicais

em teatros. Paulo Borges faz referência também à implementação de equipamentos e de reformas

de salas para que a gravação de discos se aproximasse de uma qualidade sonora que emprestasse

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à Música seu caráter mais verdadeiro: “Milhões gastos em tecnologia para servir à tecnologia -

cabos especiais, microfones unidirecionais de baixa impedância e tratamentos acústicos capazes

de acentuar graves ou minimizar agudos” (BORGES, 2012, p. 463).

Entretanto, o extraordinário alcance do Rádio, “a primeira parede sonora”

(SCHAFER, 1977, p. 137), foi ainda suplantado na segunda metade do século XX pelo veículo

cujo alcance se presumia intransponível: a televisão. A transmissão de som e imagem por um

único veículo trouxe ao aparato tecnológico a condição de protagonista das relações midiatizadas

e, em grande medida, da vida cotidiana em sociedade. Mais do que alterar, o Rádio (e,

posteriormente, a Televisão), de certa forma, construíram novas concepções de escuta, de visão,

de apreensão da cultura e da sociedade. Como propõe Simone Luci Pereira: “As tecnologias,

entretanto, não são apenas transmissoras de sons e imagens, mas também colaboram na

construção de novos modos de escutar, olhar, sentir e conhecer o Outro, alterando as

sensibilidades, modos de percepção e formas de conhecer e escutar o mundo e a vida”

(PEREIRA, 2012, p. 9).

Enquanto o consumidor de música se acostumava a ver uma execução musical pelo

novo veículo midiático, passava a exigir (pois já acostumado aos implementos sonoros), a cada

dia, uma melhor qualidade de emissão sonora do antigo veículo midiático, desprovido da

possibilidade de imagem, o Rádio. Estava inaugurada, próximo ao final dos anos 1960, a corrida

pelo som de “alta fidelidade”, pela transmissão sonora em hi-fi. Murray Schafer, menos

encantado com o progresso tecnológico, mais interessado na macro paisagem sonora (que, para o

autor, abrange o âmbito social e a instância da Natureza) faz notar um movimento contrário. A

evolução daquele seria diretamente proporcional à involução desse: "Os benefícios da

transmissão e reprodução eletroacústica do som são bastante celebrados, mas não devem

obscurecer o fato de que, precisamente ao tempo que a alta fidelidade (hi-fi) estava sendo criada,

a paisagem sonora mundial estava resvalando permanentemente para uma condição lo-fi"

(SCHAFER, 2001, p. 131).

Ao passo que a paisagem sonora mundial incorporava uma polifonia ensurdecedora

de sons e ruídos, o ouvinte de música ganhava o acuro das emissoras de rádio com a emissão de

um som puro, livre de ruídos.

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O ouvinte de música pelo rádio, segundo Eduardo Meditsch, passou a ter real

interesse no consumo de uma música cuja qualidade sonora de emissão era próxima da perfeita;

por outro lado, as emissoras de rádio também encamparam a emissão em frequência modulada;

afinal, além de atender à exigência do ouvinte, os custos eram menores.

Contribuíram para o sucesso dessa associação de interesses vários fatores tecnológicos: o desenvolvimento de novas formas de conservação, manipulação e reprodução do som, e o surgimento da frequência modulada (e, logo a seguir, da FM estéreo) para a sua emissão, que melhoraram a qualidade da propagação musical, diminuindo seus custos (MEDITSCH, 2005, p. 36).

Sônia Moreira e Nélia Del Bianco também ressaltam o aspecto econômico-comercial

da empreitada de emissoras em frequência modulada: “Com a qualidade de som superior à do

rádio em amplitude modulada e um custo, por vezes, menor, as FMs ganham, a partir de então,

espaço crescente, atraindo ouvintes e anunciantes” (MOREIRA; DEL BIANCO, 2001, p.16).

Assim, as rádios em amplitude modulada (AM) e sua transmissão ruidosa perdiam

espaço para as rádios que emitiam sons em frequência modulada (FM). Na tentativa de entender a

discriminação em relação ao ruído no meio radiofônico nas décadas de 1970 e 1980, Paulo

Borges constata (inclusive para os aparelhos de reprodução de discos, adquiridos pelos

consumidores de música) a busca de emissoras, fabricantes e comerciantes de produtos, pela

qualidade na emissão sonora. A reprodução do som no aparelho de rádio e em aparelhos toca-

discos almejava o “som cristalino”.

A partir dos anos 1970, uma série de inovações tecnológicas - principalmente a transmissão do sinal sonoro estereofônico e a transistorização dos equipamentos portáteis - aparelhos do tipo três em um [...] eram capazes de reproduzir o som com uma qualidade e em um volume nunca conseguido antes. Era, portanto, preciso acabar com os ruídos e chiados nas transmissões radiofônicas para realçar o som cristalino do novo sistema FM" (BORGES, 2012, p. 458).

A ocupação das emissoras de rádio e dos fabricantes de aparelhos toca-discos, de

certo modo, condicionou, à altura, o hábito de escuta de parte do público consumidor de música;

se não em sua totalidade, em parte crescente de ouvintes. Joseph Straubhaar e Robert Larose

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apontam a popularização do som com padrão hi-fi iniciado na década de 1970 e consolidado na

década seguinte.

Finalmente, um número crescente de ouvintes estava também interessado em maior qualidade de som, pois os sistemas de alta-fidelidade e de estéreo estavam se tornado muito populares. A mudança de muitas estações de FM para a transmissão em estéreo foi um apelo decisivo para ouvintes sofisticados (STRAUBHAAR; LAROSE, 2004, p. 66).

As emissoras de rádio FM, no intuito de se diferenciarem das emissoras AM na busca

por estabelecer um parâmetro de qualidade, miraram-se justamente no veículo de comunicação

que dominava a cena midiática daquela época: a Televisão. Paulo Borges aponta não apenas o

paralelo tecnológico entre os meios, mas também um paralelo no que havia de intangível entre os

meios: o elemento discursivo das rádios teria sofrido alterações nas grades de programações

segmentadas. Do mesmo modo como ocorria nas emissoras de televisão, o elemento auto-

discursivo (auto-publicitário) das emissoras AM se alteraria quando da divulgação e publicidade

acerca de inovações tecnológicas nos equipamentos; o elemento meta discursivo também sofreria

alterações quando da padronização da comunicação.

Para realçar esse deslocamento da imagem das AM, as FM elegeram a televisão como o grande exemplo a ser copiado: grades de programação segmentadas, padronização na comunicação e um forte apelo de modernidade a partir da sistemática divulgação das inovações tecnológicas em suas próprias transmissões. Se a televisão tinha a transmissão em rede via satélite e em cores, o rádio era agora FM e tinha a novidade do som estéreo (BORGES, 2012, p. 459).

Os hábitos de escuta da sociedade urbana brasileira (ao menos de parte dela) eram

pautados pelo acuro com a sonoridade, produzido e gerado pelas amplas possibilidades que os

modos de gravação e os recursos de emissão sonora, à altura (nas décadas de 1970 e 1980),

davam ao tom do discurso do Rádio e do Disco brasileiro. A paisagem sonora midiática estava

intimamente ligada aos processos de precisão e acuidade sonora possibilitados pelo surgimento e

pelo investimento em tecnologias de aperfeiçoamento tanto nas práticas das gravações quanto nos

aparelhos de reprodução de música.

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Simone Luci Pereira constata a intrínseca relação entre as alterações engendradas

pelas tecnologias de gravação nas searas correspondentes à paisagem sonora midiática, aos

modos de escuta e, até mesmo, na formulação do gosto musical. Desde o campo da tecnologia até

o campo da estética, perpassando a paisagem sonora midiática, a autora faz notar a transformação

nos modos de escuta do ouvinte em sociedade. Usando o conceito de “mundialização”, em

perfeita sintonia com o conceito de transnacionalização33, de Martín-Barbero, já exposto neste

trabalho. O autor situa o fenômeno da transnacionalização pelo início da década de 1960, a autora

insere o fenômeno da mundialização no contexto sonoro que teve início notadamente na segunda

metade da década de 1980, época em que os estúdios de gravação e as emissoras de rádio

implementaram profundas modificações em suas estruturas; modificações estas, de caráter

técnico, promovidas pelos avanços tecnológicos.

Os modos de escuta em meio a mundialização também vão se modificando, seja nos modos de lidar com as técnicas e suportes do universo sônico, seja nas formas de apreciação e formulação dos gostos musicais, afetados e modificados pela paisagem sonora e as tecnologias presentes nas gravações (PEREIRA, 2012, p. 7).

No entanto, o aporte tecnológico implementado nos sistemas de gravação e

reprodução de música não se restringiram a essas duas searas. O avanço tecnológico estendeu-se

também às mídias sonoras móveis. Juntamente com a construção de estúdios acusticamente

preparados, de instrumentos de captação cada vez mais complexos, de aparelhos de retransmissão

de alta fidelidade, proliferaram aparatos tecnológicos que permitiram ao ouvinte de música se

deslocar no momento da audição (o Diskman, o Walkman, o aparelho de mp3, entre outros).

Paradoxalmente, surgia o aparato tecnológico que tanto permitia o deslocamento do ouvinte

quanto comprimia a emissão de um som captado com requinte de acuidade sonora; os fones de

ouvido acoplados a tais aparelhos não reproduziam ao ouvinte um som em alta fidelidade, muito

ao contrário.

A perda de qualidade da reprodução sonora era evidente. Pierre Schaeffer, em seu

livro Tratado de los objetos musicais: ensaio interdisciplinar, afirma que, desde a invenção do 33 Ver pp. 65-66.

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microfone, deu-se um “recorte sonoro” nas ondas sonoras gravadas, distanciando-as

qualitativamente das ondas emitidas (SCHAEFFER, 1998, p.102). Tal perda de qualidade teria se

potencializado com a compressão de ondas para a prensagem de long plays em acetato, de CD em

poliestireno e, ainda mais, para a compactação em arquivos mp3 reproduzidos por fones de

ouvido de pequena amplitude sonora. O autor apresenta duas propriedades da captação do som

pelo microfone: 1) enquadre (plano); 2) ganho (detalhe). Tais propriedades prejudicariam

sobremaneira a futura emissão do som captado, pois o espaço acústico “de três dimensões foi

convertido em espaço de uma dimensão”. O som emitido pelo alto-falante circunscreveria a

escuta pelo enquadramento, perdendo diversas características de “focalização e localização da

escuta direta” quando em comparação ao espaço originário da emissão (SCHAEFFER, 1966, p.

80).

O conceito de “escuta direta” proposto pelo autor, pautado pela não-intermediação

tecnológica entre emissão e audição, é destituído da possibilidade de existência a partir do

complexo captação pelo microfone – emissão por alto falante ou fone de ouvido. A escuta não-

direta, intermediada, apresentaria perdas significativas na qualidade sonora daquilo que é captado

e emitido.

Na escuta direta, nunca se tem o ouvido junto à tábua harmônica do piano, ou pregado à caixa do violino ou à glótis [sic] de um cantor; porém, o microfone pode permitir essas indiscretas aproximações, e não somente proporcionar os primeiros planos de intensidade, mas os colocar de tal maneira que se renovem as proporções internas do som (SCHAEFFER, 1996, p. 80).

Ao tratar da perda engendrada pelo “enquadramento” sonoro das reproduções por

fones de ouvidos que transmitem ao aparelho auditivo do ouvinte ondas sonoras que não expõem

todo o rico espectro de vibrações de um som original, Giuliano Obici estabelece a indagação

fundamental: “Se o sonoro passa a ter um enquadre a partir do sistema de registro e difusão, o

que resta à nossa escuta?” (OBICI, 2008, p. 36).

A pergunta é pertinente e, possivelmente, ainda não haja uma resposta para ela.

Simone Luci Pereira, contudo, reforça a relevância da reflexão sobre o tema: “A escuta

contemporânea vem se mostrando como um campo aberto para a reflexão sobre a forma como o

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ambiente urbano, a imaginação global, as novas tecnologias incidem nos afetos e percepções dos

ouvintes” (PEREIRA, 2012, p. 7).

Retomando o conceito de parede sonora34 já trazido em Murray Schafer neste

trabalho, podemos notar ainda outro fator que incide nos afetos e percepções do ouvinte de

música, sobretudo daquele munido de seu fone de ouvido; tal fator diz respeito ao hábito de

escuta do ouvinte, revela a instância do receptor de música, mas também diz respeito ao outro

polo do processo comunicacional que envolve a emissão e a recepção de música: o advento das

mídias sonoras móveis permitiu ao ouvinte de música criar a sua própria parede sonora, cuja

intransponibilidade advém do fato de ser uma parede individual, personalizada, desconhecida e

incognoscível pelos veículos de comunicação de massa. O surgimento desse novo ouvinte

pressupõe uma nova estética musical, à qual os produtores de música e também os veículos de

comunicação que trazem a música entre seus produtos, têm de se adequar.

Reforça-se, assim, a necessidade de se compreender os hábitos de escuta do ouvinte

e, para além de compreendê-los, respeitá-los; afinal, temos como certa a natureza do ouvinte de

música: ele é um ouvinte ativo. Simone Luci Pereira reitera tal necessidade, partindo da

igualdade de condições em que se encontram ambos os polos, o emissor e o receptor de música.

Ora, se assumimos que a escuta não é um ato passivo, é importante compreender as maneiras como ela se dá, quais são os elementos de identificação entre ouvinte e emissor, de que maneira escutamos canções, performances, vozes, timbres mediatizados que nos chegam de longe, de outras culturas, com as facilidades introduzidas a partir da globalização/mundialização, em que parece termos ao nosso alcance um repertório infinito de sons, vozes, paisagens sonoras – uma “discoteca” infinita. (PEREIRA, 2012, pp. 11 – 12).

O polo de recepção de música sofreu alteração de tal forma significativa com o

advento das mídias sonoras móveis, que transformou o ouvinte da primeira metade do século

XXI num ouvinte globalizado, mundializado, transnacional, munido de uma indefinida

quantidade de músicas armazenadas em seus aparelhos de reprodução, músicas provindas de

lugares tão distintos quanto distantes, com as quais ele se locupleta e na companhia das quais ele

se desloca. 34 Ver p. 81.

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Naturalmente, esse ouvinte está inserido num conjunto de manifestações culturais

também transformadas e também transformadoras do cotidiano das sociedades midiatizadas;

manifestações culturais que permeiam um novo e distinto tempo histórico, como aponta Simone

Luci Pereira, ao tratar desse ouvinte de música da primeira metade do século XXI:

Um ouvinte da atualidade que tem a possibilidade de escutar ou obter (via download, streaming, redes de compartilhamento) quase todas as músicas do mundo que se encontram ao seu alcance, formulando uma escuta própria a este tempo. Um processo global que permeia o conjunto das manifestações culturais, se localizando, enraizando nas práticas cotidianas dos indivíduos (PEREIRA, 2012, pp.6 – 7).

A autora, ao propor um ouvinte que tem papel ativo na construção de manifestações

culturais que intervêm no cotidiano de seu âmbito social, um ouvinte que é parte importante de

um processo global interligado em rede com barreiras de tempo e espaço minimizadas por canais

de comunicação e compartilhamento tecnológicos, está a propor uma relação de dimensão

antropológica entre as mídias sonoras e os ouvinte de música; está a definir um desafio contido

no contexto daquilo a que chamamos “globalização”.

Vão se esboçando aí algumas contribuições que o campo da Antropologia pode trazer ao estudo das dimensões globais culturais do mundo atual e o papel das mídias – em particular as sonoras – neste processo. A escuta midiática assume este papel de possibilitar o conhecimento do distante, do diferente, o que não está isento de conflitos, preconceitos, ideologias, mas que, de alguma forma, colabora neste processo de jogo e confronto de imaginários a que a globalização nos desafia (PEREIRA, 2012, p. 4)

A escuta do ser social do início do século XXI é parte fundamental de seu papel na

existência como ser individual e como ser comunicante. É preciso, portanto, compreender essa

nova escuta, inserida no cotidiano das sociedades, pertencente ao âmbito do cotidiano,

característica de um ouvinte ativo, personalizado e em movimento.

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Dos conceitos O conceito central do presente estudo é o de “desmusicalização da mídia televisiva”.

Atrelado a este e dando suporte ao seu mais completo entendimento, fazemos uso também do

conceito de “hipermidiatização da música”. Mais do que os termos chamativos e os jogos de

palavras, os conceitos aqui apresentados sintetizam o cerne de nossa argumentação.

Notadamente, ambos os conceitos têm suas raízes na Música e na Mídia. Uma e outra

fundamentam e delimitam os campos a serem aqui abordados e discutidos, porquanto os

conceitos de “desmusicalização” e de “hípermidiatização” sejam variantes dos campos de

abordagem da Música e da Mídia.

Como trataremos no capítulo instrumental do presente trabalho, o Capítulo 2, da

definição do que aqui chamaremos de Música35, ora se faz necessário definir o que aqui

chamamos de Mídia. O termo “mídia” aparece, primordialmente, nos estudos que relacionam os campos da

comunicação e diversos de seus correlatos, como a política, a economia, a sociologia e também

em temas multi e interdisciplinares, compartilhados por outros campos do conhecimento.

Liliane Guazima, trazendo os históricos etimológico e temporal do termo, contribui

significativamente para a definição de mídia tal como esta será usada por nós neste trabalho:

O uso generalizado da palavra mídia é recente nas pesquisas em Comunicação no Brasil. A partir da década de 90 é que começou a ser amplamente empregada. Em muitas das publicações especializadas, porém, mídia é utilizada no mesmo sentido de imprensa, grande imprensa, jornalismo, meio de comunicação, veículo. Às vezes, é citada no plural, mídias, num esquecimento - deliberado ou não - de sua origem latina como plural de medium (meio). (GUAZINA, 2007, p. 49 – grifo da autora).

No entanto, é preciso mais do que estabelecer o sentido primeiro do termo; faz-se

necessário delimitar o caráter do próprio meio a ser utilizado como elemento de ligação do

processo comunicacional (a saber, o aparato tecnológico), sua característica unidirecional (há um

emissor de mensagens bastante bem definido) e sua intenção de abrangência e alcance (a

comunicação estabelecida por intermédio de um aparato tecnológico da grande alcance visa a 35 Ver pp. 103.

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uma espécie de relação comunicacional entre emissor e receptor de mensagens comumente

chamada “comunicação de massa”).

Venício Lima, em seu livro Sete teses sobre a relação Mídia e Política, especifica

cada um dos pontos elencados acima. Sobre o caráter do meio que intermedeia o processo

comunicacional, o autor aponta para o elo existente entre o conceito de mídia e a necessária

existência de um aparato tecnológico, situando historicamente o surgimento dessa espécie de

comunicação, chamada “mediatizada”.

O conjunto de instituições que utilizam tecnologias específicas para realizar a comunicação humana. Vale dizer que a mídia implica na existência de um intermediário tecnológico para que a comunicação se realize. A comunicação passa, portanto, a ser uma comunicação mediatizada. Este é um tipo específico de comunicação que aparece tardiamente na história da humanidade e se constitui em um dos importantes símbolos da modernidade (LIMA, 2003, p.113).

Em seguida, o autor aponta precisamente a característica unidirecional da mídia e o

caráter de intencionalidade implícito à espécie de comunicação que a mídia engendra: “Duas

características da mídia são a sua unidirecionalidade e a produção centralizada e padronizada de

conteúdos” (LIMA, 2003, p.113).

Finalmente, Venício Lima refere-se ao caráter de ampla abrangência e longo alcance

das mensagens emitidas por intermédio do aparato midiático, desse modo deflagrando a

intencionalidade apontada anteriormente como sendo a de atingir o maior número de receptores

possível; a intenção de realizar uma espécie bastante nítida de “comunicação de massa”.

Concretamente, quando falamos da mídia, estamos nos referindo ao conjunto das emissoras de rádio e de televisão (aberta e paga), de jornais e de revistas, do cinema e das outras diversas instituições que utilizam recursos tecnológicos na chamada comunicação de massa (LIMA, 2003, p.113).

Estendendo a definição no sentido de estabelecer não apenas o caráter de difusão de

mensagens como também o caráter de armazenamento e compartilhamento de mensagens

(fenômenos permitidos e potencializados após o surgimento das mídias sociais digitais),

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tomaremos, então, a partir de aqui, “mídia” como o conjunto de aparatos tecnológicos envolvidos

no processo comunicacional, com a função de intermediar a relação entre o polo emissor e o

polo receptor de mensagens, servindo também como plataforma de transmissão, armazenamento,

compartilhamento e divulgação de mensagens.

Ainda que prescindindo momentaneamente da definição do que trataremos aqui como

Música, em posse somente dos conceitos que nos balizam acerca do que chamamos aqui de

Mídia, podemos nos arriscar a partir em busca da definição do conceito central do presente

estudo: o conceito de “desmusicalização da mídia televisiva”.

Em verdade, como apontamos até aqui neste Referencial Teórico, estaremos dentro

em breve a estabelecer a diferenciação entre a “música constantemente em busca de um padrão

estético de excelência” (em tese, com o passar do tempo, a cada dia mais e mais distante da mídia

televisiva) e a “música desprovida da busca por um padrão estético de excelência” (presente na

mídia televisa de modo bastante contundente). Tal diferenciação permitirá notarmos a possível

perda de espaço e os eventuais empobrecimento do discurso e declínio de importância da

linguagem musical na mídia televisiva. Em certa medida, estamos partindo do pressuposto de que

a “música constantemente em busca de um padrão estético de excelência” foi abandonada pela

mídia televisiva aberta em favor de uma “música desprovida da busca por um padrão estético de

excelência”, o que gerou tanto uma desmusicalização do veículo de comunicação quanto uma

desmusicalização do próprio público telespectador ouvinte, no polo da estética.

Note-se, desse modo, que o uso do termo “desmusicalização” não implica a ausência

de música e de elementos musicais (trilhas sonoras, músicas incidentais, jingles, assinaturas

musicais etc.) nas grades de programação televisiva brasileira.

Portanto, a partir de aqui, ao mencionarmos o conceito de “desmusicalização da

mídia televisiva” estamos nos referindo à ausência da “música constantemente em busca de um

padrão estético de excelência” na programação das emissoras de televisão aberta no Brasil.

Tal desmusicalização da mídia televisiva aberta (da mídia considerada de um modo

geral) teria deseducado o público telespectador ouvinte, que teria diminuído seu grau de

exigência (tanto do ponto de vista da qualidade da emissão sonora quanto do conteúdo do

repertório musical apreendido nas programações das emissoras de televisão) e, em alguma

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medida, assumido novamente um caráter de receptor passivo de mensagens midiáticas

descomprometidas com o acuro discursivo.

“Desmusicalização da mídia televisiva” não é, em última instância, a ausência de

música na programação da Televisão; “desmusicalização da mídia televisiva”, tal como aqui se

apresenta, é o fenômeno da crescente perda de espaço da “música constantemente em busca de

um padrão estético de excelência” na programação da mídia televisiva brasileira, o que gera

uma espécie de desmusicalização também do espectador e, consequentemente, da própria

sociedade midiatizada.

A análise histórico-estrutural da produção musical que encontrava espaço nas grades

de programação das emissoras de televisão nas décadas de 1960 e 1970 permitirá, no primeiro

momento, mapear se houve “música constantemente em busca de um padrão estético de

excelência” em tais programações; no segundo momento, em havendo espaço de programação

para tal espécie de produção musical, notaremos qual a monta de tal espaço. Desse modo, ao

mapear histórica e estruturalmente as grades de programação das emissoras de televisão nas

décadas subsequentes, notaremos se houve, em fato, a perda de espaço da “música

constantemente em busca de um padrão estético de excelência” na mídia televisiva aberta

brasileira.

Em tese, um dos motivos para a ocorrência do que se chama aqui “desmusicalização

da mídia televisiva” é a “hipermidiatização da música”, cujo conceito também deve ser definido

de modo preciso. Para tanto, em consonância com a argumentação precedente em torno do

conceito de midiatização36, trazemos em adendo, a título apenas de adequação ao termo

“hipermidiatização”, tal como será aqui empregado, uma definição específica do conceito de

midiatização que nos aproxime o quanto possível da possibilidade de utilizá-lo tanto como o

fenômeno social (portanto pelo viés de uma midiatização presente nas mediações socioculturais

do indivíduo ouvinte de música em seu cotidiano) quanto como fenômeno tecnológico (portanto

pelo viés de uma midiatização que apresente ao indivíduo ouvinte de música em seu cotidiano

36 A argumentação acerca do conceito de midiatização tal como será aqui abordado encontra-se entre as páginas 64 e 72 do presente trabalho.

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uma gama de possibilidades de compilação, armazenamento, compartilhamento de música, além

da possibilidade de deslocamento do ouvinte enquanto no momento da audição).

O dinamarquês Stig Hjarvard, ao teorizar sobre a mídia e sua posição de agente de

mudanças sociais e culturais, estabeleceu um traço histórico do conceito e do próprio fenômeno a

que chamamos de midiatização, valendo-se, principalmente, de uma análise que privilegia a

conceituação sob o ponto de vista da midiatização enquanto fenômeno social.

A midiatização surgiu como um novo quadro teórico para reconsiderar questões antigas, embora fundamentais, sobre o papel e a influência da mídia na cultura e na sociedade. Em particular, o conceito de midiatização revelou-se produtivo para a compreensão de como a mídia se difunde para, se confunde com e influencia outros campos ou instituições sociais, tais como a política (Strömbäck, 2008) e a religião (Hjarvard, 2011). (HJARVARD, 2012, p. 54).

Mais do que historiar o conceito e o surgimento do fenômeno social da midiatização,

o autor tanto observou a presença da mídia nas sociedades contemporâneas quanto apontou a

considerável ampliação de seus campos de ação: “A sociedade contemporânea está permeada

pela mídia de tal maneira que ela não pode mais ser considerada como algo separado das

instituições culturais e sociais.” (HJARVARD, 2012, p. 54). A midiatização, para o autor,

extrapolou a dimensão de “quadro teórico” de estudos sobre a sociedade e ocupou o lugar de um

fenômeno sociocultural a ser estudado e compreendido como parte integrante da vida cotidiana

contemporânea.

Ainda com o enfoque primordialmente voltado para o caráter de fenômeno social da

midiatização, uma contribuição fundamental para a compreensão do conceito provém do

pensamento de José Luiz Braga. O autor, ao tratar especificamente do clássico parâmetro de dois

polos na interação comunicacional (a saber, o polo de emissão e o polo da recepção), principia

notando a abrangência dos processos midiáticos na sociedade.

Partimos da hipótese de que a abrangência dos processos midiáticos, na sociedade, não se esgota nos subsistemas de produção e recepção. Esses dois ângulos da midiatização da sociedade são fundados na já tradicional descrição do processo de comunicação como uma relação entre emissor e receptor (através de um “canal” – que seriam os meios de comunicação). Essa descrição tem sido largamente criticada e pode se considerar superada por perspectivas processuais

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muito mais flexíveis e complexas. Entretanto, continua estranhamente presente na percepção do senso comum: emissores e receptores (mesmo quando, em situações de “interatividade”, possam trocar seus papeis) parecem responder, separadamente ou em conjunto, por todos os processos midiáticos existentes na sociedade (BRAGA, 2006, p.21).

A crítica de Braga à já superada dualidade estanque emissor-receptor no processo de

comunicação se revela ainda mais ampla quando os polos de emissão e recepção de mensagens

são ocupados pelos gigantescos organismos da mídia (o emissor, ativo) e da sociedade (o

receptor, passivo).

Correlatamente, elabora-se um dualismo entre “mídia” e “sociedade”, em que a primeira assume o papel “ativo” de geradora de mensagens, e a segunda, na melhor das hipóteses, enfrenta ativamente aquelas interferências, mas sempre na posição de “recebedora” (BRAGA, 2006, p.22).

Segundo o autor, para que o processo de midiatização social funcione efetivamente

como comunicação, é necessário apontar para o surgimento de um terceiro sistema, chamado

“sistema de resposta social”, de onde surgiriam respostas (provindas da sociedade em “interação”

com a produção midiática, não mais oriundas do polo da recepção passiva) produtivas e

“direcionadoras”.

Propomos, assim, desenvolver a constatação de um terceiro sistema de processos midiáticos, na sociedade, que completa a processualidade de midiatização social geral, fazendo-a efetivamente funcionar como comunicação. Esse terceiro sistema corresponde a atividades de resposta produtiva e direcionadora da sociedade em interação com os produtos midiáticos. Denominamos esse terceiro componente da processualidade midiática “sistema de interação social sobre a mídia” ou, simplesmente, “sistema de resposta social” (BRAGA, 2006, p.22).

O “sistema de resposta social” proposto pelo autor muito de perto nos interessa. Ao

tomar contato com plataformas tecnológicas que permitem a gravação, o armazenamento, a

difusão e o compartilhamento de música (além de permitir o deslocamento do ouvinte

simultaneamente ao seu processo de audição), a sociedade “responde” à grande mídia, à mídia de

massa, à Televisão (especificamente para o contexto deste estudo). Não mais é preciso assistir

aos programas das grades de programações da Televisão para entrar em contato com as

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produções musicais; ao contrário, muito mais simples e prático é baixar uma quantidade imensa

de músicas escolhidas não-aleatoriamente, armazená-las num dispositivo, difundir as produções

de cada preferência, compartilhar tais músicas com a própria rede de contatos e ter à disposição o

repertório definido mesmo em períodos de locomoção. O consumidor de música, inserido no

contexto de uma sociedade musicalmente “hipermidiatizada”, prescinde da mídia televisiva para

constituir sua audição, seus hábitos de escuta.

Fausto Neto também contribui valorosamente para a conceituação de midiatização.

Para o autor, que mantém o fenômeno social como principal foco de interesse, a midiatização

reorganiza a cultura das sociedades:

O desenvolvimento e a intensificação das convergências tecnológicas (informática, telecomunicações e audiovisualidades) têm produzido a gênese, organização e efeitos nos processos de interação social, designados como “novas formas tecnológicas de vida” (LASCH, Scott). Esses processos, também compreendidos como midiatização da sociedade, afetam os campos sociais, suas práticas e suas interações, pois passam a se organizar e a funcionar tendo como referência a existência da cultura, de lógicas e operações midiáticas (FAUSTO NETO, 2008, p. 120).

José Luiz Braga faz notar a substituição da cultura escrita como principal referência

de interação social nesse novo momento de uma sociedade midiatizada: “a midiatização, em

curso na sociedade, pode se caracterizar como o desenvolvimento de uma processualidade

interacional ampla, em vias de suplantar a cultura escrita enquanto principal referência para as

interações sociais” (BRAGA, 2008, pp. 147-148).

No entanto, notamos aqui a possibilidade de a Televisão, o veículo de comunicação

considerado como o mais importante e de alcance mais abrangente durante a segunda metade do

século XX, também não mais ser a principal referência de interação social da sociedade

midiatizada.

Ao utilizarmos o termo “hipermidiatização da música”, portanto, estamos a

categorizar justamente o surgimento e a proliferação dessas espécies de suportes tecnológicos-

midiáticos à disposição do ouvinte de música inserido no cotidiano de uma sociedade

midiatizada. Diversas ferramentas da Internet permitem o download e a conversão de música em

arquivos compatíveis com uma extensa gama de suportes tecnológicos-midiáticos; tais mídias

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(iPads, iPods, aparelhos de mp3, aparelhos de mp4, tablets, aparelhos de telefonia celular, fones

de ouvido, entre outros) compõem parte da gama de possibilidades de plataformas tecnológicas,

de suportes midiáticos, que permitem gigantesco armazenamento de repertório musical e

deslocamento do ouvinte enquanto no momento da audição de música; além destes, as chamadas

“mídias sociais em rede” disponibilizam um amplo e variado leque de possibilidades de

compartilhamento e difusão da produção musical.

Tantos diversos suportes tecnológicos-midiáticos “hipermidiatizam” a música. Esta

pode ser armazenada, compartilhada, levada em deslocamento em diferentes e portáteis mídias.

Nesse processo, não mais se faz vital, portanto, a a mídia televisiva. As mídias móveis e as

mídias sociais, de certo modo, trouxeram ao ouvinte menor dependência da Televisão, tanto no

âmbito do acesso à produção musical quanto no âmbito estético, da avaliação, da fruição, da

apreensão da produção de música que ele escolhe ouvir, que ele decide compartilhar, que ele

pensa por bem levar consigo em seus deslocamentos.

Porém, a “resposta social” (possibilitada pela “hipermidiatização da música”) dada à

Televisão pode, em sentido inverso, ter provocado um movimento de distanciamento da

Televisão em relação à produção musical; minimamente, em relação à produção musical “em

busca constante por um padrão estético de excelência”, que requer do ouvinte a atenção, o

apreço, a dedicação mais apurada. A produção musical não balizada pela “busca por um padrão

estético de excelência” revelado pela qualidade estrutural da composição, a música que tem a

função de preencher de som o ambiente qual fora a companhia ausente do ouvinte, a música

composta menos para ser apreciada, mais para ser parte de um contexto, de um momento social,

continuaria a fazer parte da programação da Televisão, pois pouco requer do telespectador, quase

nada apresenta (ou exige) de profundidade estética.

É possível, assim, relacionarmos de modo bastante interdependente a

“hipermidiatização da música” e a “desmusicalização da mídia televisiva”. Afinal, se a música

deixou o espaço fechado da Televisão e ganhou a amplitude de suportes tecnológicos-midiáticos

para se aproximar do ouvinte; se, para além disso, a música “em busca constante por um padrão

estético de excelência” requer do ouvinte algo que a Televisão imagina que ele não possa dar (o

precioso bem de sua atenção), é preciso considerar o fato de que a Televisão eventualmente tenha

deixado de lado a veiculação da aqui chamada música “em busca constante por um padrão

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estético de excelência”; é provável que estejamos a assistir a um processo de “desmusicalização

da mídia televisiva”, no qual a música perde espaço, vê empobrecido seu discurso, perde

importância.

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Capítulo 2

Do conceito de Música e dos elementos de análise

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2. Do conceito de Música e dos elementos de

análise

Música Este capítulo, instrumental por definição, pois intenta conceituar o que será analisado

(a saber, a “canção popular massiva”, expressão a ser aclarada brevemente37) e especificar os

elementos a serem analisados, requer, primordialmente, uma definição precisa do que

chamaremos neste trabalho de “Música”.

Poderíamos nos ater à definição experiencial de Thomas Clifton: “Música é um

arranjamento ordenado de sons e silêncios cujo sentido é presentativo ao invés de denotativo [...]

é a realização da possibilidade de qualquer som apresentar a algum ser humano um sentido que

ele experimenta em seu corpo” (CLIFTON, 1983, p. 24). Estaríamos, no entanto, restringindo a

Música à sua instância experiencial e, assim, ignorando o caráter essencial (no sentido platônico

do termo38) da Música. Qual um fenômeno direcionado a permitir ao ser humano experimentar

corporalmente um sentido, a Música deixaria de ser arte enquanto arte, deixaria de ser um

elemento constituinte da vida enquanto tal e passaria a ser parte apenas e tão somente da

experiência do indivíduo exposto a uma determinada espécie de escuta, reagindo corporal ou

organicamente mente aos seus estímulos.

O compositor Igor Stravinsky alertava, desde a primeira metade do século XX, para o

fato de que a Música tem uma função muito mais ampla do que provocar sensações; a Música, 37 Ver p. 110.

38 Ver pp. 28, 30 e 34.

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segundo o grande compositor russo da época, tem uma função de ordenamento entre o Homem e

o Tempo:

O fenômeno da música foi-nos dado com o único fim de instituir uma ordem nas coisas, incluindo - e principalmente - uma ordem entre o homem e o tempo. Para ser realizado, exige, pois, necessariamente e unicamente, uma construção. Efectuada a construção, atingida a ordem, tudo está dito. Seria vão procurar nela ou esperar dela outra coisa. É precisamente essa construção, essa ordem atingida que produz em nós uma emoção de um carácter absolutamente particular, que nada tem em comum com as nossas sensações correntes e as nossas reacções resultantes de impressões da vida quotidiana. Não é possível precisar melhor a sensação produzida pela música do que identificando-a com a que provoca em nós a contemplação do jogo das formas arquitectónicas. Goethe compreendia-o bem ao dizer que a arquitectura é uma música petrificada (STRAVINSKY, 2000, p. 71 – grifos do autor).

Para o autor, que se remete tanto ao conceito heideggeriano de Ser quanto de

Tempo39, é a música o único modo de tornar real o tempo presente do ser humano: “A música é o

único domínio em que o homem realiza o presente. Por imperfeição da sua natureza, o ser

humano está destinado a sofrer o ser do tempo - das suas categorias de passado e de futuro - sem

nunca poder tornar real, logo estável, a do presente” (STRAVINSKY, 2000, p. 69).

Stravinsky tem o cuidado, também, de evitar toda e qualquer proximidade do polo de

produção da Música de um caráter de expressividade; ao contrário, em consonância com Platão40,

o compositor de A Sagração de Primavera distancia o intento expressivo daquilo a que

chamamos essência da arte:

Considero a música, pela sua essência, impotente para exprimir o que quer que seja: um sentimento, uma atitude, um estado psicológico, um fenómeno da natureza, etc. A expressão não foi nunca a propriedade imanente da música. A razão de ser desta não é de forma alguma condicionada por aquela. Se, como é quase sempre o caso, a música parece exprimir qualquer coisa, trata-se apenas de uma ilusão e não de uma realidade. É simplesmente um elemento adicional que,

39 Martin Heidegger, em sua principal obra, Ser e Tempo, definiu ambos os conceitos em sua estreita ligação com os conceitos de Ente e de Espaço. Para o autor, qual num sistema simples de oposição organizada, Ser e Ente estabelecem a Vida nas delimitações de seus Espaço e Tempo.

40 Ver p. 30.

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por uma convenção tácita e inveterada lhe atribuímos, imposto como uma etiqueta, um protocolo, enfim, uma aparência, e que, por hábito ou inconsciência, chegamos a confundir com a sua essência (STRAVINSKY, 2000, p. 69 – grifos do autor).

Assim, equidistantes dos caráteres experiencial (que levaria a arte à condição de

fornecedora de sentidos e sensações ao polo da estética) e expressivo (que levaria a arte à

condição de terreno individualizante de discursos ao polo da poética) da Música, aproximamo-

nos de sua definição mais precisa.

Não poderíamos fazê-lo, contudo, sem nos valermos do saber de Arnold Schöenberg.

O compositor alemão, em seu Tratado de Harmonia, ao se reportar ao elemento musical da

harmonia e, mais especificamente, ao seu elemento constituinte fundamental, o acorde, apresenta

uma definição precisamente equidistante entre a formação dos acordes musicais utilizados no

repertório da música ocidental (o polo da poética) e o órgão perceptivo do ouvinte (o polo da

estética), fazendo uso do conceito de imitação41 provindo da filosofia de Platão e Aristóteles,

distintas pelo autor no que tange às possibilidades e à capacidade de apreensão do ouvinte (a

intuição de um lado, a razão de outro):

Se os acordes foram originados através da condução das partes ou se essa condução das partes foi possível graças a nosso conhecimento dos acordes é uma questão que aqui não nos interessa, pois tanto um quanto o outro brota da mesma exigência: colocar em sua justa relação o material dado pela natureza - isto é, o som com o órgão perceptivo e com tudo o que está, secundária ou terciariamente, em relação física com este órgão. A esta exigência correspondem ambas possibilidades, pois as duas, ainda que por caminhos distintos, cumprem o objetivo de estabelecer imitações mais fiéis possíveis do material dado, imitações que serão tanto mais perfeitas quanto maior for o conhecimento a respeito delas (intuitivo, com o ouvido, ou mental, através da análise) captando todos os seus traços diferenciais (SCHÖENBERG, 1979, p. 376).

No entanto, como encamparemos a discussão da Música desde o seu ponto de vista

estético, a fim de caracterizar qualitativamente a produção musical na mídia televisiva aberta

brasileira, e, para tanto, lançaremos mão da análise dos modos de estruturação musical

empregado pelo polo produtor de música, não podemos manter o cerne da definição de Música 41 Ver pp. 29, 31, 32 e 33.

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apenas nos polos da poética e da estética, prescindindo de elencar os elementos estruturais

constitutivos do discurso dessa espécie de produção artística: a harmonia, a melodia e o ritmo, já

apontados no presente trabalho quando do aporte filosófico oriundo do pensamento aristotélico42.

Desse modo, tomaremos conceitualmente a Música como a arte cuja matéria prima é

o som, organizado sobre os pilares de três elementos constituintes do discurso musical, a saber,

harmonia, melodia e ritmo.

Contudo, para o fim específico de analisar a produção musical veiculada pela mídia

televisa, não podemos nos quedar fitos no conceito geral de Música, de caráter essencial; afinal,

trataremos de uma espécie de música (a saber, a música veiculada pela mídia televisiva, a música

midiática), composta dos três elementos constituintes do discurso musical, harmonia, melodia e

ritmo, necessariamente somados a um elemento provindo da literatura, a letra. Tal espécie de

produção musical é comumente chamada “música popular”. Estamos a considerar, portanto, a

análise de um gênero musical tomado desde a perspectiva de sua apreensão por intermédio de um

veículo midiático, a Televisão.

Para tanto, devemos nos valer do conceito de “gênero musical” proposto por Simon

Frith: “Um modo de definição da música em relação ao mercado, do potencial mercadológico

presente na música” (FRITH, 1998, p. 76 – tradução do pesquisador). Segundo o autor, o

conceito de gênero musical facilita a relação mercadológica que se estabelece entre polo de

produção – e, sobretudo, de veiculação de música – e o polo de recepção da música, o

consumidor, na medida em que, de um lado, uma espécie de produção musical ganha um rótulo e

passa a ser referência para outras espécies de produções similares e, de outro lado, aquela espécie

de produção musical passa a ser reconhecida como parte de um comportamento social, de um

modo de vida que o consumidor quer estabelecer ou, ao menos, aparentar: “é uma conversa

silenciosa que acontece entre o consumidor, que sabe aparentemente o que quer, e o vendedor,

que trabalha copiosamente para imaginar o padrão dinâmico dessas demandas” (FRITH, 1998,

pp. 76-77 – tradução do pesquisador). Tomamos o conceito como o sintetizou Jeder Janotti Jr:

42 Ver a partir da p. 30.

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Os gêneros seriam portanto modos de mediação entre as estratégias produtivas e o sistema de recepção, entre os modelos e os usos que os receptores fazem desses modelos por intermédio das estratégias de leitura dos produtos midiáticos [...] o gênero musical é definido, assim, por elementos textuais, sociológicos e ideológicos; é uma espiral que vai dos aspectos ligados ao campo da produção às estratégias de leitura inscritas nos produtos midiáticos (JANOTTI JR., 2006, 39).

Desse modo, tomaremos de aqui em diante a Música Popular como a arte cuja

matéria prima é o som, organizado sobre os pilares de três elementos constituintes do discurso

musical, a saber, harmonia, melodia e ritmo, somados ao elemento literário constituinte da

música dita popular, a letra.

É preciso ressaltar o devido cuidado tomado ao nomear a música dita “popular” pela

expressão “gênero musical”, pois esta expressão pode ser utilizada também para caracterizar

espécies de música popular definidas por suas células rítmicas repetidas (Forró, Baião, Dixieland,

Fado, Rock and Roll, entre outros). Estendemos o cuidado para além da fronteira nominativa, a

fim de alcançarmos a instância estética: a abordagem da Música a partir de uma divisão proposta

pelo conceito de gênero é adequada para os fins de análise a que este trabalho se propõe;

entretanto, é preciso deixar claro de antemão que a apreensão da música popular transmitida por

um veículo de comunicação de massa se dá no âmbito do cotidiano do consumidor de música,

envolto em suas mediações sociais e, sobretudo, pautado por sua subjetiva condição estética,

como aponta Jeder Janotti Jr.

Apesar de acreditar que é um caminho bastante promissor em termos de uma análise comunicacional da música, a abordagem a partir dos gêneros não deve deixar de lado as tensões que envolvem a experiência do ouvinte diante da música popular massiva, ou seja, o encontro de algo que é partilhado socialmente, mas ao mesmo tempo possui aspectos de ordem individual (JANOTTI JR., 2004, p. 198).

É importante notar que o autor utiliza o termo “massivo” para o gênero caraterizado

por uma música composta por harmonia, melodia, ritmo e letra, de cunho popular, e transmitida

por um veículo de comunicação de massa. Essa “música popular massiva” habitaria,

primeiramente, o espaço individual de apreensão e produção de sentidos para, em seguida,

lançar-se a um espaço social mediatizado de produção e re-produção dos sentidos

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compartilhados: “Assim, o universo da música popular massiva pode ser entendido como um

“entre-mundos” que é vivenciado parcialmente a partir das experiências dos sujeitos e de sua

partilha” (JANOTTI JR., 2004, p. 199). A música popular massiva seria um “campo musical”,

como nomeou Simone Luci Pereira, bastante amplo – e a cada dia mais amplificado pelas

possibilidades de acesso e compartilhamento de repertório à distância num curto espaço de tempo

–, de grande valor econômico, mas ainda maior valor simbólico: “Um campo musical em que

identidades fragmentadas, locais e vozes, sons e performances em movimento, misturadas,

“mixadas”, com capacidade de se integrarem a identidades múltiplas detêm valor e legitimidade

no mercado de bens simbólicos” (PEREIRA, 2012, p. 6).

O “campo musical” das composições que se valem dos elementos discursivos

harmonia, melodia, ritmo e letra, aqui chamado de “gênero musical” da Música Popular, por ser

um gênero de música necessariamente cantada e ter o elemento literário em igualdade de

condições de análise com o elemento musical (apesar de o primeiro ser composto apenas da letra

e o segundo ser composto por três modos de articulação discursiva – harmonia, melodia e ritmo),

pode ser também chamado de “canção popular”. Esquecendo-se dos elementos harmônico e

rítmico, Jeder Janotti Jr assim define a canção popular: “Inicialmente canção se refere à

capacidade humana de transformar uma série de conteúdos culturais em peças que configuram

letra e melodia” (JANOTTI JR., 2006, p. 35).

O autor, que já apontara o caráter “massivo” quando da conceituação de “gênero

musical”43, não se esquece desta feita de ressaltar essa característica intrínseca da canção popular

em seu encontro com o aparato midiático: “A noção de canção popular massiva está ligada aos

encontros entre a cultura popular e os artefatos midiáticos” (JANOTTI JR., 2006, p. 35).

Se a canção popular massiva está ligada aos artefatos midiáticos, sua análise não pode

prescindir de contemplar também outras instâncias para além dos elementos componentes desse

gênero musical, a saber, harmonia, melodia, ritmo e letra. A análise da canção popular massiva

deve abranger o que, segundo o autor, seria a sua “configuração como produto midiático”. O

arranjo, a instrumentação e a interpretação vocal (do cantor ou dos cantores solistas, dos coros e

43 Ver pp. 108-109.

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dos backing vocals) fariam parte do âmbito da “execução” da música e as técnicas de gravação e

reprodução constituiriam o âmbito da “configuração como produto midiático” de uma música.

A canção popular massiva pressupõe uma interação tensiva entre a criação e sua configuração como produto midiático. Assim, a música massiva, em seus diversos formatos, valoriza não só a execução, mas também as técnicas de gravação/reprodução, levando em conta timbres eletrônicos ou acústicos, a ambivalência de sons graves ou agudos, a reverberação e a sensação de extensão sonora (JANOTTI JR., 2006, 37).

Ainda sem incorporar os elementos das técnicas de gravação e reprodução, a serem

trazidos em coleção dentro em breve44, a definição, para fins de análise, das peças do gênero

Música Popular, a que chamaremos aqui de Canção Popular Massiva, levarão em consideração

tais produções de música como sendo a arte cuja matéria prima é o som, organizado sobre os

pilares de três elementos constituintes do discurso musical, a saber, harmonia, melodia e ritmo,

somados ao elemento literário constituinte da música dita popular, a letra, executadas por

intérpretes cantores acompanhados de formações instrumentais que obedecem um arranjo

musical concebido para dar forma à execução.

Finalmente, para uma última instância de análise, é preciso considerar ainda a

“ambientação em que a canção se apresenta”, o que se chama de “performance”. O conceito de

performance, primeiramente atrelado apenas ao modo como o intérprete concretizava sua

apresentação no palco (ou na gravação da música), é aqui considerado em consonância com

Janotti Jr, que aponta traços performativos que distam do intérprete vocal (seja ele um cantor

solistas, sejam mais cantores) e se encaminham para o entorno de sua apresentação corporificada.

Performance: “não é somente a apresentação ao vivo, já que escutar uma canção inclui a “corporificação” da voz, ou seja, uma atuação, um modo especial de conduta, a “personificação” de uma interpretação, um ato orientado para o processo comunicativo. Isso implica destacar os traços performativos como a entonação, o movimento, a situação e a ambientação em que a canção se apresenta (JANOTTI JR., 2004, p. 194).

44 Ver p. 121.

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Entretanto, Simone Luci Pereira avança na conceituação e propõe um passo além do

entorno da apresentação corporificada. Para a autora, a performance se estende até a instância do

ouvinte: é nele que a obra se completa. A autora é coerente no que toca à condição ativa do

receptor de música45 e nós somos concordantes com a autora, pois já definimos neste trabalho,

com Laan Mendes de Barros, o polo da estética como polo onde se dá a produção de sentidos46.

A tríade intérprete vocal – contexto – ouvinte completaria o conceito de performance.

A performance se encontra atada a um contexto cultural e situacional em que a ação se desenvolve; atada assim, a um tempo e lugar. Liga-se também a um corpo e sua competência como também a um corpo que recebe, que pulsa, emana calor, etc. Isso, por se tratar de um drama a três: interprete, texto e ouvinte, em que este último é co-autor da obra (PEREIRA, 2003, p. 5).

De fato, há que se considerar o ouvinte da canção popular massiva parte integrante do

processo de construção e produção de sentidos desse gênero musical; há que se considerar a

performance como um elemento de análise. Esse gênero, sobretudo quando gravado em disco,

permite ao ouvinte a audição em diferentes ambiências e contextos físicos (o aparelho de som na

sala da casa – o automóvel), culturais (o ouvinte, aos 17 anos de idade – o mesmo ouvinte, aos

40), sociais (a audição no fone de ouvido, dentro do metrô – a audição na festa de aniversário) e,

até mesmo, psicológicas (a audição quando acompanhado – a audição quando sozinho).

Pierre Schaeffer já apontava para essa faceta da importância do esteta frente à obra

poética musical, quando tratava do próprio objeto sonoro ouvido repetidas vezes.

No objeto sonoro que escuto, sempre há algo mais para ouvir; é uma fonte inesgotável de possibilidades. Com cada repetição de um som gravado, escuto o mesmo objeto, porém nunca ouço da mesma maneira, porque de desconhecido se torna familiar, e a cada vez percebo nele aspectos distintos; e mesmo nunca sendo o mesmo, sempre o identifico como esse objeto determinado. (SCHAEFFER, 1966, p. 115).

45 Ver pp. 59, 77 e 92.

46 Ver pp. 47, 60, 61, 63 e 64.

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Simone Luci Pereira, em sintonia com Schaeffer no que tange à função do contexto e

do ouvinte na performance, trazendo à tona novamente o conceito de Murray Schafer já

apresentado neste trabalho47, ressalta a importância dos fatores físicos, culturais, sociais,

psicológicos, e acrescenta os componentes de macro configuração da escuta: a etnia, a mídia, a

paisagem sonora: “A percepção que o ouvinte tem de uma canção, de uma voz, de um som, não

será o mesmo feito em locais e épocas diferentes, pois a realidade e o contexto são outros, a

etnopaisagem, a mediapaisagem e a paisagem sonora também” (PEREIRA, 2012, p. 12).

Em perfeita consonância com Janotti Jr, porém ressaltando a importância do papel do

ouvinte no processo de performance de uma canção popular massiva, a autora elenca os

elementos a serem considerados na análise musical: a interpretação vocal, a instrumentação, o

arranjo (o que chamamos “execução”) e o que chamamos a “configuração como produto

midiático” da canção. A gravação em disco tem na performance a sua paisagem sonora.

Há que se pensar na performance da canção gravada em disco como paisagem sonora. Cumpre saber que sons estão presentes, o que evocam, que sentidos lhe atribuem os ouvintes. No caso específico das canções, sons que se compõem da voz do cantor, dos instrumentos, mas também dos arranjos, das tecnologias utilizadas nas gravações, as técnicas de captação sonora, de gravação, de mixagem etc (PEREIRA, 2012, p. 8).

Retomando o conceito de “mundialização”48, já referido neste trabalho, a autora

encontra um ouvinte cujos hábitos de escuta se transformaram e se transformam a cada dia, de

modo acelerado e concernente ao tempo presto da primeira metade do século XXI, permeado por

elementos tecnológicos. Em certa medida, os hábitos de escuta refletem a conformação

mundializada da cultura e são refletidos por esta. A paisagem sonora que se transforma não é

apenas a do âmbito local, mas de a âmbito global. O ouvinte está em sintonia com o hábito de

escuta de um mundo “mundializado”, e esse mundo permite e constantemente apresenta a ele tal

sintonia.

47 Ver p. 81.

48 Ver p. 89.

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Refletir sobre a paisagem sonora, os elementos que estão presentes na performance da música midiática mostram-se como um fecundo caminho para se compreender aspectos da cultura mundializada, permeada por elementos tecnológicos, globais e também locais, referenciais. Mas, pensar no receptor, na sua escuta ativa e formuladora de sentidos, mostra-se também fundamental para compreender esta mesma cultura mundializada, em que a percepção do ouvinte também se acha em transformação, integrando valores, concepções, padrões de escuta diferentes, compondo identidades culturais nômades, híbridas (PEREIRA, 2012, pp. 11 – 12).

Entretanto, é preciso enfatizar que o ouvinte e seus hábitos de escuta apreendem as

produções musicais e produzem sentidos em suas mediações sociais por intermédio do aparato

midiático. Ainda que esse aparato não mais seja um veículo de comunicação massiva, é um

suporte midiático e mantém sua característica de mediador desse processo comunicacional a que

chamamos de performance. Se, como afirmou Janotti Jr, “a performance musical é um ato de

comunicação que pressupõe uma relação entre intérprete e ouvinte” (JANOTTI JR., 2006, 41),

esse ato é intermediado por um aparato midiático que, indubitavelmente, modifica a execução-

primeira mas nem por isso necessariamente a corrompe. Simone Luci Pereira se precata da crítica

“benjaminiana”49 a respeito de uma eventual perda da “aura”, intrínseca à gravação de uma

performance em disco; afinal, o aparato midiático intermedeia a comunicação, altera em parte o

que é comunicado, mas não tem o poder de alterar a “gestualidade oral” da interpretação vocal,

tampouco definir a experiência do sujeito ouvinte.

Assim, embora se possa argumentar que a performance mediatizada faça com que se perca a presença, a “aura”, há que se lembrar que mesmo a gravação (com todo seu aparato técnico) ainda contém elementos que são característicos, próprios, não sendo apenas uma perda. Ela se modifica, claro, mas nem por isso é algo a ser desmerecido e visto como menor ou falseador. A interpretação feita

49 A conhecida crítica de Walter Benjamin à suposta “perda da aura de uma obra de arte” encontra-se expressa na segunda versão do texto A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica, iniciado pelo autor em 1936 e publicado em 1955, no período de texto que se segue: “o que murcha na era da reprodutibilidade da obra de arte é a sua aura. O processo é sintomático, o seu significado ultrapassa o domínio da arte. Poderia caracterizar-se a técnica de reprodução dizendo que liberta o objeto reproduzido do domínio da tradição. Ao multiplicar o reproduzido, coloca no lugar de ocorrência única a ocorrência em massa. Na medida em que permite à reprodução ir ao encontro de quem apreende, atualiza o reproduzido em cada uma das suas situações.”

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pelo cantor tem comunicação com o ouvinte, pois por trás dos recursos técnicos, do timbre do cantor, existe uma gestualidade oral (PEREIRA, 2003, p. 7).

Segundo a autora, ao contrário de uma determinação autoritária da experiência do

sujeito ouvinte, o aparato midiático leva ao ouvinte a possibilidade de uma experiência única a

cada audição. Em verdade, cada audição dá uma nova forma à performance, pois aquela

transforma esta, incompleta de antemão, até que encontre sua completude no polo de recepção de

música. Conteúdo e forma da performance se transformam a cada ouvinte que apreende a seu

determinado modo, em seu próprio tempo, segundo suas características intrínsecas de tempo,

lugar, estado emocional. A experiência estética não é apenas o polo de chegada da produção

poética mas, também, o polo onde a poética se completa, sem o qual a obra seria sempre

inacabada.

Mais ainda, ao se moverem, as performances se modificam não apenas em seu conteúdo, mas também na função social que podem ter, pois são liberadas aos caprichos do tempo, oscilando na indeterminação de sentidos que ela faz e refaz a todo momento. A performance se refere não à ideia de completude, mas ao desejo de realização, uma vez que comporta sempre o inacabamento. A sua forma só é percebida nas situações de performance, pois a cada uma nova, a “forma se transforma” (PEREIRA, 2003, p. 9).

A música contida na gravação seria composta de um conjunto de convenções bastante

complexo, que percorreria desde as notas grafadas pelo compositor na partitura até as mediações

sociais da produção de sentidos que o ouvinte capta (para, em seguida, reproduzir, debater,

transformar), passando pela configuração corporificante do ouvinte e pelas regras do mercado

fonográfico. A lógica de composição, produção e veiculação se completa na apreensão e na

consequente produção de sentidos mediados, como sintetiza Janotti Jr.

Traçar a genealogia de uma faixa ou de um CD envolve localizar estratégias de convenções sonoras (o que se ouve), convenções de performance (o que se vê, que corpo é configurado no processo auditivo), convenções de mercado (como a música popular massiva é embalada) e convenções de sociabilidade (quais valores, gostos e afetos são “incorporados” e “excorporados” em determinadas expressões musicais) (JANOTTI JR., 2004, p. 192).

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A Canção Popular Massiva, assim, será conceituada como a arte cuja matéria prima

é o som, organizado sobre os pilares de três elementos constituintes do discurso musical, a

saber, harmonia, melodia e ritmo, somados ao elemento literário constituinte da música dita

popular, a letra, executadas por intérpretes cantores acompanhados de formações instrumentais

que obedecem um arranjo musical concebido para dar forma à execução, e que tem uma

performance inserida num contexto de gravação e reprodução técnicas, apresentação poética e

apreensão estética.

Definidos os parâmetros de análise a que se deve submeter uma peça musical de

caráter popular, composta de elementos musicais (harmonia, melodia e ritmo) e de elementos

literários (a letra), interpretada por instrumentistas e cantores que engendram uma performance

gravada, veiculada por um aparato midiático, apreciada esteticamente por um ouvinte ativo que

apreende e produz sentidos em suas mediações sociais; uma peça musical aqui delimitada pelo

gênero “canção popular massiva”.

Resta, por fim, e à guisa de especificação do contexto mercadológico que envolve tal

análise, trazer em coleção o debate acerca do mercado de música da primeira metade do século

XXI em contraposição ao padrão estético relativo a esse mercado; resta, após completar o ciclo

produção poética – intermediação tecnológica – apreciação estética, voltar à instância da

produção. Não mais a produção poética realizada apenas para um espectador em contemplatio50;

desta feita, complexificada pelo longo e pedregoso caminho que percorreu.

Livres dos grilhões das corporações institucionais, vale dizer, das gravadoras

nacionais ou multinacionais que dominaram o mercado fonográfico durante quase todo o século

XX, em tese independentes dos padrões de produção e veiculação ditados por um mercado

insensível à arte e voltado para a obtenção de lucro, os artistas teriam à disposição canais de

produção e veiculação disponibilizados por aparatos tecnológicos acessíveis que contrariariam a

lógica de um mercado de massa. O padrão estético seria proposto e pautado, assim, pelo artista,

não pelo mercado. Como afirma Felipe Trotta, “nos debates sobre o mercado musical atual, é

possível notar uma associação recorrente entre tecnologia, independência e qualidade estética”

(TROTTA, Felipe, 2010, p. 249). Estaríamos a opor arte e mercado numa disputa pelo padrão

50 Ver nota 23, p. 53 e nota 9, p. 37.

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estético; uma e outro estariam em franca contraposição. A instância da produção de música,

independente das regras impostas pelo mercado de massa, encontraria nichos mercadológicos

onde o padrão estético seria respeitado e valorado.

Quase todos os discursos apontam positivamente para o fato e que as facilidades tecnológicas aumentaram as possibilidades de circulação da produção “independente”, estabelecendo canais e nichos mercadológicos que demandam músicas diferenciadas. Indiretamente, o “mercado de nichos” é descrito como um ambiente onde a qualidade estética pode se desenvolver com maior facilidade do que num mercado “de massa”, o que aciona uma retórica de valoração estética baseada na oposição entre arte e mercado (TROTTA, Felipe, 2010, p. 249).

Estaríamos necessariamente vinculados a um pressuposto adorniano, segundo o qual,

enquanto a produção musical (agora independente do mercado, pois constituída de mecanismos

de produção e veiculação disponibilizados por aparatos tecnológicos que lhe permitem e apontam

nichos mercadológicos esteticamente qualificados) primaria por um padrão estético irretocável, o

mercado ambicionaria necessariamente uma produção musical desprovida de todo e qualquer

padrão estético (que atingiria as massas desqualificadas esteticamente).

No entanto, essa premissa se mostra falsa. Não podemos deixar de ressaltar que

Adorno, ao distinguir as esferas artísticas entre “superior” e “inferior”, caracteriza a segunda

como uma manifestação artística de “indomável força de oposição”51.

Tal “força de oposição”, de natureza indomável, é notada por Felipe Trotta, que se

remete exatamente ao momento histórico definido por Adorno como “o momento em que o controle

social não era total”.

Apoiando-se numa oposição direta entre arte e mercado, o discurso da valorização da produção independente e autônoma nega o próprio processo de constituição do campo artístico, fundado primordialmente na existência de um

51 Ao tratar da massificação da arte, Adorno afirma a respeito da indústria cultural: “Promove também uma união forçada das esferas de arte superior e arte inferior, que permaneceram separadas durante milênios. Para prejuízo de ambas. A superior com a especulação sobre o efeito, perde a sua seriedade; e a inferior, com a domesticação civilizatória, perde a indomável força de oposição que possui até o momento em que o controle social não era total.”

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mercado que libertou a produção cultural da tutela da Igreja e da Corte (TROTTA, 2010, p. 250).

O autor aponta, ainda, uma contradição no pensamento de Adorno, pois se a arte ou,

mais especificamente, o processo de constituição do campo artístico teve seu nascedouro ligado à

existência de um mercado que possibilitou à arte a libertação em relação ao clero e à nobreza,

arte e mercado mantêm desde então um vínculo indissolúvel: “nesse sentido, o ideal adorniano de

uma arte superior destinada ao deleite de um público culto e concebida como manifestação

individual de um artista especialmente criativo incorpora uma contradição constitutiva”

(TROTTA, 2010, p. 251).

No caso específico deste trabalho, a esfera da canção popular massiva brasileira,

ainda que “inferior” do ponto de vista adorniano, apresentou desde sempre sua natureza

“indomável” (o nascimento do chorinho no subúrbio da capital federal no final da década de

1910, o surgimento do samba em aglomerados habitacionais nos morros do Rio de Janeiro na

segunda metade da década de 1920, a marchinha de Carnaval que brotou nas manifestações

populares de rua no início dos anos 1930, entre outros e tantos momentos da história da canção

massiva brasileira, denotam manifestações artística nascidas em ambientes populares, que

conquistaram boa parte da população e, somente então, foram incorporadas pelas mídias de suas

épocas), seu caráter de “força de oposição” (o chorinho como variante criativa das polcas e

mazurcas europeias executadas nos salões da classe abastada, o samba do morro como

consequência expressiva do maxixe do subúrbio da cidade, a marchinha como alternativa à

música dos corsos nos desfiles) e seu elo com o mercado (o chorinho, executado no Rádio,

ganhou contornos de música de alto grau de popularidade e alcançou os palcos franceses; o

samba, executado no Rádio, desceu do morro, tomou conta da cidade e chegou aos EUA; a

marchinha, executada no Rádio, ganhou exposição para além da época do Carnaval e chegou aos

mais distantes rincões do Brasil).

Assim, a canção popular massiva brasileira, indomável por natureza, esteve desde seu

nascedouro ligada ao mercado. Primeiramente ao micromercado de sucessos pontuais que

levavam os artistas a casas de espetáculo para temporadas de shows e, logo em seguida ao

surgimento do Rádio, ao macromercado de consumo alcançado pelo veículo midiático. Felipe

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Trotta indica a interdependência entre arte e mercado desde o ponto de vista da exposição dos

produtos quanto da profundidade simbólica proveniente de tal união: “Arte e mercado não podem

ser pensados como duas esferas distintas e em oposição, mas como espaços integrados e

simbolicamente articulados” (TROTTA, Felipe, 2010, p. 252).

Trata-se, segundo o autor, de acurar a percepção acerca de uma espécie de

“legitimidade estética” reclamada por setores produtivos da música brasileira que apregoariam a

independência em relação ao mercado como a garantia de um ganho discursivo estético: “As

disputas por legitimidade estética e mercadológica ocorrem através do acionamento de estratégias

conceituais e procedimentos técnicos que determinam as posições dos sujeitos e suas tomadas de

posição” (TROTTA, Felipe, 2010, p. 252). Em verdade, a ideia de uma produção de música

independente do mercado musical, apoiada nas facilidades tecnológicas que potencializam as

possibilidades de circulação dos produtos e disponibiliza canais de criação de nichos

mercadológicos que demandariam músicas cujos padrões estéticos seriam superiores às

produzidas e veiculadas pelo mercado fonográfico de massa, estaria tanto mais próxima de um

complexo de estratégias de dominação de espaços mercadológicos quanto distante de um ideal

estético puro, baseado na apreensão do conteúdo musical de modo contemplativo. A disputa

estética seria não mais do que a disputa por fatias de mercado financeiro em rasa instância e de

mercado simbólico em sua dimensão profunda.

Portanto, o sentido articulado pela ideia de independente e de autonomia por músicos e críticos na segunda metade do século XX remete a uma dessas estratégias de obtenção de espaço no mercado – que representa ganhos financeiros e simbólicos – muito mais do que a uma argumentação coerentemente fundada no ideal estético kantiano do desinteresse (TROTTA, Felipe, 2010, p. 252).

Rita Morelli lança mão de uma abordagem antropológica dessa disputa estética que, a

rigor, seria uma disputa por nichos de mercado de consumo de música, para direcionar a

discussão no sentido do artista produtor de música, ocupado na busca por um padrão estético de

excelência. Segundo a autora, este ficaria a meio caminho entre a indústria e a cultura, numa

posição que a ele permite tanto a crítica àquela quanto a esta. Tal artista, naufragando em meio à

necessidade de concretizar um produto adequado ao consumo e o anseio por elaborar um produto

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que requer um ineficaz esforço de vendagem, não encontra o seu local de existência; afinal, ele

não é um artista que produz uma música “de consumo”, tampouco sua produção “de prestígio”,

“de qualidade”, encontra espaço no universo das instituições de produção e veiculação de música.

Sem espaço próprio para situar sua produção, resta a tal artista a crítica a ambos os polos que o

ladeiam: a indústria e a cultura de massa.

Compreende-se, pois, dessa maneira, que o mesmo artista que critica as gravadoras por não se esforçarem para vender o que é “de prestígio” critique também os artistas que se sujeitam a fazer o que é “de consumo”: ao que parece, a fim de conciliar logicamente a contradição de sua situação objetiva em relação às oposições conceituais que a sustentam, o artista lança mão de uma espécie de divisão ideal de tarefas entre o sujeito da indústria e o sujeito da cultura [...] Isso lhe permite criticar também o que lhe parece uma inversão de papéis, isto é, a preocupação do artista com a vendagem de seu produto. (MORELLI, 2009, pp. 170 – 171).

Felipe Trotta propõe, desse modo, a síntese daquele que seria um discurso que

contemplaria ambos os procedimentos que ladeiam o artista que pauta sua produção pela busca

por um padrão estético de excelência discursiva musical. Separando arte e mercado, porém

almejando a produção de música que encontre aceitação no mercado, o discurso de conciliação

entre polos aparentemente antagônicos seria construído de tal modo a encontrarmos um inserido

no outro: “Trata-se, portanto, de um discurso que, ao mesmo tempo, separa arte e mercado e

estabelece modelos de consagração estética que buscam encontrar espaço para a arte dentro do

mercado” (TROTTA, 2010, p. 252).

Assim, devidamente especificados o contexto mercadológico do conceito daquela a

que chamamos aqui de “canção popular massiva”, podemos discriminar os elementos que

doravante envolverão a análise das peças musicais:

1. Elementos estritamente musicais

a) Harmonia

b) Melodia

c) Ritmo

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2. Elemento literário

a) Letra

3. Elementos da Performance

a) Arranjo/instrumentação

b) Interpretação vocal

c) Técnicas de gravação e reprodução

d) Contexto de apresentação e apreensão

Vale ressaltar, por fim, o fato de que o espectro analítico delimitado acima não

contempla uma instância de análise assaz relevante: a análise das interpretações que se

consolidam no polo da estética, as interpretações do ouvinte de música.

Tal instância de análise demandaria uma outra espécie de abordagem, ligada ao

universo de uma pesquisa de recepção, que intentaria rastrear as interpretações provindas da

estética da recepção em diversos e distintos lugares, tempos, modos e contextos de apreensão de

música. Um universo de interpretações cambiante por natureza, pois um ciclo indefinido se

estabelece a partir do primeiro momento da audição. A canção executada no palco de um Festival

de Música Popular, na década de 1960, passa pelas apreensões e consequentes interpretações

estéticas de receptores inseridos em contextos tão distintos quanto distantes: o espectador que

estava na plateia naquele dia; o telespectador que assistiu ao programa transmitido pela televisão

naquele dia; o ouvinte que conheceu a música somente quando ouviu a gravação em disco de

acetato, um ano depois; o apreciador que ouviu a reprodução da faixa, em CD, 20 anos depois; o

cinéfilo, que assistiu a um documentário sobre o referido festival, gravado em DVD, 40 anos

depois; o mesmo espectador que estava na plateia naquele dia, porém agora ouvindo a mesma

canção no rádio do automóvel, distante do ambiente que cercava o Festival. Inúmeras cíclicas

interpretações que compõem o rico e amplo universo constituinte do polo da estética.

A presente pesquisa, de caráter teórico-argumentativo, não se arvora à empreitada de

uma pesquisa de recepção, que poderá ser levada a cabo em outra oportunidade, justamente a

partir das conclusões obtidas desta feita.

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Vale ressaltar, a título de precisão na definição da categoria analítica, que, ao

constituir um parâmetro analítico situado no polo da estética estaríamos a considerar uma outra

forma de “Interpretação”, diferente da aqui nomeada “Interpretação vocal” (item “b” da terceira

espécie de Elementos, denominada “Elementos da Performance”), pertencente ao polo da poética.

É fato que o intérprete vocal, ao entoar as palavras da melodia de uma canção é o

intérprete-primeiro da obra, fato que o levaria ao polo da estética, o que o distanciaria dos

elementos de análise aqui constituídos. No entanto, dois fatores inserem o intérprete vocal no

polo da poética: é ele o artista responsável por levar (neste caso por intermédio de um aparato

midiático) a canção popular massiva a uma gama extensa de ouvintes; a interpretação do

intérprete vocal compõe o complexo expressivo musical a ser apreendido – é pela ação do

intérprete vocal que a criação poética encontra a apreciação estética.

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Capítulo 3

Da análise poético-estética

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3. Da análise poético-estética

Este capítulo, de natureza ilustrativa, intenta fazer notar os recursos de linguagem

musical e literária empregados pelos compositores na estruturação dos discursos poéticos de suas

obras. Para tanto, serão analisados à luz de parâmetros pertinentes à linguagem musical os

elementos componentes dos âmbitos estritamente musical e literário da estruturação de uma

canção, a saber:

1. Harmonia

2. Melodia

3. Ritmo

4. Letra

O capítulo intenta, também, analisar o contexto de apreensão estética das canções,

elencando para tanto o que chamaremos aqui de “Elementos da Performance”, tomando o

conceito de performance em consonância com Janotti Jr. e Simone Luci Pereira52. Para tanto,

serão analisados os elementos componentes da concepção da execução e do contexto específico

histórico e midiático da apresentação e consequente apreensão de uma canção, a saber:

5. Arranjo/instrumentação

6. Interpretação vocal

7. Técnicas de gravação e reprodução

8. Contexto de apresentação e apreensão

52 Ver pp. 115 – 119.

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Os oito itens mencionados acima serão aplicados, primeiramente, em análises de

canções pertencentes ao repertório produzido para e veiculado pela mídia televisiva brasileira da

segunda metade da década de 1960, em três canções divididas em dois grupos que se distinguem

justamente pelo acuro poético discursivo, baseado no sofisticado uso dos recursos de linguagem

literário-musical, e pela ausência de tal procedimento composicional-performático por parte dos

artistas.

Em seguida, os mesmos oito itens serão aplicados em análises de canções

pertencentes ao repertório produzido para e veiculado pelas mídias televisiva e digital brasileiras

na primeira metade da segunda década dos anos 2000, em duas canções também divididas pelo

acuro poético discursivo presente em uma e ausente em outra.

O fato de haver um par de canções pertencentes ao repertório da década de 1960

pautadas pelo acuro poético discursivo deve-se a dois fatores: a intenção de delimitar

precisamente os recursos de linguagem utilizados na estruturação do discurso literário-musical

que permitem defnir uma canção massiva popular como uma obra musical comprometida com a

consolidação de um padrão estético de excelência; o fato de os discursos assim estruturados

servirem como matrizes de procedimentos composicionais que foram utilizados ao longo das

décadas seguintes por compositores comprometidos ccom o acuro poético de suas obras musicais.

Cinco serão as canções aqui analisadas, divididas em dois universos: a produção

musical da segunda metade da década de 1960 (três canções) e a produção musical na primeira

metade da segunda década dos anos 2000 (duas canções).

O primeiro universo de análise contará as canções Domingo no Parque, de Gilberto

Gil, e Sabiá, de Tom Jobim e Chico Buarque, apresentadas respectivamente no III Festival de

Música Popular Brasileira da TV Record, em 1967, e no III Festival Internacional da Canção,

em 1968, exibido pela TV Globo, que podem ser definidas pelo extremo rigor composicional,

utilização de uma gama bastante rica de recursos de linguagem e pela construção de um discurso

pleno em sofisticação e requinte literário-musical.

Completa o primeiro universo de análise, a canção Doce de Coco, de Wanderley

Cardoso e Cláudio Fontana, apresentada pelo cantor Wanderley Cardoso primeiramente no

programa Jovem Guarda, exibido pela TV Record, no ano de 1966, e gravada em disco compacto

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duplo no ano seguinte; a canção caracteriza-se por um discurso literário-musical pobre no que

tange ao rigor composicional, à sofisticação e ao requinte no uso dos recursos de linguagem.

O segundo universo de análise contará as canções Vidro Fumê, de Carlos Colla e

Kaliman Chiappini, e Além, Porém Aqui de Fernando e Gustavo Anitelli, apresentadas

respectivamente no DVD Bruno & Marrone – Pela Porta da Frente, gravado ao vivo no ano de

2012, lançado no ano seguinte, e no DVD A Sociedade do Espetáculo, do grupo O Teatro

Mágico, lançado em 2011, com vendas diretamente do Site oficial do grupo ou de sua página

(também oficial) no Site Facebook.

A primeira canção do segundo universo de análise apresenta parco uso dos recursos

de linguagem na estruturação do discurso literário-musical e se assemelha à construção discursiva

da canção Doce de Coco, pertencente ao primeiro universo de análise. A segunda canção, ao

contrário, apresenta acuro estrutural e espelha o rigor discursivo das canções Domingo no Parque

e Sabiá.

Podemos estabelecer analiticamente duas “linhagens” distintas: aquela dedicada ao

acuro poético, e consequente padrão estético de excelência, e aquela não comprometida com a

estruturação de um discurso literário-musical rico, cujo padrão estético é empobrecido tanto do

ponto de vista do polo da poética quanto da recepção estética da canção.

A escolha das canções do primeiro universo de análise obedeceu ao seguinte critério:

Domingo no Parque e Sabiá são duas canções representativas da Era dos Festivais, sendo

segunda e primeira colocadas em seus respectivos concursos e Doce de Coco é uma canção

representativa do repertório da produção de sucessos comerciais da época; o disco que contém a

referida faixa vendeu um total de mais de 6 milhões de cópias53.

A escolha das canções do segundo universo de análise obedeceu ao seguinte critério:

Vidro Fumê foi a canção mais executada nas rádios brasileiras no ano de 201354, o que estalebece

o traço de similaridade com o sucesso de vendas obtido pela canção Doce de Coco. Além, Porém

Aqui, cujo vídeo foi disponibilizado no canal oficial do grupo no Site Youtube contava mais de

500.000 acessos no mês de maio do ano de 2014, quando a análise aqui trazida em coleção se 53 Dados ABPD.

54 Dados ABPD.

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concretizou, o que indica a possibilidade de a canção popular massiva brasileira comprometida

com o acuro poético não ter de todo desaparecido do complexo midiático, apenas ter se deslocado

da mídia televisiva para as mídias digitais e para as mídias digitais móveis.

O fato de trazermos em coleção as cinco canções, de naturezas tão distintas entre si

mencionadas acima, deve-se à necessidade de deixarmos claro desde aqui que este trabalho não

pressupõe uma contraposição de valores do repertório das décadas de 1960 e 1970 ao da primeira

metade da segunda década do século XXI tomando por base a premissa de que a produção

musical do passado era toda ela pautada pela excelência discursiva e a produção musical do

presente é toda ela desprovida de qualidades discursivas.

Intentamos demonstrar, de modo ilustrativo, que tanto nas décadas de 1960 e 1970

quanto na primeira metade da segunda década do século XXI há produção musical de alto teor

poético e produção musical de raso acuro poético no que diz respeito à estruturação do discurso

musical pelo uso criativo e consistente dos recursos de linguagem disponíveis.

Tentamos fazer notar, também, que tanto nas décadas de 1960 e 1970 quanto na

primeira metade da segunda década do século XXI há espaço midiático para ambas as espécies de

produções musicais – a de alto padrão estético e a desprovida de predicados poéticos e

consequente ausência de padrão estético.

No entanto, é preciso notar que este trabalho intenta delimitar a existência de

programas regulares nas grades de programação das emissoras de televisão das décadas de 1960 e

1970 com a intenção deliberada de promover e divulgar as obras de compositores de música

popular brasileira dedicados ao implemento da linguagem, à estruturação de um discurso

literário-musical de alto teor poético e padrão estético de excelência. Segundo nossa tese aqui

defendida, tal espécie de produção midiática perdeu espaço a partir da segunda metade da década

de 1980 e não mais existe nas grades de programação das emissoras de TV aberta no Brasil nesta

primeira metade da segunda década do século XXI.

A inexistência dessa espécie de produção midiática possivelmente tenha dificultado

sobremaneira o surgimento de várias gerações de grandes compositores de música popular

brasileira, o que engendrou um acentuado empobrecimento discursivo na produção das obras da

canção massiva brasileira.

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As canções da segunda metade da década de 1960

Domingo no Parque, de Gilberto Gil – apresentação no III

Festival de Música Popular, realizado pela TV Record, em 196755.

Harmonia56

Todo o discurso da harmonia de Domingo no Parque é estruturado a partir da

similaridade entre a sequência de acordes e a sonoridade extraída do instrumento berimbau,

ligado à manifestação da capoeira. O intervalo de um tom separando os acordes, sempre

executado no sentido do primeiro grau para o sétimo grau bemol, faz referência explícita ao

intervalo de um tom das notas da estreita tessitura do instrumento, também sempre executado no

sentido do primeiro para o sétimo grau bemol.

A sequência de acordes I – VIIb – I, desse modo, já aparece na introdução da canção,

tão logo findam os oito compassos orquestrais, que fazem menção ao tema melódico do final da

peça. Quatro compassos da sequência antecedem a chegada da melodia principal, executada por

um cantor solista e um coro a três vozes.

Durante os primeiros quatro compassos do tema, a mesma sequência se faz presente,

quando da apresentação da melodia do primeiro tema da canção. Em seguida, com o fim explícito

55 A partitura da canção analisada encontra-se grafada no Anexo 2 deste trabalho, à p. 481.

56 Os termos específicos pertencentes ao universo linguístico estritamente ligado à linguagem musical encontram-se definidos no Glossário componente deste trabalho, no Anexo 1, p. 467.

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de voltar ao primeiro grau, a sequência é incrementada pela presença do quarto e quinto graus. A

sucessão de acordes I – VIIb – IV – V – I, no compasso quinto, leva ao trecho seguinte da

canção, o tema B, contrastante com o primeiro tema, o Tema A da forma ternária da canção. O

sexto compasso, binário, tem a anacruse do novo tema, ainda sob a égide do primeiro grau da

tonalidade.

A partir do compasso sétimo, partindo do quarto grau sustenido menor com quinta

diminuída e sétima, o acorde mais distante harmonicamente do primeiro grau, guiada pelo ciclo

das quartas, a sequência percorre sete acordes distintos no espaço rítmico de dois compassos

quaternários até voltar ao primeiro grau da tonalidade. A mesma sucessão dos acordes IV#5-/7 –

V7 de IIIm – IIIm7 – V7 de IIm – IIm7 – V7 – I encampa os compassos nono e décimo. O

décimo primeiro e o décimo segundo compassos encaminham a sequência harmônica que ratifica

o fato de que a canção ainda se encontra no âmbito do primeiro grau e o fazem pelo movimento

diatônico do campo harmônico da tonalidade, porém utilizando o sétimo grau bemol (em lugar do

sétimo grau natural) para manter a estreiteza e a unidade discursiva proposta desde a introdução

da peça. Os acordes I – VIIb – VIm7 – V7 desembocam, então, pelo compasso 13, na sequência

inicial da canção, a sequência que faz menção à sonoridade do berimbau.

Os sete compassos seguintes repetem a estrutura iniciada no sétimo compasso e

configuram em definitivo a segunda parte da peça, o Tema B. No entanto, em lugar do sétimo

grau bemol utilizado no compasso 11, surge como incremento da sequência que ratifica o

primeiro grau o relativo menor do acorde do sétimo grau bemol.

O vigésimo primeiro compasso, binário, apresenta, então, o quinto grau com sétima

de uma nova tonalidade, um tom acima distante da primeira. Inicia-se, aqui, a reexposição do

primeiro tema. No entanto, a estrutura da reexposição é modulante por princípio, em princípio e

desde o princípio.

O compasso vinte e dois, novamente quaternário, é todo ele apresentado na nova

tonalidade (um tom acima da tonalidade original). O compasso seguinte ratifica o novo tom com

a sequência V – IV – I. Mais dois compassos obedecem a nova tonalidade e o uso do quinto e do

quarto graus indicam claramente a confirmação da modulação proposta no início do compasso

21.

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Contudo, a partir do compasso 26, a canção se encaminha para uma nova tonalidade.

Utilizando o primeiro grau do tom original da peça, sucedendo-o de seu respectivo quarto grau e

repousando em seu terceiro grau menor durante todo o compasso 27, a estrutura harmônica está a

se encaminhar para o quarto grau da nova tonalidade, quinto grau da tonalidade original. A

sequência, sucedida no compasso seguinte por dois quintos graus, confirma-se no compasso 29

na nova tonalidade, ratificada pela sequência do acorde do novo tom intercalado com seu

respectivo sétimo grau bemol, mantendo a unidade discursiva especular da sonoridade do

berimbau, elemento utilizado desde a introdução da peça. Em verdade, a sequência dos quatro

compassos descritos acima indica a sucessão dos acordes IV – VIIb – VIm – V7 de V – V7 – I,

sendo este primeiro grau o primeiro grau da nova tonalidade.

O acorde do primeiro grau do novo tom ocupa todo o trigésimo compasso.

O compasso 31, no entanto, é o início do percurso em direção a uma nova tonalidade.

A quarta modulação principia-se no compasso 32, quando o sétimo grau bemol do tom anterior,

terceiro grau maior (tonalidade relativa) do novo tom, domina todos os quatro tempos e é

sucedido por seu respectivo terceiro grau bemol, acorde que dista um trítono do novo tom,

perdura por todo o compasso 33 e que concretiza a modulação para o novo tom, no compasso 34.

Pela primeira vez repousada sobre uma tonalidade do Modo Menor, a canção encontra-se agora

no segundo grau menor da tonalidade original, no grau homônimo da segunda tonalidade, quinto

grau menor da tonalidade imediatamente anterior a ela.

O movimento melódico da anacruse do compasso 35 leva a canção a uma nova

tonalidade. O terceiro grau maior do tom anterior, quarto grau do tom original é exposto durante

os quatro compassos em sintonia rítmica e unidade discursiva com a sequência I – VIIb – I,

indicada desde a introdução.

Novamente o movimento melódico da anacruse, desta feita no compasso 38, leva a

canção a uma nova tonalidade. A sexta tonalidade diferente apresentada, quarto grau maior do

tom anterior, sétimo grau bemol do tom original, é exposta durante os quatro compassos

seguintes, em sintonia rítmica e unidade discursiva com a sequência I – VIIb – I, indicada desde a

introdução, qual nos quatro compassos anteriores.

A sessão da reexposição modulante passa, a partir do compasso 42, a realizar

modulações por tonalidades já antes empregadas. O recurso harmônico para executar tais

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modulações permanece sendo o da anacruse melódica, utilizado nos oito compassos anteriores.

Assim, a sétima tonalidade pela qual a canção passa, não é uma tonalidade distinta das anteriores;

é, em verdade, a segunda tonalidade encontrada na canção, definida no compasso 22, um tom

acima da tonalidade original, dois tons acima da tonalidade anterior.

O compasso 43 também conhece uma nova tonalidade, porém já utilizada. A oitava

tonalidade pela qual a canção passa também não é uma tonalidade distinta das anteriores. A

canção encaminha-se para a terceira tonalidade encontrada na canção, definida no compasso 26,

distante de um intervalo de quinta justa acima da tonalidade original, uma quarta justa acima da

tonalidade anterior.

Os compassos 44 e 45 repetem os compassos 43 e 44.

Nova mudança ocorre na sequência dos compassos 46 e 47: o quinto grau de sua

tonalidade respectiva é introduzido no início do compasso 46, o que indica a permanência da

canção nesta tonalidade. No entanto, em lugar de suceder o compasso 46 da sequência já utilizada

tanto no compasso 43 quanto no compasso 45, a estrutura harmônica se encaminha para o

terceiro grau menor daquela tonalidade, sexto grau menor (tonalidade relativa) do tom em que se

encontra. A canção, assim, encontra sua oitava tonalidade, a sexta tonalidade distinta entre as

outras: o sexto grau menor da tonalidade anterior, sétimo grau natural da tonalidade original.

Também esta modulação é concretizada e ratificada pela sucessão Im – VIIb – Im, que remete à

sonoridade do berimbau, recurso discursivo empregado desde a introdução da peça.

O compasso 48 tem a sequência I – VIIb – I do sexto grau da tonalidade, o que não

configura modulação. Contudo, o mesmo acorde sexto grau da tonalidade ocupa a função de

quarto grau da tonalidade anterior. Assim, esta nona modulação, que se concretiza no compasso

seguinte, define a tonalidade que permanecerá até o final da canção.

Os três compassos subsequentes serão dominados pela sequência I – VIIb – I do

quarto grau da tonalidade, sendo sucedidos pelo segundo grau menor da mesma tonalidade, o que

reafirma o novo tom como aquele em que a canção terá seu desfecho.

O compasso 54 é todo centrado no quinto grau com sétima da nova tonalidade.

Sucedendo o segundo grau menor do compasso anterior, perfaz a sequência IIm7 – V7 – I,

utilizada como regra para definir a tonalidade.

O compasso 55 tem o primeiro grau reafirmado.

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Os cinco compassos seguintes têm a sequência de acordes definidas pelo movimento

diatônico descendente do baixo, sobre a escala maior do novo tom. A sequência de acordes I/VII

– IV/VI – V7 – IV – IIIm7 nos leva ao compasso 61, no qual encontramos a sequência IIm7 – V7

– I, que define o final da canção no compasso seguinte, dominado pelo primeiro grau da nova

tonalidade.

A canção tem, do ponto de vista harmônico, a riqueza discursiva de perpassar oito

modulações, que sustentam a melodia de nove tonalidades (6 delas distintas das outras),

mantendo o elemento de unidade nitidamente exposto pela sequência harmônica que espelha a

melodia de um berimbau; quando este passa de nota a outra, aquela vai de acorde a outro, ambos

separados pela mesma distância de um tom – notas um tom abaixo naquele, acordes na sequência

I – VIIb – I neste.

O ponto culminante do complexo de modulações que perpassam os 64 compassos da

canção acontece no compasso 42, justamente quando a modulação não se dá para uma tonalidade

distinta, mas para uma tonalidade já antes empregada. Tal modulação ocorre pela via da anacruse

melódica e inverte a ordem esperada. A modulação que ali se configura é executada exatamente

para a tonalidade que, alguns compassos e modulações depois, será a tonalidade definitiva do

desfecho da canção.

Afora esse fator, vale ressaltar que a canção tem início num determinado tom para o

qual não mais retorna. A sucessão de modulações não intenta voltar ao tom original, prática

comumente utilizada; ao contrário, concretiza-se como o tom final da peça aquele que foi

constituído ao longo das diversas modulações.

Melodia

Domingo no Parque apresenta o seu elemento melódico constituído de um par de

melodias. Em discreto e ocasional contraponto (que se apresenta quando da superposição da

última nota da melodia da voz solista executada juntamente com a primeira nota da voz do coro)

intercalado com frequentes contracantos, as melodias travam uma espécie de movimento de

perguntas e respostas.

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A linha melódica principal da canção, a voz do solista, chamada “primeira voz”, é

basicamente estruturada sobre o trecho descendente da escala maior diatônica, iniciando no

quinto grau da escala e terminado no primeiro grau, correspondente ao primeiro grau tonal da

harmonia.

A linha melódica secundária da canção, a voz do coro, chamada “contracanto”, é

basicamente estruturada sobre o intervalo descendente distando um tom entre a terceira nota da

escala maior diatônica do acorde de primeiro grau da harmonia e a segunda nota da escala maior

diatônica do acorde de sétimo grau bemol da harmonia, em perfeita sintonia com a célula de

unidade discursiva harmônica, já descrita, que espelha o movimento melódico da sonoridade de

um berimbau.

Movimento diatônico descendente e contracanto encampam o discurso dos cinco

primeiros compassos. O sexto compasso, binário, anacruse para o Tema B, é composto apenas

pela melodia da voz do solista.

A partir do sétimo compasso, com o início do Tema B, a melodia troca sua

característica e passa a apresentar, alternadamente, um compasso composto de uma melodia

estruturada pela bordadura entre o sexto e o sétimo graus da escala diatônica maior em células de

síncopas e um compasso com o intervalo descendente distando um tom entre a terceira e a

segunda notas da escala maior diatônica, remetendo também a melodia principal à sonoridade de

um berimbau.

Os compassos 11 e 12 têm o arpejo ascendente construído sobre o acorde, partindo de

sua terceira nota, como mote para a volta da exposição do Tema B, ainda sobre a voz solista,

durante os oito compassos subsequentes.

O vigésimo primeiro compasso, binário, apresenta o caráter modulatório que parte da

estrutura melódica em lugar da tradicional passagem de tom engendrada pela estrutura

harmônica. A reexposição do primeiro tema, modulante por princípio, tem início com a frase que

parte da sexta nota da escala diatônica do tom original, quinto grau do novo tom. Esta nota é

sucedida pelo sexto grau da escala diatônica do novo tom e, após um movimento descendente,

desemboca na nota fundamental do primeiro grau da nova tonalidade. A modulação acontece pela

frase melódica.

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Entre os compassos 22 e 25 encontramos a célula do arpejo ascendente partindo do

terceiro grau da escala diatônica do novo tom, sucedido pelo movimento descendente diatônico

que se encerra no quarto grau da escala.

A partir do compasso 26 a melodia acompanha o movimento harmônico e se traduz

na modulação que se encaminha para o quinto grau da tonalidade original, quarto grau da

tonalidade anterior. A modulação se concretiza no compasso 29, no primeiro grau diatônico da

escala do novo tom.

O compasso 30 repete a estratégia de modulação a partir da melodia. Esta, ficada

sobre o quarto grau harmônico (primeiro grau da tonalidade original), tem o elemento da unidade

discursiva fincado no arpejo ascendente partindo da terceira nota da escala diatônica

correspondente ao acorde.

Contudo, no compasso seguinte, o elemento modulatório não mais se apresenta na

voz solista, mas, sim, no contracanto, que volta a protagonizar a cena melódica, pois a passagem

do quarto grau conjunto ao acorde do sétimo grau bemol da tonalidade que ali se dá é de

dificuldade extrema pois harmonicamente assaz distante.

Assim, a melodia do compasso 32, construída sobre o acorde do terceiro grau bemol

conjunto, trítono da tonalidade subsequente, também construída sobre o elemento discursivo do

arpejo ascendente que parte da terceira nota da escala diatônica maior do acorde, se dá de modo

natural; a melodia principal herda, do movimento do contracanto executado no momento da

radical modulação, o seu conforto melódico. A nota longa que ocupa todo o compasso 34,

sustentando na voz solista o primeiro grau da nova tonalidade, soa como a refrega após a batalha

modulatória que antecedeu a chegada da tonalidade menor onde ora se encontra.

Os quatro compassos seguintes remetem o movimento melódico aos quatro

compassos iniciais da canção, nos quais voz solista e contracanto alternam trecho descendente da

escala maior diatônica, iniciando no quinto grau da escala, terminado no primeiro grau,

correspondente ao primeiro grau tonal da harmonia, e intervalo descendente distando um tom

entre a terceira nota da escala maior diatônica do acorde de primeiro grau da harmonia e a

segunda nota da escala maior diatônica do acorde de sétimo grau bemol da harmonia, simulando

o movimento melódico da sonoridade de um berimbau. Porém, todo o trecho se dá numa nova

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tonalidade à qual a harmonia se encaminhou graças ao movimento melódico iniciado na anacruse

do compasso 35.

Os quatro compassos subsequentes repetem a estratégia dos quatro compassos da

sequência anterior, de modo conciso, repetindo idêntica estrutura, porém sob a égide de uma nova

tonalidade, também alcançada pelo movimento melódico, desta feita iniciado na anacruse do

compasso 39.

O elemento discursivo que dá unidade melódico-harmônica à canção, volta a ser

utilizado a partir do compasso 42, quando ocorrem as modulações por tonalidades já antes

empregadas. A anacruse melódica, desta feita, se dá pela repetição da terceira nota da escala

diatônica do novo tom, num movimento de síncopas na voz solista sucedidas pela célula terceira

nota da escala – nota um tom abaixo – terceira nota da escala, qual a sonoridade do berimbau,

que se encontra no contracanto.

No compasso seguinte, de modo idêntico porém numa nova tonalidade, encontramos

a mesma estratégia discursiva: síncopas na voz solista sucedidas pela célula terceira nota da

escala – nota um tom abaixo – terceira nota da escala, qual a sonoridade do berimbau, que se

encontra no contracanto.

Os compassos 44 e 45 repetem os compassos 43 e 44.

O início do compasso 46 acompanha o quinto grau com sétima da nova tonalidade. A

modulação se dá, desta feita, pela via da harmonia; contudo, simultaneamente ao movimento

melódico, sempre mantendo a unidade discursiva pelo uso do movimento diatônico descendente

partindo da quinta nota do acorde até alcançar a primeira nota da tonalidade.

Apesar de a estrutura harmônica se encaminhar para a oitava modulação no compasso

47, a melodia mantém seu movimento, o que caracteriza uma estratégia de requinte

composicional, pois encontra-se a mesma melodia executada sobre duas estruturas harmônicas

distintas.

Novamente, no compasso 48, repete-se a estrutura melódica sobre o sexto grau da

tonalidade. Apesar de não se configurar a modulação, o recurso de utilizar a mesma melodia

sobre estruturas harmônicas distintas se repete, pois realizada sobre a sequência I – VIIb – I do

acorde do quarto grau da tonalidade. A melodia, assim, encaminha a nona modulação, que se

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concretiza no compasso seguinte e define, juntamente com a harmonia, a tonalidade que

permanecerá até o final da canção.

O compasso seguinte, no entanto, além de concretizar a tonalidade, apresenta o

movimento melódico que sustenta a modulação na voz do coro, em notas de síncopas, repetidas,

sucedidas do movimento descendente da escala maior diatônica executada pela voz do solista.

Os três compassos subsequentes, dominados pela sequência I – VIIb – I do quarto

grau da tonalidade, sucedidos pelo segundo grau menor da mesma tonalidade, que reafirma o

novo tom como aquele em que a canção terá seu desfecho, mantêm a mesma estrutura melódica

que permeou toda a peça, desde os quatro compassos iniciais do tema principal e de seu

contracanto.

A anacruse do compasso 55, em seu movimento diatônico descendente, reafirma o

primeiro grau da tonalidade em que desfechará a canção.

Todo o movimento diatônico descendente do baixo, sobre a escala maior do novo tom

e a reafirmação da sequência harmônica sustentam a melodia que mantém a mesma estrutura

desde sua exposição nos primeiros compassos da peça musical.

O último compasso do tema tem a nota longa no primeiro grau da tonalidade e o

contracanto partindo da terceira nota do acorde, fazendo o movimento de bordadura para com a

nota que se situa um tom abaixo.

A estrutura melódica de toda a peça revela sempre presente o conceito de unidade

discursiva tanto do ponto de vista da forma (a melodia da voz do solista e o contracanto da voz do

coro) quanto do conteúdo (o movimento descendente daquela em contraste com a bordadura

dessa). A unidade do discurso melódico tem o requinte de, ao manter sua estrutura, poder utilizá-

la para diversas modulações, pois ao realizar o movimento melódico da voz solista partindo de

uma nota que fosse a quinta nota da escala diatônica de uma tonalidade e atingindo o primeiro

grau da mesma escala mantendo a relação de distância entre as notas, naturalmente a melodia

encaminharia o discurso para uma nova tonalidade.

Além disso, a estrutura da bordadura das notas do contracanto, remete ao universo

proposto pela harmonia, o de permitir a similaridade sonora (de harmonia e melodia do

contracanto) com a de um berimbau.

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A simbiose perfeita entre melodia e harmonia propõe um âmbito ainda mais amplo do

conceito de harmonia. Não apenas as notas intrínsecas a um acorde estão em acordo sonoro;

também a sequência de acordes que sucedem um ao outro entram em acordo e, sobretudo,

melodia, acordes e sucessão de acordes estão em acordo.

Ritmo

A rítmica de Domingo no Parque obedece, primordialmente, a métrica da célula

rítmica provinda das rodas de capoeira, pautada pela melodia do berimbau e do acompanhamento

de instrumentos de percussão (em regra, ganzá, pandeiro e tumbadora): dentro do compasso

quaternário, o primeiro tempo é definido pela presença da semínima; o segundo tempo, pelo par

de colcheias, sendo a segunda delas a nota acentuada; o terceiro tempo não conta nota na primeira

metade, pois a nota da segunda metade completa a célula da síncopa; o quarto tempo é dividido

entre duas colcheias, sendo que a segunda delas se estende até o primeiro tempo do compasso

subsequente, concretizando a segunda síncopa do compasso, em composição com o compasso

seguinte.

Se o violão executa e outros instrumentos harmônicos executam a célula descrita

acima, berimbau e percussão executam a mesma célula, porém subdividida: o primeiro tempo é

composto por uma colcheia e duas semicolcheias; o segundo tempo conta duas colcheias, sendo

que a segunda delas está ligada à primeira semicolcheia do tempo seguinte; o terceiro tempo,

após a primeira semicolcheia ligada, é composto por três outras semicolcheias; o quarto tempo é

dividido entre duas colcheias, sendo que a segunda delas se estende até o primeiro quarto de

tempo do compasso subsequente, concretizando a segunda síncopa do compasso, em composição

com o compasso seguinte, cujo primeiro tempo não mais é composto da semínima, mas, sim, da

síncopa semicolcheia ligada – colcheia – semicolcheia.

Por mais de uma vez o compasso quaternário dá lugar ao binário, o que permite a

conclusão de um movimento rítmico-melódico e o início de um novo movimento, além de servir

como um elo (e, por vezes, de modulação) entre frases iniciadas pela anacruse executada dentro

do compasso binário.

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A coerência rítmica, pautada pela célula do jogo da capoeira, acima descrita,

contribui significativamente para a coesão da exposição dos Temas (A, B e A reexposto), de

modo a sedimentar o conceito de unidade discursiva da peça musical.

O andamento da canção é rápido desde a introdução; no entanto, o rallentando do

compasso 54 indica a chegada da fermata sobre o primeiro grau melódico-harmônico no

compasso 55.

A partir do compasso seguinte o andamento é lento, respeitando a dramaticidade da

letra e a frase melódica (escala diatônica maior descendente) encontrada do contrabaixo. Tal

andamento é mantido até o final do tema cantado, no compasso 62.

Uma fermata no compasso 63, que poderia indicar o final da canção, é, em verdade, o

preâmbulo de uma volta ao tema instrumental exposto na introdução. Os oito compassos

subsequentes são novamente executados na velocidade rápida do início da peça, onde as células

rítmicas (tanto a dilatada, do violão e dos instrumentos harmônicos, quanto a subdividida, do

berimbau e dos instrumentos de percussão) são executadas juntamente com a massa orquestral

prevista no arranjo da partitura original.

A peça termina, assim, no compasso 72, pleno em pausas, que respeitam e permitem

ao ouvinte absorver auditivamente o eco provindo da nota executada na segunda colcheia do

quarto tempo do compasso 71.

A canção, do ponto de vista rítmico, é caracterizada pelo uso de células métricas que

permitem a identificação com o universo da capoeira e que, em simbiose com melodia e

harmonia, perfaz um todo musical conceitualmente pautado pela unidade discursiva. Para além

disso, a rítmica da canção obedece a variações de andamento que compõe a narrativa juntamente

com a letra, seja ambientando a ação narrada, seja descrevendo por meio de nuances entre os

andamentos rápido e lento, ações e situações emocionais das personagens que compõe a cena

narrada.

Letra

O aspecto literário de Domingo no Parque apresenta uma estrutura pouco comum na

produção da canção popular massiva brasileira: há um diálogo entre o narrador da história, cuja

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letra é cantada pela voz solista, e uma espécie de Coro Grego57, cantado por um trio de vozes,

que compõe a voz do contracanto.

Na primeira estrofe, a voz solista, o narrador heterodiegético da história, apresenta as

características das personagens do enredo da história que se inicia; a voz do contracanto, nomeia

tais personagens. Uma das personagens, José, trabalha na feira e revela traço de personalidade

dócil, alegre, cortês. A outra personagem, João, cujo trabalho requer maior rudeza e força física,

tem a personalidade menos delicada, distante da doçura, próxima do perfil agressivo.

O rei da brincadeira – Ê, José!

O rei da confusão – Ê, João!

Um trabalhava na feira – Ê, José!

Outro na construção – Ê, João!...

Logo de início, na apresentação das personagens, pode-se notar o efeito provocado

pela figura de linguagem da aliteração entre os nomes “José” e “João”. Dois nomes comuns,

ambos começados pela letra “j”, pelo fonema “jo”, abrindo as possibilidades das rimas

terminadas em “é” e “ão”. O recurso literário, somado ao recurso fonético aparecerá novamente

ao longo da canção. Vale ressaltar, por ora, que a exposição do Tema A melódico e harmônico se

dá quando do âmbito da exposição das personagens e de suas características social e psicológica,

de personalidade. A exposição do tema musical corresponde à exposição literária das

personagens da história a ser narrada.

O tema B se inicia concomitantemente ao início do desenvolvimento da história.

A personagem “João”, um homem que pratica capoeira, num determinado fim de

semana, não realiza seu procedimento habitual e, em lugar de se encaminhar para o ambiente das

57 χορωδία (choro̱día), o coro grego, nas representações cênicas na Grécia antiga, era formado por um grupo de dançarinos e/ou cantores, usando máscaras, que participavam ativamente nas representações teatrais das festividades religiosas e festivais dos tempos platônico-socráticos. O coro, em princípio, é uma personagem coletiva que tem a missão de cantar partes significativas do drama, representando a polis, a cidade-estado, a sociedade civil. Desse modo, o coro grego amplia a ação para além do conflito individuo-deidades e direciona o enfoque para o âmbito social, num conflito individuo-sociedade.

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rodas de capoeira, vai a outro lugar, com o intuito de namorar. Em certa medida, a personagem

abandona temporariamente seu traço rude e ganha contornos dóceis, qual a outra personagem da

trama, cuja personalidade já foi apresentada na exposição do Tema A da canção. A voz do coro

ressalta, em adendo à voz solista, o termo “capoeira” e a expressão “pra Ribeira”, cantada pela

segunda vez na estrofe. O coro sinaliza não apenas as distinções de local para onde se dirige a

personagem como, também, as distintas naturezas das ações praticadas em cada um dos locais; a

personagem não se deslocou até a “Ribeira” com o intuito de jogar capoeira mas, sim, de

namorar.

A semana passada

No fim da semana

João resolveu não brigar

No domingo de tarde

Saiu apressado

E não foi pra Ribeira jogar

Capoeira!

Não foi pra lá

Pra Ribeira, foi namorar...

Do mesmo modo, sobre a repetição da estrutura melódico-harmônica do início do

Tema B, a ação da personagem “José” é apresentada. No mesmo dia, o domingo, do fim de

semana em que a personagem “João” alterou sua rotina e, por conseguinte, parte de seu traço de

personalidade, “José” realizou seu procedimento habitual: desmontou sua barraca na feira e, em

lugar de trabalhar, foi passear no parque. O parque tem um local definido. O ouvinte, que não

necessariamente conhece a topografia de onde se passa a história, não conhece sequer a

possibilidade de o local para onde se dirige “José” ser o mesmo para o qual já se sabe que “João”

se dirigiu. A personagem não abandona seu traço de personalidade dócil (apresentada na

exposição do Tema A da canção), qual ocorreu com a outra personagem da trama. Como tudo no

âmbito da personagem “José” se dá como o habitual, a voz do coro não ressalta termo algum da

estrofe.

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“João” e “José” não estão em seus ambientes de trabalhos naquele domingo. “João”

momentaneamente está despido de seu traço rude e “José”, como de hábito, tem a personalidade

dócil.

O José como sempre

No fim da semana

Guardou a barraca e sumiu

Foi fazer no domingo

Um passeio no parque

Lá perto da Boca do Rio

A personagem “José” chega, enfim ao local de seu passeio dominical, o parque. A

partir desse ponto da narrativa, toda a ação se passa no âmbito desta personagem. Aparentemente,

a personagem “João”, o valente capoeira, foi esquecida. Tal fato se deve, entre outros motivos,

pelo surgimento de uma nova personagem na cena: Juliana. Também partícipe do movimento

encampado pela aliteração proposta no nome das duas personagens masculinas, a letra “j”, porém

como fonema “ju”, o nome da personagem contribui para a proposta de sonoridade da letra da

canção.

A estrofe musical que indica o final da exposição das duas sequências melódico-

harmônicas anteriores narra apenas um fato: “João”, ao chegar no parque, avistou “Juliana”. A

aparição da nova personagem merece o devido destaque, dado pela voz do coro, a entoar o seu

nome em uníssono com a voz solista.

Foi no parque

Que ele avistou

Juliana

Foi que ele viu

No entanto, o ouvinte, que até o momento, não sabia da importância da personagem

para a trama narrada, é chamado a notar a relevância de “Juliana” pela voz do coro, que repete o

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fato de “João” tê-la avistado. Ademais, a célula rítmica da canção cessa e é seguida de uma

pausa, logo após a frase inicial da estrofe, que termina com o verbo que indica a ação que se deu

no âmbito da personagem “José”.

A sequência harmônica modulante, em grande parte das vezes motivada pela melodia

da canção, tem início com a apresentação de um fato de cabal importância, que traz de volta à

tona a personagem “João”. O capoeira, aparentemente, foi à Ribeira para namorar justamente

“Juliana”, a amada de “José”.

“Juliana” tem à mão uma flor e um doce alimento, uma rosa e um sorvete; um par de

alimentos: o da alma e o do corpo.

Exposta a cena, os versos finais da estrofe voltam à subjetividade de “José”, que vê a

amada envolta em romance com seu amigo valente. O amor pela amada não passou de sonho. Na

roda-gigante do parque, o amor e a amizade giram e se transformam em pouco mais do que

ilusão.

Foi que ele viu!

Juliana na roda com João

Uma rosa e um sorvete na mão

Juliana seu sonho, uma ilusão

Juliana e o amigo João...

Duas metáforas (outra figura de linguagem utilizada na concepção da letra da canção)

descrevem o estado psicológico de “José”, ambas tendo como princípio os símbolos que

caracterizam o romance entre “João” e “Juliana”: a rosa e o sorvete. A primeira tem os espinhos

que ferem “José”; o segundo, o frio que perpassa sua alma no instante em que vê o casal na roda-

gigante.

A voz do coro ressalta o ferimento da personagem, repetindo por duas vezes a

expressão “Feriu Zé” da primeira frase da estrofe. Após o final da última frase, nova pausa, sobre

um acorde menor, que indica o sentimento de tristeza e perplexidade da personagem.

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O espinho da rosa feriu Zé

(Feriu Zé!) (Feriu Zé!)

E o sorvete gelou seu coração

Novamente toda a ação volta ao âmbito da subjetividade de “José”. Atônito pela

visão da amada em companhia do amigo, a personagem começa a perder o controle sobre si e

sorvete, rosa e roda passam a girar nos pensamentos dele. O segundo verso da estrofe inverte a

ordem do primeiro e tanto rosa quanto sorvete passam a ser mistura indefinível pela racionalidade

de “José”. A personagem brincalhona sofre a angústia provocada pela visão do casal que gira e a

dor dança em seu peito, a expressão poética utilizada para direcionar o sofrimento para o âmbito

do sensível, não do racional.

O sorvete e a rosa – Ô, José!

A rosa e o sorvete – Ô, José!

Foi dançando no peito – Ô, José!

Do José brincalhão – Ô, José!...

A estrofe seguinte, executada em outro tom, tem os dois versos iniciais a reforçar a

situação atônita da personagem “José”. No entanto, a angústia migra da alçada do sentimento

para o pensamento; a dor, que era sensível, passa a ser racional; do peito da personagem, a

angústia migra para a mente. Sorvete e rosa giram na mente cada vez mais descontrolada da

personagem brincalhona.

A voz do coro pontua, ao longo de ambas as estrofes, que tudo acontece na

subjetividade da personagem “José”. Primeiramente, no peito (no âmbito dos sentimentos),

depois, na mente (o âmbito da razão, que pouco a pouco se vai perdendo).

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O sorvete e a rosa – Ô, José!

A rosa e o sorvete – Ô, José!

Oi girando na mente – Ô, José!

Do José brincalhão – Ô, José!...

De tal modo a personagem “José” vai perdendo pouco a pouco a razão, que as voltas

da roda-gigante deixam-no tomado pela tontura; ele vê passar por seu ângulo de visão a amada e

o amigo.

O trecho modulante ressalta o fato de a perda de consciência racional da personagem

ter estreita relação com o movimento da roda-gigante do parque, que gira qual seus sentimentos e

pensamentos, em seus peito e mente.

O coro, em perfeito paralelismo com as duas estrofes anteriores, repete a célula

rítmico-melódica da dupla colcheia seguida da síncopa em bordadura distando um tom em grau

conjunto diatônico descendente. A letra deixa de reiterar a subjetividade da personagem e passa a

ressaltar o movimento giratório da roda-gigante e, por conseguinte, dos pensamentos difusos da

personagem, durante três versos da estrofe. No entanto, o último verso da estrofe faz lembrar ao

ouvinte e à personagem a existência de “João”, o agora rival que está a girar na roda-gigante com

a amada de “José”.

Juliana girando – Oi girando!

Oi, na roda gigante – Oi, girando!

Oi, na roda gigante – Oi, girando!

O amigo João – Ê, João

Nova modulação para sorvete, rosa e a cor de ambos misturarem-se nas voltas da

roda-gigante dos pensamentos da personagem “José”.

Ao apresentar o sabor do sorvete que “Juliana” segura em uma das mãos, o texto

literário indica a similaridade entre a cor vermelha do sorvete, da rosa e do elemento dramático

do sangue, que breve será mencionado.

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O coro pontua a existência da cor, ressaltando seu caráter dramático, sua renitência

nos pensamentos da personagem, até mesmo, o gênero da palavra – masculina quando no

primeiro verso, em que faz concordância com o substantivo definido masculino (sorvete de

morango), feminina, quando nos segundo e terceiro versos, em que faz concordância com o

substantivo definido feminino (rosa).

O verbo “girar”, no gerúndio, apresentado pela voz do coro na estrofe anterior,

adentra a voz principal e, ao encerrar a estrofe, trona-se premente a ação que encampará a cena a

partir da estrofe seguinte.

O sorvete é morango – É vermelho!

Oi, girando e a rosa – É vermelha!

Oi girando, girando – É vermelha!

Oi, girando, girando

O primeiro verso da estrofe, cantado pelo coro um par de vezes, chama a atenção do

ouvinte (e das pessoas que habitam o parque naquele instante) para o objeto cortante que está na

mão da personagem “José”, cujo nome é reiterado quatro vezes na estrofe, após o esfaqueamento

de seu amigo “João”.

É possível notar que a personagem “João” foi, no princípio da letra, apresentada

como “o amigo” da personagem “José”; no decorrer da história, foi caracterizado com seu rival;

enfim, pelo final da história, após o momento de inconsciência de “José”, volta a ser definido

como o “seu amigo”.

O rompante gesto de “José” trouxe o sangue, avermelhado, a tingir a cena dramática.

“Juliana” e “João” foram assassinados pela faca de “José”. Menos pela faca, mais pela perda de

racionalidade da personagem, surpresa que foi pela visão do amigo em companhia da amada.

Olha a faca! (Olha a faca!)

Olha o sangue na mão – Ê, José!

Juliana no chão – Ê, José!

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Outro corpo caído – Ê, José!

Seu amigo João – Ê, José!...

Desfechado o golpe fatal nos namorados, o narrador completa a narrativa ao voltar às

características ocupacionais e de personalidade das personagens do enredo da história que ora

termina; a voz do contracanto novamente nomeia tais personagens. Contudo, a iniciar as três

últimas estrofes, o termo “não” indica a destruição de tais características. “José” não mais

trabalhará na feira, não é mais dócil, alegre, brincalhão, não foi, por um momento, cortês e não

mais voltará a sê-lo. “João”, não mais executará seu trabalho que requer maior rudeza e força

física, deixou, por um momento, a personalidade indelicada, distante da doçura, próxima do perfil

agressivo, não mais terá chance de arrumar confusão.

Amanhã não tem feira – Ê, José!

Não tem mais construção – Ê, João!

Não tem mais brincadeira – Ê, José!

Não tem mais confusão – Ê, João...

Arranjo

A instrumentação do arranjo da canção é composta por uma orquestra formada por

instrumentos de cordas e sopros (metais e madeiras). Desse modo, o arranjo prevê tanto o

conceito de “orquestração” quanto de “instrumentação”. À orquestra somam-se um berimbau, um

prato, um ganzá e uma bateria, que perfazem o aparato da percussão, um contrabaixo elétrico,

uma guitarra elétrica e um violão.

A voz solista é intercalada com o contracanto de um trio de vozes (duas masculinas e

uma feminina).

Os oito compassos da introdução e os oito compassos que sucedem o final da

reexposição do Tema A da canção são executados apenas pela formação instrumental, sendo que,

nos oito compassos finais, o trio de vozes do coro executada uma melodia em vocalizes com a

sonoridade da vogal fechada “e”.

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Ao longo de todos os 62 compassos de Temas da canção, a orquestra executa as

células rítmicas da dupla colcheia seguida da síncopa em bordadura distando um tom em grau

conjunto diatônico descendente e, ainda mais, executa contrapontos melódicos sofisticados,

sobretudo quando da exposição do Tema B.

Cordas mantêm notas longas em movimento harmônico enquanto a madeiras

executam grupos de quatro semicolcheias quando da altura do compasso 26 a partir da exposição

do Tema A.

O violão, em acordes concernentes a cada campo harmônico das nove tonalidades

pelas quais a canção é executada, é a base rítmica das células da orquestra; ambos, violão e

orquestra, têm suas células baseadas no movimento rítmico-melódico do berimbau.

As dinâmicas de forte e piano são parte do percurso do drama exposto na letra da

canção; orquestra, instrumentos elétricos e bateria obedecem a cadência da dinâmica imposta

pelo violão.

Vale notar o complexo sonoro orquestral que reveste uma canção supostamente de

temática rudimentar, pois baseada numa célula melódica advinda de um instrumento que tem em

sua tessitura apenas duas notas. A possibilidade de uma concepção tamanhamente rica pode

ocorrer justamente pelo fato de a harmonia da canção apresentar um alto grau de requinte e

sofisticação estrutural.

Interpretação Vocal

Domingo no Parque é interpretada por um cantor solista, o autor da canção, e por um

trio de vozes (duas masculinas e uma feminina); aquele executa a melodia principal e estes, o

contracanto.

A capacidade interpretativa e a precisão técnica do cantor solista são bastante

pronunciadas, de modo a transformar a interpretação da voz principal um elemento-chave da

própria essência da peça; o modo de cantar é parte da composição, pois o cantor da voz solista é o

narrador da história e, como tal, incorpora todas as nuances da ação cênica que a letra da canção

descreve. Cabe, ainda, ao cantor, traduzir os estados emocionais das personagens e a tensão que

envolve as cenas propriamente ditas. Não basta, portanto, ao cantor da voz solista ser,

tecnicamente, um bom cantor; é preciso que este seja um grande intérprete, que conheça e

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domine os recursos narrativos para ressaltar cada um dos muitos pontos importantes da trajetória

das personagens da canção.

Por conta da estrutura da canção, a voz do coro tem igual importância na execução da

peça. Cabe ao coro apresentar personagens, pontuar ações, transformar-se na voz de fictícias

personagens que habitam a cena em que se passa a ação. Dentro da característica essencial de um

coro que executa contracantos, faz-se necessário um pleno controle da dinâmica, pois o volume

sonoro do coro não pode ser maior do que o do cantor solista. Ainda assim, devido à relevância

do texto cantado pelas três vozes, por vezes faz-se necessária uma dinâmica de volumes parelhos

com o volume sonoro da voz solista.

Cantor solista e coro entram em sintonia com a orquestra no contraponto dos oito

compassos finais da peça, executados após o final das exposições dos temas, a partir do final do

compasso 62. A sequência harmônica IV – V – I, em tom maior, ritmicamente delineada pela

célula basilar da canção, intenta um happening interpretativo absolutamente bem executado por

cantor solista e três vozes do coro, que aumentam o volume sonoro sem que suas vozes saiam do

controle necessário; em termos chãos, os quatro intérpretes cantam alto sem gritar.

Técnicas de gravação e reprodução

As condições de gravação da performance aqui analisada são as impostas pelos

recursos de captação do microfone geral que capta o sinal emitido da mesa de som; esta, por sua

vez, recebe os sinais dos microfones posicionados por sobre a orquestra, que captam cordas,

metais e madeiras de modo unidirecional, além dos microfones também unidirecionais suspensos

por sobre a bateria, na caixa de ressonância do berimbau, do violão e, por fim, um microfone para

cada um dos quatro cantores.

A captação dos microfones posicionados por sobre a orquestra é um tanto deficiente

no que tange à nitidez sonora de cada naipe de instrumentos. Ao captar a sonoridade a cerca de

150 centímetros de distância de cada naipe, os microfones perdem parte dos sons emitidos por

aquele naipe e, além disso, captam de modo rudimentar parte do som emitidos por outros naipes

de instrumentos. Dessa forma, é possível apreender com alguma nitidez os trechos em que a

orquestra executa células rítmicas iguais, dificultando sobremaneira a apreensão auditiva das

partes contrapontísticas do arranjo orquestral.

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A captação dos sons emitidos pelos instrumentos de percussão distinguem-se pelo

fator de que os microfones posicionados por sobre a bateria captam o som com a mesma

deficiência com que captam os sons provindos da orquestra; já o microfone posicionado próximo

à caixa de ressonância do berimbau capta precisamente o som do instrumento, o que obriga um

efeito de pré-mixagem, de modo a que o som do berimbau não sobressaia ao do restante do corpo

percussivo do arranjo, ainda que tenha o berimbau como o elemento rítmico essencial da canção.

O microfone posicionado defronte ao violão capta com precisão a sonoridade do

instrumento que sustenta o encadeamento harmônico e rítmico da peça, sobretudo porque muito

bem executado pelo próprio autor da canção. Em certa medida, é preciso que o efeito de pré-

mixagem destinado ao berimbau dê-se também à captação do som do violão. Entretanto, com

capacidade sonora bastante restrita, o violão requer uma abertura de captação maior, o que

provoca um efeito semelhante aos microfones posicionados por sobre outros instrumentos.

A captação das vozes obedece ao princípio de que o ouvinte possa captar tudo o que é

cantado. O microfone da voz solista é regulado um tanto mais alto do que o das vozes do coro,

porém com captação não muito mais aberta.

Resta, finalmente, a entrada sonora dos instrumentos elétricos (contrabaixo e

guitarra). Ligados diretamente na mesa de som, sua sonoridade é bastante prejudicada, sobretudo

por dois fatores: a massa sonora orquestral suplanta a emissão desses dois instrumentos e a

captação do som elétrico é tíbia justamente por conta de os instrumentos não estarem

amplificados no palco no momento da execução mas, sim, ligados diretamente na mesa de

captação.

Desse modo, a captação sonora permite uma apreensão bastante limitada de toda a

concepção musical do arranjo.

Se a captação é limitada, também o é o recurso de reprodução.

A performance aqui analisada é a reproduzida pelos aparelhos de televisão, à altura

fabricados com dois alto-falantes frontais ou laterais, que limitam a emissão das sonoridades

graves e restringem o espectro sonoro a apenas uma faixa das vibrações provenientes do som

captado.

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Contexto de apresentação e apreensão

A performance aqui analisada foi gravada em execução ao vivo, num teatro cuja

acústica contava um microfone sobre a plateia, ali posicionado justamente para captar a reação do

público à canção. A sonoridade final captada pela mesa de som e transmitida para apreensão é

composta de um material sonoro bastante corrompido do ponto de vista musical, pois aplausos e

vaias misturam-se às notas musicais executadas por instrumentos e cantores. Mesmo àqueles

espectadores presentes no teatro, ao ouvirem a canção em sua execução ao vivo, não era

permitida uma emissão (e, portanto, uma apreensão) perfeita da sonoridade da peça, pois os

ouvintes estavam imersos, desde a plateia, no emaranhado de sons produzidos pelos espectadores.

Contudo, se, por um lado, o ouvinte apreende uma sonoridade pouco nítida, do

músico executante exige-se uma execução sem erros; a apresentação e gravação ao vivo, distante

dos recursos de correção permitidos pelas gravações em estúdio, não permite o erro de execução

ao músico. Assim, cantor solista, trio de cantores da voz do contracanto, percussionistas,

violonista, contrabaixista, guitarrista e músicos da orquestra perfazem um todo instrumental que

executou a canção toda sem a ocorrência de erros de execução, o que implica tanto um número de

ensaios considerável quanto partituras bem escritas e grandes músicos executantes.

O palco do teatro onde aconteceu a performance aqui analisada abrigava, além da

canção Domingo no Parque, outras 11 peças musicais em competição num programa de televisão

produzido e exibido no mês de outubro do ano de 1967 pela TV Record, chamado III Festival de

Música Popular Brasileira, também conhecido posteriormente como "O festival da virada".

No Teatro Paramount, na cidade de São Paulo, 12 competidores buscavam o Prêmio Sabiá de

Ouro para aquela que fosse a escolhida como “Melhor canção”.

Os jurados do festival não deram a Domingo no Parque o primeiro lugar, que coube à

canção Ponteio, de Edu Lobo e Capinam. Domingo no Parque, de Gilberto Gil, foi a segunda

colocada, seguida de Roda Viva, de Chico Buarque, em 3º lugar.

A proximidade do final do ano de 1967 leva a canção Domingo no Parque a um

contexto político-social brasileiro muito específico: o Golpe Militar já contava três anos e meio

da implantação do regime de exceção e se configurava como uma sucessão de governos militares,

pois justamente no mês de outubro, no qual realizava-se a final do Festival, completava-se um

ano da eleição do segundo presidente militar empossado pelo regime de eleição indireta, o

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marechal Costa e Silva (em substituição ao também marechal Castello Branco, empossado em

abril de 1964).

O governo militar, à altura, em contraponto à expansão das comunicações, à revisão

da política salarial, à ampliação das relações de comércio esterior, à implantação do Plano

Nacional de Habitação, endurecia o regime de exceção promovendo restrições ao livre trabalho

da imprensa, extinção da Frente Ampla (movimento de oposição que reunia políticos do período

anterior ao Golpe Militar de 1964), cassação de mandatos, de liberdades civiis, de direito

políticos e promulgando uma nova e pouco democrática Constituição da República, em 1967.

O endurecimento do regime de exceção era tamanhamente pronunciado que, 14

meses depois da realização do Festival, em 13 de dezembro de 1968, entrou em vigor o Ato

Institucional Número Cinco, o AI-5, instrumento que deu ao governo militar poderes absolutos e

cuja primeira consequência foi o fechamento do Congresso Nacional por quase um ano. O Ato

Institucional sobrepunha-se à Constituição de 24 de janeiro de 1967, bem como às constituições

estaduais, dava poderes extraordinários ao Presidente da República e suspendia garantias

constitucionais.

Neste ambiente político, encontramos uma cena midiática na qual a Música Popular

ocupa o papel de protagonista.

As chamadas “canções de protesto”, surgidas desde a primeira metade da década com

enfoque sócio-econômico-cultural, sobretudo alocadas nos ambientes universitários onde

despontavam os Centros Populares de Cultura, os CPCs, criticavam, entre outras mazelas

nacionais, a dependência econômica e cultural do Brasil em relação aos EUA, a condição de

baixa educação da população brasileira, a miséria espalhada pelo país. Os estudantes brasileiros,

sobretudo aqueles ligados à União Nacional dos Estudantes, a UNE, propunham estabelecer um

projeto onde defenderiam a prática de gêneros musicais populares com o propósito de alertar a

população contra questões de natureza social, cultural, econômica e, por conseguinte, política. As

canções de protesto primavam pela concepção de letras engajadas nas transformações propostas,

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ainda que a construção musical – e também a construção literária – ficassem, por conta disso, em

segundo plano; a questão política era, por vezes, mais importante do que a concepção estética58.

Os shows nos CPCs ganham cobertura da mídia interna e de parte da mídia externa ao

ambiente universitário.

Ainda antes de se encerrar a primeira metade da década de 1960, a rigor, em 11 de

dezembro de 1964, alguns meses depois do golpe militar, estreou no teatro do Shopping Center

Copacabana, sede do Teatro de Arena no Rio de Janeiro, show-manifesto Opinião.

O espetáculo musical, dirigido por Augusto Boal, produzido pelo Teatro de Arena e por

58 Canção do subdesenvolvido, de Carlos Lyra e Chico de Assis, grava em 1961, é um exemplo preciso do que é explanado no parágrafo. A letra da canção: “O Brasil é uma terra de amores / Alcatifada de flores / Onde a brisa fala amores / Em lindas tardes de abril / Correi pras bandas do sul / Debaixo de um céu de anil / Encontrareis um gigante deitado // Santa Cruz, hoje o Brasil / Mas um dia o gigante despertou / Deixou de ser gigante adormecido / E dele um anão se levantou / Era um país subdesenvolvido // E passado o período colonial / O país se transformou num bom quintal / E depois de dadas as contas a Portugal / Instaurou-se o latifúndio nacional, ai! / Subdesenvolvido, subdesenvolvido / Então o bravo povo brasileiro / Em perigos e guerras esforçado / Mais que prometia a força humana / Plantou couve, colheu banana / Bravo esforço do povo brasileiro / Que importou capital lá do estrangeiro / Subdesenvolvido, subdesenvolvido // As nações do mundo para cá mandaram / Os seus capitais desinteressados / As nações, coitadas, queriam ajudar / E aquela ilha velha ajudou também // País de pouca terra, só nos fez um bem / Um grande bem, um 'big' bem, bom, bem, bom / Nos deu luz, ah! Tirou ouro, oh!/ Nos deu trem, ah! Mas levou o nosso tesouro / Subdesenvolvido, subdesenvolvido / Houve um tempo em que se acabaram / Os tempos duros e sofridos / Pois um dia aqui chegaram os capitais dos Estados Unidos / País amigo desenvolvido / País amigo // Amigo do subdesenvolvido / País amigo / E nossos amigos americanos / Com muita fé / Nos deram dinheiro e nós plantamos / Nada mais que café / E uma terra em que plantando tudo dá / Mas eles resolveram que a gente ia plantar / Nada mais que café // Bento que bento é o frade - frade! / Na boca do forno - forno! // Tirai um bolo - bolo! / Fareis tudo que seu mestre mandar? / Faremos todos // E começaram a nos vender e a nos comprar / Comprar borracha - vender pneu / Comprar madeira - vender navio / Pra nossa vela - vender pavio / Só mandaram o que sobrou de lá / Matéria plástica / Que entusiástica / Que coisa elástica / Que coisa drástica / Rock-balada, filme de mocinho / Ar refrigerado e chiclet de bola / E Coca-Cola! Oh... / Subdesenvolvido, subdesenvolvido / O povo brasileiro tem personalidade / Não se impressiona com facilidade / Embora pense como desenvolvido / Embora dance como desenvolvido / Embora cante como desenvolvido / Lá, lá, la, / Eh, meu boi / Eh, roçado bão / O melhor do meu sertão / Comeram o boi... / Subdesenvolvido, subdesenvolvido // Embora pense, dance e cante como desenvolvido / O povo brasileiro / Não come como desenvolvido / Não bebe como desenvolvido / Vive menos, sofre mais / Isso é muito importante / Muito mais do que importante / Pois difere os brasileiros dos demais / Pela personalidade / Personalidade sem igual / Porém... subdesenvolvida, subdesenvolvida / E essa é que é a vida nacional!”

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integrantes do Centro Popular de Cultura da UNE (à altura, colocada na ilegalidade pelo regime

militar) deu ainda maior visibilidade midiática à canção de protesto no Brasil. O elenco, formado

por Nara Leão (que algum tempo depois seria substituída por Maria Bethânia), João do Vale e Zé

Kéti, intercalavam canções a textos de Armando Costa, Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes;

textos e canções essas, em regra, referentes à problemática social do país.

Os programas de televisão que encampavam a Música Popular como principal atração

surgiam em diversas emissoras: programa Um Instante Maestro, apresentado por Flávio

Cavalcanti entre 1965 e 1966 na TV Excelsior do Rio de Janeiro, e em 1967 na TV Tupi do Rio

de Janeiro; programa O Fino da Bossa, apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues,

acompanhados pelo Zimbo Trio, entre 1965 e 1967 na TV Record; Programa Bossaudade,

apresentado por Elizeth Cardoso e Cyro Monteiro, entre 1965 e 1966 na TV Record de São Paulo

e na TV Rio, do Rio de Janeiro; programa Jovem Guarda, apresentado por Roberto Carlos,

Erasmo Carlos e Wanderléa, entre 1965 e 1968 na TV Record; programa O Pequeno Mundo de

Ronnie Von, apresentado pelo cantor que dava nome ao programa, em 1966, na TV Record;

programa Esta Noite se Improvisa, apresentado por Blota Jr. e Sandra Ribeiro, entre 1967 e 1968,

na TV Record de São Paulo.

A esses programas semanais, juntavam-se os eventos anuais das emissoras de TV, os

festivais de Música: I Festival de Música Popular Brasileira, em 1965, na TV Excelsior; II

Festival de Música Popular Brasileira, em 1966, na TV Record; II Festival Internacional da

Canção, em 1967, na TV Globo.

Domingo no Parque, como foi dito, surgiu como concorrente no III Festival de

Música Popular Brasileira, em 1967, na TV Record.

Nesse ambiente sócio-político-midiático, a canção apresenta menos o viés engajado

de parte da produção musical da época, mais o olhar essencial acerca do comportamento humano

e suas motivações íntimas. Em certa medida, a canção destoa do que se esperava à época.

Possivelmente, plateia do Teatro e público espectador ouvinte da Televisão esperassem algo

distinto naquele momento. No entanto, a força poética da canção provocou uma consistente

aprovação estética; tanto assim, que a obra foi premiada com o segundo lugar no Festival.

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Sabiá, de Tom Jobim e Chico Buarque – apresentação no III

Festival Internacional da Canção, realizado pela TV Globo, em 196859.

Harmonia

Sabiá é uma canção cuja estrutura harmônica está baseada no discurso modulante. Ao

todo, ao longo da peça musical, serão apresentados ao ouvinte um total de 10 tonalidades

diferentes umas das outras. O desafio composicional é, desse modo, tornar tais modulações

imperceptíveis ao ouvinte comum, pois, caso contrário, o elemento técnico ficaria tamanhamente

evidente, que corromperia o fluxo de audição. A forma mais utilizada para delinear a modulação

de modo a esta se tornar pouco perceptível é o emprego do quinto grau com sétima da tonalidade

a que se pretende chegar. Tanto melhor se este quinto grau com sétima for antecedido do segundo

grau menor com sétima da nova tonalidade. A sequência IIm7 – V7 – I torna menos brusco o

caminho entre a tonalidade da qual se parte e a tonalidade onde se pretende chegar.

Desse modo, o encaminhamento harmônico da canção tem início com uma sequência

de acordes bastante simples ao longo dos dois primeiros compassos, nos quais a sequência básica

de um ciclo harmônico tonal no Modo Maior (I – VIm7 – IIm7 – V7) é executada nos dois

primeiros compassos, como a apresentar a tonalidade, sendo apenas o sexto grau menor

substituído pelo terceiro grau bemol diminuto, procedimento comum na estruturação harmônica

da canção popular massiva: I – IIIb dim – IIm7 – V7.

A estratégia empregada para tornar menos brusco o caminho entre a tonalidade da

qual se parte e a tonalidade onde se pretende chegar fica nítida já a partir do terceiro compasso da

peça musical: o quinto grau com sétima não se encaminha para o sexto grau menor da tonalidade;

no entanto, este mesmo acorde será, também, o primeiro grau da nova tonalidade. A sequência

V7 – VIm impõe, logo no início da canção, o princípio de toda a concepção harmônica da peça.

59 A partitura da canção analisada encontra-se grafada no Anexo 3 deste trabalho, à p. 487.

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O compasso subsequente, modulatório, parte de um acorde com função ambígua.

Tanto ele é o segundo grau menor da tonalidade anterior quanto o quarto grau menor da nova

tonalidade. O acorde ambíguo é sucedido pelo quinto grau do novo tom e, assim, configura-se a

sequência IVm7 – V7 – Im. A primeira modulação concretiza-se, assim, no quinto compasso.

Porém, já no próprio compasso 5, pelo uso do recurso do movimento cromático

descendente no baixo, tem início o caminho para uma nova tonalidade.

Se a primeira modulação deu-se para uma tonalidade próxima ao primeiro grau da

tonalidade original, o sexto grau menor, a tonalidade relativa, também esta segunda modulação

será para uma tonalidade próxima ao primeiro grau da tonalidade original, o quarto grau maior.

O compasso sexto apresenta a sequência IIm7 – V7 – I da nova tonalidade, que se

concretiza no primeiro tempo do compasso sétimo.

A sequência de acordes e tonalidades modulantes cumprem o objetivo primeiro da

proposta harmônica da canção, vale dizer, acordes de preparação para as modulações e

modulações propriamente ditas orbitam em torno da proximidade do primeiro grau da tonalidade

original; logo, apesar de a canção ter mudado de tom por duas vezes, o ouvinte tem a impressão

de que ainda está no campo harmônico do tom original. A complexidade do discurso musical,

pelo uso preciso dos elementos de linguagem, não transparece ao ouvinte, que absorve

plenamente o discurso.

O compasso 8 prepara a volta ao campo harmônico da tonalidade original. Contudo,

como a canção se encontra no quarto grau de tal tonalidade, o uso da sequência IIm7 – V7 do

novo tom pode ser entendido com uma sequência VIm7 – V7 de V do tom anterior. A

ambiguidade somente se desfaz quando da chegada da nova tonalidade (a tonalidade original), no

compasso seguinte.

Os compassos 9, 10 e 11 da canção repetem os compassos 1, 2 e 3, no campo

harmônico da tonalidade original. Reafirma-se, desse modo, tanto a sessão no tom original da

peça quanto a quarta modulação realizada, desta feita para uma tonalidade já empregada

anteriormente.

O compasso 12 apresenta a ratificação da tonalidade original, com a sequência dos

acordes IIm7 – V7.

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Os dois compassos subsequentes repetem os compassos 1 e 2, nos quais se reafirma a

tonalidade original e encerra-se a sessão a que podemos chamar de Tema A da peça musical.

A partir do compasso 15, tem início o Tema B da canção, no qual as modulações

serão para tonalidades menos próximas da região do primeiro grau da tonalidade original.

Sem se valer do quinto grau da nova tonalidade, ao contrário, partindo do quinto grau

da tonalidade original, o compasso 15 introduz a tonalidade do terceiro grau bemol (IIIb) sem

preparação. Tal recurso apresenta, de modo transversal, a chegada do Tema B da peça.

Sucedendo o primeiro grau do novo tom e mantendo a estratégia de tornar menos

brusco o caminho entre a tonalidade da qual se parte e a tonalidade onde se pretende chegar, é

utilizado o primeiro grau diminuto, idêntico ao terceiro grau bemol diminuto, que substitui o

sexto grau menor da sequência clássica de apresentação de uma tonalidade: I – Idim – IIm7 – V7.

Aproveitando o quinto grau da tonalidade, o compasso 17 se inicia com um novo tom

(o quarto diferente do original, quinto pelo qual passa a canção), o tom homônimo menor do tom

em que a peça se encontra.

O recurso modulatório magistral que afirma a tonalidade do terceiro grau bemol

menor em relação à tonalidade original, ao introduzir o novo tom, permite o movimento diatônico

descendente que encampa a nova modulação.

A modulação que se dá no compasso 18 obedece ao princípio de tornar menos

evidente o caminho entre a tonalidade da qual se parte e a tonalidade onde se pretende chegar;

apresenta um acorde de primeiro grau com baixo no sexto grau, que tem a função dupla de ser,

também, o segundo grau menor com quinta diminuída e sétima do novo tom, sucedido do quinto

grau da nova tonalidade. A sequência IIm 5-/7 (Im7/VI) – V7 nos leva à quinta tonalidade

distinta do tom original por intermédio da sexta modulação pela qual a peça musical passa.

O compasso 19 afirma a nova tonalidade pelo movimento Im – V7 – Im.

No compasso seguinte, a estratégia de tornar imperceptível a modulação transforma o

próprio primeiro grau menor do tom em que a peça se encontra, no segundo grau menor da

tonalidade subsequente. IIm7 (Im7) – V7 – I do novo tom introduzem a sexta tonalidade distinta

do tom original (sétima modulação pela qual a peça musical passa).

O compasso 21, qual o 19, afirma a nova tonalidade pelo movimento Im – V7 – Im.

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O compasso 22 não repete a estratégia do compasso 20 e, de modo surpreendente,

abandona o primeiro grau menor do tom em que a peça se encontra e vai encontrar uma nova

tonalidade, da qual o tom menor apresentado no compasso 19 (que iniciou a sequência de tons

menores do Tema B) é segundo grau. A sétima tonalidade distinta do tom original (oitava

modulação pela qual a peça musical passa) é apresentada no primeiro grau com sétima maior,

característica da afirmação contundente de um novo tom em que se encontra a peça musical.

O novo tom se concretiza no compasso seguinte, quando o segundo grau menor é

atingido por intermédio da sequência cromática que passa pelo primeiro grau sustenido diminuto.

Após encontrarmos o segundo grau menor, uma sequência cromática se anuncia. I7+ – I#dim –

IIm – IIm/VII compõem os compassos 22 e 23.

Os três compassos seguintes encampam a descida cromática do baixo, com acordes

concernentes a um procedimento modulatório que indica a volta à tonalidade original. A

sequência de acordes sustenta uma melodia também de natureza cromática, esta sim, responsável

direta pela modulação.

O recurso cromático é escolhido de forma precisa, pois o cromatismo (sobretudo

quando sustentado pelo movimento do baixo em sintonia com o movimento melódico) direciona

a percepção de um encaminhamento de uma tonalidade assaz distante daquela à qual se pretende

chegar, de forma bastante paulatina e palatável à audição descompromissada com a compreensão

do uso dos recursos de linguagem ali empregados de forma complexa e sofisticada.

O compasso 27 apresenta a sucessão de dois acordes fincados no quinto grau da

tonalidade a que se pretende chegar (no caso específico do compasso seguinte, a tonalidade

original). O primeiro deles de natureza preparatória para o segundo, de natureza dissonante: V

sus 7 – V7.

Finda-se, aqui, o Tema B da canção e o compasso seguinte apresenta a reexposição

do Tema A. No entanto, tal sessão não se apresenta idêntica à exposição.

Os compassos 28 e 29 repetem os dois primeiros compassos da canção, o que

reafirma a volta para a tonalidade original, confirmando a nona modulação da peça. No entanto,

mais precisa ainda será a comparação se a fizermos com os compassos 13 e 14, pois nestes,

diferentemente de naqueles, a afirmação do primeiro grau da tonalidade original tende para uma

nova modulação.

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Em fato, os compassos 30 e 31 repetem os compassos 15 e 16, nos quais se confirma

a mudança de tonalidade. A décima modulação da peça musical apresenta uma tonalidade já

executada, o terceiro grau bemol maior.

O compasso 32 é composto de modo a conter a afirmação da nova tonalidade, o

terceiro grau bemol do tom original.

O compasso 33 apresenta o acorde que aponta a nova modulação, desta feita para

uma tonalidade ainda não apresentada anteriormente. Tal movimento acontece pela utilização do

quinto grau da tonalidade a que se pretende chegar. No caso específico desta feita, como a

modulação se concretizará no quarto grau da tonalidade em que se encontra a peça, o movimento

harmônico não apresenta ao ouvinte uma sonoridade desconhecida, posto ser esta a mais

frequente modulação do repertório da canção popular, o deslocamento para o quarto grau.

O primeiro grau, então, abre mão de sua função de sustentáculo da tonalidade,

transforma-se em quinto grau e encaminha a modulação para o seu respectivo quarto grau maior.

O compasso seguinte apresenta a nova tonalidade, o quarto grau da tonalidade

antecedente. A décima primeira modulação encaminha a canção para a sétima tonalidade distinta

da original.

Sucedendo o novo tom, o compasso 35 reafirma o procedimento proposto desde o

início da peça, mantendo a estratégia modulatória baseada na suavização das modulações, de

modo a não apresentar ao ouvinte a dificuldade técnica mas, sim, permitir a ele a audição

contínua da canção. O quarto grau da nova tonalidade, grau absolutamente consonante, ocupa

todo o compasso. No entanto, sua função é dupla. Tanto esse acorde é o quarto grau na tonalidade

anterior quanto é o quinto grau (por movimento de aproximação cromática) da nova tonalidade,

que se concretiza no compasso seguinte.

A décima segunda modulação encaminha a canção para a oitava tonalidade distinta

da original, justamente sua tonalidade homônima. Encaminha, também, o final da reexposição e a

chegada de uma sessão a que se chama Coda60.

60 Advindo da Forma Sonata do século XVIII, o termo Coda (em tradução literal do Italiano, “Rabo”) indica a sessão final da peça musical.

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Um movimento diatônico descendente no baixo leva à sessão da Coda, no compasso

36. A partir desse momento, um moto contínuo se estenderá por 11 compassos, mantendo a

característica dupla das tonalidades centrais da sessão. A oitava tonalidade da peça é, também, o

terceiro grau menor da sétima tonalidade da canção. Por sua vez, esta é, também, o sexto grau

maior daquela.

A sequência Im (III m) – Im/VIIb (IIIm/II) – VI 7+ (I 7+) – IV de VI (IV), de modo

brilhante, mantém ao longo de quase toda a Coda a dubiedade quanto à tonalidade em que se

encontra a canção.

Tal dubiedade somente se configurará definida no último compasso da peça musical,

o compasso 48, no qual a tonalidade homônima é apresentada, num movimento semelhante aos

dos corais renascentistas61. A décima terceira modulação, finalmente, leva a canção de volta ao

seu ponto de origem, pois a peça se encontrava justamente na tonalidade homônima menor do

tom original.

Ao longo de 48 compassos, a canção apresentou oito tonalidades diferentes, num total

de 13 modulações. Tamanha sofisticação do discurso harmônico não impede, porém, a absorção,

a apreciação e a apreensão imediata do ouvinte, pois a estratégia de tornar menos brusco o

caminho entre a tonalidade da qual se parte e a tonalidade onde se pretende chegar é estabelecida

desde o princípio até o final da peça.

O recurso composicional, estabelecido e obedecido criteriosamente, permite ao

ouvinte compreender o discurso musical sem, necessariamente, requerer do apreciador que este

domine os recursos do uso da linguagem musical, pertencente ao compositor, à instância poética,

não ao requerido do apreciador, em sua experiência estética.

61 Os corais renascentistas, produção musical preponderante na Europa entre os séculos XVI e XVII, utilizava comumente o recurso de apresentar o primeiro grau maior apenas no último compasso de uma peça escrita na tonalidade menor. Toda a peça era executada em modo menor e, somente no compasso final, com o intuito de encerrar a execução de um modo menos soturno, o acorde que seria menor é composto com a terça maior e, assim, altera sua natureza e se transforma num acorde maior.

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Melodia

Sabiá apresenta o seu elemento melódico primordialmente constituído de uma

contraposição intencional entre o caráter diatônico do Tema A e da reexposição e o caráter

cromático da sessão intermediária do Tema B.

Do primeiro ao décimo quinto compassos, ao longo de toda sessão de exposição do

Tema A, são utilizadas as sete notas da escala da tonalidade original da canção, somadas a apenas

uma nota distinta do campo harmônico daquele tom. Apesar de variar por outras duas tonalidades

distintas, as notas da melodia não saem da ambiência do campo harmônico diatônico da

tonalidade original. Até mesmo a nota cromática não-pertencente ao tom original é utilizada

somente quando da ocasião modulatória para a tonalidade relativa, o sexto grau menor. A rigor,

esta é justamente a nota (o sétimo grau da escala menor harmônica ascendente) que caracteriza a

existência da tonalidade relativa no trecho melódico.

A melodia inicial do primeiro compasso apresente, também, uma característica que se

repetirá ao longo da peça, sempre que o primeiro grau for sucedido de seu terceiro grau bemol

diminuto na harmonia. A nota fundamental da tonalidade, o primeiro grau, é executado três

vezes, todas elas com funções diferentes, pois trocam-se os acordes: como a tônica do primeiro

grau, como a sétima diminuta no terceiro grau bemol diminuto e como sétima menor no segundo

grau menor. A reincidência dessa nota afirma a tonalidade em que a peça se encontra justamente

pela variação de sua função; variação esta que é pautada pela natureza da função de tônica da

nota executada sobre o primeiro grau.

Os compassos 15 e 16 têm a estrutura melódica idêntica à dos compassos 1 e 2, em

outra tonalidade. A melodia desses compassos é uma espécie de ponte entre o uso dos recursos

melódicos antecedentes e sucedentes; a melodia, a partir do compasso seguinte tem a

característica cromática como elemento discursivo.

A bordadura cromática do compasso 17 indica o procedimento a ser seguido a partir

de ali. O uso do elemento cromático é levado ao mais alto grau de sofisticação quando, no

compasso seguinte, a primeira nota (o segundo grau da escala ascendente do modo menor) é

utilizada como a nono grau da escala e é sucedida pelo terceiro grau, tocado uma sétima maior

abaixo daquela. A sucessão cromática ascendente transforma-se numa sucessão cromática

descendente de sétima maior.

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162

Imediatamente em seguida, antes mesmo de terminar o compasso, novamente o salto

(desta feita, ascendente) provoca o deslocamento (desta vez diatônico) entre o segundo grau

menor (agora não mais utilizado como nono grau) do acorde e o terceiro grau menor do acorde do

próximo compasso.

Os três compassos seguintes são compostos por bordaduras cromáticas ascendentes; o

cromatismo domina toda a cena discursiva da melodia.

Após as bordaduras cromáticas, a melodia abandona temporariamente a proximidade

entre as notas e, em consonância com a mudança do enfoque harmônico dos compassos 22 e 23,

apresenta três saltos compostos por bordaduras; o primeiro e o terceiro dos saltos engendram

bordaduras diatônicas e o segundo engendra uma bordadura cromática.

Durante todo o trecho de encaminhamento cromático harmônico, a melodia se

apresenta em bordaduras (por vezes distendidas) apoiadas no terceiro grau do acorde cromático

que se apresenta. Tal recurso afirma a natureza maior ou menor do acorde no movimento

cromático descendente e mantém a unidade discursiva ao longo do trecho modulante. O requinte

composicional se manifesta quando da estruturação de uma melodia sempre similar, sempre

apoiada no mesmo grau melódico e harmônico, justamente para manter a unidade melódica no

trecho de descontinuidade harmônica. A presença do elemento melódico empresta unidade a todo

o movimento harmônico que intenta levar novamente a canção à tonalidade original.

Findo o trecho cromático da harmonia, a fim de manter presente de antemão a tônica

da nova tonalidade, a melodia apresenta a nota que obriga o acorde da primeira metade do

compasso 27 a se transformar e atrasar a chegada do quinto grau com sétima, criando a situação

em que se apresenta a necessidade de utilização do acorde V sus antes do V7, no qual a melodia

suspende o terceiro grau em favor do quarto grau diatônico da escala maior. O elemento

melódico, que sustentara o movimento cromático descendente da harmonia, agora requer desta a

concessão de um acorde a intermediar o movimento em direção ao primeiro grau da nova

tonalidade.

Os quatro compassos subsequentes repetem a estrutura dos compassos 13, 14, 15 e 16

e afirmam as modulações para o primeiro grau da tonalidade original e, em seguida, para o

terceiro grau bemol em relação à tonalidade original.

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Entretanto, diferentemente da melodia do compasso 17, em concordância com o

acorde maior do primeiro grau (lá o acorde era menor, cá é maior com sétima maior), a nota da

melodia do compasso 32 é a terça maior. A duração longa da nota (três tempos) e a repetição da

nota no quarto tempo do compasso indica a chegada do acorde modulante do compasso 33, o

quinto grau com sétima, que levará a peça a uma nova tonalidade, com a melodia incidindo sobre

a quinta nota da escala maior do acorde, segundo grau da escala diatônica do novo tom.

A melodia dos compassos 34 e 35 prevê, de modo precisamente bem calculado, a

chegada do moto contínuo da Coda, sugerindo o arpejo descendente que parte do sétimo grau e

chega ao terceiro grau do acorde no compasso 34 e repete o nono grau do acorde do compasso

seguinte.

Durante os onze compassos do moto contínuo da Coda, a melodia sinaliza o arpejo

do acorde de uma das duas tonalidades que dominam o discurso do trecho. A sofisticação no uso

dos recursos de linguagem é tamanha que, em contraposição ao encadeamento harmônico (que

sugere a dominância da tonalidade homônima à tonalidade original ao longo do trecho), o

elemento melódico utiliza as notas do acorde de primeiro grau da outra tonalidade, a do sexto

grau bemol da tonalidade original, sexto grau da tonalidade homônima á original.

Ambos os recursos (melódico e harmônico) são utilizados justamente para apresentar

as modulações de forma tamanhamente suave que, por vezes, sequer são notadas.

O moto contínuo tem o desfecho no último compasso da canção, no qual a melodia

consta apenas de uma nota ao longo de todo o compasso, justamente a nota fundamental, a tônica,

o primeiro grau da tonalidade original. Antecedida por duas notas iguais, porém sobre o acorde

que substitui o quinto grau da tonalidade, portanto ocupando a função de sétimo grau maior do

acorde, a nota fundamental do primeiro grau harmônico é o ponto de chegada de uma melodia

com caráter modulante, que permeou oito tonalidades distintas e, por fim, voltou à primeira nota,

da primeira tonalidade executada.

Em certa medida, do ponto de vista melódico, o recurso composicional da canção

opta pela estruturação de uma unidade melódico-harmônica que parte de uma nota e volta à

mesma nota, evidenciando todo o caráter modulatório da peça musical, porém indicando a

possibilidade de o ouvinte, ao final, reconhecer o ponto de chegada como um ponto de partida

que, ao longo dos 48 compassos da peça, pouco distou de ali.

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Ritmo

A rítmica de Sabiá tende ao andamento médio de um samba-canção, de modo a ser o

ritmo um elemento em perfeita concordância com a temática musical (harmônico-melódica) e

com a temática literária (da letra).

O samba-canção, composto em compasso quaternário, abriga generosamente o

espação para a construção de uma harmonia complexa e de uma melodia plena em requinte

estilístico.

Contando, na maior parte de sua estrutura, dois acordes por compasso, cada um deles

durando dois tempos, as mudanças processadas na melodia são as responsáveis pelas nuances

rítmicas da canção. Alterando a conformação da célula mínima – mínima – semínima – dupla

colcheia – semínima – semínima, do Tema A, com a conformação da célula semínima – dupla

colcheia – semínima – semínima – semínima – dupla colcheia – semínima – semínima, do Tema

B e do moto contínuo da Coda, o elemento rítmico da peça contribui sobremaneira para o sentido

de unidade intentado também nas outras instâncias musicais da peça. Ao ouvir uma ou outra

célula, o apreciador da peça identifica também ritmicamente a sessão onde a canção se encontra.

Assim, o elemento rítmico de Sabiá se define menos pela apresentação de um gênero

inovador, pelo uso de recursos de mudanças rítmicas, pelo discurso baseado em células rítmicas

complexas, mais pela caracterização de seus elementos rítmicos ligados à exposição da melodia,

pelo uso das células rítmicas em consonância com as sessões contrastantes da canção, pelo ritmo

intrínseco à célula melódica e ao complexo melódico-harmônico.

No entanto, à altura do compasso 22, um compasso de seis tempos é interposto à

estrutura quaternário do elemento rítmico da canção e empresta ao Tema B um caráter especial,

sobretudo por conta de ser este o momento em que a melodia executa os saltos melódicos

ascendentes em contraste com as bordaduras cromáticas ou de graus conjuntos; além disso, no

que tange à harmonia do trecho, encontramos o momento em que o novo tom se concretiza

menos no primeiro grau, mais no segundo grau menor, atingido após a utilização do movimento

cromático ascendente por intermédio do primeiro grau sustenido diminuto.

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O compasso de seis tempos se faz necessário para abranger todos os distintos

elementos melódicos e harmônicos ali utilizados. Este é mais um dos recursos empregados no

sentido se favorecer a unidade do discurso.

No entanto, a alteração do compasso poderia representar um risco, uma possibilidade

bastante pronunciada de quebra da unidade discursiva.

Para evitar tal possibilidade foi utilizado, justamente, o compasso de seis tempos, que

pode ser subdividido em um compasso quaternário e um compasso binário. O compasso binário

excedente é o compasso característico do samba, matriz rítmica do samba-canção, o gênero da

canção em análise.

Assim, a condução do tempo da peça musical, ao ter subdividida sua célula principal

numa célula similar, porém contando a metade do tempo, soa como a necessária dilatação do

tempo para que ali, naquele compasso, os discursos melódico e harmônico pudessem se

estabelecer sem que se pusesse em risco a unidade do discurso musical.

Por fim, resta tratarmos do andamento da canção, que se estabelece próximo ao

Andante, um andamento a meio caminho entre o Adagio (lento) e o Presto (rápido).

Em fato, o samba-canção se caracteriza por um andamento menos rápido do que o

samba. Ademais, a temática notadamente nostálgica da canção impõe um andamento que não

resvale no excessivamente lento, sob o risco de encaminhar o discurso para o terreno do trágico,

tampouco no excessivamente rápido, sob o risco de encaminhar o discurso para o terreno do

júbilo. Tanto um quanto outro extremo não condizem com a temática da canção.

O elemento rítmico de Sabiá prima pela economia discursiva; contribui para a

ambientação da temática, não assume o caráter de protagonista do discurso, permeia a concepção

pautada pela unidade discursiva e, quando necessário, incrementa o discurso utilizando o recurso

de linguagem da inserção de um compasso distinto do utilizado ao longo de toda a peça.

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Letra

A canção Sabiá faz menção métrica e lírica ao poema Canção do Exílio62, do poeta

romântico Gonçalves Dias.

Qual o poeta brasileiro exilado em Portugal no século XIX, que sente profundamente

a nostalgia de estar apartado de sua Terra, o Eu-lírico da canção remete-se, como estivesse

distante de seu lugar, ao tempo em que voltará a habitar sua Terra.

Impressiona a mestria no uso das palavras que compõem o primeiro verso da primeira

estrofe. Contrapondo dois verbos de naturezas antagônicas, a letra se inicia com a expressão que

une os dois verbos num único sentido.

Vou voltar

Os segundo e terceiro versos da primeira estrofe, são dedicados ao Eu-lírico, que

passa a reafirmar a certeza que tem de que voltará ao seu lugar, de onde aparentemente saiu a

contragosto.

Sei que ainda vou voltar

Para o meu lugar

62 Canção do exílio é o poema escrito em julho de 1843, em Coimbra, Portugal, pelo poeta brasileiro Gonçalves Dias. O poema é emblemático na cultura brasileira por conta da alusão à pátria distante, tema recorrente no ideário da primeira fase do Romantismo literário brasileiro. Nostalgia e nacionalismo prestavam-se à intenção de criar símbolos poéticos que funcionassem ao mesmo tempo como símbolos nacionais. O texto é estruturado a partir do contraste entre a paisagem europeia e a terra natal – jamais nominada, sempre vista com o olhar exacerbado de quem está distante e, em sua saudade, exalta os valores que não encontra no local de exílio. O texto integral do poema: Minha terra tem palmeiras,/Onde canta o Sabiá;/As aves que aqui gorjeiam/ Não gorjeiam como lá//Nosso céu tem mais estrelas,/Nossas várzeas têm mais flores,/Nossos bosques têm mais vida,/Nossa vida mais amores.//Em cismar, sozinho, à noite,/Mais prazer encontro eu lá;/Minha terra tem palmeiras,/Onde canta o Sabiá.//Minha terra tem primores,/Que tais não encontro eu cá;/Em cismar - sozinho, à noite -/Mais prazer encontro eu lá;/Minha terra tem palmeiras,/Onde canta o Sabiá.//Não permita Deus que eu morra,/Sem que eu volte para lá;/Sem que desfrute os primores/Que não encontro por cá;/Sem que ainda aviste as palmeiras,/Onde canta o Sabiá.

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Somente então, nos versos finais da primeira estrife, a menção ao poema de

Gonçalves Dias se faz explícita. A estrofe se encerra com a menção ao canto do pássaro que

também inspirou o poeta, no século XIX.

Foi lá e é ainda lá

Que eu hei de ouvir

Cantar uma Sabiá...

De modo sutil, a letra da canção começa a pontuar elementos da “Terra amada” que

lá não mais existem. Leve e paulatinamente, o lirismo do poema de Gonçalves Dias vai ganhando

contornos de um realismo que se configuraria na história da poesia brasileira cerca de 60 anos

depois.

A “sombra da palmeira”, onde canta o sabiá da Terra idealizada pelo poeta, agora não

mais se apresenta. Sem a sombra, sem a própria palmeira, a Terra à qual o poeta sonha voltar não

é mais a mesma; ora, está distinta da Ideal, tem sua Ideia corrompida, se afigura como uma Terra

que apenas existe na memória de quem lá viveu ou mesmo na imaginação de quem almeja uma

Terra como aquela.

Vou voltar

Sei que ainda vou voltar

Vou deitar à sombra

De uma palmeira que já não há

As flores das várzes do poeta, que se expandem em bosques, na alusão ao texto do

Hino Nacional, que alcanção a própria Vida e seus amores, também não mais existem.

Aparentemente existiram, mas por algum motivo já não mais “dão”.

A sutileza com que a letra aponta a degradação da Terra Ideal sugere que a

contaminação que levou a Terra à derrocada surgiu e, desse modo, há a possibilidade de que

desapareça.

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A mensagem de esperança se concretizará na estrife seguinte. Neste verso, contudo,

habita a constatação de que, por algum motivo externo à Essência da própria Terra, esta não mais

é aquela a que o poeta almeja um dia voltar.

Colher a flor que já não dá

A letra da canção, então, no último verso antes da volta à parte A da música, define o

que poderia trazer de volta a Terra ao poeta: o amor, que espantaria as noites (que “cismam” com

o poeta) e trariam novamente o dia.

O texto de Gonçalves Dias refere-se à “noite” em seu sentido temporal, no qual o

poeta “cisma” e, justamente por isso, tem aumentadas as saudades de sua Terra. Na letra de

Sabiá, a “noite” tem o sentido de um período de tempo maior do que o de uma noite, que pode

ser exatamente o período em que a Terra Ideal deixou de sê-la e tornou-se uma Terra cujo

conceito-primeiro é corrompido; uma Terra que ora não existe, mas que a letra aponta para a

possibilidade de voltar a existir.

A letra apresenta, ainda, o desgosto explícito de que aquela “noite” esteja a existir, a

amargura profunda de tal “noite” ter existido.

E algum amor

Talvez possa espantar

As noites que eu não queria

E anunciar o dia...

A canção tem a volta da primeira letra logo no início da reexposição da parte A,

executada também na repetição do primeiro tema, na tonalidade original.

Vou voltar

Sei que ainda vou voltar

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Por fim, de modo a manter o conceito de unidade entre letra e música, a última

estrofe, sobre o moto-contínuo do modo menor homônimo da tonalidade original da canção,

estabelece uma espécie de moto-contínuo literário sustentado pela sequência verbal dos finais dos

versos.

Após os dois primeiros versos, os verbos “enganar” do final do terceiro versos

empresta ao quarto verso o substantivo “enganos”. O paralelismo continua e o substantivo do

quarto verso gera o verbo do verso seguinte, mantendo magistralmente a aliteração promovida

pela letra “e” que inicia a sílaba “en” das três palavras que se entrelaçam ao final dos versos

terceiro, quarto e quinto.

Assim, o verbo “encontrar” empresta o substantivo “estradas” ao sexto verso. A

aliteração se mantém na letra inicial dos termos e o substantivo permite o rompimento da

aliteração no verbo “perder”, que encerra o sétimo verso.

Finalmente, o jogo de palavras estabelecido entre os pronomes indefinidos “tudo” e

“nada”, que abandonam as funções de quantificação para assumirem os usos coloquiais

figurados, a indicar respectivamente o excesso de esforços e a incapacidade de conseguir o

intento.

Não vai ser em vão

Que fiz tantos planos

De me enganar

Como fiz enganos

De me encontrar

Como fiz estradas

De me perder

Fiz de tudo e nada

De te esquecer...

O último verso da estrofe encerra a canção com a negação do verbo que contradiria a

proposta inicial da letra, a de manter viva a memória da terra à qual o poeta quer voltar, de

manter firme o intento de realizar a volta proposta, de concretizar o resgate da Terra Amada

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àquele tempo e do tempo em que o poeta romântico grafou os seus versos no período do

Romantismo da história da literatura – a rigor, da poesia – brasileira, na primeira metade do

século XIX.

Arranjo

A instrumentação utilizada na concepção do arranjo de Sabiá é completa, composta

de uma base harmônico-rítmica (violão, piano e contrabaixo) e da orquestra (naipes de sopro e

cordas).

A introdução é executada por um instrumento de sopro, a flauta. Acompanhada de

violão, piano e contrabaixo, a flauta introduz, pelo uso do recurso das notas longas na melodia

introdutória, o ritmo da canção.

A melodia da introdução encaminha-se para a nota quarto grau do acorde V7 que,

neste momento, tem agregada a quarta nota e passa a ser chamar V7/4. A estratégia é brilhante,

pois é exatamente a quarta nota do acorde V7 aquela pela qual se inicia a melodia do Tema A da

canção.

A orquestração também é parte importante do arranjo, na medida em que as diversas

modulações harmônicas são delineadas por frases pertencentes ao naipe das cordas.

O naipe dos sopros, por sua vez, compõe a textura sonora imiscuída à sonoridade das

cordas num estilo semelhante às orquestrações propostas pelos compositores franceses do início

do século XX, notadamente Debussy, que intercala as notas da escala hexafônica (executadas

pelos instrumentos de sopro, sobretudo aqueles da família das madeiras – flautas, clarinetes,

oboés e fagotes) às notas componentes dos acordes (executadas pelas cordas – violino, viola e

violoncelo).

As vozes da dupla de intérpretes, ambas mezzo sopranos, perfazem o restante da

textura orquestral, tanto quando executam melodias em uníssono quanto nos trechos em que a

melodia é definida pelo uso dos recursos do contraponto.

Uma estratégia que vale a pena ser notada na concepção do arranjo é a de a segunda

execução da peça não ser exatamente igual à primeira, transformando, assim, a repetição numa

nova execução, pautada por alterações no arranjo, na participação da orquestra e na definição do

cânone da parte final da canção.

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O fato de o arranjo ser todo ele escrito pelo próprio compositor da música, Tom

Jobim, permite que, ao longo da participação de instrumentos de base e orquestra, apareça todas

as nuances de dinâmica, que provém da estratégia composicional de definir os trechos em que a

instrumentação compõe a textura sonora, em contraste com trechos em que a instrumentação não

apenas sustenta a execução da melodia pelo duo de cantoras, mas é parte fundamental da própria

condução da melodia da canção.

Por fim, nota-se no arranjo o uso deliberado da escala hexafônica, ora executada em

trechos pelos sopros da orquestra, ora executada pelas cordas, em menção também a

determinadas concepções orquestrais do compositor brasileiro Villa-Lobos, contemporâneo de

Claude Debussy.

Interpretação Vocal

O duo formado pelas cantoras Cynara e Cybele, que logo no princípio da década de

1970 viriam a compor o conjunto vocal Quarteto em Cy, executa em uníssono a parte A da

canção.

Com escorreita afinação e precisão interpretativa, toda a exposição do primeiro tema

da peça fica sob a égide das tonalidades ocupadas pela região mediana das vozes de ambas as

mezzo sopranos.

A partir da modulação para a tonalidade do IV grau menor a partir da tônica, as

cantoras executam melodias vocais distintas, perfazendo um contraponto ora definido pelo uso

dos intervalos de terças, ora utilizando os intervalos de sextas maiores e menores; os movimentos

melódicos, complexos, de execução extremamente difícil, repetem os encadeamentos expostos

pelos instrumentos de sopro durante a introdução da peça.

O contraponto vocal, em grande parte da canção, não impõe células rítmicas distintas,

no entanto, intercalados às partes melódicas em uníssono, transformam a performance das

cantoras em componentes musicais semelhantes aos orquestrais, o que compõe um conjunto

harmônico todo ele voltado para a estruturação de uma textura sonora homogênea, na qual letra e

música complementam-se numa concepção harmônica que extrapola o âmbito da formação de

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acordes e da sucessão de acordes em sintonia com a melodia; a conceito harmônico é, também, o

da perfeita interação entre todos os elementos sonoros constituintes da performance.

Próximo ao final da parte B da peça, quando se aproxima o acorde de V grau com

sétima, que levará à modulação para o I grau da tonalidade original, pela frase literária

Talvez possa espantar

A voz mais grave sustenta uma nota-pedal em contraste com a melodia do

contraponto e inaugura também o contraponto rítmico.

O contraponto rítmico, de extrema complexidade tanto do ponto de vista da execução

quanto da apreensão sonora, é sucedido pelo uníssono da sessão modulante baseada no

cromatismo harmônico, igualmente complexo tanto para que executa como para quem apreende.

A mescla entre o trecho de complexidade melódica em contraste com a sessão menos

complexa harmonicamente e o trecho sucedente, de complexidade harmônica em contraste com a

sessão menos complexa melodicamente, perfazem a magistral estratégia estrutural de apresentar

complexidades distintas, de elementos distintos, em momentos distintos.

O moto-contínuo da parte C da canção é executado em uníssono.

Toda a peça é repetida, executada da mesma maneira, à exceção do trecho final, o

moto-contínuo na tonalidade homônima menor que, desta feita, apresenta um riquíssimo cânone

no qual a segunda voz dista dois tempos, exato um compasso da primeira, delimitando o final do

cânone no uníssimo no qual a primeira voz repete a última frase da canção.

O grau de dificuldade de execução da peça empresta a ela não somente qualidade

técnica mas, também, extrema beleza de expressão e riqueza de recursos de linguagem musical

utilizados na medida exata pelo arranjo da peça.

Técnicas de gravação e reprodução

De modo muito semelhante ao descrito quando analisadas as “técnicas de gravação e

reprodução” da performance da canção Domingo no Parque63, as condições de gravação da

63 Ver p. 149.

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performance aqui analisada são as impostas pelos recursos de captação do microfone geral que

capta o sinal emitido da mesa de som; esta, por sua vez, recebe os sinais dos microfones

posicionados por sobre a orquestra, que captam cordas, metais e madeiras de modo unidirecional,

além dos microfones também unidirecionais suspensos por sobre a bateria. Por fim, um

microfone apenas para a captação das vozes de ambas as intérpretes.

A captação dos microfones posicionados por sobre a orquestra é um tanto deficiente

no que tange à nitidez sonora de cada naipe de instrumentos. Ao captar a sonoridade a cerca de

150 centímetros de distância de cada naipe, os microfones perdem parte dos sons emitidos por

aquele naipe e, além disso, captam de modo rudimentar parte do som emitidos por outros naipes

de instrumentos.

No entanto, como a orquestração não apresenta distâncias de frequência muito

dilatadas, é possível apreender com alguma nitidez os trechos em que a orquestra executa células

rítmicas semelhantes.

A captação dos sons emitidos pelo instrumento de percussão, a bateria, distingue-se

pelo fato de que os microfones posicionados por sobre a bateria captam o som com a mesma

deficiência com que captam os sons provindos da orquestra, emitindo, assim, uma sonoridade

tanto precária quanto homogênea; também aqui obriga-se um efeito de pré-mixagem, de modo a

que o som do instrumento de percussão não sobressaia ao do restante da orquestra.

Os microfones, posicionados defronte ao violão e por sobre o piano, captam com

precisão a sonoridade dos instrumentos que sustentam o encadeamento harmônico e rítmico da

peça. Em certa medida, é preciso que o efeito de pré-mixagem destinado ao instrumento de

percussão estenda-se também à captação do som do violão e do piano. Entretanto, com

capacidade sonora bastante restrita, o violão requer uma abertura de captação maior, o que

provoca um efeito semelhante aos microfones posicionados por sobre outros instrumentos, fato

que não se dá na captação do som provindo do piano.

A captação das vozes obedece ao princípio de que o ouvinte possa captar tudo o que é

cantado. O microfone da voz é regulado um tanto mais alto do que o dos instrumentos, porém

com captação não muito mais aberta.

Como o arranjo não prevê a sonoridade provinda de instrumentos eletrônicos, a

entrada sonora dos instrumentos elétricos (contrabaixo e guitarra), que seriam ligados

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diretamente na mesa de som, não dificulta a captação dos instrumentos acústicos tanto do grupo

de acompanhamento quanto da orquestra.

Ainda assim, a captação sonora permite uma apreensão bastante limitada de toda a

concepção musical do arranjo, definida por sutileza harmônicas, dissonâncias específicas,

texturas sutis apreendidas somente quando de uma execução em local adequado e apreensão

desprovidas de outros ruídos provindos do local de audição.

Do mesmo modo como descrito na análise de Domingo no Parque, se a captação é

limitada, também o é o recurso de reprodução.

A performance aqui analisada é a reproduzida pelos aparelhos de televisão, à altura

fabricados com dois alto-falantes frontais ou laterais, que limitam a emissão das sonoridades

graves e restringem o espectro sonoro a apenas uma faixa das vibrações provenientes do som

captado.

Contexto de apresentação e apreensão

Impressiona, primeiramente, o fato de que a canção foi escrita antes do momento do

exílio do letrista, fato que empresta à letra da canção um caráter premonitório, como se o autor

antevisse o desfecho de um processo político que culminaria com seu exílio.

Desse modo, a performance aqui analisada é aquela gravada em execução ao vivo,

num teatro cuja acústica não se destinava à apreensão sonora de sutileza harmônicas presentes no

arranjo orquestral, delimitada por arroubos de uma plateia envolvida cultural, artística e

emocionalmente com a execução.

A sonoridade final captada pela mesa de som e transmitida para apreensão é

composta de um material sonoro bastante corrompido do ponto de vista musical, pois aplausos e

vaias misturam-se às notas musicais executadas por instrumentos de acompanhamento, orquestra

e cantores. Mesmo àqueles espectadores presentes no teatro, ao ouvirem a canção em sua

execução ao vivo, não era permitida uma emissão (e, portanto, uma apreensão) perfeita da

sonoridade da peça, pois os ouvintes estavam imersos, desde a plateia, no emaranhado de sons

produzidos pelos próprios espectadores.

A sonoridade pouco nítida apreendida pelo ouvinte exigia do músico executante,

naturalmente, uma execução sem erros; a apresentação e gravação ao vivo, distante dos recursos

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de correção permitidos pelas gravações em estúdio, não permite o erro de execução ao músico.

Assim, o duo de cantoras Cynara e Cybele, violonista, pianista, baterista e músicos da orquestra

perfazem um todo instrumental que executou a canção toda sem a ocorrência de erros de

execução, o que implica tanto um número de ensaios considerável quanto partituras bem escritas

e grandes músicos executantes.

O palco do teatro onde aconteceu a performance aqui analisada abrigava, além da

canção Sabiá, outras 11 peças musicais em competição num programa de televisão produzido e

exibido no mês de setembro do ano de 1968 pela TV Globo, chamado III Festival Internacional

da Canção. No Maracanãzinho, na cidade do Rio de Janeior, 12 competidores buscavam a vitória

no concurso.

Os jurados do festival deram a Sabiá o primeiro lugar. Contudo, a maioria da

audiência demonstrava franca preferência para a canção Pra Não Dizer que Não Falei das

Flores, de Geraldo Vandré, que trazia uma mensagem literária de confrontação explícita ao

regime militar que governava o Brasil àquela altura.

Ao ser anunciado o segundo lugar, que coube à canção Pra Não Dizer que Não Falei

das Flores, de Geraldo Vandré, a preferida do público, uma estrondosa e duradoura vaia soou no

local da exibição.

No palco, para a execução de sua música, o compositor Geraldo Vandré teve de pedir

ao público que tornasse menos agressiva a manifestação da plateia e que os compositores da

música vitoriosa mereciam amplo e total respeito64.

Em meio ao misto de muitas vaias e alguns aplausos, Sabiá foi executada pelo duo de

cantoras Cynara e Cybele, tendo ao seu lado a dupla de compositores Tom Jobim e Chico

Buarque.

A proximidade do final do ano de 1968 leva a canção Sabiá a um contexto político-

social brasileiro muito específico: o Golpe Militar já contava mais de quatro anos da implantação

do regime de exceção e se configurava como uma sucessão de governos militares. O marechal

64 Ver nota 111, p. 297.

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Costa e Silva completava o segundo ano de mandato e estava às vésperas de implantar seu

segundo Ato Institucional, o quinto do regime militar até aquela altura65.

O ambiente político, em cuja cena midiática a Música Popular ocupava o papel de

protagonista, valora em muito a frase premonitória com a qual o letrista inicia a canção:

Vou voltar

Em verdade, menos de um mês após ser decretado o Ato Institucional no. 5, o

compositor Chico Buarque foi exilado do Brasil e morou na Itália pelos 15 meses subsequentes.

65 “AI 1 (9 de abril de 1964). Modifica a Constituição do Brasil de 1946 quanto à eleição, ao mandato e aos poderes do Presidente da República; confere aos Comandantes-em-chefe das Forças Armadas o poder de suspender direitos políticos e cassar mandatos legislativos, excluída a apreciação judicial desses atos; e dá outras providências.

AI 2 (27 de outubro de 1965). Modifica a Constituição do Brasil de 1946 quanto ao processo legislativo, às eleições, aos poderes do Presidente da República, à organização dos três Poderes; suspende garantias de vitaliciedade, inamovibilidade, estabilidade e a de exercício em funções por tempo certo; exclui da apreciação judicial atos praticados de acordo com suas normas e Atos Complementares decorrentes; e dá outras providências.

AI 3 (5 de fevereiro de 1966). Dispõe sobre eleições indiretas nacionais, estaduais e municipais; permite que Senadores e Deputados Federais ou Estaduais, com prévia licença, exerçam o cargo de Prefeito de capital de Estado; exclui da apreciação judicial atos praticados de acordo com suas normas e Atos Complementares decorrentes.

AI 4 (12 de dezembro de 1966). Convoca o Congresso Nacional para discussão, votação e promulgação do Projeto de Constituição apresentado pelo Presidente da República e dá outras providências.

AI 5 (13 de dezembro de 1968). Suspende a garantia do habeas corpus para determinados crimes; dispõe sobre os poderes do Presidente da República de decretar: estado de sítio, nos casos previstos na Constituição Federal de 1967; intervenção federal, sem os limites constitucionais; suspensão de direitos políticos e restrição ao exercício de qualquer direito público ou privado; cassação de mandatos eletivos; recesso do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras de Vereadores; exclui da apreciação judicial atos praticados de acordo com suas normas e Atos Complementares decorrentes; e dá outras providências.”

Fonte: Portal da Legislação – Governo Federal. http://www4.planalto.gov.br/legislacao/legislacao-historica/atos-institucionais. Acesso em 27 de maio de 2014.

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A manifestação contrária da plateia à vitória de Sabiá revela a impossibilidade de se

prever àquele momento o endurecimento do Regime Militar e a consequente represália a artistas,

políticos e intelectuais, entre eles Chico Buarque, o autor da letra, que culminou no exílio, qual

aquele a que se refere a concepção literária da letra da música, como já mencionado neste

trabalho66.

O ambiente sócio-político-midiático de apreensão estética era, em grande medida,

mais apropriado a canções com temática e discurso engajados, trazidos sobretudo nas letras, ou a

canções desprovidas de engajamento político, que traziam em suas letras temáticas distantes do

âmbito político, mais próximas a questões comportamentais. Como já ocorrera com Domingo no

Parque, a canção Sabiá destoa do que as plateias presentes às finais dos festivais esperavam à

época. Provavelmente destoasse, também, daquilo a que o público espectador ouvinte da

Televisão esperasse naquele momento.

Entretanto, a força poética da canção conquistou uma convincente aprovação estética

da parte do corpo de jurados do festival e a obra foi premiada com o primeiro lugar na

competição.

Doce de Coco, de Wanderley Cardoso e Cláudio Fontana –

apresentação no programa Jovem Guarda, realizado pela TV Record, em

1967, e gravação em disco compacto duplo, no mesmo ano67.

Harmonia

A canção Doce de Coco, de Wanderley Cardoso e Cláudio Fontana, apresenta uma

única cadência harmônica ao longo de todos os seus 36 compassos: I – Vim – IIm – V7. 66 Ver p. 166.

67 A partitura da canção analisada encontra-se grafada no Anexo 4 deste trabalho, à p. 491.

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A sequência harmônica utilizada, baseada nos graus diatônicos do modo Maior,

representa uma variação da cadência de sucessão entre os três acordes maiores do campo

harmônico do modo Maior, na qual adere-se o VI grau menor (entre o primeiro e o quarto graus)

e substitui-se o IV grau maior pelo II grau menor.

Tal sucessão de acordes surgiu na história da música ocidental pela altura do final

século XV e é a mais básica conformação harmônica existente no repertório da música popular,

sendo utilizada e repetida em composições de canções populares do mundo todo.

Nota-se que a sucessão de acordes não apresenta dissonâncias em suas formações, à

exceção do sétimo grau menor no acorde de V grau, o que corrobora a similaridade histórica com

o repertório construído pelo final da Idade Média, quando do uso das tríades simples, e de sua

adequação ao repertório de música popular pela inserção do V7.

O diatonismo (todos os graus fazem parte da escala maior), a ausência de

dissonâncias na formação dos acordes da sequência harmônica (somente o V grau apresenta o

sétimo grau menor) e a utilização da variação simples da cadência natural que se estabelece entre

os acordes maiores do campo harmônico maior (3 são os acordes maiores; 4, os menores)

denotam o universo harmônico assaz restrito do ponto de vista do uso de recursos de linguagem e

a consequente estruturação de um discurso limitado no que tange às possibilidades de variações

melódicas que a sucessão dos mesmos 4 acordes da sequência permite.

Melodia

A introdução da canção descreve, no primeiro compasso, o arpejo do acorde maior

sobre o qual a harmonia declina para o consequente VIm; as notas da tríade do acorde, em

sequência ascendente e descendente, descrevem na melodia o que já está estabelecido pela

harmonia, numa espécie nítida de redundância discursiva. No segundo compasso, sobre a

sequência harmônica IIm – V7, as notas dos respectivos acordes, somadas do sexto grau

melódico sobre o acorde do V grau com sétima.

A melodia da introdução repete-se três vezes, por seis compassos.

A parte A da canção inicia-se na mesma nota em que termina a introdução e segue a

sequência harmônica definindo-se como uma sucessão exclusivamente diatônica. Em nenhum

ponto do trecho há o uso do recurso cromático. A melodia principal, em verdade, pode ser

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considerada uma variação da melodia da introdução, posto serem, ambas, executadas sobre a

mesma sequência harmônica. Ao longo dos oito compassos do trecho repete-se uma vez a mesma

sequência melódica.

Sucedendo a Parte A da canção, o refrão tem melodia que se inicia sobre o II grau

menor da harmonia. Também perfazendo oito compassos e apresentando uma repetição da

melodia, o trecho tem o ponto culminante na nota aguda (sobre o nono grau melódico,

consonante e diatônico, que antecede o oitavo grau, a fundamental, ainda mais consonante) da

última metade do quarto tempo dos compassos 17 e 21, anacruses dos compassos 18 e 22.

A estrutura introdução – Parte A em reexposição (com letra distinta, mas mesmas

harmonia e melodia) – Refrão, repete-se, perfazendo o total de 36 compassos distintos, um

número utilizado com frequência na canção popular composta na espécie de forma A – B.

Ritmo

O compasso quaternário, delimitado pela troca de acordes a cada dois tempos, define

com precisão o primeiro tempo forte e o terceiro semiforte. Tal conformação rítmica enquadra a

fórmula de compasso quaternário numa sucessão que não permite a flexibilização para um par de

compassos binários, limitando o elemento rítmico a uma espécie de conformação métrica regular

da canção; em certa medida, o compasso quaternário no qual são apresentados dois acordes

durante toda a execução, engessa o elemento rítmico e o enclausura numa fórmula na qual torna-

se quase impossível o aparecimento de qualquer movimento que aproxime a execução do

conceito de swing.

Assim, o compasso quaternário delimitado pela troca de acordes a cada dois tempos,

aproxima a canção Doce de Coco do universo do bolero brasileiro, gênero que teve grande

influência na produção da canção popular massiva brasileira da década de 1950.

Com pulsação levemente mais rápida, o bolero brasileiro avizinha-se do iê-iê-iê68,

gênero predominante no repertório da Jovem Guarda69.

68 O termo foi usado como primeira denominação do Rock 'n Roll brasileiro surgido pela segunda metade da década de 1960. Iê-iê-iê deriva da expressão yeah, yeah, yeah, presente em algumas canções do grupo musical britânico The Beatles, notadamente em She Loves You, lançada num compacto duplo, quando o grupo ainda iniciava carreira na Inglaterra, no ano de 1963 (DAPIEVE, 1996, p. 14). O termo não se

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Letra

A Parte A da canção Doce de Coco traz na primeira estrofe o universo da

interlocução. O Eu-lírico, autodiegético (em primeira pessoa), dirige-se a alguém, supostamente

uma mulher, a quem chama de “meu bem”, e inicia uma espécie de depoimento a ela, pelo qual,

de antemão, pede desculpa.

Meu bem!

Desculpe a comparação

Que eu vou fazer

Um grave problema de prosódia aparece já no primeiro compasso da Parte A, sétimo

compasso a contar da introdução: o acento tônico recai sobre o artigo definido feminino “a” do

segundo verso, posto este estar justamente colocado sobre o terceiro tempo, semiforte, do

compasso. O tempo forte do compasso subsequente recairia sobre a sílaba “ção”, do termo

“comparação”; no entanto, como a rítmica impõe a acentuação no terceiro tempo do compasso, a

prosódia do trecho fica bastante prejudicada.

Entremeando a primeira e a segunda estrofes, um coro entoa a melodia da introdução,

sem letra definida, somente com o vocábulo “pá”, numa sucessão melódica que antecede o verso

no qual justifica-se o pedido de desculpas anteriormente exposto.

restringe ao universo linguístico brasileiro, aparecendo, também, em Portugal onde o Rock'n Roll foi chamado primeiramente de ié-ié, e na França onde foi chamado primeiramente de yé-yé.

69 Movimento musical da canção popular massiva brasileira trazido para o cenário midiático televisivo pelo programa homônimo exibido no domingo pela tarde na TV Record, entre os anos de 1965 e 1968, apresentado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos, e Wanderléa. Líder de audiência, o programa popularizou o Rock'n Roll produzido à altura no Brasil.

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Você

Vai ficar muito zangada

Mas eu vou dizer:

Finda a Parte A, novamente o coro feminino apresenta a melodia da introdução, sem

letra definida, somente com o vocábulo “pá”.

A Parte B, o refrão, é composto de uma estrofe cujo par de versos se repete e, de

modo coloquial, fica estabelecida a comparação70 entre o doce, supostamente enjoativo, e a

mulher interlocutora.

Você não é doce de coco

Mas enjoei de você

Você não é doce de coco

Mas enjoei de você

Sucede a comparação, cuja característica intrínseca naturalmente empobreceu o

discurso, a repetição da melodia da parte A, com nova letra.

O Eu-lírico, sem dar voz à suposta interlocutora, permanece senhor do texto e

principia por lamentar o passamento do sentimento amoroso que ligava ele a ela.

Vale notar que o segundo verso da estrofe apresenta um deslize duplo na utilização

do termo “que”. Primeiramente, um deslize de regência verbal, posto o verbo “ter” reger a

preposição “de” em lugar de “que”; em seguida, um deslize ligado à aliteração involuntária que

se constitui quando da repetição do termo logo na frase subsequente.

70 Vale notar que o discurso literário opta pela característica da simplicidade quando estabelece a comparação em lugar da metáfora. Ambas Figuras de Linguagem, inseridas na categoria Figuras de Palavras, a segunda é mais rica, pois não torna explícita a similaridade entre características semânticas contidas em conceitos ou ideias; a primeira é menos rica, pois evidencia a similaridade entre características contidas em ações, em regra valendo-se do verbo “ser” na terceira pessoa do singular do modo indicativo, o vernáculo “é”.

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É triste

Eu ter que confessar

Que o meu amor morreu

Finalmente, antes da repetição dos versos do refrão, a segunda estrofe da reexposição

da parte A remetem-se ao âmbito particular do Eu-lírico, que descreve sua própria tristeza pelo

fim do sentimento amoroso.

Vale notar que o verbo do terceiro verso dista diametralmente da linguagem coloquial

empregada desde o primeiro verso da canção, no qual o Eu-lírico chama a interlocutora de “meu

bem”.

Meus olhos já nem

Conseguem mais

Fitar os olhos teus

A letra da canção apresenta temática pouco abrangente, o rompimento

descompromissado de um romance, e varia a abordagem do linguajar utilizado entre os

interlocutores; além disso, coleciona problemas de regência verbal e de prosódia, constituindo,

assim, um discurso pobre tanto do ponto vista estilístico (formal) quanto estrutural (do conteúdo).

Arranjo

O iê-iê-iê difere do bolero brasileiro, primordialmente, no que tange à

instrumentação. Em lugar do violão, guitarra elétrica; em lugar do piano, teclado com sons

sintetizados; o contrabaixo, necessariamente, é elétrico. A instrumentação se completa com o

elemento percussivo, a bateria.

Na canção Doce de Coco, os instrumentos mantêm-se em suas funções de harmonizar

(guitarra, teclado e contrabaixo) e manter o ritmo (bateria) para a execução, primeiramente, da

introdução cantada por um coro feminino e, em seguida, pelo cantor solista.

Após o segundo refrão da primeira execução da peça, o teclado, com som sintetizado

de cordas, intercala um solo com o saxofone. O solo, em lugar de ser um trecho improvisado

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pelos executantes, qual ocorre na forma A – B da canção provinda do jazz norte-americano

executa a melodia da introdução.

A canção se repete a partir do primeiro refrão e, ao final, em fade out, o teclado, com

som sintetizado de cordas, mantém notas longas sustentando a frase final de seu trecho de solo

enquanto o coro feminino repete a melodia da introdução.

Interpretação Vocal

O coro feminino que inicia a execução em uníssono da melodia da introdução tem

afinação escorreita e precisa. Possivelmente tenha ocorrido a gravação de três vozes em coro.

No entanto, o grau de dificuldade de execução da melodia é baixo, além de a

execução ser um uníssono. Desse modo, torna-se previsível a execução competente da frase

introdutória que se repete ao longo da canção.

Já o cantor solista apresenta afinação imprecisa e pouca sustentação quando da

inflexão das notas da região mais grave da peça musical, notadamente aquelas com o apoio na

vogal “i”, como na palavra “dizer”, no oitavo compasso a partir da introdução.

Por vezes, de modo não simétrico ou criterioso, o intérprete opta pelo uso do vibrato

nas notas finais das frases melódicas, alternando com o uso do mesmo recurso em trechos

internos de frases do refrão.

Próximo ao final do segundo refrão da primeira execução da peça, quando da nota

aguda situada sobre a sílaba “vo” da palavra “você”, o intérprete apresenta imprecisão flagrante e

compromete sobremaneira o quesito afinação.

Por fim, a questão interpretativa deixa, também, um tanto a desejar, posto o cantor

não traduzir em sua voz nem o tom coloquial com que o Eu-lírico dirige-se à interlocutora,

tampouco o tom formal com que a mesma personagem poderia encampar quando do momento

em que a letra trata da tristeza íntima do Eu-lírico pelo fim do sentimento amoroso. Em verdade,

o intérprete mantém o mesmo padrão de execução e consagra uma espécie de interpretação na

qual não deixa claro ao ouvinte os estados emocionais das personagens envolvidas na trama do

texto literário cantado.

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Técnicas de gravação e reprodução

A performance aqui analisada refere-se à gravação em compacto duplo da canção

Doce de Coco, no ano de 1967.

À altura, os estúdios já dispunham de equipamento que permitia a gravação de faixas

separadas. Desse modo, possivelmente os instrumentos gravaram a base rítmico-harmônica antes

de serem gravadas as vozes.

Tendo a gravação da base rítmico-harmônica como estofo, a vozes do coro feminino

foram gravadas. O grupo de três cantoras gravou, em uníssono, a voz-guia e sobre ela gravou

novamente a mesma melodia outras duas vezes. Essa espécie de recurso de gravação era a mais

utilizada à época e perdura até os dias de hoje quando a intenção é realizar gravações de coros. O

equipamento de captação (os microfones atrelados à mesa de som) tem um sinal-limite de

captação que, em regra, não deve ser excedido da presença de três cantores a cada take uníssono

do coro.

Finalmente, a voz do cantor solista é gravada.

Nota-se o uso bastante pronunciado do efeito de reverb nas tomadas de vozes (tanto

do coro quanto da voz solista), recurso também muito em voga à altura.

É notável a sonoridade pouco fiel das cordas que provêm de um teclado sintetizado,

instrumento ainda rudimentar na segunda metade da década de 1960.

A reprodução da canção analisada dava-se por meio de um toca-discos de 45 rpm,

permitida pelo compacto duplo. A fidelidade com as frequências sonoras é contrabalanceada com

um índice perceptível de ruídos de execução, ao qual chamam-se comumente “chiados”.

Os aparelhos toca-discos não dispunham de dispositivos de equalização, tampouco de

recursos de emissão de frequências das regiões graves, o que limitava a audição nítida ou

constante das frases do contrabaixo.

Contudo, a gravação de discos para prensagem em acetato (LPs e compactos)

permitia o registro de frequências sonoras mais amplas do que aquelas possíveis nas gravações

para a prensagem de CDs, em poliestireno, comercializadas a partir da segunda metade da década

de 1980.

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Contexto de apresentação e apreensão

Cabe analisar aqui um par de contextos de apresentação e apreensão da canção Doce

de Coco, de Wanderley Cardoso: o contexto da audição da gravação do disco e o das

apresentações em programas televisivos, sobretudo Jovem Guarda, exibido pela TV Record, e Os

Adoráveis Trapalhões, exibido pela TV Excelsior, ambos na segunda metade da década de

196071.

O contexto da audição da gravação do disco impunha, à época, a ausência de

deslocamento do ouvinte. O aparelho toca-discos ficava atrelado a uma fonte de energia elétrica,

o que estabelecia a necessidade de um fio conectado a uma tomada. Portanto, o ouvinte não podia

levar consigo para um deslocamento a locais distantes o repertório que seria ouvido.

Naturalmente, obrigado a encontrar-se parado no local de audição, o ouvinte tem

menor índice de possibilidades de dispersão com atividades distintas à da audição. Desse modo,

conserva-se em tese, aquilo a que Walter Benjamin chamou um aspecto da aura da obra de arte

que está a ser ouvida, tal como já mencionamos neste trabalho72.

O contexto da audição da canção nos programas televisivos também preserva o

caráter de um ouvinte parado, disposto a ouvir, disponível para apreender a mensagem literário-

musical contida na peça.

Assim, o contexto de apresentação e apreensão da canção Doce de Coco favorecem a

escuta dedicada, passível de aprofundamento sensorial e analítico da obra de arte.

No entanto, notadamente nas apresentações da canção no programa Os Adoráveis

Trapalhões, o elemento musical era apenas um entre outros tantos elementos expressivos.

71 “Buscando superar a audiência do programa Jovem Guarda, da Record, a Excelsior contratou Wanderley Cardoso (cantor conhecido pela música “O bom rapaz”), integrante do programa em questão, para estrelar a nova atração. O cantor teria sido, então, o primeiro trapalhão, e Wilton Franco, diretor do novo projeto – considerado também um mestre do humor – escalou outros três artistas, o lutador Ted Boy Marino, estrela do programa Telecatch, o ator Ivon Cury e Renato Aragão, ex contratado da TV Tupi e famoso no Ceará, batizando-os de Os adoráveis trapalhões” (FRANCO; JOLY, 2007, p. 43).

72 Ver nota 49, p. 114.

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O programa, de natureza humorística, trazia quadros diversos, situações encenadas,

esquetes, sucessão de cenas protagonizadas por personagens fixos do programa e, também,

números musicais da personagem “O Bom Rapaz”, interpretado pelo cantor Wanderley Cardoso.

Nesse contexto, o cantor apresentava seus sucessos e, também, suas músicas inéditas.

Havia, também nesse formato de programa, a possibilidade midiática da oportunidade

do surgimento de artistas de real valor e de canções de padrão estético elevado. Porém, como a

Música não protagonizava o todo discursivo do programa, tal possibilidade era muito menor do

que em outros formatos que ocupavam faixas de horários das grades de programação das

emissoras.

Considerações a partir das análises – canções da

segunda metade da década de 1960.

Após o percurso analítico descrito até aqui, é possível notar as diferenças entre os

discursos das canções Domingo no Parque, de Gilberto Gil; Sabiá, de Tom Jobim e Chico

Buarque; e Doce de Coco, de Wanderley Cardoso e Cláudio Fontana.

Do ponto de vista estritamente musical, enquanto as primeiras traçam intrincados

caminhos harmônicos, estabelecem modulações complexas e concernentes ao discurso melódico,

descrevendo encadeamentos de acordes compostos com dissonâncias acrescidas ao campo

harmônico, que somente foram utilizados na história da música a partir da segunda metade do

século XIX, a terceira é toda estruturada por sobre uma sequência de acordes diatônicos

utilizados à exaustão na história da música desde o século XV. A sequência harmônica óbvia

desta ressalta a engenhosidade composicional daquela. Portanto, no que tange ao recurso de

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linguagem da harmonia, Domingo no Parque e Sabiá apresentam extrema riqueza discursiva,

enquanto Doce de Coco traz o parco discurso dos quatro acordes elementares da sucessão I –

VIm – IIm – V7, sem uso de dissonâncias.

Melodicamente pode-se notar a sutileza da construção diatônico-cromática das

primeiras em detrimento da simplicidade diatônica da terceira. Enquanto aquelas percorrem

sucessões de escalas cambiantes por conta dos encadeamentos harmônicos, esta restringe-se às

notas da escala maior da tonalidade original. O cromatismo melódico, em conjunção com o

diatonismo, denotam a complexidade e a riqueza da estruturação de uma melodia que tanto

encontra-se inserida nos encadeamentos harmônicos quanto provoca as modulações da harmonia

quando de seu deslocamento horizontal. Desse modo, no que tange ao recurso de linguagem da

harmonia, Domingo no Parque e Sabiá apresentam a riqueza discursiva pertinente à estruturação

harmônica, enquanto Doce de Coco apresenta um discurso diatônico pobre, concernente à

limitação dos quatro acordes elementares da harmonia.

O elemento rítmico das primeiras, envolvem harmonia e melodia de modo a

caracterizar o ambiente sonoro de modo preciso e definitivo da primeira canção e a delimitar as

possibilidades harmônico-melódicas da segunda. Já no caso da terceira canção, a linguagem

rítmica pouco condiz com as linguagens da harmonia e da melodia, redundando numa repetição

de células métricas desprovidas de variações e caracterizações de dinâmica. A sustentação da

característica rítmica do jogo da capoeira na primeira canção, a mudança de fórmulas de

compasso na segunda canção, contrastam com a inflexibilidade do compasso quaternário com

acentuação dupla (primeiro e terceiro tempos) da terceira canção. Assim, pode-se concluir que,

no que tange ao recurso de linguagem do ritmo, Domingo no Parque e Sabiá apresentam a

riqueza discursiva que valoriza a estruturação harmônico-melódica, enquanto Doce de Coco tem

no elemento rítmico nada além de um fator percussivo métrico, cujo discurso é concernente à

estreiteza da proposta estrutural tanto da harmonia quanto da melodia.

O âmbito literário também faz as canções analisadas distarem de modo bastante

contundente. As primeiras apresentam comprometimento com questões fundamentais do ser

humano, ambas abordadas de modo tamanhamente criativo que se, de um lado, a primeira faz uso

da narrativa de um fato corriqueiro para chegar à alçada íntima do Homem e sua pequenez diante

de si e da vida (o drama comezinho ganha a universalidade justamente porque trata de questão

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essencial), a segunda faz uso do recurso poético de remeter-se ao exílio já decantado para abordar

o exílio humano do Homem em relação à pátria e, por conseguinte, em relação a si mesmo –

novamente a questão essencial partindo da seara miúda do indivíduo. A terceira canção, por sua

vez, aborda a questão do romance que finda, o que poderia, naturalmente, transformar-se numa

questão essencial, a saber, o ser humano defronte às questões que envolvem o amor; no entanto, a

abordagem tende para a excessiva leveza, que leva o discurso literário à beira da puerilidade.

Portanto, também no que tange ao recurso de linguagem literário, da letra da canção, Domingo no

Parque e Sabiá apresentam a riqueza discursiva do texto cantado, enquanto Doce de Coco

apresenta o elemento literário de forma tíbia, com a temática do amor acabado sendo abordada de

forma notadamente pueril e leviana; a questão essencial é reduzida ao âmbito comezinho.

O arranjo das canções denota, primeiramente, a diferença de alcance sonoro da

instrumentação. Enquanto as primeiras têm arranjos concebidos para instrumentos de base

(violão, piano, contrabaixo, guitarra elétrica e bateria) e orquestra, a terceira tem arranjo para a

instrumentação própria do gênero iê-iê-iê: teclado, contrabaixo, guitarra elétrica e bateria. Este

fato, por si só, estabeleceria a distinção entre as canções, justamente por conta da necessidade da

estruturação de uma malha sonora muito mais ampla. Porém, além do âmbito da instrumentação,

a própria concepção do arranjo das primeiras canções pressupõe a adequação sonora do arranjo

aos elementos da harmonia e da melodia; a terceira canção, por sua vez, tem um arranjo que se

limita a criar a ambiência sonora para a voz solista. Desse modo, no que tange ao recurso de

linguagem do arranjo, Domingo no Parque e Sabiá apresentam a concepção de um discurso

amplo, complexo e rico, enquanto Doce de Coco apresenta a limitação do uso dos recursos de

linguagem e o consequente discurso menos elaborado, mais pobre.

O âmbito da interpretação requer, primeiramente, a avaliação do caráter da afinação

dos cantores solistas. Tanto o cantor da primeira canção quanto o duo vocal da segunda

apresentam técnica apurada e afinação escorreita, fato que não se repete na execução vocal da

terceira canção que, outrossim, apresenta o coro feminino bastante afinado. Outro fator de

diferenciação entre as execuções vocais se dá no âmbito do caráter interpretativo dos cantores; do

intérprete se requer a adequação das técnicas de inflexão sonora, dinâmica e articulação das

palavras, ao texto cantado da letra. Nas duas primeiras interpretações esse fenômeno ocorre de

forma precisa; na terceira, de forma imprecisa. Assim, também do ponto de vista da

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interpretação, Domingo no Parque e Sabiá apresentam uma natureza discursiva adequada, com o

requinte de interpretações que ficaram marcadas ao longo da história da música popular

brasileira; já a interpretação de Doce de Coco apresenta uma natureza menos adequada, menos

precisa, desprovida de característica marcantes tanto técnicas quanto interpretativas.

No que tange às técnicas de gravação e reprodução, naturalmente a terceira canção

leva vantagem sobre as duas primeiras. Gravada em disco, não tem a interferência sonora de

vaias e aplausos da plateia presente às duas primeiras gravações. No entanto, vale notar que,

mesmo a superioridade técnica da gravação e da reprodução de Doce de Coco, o resultado sonoro

da audição da faixa do disco não traz consigo o ambiente social no qual a canção estava inserida;

denota a época da gravação por conta dos elementos técnicos (o som sintetizado de cordas do

teclado, o uso do reverb na voz do cantor solista), mas não denota a ambiência social, o contexto

apresentação e apreensão da canção do mesmo modo que Domingo no Parque e Sabiá assim o

fazem.

O contexto de apresentação e apreensão das duas primeiras canções traz consigo a

época das apresentações, a situação política, social e midiática de uma era marcada por conflitos,

contestações, mudanças, que tiveram a música popular como uma das protagonistas da ação

cultural e social. No caso da terceira canção, apesar da contemporaneidade em relação às

anteriores, o contexto de apresentação e apreensão não revela a situação política e indica apenas

um lado da situação social da época, o universo do jovem não-engajado da década de 1960;

revela, porém, as situações midiática e mercadológica de parte da produção da canção popular

massiva brasileira. Portanto, também no âmbito do contexto de apresentação e apreensão, o

âmbito estético por excelência, Domingo no Parque e Sabiá adequam-se ao contexto de forma

mais ampla e profunda, compondo, assim, um discurso mais agudo, pungente, adequado e

duradouro do que o estruturado pela canção Doce de Coco.

Nota-se, portanto, que desde o ponto de vista poético até o âmbito estético, as canções

Domingo no Parque e Sabiá apresentam uma natureza discursiva mais completa, mais ampla, de

todas as formas maior e melhor do que a apresentada pela canção Doce de Coco. Tanto os

elementos estritamente musicais quanto o elemento literário ou os elementos da performance

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tendem em Domingo no Parque e Sabiá ao Belo essencial já exposto anteriormente73 e, desse

modo, emprestam longevidade às canções. Tal fato não ocorre em Doce de Coco que, por conta

também da fragilidade na estruturação da canção, da ausência de domínio pleno e profundo das

possibilidades de usos de recursos de linguagem, apresenta um discurso pobre em relação às

outras duas canções; esta característica diminui sobremaneira a longevidade da canção,

transformando-a em objeto de consumo passageiro, distanciando-a da concepção de uma

verdadeira obra de arte, que, em essência, tende para o eterno.

As canções da segunda metade da década de 1960

Vidro Fumê, de Carlos Colla e Kaliman Chiappini – gravação

no DVD Bruno & Marrone – Pela Porta da Frente, gravado ao vivo no ano de

2012, lançado no ano seguinte74.

Harmonia

A canção Vidro Fumê, de Carlos Colla e Kaliman Chiappini, apresenta nos oito

primeiros compassos do Tema A uma única cadência harmônica que sai do I grau maior e

desemboca no V grau, sem a sétima: I – V7.

73 Ver a partir da p. 30.

74 A partitura da canção analisada encontra-se grafada no Anexo 5 deste trabalho, à p. 495.

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Apenas no nono compasso do Tema A é utilizado o acorde do IV grau, também sem a

sétima maior, a sétima respectiva do acorde; entre o compasso nono e o décimo sexto, a estrutura

harmônica faz uso apenas dos acordes da sequência harmônica I – IV – V – I.

A sequência harmônica utilizada, baseada nos graus Maiores diatônicos do modo

Maior, não apresenta sequer uma variação da cadência de sucessão entre os três acordes maiores

do campo harmônico do modo Maior, na qual frequentemente adere-se o VI grau menor (entre o

primeiro e o quarto graus) e substitui-se o IV grau maior pelo II grau menor.

Tal sucessão de acordes surgiu na história da música ocidental pela altura do início

século XIII e é a mais básica conformação harmônica existente no repertório da música popular,

sendo utilizada e repetida em composições de canções populares do mundo todo desde os

primórdios de registros de canções populares em partituras grafadas com a notação musical

tradicional e, posteriormente, cifradas. O repertório de música popular abandonou a sequência I –

IV – V – I antes mesmo da virada da década de 1940 para a década de 1950.

Na repetição do Tema A, entre os compassos 17 e 32, nos compassos 25 e 26 é

utilizado o acorde relativo menor do primeiro grau, sem sétima menor, inserindo pela primeira

vez, e à guisa de variação, o VI grau na sequência harmônica.

Nota-se que a sucessão de acordes não apresenta dissonâncias em suas formações,

nem mesmo o sétimo grau menor no acorde de V grau, o que corrobora a similaridade histórica

com o repertório construído pelo meado da Idade Média, quando do uso das tríades simples, sem

a adequação à linguagem do repertório de música popular pela inserção do V7.

O diatonismo (todos os graus fazem parte da escala maior e são apenas utilizados os

graus Maiores, à exceção do VI grau menor inserido nos compassos 25 e 26), a ausência de

dissonâncias na formação dos acordes da sequência harmônica (nem mesmo o V grau apresenta o

sétimo grau menor) e a utilização da variação simples da cadência natural que se estabelece entre

os acordes maiores do campo harmônico maior (todos os 3 acordes maiores) denotam o universo

harmônico assaz restrito do ponto de vista do uso de recursos de linguagem e a consequente

estruturação de um discurso limitado no que tange às possibilidades de variações melódicas que a

sucessão dos mesmos 3 acordes da sequência permite.

O refrão, também composto por 16 compassos, tem início com o deslocamento da

tonalidade para o VI grau, relativo menor do tom original. O V grau do novo tom, também sem

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sua sétima menor, estabelece a ligação para o novo I grau durante oito compassos, sem variação

V – I.

Após o oitavo compasso do refrão, o IV grau (III grau do tom original), em simetria

com o próprio VI grau menor dos compassos 25 e 26, é utilizado à guisa de variação.

Os dois compassos finais do refrão indicam a volta ao tom original. Porém, apesar de

usar o V grau (ainda sem a sétima menor) do tom original, a volta ao tom acontece antecedida

pelo V grau da tonalidade relativa menor, demonstrando flagrante imperícia no uso das

sequências harmônicas por parte do compositor.

Melodia

A anacruse do primeiro compasso, na terceira nota da escala diatônica da tonalidade,

antecede a sucessão de seis notas repetidas, contrariando o princípio arquetípico de uma melodia,

estabelecer deslocamentos para criar o movimento na dimensão horizontal da música.

No terceiro compasso, a melodia abandona a nota repetida (o quinto grau da escala) e

segue a sequência harmônica definindo-se como uma sucessão exclusivamente diatônica. Entre o

quinto e o oitavo compassos acontece a repetição melódica do que sucedeu entre o primeiro e o

quarto compassos. Em nenhum ponto do trecho há o uso do recurso cromático.

Os oito compassos subsequentes mantêm-se melodia e harmonia diatônicas presas à

sucessão de repetições, mesmo após a introdução do IV grau harmônico no nono compasso. Em

verdade, a inexistência de harmônica ata a melodia a uma sucessão de subidas e descidas

diatônicas exclusivamente fazendo uso das notas da escala maior sobre a qual fundamenta-se a

sequência dos acordes I – IV – V.

No entanto, na repetição do Tema A da canção, quando é utilizado à guisa de

variação o VI grau menor harmônico, a melodia do trecho anterior mantém-se a mesma. Mesmo

com a introdução de um acorde distinto, a melodia se repete, evidenciando também imperícia

melódica por parte do compositor.

Sucedendo a Parte A da canção, o refrão tem melodia que se inicia sobre o V grau do

relativo menor da harmonia. Os oito primeiros compassos apresentam uma repetição da melodia

dos quatro primeiros compassos do refrão.

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A melodia conhece uma alteração quando, na segunda parte do refrão, quando da

utilização do IV grau (III grau do tom original) harmônico, em simetria com o próprio VI grau

menor dos compassos 25 e 26, é utilizado à guisa de variação. Nesses oito compassos finais do

refrão a melodia, ainda diatônica, sem usar uma vez sequer o recurso cromático, encaminha-se

para voltar à tonalidade original.

Ritmo

O compasso quaternário, delimitado pela troca de acordes a cada dois compassos,

define o ritmo da balada romântica em pulsação levemente acelerada, caracterizando o gênero de

música sertaneja, que se assemelha ao bolero brasileiro dos anos 1950, porém, por conta de a

pulsação variar para maior rapidez, aproxima o discurso rítmico da sonoridade pop, oriunda do

Rock’n’Roll produzido pelo final da década de 1960 a partir dos Estados Unidos da América do

Norte.

A bateria sustenta a mesma célula rítmica ao longo das duas exposições do Tema A,

variando apenas nos compassos de transição entre os compassos oito e nove e os simétricos

subsequentes, para caracterizar as voltas aos temas melódicos e harmônicos.

Em grande medida, o compasso quaternário no qual são apresentados quatro acordes

durante toda a execução, engessa o elemento rítmico limitando-o a uma fórmula na qual torna-se

quase impossível o aparecimento de qualquer movimento que aproxime a execução do conceito

de swing.

A célula rítmica da bateria altera-se pelo refrão de modo a dobrar a execução de

notas, delimitando pela metade as células apresentadas anteriormente. A troca d célula rítmica da

bateria, no entanto, por ser exatamente dividida pela metade, ainda que transmita a sensação de

que a canção ganhou novos contornos, nada faz além de sinalizar com alguma obviedade a

chegada do refrão, já caracterizada pela mudança de tonalidade.

Ambas as mudanças, esperadas, previsíveis, reduzem o uso do recurso de linguagem,

tanto harmônico quanto rítmico, ao universo discursivo do gênero musical, que provém de uma

estrutura limitada no que tange às inovações nos campos da harmonia, da melodia e do ritmo.

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Letra

A Parte A da canção Vidro Fumê traz no Tema A o universo da interlocução. O Eu-

lírico, autodiegético (em primeira pessoa), dirige-se a alguém, supostamente uma mulher, a quem

não denomina e somente apresenta próximo à chegada do refrão; a rigor, dois versos antes da

primeira frase do refrão.

O Eu-lírico dirige-se à interlocutora em extensa narrativa dos fatos que antecederam o

início da conversa

Foi num telefonema anônimo

Uma voz disfarçada

Me falou que eu estava sendo traído

Nota-se a ausência de rimas na primeira estrofe da canção, apenas marcada pela

acentuação da proparoxítona do primeiro verso, em paralelismo com a paroxítona do terceiro

verso.

Um grave problema de prosódia aparece já no terceiro compasso da Parte A: o acento

tônico do termo “anônimo”, a proparoxítona do primeiro verso, impõe o uso da tercina no

compasso quinto, na frase “uma voz disfarçada”, o que dilata a métrica das palavras utilizadas no

segundo verso. Como o terceiro verso apresenta o paralelismo da paroxítona “traído” com a

proparoxítona do primeiro, faz-se necessária a contração melódica da frase, o que compromete

significativamente a prosódia do trecho, que alterna sucessão de sílabas e contenção de sílabas

num curto espaço de seis compassos quaternários.

O Eu-lírico prossegue em sua narrativa, agora direcionando a argumentação para o

seu estado íntimo; desloca-se a narrativa desde os fatos externos às motivações internas:

Eu nem quis acreditar

Pensei que era só um trote

Mas no fundo do meu peito

Já desconfiava dessa minha sorte

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A repetição do Tema A mescla elementos da narrativa dos fatos exposta no primeiro

trecho da estrofe anterior a elementos da narrativa das motivações internas da personagem,

expostas no segundo trecho da estrofe anterior, principiando por estas, sucedidas de aquelas.

Vale notar que o fato de a personagem que mantém o discurso, em certa medida, já

prever intimamente a concretização do que lhe fora dito pelo telefone (previsão anunciada no

último verso da estrofe anterior) contraria parte das ações que encampará na próxima estrofe,

quando, pelos versos segundo e terceiro ele decide apurar os acontecimentos de modo um tanto

descontrolado, evidenciado pela expressão “na loucura do meu pensamento”.

No calor de um momento

Na loucura do meu pensamento eu fui atrás

Em busca da verdade de um segredo

Senti o amor estremecer

O problema da prosódia indicado no segundo verso da primeira estrofe torna-se ainda

mais evidente quando, no segundo verso da segunda estrofe, sob a mesma métrica rítmico-

melódica, não é feito o uso da tercina, pois o paralelismo tônico existente entre a proparoxítona

do primeiro verso e a paroxítona do terceiro verso não mais existe. Desta feita, não se alternam

sucessão de sílabas e contenção de sílabas no mesmo curto espaço de seis compassos

quaternários.

Os dois últimos versos da estrofe delimitam o exato momento em que as previsões da

personagem se concretizaram:

Na hora em que eu te vi entrando

Num carro importado de vidro fumê

A concordância pronominal fica prejudicada quando é utilizada a forma “te vi”,

tratamento da segunda pessoa, será sucedida logo na primeira frase do refrão pelo tratamento em

terceira pessoa, “você”.

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Vale ressaltar que o título da canção aparece na última frase do Tema A sem ser

precedido de rima.

O refrão dá conta, enfim, de introduzir a interlocutora na cena apresentada; o Eu-

lírico dirige-se a ela:

Quando você chegou em casa

Eu te tratei naturalmente

O procedimento da personagem, atípico para a situação narrada, constrói o momento

de espera pelo desfecho dos fatos.

A personagem que narra os fatos, então, declara o motivo que o levou à atitude

inesperada, utilizando novamente a segunda pessoa do singular, em sintonia com o penúltimo

verso do tema A, porém em contradição com o tratamento pronominal em terceira pessoa

presente no primeiro verso do refrão.

E quando fiz amor contigo a noite inteira, lentamente

Nota-se, desse modo, que a atitude pouco usual da personagem era, em fato, apenas

um motivo para inserir a temática sexual na letra da canção. A personagem, que anunciara viver

entre “a loucura do pensamento”, não toma medidas drásticas; ao contrário, toma uma atitude

plácida, repleta de desfaçatez, que não corrobora seu próprio estado de “loucura” anunciado.

Na sucessão literária dos três últimos versos da canção confirma-se a intencionalidade

da inclusão da temática sexual em detrimento da construção concernente de um discurso por

parte da personagem que narra os fatos.

De modo assaz inverossímil, a personagem intentaria, em seu momento de “loucura”

ter uma última experiência sexual com a interlocutora; queria ele uma “canção de despedida”.

Para além disso, tal momento apresentou-se nitidamente especial, pois foi “diferente”.

A traição da personagem interlocutora, em certa medida, tem imputada um tom

edificante pela própria personagem do Eu-lírico; a vilania dela ganha, dele, a prerrogativa de ter

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gerado algo bom – e essencial – de per se: a “última noite de amor” do casal protagonista da

história.

Foi a canção da despedida

Foi de verdade, diferente

Foi a última noite de amor da gente

Arranjo

O arranjo da canção Vidro Fumê propõe instrumentação básica, com acordeão,

guitarra, 2 violões, teclado e contrabaixo em suas funções de harmonizar e manter o ritmo

(bateria e percussão) para a execução de toda a peça musical.

A métrica rítmica do Tema A não prevê a participação do acordeão e tem o teclado

com a sonoridade sintetizada de cordas. Quando, pelo refrão, a célula rítmica é dobrada, ocorre a

entrada do acordeão, que se mantém até o final da execução e do teclado com a sonoridade de

piano, o que sobrecarrega demasiado o elemento de sucessão de acordes. É excessivo o número

de instrumentos a reiterarem a mesma sequência simplória de acordes: 2 violões, piano e guitarra

sobrepõem-se., pois contam ainda o reforço das notas do contrabaixo.

A voz solista do Tema A tem a sequência de acordes com o suporte rítmico da célula

dos dois violões, que sucedem durante toda a execução séries de duplas colcheias acentuadas na

terceira e na quinta palhetada no sentido das cordas mais graves para as mais agudas. Quando,

por conta da chegada do refrão, espera-se a diferenciação da célula, esta não acontece e a

sucessão de colcheias estende-se até o final da canção.

Por fim, o arranjo pressupõe o crescendo da dinâmica pela inclusão de elementos, não

pela variação de intensidade sonora dos elementos; entram instrumentos, dobra-se a célula

rítmica, adere-se a segunda voz, porém todos os instrumentos executam suas partes sempre no

mesmo volume sonoro em que começaram a peça musical.

Interpretação Vocal

Um par de cantores solistas (a voz principal e a segunda voz) intercalam trechos

cantados a uma e a duas vozes. O Tema A é, todo ele, cantado apenas pela voz solista. O grau de

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dificuldade de execução da melodia é baixo e, desse modo, torna-se previsível a execução

competente das frases do trecho.

O cantor, no entanto, demonstra esforço para atingir notas de uma região mediana da

voz masculina. Além disso, intenta um efeito sonoro semelhante a uma voz “raspada”; tal espécie

de melisma por um lado caracteriza a voz executante, por outro, indica ao ouvinte uma eventual

dificuldade interpretativa, fato distante de uma das funções essenciais do bom intérprete:

transparecer a quem aprecia as nuances da obra, não as dificuldades de execução da obra.

Pelo refrão apresenta-se a segunda voz.

Herdeira do gênero “música caipira”, a “música sertaneja” também apresenta a

segunda voz executada a uma distância tonal do intervalo de sexta (maior quando o diatonismo

preveria a terça menor; menor quando o diatonismo preveria a terça maior)75.

Nota-se na performance aqui analisada que o volume da segunda voz é

consideravelmente mais baixo do que o da voz principal. No entanto, quando se torna possível

ouvir a melodia da segunda voz, percebe-se que, apesar do baixo grau de dificuldade imposto

pela melodia, o intérprete apresenta deficiência pronunciada no que tange à afinação das notas

que executa.

A reexposição do Tema A volta a contar apenas um cantor e, assim, pode-se

restabelecer a afinação do conjunto sonoro.

Cabe o questionamento acerca da necessidade da participação do segundo intérprete

na execução da canção, posto ser um cantor de qualidade questionável no que diz respeito à

afinação e um violonista cuja célula rítmico-harmônica nada faz além de sobrepor aquela

executada pelo outro violonista, que já tem a companhia da guitarra e do teclado para essa

função.

75 A “música caipira” é executada por dois cantores intérpretes, cantando a mesma melodia em regiões distintas, separadas pelos intervalos de sextas quando a dupla é composta por vozes masculinas e pelos intervalos de décima (a terça superposta após uma oitava de distância) quando a dupla é composta por vozes mistas. Os intervalos de terça (ou décima) e sexta são considerados consonâncias desde o período Barroco da música erudita (datado pela primeira metade do século XVIII) e, quando executados concomitantemente não perfazem a estrutura do contraponto barroco, que prevê a execução de melodias distintas pelas vozes componentes.

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Técnicas de gravação e reprodução

A performance aqui analisada refere-se à gravação ao vivo do DVD da dupla Bruno

& Marrone, no ano de 2012, comercializado a partir do ano seguinte.

A gravação dessa espécie de produto prevê a captação do áudio no local da gravação

por alguns microfones (bateria, percussão, cantores e backing vocals) e pela ligação de

instrumentos elétricos (teclado, guitarra, violão, acordeão e contrabaixo) diretamente na mesa de

captação. Além da captação da sonoridade da apresentação ao vivo, prevê-se ajustes sonoros de

edição, mixagem e até mesmo de execução, em estúdio, posteriormente à gravação.

A gravação de faixas separadas permite alterações posteriores e, também a inserção

da sonoridade provinda da plateia.

A base rítmico-harmônica, o estofo sonoro da canção, é captado sem a interferência

da sonoridade externa, pois sua captação é direta da mesa de som, pelo sinal eletrônico de

gravação.

Após a gravação ao vivo, os ajustes de execução em estúdio, a edição em estúdio,

assim como a mixagem, também a masterização é feita em estúdio. Pode-se notar na performance

aqui analisada um excesso de frequências graves provindas da masterização, o que empresta

“pressão sonora” ao todo que se ouve; o ouvinte tem a sensação de uma sonoridade maior do que

aquela que, em fato, se produzia durante a execução e, até mesmo, durante a gravação.

Nota-se, também, o uso bastante pronunciado do efeito de compressão nas tomadas

de vozes (tanto da voz solista quanto da segunda voz), recurso muito utilizado por conta da

limitação da entrada sonora nos microfones. No caso específico da segunda voz, a compressão

foi utilizada em conjunto com o volume mais baixo de captação com o intuito de limitar a

intensidade sonora provinda do intérprete.

É notável a sonoridade pouco fiel das cordas que provêm de um teclado sintetizado,

instrumento nada rudimentar à altura da gravação, o que denota a preferência do instrumentista e

do produtor musical por aquela sonoridade. Tal fato pode dar-se por um par de motivos: ambos

desconhecem a sonoridade verdadeira do elemento das cordas na orquestra sinfônica ou ambos

preferem aquela sonoridade pouco veraz por conta da ausência de repertório sonora.

A reprodução da canção analisada acontece em equipamento de televisão. Por vezes

aparelhos televisores com equipamentos de reprodução sonora lateral, por vezes equipamentos de

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reprodução sonora frontal, por vezes equipamentos de reprodução sonora sorround, dos

chamados home theatre.

Nos dois primeiros casos, os dispositivos de equalização, tampouco de recursos de

emissão de frequências das regiões graves, são devidamente aprimorados para a melhor audição

do produto. Ademais, requer-se do ouvinte um domínio acerca da reprodução sonora para que

este ajuste o equipamento disponível para cada espécie de audição, o que limita a audição nítida

ou constante das nuances da gravação.

Também por conta disso, a masterização da canção opta pelo excesso de frequências

graves, posto o aumento do volume total do som transparecer ao ouvinte incauto uma qualidade

de captação e de reprodução inexistentes em verdade.

No terceiro caso, da reprodução sorround, mais importante ainda é o ajuste do

próprio ouvinte ao equipamento, fato que desloca a responsabilidade da qualidade de reprodução

do que se ouve; técnicos de som preparam a sonoridade do produto no estúdio, regulam todo o

volume pelos monitores de referência padrão de que dispõe e contam com a capacidade do

ouvinte na tarefa de este regular seu equipamento em casa qual fora um estúdio de som.

Contexto de apresentação e apreensão

A gravação de um DVD musical pressupõe a existência de uma plateia a assistir a

uma apresentação do artista, dos artistas, do grupo de artistas.

Ao assistir a um DVD, naturalmente o ouvinte se vê obrigado estar parado no local de

audição, o que limita as possibilidades de dispersão com atividades distintas à da audição. Desse

modo, conserva-se em tese, aquilo a que Walter Benjamin chamou um aspecto da aura da obra de

arte que está a ser ouvida, tal como já mencionamos um par de vezes neste trabalho76.

Assim, o contexto de apresentação e apreensão da canção Vidro Fumê favorecem a

escuta dedicada, passível de aprofundamento sensorial e analítico da obra de arte.

No entanto, notadamente nas imagens editadas da apresentação da canção na

gravação do DVD, o elemento musical aparenta ser apenas um entre outros tantos elementos

expressivos.

76 Ver p. 114 e p. 185.

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O modo como o cantor solista demonstra dificuldade de execução das notas da região

mediana da voz masculina, a participação do cantor da segunda voz a executar acordes no violão,

os músicos que acompanham a dupla cantando junto, dançando, sorrindo, em plena sintonia

artística, misturam-se aos movimentos dos braços do baterista, do acordeonista, do

percussionista, perfazendo um todo de plena comunhão musical em cena. Tal comunhão

extrapola o limite do palco e transborda para a plateia. O público canta, dança, se emociona, vive

a experiência que aquela performance propicia.

Todos esses elementos, complementares ao acontecimento musical, encorpam,

valorizam a música que provém do aparelho de reprodução. Todos naquele ambiente estão

plenos, há uma simbiose evidente, há felicidade e completude: a música se consagra num tour de

force77 entre palco e plateia, artistas e público, polo da poética e polo da estética.

Ao assistir ao DVD, em casa, ainda que não tenha participado da gravação daquele

produto, o ouvinte se sente parte integrante do evento. Seus semelhantes vibravam com aquela

performance, desfrutavam daquele momento, aprovavam o que ali acontecia. Transborda do

equipamento de reprodução um fluxo de pertencimento e de aprovação, de identidade e de

inserção. A edição das imagens é fundamentada nesses elementos que, incorporados à musica

executada, por um lado encorpam-na, enriquecem-na; por outro, transformam a música em um

elemento entre tantos outros. A Música é algo que une aquelas pessoas em torno de uma

identidade comum, no entanto, a identidade é mais importante do que a Música; a Música é parte

de um contexto mais amplo, maior. A Música é algo que insere as pessoas num contexto social ao

qual elas, enfim, pertencem, no entanto, a pertença é mais importante do que a Música; a Música,

novamente, é parte de um contexto do qual ela nem sempre é a protagonista.

Qual um elemento importante, porém não protagonista, a música que ali está a ser

apreendida pode ser aquela, contudo pode ser outra qualquer, desde que insira o ouvinte num

contexto social ao qual ele venha a pertencer, desde que o identifique com um grande número de

pessoas que ali se encontram, compartilham, identificam-se, completam-se.

77 Expressão idiomática francesa que indica a comunhão de forças que se estabelece em apresentações de artistas, “caminho da força”, “força que vai e volta”.

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Há um ritual nessa espécie de audição. Porém é mais o rito da inserção, da identidade,

do pertencimento, menos o rito a apreciação estética da obra poética que visa ao enriquecimento

do discurso por meio do uso preciso e escorreito dos recursos de linguagem.

Além, Porém Aqui, de Fernando e Gustavo Anitelli –

apresentação de abertura do DVD A Sociedade do Espetáculo, lançado em

2011, com vendas ao preço de um twitte diretamente do Site oficial do grupo

ou de sua página (também oficial) no Site Facebook78.

Harmonia

A estrutura harmônica da canção Além, Porém Aqui divide-se entre a sequência de

acordes utilizados durante os 16 compassos que compõem as duas estrofes da exposição do tema

A (e os 16 compassos respectivos na reexposição) e a sequência de acordes utilizados durante os

16 compassos que compõem o refrão.

A forma A – B – A da canção é delimitada sobretudo pela estrutura harmônica

utilizada.

Quatro acordes executados repetidamente definem o tema A pela sequência I – VIm –

IV – V7 do modo maior.

Aparentemente muito simples, a sequência não se apresenta com os acordes em suas

formas triádicas mas, ao contrário, o primeiro grau é composto pela sétima maior em conjunção

com a nona do acorde, o sexto grau menor é construído com sétima menor, nona e décima

primeira, o quarto grau traz a sétima maior e a nona, o quinto grau é composto com sétima menor

e décima terceira. O encadeamento que se repete é executado, então, da seguinte maneira: I 7+/9

– VIm 7/9/11 – IV 7+/9 – V7/13. 78 A partitura da canção analisada encontra-se grafada no Anexo 6 deste trabalho, à p. 499.

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O uso expressivo das dissonâncias enriquece o elemento harmônico na medida em

que compõe um complexo sonoro de grande espectro de vibrações e ressonâncias pertencentes ao

campo harmônico maior.

Os oito primeiros compassos do refrão, também executados no modo maior, repetem

o uso do recurso de uma sequência aparentemente simples do ponto de vista estrutural, mas cujos

acordes são compostos de modo a trazerem as dissonâncias que enriquecem o ambiente

harmônico. A sequência entre os acordes I 7+/9 – IV 7+/9 é repetida três vezes antes do

encadeamento IIm 7/9/11 – V 7/13 sugerir a nova sequência de acordes dos oito compassos

sucedentes.

No entanto, ainda a manter o recurso de linguagem de uma sequência fixa de acordes

repletos de dissonância, a segunda parte do refrão é estruturada sobre a sequência I 7+/9 – VIm

7/9/11 – IIm 7/9/11 – V 7/13.

Evidenciando o fato de que o uso indiscriminado de acordes não compõe,

necessariamente, a mais bem estruturada harmonia, a opção por sequências fixas nas distintas

partes da forma A – B – A da canção denota pleno domínio da linguagem harmônica por parte do

compositor e demonstra que a sequência de acordes e sua sucessão abarca um conceito anterior

de harmonia que é o que dá conta da formação do acorde em si, o uso das dissonância, a

adequação das notas que formam o acorde com as notas que se sucedem no transcorrer da

melodia.

Melodia

O elemento melódico de Além, Porém Aqui apresenta-se sob três formas distintas,

todas elas a evidenciar um amplo domínio dos recursos de linguagem utilizados pelo compositor.

Primeiramente, a melodia da canção, apresentada pela voz do cantor solista, mantém

vínculo estreito com o elemento rítmico, a ser analisado logo abaixo.

Como o compasso quaternário composto (delimitado pela fórmula de compasso 12/8)

difere do compasso quaternário simples (delimitado pela fórmula de compasso 4/4) justamente

pelo fato de o compasso composto ter a divisão da célula de unidade de tempo por três partes

iguais enquanto o compasso simples é caracterizado por ter a divisão da célula de unidade de

tempo por duas partes iguais, o uso da tercina baseada na colcheia delimitaria, no compasso

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quaternário simples, a similaridade entre as duas espécies rítmicas mescladas na estruturação

melódica da canção. Por sua vez, o uso do grupo de três colcheias seguidas na melodia determina

com precisão o trecho executado no compasso quaternário composto.

Assim, ao longo de todo o trecho das duas primeiras estrofes que antecedem a

chegada do refrão, a melodia é estruturada por notas que compõem grupos de três colcheias de

igual valor a cada um dos quatro tempos do compasso quaternário composto na exposição e

também na reexposição do tema A após a execução do primeiro refrão.

Após delimitar melodicamente a célula rítmica das estrofes, o grupo de três colcheias

sucessivas de igual valor é trocado por outra célula, com o intuito de evidenciar a nova célula

rítmica sobre a qual será construída a linha melódica do refrão, a célula rítmica do compasso

quaternário simples.

Desse modo, torna-se evidente o amplo domínio dos recursos de linguagem utilizados

pelo compositor quando este define estrutura da melodia justamente sobre a célula da tercina;

porém, desta feita, a tercina de um grupo de três semínimas em lugar do grupo de três colcheias.

A tercina sobre o grupo de três semínimas mantém ligação rítmica muito próxima do

grupo colcheia – semínima – colcheia, que caracteriza a síncopa dilatada, célula tipicamente

utilizada no compasso quaternário simples, apesar de ser, essencialmente, uma tercina, a célula

que caracterizaria (caso fosse utilizada sobre o grupo de três colcheias) o compasso composto.

O escorreito uso da célula tercinada expõe a primeira forma na qual apresenta-se o

elemento melódico da canção.

A segunda forma na qual apresenta-se o elemento melódico da canção aqui analisada

provém das células utilizadas pelos instrumentos que acompanham a voz solista, a saber, o

violino, a guitarra, o teclado e o contrabaixo.

Os instrumentos que acompanham a voz solista, em regra, limitam-se a compor os

acordes que sustentam harmonicamente a estrutura da canção; as linhas de contrabaixo pontuam

as notas mais graves dos acordes, que são executados pela guitarra e pelo teclado. No caso da

canção aqui analisada, a estruturação tanto da linha do contrabaixo como das células de

contracanto do violino e do teclado, em sintonia com frases executadas pela guitarra, todas elas

são construídas por melodias individualizadas, que se harmonizam quando executadas juntas; em

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certa medida, por vez ao longo da canção, estruturam-se trechos de polifonia harmônica

justamente pela perícia no uso dos recursos de linguagem melodia.

Por fim, a terceira forma na qual apresenta-se o elemento melódico da canção aqui

analisada provém dos riffs utilizados em três momentos da canção: a saída das estrofes em

relação aos refrãos, a volta dos refrãos às estrofes, a célula melódica com a qual a canção se

encerra no último compasso.

Em todos os três momentos, os riffs melódicos são executados em uníssono pelos

instrumentos, em sincronia rítmica com a célula da bateria, de modo a reproduzir melodias

similares àquelas já utilizadas pelos instrumentos ao longo a execução.

Podemos afirmar, desse modo, que o elemento melódico da canção Além, Porém Aqui

divide-se em três flancos de funções distintas e que sua estruturação cumpre de modo preciso e

escorreito todas elas; seja a função da melodia atrelada ao universo rítmico da peça musical, seja

ela atrelada ao universo harmônico da peça musical (na medida em que as linhas melódicas dos

instrumentos compõem a estrutura harmônica sem abandonar a formação dos acordes que

sustentam a execução da voz solista), seja ela atrelada aos momentos de transição entre as partes

distintas da canção e no momento em que delimita o final da execução da peça musical.

Ritmo

O compasso quaternário em pulsação próxima à rápida leva a execução da canção ao

apropriado ambiente rítmico de abertura de um show.

Porém, é necessário notar que o compasso quaternário da canção, à exceção dos

refrãos, é um compasso quaternário composto; assim, a unidade de tempo não é pautada pela

divisão rítmica do 4/4 mas, sim, do 12/8, o que permite a divisão da unidade de tempo por três

partes iguais em lugar de duas.

O compasso quaternário composto apresenta-se ainda mais rico ritmicamente quando

em contraste com o compasso quaternário simples, pois permite a execução daquele como fora a

unidade de tempo dividida na célula da tercina e a execução deste como fora a unidade de tempo

dividida na célula dupla da colcheia.

Quando da chegada do refrão e a consequente mudança da fórmula de compasso, fica

nítida a presença do compasso quaternário simples em sintonia com a mudança da célula

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harmônica. Ambas são trazidas simultaneamente e em contraste com o período musical anterior e

posterior.

As voltas para o compasso quaternário composto são feitas sempre pelo riff

executado pelas tercinas, célula dúbia naquela altura da canção, o que enriquece ainda mais o

elemento rítmico da execução.

Para além da proximidade entre os elementos de harmonia e ritmo há a proximidade

discursiva do ritmo com o elemento melódico.

As colcheias da melodia das primeira e segunda estrofes acentua a divisão da unidade

de tempo em três partes iguais, tornando nítido o 12/8, já o elemento melódico do refrão,

distendido pelo uso das semínimas, distancia o ouvinte do universo da colcheia e, portanto,

assevera a égide do compasso quaternário simples, o 4/4.

Letra

A letra da performance da canção Além, Porém Aqui ora analisada é precedida por

um trecho da canção Sintaxe à Vontade, que também faz parte do repertório do grupo O Teatro

Mágico.

A introdução instrumental proporciona o ambiente sonoro para as frases introdutórias

do show gravado ao vivo e, por conseguinte, da canção que abre o espetáculo.

A clássica frase composta pelos vocativos “senhoras e senhores” é o fundamento do

jogo de palavras do primeiro verso, que não faz uso dos vocativos mas, sim, do advérbio de

negação “sem”, a anteceder os substantivos “horas” e “dores”. O uso do recurso linguístico

encaminha a canção (e o próprio show do grupo) ao campo semântico da ausência de

compromissos e sofrimentos, concernente com o momento ao qual o espectador de dedica à

apreciação de um espetáculo artístico, que o enleva, que o distancia de problemas comezinhos.

O segundo verso estabelece o elo “pagão” entre palco e plateia, pois vem inserido

justamente em lugar do termo “pagante”, da frase original; o espectador é direcionado a uma

relação de cumplicidade com o que a partir de ali há de se estabelecer cênica e musicalmente. O

“público pagante” é composto de ouvintes dedicados à apreensão da mensagem musical, o

“público pagão”, por sua vez, é composto de ouvintes que participam daquele ritual, é composto

por um público-partícipe da mensagem músico-teatral.

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Sem horas e sem dores

Respeitável público pagão

Bem vindos ao Teatro Mágico!

A primeira estrofe da canção propriamente dita é determinada, logo no primeiro

verso, pelo uso da figura de linguagem da Aliteração que, à repetição dos sons consonantais

anasalados semelhantes do “m” das sílabas “mu” (da palavra “mudar”), “mo” (da palavra

“modo”) e “mer” (da palavra “temer”), cria uma constância sonora que empresta à frase poética o

conceito de unidade e ao ouvinte da frase o conceito de similaridade.

A aliteração permanece presente no restante da estrofe na medida em que os verbos

nas primeira e segunda terminações (“ar”, “er”) convivem com o substantivo “dor”, cuja

terminação se dá em similaridade com aquela que seria a quarta terminação verbal, o vocábulo

“or”.

Os verbos da estrofe compõem um trecho descritivo, que poderia apenas relatar o fato

essencial da mudança do modo vida à revelia da vontade daqueles que cantam e ouvem a canção;

no entanto, o tempo verbal “mudaram” também pode ser compreendido com o tempo infinitivo

do verbo, “mudar”, o que levaria a estrofe ao tempo imperativo que nos dois primeiros versos

seria trazido pela forma direta; no trecho subsequente, os terceiro e quarto versos, a ordem frasal

seria a invertida e o imperativo requer a leitura ampla e completa da frase, pois é imperativo

“discordar da descabida dor, a desregrada euforia”:

Mudaram o modo de temer

De ceder e saturar

Da descabida dor

Desregrada euforia discordar

A segunda estrofe também é mantida pelo imperativo dos verbos, o que corrobora a

dubiedade estabelecida no primeiro verso da primeira estrofe; contudo não mais um imperativo

com o uso do verbo em seu tempo infinitivo mas, sim, direcionado a um interlocutor, tratado na

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segunda pessoa pronominal. Há a precisa concordância verbo-pronominal no uso do imperativo

do verbo “anunciar”, na forma “anuncia” e o uso do pronome na segunda pessoa, o “teu” em

lugar do “seu”.

A terceira frase da estrofe tem início com o gerúndio do verbo “dissecar”. Mantendo

o paralelismo fincado na figura de linguagem da aliteração, a quarta estrofe também, se inicia

com o gerúndio de um verbo, desta feita, o verbo “dissertar”.

As terminações das quatro frases mantêm a unidade sonora dos vocábulos “ar” e “or”,

utilizados na primeira estrofe. Vale ressaltar que o terceiro verso da primeira estrofe apresenta o

termo “dor”; na segunda estrofe, em lugar daquele, o termo utilizado é “flor”, que indica a

oposição conceitual entre os termos colocados no mesmo ponto entre as frases das duas primeiras

estrofes.

O último verso da estrofe relaciona-se diretamente com o conceito exposto nas frases

introdutórias da canção. Ao tornar imperativo o fato de o interlocutor dissertar “que viver não é

pensar”, excluem-se, por conseguinte, as “horas” e as “dores”, elementos atrelados ao

procedimento racional presente nas atividades comezinhas tanto do interlocutor do Eu-lírico da

letra da canção quanto ao ouvinte da peça musical ou mesmo ao espectador presente ao

espetáculo cênico-musical.

Anuncia teu dissabor

Renuncia ao paladar

Dissecando a flor

Dissertando que viver é não pensar

O imperativo verbal é abandonado momentaneamente, cedendo lugar ao uso dos

verbos no gerúndio, recurso já utilizado no final da estrofe anterior.

A letra expõe o excelente uso do recurso de encerrar a estrofe com o mesmo tempo

verbal com que ela se inicia, o que permite a ausência da rima, pois a unidade frasal se dá a partir

do princípio proposto pelas aliterações das terminações “ando” e “endo” dos gerúndios dos

verbos.

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O interlocutor específico também desaparece momentaneamente e nota-se a

alternância de referência entre os saberes universais, que prescindem de um destinatário

específico, e os saberes universais aplicados a um interlocutor específico, que necessita da

elocução direcionada e da consequente concordância do tempo verbal com o uso pronominal

escorreito.

Aturando o tom

De vil alegoria

Maturando o bom

Se acontecendo

No refrão da canção, o imperativo do verbo, como a obedecer a alternância proposta,

volta a ser dirigido a um interlocutor. A este se impõem despertar a coragem, aproximar-se da

verdade, manter a postura serena em relação à saudade e, enfim, tornar-se melhor, ir “além”.

Os verbos, apesar das terminações distintas (“a”, em “acorda” e “alcança”; “e”, em

“acolhe” e “acode”), mantêm precisa concordância pronominal. É notável o uso do vernáculo “si”

com a função distinta do pronome, o que demonstra pleno domínio do uso dos recursos da

linguagem verbal.

Acorda coragem em si

Acolhe a verdade

Acode a saudade e se alcança

Além

A repetição da parte A da canção traz a mesma estrutura no âmbito da letra.

A primeira estrofe da reexposição estabelece o paralelismo com a primeira estrofe a

exposição do tema A alterando apenas o verbo “temer” pelo “querer”.

A aliteração fica explícita no segundo verso, com o uso dos verbos “perder” e

“perdoar”; o que era “ceder” e “saturar”, com a aliteração fincada na sonoridade do “s”, agora se

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estabelece com a sonoridade do “p”. Mantém-se, também, a sucessão de dois verbos na segunda

estrofe.

A terceira estrofe apresenta o substantivo masculino “ardor”, também terminado em

“or” qual na exposição do tema A; em concordância com o substantivo masculino e o que era

“descabida” surge como “descabido”.

O quarto verso da reexposição, qual ocorrera na exposição do tema A, tem início com

o termo “desregrada”. No entanto, inverte-se o imperativo. Desta feita, não é o imperativo

negativo, mas afirmativa, pois o verbo “discordar” é substituído pelo “infestar” e o

aconselhamento do Eu-lírico para o interlocutor essencial, não-específico, de infestar-se com a

alegria, cujo conceito permite o elo com o exposto desde as frases introdutórias.

Tem início a reexposição do tema A mantendo-se a dubiedade trazida na primeira

estrofe da exposição do tema A com o verbo podendo ocupar tanto a função da terceira pessoa do

plural do modo indicativo “mudaram” como o imperativo afirmativo do verbo, “mudar”, que

intenta completar o indicado negativamente na exposição.

Mudaram o modo de querer

De perder e perdoar

Do descabido ardor

Desregrada alegria se infestar

Surpreendentemente, todo o restante da reexposição do tema A, a partir do final da

primeira estrofe repete-se idêntico ao exposto anteriormente, inclusive os versos da estrofe do

refrão.

Aquilo que poderia parecer a uma primeira análise ausência de recurso discursivo e a

consequente repetição da letra, ao contrário, revela a precisa estruturação da letra, pois é possível

notar que o imperativo verbal negativo somente aparecer na primeira estrofe da exposição; a

partir de ali os imperativos negativos (tanto o essencial quanto o dirigido especificamente a um

interlocutor) não mais se repetem. Após inserir a primeira estrofe da reexposição, cujo teor

imperativo é afirmativo, repetem o restante da letra exposta, como a sinalizar a repetição daquilo

que foi exposto anteriormente.

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Sucede a repetição da letra do refrão um único verso:

Semear o amor!

Aclara-se, desse modo, na última frase da letra da canção, o procedimento capaz de

negar os imperativos negativos e consolidar os imperativos afirmativos.

O verso, apesar de tomar uma posição destacada de uma estrofe, mantém o rigor

formal, iniciando-se com um verbo no imperativo (afirmativo neste caso) e encerrando-se com o

vernáculo terminado em “or”, em paralelismo com os termos opostos “dor” e “flor”, da exposição

do tema A, e com o termo “ardor”, da reexposição.

Profundidade conceitual, rigor formal e uso preciso dos recursos de linguagem

pautam a letra da canção Além, Porém Aqui.

Arranjo

Após as frases textuais introdutórias, a introdução musical propriamente dita tem

início com uma célula de arpejo sobre um acorde maior executada pelo teclado em ostinatum. A

guitarra elétrica executa uma célula de contracanto e a bateria sustenta ritmicamente o trecho que

antecede a entrada (musical e em cena) de contrabaixo e contrabaixista.

O contrabaixo executa uma frase também de contracanto, porém distinta melódica e

ritmicamente daquela executada pela guitarra.

À entrada em cena do cantor solista, os instrumentos da base harmônica (guitarra,

contrabaixo, bateria e teclado) passam a executar uma frase musical sem contracanto, definindo

desse modo a célula introdutória da canção, que até aquele momento confundia-se com a

introdução do espetáculo musical, no qual as entradas sonoras dos instrumentos confundia-se

com a entrada em cena no palco dos instrumentistas e do cantor solista.

Toda a primeira estrofe transcorre sobre a base harmônico-rítmica estabelecida na

introdução. Contudo, por vezes, a célula rítmica da bateria apresenta-se em formato de tempo

dobrado.

A chegada da segunda estrofe da canção vem acompanhada de entrada de um violino,

que pontua com notas soltas em stacatto a célula rítmica da guitarra; as notas do violino

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compõem consonâncias com os acordes da guitarra, na maioria das vezes sendo a nota da

extremidade aguda do acorde.

Ao final da segunda estrofe, em preparação para a chegada do refrão, ao longo de um

compasso é apresentado o riff rítmico-melódico entre os instrumentos bateria, contrabaixo e

guitarra elétrica.

O refrão é apresentado pela célula quaternária rítmica executada pela metade na

bateria, a guitarra elétrica deixa os acordes em stacatto em favor de acordes rasqueados com

duração ampla de quatro tempos, a célula melódica do contrabaixo também ganha novos

contornos e o violino passa a executar notas longas, em consonância rítmica, harmônica e

melódica com o teclado. Pelo final do refrão, com o intuito de voltar à célula do tema A, que será

reexposto, dois compassos são dedicados às frases que preparam a volta ao contexto sonoro do

tema A. Desta feita, porém, a guitarra abandona o contracanto que fizera na introdução e tem para

si o espaço de oito compassos para um solo executado sobre a harmonia do princípio da canção.

Durante toda a reexposição, todos os instrumentos experimentam execuções similares

às da exposição, permeadas por pequenas alterações. A guitarra troca o efeito do pedal e suas

notas arpejadas soam mais longas, a bateria cambia a célula rítmica, alternando a execução

dobrada à execução no tempo, o contrabaixo mescla à célula rítmico-melódica que executara

nova conformação de frases, violino e teclado definem desde o princípio da reexposição a

execução consonante construída pelo refrão.

Após o riff que indica a chegada do refrão, que é executado de maneira idêntica à

primeira exposição, mantido o discurso pautado pela unidade sonora, apresenta-se a repetição do

refrão, que não ocorrera na exposição do tema A. Para tanto, a anteceder a repetição, quatro

compassos são executados por uma voz masculina, em falsete. A célula melódica apresentada se

mantém presente concomitantemente à chegada da repetição do refrão, constituindo uma espécie

de contraponto melódico bastante rico.

A frase final da letra é executada quatro vezes, em coro, pelos instrumentistas do

grupo em uníssono com o cantor solista, todas elas sobre a estrutura harmônico-rítmico-melódica

da introdução da canção.

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O cantor não mais voltará à letra da canção. Esta, após as quatro execuções da frase

final da letra, encaminha-se para um solo de oito compasso da guitarra e de um riff rítmico-

melódico em uníssono que encerra a execução.

É possível notar um acuro na concepção do arranjo da canção desde a escolha da

instrumentação até a construção de células em ostinatum em execução simultânea com frases de

contracanto, passando pela existência de um trecho em que nota-se o uso do recurso de

linguagem do contraponto.

Interpretação Vocal

A canção Além, Porém Aqui é interpretada, na maior parte da performance aqui

analisada por um cantor solista.

O cantor, de voz barítono, demonstra execução segura, afinada e homogênea.

Demonstra, também, domínio da dinâmica interpretativa, pois aumenta a intensidade e o volume

sonoros quando do final dos refrãos e consequente volta à célula rítmico-melódica introdutória.

É possível notar a força interpretativa do cantor solista também no que tange ao fato

de este valorizar os trechos da letra que se contrapõe e se complementam, a saber, as primeiras

estrofes da exposição e da reexposição do tema A.

Quando da entrada da voz em contraponto no segundo refrão da exposição, percebe-

se a discrepância sonora entre cantor solista e cantor do backing vocal; volume, intensidade e

precisão são mais consistentes naquele do que neste. Também se repete a mesma configuração

quando da execução em coro das quatro frases repetidas no final da canção, antes do solo da

guitarra e do riff final.

O cantor solista mescla à sua interpretação passos de dança e pequenas configurações

cênicas, a enriquecer a performance, na medida em que a proposta musical que ali se estabelece é

a da composição de um todo cênico-musical. Vale notar que o figurino e a maquiagem do cantor

solista e também dos outros componentes do grupo remete ao universo teatral, sobretudo ao

contexto cênico do clown79.

79 Apesar de a tradução literal do inglês indicar o termo clown como “palhaço”, no universo teatral “O Clown é um personagem múltiplo, e as vezes nem é visto como um personagem, mas sim como um estado, o estado de clown” (FERRACINI, 2003, p.300). Desse modo, pode encampar diversos

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Técnicas de gravação e reprodução

A gravação da performance aqui analisada é a da execução ao vivo, num show

realizado para uma plateia ampla e participativa. No entanto, é preciso revalidar as palavras do

engenheiro de som Pedro da Cruz Lima, que faz notar: “gravação de ‘DVD ao vivo’ é sempre

feita com a captação de som no show, mas com muitos ajustes feitos depois no estúdio; muita

coisa que se ouve ali foi refeita” (LIMA, 2014).

Desse modo, considerando a sonoridade final (da captação ao vivo ajustada

posteriormente em estúdio), podemos notar que as execuções dos instrumentos elétricos (guitarra,

contrabaixo, teclado e violino) foram captadas diretamente do som enviado para a mesa, pela

captação eletrônica. Assim, tais instrumentos têm entrada sonora precisa, desprovida de

interferência do ambiente em que acontece o espetáculo musical. A execução é captada pela mesa

de som individualmente, justamente para facilitar o processo de mixagem sonora, pois a

sonoridade de cada um dos instrumentos pode ser tratada (com o uso de plug-ins) posteriormente

e, sobretudo, ter seus volumes mesclados de modo a se alcançar o equilíbrio de dinâmica entre os

instrumentos que compõem a base harmônica da canção.

A sonoridade da bateria também é captada eletronicamente, por microfones especiais

para captação de sons percussivos. Entretanto, por conta de tais microfones estarem posicionados

no palco onde está a se realizar a gravação, ainda que distante da plateia, alguma porção de ruído

provindo do público é captado. O som da bateria, portanto, ao ser levado para o estúdio, carrega

consigo uma pequena percentagem de impureza sonora, que há de ser tratada com filtros durante

o processo de mixagem.

O microfone da voz solista, em porcentagem maior do que o da bateria, capta a voz

do cantor juntamente com as manifestações sonoras provindas da plateia. Inevitavelmente ruídos

se misturam à interpretação e, ainda que posteriormente tratados com filtros no processo de

mixagem, não desaparecem por completo e, em regra, são incorporados ao complexo sonoro da

execução como forma de ambientar o espetáculo onde se deu a gravação ao vivo.

personagens, atuar em diversas situações, incorporar diversos discursos cênicos, que abrangem desde a mímica até personagens de cunho dramático, passando inclusive pelo espetáculo circense.

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215

Do mesmo contexto sonoro participam os microfones de voz que captam o

contraponto do backnig vocal que antecede a repetição do refrão na reexposição do tema e o coro

das quatro execuções da frase final da letra.

A reprodução do material sonoro gravado ao vivo, ajustado, tratado e mixado em

estúdio, comercializado em DVD, ocorre necessariamente à beira de um equipamento de

televisão ou de um computador, por conta de os dispositivos móveis não permitirem a audição de

DVD, somente de CD80.

Desse modo, as técnicas de reprodução da performance aqui analisada ficam restritas

a equipamentos de televisão cujos alto-falantes (frontais ou laterais) não são suficientemente

amplos para emitirem o espectro de frequências que compõem a sonoridade da canção,

notadamente das frequências de regiões graves, que requerem um diâmetro maior do alto-falante.

Os equipamentos sorround de home theatres poderiam compor o espectro sonoro

com maior fidelidade, no entanto, tais equipamentos requerem uma instalação ajustada ao espaço

físico e ao repertório a ser ouvido; em regra tais equipamentos são instalados pelos próprios

consumidores ou por responsáveis pela venda comercial dos produtos, pessoas que não têm o

preparado adequado no que diz respeito às leis da acústica e ao complexo universo da propagação

sonora nos espaços.

Finalmente, os equipamentos digitais dos computadores pessoais reduzem ainda mais

a gama de frequências emitidas, pois os alto-falantes são menores do que os dos aparelhos

televisores e negam ao ouvinte as frequências graves e parte das frequências médias e agudas.

Acoplados aos computadores pessoais, os fones de ouvido transformam-se em

aparatos de notável melhoria na emissão sonora provinda do equipamento digital, pois

amplificam e restringem a emissão sonora ao universo compacto e delimitado do fone em contato

com o aparelho auditivo do apreciador. Mesmo sem reproduzir com toda a fidelidade sonora

requerida, os fones de ouvido constituem-se no mais fiel aparato de reprodução sonora de

frequências gravadas em áudio num DVD.

80 A extensão do arquivo digital finalizado em DVD não é compatível com equipamentos de áudio que reconhecem principalmente as extensões .wav ou .mp3.

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216

Em certa medida, técnicos e engenheiros de mixagem preveem no uso das técnicas de

gravação o ambiente da reprodução do material sonoro captado ao vivo e ajustado, tratado e

mixado em estúdio.

Contexto de apresentação e apreensão

O DVD gravado ao vivo presume que o contexto de apreensão não será apenas

ouvido, mas ouvido e visto. Portanto, analisaremos aqui o polo da apreensão como sendo o do

consumidor do DVD, não o dos participantes do espetáculo gravado; estes encontram-se, nesta

análise, como partícipes do contexto de apresentação, pois fazem parte do universo de sons e

imagens gravadas e apreendidas pelo público consumidor do produto final prensado em DVD.

Tal forma de análise justifica-se desde o princípio da canção. Antes mesmo de serem

ouvidas as frases textuais introdutórias, ouvem-se em fade in aplausos provindos da plateia

presente ao show. O recurso sonoro do fade in indica com segurança a mixagem feita em estúdio

e o recurso discursivo de apresentar primeiramente os aplausos da plateia indica a prévia

aprovação do público à performance que ainda sequer teve início.

São vistos braços e mãos para cima, alguns movimentos dos braços indicam que há

espectadores pulando em “desregrada euforia”, a tomada da câmera parte da posição exata de um

observador que se encontra inserido na plateia, à mesma altura de outros tantos espectadores que

ali se encontram.

A câmera, deliberadamente fora de foco, permite a entrada das luzes de aparelhos

celulares nas mãos dos espectadores do show. O take a partir dos 14’’ de exibição parte de um

aparelho que está supostamente a gravar a entrada de músicos e cantos solista em cena. Os

primeiros acordes soam a partir dos 20’’ de exibição e as imagens de aparelhos celulares ligados,

gravando o espetáculo, permanecem até os 39’’, com uma única interrupção, na qual se pode

avistar um par de rostos de jovens do sexo feminino, uma delas portando à face um “nariz de

palhaço”, que a identificará em seguida com o figurino, a maquiagem e o universo cênico-

musical criado pela performance do grupo.

Os primeiros 42 segundos do vídeo da canção (que conta um total de 4 minutos e 35

segundos) perfazem 8,9 do tempo total de vídeo sonoro; todos eles são dedicados ao público

munido de telefones celulares que supostamente gravam o espetáculo. Tal concepção visual

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mantém precisa identificação com a conduta proposta pelo espetáculo, pelo DVD, pelo próprio

grupo81. Vale notar que O Disco/DVD “A Sociedade do Espetáculo” foi lançado integralmente

pelo Site Facebook, onde era possível baixar o show completo pelo preço de um twitte; Também

era possível baixar através do Site oficial do grupo, pelo Site 4shared, entre outros. Os

consumidores tinham a total liberdade de divulgar e compartilhar o conteúdo baixado.

Somente a partir dos 43’’ as tomadas de câmera migram do ambiente da plateia em

direção ao ambiente do palco. O baterista é o primeiro a aparecer, seguido pela entrada do

contrabaixista, que é recebido com aplausos pela plateia; tomada, deliberadamente, ocorre desde

a posição da coxia do palco, de onde pode-se avistar parte da plateia do ponto de vista de quem

participa do grupo musical, de quem habita o palco. Aos poucos vai se construindo uma

integração imagética entre palco e plateia, músicos e ouvintes, polo da poético e polo da estética.

Guitarrista e violinista são focalizados em seguida; este último encampa uma mescla

de passos de dança e fragmentos cênicos que, do mesmo modo como ocorre com o cantor solista,

remetem ao universo teatral, sobretudo ao contexto cênico do clown. O músico também faz usos

de figurino e maquiagem semelhantes aos do cantor solista.

Antecede a entrada do cantor solista um take com iluminação farta de jovens na

plateia. A entrada do cantor solista, em seguida, é tomada desde o palco e o recurso da entrada do

contrabaixista se repete, porém, desta feita, com iluminação farta na plateia, que permite

vislumbrar o local e sua lotação plena; além da lotação, também a aprovação da plateia é plena. A

ovação que provém da plateia corroborar o que passará a ocorrer no palco. Palco e plateia fazem

parte do mesmo discurso cênico-cinematográfico-visual.

81 “O Teatro Mágico esteve em um primeiro momento mais lúdico. Depois adotou postura mais crítica, provocativa. E agora, mais maduro, mescla essas duas coisas. A Sociedade do Espetáculo são essas várias óticas. De fato há essa visão da massificação do espetáculo, mas também o de as pessoas exercerem a função social e a relação delas com a mídia. Tudo é midiático. E perdemos a noção de que fazemos parte dessa sociedade e somos capazes de reescrever esse texto atual, de maneira colaborativa. É isso que trazemos: essa coisa necessária de se julgar um verbo em comum”. Texto da página oficial do grupo O Teatro Mágico, encontrado em http://oteatromagico.mus.br/wiki/index.php?title=A_Sociedade_do_Espet%C3%A1culo, acesso em 26 de junho de 2014.

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Devidamente iluminado, palco e plateia convivem com a coreografia do cantor

solista, que inicia sua execução aos 1’10’’.

De modo bastante preciso, as imagens do palco não se restringem à performance

vocal do cantor solista, mas perpassa frases musicais do contrabaixo, do violino, da guitarra. Há a

valorização imagética de células auditivas; a imagem serve de reforço ao som. O produto

midiático intenta valorizar em igual medida ambos os recursos: os áudio e os visuais.

O solo da guitarra e o riff que antecede ao refrão são mostrados de modo claro e

definido entre os 1’35’’ e 1’41.

Durante o refrão, pelo 1’45’’, a tomada da câmera volta a ser a inserida na plateia, de

onde se avista uma imensidão de celulares a gravar o espetáculo musical; há a intenção de fazer

notar que a grande maioria do público não apenas ouve a canção, mas também registra a

performance em gravação à qual poderá voltar quando já distante do ambiente onde se grava o

DVD ao vivo.

Todo o refrão mantém o recurso de linguagem visual de valorar as frases musicais

com a exibição da imagem do instrumentista alternando-se com as imagens do cantor solista.

Entre os 2’07’’ e os 2’51’’, repetem-se e alternam-se os elementos de plateia a gravar

o espetáculo, mescla de imagens de palco e plateia, frases musicais reforçadas por imagens de

instrumentistas, coreografia do cantor solista, ambiente iluminado de modo a propiciar a

visualização de tais elementos.

A partir dos 2’52’’, as tomadas são em primeiro plano, de modo a levar quem assiste

às cenas para dentro do palco.

A plateia somente volta a ser vista nos 3’13, quando uma tomada bem iluminada,

frontal do palco, permite ver o público em êxtase a lotar o local da apresentação e emprestar ao

espetáculo sua parcela de aprovação e contribuição. Apagam-se as luzes pelos 3’16’’ e, então,

podem-se ver por três segundos os visores dos aparelhos celulares a filmarem o espetáculo.

Após o segundo refrão da reexposição, seguida da tomada da plateia e seus aparelhos

celulares, retoma-se o uso do recurso de linguagem da identificação da plateia com a concepção

de figurino e maquiagem dos componentes do grupo musical. Entre os 3’36’’ e os 3’38’’, é

possível avistar, na plateia, uma jovem maquiada de modo semelhante ao cantor solista do grupo.

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Ao longo da repetição das quatro frases finais, um par de exposições de componentes

do grupo, outro par de exposições do público (uma delas aérea panorâmica, a denotar a lotação

do espaço no qual acontece o espetáculo) a bradar a frase-de-ordem “semear o amor!”.

Próximo ao final da canção, quando do solo da guitarra e do riff final, é notável a

exibição de imagens exclusivamente pertencentes ao universo dos músicos do grupo. Há a

valorização extrema do elemento estritamente musical do trecho, de tal forma que, após 28

segundos de exposição dos músicos, a encerrar a canção, volta-se à imagem do cantor solista que,

em sua coreografia, marca exatamente a célula rítmica do riff final com as mãos e braços.

As luzes se apagam e é possível ouvir os aplausos da plateia, qual no início da

canção, o que denota o conceito de unicidade presente na performance analisada.

Ao espectador da canção que não esteve presente à gravação do DVD, que está a

assistir à performance gravada e editada, é sugerida toda a ambiência ao vivo na qual se

configurou o espetáculo. Ao ver a entrada dos artistas desde o ponto de vista do espectador, ao

ser levado à plateia pelas tomadas desde o ponto de vista do palco, ao ser incorporado ao grupo

de executantes pelas tomadas dos músicos e instrumentos em primeiro plano, o espectador sente-

se partícipe do espetáculo musical ao qual assiste distante daquele ambiente.

Em certa medida, o recurso de pendurar o microfone sobre a plateia, inaugurado pelo

produtor musical Zuza Homem de Mello no distante III Festival de Música Popular Brasileira

realizado pela TV Record em 1967, a ser mencionado neste trabalho82, é repetido desta feita, com

a utilização de outros elementos de linguagem; daquela feita o recurso provinha da linguagem

musical, auditiva; desta feita, da linguagem cinematográfica, visual. Porém, ambos os recursos de

linguagem utilizados constroem de maneira brilhante o discurso que insere o espectador no

ambiente em que acontece a performance musical; por veículos midiáticos distintos (o programa

de televisão lá, o DVD cá) mais do que a performance musical é levada ao ouvinte, este é levado

ao local da performance, a ela reage, com ela interage.

82 Ver p. 285.

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Considerações a partir das análises – canções da

primeira metade da segunda década do século XXI.

Após o percurso analítico descrito até aqui, é possível notar as diferenças entre os

discursos das canções Vidro Fumê, de Carlos Colla e Kaliman Chiappini, e Além, Porém Aqui, de

Fernando e Gustavo Anitelli.

Do ponto de vista estritamente musical, enquanto a primeira canção é toda estruturada

por sobre uma sequência de acordes diatônicos de I – V graus, sem o uso de uma dissonância

sequer, utilizada à exaustão na história da música entre os séculos IX e XII, sendo abandonada e

enriquecida com a presença de outros acordes já a partir do século XIII, quando da adesão do IV

grau à sequência. Após introduzir o IV grau, o complexo harmônico da primeira canção analisada

se mantém distante da utilização de dissonâncias e introduz o VI grau menor, aproximando-se da

linguagem musical que foi utilizada até o século XIV na história da música, sendo abandona já

pelo início do século XV, que conheceu sequências mais amplas e complexas e delimitou a

chegada das dissonâncias à linguagem harmônica que caracterizou o período histórico do

Renascimento. A sequência harmônica óbvia da primeira canção analisada contrasta com a

engenhosidade composicional da segunda canção, que, mesmo mantendo duas sequências

harmônicas fixas (uma para o refrão e outra para as estrofes) traça intrincados caminhos

harmônicos nas sequências fixas, estabelece um elo concernente com a melodia, e faz uso de

encadeamentos de acordes compostos com dissonâncias acrescidas ao campo harmônico, que

somente foram utilizados na história da música a partir da segunda metade do século XIX. Assim,

é possível afirmar que, no que tange ao recurso de linguagem da harmonia, enquanto Vidro Fumê

traz o parco discurso da sequência de acordes elementares do campo harmônico, sem uso de

dissonâncias, Além, Porém Aqui apresenta riqueza discursiva tanto na Forma (a definição de

elaboradas sequências fixas de acordes) quanto no Conteúdo (a formação dos acordes, a

responder ao universo sonoro das dissonâncias utilizadas na moderna canção popular massiva

brasileira desde a segunda metade da década de 1950).

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No âmbito do uso do recurso de linguagem da melodia, pode-se notar que a primeira

canção analisada percorre ao longo de toda a execução sucessões de notas pertencentes à escala

que caracteriza a tonalidade. Já a segunda canção, por conta sobretudo dos elementos rítmicos

cambiantes, apresenta a melodia diatônica que varia células de tercinas sobre colcheias, quando

do contexto das estrofes, e células de tercinas sobre semínimas, quando do contexto do refrão,

compondo uma estruturação inventiva cuja sutileza de construção diatônica, contrastando com o

discurso melódico simplório da primeira canção analisada. Ambas não fazem uso do cromatismo

melódico, porém a segunda propõe a complexidade e a riqueza da estruturação de uma melodia

que tanto encontra-se inserida aos encadeamentos harmônicos quanto estabelece estreita sintonia

com o elemento rítmico, enquanto a primeira não encampa nenhuma complexidade, requinte ou

elementos melódicos que remetam a um uso desse recurso de linguagem que denote qualquer

traço de riqueza discursiva. Desse modo, Além, Porém Aqui apresenta a riqueza discursiva

pertinente à estruturação harmônica e, sobretudo, à estruturação rítmica, enquanto Vidro Fumê

apresenta um discurso diatônico pobre, concernente à limitação dos acordes elementares da

utilizados na estruturação do elemento harmônico.

A linguagem rítmica utilizada na primeira canção analisada condiz com as linguagens

restritas da harmonia e da melodia, redundando numa repetição de células métricas desprovidas

de variações e caracterizações de dinâmica. A variação da característica rítmica da segunda

canção, notadamente pela variação da fórmula de compasso quaternária (quaternária simples nos

refrãos – a fórmula de compasso 4/4 –, composta nas estrofes da exposição e reexposição do tema

A – a fórmula de compasso 12/8), por sua vez, contrasta com a inflexibilidade do compasso

quaternário com acentuação dupla (primeiro e terceiro tempos) da primeira canção analisada. O

elemento rítmico da segunda canção envolve a harmonia e melodia executadas de modo a

caracterizar o ambiente sonoro de modo preciso, em lugar de delimitar as possibilidades

harmônico-melódicas, qual ocorre na primeira canção. Assim, pode-se concluir que, no que tange

ao recurso de linguagem do ritmo, Além, Porém Aqui apresenta a riqueza discursiva que valoriza

a estruturação harmônico-melódica, enquanto Vidro Fumê tem no elemento rítmico nada além de

um fator percussivo métrico, cujo discurso é concernente à estreiteza da proposta estrutural tanto

da harmonia quanto da melodia.

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O âmbito literário também faz as canções analisadas distarem de modo bastante

contundente. A primeira canção aborda a questão do romance que finda pelo gesto de traição de

um dos componentes do casal, temática que poderia ser abordada de modo a transformar-se numa

questão essencial, a saber, o ser humano defronte às questões que envolvem o amor, a traição, a

dedicação de uma espécie de fidelidade que não se vê correspondida; no entanto, a abordagem da

letra de Vidro Fumê tende para a excessiva leveza de Forma e Conteúdo, que leva o discurso

literário à beira da vulgaridade, sobretudo quando torna explícita a abordagem da questão sexual,

tornando-a fundamental no desfecho das ações e tomadas de posições das personagens

envolvidas na trama narrada. Já a segunda canção define a abordagem de questões fundamentais

do ser humano de modo criativo, utilizando recursos de linguagem textuais que abrangem desde

as figuras de linguagem até o uso preciso e escorreito de elementos estritamente gramaticais e

sintáticos (a concordância pronominal com o uso do imperativo verbal), passando pela escolha da

variação do discurso literário entre um interlocutor definido e ausência de interlocutor. Portanto,

também no que tange ao recurso de linguagem literário, da letra da canção, Além, Porém Aqui

apresenta a riqueza discursiva do texto cantado, enquanto Vidro Fumê apresenta o elemento

literário de forma tíbia, com a temática do amor acabado sendo abordada de forma notadamente

pueril e leviana pela qual a questão essencial da traição do ser humano pelo seu semelhante é

reduzida ao âmbito da sexualidade comezinha de um casal que se separa.

O arranjo das canções denota, primeiramente, a diferença entre a instrumentação

restrita ao acompanhamento da melodia cantada, no caso da primeira canção, e a instrumentação

definida como parte fundamental da construção sonora produzida pelo grupo que executa a

segunda canção analisada. Em seguida, a diferenciação na instrumentação se estabelece entre a

execução de células simples e previsíveis na primeira canção em contraste com células

complexas tecnicamente e ricas discursivamente na segunda. Além do âmbito da instrumentação,

a própria concepção do arranjo da primeira canção se limita a criar a ambiência sonora para a voz

solista; já o arranjo da segunda canção pressupõe a adequação sonora dos elementos harmônicos,

rítmicos e melódicos não somente à melodia executada pela voz solista mas, também, à

linguagem cênico-coreográfica definida pelos executantes. Desse modo, no que tange ao recurso

de linguagem do arranjo, Vidro Fumê apresenta a limitação do uso dos recursos de linguagem e o

consequente discurso menos elaborado, mais pobre. Já Além, Porém Aqui apresenta a concepção

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de um discurso amplo, complexo e rico tanto musicalmente quanto no que diz respeito à

performance cênica do grupo O Teatro Mágico.

Como foi dito anteriormente, o âmbito da interpretação vocal requer83,

primeiramente, a avaliação do caráter da afinação dos cantores solistas. O duo vocal da primeira

canção apresenta uma discrepância em termos de afinação, o que obriga a uma mixagem na qual

sobressaia a voz de um dos cantores e quase não apareça a segunda voz, executada num intervalo

de sexta inferior; além disso, o cantor solista apresenta traços interpretativos característicos,

porém não necessariamente adequados à apreensão, pois calcados na explicitação do esforço

técnico para alcançar parte das notas, sobretudo aquelas da região aguda da tessitura vocal

masculina. Outro fator de diferenciação entre as execuções vocais se dá no âmbito do caráter

interpretativo dos cantores; como também já foi mencionado, do intérprete é solicitada a

adequação das técnicas de inflexão sonora, dinâmica e articulação das palavras, ao texto cantado

da letra. Na interpretação da primeira canção esse complexo de execução ocorre de forma pouco

precisa; na segunda, ao contrário, de forma bastante precisa. Assim, também do ponto de vista da

interpretação, Além, Porém Aqui apresenta uma natureza discursiva adequada, com o requinte de

interpretação que marca a adequação de jogo cênico, coreografia e inflexão vocal em favor da

interação entre palco e plateia, polo da poética e polo da estética; já a interpretação de Vidro

Fumê apresenta uma natureza menos adequada, menos precisa, desprovida de característica

marcantes tanto técnicas quanto interpretativas; ao contrário, a fim de criar uma identidade

interpretativa, o cantor solista da dupla de intérpretes vale-se do recurso de exagerar a inflexão

vocal nas notas agudas sem, com isso, trazer elementos tecnicamente condizentes com o acuro

interpretativo requerido de um cantor.

No que tange às técnicas de gravação e reprodução, ambas as canções trazem consigo

a possibilidade de adequações e ajustes de interpretação, execução e mixagem em estúdio após a

captação sonora no momento da realização da gravação. Ambas contam com o aparato técnico

suficiente para manter os ruídos que provêm da plateia em sintonia com o som captado pelos

equipamentos eletrônicos e processados pela mesa de som. Ambas têm o contexto sonoro

atrelado ao âmbito visual, pois as imagens captadas e editadas na gravação compõem o todo

83 Ver p. 188.

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orgânico do produto DVD. Ambas concorrem, portanto, por um contexto de apreensão no qual as

técnicas de gravação devem prever e se adequar a espécies de reprodução sonora que permeiam

um contexto de apreensão limitado do ponto de vista de emissão de frequências sonoras.

O contexto de apresentação e apreensão de ambas as canções são o DVD gravado ao

vivo. Ambas envolvem o público presente na gravação no contexto de apresentação e delegam ao

consumidor do produto DVD a polo da apreensão. Diferem, no entanto, no modo como inserem o

público presente na gravação do show ao contexto de apresentação. Enquanto a canção Vidro

Fumê toma a plateia como o polo responsorial de tudo o que provém do palco, a canção Além,

Porém Aqui toma a plateia como elemento partícipe daquilo que ocorre entre palco e plateia. As

duas canções diferem, também, no que tange à concepção do produto: a primeira canção, em

grande medida, faz uso de recursos de linguagem que aproximam o contexto da apresentação do

universo simplório de gestos explícitos, cenas de caráter previsível, sonoridade que denota acuro

técnico em lugar de acuro poético; a segunda canção, por sua vez, faz uso de recursos de

linguagem que aproximam o contexto da apresentação do universo sofisticado de coreografias e

fragmentos cênicos que sugerem a absorção de distintas linguagens no mesmo discurso cênico-

musical, cenas que valorizam igualmente os aspectos áudio e visual da performance, sonoridade

que denota acuro técnico somado a acuro poético.

Nota-se, portanto, que desde o ponto de vista poético até o âmbito estético, a canção

Além, Porém Aqui apresenta uma natureza discursiva mais completa, mais ampla, de todas as

formas maior e melhor do que a apresentada pela canção Vidro Fumê. Tanto os elementos

estritamente musicais quanto o elemento literário ou os elementos da performance tendem em

Além, Porém Aqui ao Belo essencial já exposto anteriormente84 e, desse modo, emprestam

longevidade às canções. Tal fato não ocorre em Vidro Fumê que, por conta também da

fragilidade na estruturação da canção, da ausência de domínio pleno e profundo das

possibilidades de usos de recursos de linguagem, apresenta um discurso pobre em relação à outra

canção analisada; esta característica diminui sobremaneira a longevidade da canção,

transformando-a em objeto de consumo passageiro, distanciando-a da concepção de uma

verdadeira obra de arte, que, em essência, tende para o eterno.

84 Ver a partir da p. 30.

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Correlações das canções e definição de linhas

evolutivas comparadas

Partindo do princípio de que os discursos literário-musicais que compõem a evolução

histórica da canção popular massiva brasileira (documentada em partituras desde o final do

século XIX), tal como o discurso literário-musical que compõe a evolução histórica da música

mundial, seja ela de caráter popular ou erudito (documentadas desde o século IV), são

estruturados de modo acumulativo, vale dizer, os recursos de linguagem sucedentes recuperam,

incorporam e recompõem os recursos utilizados previamente pelos compositores, podemos

estabelecer após as análises aqui realizadas duas espécies de linhas evolutivas que se estabelecem

e se concretizam nas cinco canções, a saber: Domingo no Parque; Sabiá; Doce de Coco; Vidro

Fumê e Além, Porém Aqui.

A linha evolutiva que se define pelo acuro no uso dos recursos das linguagens

melódica, harmônica, rítmica e literária delimita a correlação que estabelecemos entre as canções

Domingo no Parque, Sabiá e Além, Porém Aqui.

Do ponto de vista harmônico, se a canção Além, Porém Aqui não traz inovações

significativas, se não apresenta encaminhamentos de sequências de acordes inovadoras, se não

define uma forma distinta de suceder acordes em relação a melodias, mantém similaridade com

as canções Domingo no Parque e Sabiá no que diz respeito ao uso das dissonâncias e ao estreito

entrelaçamento entre as notas dos acordes dissonantes e a melodia interpretada pela voz solista. É

possível notar a intencionalidade do compositor quando este delimita os trechos da forma A – B –

A pelo uso de sequências harmônicas definidas. Desse modo, nota-se o acuro na estruturação da

harmonia de Além, Porém Aqui, o que insere a canção na linha evolutiva de Domingo no Parque

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e Sabiá, pois aquela se aproxima destas ao denotar o cuidado com o elemento musical que é um

dos três pilares do âmbito estritamente musical de estruturação de uma canção.

Do ponto de vista melódico é possível notar similaridades muito próximas daquelas

elencadas acerca do elemento harmônico. Se Além, Porém Aqui não denota o uso do recurso do

cromatismo, se a melodia não acompanha modulações harmônicas (pois estas não existem),

estabelece de modo preciso e notadamente deliberado um elo de vital importância com o

elemento rítmico. Este fator intencional por parte do compositor aproxima a canção da linha

evolutiva de Domingo no Parque e Sabiá, pois estas também apresentam a intenção

composicional de estruturar o elemento musical da melodia de modo a valorizar o movimento

horizontal das notas cantadas pelo intérprete e, desse modo, evidenciar a sintonia entre harmonia

e melodia, entre o movimento da dimensão horizontal e da dimensão vertical da canção. Além

disso, as três canções mencionadas valorizam a interação entre os elementos melódico e o

elemento rítmico, perfazendo um conceito mais amplo de harmonia, que vai além da formação

dos acordes para atingir a interação entre os três pilares que fundamentam a Música.

No que tange ao pilar rítmico também é possível notar o pertencimento da canção

Além, Porém Aqui à linha evolutiva da qual fazem parte as canções Domingo no Parque e Sabiá.

Definindo mais do que a fórmula de compasso ou o andamento da peça musical, o elemento

rítmico nessa espécie de canção atende à necessidade de interação e integração dos três pilares

estritamente musicais justamente porque é o tempo aquele componente que se configura como

uma espécie de terceira dimensão da linguagem musical. Se a harmonia corresponde à dimensão

vertical da Música, se a melodia corresponde à sua dimensão horizontal, é o ritmo o elemento que

corresponde à dimensão que empresta perspectiva e profundidade à Música. Se a tal elemento

resta apenas a linguagem da marcação do tempo contínuo de uma execução, o discurso da canção

como um todo fica comprometido. Esse é o fator que correlaciona as canções Além, Porém Aqui,

Domingo no Parque e Sabiá quando de uma análise a partir do ritmo considerado como um dos

elementos que compõem o discurso estritamente musical de uma canção.

O pilar literário da canção, a letra, constitui-se no quarto pilar de sustentação do

discurso musical da canção popular massiva. É possível encontrar na canção Além, Porém Aqui a

ocupação composicional que se assemelha à encontrada nas canções Domingo no Parque e

Sabiá: o uso escorreito da língua, seus recursos descritivos (e narrativos), suas precisas

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concordâncias, suas figuras de linguagem; a escolha de temáticas de cunho universal, ainda que

partindo do contexto individual do ser humano; a construção de um texto que valorize o que se

diz justamente pelo acuro de como se diz. Ademais, a letra da canção popular massiva obedece ao

princípio estabelecido pelas regras da prosódia, que definem acentos tônico das palavras em

sintonia com os acentos dos tempos fortes das fórmulas de compasso e número de sílabas tônicas

e átonas em sincronia com o número de tempos de um compasso; o não cumprimento preciso de

tais exigências da prosódia prejudica a integração do elemento literário ao elemento estritamente

musical de uma canção, fato que não se apresenta em nenhuma das três canções analisadas e

mencionadas acima.

A linha evolutiva que se define pela ausência de acuro no uso dos recursos das

linguagens melódica, harmônica, rítmica e literária, que denota uma espécie de empobrecimento

do discurso musical, delimita a correlação que estabelecemos entre as canções Doce de Coco e

Vidro Fumê.

Do ponto de vista harmônico, tanto Doce de Coco quanto Vidro Fumê optam por

sequências de acordes pertencentes ao campo harmônico diatônico do modo maior, mantendo a

linguagem harmônica restrita a encadeamentos de extrema simplicidade, que remontam aos

primórdios da história da música mundial. Além disso, estabelecem acordes desprovidos de

quaisquer dissonâncias em suas sequências, confirmando a sonoridade rudimentar dos

encadeamentos harmônicos. A linha evolutiva da canção popular massiva que abdica do

implemento de sequências de acordes providos de dissonâncias e negligencia o uso de

encadeamentos que proponham rumos distintos dos previsíveis diatônicos sobre os três acordes

maiores do campo harmônico ou destes com a inserção do IV grau menor sucedido do II grau

menor em substituição ao IV grau, opta pela linguagem harmônica rasa, cuja função é apenas

construir a teia sonora para a melodia; tal concepção harmônica abrange canções como Doce de

Coco e Vidro Fumê e as insere nessa espécie de linha evolutiva que abre mão da busca pelo

desenvolvimento da linguagem da harmonia.

Do ponto de vista do elemento melódico também ambas as canções se assemelham: a

ausência do cromatismo, a sucessão ascendente e descendente diatônica das notas da escala que

define a tonalidade, a repetição de notas, a escolha de notas consonantes à restrita sequência de

acordes da harmonia. Tais características denotam um discurso melódico composto apenas com

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os mais elementares recursos de linguagem e a consequente ausência de ocupação com

desenvolvimento da linguagem da melodia. Menos importante do que definir se a limitação

harmônica gera o empobrecimento melódico, se o rudimentar movimento melódico provoca a

restrição da harmonia, ou mesmo se harmonia e melodia se entrelaçam num discurso pobre por

conta da ausência de recursos de linguagem composicional, é notar que, em sintonia com uma

estrutura harmônica pobre, a estruturação das melodias de Doce de Coco e Vidro Fumê aproxima

as duas canções também no que tange ao pilar melódico da linguagem estritamente musical aqui

analisada.

O pilar rítmico de ambas as canções apresenta uma única função: estabelecer o

andamento da canção pelo uso de células rítmicas repetidas. Se, como foi dito, é o ritmo a

terceira dimensão da música, ao optar pela sucessão ininterrupta de uma célula rítmica, o

compositor empobrece a sonoridade da canção negando a esta as devidas profundidade e

perspectiva. Tal opção reduz o discurso estritamente musical à vala rasa, pois a dimensão

horizontal (a melodia) transcorre atrelada à dimensão vertical (a harmonia), ambas pouco

inventivas, por sobre um panorama de tempo fixo, sem variação, sem profundidade, sem a noção

daquilo que seria a perspectiva sonora. Os três elementos estritamente musicais das canções Doce

de Coco e Vidro Fumê quedam-se planos, rasos, pobres discursivamente.

O quarto pilar da canção, o pilar literário composto pela letra, em ambos os casos,

configura-se similar aos pilares estritamente musicais no que diz respeito ao uso dos recursos de

linguagem textual: tanto em Doce de Coco quanto em Vidro Fumê não se faz presente o uso

escorreito da língua, encontram-se erros gramaticais, de sintaxe, de concordância verbal, os

recursos descritivos e narrativos limitam-se ao universo individual sem a intenção de ampliar tal

domínio às raias do âmbito essencial, as figuras de linguagem escolhidas são aquelas que

aproximam a linguagem verbal da comparação explícita, a mensagem literária não traz qualquer

traço de velação, a escolha das temáticas partem do contexto individual do ser humano e resvala

na vulgaridade do que se diz justamente pela ausência de acuro do como se diz. Além disso, em

ambas as canções são notáveis os deslizes aos princípios estabelecidos pelas regras da prosódia,

tanto no que tange aos acentos tônico das palavras em sintonia com os acentos dos tempos fortes

das fórmulas de compasso quanto ao número de sílabas tônicas e átonas em sincronia com o

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número de tempos de um compasso, o que prejudica sobremaneira a integração do elemento

literário ao elemento estritamente musical de uma canção.

Assim, em termos correlacionados, podemos aproximar o discurso da canção Além,

Porém Aqui aos discursos das canções Domingo no Parque e Sabiá. Por outro lado, podemos

também aproximar o discurso da canção Doce de Coco ao discurso da canção Vidro Fumê; estes,

pelas razões acima elencadas, definidos como menos ricos quando em relação com aqueles.

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Capítulo 4

O percurso histórico-interpretativo

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4. O percurso histórico-interpretativo

Diferentemente do capítulo anterior, de natureza mais empírica e instrumental, o

presente capítulo, como sugere o próprio título, é de cunho argumentativo-interpretativo.

Intentamos aqui construir mais do que um resgate histórico das instâncias da canção

popular massiva e da mídia televisiva brasileira. À pesquisa bibliográfica, que possibilitaria a

descrição dos fatos ocorridos nas histórias da música e da mídia brasileira nas mais recentes

décadas, colecionamos depoimentos de personagens que protagonizaram a cena midiático-

musical no período abordado.

Desse modo, a pesquisa empírica realizada empresta à natureza descritiva de um

capítulo histórico um caráter analítico-interpretativo.

É bem verdade que a escolha das personagens a serem entrevistadas direcionaria a

leitura do período histórico a determinados ângulos de visão e a escolha de tais ângulos passaria

pelo crivo do pesquisador.

No intuito de descrever com precisão a cena midiático-musical dos momentos mais

distantes do período histórico aqui abordado, decidimos colher os depoimentos de personagens

que vivenciaram (desde o ponto de vista de protagonistas) os procedimentos da mídia televisiva e

os momentos da música popular brasileira entre as décadas de 1960 e 1980 e ora ainda fazem

parte do cenário midiático-musical brasileiro, ainda que ocupando posições distintas de aquelas

outrora ocupadas.

Os entrevistados, ao encamparem a descrição dos momentos históricos, naturalmente

incorporam à descrição suas próprias análises e, assim, constroem interpretações acerca dos fatos,

cenários históricos, ambiente musical, procedimentos mercadológicos e midiáticos.

Vale ressaltar, portanto, que a descrição do percurso histórico-interpretativo que ora

se inicia revela um “segmento de visão”, composto por ângulos de visão e análise dos fatos tanto

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distintos quanto próximos, tanto polifônicos quanto harmônicos. Distintos e polifônicos pois o

contexto da cultura midiatizada é naturalmente pleno em interpretações e polissemias; próximos e

harmônicos justamente por conta de as particularidades individuais de interpretações das leituras

dos fatos perfazerem as dissonâncias que compõem o sentido mais rico e amplo da harmonia. O

segmento de visão aqui trazido é importante, em verdade, porém não único, tampouco aquele que

se poderia definir como o verdadeiro; justamente por conta das situações históricas dos

entrevistados, é segmento de visão que tende a uma postura crítica (e por vezes apresentando um

caráter saudosista) em relação à questão do processo de empobrecimento discursivo pelo qual a

canção popular massiva brasileira teria passado desde as décadas de 1960 e 1970 até a primeira

metade da segunda década do século XXI.

Por fim, cabe apontar aqui que, somados ao material provindo das referências da

pesquisa bibliográfica, colecionamos neste trabalho dados colhidos nos Centros de

Documentação (CEDOC) de quatro emissoras de televisão aberta do Brasil (TV Bandeirantes,

TV Globo, TV Record e SBT), em suas unidades centrais. Tais dados compõem a pesquisa

documental que complementa e, em boa medida, chancela parte do exposto nos depoimentos da

pesquisa empírica.

A Televisão e a Música brasileiras – a herança do Rádio na década de 1950 Do ponto de vista conceitual, no que tange à linguagem do veículo, a Televisão

brasileira foi, em grande parte, herdeira do Rádio. A produção de programas para o novo veículo

de massa trazia pronunciadas características de seu antecessor. A linha de programas de cunho

jornalístico, a dramaturgia, a música, já habitavam o universo discursivo do Rádio e foram, em

certa medida, adaptados ao novo veículo, à nova linguagem.

O artigo do maestro Júlio Medaglia no livro Glória in Excelsior – ascensão, apogeu e

queda do maior sucesso da televisão brasileira, de Álvaro Moya, principia pela intrínseca

necessidade de o novo veículo encontrar sua forma discursiva com base em formas pré-

existentes: “O mais popular e endemoninhado veículo de comunicação de massa da segunda

metade do século XX, a televisão, foi buscar seus primeiros mecanismos de atuação em outras

áreas e formas de expressão” (MEDAGLIA, 2010, p. 119).

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Chamando a mídia televisiva de “endemoniado veículo de comunicação de massa”, o

autor aponta de modo preciso as raízes discursivas da Televisão quando de seu nascedouro na

Europa. Fincado na tradição erudita do Velho Mundo, o novo veículo de comunicação de massa

apresentava uma natureza literária, que se mesclava à tradição de teatros e de salas concerto. A

Televisão europeia, em seus primórdios, seria um veículo a propagar produções realizadas e

apreendidas de formas distintas daquelas, em locais distintos daquele, por outros veículos de

propagação de mensagens.

A milenar e consistente tradição cultural europeia fez com que aqueles países, conscientes dos recursos e do poder do novo meio, criassem uma TV paraestatal, conteudística e repleta de valores do passado, os quais, ao serem “reutilizados”, emprestavam também maneirismos de suas linguagens ao novo canal de expressão. Nos seus primórdios, portanto, a TV europeia era mais literatura, concerto, cabaré, teatro que um novo código de comunicação. Ou seja, um veículo de outros veículos. (MEDAGLIA, 2010, p. 119).

Diferentemente do que ocorreu na Europa, justamente por conta das diferenças entre

as tradições culturais, nos Estados Unidos da América do Norte o discurso televisivo teria se

apoiado no produto mais bem sucedido da indústria e do comércio de entretenimento norte-

americano: o Cinema. A farta experiência dos produtores e a familiaridade do público receptor

com a linguagem das imagens em movimento sincronizadas com o som, que já completava mais

de duas décadas de existência, emprestaram à Televisão o estofo necessário para as produções

dos primórdios do veículo na América do Norte.

Nos Estados Unidos, onde havia uma forte indústria de comunicação de massa moderna, operando e comercializando em grande escala a imagem em movimento e som simultâneos, o cinema hollywoodiano, é que os primeiros experimentos televisivos foram buscar suas ferramentas básicas. (MEDAGLIA, 2010, p. 119).

Após definir os contextos culturais europeu e norte-americano que caracterizaram o

surgimento da televisão no “primeiro mundo” e suas distintas linhas discursivas, Júlio Medaglia,

que vivenciou e contribuiu significativamente com todo o processo de construção da linguagem

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televisiva brasileira, aponta a principal matriz de recursos de linguagem do processo de formação

do discurso do novo veículo no Brasil: o Rádio.

A televisão brasileira, fundada em 1950 e uma das primeiras do mundo, optou por outro caminho. Como não tínhamos uma tradição cultural de alto repertório tão grande como a europeia e arraigada na população, e nem uma indústria cinematográfica consistente, foi em outro veículo, extremamente popular e criativo, igualmente eletrônico e original em sua linguagem, e o mais recente, à época, o rádio, que o brasileiro foi buscar as bases e os profissionais para a implantação de sua TV. (MEDAGLIA, 2010, pp. 119-120).

Os profissionais brasileiros, adaptados à linguagem do Rádio, desenvolvida ao longo

de quase três décadas, e o público brasileiro, aculturado na linguagem do som desprovido de

imagens, tiveram apenas de se deslocar em direção ao novo veículo. Aqueles, pródigos em

criatividade e domínio de técnicas discursivas; estes, acostumados a completar, conceber e

construir parte do discurso em suas imaginações, encontraram na linguagem televisiva um amplo

terreno de expressão, um território pleno de possibilidades discursivas.

Jogando com a ousadia de linguagem do rádio, com a capacidade do som de atuar diretamente na imaginação, com a falta de compromissos de nossos autores iniciais com linguagens anteriores ou preconceitos culturais, brincando com os recursos do próprio veículo, nossa TV já nasceu original e feiticeira. E foi em consequência desse início “correto” que ela, ao desenvolver-se e industrializar-se, tornou-se a mais apreciada, em termos de linguagem, em todo o mundo. (MEDAGLIA, 2010, pp. 119-120).

Antonio Augusto Amaral de Carvalho, o Tuta, filho de Paulo Machado de Carvalho,

o fundador da TV Record, no livro “Ninguém faz sucesso sozinho – bastidores dos anos de ouro

da TV Record e da Rádio Jovem Pan”, revela a preocupação de seu pai com uma eventual

dificuldade na tarefa de levar para a Televisão os gabaritados profissionais de suas emissoras de

Rádio.

Ao narrar o fato, Amaral de Carvalho corrobora as palavras do maestro Júlio

Medaglia. Para além disso, revela a íntima ligação entre o Rádio e a Televisão naquele princípio

de década. A matriz do discurso televisivo no Brasil é aquela que provém da linguagem

radiofônica.

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Sabe qual foi a primeira coisa que meu pai fez quando, em 1953, recebeu a notícia de que nossa empresa havia sido contemplada com uma concessão precária para gerir um canal de televisão, o Canal 7? Reuniu todo mundo que trabalhava em suas emissoras – Rádios Record, São Paulo e Panamericana – para fazer um apelo geral para que ninguém as abandonasse depois que a TV Record fosse ao ar (AMARAL DE CARVALHO, 2009, p. 47 – grifo do autor).

Assim, nascida no primeiro ano da década de 1950, tendo a linguagem radiofônica

como matriz discursiva, a Televisão brasileira dava os primeiros passos na jornada que a levaria a

se tornar o mais importante veículo de comunicação de massa da segunda metade do século XX

no Brasil.

Vale ressaltar que a linguagem radiofônica da época era composta, entre outros

elementos, pela Música. Entre outros recursos discursivos, a Música era empregada na linguagem

radiofônica também como o principal elemento dos programas de auditório.

Espaços de encontros e sociabilidade das camadas mais populares, chamados por José

Ramos Tinhorão de “teatro dos pobres dos grandes centros urbanos” (TINHORÃO, 1981, p.

112), os programas de auditório alcançaram extraordinário sucesso ao longo da década de 1940 e

na primeira metade da década de 195085. Em seguida, num movimento natural, migraram para a

Televisão: “O programa de auditório radiofônico continuou como programa de auditório na TV”

(PESSOA; MELLO VIANNA; SANTOS; 2013, p. 1).

85 A partir do início da década de 1940 até o próximo ao meado da década seguinte, a Música, como elemento discursivo no Rádio do Brasil atingiria seu ponto culminante com os programas de auditório. Período áureo da Rádio Nacional, o programa "O Trem da Alegria", de Heber de Boscoli (cujo quadro principal era "O Trio do Osso", formado por Lamartine Babo, Yara Sales e próprio apresentador) foi tão popular que deixou de ser exibido desde os estúdios da Rádio e passou a ser gerado diretamente do Teatro Carlos Gomes. O programa “César de Alencar” tinha, em regra, os ingressos para o auditório esgotados com duas semanas de antecedência; ao completar 10 anos no ar, em 11 de junho de 1955, levou 18.000 pessoas ao Maracanãzinho. O programa “Papel Carbono”, de Renato Murce, foi o de mais longa duração em todos os tempos e forçou a Rádio a construir um auditório de proporções maiores para abrigar o afluxo de pessoas. Os programas de auditório da Rádio Nacional foram responsáveis pela produção de mais de 5000 discos no Brasil.

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O ex-prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Cesar Maia, no prefácio do livro TV Tupi,

a pioneira na América do Sul, de Patricia Alves do Rego Silva, narra o surgimento da Televisão,

primeiramente em São Paulo e, logo no ano seguinte, no Rio de Janeiro.

No dia 18 de setembro de 1950, Assis Chateaubriand lançou o Brasil para a modernidade do mundo da Comunicação. Na noite daquele dia, em São Paulo, começava a aventura da televisão brasileira com a inauguração da PRF-3 TV Tupi. Um ano depois, ele repetiria o gesto no Rio de Janeiro, transformando o prédio do antigo Cassino da Urca – fechado cinco anos antes pela proibição do jogo em nosso país – nos estúdios da sucursal carioca da emissora (MAIA, 2004, p. 5).

Patricia Alves do Rego Silva, a autora do livro, faz notar um par de acontecimentos

que caracterizaram o momento do nascedouro da Televisão no Brasil. O primeiro deles a delinear

aquela que viria a ser a identificação imediata do público brasileiro com o novo veículo: “Os

aparelhos de TV instalados no saguão do Guilhermina Guinle e na esquina das Ruas Sete de

Abril e Bráulio Gomes, pouco maiores que aparelhos de rádio, ainda mostravam apenas traços

horizontais e verticais. E o público, ansioso, se acotovelava diante das telas” (SILVA, 2004, p.

16). O segundo acontecimento mostra o traço identitário tanto do público quanto do próprio

veículo com a forma de expressão a ser apresentada naquela que viria a ser a programação da

Televisão: a Música, já o principal conteúdo do Rádio, cuja linguagem fora absorvida pelo novo

veículo.

Enquanto isso, no Museu de Arte de São Paulo, o frei cantor José Mojica, o mais famoso artista latino de Hollywood na época, preparava-se para ser a primeira imagem da televisão brasileira. Exatamente às 17 horas, os traços desapareceram dos vídeos, dando lugar a um indiozinho desenhado a bico de pena e à inscrição PRF-3 – Tupi TV. Então surgiu na tela frei Mojica, agradecendo em espanhol o convite e iniciando seu número musical, com o bolero Besame. A TV brasileira estava no ar pela primeira vez. (SILVA, 2004, pp. 16-17 – grifo da autora).

Fica ainda mais evidente a proximidade entre a Televisão e a Música quando da

narração de J. Almeida Castro (apresentador, produtor e diretor da TV Tupi do Rio de Janeiro)

acerca da primeira transmissão televisiva na então capital nacional.

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O elenco de astros que iniciaram a primeira transmissão era composto quase que

exclusivamente de artistas ligados à Música. Antonio Maria, compositor, foi encarregado do

discurso de abertura; tal discurso foi acompanhado pela orquestra do maestro Severino Araújo;

em seguida, o compositor Ary Barroso comandou uma espécie de programa de calouros e assim,

sucessivamente, foram se apresentando astros da música brasileira, consagrados pelo Rádio.

Às 21 horas, Carlos Alberto Lofler, operando a câmera no dolly, abriu a transmissão “fechando a imagem” em Antonio Maria e recuou para Araújo. Moacir Masson, na outra câmera, fazia os detalhes. Seguiram-se Ary Barroso e seus calouros, com o regional de Benedito Lacerda; Almirante, Alvarenga e Ranchinho, Linda Batista, Aracy de Almeida, Dircinha Batista, Três Marias, Erasmo Silva, Gilberto Alves, Ademilde Fonseca, o Trio de Ouro e Dorival Caymmi. (CASTRO, 2004, p.44 – grifo do autor).

O elenco de artistas ligados à Música, provindos do Rádio, deflagra outro elo

fundamental, desta feita entre a Televisão e o Rádio: “Eram todos artistas contratados da Rádio

Tupi do Rio de Janeiro” (CASTRO, 2004, p.44).

Desse modo, faz-se notar um par de elos fundamentais no nascedouro da Televisão

no Brasil. Um forte elo, pautado pela linguagem, liga a Televisão ao Rádio; outro forte elo, de

natureza discursiva, liga a Televisão à Música, notadamente à música popular brasileira. Tal fato

pode ser ilustrado pelos programas apresentados na primeira semana de programação da TV Tupi

do Rio de Janeiro, no mês de fevereiro do ano de 1951, que se encontram no anexo 7 deste

trabalho86.

A tríade Rádio – Música – Televisão perfez um acorde perfeito maior naquele

princípio de década, no nascedouro do novo veículo de comunicação de massa do Brasil.

O maestro Júlio Medaglia situa esse primeiro período com duração próxima a uma

década: “Os primeiros dez anos da TV brasileira, liderados em todos os sentidos pela TV Tupi de

Chateaubriand, foram efetivamente de festa. Todo o brilho mágico do nosso rádio acrescido da

imagem em movimento, ganhava dimensão ainda maior” (MEDAGLIA, 2010, p. 119).

Em sua seara, a música popular brasileira da década de 1950 conviveu com a

linguagem do samba herdado das décadas de 1930 e 1940; com a linguagem do samba-canção, 86 Ver Anexo 7, p. 503.

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mescla entre o samba brasileiro e os boleros cubano e mexicano trazidos à cena midiático-

musical pelas ondas do Rádio; com o surgimento de novas linguagens musicais trazidas do

nordeste (sobretudo de Pernambuco e da Bahia) ao grande público do sudeste e levadas aos

diversos cantos do Brasil pelo principal veículo midiático à altura, o Rádio e, em seguida, pela

Televisão; com a sofisticada e inovadora linguagem musical da Bossa Nova, surgida pelo final da

década.

A multiplicidade de linguagens musicais da década de 1950 fica evidente quando

podemos notar a proliferação de gêneros musicais elencada por Jairo Severiano e Zuza Homem

de Mello, no livro A canção no tempo. Os autores destacam tanto do ponto de vista da qualidade

musical quanto da veiculação pelo Rádio (e posteriormente pela Televisão) e da vendagem de

discos, concomitantemente, na produção do ano de 1950, o samba Antonico, de Ismael Silva, o

samba-canção Que será, de Marino Pinto e Mário Rossi e o baião Qui nem Jiló, de Luiz Gonzaga

e Humberto Teixeira (SEVERIANO, HOMEM DE MELLO, 1999, pp. 279-280); no mesmo ano

destacaram-se, também, o disco compacto duplo Balzaqueana, de Jorge Goulart, composto de um

par de marchinhas, e disco compacto duplo Paraíba, de Emilinha Borba, composto de um par de

baiões (SEVERIANO, HOMEM DE MELLO, 1999, p.281).

Na produção musical do ano de 1951, os autores destacam tanto o choro-baião

Delicado, de Valdir de Azevedo quanto o samba-canção Vingança, de Lupicínio Rodrigues

(SEVERIANO, HOMEM DE MELLO, 1999, pp. 283-284); tanto o disco compacto simples

Tome Polca, de Marlene, composto de uma polca, quanto o disco compacto duplo Ave-Maria, de

Dalva de Oliveira, composto de um par de sambas-canções (SEVERIANO, HOMEM DE

MELLO, 1999, p.286).

Segundo os autores, o ano de 1952 tem como destaques, concomitantemente, o

samba-canção Alguém como tu, de José Maria de Abreu e Jair Amorim, interpretado por Dick

Farney, um dos precursores da Bossa Nova, o baião Kalu, de Humberto Teixeira, o samba Lata

d’água, de Luís Antônio e Jota Júnior (SEVERIANO, HOMEM DE MELLO, 1999, p.291-292);

tiveram destaque tanto o disco compacto duplo Fim de Comédia, composto de dois sambas-

canções, quanto o disco compacto duplo Kalu, composto de um baião e de um samba-canção,

ambos os discos da cantora Dalva de Oliveira (SEVERIANO, HOMEM DE MELLO, 1999,

p.294). Vale notar que, no mesmo ano de 1952, Dorival Caymmi lançou dois discos compactos

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duplos de relevância artística, ambos de grande sucesso, Não tem solução e Nem eu e que o

cantor Lúcio Alves, outro dos precursores da Bossa Nova, lançou o disco compacto duplo

Sábado em Copacabana, no qual encontra-se outra composição magistral do baiano Dorival

Caymmi (SEVERIANO, HOMEM DE MELLO, 1999, pp.294-295).

Aos poucos, no decorrer da década de 1950, o samba, herdeiro da linguagem musical

das décadas de 1930 e 1940, foi perdendo espaço e a cena musical brasileira passou a ser

dominada pela produção de sambas-canções e pelo repertório provindo do nordeste do Brasil,

notadamente ancorado na produção dos compositores Luiz Gonzaga (pernambucano) e Dorival

Caymmi (baiano).

Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello evidenciam tal fato quando destacam na

produção do ano de 1953 os sambas-canções João Valentão, de Dorival Caymmi, e Risque, de

Ary Barroso, concomitantemente ao surgimento “coco” (um ritmo derivado do baião

pernambucano) Sebastiana, de Rosil Cavalcanti (SEVERIANO, HOMEM DE MELLO, 1999,

pp.297-298); nota-se o direcionamento da produção musical da altura, distanciando-se

paulatinamente do samba no sentido do samba-canção, pela gravação seguida do sucesso do

disco compacto duplo Se eu morresse amanhã, que traz a intérprete Araci de Almeida, ícone do

samba da década de 1930, interpretando um par de sambas-canções (SEVERIANO, HOMEM DE

MELLO, 1999, p. 300).

Entre os anos de 1954 e 1956 é possível notar, juntamente com a produção de

sambas-canções, das canções praieiras de Dorival Caymmi, do baião e seus derivados, o sutil

aparecimento de um repertório que apresenta traços do que virá a se concretizar pelo final da

década no surgimento do movimento musical a que se denominou Bossa Nova.

A canção Teresa da Praia, de Antonio Carlos Jobim e Billy Blanco ladeia o samba-

canção Vida de bailarina, de Chocolate e Américo Seixas, e o coco Um a um, de Edgar Ferreira,

como destaques no ano de 1954 (SEVERIANO, HOMEM DE MELLO, 1999, p. 307); os discos

compactos duplos Recusa, de Ângela Maria, contendo dois sambas-canções, e o disco Valsa de

uma cidade, de Lúcio Alves, contendo um samba-canção e uma valsa que apresenta um sotaque

da Bossa Nova, figuram entre os de maior sucesso naquele ano (SEVERIANO, HOMEM DE

MELLO, 1999, pp. 309-310).

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Ângela Maria gravou, em 1955, o compacto duplo Adeus querido, contendo um par

de sambas-canções. No mesmo ano foi gravado o baião Farinhada, de Zé Dantas (SEVERIANO,

HOMEM DE MELLO, 1999, p. 318).

Em 1956, ano de apresentação do musical Orfeu da Conceição87, de Tom Jobim e

Vinicius de Moraes, um dos principais fatores que deflagraram a Bossa Nova, o maior sucesso do

Rádio e de vendas de discos no Brasil foi o samba-canção Conceição, de Dunga e Jair Amorim

(SEVERIANO, HOMEM DE MELLO, 1999, p. 321); no mesmo ano, Dorival Caymmi lançou os

compactos duplos Maracangalha e Só Louco, Cauby Peixoto lançou o compacto duplo Molambo,

contendo dois sambas-canções, e a iminente bossanovista Silvia Telles lançou o compacto duplo

Foi a noite, contendo também um par de sambas-canções (SEVERIANO, HOMEM DE MELLO,

1999, p. 326).

O ano de 1957, com as gravações de Chove lá fora, por Tito Madi (SEVERIANO,

HOMEM DE MELLO, 1999, p. 329), Ouça, de Maysa, e Saudade da Bahia, de Dorival Caymmi

(SEVERIANO, HOMEM DE MELLO, 1999, p. 331), e do disco compacto duplo Por causa de

Você, de Silvia Telles (SEVERIANO, HOMEM DE MELLO, 1999, p. 332), preconizava, em

certa medida, a chegada, no ano seguinte, da célebre gravação de Chega de Saudade, de Tom

Jobim e Vinicius de Morais, no disco LP Canção do amor demais, de Elizeth Cardoso, onde

aparecem a voz e o violão de João Gilberto (SEVERIANO, HOMEM DE MELLO, 1998, p. 20).

O final da década e o acuro discursivo musical da Bossa Nova Em 1959 João Gilberto lançaria seus próprios LPs Desafinado e Lobo Bobo,

inaugurando a Bossa Nova (SEVERIANO, HOMEM DE MELLO, 1998, p. 34).

A importância da Bossa Nova para a música brasileira é de difícil mensuração,

tamanhamente grande ela é. Se, por um lado, as melodias ganharam contornos de cromatismos

87 Orfeu da Conceição é a peça musical escrita por Tom Jobim, com letras de Vinicius de Moraes, que adapta a história do mito grego de Orfeu, transpondo-o à realidade das favelas cariocas. O espetáculo estreou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 25 de setembro de 1956 e teve os cenários projetados por Oscar Niemeyer. A revolucionária e sofisticada linguagem musical, tanto do ponto de vista melódico quanto harmônico, e a abordagem do mito no contexto social da favela num Brasil que emergir economicamente, transformaram a peça num dos marcos do nascimento da Bossa Nova.

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requintados, as harmonias ganharam a concepção dos encadeamentos distantes dos habitualmente

utilizados até então; se as letras ganharam a leveza de abordagem de modo a se afastar do

universo semântico do samba-canção à altura chamado “dor de cotovelo”, a rítmica ganhou a

síncopa dilatada para o compasso quaternário; se a interpretação vocal ganhou a precisão de

afinação com a ténica da colocação precisa da voz em lugar das técnicas do belcanto italiano, a

instrumentação ganhou o realce das ricas células rítmicas sincopadas executadas pelo violão.

O pianista Amilton Godoy, integrante do grupo instrumental Zimbo Trio, sintetizou

todo o quadro exposto acima, desde a mescla de gêneros que ocupava a música popular brasileira

ao longo da década de 1950, passando pela valorização do intérprete cantor em detrimento da

valoração discursiva musical naquele período histórico, até chegar à extrema importância

nacional e internacional do surgimento da Bossa Nova (preconizada no musical Orfeu Negro) no

disco LP Canção do amor demais e, logo em seguida, no violão e na voz de João Gilberto.

O que mexeu mesmo comigo foi um disco de Elizeth Cardoso interpretando obras de Vinicius e Jobim, chamada “Canção do amor demais”. Antes disso, a música valia muito pelo intérprete: Carlos Galhardo, Francisco Alves... Certa vez eu perguntei para o Dizzie Gillespie porque o interesse na música brasileira. Ele falou que a primeira coisa que o encantou foi o filme “Orfeu Negro” e logo em seguida ele ouviu esse disco. Veio a Bossa Nova. Os músicos já se interessaram por aquela nova forma de tocar, de cantar. O João Gilberto era como se fosse um instrumento cantando. Falando com a voz. Antes dele, música brasileira era muito misturada, não dava para perceber o conteúdo riquíssimo do que estava lá dentro. Daquele disco em diante, começou a se ouvir a harmonia. Foi isso o que cativou os músicos do mundo inteiro (GODOY, 2013).

A capacidade interpretativa de João Gilberto trouxe aos ouvidos da época, além da

sofisticação discursiva pertencente à instância da harmonia, também o rico discurso melódico e

rítmico do repertório por ele interpretado instrumental e vocalmente. As melodias da Bossa Nova

e seus cromatismos ganharam a companhia das melodias de caráter diatônico do repertório do

que chamava “bossa velha”. Pela interpretação de afinação absolutamente precisa, pode-se,

enfim, ouvir a riqueza melódica da música brasileira; distante dos recursos do belcanto italiano,

que valorizavam o cantor em detrimento da melodia, o modo de cantar de João Gilberto, baseado

na inflexão das notas, na limpeza da melodia, no uso do microfone como facilitador de uma

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emissão sonoro-vocal perfeita, permitia ao ouvinte apreciar a melodia e sua riqueza discursiva

intrínseca.

Além disso, o modo de tocar o violão, pleno em síncopas contrapontísticas em

relação à melodia entoada pela voz, realçava a riqueza rítmica da música brasileira, notadamente

do samba.

O ritmo brasileiro não encantou apenas Dizzie Gillespie, como mencionou Amilton

Godoy, mas toda uma geração de grandes músicos, cantores e compositores norte-americanos, a

saber, Sarah Vaughn, Ella Fitzgerald, Frank Sinatra, Nat “King” Cole, Gerry Mulligan, Stan

Getz, entre outros. Zuza Homem de Mello, de modo bastante preciso, pontua: “O que encanta os

americanos não é apenas o ritmo brasileiro, mas é a fluência da melodia brasileira” (HOMEM DE

MELLO”, 2013).

O grande intérprete trouxe consigo uma relevante espécie de retomada da canção

brasileira produzida nas décadas de 1930 e 1940, em grande medida deixada de lado ao longo da

década de 1950. O samba, manifestação musical genuína do Brasil, voltou à cena musical

brasileira revestido da linguagem da Bossa Nova. A evolução da linguagem harmônico-melódica

não se deu a partir do nada mas, sim, incluindo o resgate de uma produção musical de altíssima

qualidade, garimpada por João Gilberto, na qual, seja por conta das limitações nos recursos de

gravação e de transmissão, seja por conta da valorização extrema do intérprete (em detrimento

dos elementos composicionais das peças musicais), seja por conta da mescla de gêneros da

década de 1950, encontrava-se uma extrema riqueza discursiva que estava para vir à tona: “O

João Gilberto era o grande intérprete, a gente aguardava com ansiedade cada disco dele para

tomar contato com o material musical que ele estava projetando. Só que esse material não era só

dele, ele estava cantando músicas de outros compositores também” (GODOY, 2013).

O compositor Dori Caymmi corrobora os conceitos trazidos por Amilton Godoy.

Tanto quando relembra a época imediatamente anterior à chegada da Bossa Nova: “Essa época

do Brasil era linda. Os meus cantores favoritos eram o Silvio Caldas e o meu pai. Tinha muita

gente boa ali, era uma turma enorme fazendo muitas coisas diferentes; a música brasileira era

uma grande salada (Caymmi, 2013)”, como quando relembra o momento em que a linguagem

musical brasileira ganhou a identidade que influenciaria a geração de compositores que surgiu a

partir de ali, dentre os quais ele próprio.

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Aí entrou Antônio Carlos Jobim; Tom e Vinicius com o disco “Canção de Amor Demais”, um dos discos mais bonitos que ouvi em toda a minha vida. Por causa do disco parti para ler os sonetos do Vinicius e me deu aquela paixão. Aí vem o João Gilberto com aquele violão novo. Ele é a grande novidade. Depois dele vem o Baden [Powell] com uma mistura entre o lado regional e o lado afro, uma energia, uma violência... (CAYMMI, 2013)

O surgimento de uma geração de grandes compositores na história da música popular

brasileira está atrelado de modo visceral ao surgimento da Bossa Nova e, sobretudo, ao

aparecimento de João Gilberto, o grande intérprete da Bossa Nova, no cenário musical brasileiro.

Naturalmente, a absorção da nova linguagem não se deu de pronto, tampouco pela

esmagadora maioria dos ouvintes de música de então. Zuza Homem de Mello, ao relembrar do

momento primeiro em que ouviu a gravação de Chega de Saudade na voz de João Gilberto, faz

notar que a apreensão daquela sonoridade não foi unânime; ao contrário, gerou bastantes dúvidas:

Foi um choque. Quando eu ouvi pela primeira vez tive que parar o carro, encostar na guia para poder continuar ouvindo. Desliguei o motor para poder continuar ouvindo e fiquei absolutamente estatelado diante daquilo. Isso não aconteceu com todo mundo. Houve muita gente que teve uma reação radicalmente contrária, achou que ele não sabia cantar (HOMEM DE MELLO, 2013)

No entanto, as pessoas que seriam os compositores de música popular no Brasil na

década seguinte encantaram-se com o que ouviram: “O João Gilberto é o fator desencadeante de

tudo o que aconteceu nessa geração dos anos 60s; nenhum deles deixa de ter uma admiração

fervorosa por João Gilberto” (HOMEM DE MELLO, 2013). Influenciados de forma definitiva,

os compositores de música popular brasileira incorporaram em suas músicas as sofisticadas

linguagem musical (tanto de harmonia quanto de melodia e de ritmo), literária (das letras das

canções, notadamente as da parceria Tom Jobim e Vinicius de Morais), de interpretação (da

sonoridade produzida pela perfeita conjunção entre a voz e o violão de João Gilberto). A geração

de futuros compositores brasileiros inspirava-se numa música de sofisticada estruturação poética

e apurado padrão estético.

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Porém, houve muita gente que teve a mesma percepção que eu e essas pessoas se transformaram nos grandes ídolos da música popular brasileira: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Edu Lobo, Chico Buarque, Dori Caymmi, Roberto Carlos, praticamente a nata da música popular brasileira. Então, o vértice do que existe na música popular brasileira até os dias de hoje chama-se João Gilberto (HOMEM DE MELLO, 2013)

Em perfeita consonância com o que afirmou Amilton Godoy, Zuza Homem de Mello

faz notar, primeiramente, o motivo pelo qual a grandiosidade de João Gilberto deve ser analisada;

distante de preferências ou gostos pessoais, ela se justifica pela abordagem estrutural da música

produzida pelo intérprete: “Ele toca nos quatro elementos fundamentais que compõe a música,

que são ritmo, melodia, harmonia e letra. Ele altera todos os quatro, sem exceção” (HOMEM DE

MELLO, 2013).

Em seguida, Zuza Homem de Mello ressalta que, justamente por ser uma

transformação de caráter estrutural, qualitativamente perceptível e admirável, de notável padrão

estético, a nova concepção musical brasileira encantou e influenciou músicos por todo o Mundo.

Essa mudança radical que até hoje não é aceita por muita gente permitiu com que o samba se universalizasse, o que não acontecera quando a Carmen Miranda foi para os Estados Unidos em 1939. O João Gilberto traz ao mundo a possibilidade de cantar o samba, em português, ritmando como o brasileiro, tanto o violão, quanto a bateria, quanto o contrabaixo, que é dificílimo para o americano (HOMEM DE MELLO, 2013).

A Música como elemento constitutivo da grade de programação da TV Tupi – O início da década de 1960

O cenário musical acima descrito compõe o início da década de 1960 no Brasil.

Naturalmente o cancioneiro brasileiro da época não é composto somente do repertório da Bossa

Nova. É preciso ressaltar que, juntamente com o requinte discursivo das composições de Tom

Jobim e da sofisticação musical engendrada por João Gilberto, habitavam as programações de

emissoras de rádios e televisões, as prateleiras de lojas de discos, palcos de shows, um repertório

de canções que não primavam necessariamente pelo apurado uso da linguagem musical.

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No entanto, é preciso ressaltar também que a produção de uma espécie de música que

primava pelo acuro discursivo, que empenhava a busca por um padrão estético de excelência,

existia e era estimulada, pois habitava a mídia televisiva.

A TV Tupi, ao longo de seus primeiros dez anos de existência, ladeou a música

brasileira com outras espécies de atrações em sua grade fixa de programação. Se, por um lado, a

orquestra Tabajara, do maestro Severino Araújo, apresentava números musicais, por outro

despontavam os primeiros programas de cunho jornalístico; se Ary Barroso tinha espaço para um

programa onde se apresentavam calouros, Antonio Maria (também compositor) tinha um horário

para as transmissões de partidas de futebol. A necessidade de se compor uma grade ampla e

diversa, naturalmente, não permitia uma programação exclusiva de Música.

No entanto, é notável que a Música era parte integrante e ocupava lugar de honra na

programação da TV Tupi. Notável, também, a presença de uma orquestra completa no cast da

emissora. Finalmente, vale ressaltar a presença de um compositor tamanhamente renomado e

qualificado como Ary Barroso na grade de programação fixa de uma emissora de televisão.

J. Almeida Castro, no livro TV Tupi, a pioneira da América do Sul, de Patricia Alves

do Rego Silva, elenca as atrações fixas dos programas regulares da grade de programação da TV

Tupi do Rio de Janeiro em seus primeiros anos de funcionamento.

No horário principal, Carlos Frias fazia entrevistas com políticos e personalidades, Mario Provenzano falava de futebol, e o elenco de cantores e a Orquestra Tabajara apresentavam números musicais, além de números de dança da escola da coreógrafa Juliana Ianakiewa. O telejornal, razoavelmente ilustrado com slides e filmes, tinha o prestígio de Luiz Jatobá, que retornara dos Estados Unidos, onde narrava, com sucesso, cinejornais em português. No sábado, o caminhão de externas mandava imagens das corridas de cavalo do Hipódromo da Gávea, das 14 às 17 horas; havia uma pausa e, às 20h45min, um show musical e os Calouros de Ary Barroso davam continuidade à programação. Aos domingos, o caminhão transmitia do Maracanã, a partir das 16h45m, o futebol narrado por Antonio Maria e, à noite, era exibido um longa-metragem com legendas (CASTRO, 2004, p.46).

No entanto, além de programas de cunho jornalístico, esportivo e musicais, a TV

Tupi encontrou uma forma de entretenimento que conquistaria os maiores índices de audiência da

história da Televisão brasileira: a telenovela.

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A rigor, a forma definitivamente não foi inventada pela TV Tupi; era, antes de tudo,

uma adaptação para a Televisão das radionovelas, produto já de grande sucesso quando

veiculadas pelo Rádio no Brasil.

A grande invenção da emissora, cuja fórmula dá certo até hoje, foi a telenovela, uma transposição para a televisão das novelas de rádio. O primeiro e maior sucesso, O direito de nascer, ficou no ar quase um ano, de 7 de dezembro de 1964 a 3 de agosto de 1965, ajudando a distrair as famílias brasileiras, que viviam os primeiros meses do regime militar (SILVA, 2004, p. 24 – grifo da autora).

Assim, munida de uma fórmula de sucesso incontestável, a emissora passou a inserir

a teledramaturgia no contexto de sua programação: “A radionovela se tornou telenovela”

(PESSOA; MELLO VIANNA; SANTOS; 2013, p. 1). O jornalismo, os programas musicais e os

programas esportivos, ladeavam a telenovela. A TV Tupi, desse modo, aos poucos construía sua

grade de programação baseada naquele gênero de dramaturgia; do mesmo modo, aos poucos

expandia as possibilidades expressivas construídas pelo universo discursivo do Rádio.

A telenovela, gênero que consagrou internacionalmente a televisão brasileira, nasceu nos estúdios da TV Tupi. Como não lembrar de O direito de nascer, a primeira novela televisiva, que repetiu o sucesso obtido anteriormente no rádio? O telejornalismo também teve a sua escola na velha TV Tupi. A voz inconfundível de Luiz Jatobá marcou o primeiro telejornal, seguido, depois, do Repórter Esso, cuja música de abertura se transformou em sinônimo de “últimas notícias”. E, complementando a fórmula do sucesso, os programas de auditório inspirados naqueles do rádio (MAIA, 2004, p. 5 – grifo do autor).

O sucesso das telenovelas embasou uma ambição de escritores, produtores, diretores

e atores da TV Tupi: transformar a produção de telenovelas numa espécie de “novo Cinema”;

havia a possibilidade de expor, num veículo de massa, uma produção dramatúrgica de alta

qualidade, com público cativo e qualificado. Em havendo tal possibilidade, grandes profissionais

poderiam se arvorar a construir uma indústria e um comércio da telenovela brasileira ali

produzida. Maurício Sherman, diretor artístico e diretor de criação da emissora à época, narra a

ambição de profissionais e emissora quanto à produção de telenovelas e sustenta sua

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argumentação nas raízes estruturantes do discurso televisivo do nascedouro do novo veículo de

comunicação.

A Televisão necessita de rapidez e de soluções instantâneas, como o rádio, e da movimentação e encenação com atores, como no teatro. Com a admiração por Hollywood e outras telas, nosso desejo era o de fazer cinema na televisão. Havia a veleidade artística de buscar a linguagem cinematográfica e sofisticada. Nisso éramos ajudados pelo espectador, que pertencia à classe média (naquele tempo ela existia e só eles podiam comprar os aparelhos de TV – o pobre era, no máximo, um televizinho). (SHERMAN, 2004, p. 60).

Desse modo, encantada com as próprias produções e com as possibilidades que a

telenovela engendrava, a TV Tupi, aos poucos, centrou suas ações primordiais nessa espécie de

programação. A Música, como programação específica, e o Futebol, passavam a ocupar papeis de

coadjuvantes na grade de programação da emissora, embora a Música continuasse presente nas

telenovelas e nas demais programações, como elemento de linguagem na composição dos

discursos televisivos, especialmente naqueles voltados ao entretenimento.

A TV Record, outra emissora de grande alcance à altura, não podia competir com o

know how da TV Tupi (menos ainda poderia intentar travar competição uma emissora recém-

inaugurada, a TV Excelsior). As produções, ademais, tornavam-se cada vez mais caras e os

orçamentos de produção inviabilizavam as possibilidades de criações de núcleos de dramaturgia

fora do âmbito da TV Tupi.

A “conduta minimalista” da Bossa Nova e da TV Excelsior É exatamente nesse contexto que surge uma nova proposta de emissora de Televisão,

como constata o maestro Júlio Medaglia, partícipe daquele processo:

No início dos anos 1960, porém, um novo fenômeno aconteceu em nossa TV que a todos surpreendeu. Todo aquele know-how adquirido na primeira década, fora assimilado por uma nova emissora que surgia, só que de seu mecanismo fazia parte um novo repertório de ideias e profissionais que deram um sentido inteiramente diferente ao veículo: a TV Excelsior (MEDAGLIA, 2010, pp. 119-120).

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Sem a possibilidade de investir num núcleo de dramaturgia, a emissora optou

primeiramente por programas musicais.

Fundada em julho de 1960, em São Paulo, a TV Excelsior exibia uma programação

relativamente variada, de produção criativa e barata, que visava a encontrar seu público num

âmbito distinto das produções para a grande massa de espectadores, já seduzidos pela telenovela.

Em certa medida, a emissora buscava um público qualificado e fiel, como descreve o escritor

Manoel Carlos:

A Excelsior era um luxo de simplicidade e simpatia. E o público gostava, aprovava, incentivava. Lutávamos contra empresas poderosas, em termos de audiência, como a Tupi e a Record, mas não fazíamos feio. Tínhamos uma parcela qualitativa de audiência bastante expressiva (CARLOS, 2010, p. 114).

José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o “Boni”, que juntamente com Manoel Carlos

trabalhou na produção dos primeiros programas da TV Excelsior, remete-se especificamente à

dificuldade de gerenciar os baixos orçamentos, que impingiam a diretores e cenografistas a

necessidade de serem criativos ao extremo, e forjava aos ambientes cênicos uma concepção

minimalista, aconchegante, em grande medida semelhantes às concepções musicais da Bossa

Nova:

A Excelsior foi a primeira emissora de televisão a assumir a conduta minimalista vinda dos pocket-shows cariocas. E em São Paulo influenciou os bares de bossa como o Bar Sem Nome e o João Sebastião Bar. Álvaro [Moya] e Maneco [Manoel Carlos] identificaram com precisão essa oportunidade que viria a ser mais uma marca da Excelsior (OLIVEIRA SOBRINHO, 2010, p. 136).

Não coincidentemente, o repertório da Bossa Nova encontrou seu espaço de

expressão na programação da TV Excelsior. A estética banquinho-e-violão combinava

perfeitamente com a ambição contida da emissora e trazia a esta o elemento qualitativo da

audiência. Se a Bossa Nova não era a música brasileira apreciada pela grande massa da

população, também não o eram os programas musicais dos primórdios da TV Excelsior. Ambos,

Bossa Nova e programas musicais, eram direcionados a uma espécie de público elitizado, dentro

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da já elitizada faixa populacional que à altura tinha acesso à programação televisiva, como

ressaltou Maurício Sherman.

A Excelsior foi a porta-voz da Bossa Nova em São Paulo. Quando a bossa nova começava a se consolidar, Álvaro de Moya e Manoel Carlos abriram todos os espaços possíveis para Tom, Vinícius, João Gilberto, Baden, e outros. Os programas eram despojados, simples, e sem cenário. A luz, quase penumbra. A roupa, cinza e preta, com a indefectível gola rulê introduzida pelo Aloysio de Oliveira (OLIVEIRA SOBRINHO, 2010, p. 136).

É preciso notar que havia uma intencionalidade estética na concepção de cenários,

figurinos e ambiências. Mais do que isso, é preciso ressaltar que a intencionalidade estética,

dominada por um conceito minimalista, tanto provinha de uma espécie de identificação com a

concepção banquinho-e-violão da Bossa Nova quanto das dificuldades orçamentárias. Em

verdade, estas sobrepujavam aquelas.

Diferentemente do que propõe José Ramos Tinhorão, que em alguns de seus livros

aponta para o distanciamento de uma classe média carioca em relação às camadas mais pobres da

sociedade, de uma classe média musical marcada pela “frustração das ambições no campo da

música erudita”, de uma classe média carioca que fazia música para agradar a clientela dos bares

de Copacabana, ou seja, “os turistas estrangeiros” e “os representantes do café society brasileiro”

(TINHORÃO, 1997, p.38), no caso da programação dos primórdios de TV Excelsior, a opção

pela estética minimalista de programas, cenários, figurinos, ambiências e, sobretudo, repertório,

tinha dupla natureza: a adequação estética à espécie de repertório de programação (a Forma) e o

acuro qualitativo na concepção da espécie de repetório a ser exibido na programação (o

Conteúdo).

Manoel Carlos faz questão de enfatizar: “Abríamos espaço para apresentações longas,

como a de um domingo em que Vinícius de Moraes ficou mais de meia hora no palco, cantando e

dizendo poemas. Abríamos espaço para tudo que era bom” (CARLOS, 2010, p. 114).

A extensão da apresentação, o âmbito da Forma, e o repertório declamado e cantado,

o âmbito do Conteúdo, ambos estavam sob a égide da busca por um padrão estético de

excelência, da busca pelo “que era bom”.

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A Bossa Nova, recém lançada à altura, significava parte do “que era bom” na

produção de música brasileira. No entanto, a programação da emissora não ateve-se

exclusivamente ao repertório e à apresentação de artistas ligados à Bossa Nova. Manoel Carlos,

ao relembrar um dos programas por ele escrito e produzido, elenca representantes da música

brasileira que não estiveram necessariamente ligados ao movimento musical nascido no ambiente

da classe média habitante da Zona Sul do Rio de Janeiro. Ao contrário, tanto personagens

representativos do samba brasileiro das décadas de 1930 e 1940 (Orlando Silva, Aracy de

Almeida, Ataulfo Alves), quanto ícones do samba-canção da década de 1950 (Dalva de Oliveira,

Nelson Gonçalves, Emilinha Borba), como artistas que inspiraram a Bossa Nova (Dick Farney,

Lúcio Alves, Elizeth Cardoso), ou representantes da música nordestina que dominaram a cena

musical da década de 1950 (Dorival Caymmi), e até mesmo figuras do chorinho brasileiro da

década de 1920 (Pixinguinha, Jacob do Bandolin, Luperce Miranda) e da marchinha de carnaval

do mesmo período (Lamartine Babo), habitavam o mesmo palco em que se encontravam nomes

significativos da Bossa Nova como Alaíde Costa, Silvinha Telles e João Gilberto. Em fato, o

critério para habitar a programação musical da emissora era menos a corrente estilística do

gênero ao qual o artista era vinculado, mais a qualidade de sua produção musical, o padrão

estético da música por ele trazida à tela.

Foi na nossa Excelsior que juntamos no palco Orlando Silva, Silvio Caldas, Carlos Galhardo, Dorival Caymmi, Nelson Gonçalves, Gilberto Aves e Cyro Monteiro. Foi lá também que formamos duplas como Juca Chaves e Lamartine Babo, João Gilberto e Orlando Silva, Aracy de Almeida e Silvinha Telles, Elizete Cardoso e Alaíde Costa, Marlene e Emilinha Borba, Dalva de Oliveira e Ataulfo Alves, Dick Farney e Lúcio Alves. Numa outra ocasião formamos um trio simplesmente genial: Pixinguinha, Jacob do Bandolin e Luperce Miranda (CARLOS, 2010, p. 113).

O compromisso da emissora com a música brasileira cuja estruturação evidenciava o acuro poético e a busca por um padrão estético de excelência

A preocupação com a qualidade musical da Tv Excelsior fica evidente mesmo em

programações de outros gêneros, que não o musical.

Ao descrever um esquete de um programa humorístico, o diretor de vários núcleos de

programação da TV Excelsior, Álvaro Moya, resvala numa questão musical que muito interessa

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ao presente trabalho: ao estruturar a chamada para o programa, o diretor contava com uma

orquestra, regida por um maestro e compositor de alto gabarito88. Vale ressaltar a qualidade

profissional também dos comediantes citados; o acuro com a programação não se restringia ao

campo da Música.

Quando contratamos Leon Eliachar para fechar a linha horizontal de humor, que tinha Mazzaropi, Amandio Silva Filho, Dercy Gonçalves, Zé Trindade, Jô Soares, bolamos uma chamada original. O maestro Enrico Simonetti empunha a batuta, todo sério, e a orquestra começa. Um violino desafina, ele começa da capo. De novo, um violino desafina. Nota Leon Eliachar com um violino na mão. Ei, você não é da minha orquestra. O que está fazendo aqui? Estou estreando meu programa. Seu programa? Este é o meu programa, Simonetti Show. Mas agora é o meu. Como é seu nome? Leon Eliachar meu programa, toda quarta-feira às 20h30. Quarta-feira? vocifera Enrico, hoje é sexta. Leon Eliachar se desculpa e sai de fininho. Simonetti o chama: Como é seu nome, mesmo? Leon Eliachar. OK. Vou ver seu programa na próxima quarta-feira às 20h30. Foi a chamada de um novo programa humorístico, dentro de um musical humorístico de sucesso (MOYA, 2010, p. 87).

Álvaro Moya narra outro fato (este não concretizado) que corrobora o exposto acima.

Um automóvel de pequeno porte entraria no palco do teatro e dele sairiam muitas pessoas, por

conta de um truque bastante simples de se realizar: uma passagem como fundo-falso no chão do

teatro.

Entretanto, as pessoas que sairiam do automóvel seriam músicos. Músico de uma

orquestra. Pode-se concluir que a emissora dispunha, então, em seu cast de artistas contratados,

de músicos que compunham uma orquestra e de um maestro, que a regia. Vale notar que a mesma

emissora não dispunha de orçamento suficiente para a construção de grandes cenários; porém,

não abria mão de manter sob contrato uma orquestra com vários componentes e um maestro.

A localização do motor do automóvel impediu a realização do esquete, mas a história

permite notar o acuro com o padrão estético da sonoridade emitida pela programação da

emissora.

88 O maestro Enrico Simonetti foi, também, pianista e compositor. É autor do Hino do Distrito Federal, da trilha sonora da minissérie Presença de Anita, da TV Globo, dos filmes Veneno (1953), Floradas na Serra (1954), Absolutamente Certo (1957) e Cara de Fogo, todos realizados pela produtora brasileira Vera Cruz.

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Uma das criações que jamais conseguimos realizar – hoje sem graça, devido ao computador, era a utilização do Romi Isetta do Simonetti (depois do Jô Soares). A ideia era o Romi Isetta, ao vivo, entrar no palco do Teatro Cultura Artística, o motorista era o pianista que saía do minúsculo carro e atacaria a abertura do programa. O contrabaixo sairia do carro e atacava o ritmo, o baterista era o seguinte e assim por diante, até a entrada triunfal do maestro Simonetti. Uma orquestra inteirinha saindo de um auto em que mal cabiam dois passageiros! Era fácil abrir uma pranchada no chão do palco. Mas, infelizmente, o motor do miniauto ficava no chão do carro. Essa, nós perdemos (MOYA, 2010, p. 87).

Um dos programas musicais da emissora, portanto, era o Simonetti Show. Comandado

por um maestro, o acuro musical não poderia deixar de ser extremo. José Bonifácio de Oliveira

Sobrinho, o Boni, dirigiu o programa e relata a necessidade de se apresentar, no mesmo

programa, a mesma música, de maneiras diferentes.

É importante notar que as músicas apresentadas tinham um arranjo. Desse modo, a

emissora, além dos quatro trombonistas a serem mencionados, tinha em seu cast de artistas a

presença de um arranjador, figura ausente das emissoras de televisão e até mesmo das produções

de discos no Brasil a partir da década de 1990: “No Simonetti Show, nenhuma música poderia ser

repetida com o mesmo arranjo. Um Lady is a Tramp, cantado pelo convidado, Dick Farney, só

poderia voltar com um quarteto de trombones, por exemplo” (OLIVEIRA SOBRINHO, 2010, p.

135 – grifo do autor).

A programação musical da emissora apresentava, portanto, um programa

humorístico-musical, o Simonetti Show. No entanto, outro programa fazia parte da grade de

programação fixa da TV Excelsior: O Em Bossa Nove, que trazia primordialmente o repertório

dos artistas da Bossa Nova à tela (inclusive os apresentadores faziam parte do movimento

musical nascido na Zona Sul do Rio de Janeiro). O pesquisador/historiador da TV brasileira,

Edgar Ribeiro de Amorim, relata a formatação do programa e salienta a participação frequente de

artistas do porte de Tom Jobim e João Gilberto.

Outra novidade da estação, o programa Musical Em Bossa Nove, intercalava jornalismo e publicidade com o melhor da música popular brasileira, principalmente do gênero bossa-nova, com artistas como João Gilberto, Tom Jobim, Silvinha Teles, Carlos Lyra e outros. O programa tinha o comando da

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dupla Luiz Carlos Miele e Ronaldo Boscoli, que também o apresentavam (AMORIM, 2010, p. 242 – grifo do autor).

Contudo, o Simonetti Show, por sua característica humorística, não era o principal

programa musical no primeiro ano de existência da TV Excelsior, tampouco o Em Bossa Nove,

cujo conteúdo mesclava o Jornalismo e a Publicidade à Música. O principal programa musical da

TV Excelsior era o Brasil 60. Manoel Carlos escrevia e produzia o programa apresentado pela

atriz e cantora Bibi Ferreira. Como já foi notado anteriormente, o acuro com a programação não

apenas se restringia ao campo do Humor ou da Música: “O Brasil 60 era muito simples: câmeras

fixas nas laterais do teatro, que aos domingos abrigava mais de mil espectadores. Bibi Ferreira,

no centro do palco, anunciava as atrações, fazia entrevistas, cantava, representava, com muito

talento para todas essas tarefas” (CARLOS, 2010, p. 112 – grifo do autor).

A apresentadora do programa, Bibi Ferreira, trazia as atrações musicais, que eram

acompanhadas por outra orquestra da emissora, a orquestra do maestro Silvio Mazzuca89. Em

entrevista a Álvaro Moya, para a confecção do livro Glória in Excelsior – ascensão, apogeu e

queda do maior sucesso da televisão brasileira, a atriz menciona, além do fato de a emissora ter

uma (além da orquestra do maestro Enrico Simonetti) orquestra em seu cast, o bom índice de

audiência do programa. Para além das menções, a atriz faz notar que a busca pelo padrão estético

transformava a emissora numa espécie de referência para as concorrentes e para os

patrocinadores, já não mais insipientes à altura; afinal, a Televisão já contava 10 anos de

existência no Brasil.

Silvio Mazzuca! E grandes orquestras! Quem que tinha grandes orquestras na televisão? Ninguém! Só nós! Talvez nós tivéssemos assim... nós éramos... (risos) éramos também um pouquinho de tudo o que imaginávamos..., os patrocinadores adoravam a gente porque dávamos audiência, essas coisas, mas de qualquer maneira, para os outros nós éramos um pouquinho, assim, feito a realeza da televisão. Isso que eu acho que nós éramos (FERREIRA, 2010, p. 103).

89 Silvio Mazzuca foi maestro, pianista, compositor e arranjador de grande projeção no meio musical e televisivo ao longo de seus 84 anos de atividade artística no Brasil.

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Manoel Carlos menciona com propriedade a questão fundamental do aporte de

patrocínio para a realização e, sobretudo, manutenção do programa no ar. O fato de, no princípio,

o programa ser bancado pela própria emissora, revela a disposição de seus proprietários em levar

ao ar um programa musical que apresentasse um padrão estético de excelência: “De início, sem

patrocínio, com as despesas bancadas pela própria emissora, o Brasil 60 logo foi prestigiado pela

Nestlé e, em 1962, pela Renner. Era um programa muito caro para os padrões da época”

(CARLOS, 2010, p. 112 – grifo do autor).

A produção do programa demandava um investimento suficientemente alto, de modo

a dificultar sobremaneira sua realização. Ademais, um fator relacionado ao cuidado com aqueles

que produziam o repertório musical do programa dificultava ainda mais sua execução: a emissora

fazia questão de remunerar generosamente seus artistas convidados (como será dito logo adiante,

no princípio das exibições do programa, nenhum artista era contratado da emissora, à exceção de

Bibi Ferreira, Sílvio Mazzuca e sua orquestra).

Manoel Carlos, que produzia o programa, ao relembrar os mecanismos de produção e

pagamentos de cachês a artistas convidados, menciona um fato que chama a atenção: os artistas

que mais se apresentavam no programa eram Orlando Silva (representante da produção musical

brasileira ligada ao samba dos anos 1930 e 1940) e Dick Farney (um dos principais inspiradores

do movimento musical da Bossa Nova, na década de 1950). Evidencia-se, assim, que a

programação da emissora não era pautada pelo gênero musical mas, sim, pela qualidade musical

do repertório e dos intérpretes cantores que eram levados à tela; afinal, Orlando Silva e Dick

Farney compõem parte do primeiro escalão dos cantores brasileiros de toda a história da música

popular, independentemente dos gêneros musicais por eles interpretados.

Trazíamos artistas de todo o Brasil, inclusive grupos folclóricos com 20, 25 pessoas, o que representava um custo alto com passagens e hospedagens, além dos cachês. Pagávamos bem. Me lembro que o cachê mais alto era o de Orlando Silva, mas com tantas mudanças da moeda, já não saberia dizer em quanto importava. Orlando foi também o artista mais assíduo do programa durante os três anos em que esteve sob minha responsabilidade, seguido de perto pelo Dick Farney (CARLOS, 2010, p. 112).

O padrão estético buscado pelo programa unia gerações de grandes artistas e unia,

também, artistas de diferentes áreas de expressão. Bibi Ferreira, a apresentadora do programa,

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ressalta que exibir o talento dos artistas era o principal objetivo do programa. Fossem artistas da

mesma arte e diferentes gerações: “O João Gilberto confessou que imitava o Orlando Silva, o

João Gilberto conversando com o Orlando Silva diz: ‘Eu imitava você, só que eu não tinha a sua

voz. Mas eu queria cantar que nem você!’ Isso no Brasil 60, quer dizer, eram coisas

inacreditáveis que aconteciam” (FERREIRA, 2010, p. 108), fossem artistas de diferentes artes e

mesma geração: “O Jorge Amado sendo entrevistado e entra... o Dorival! O Dorival! Jorge

Amado falando e entra o Dorival Caymmi com o violão e cantando e aí o Jorge pega, Dorival

pega o Jorge, fica tudo misturado, ficam duas pessoas que são gêmeas no talento!” (FERREIRA,

2010, p. 108). Fundamental era levar ao maior número de pessoas possível a mais rica arte

produzida no Brasil.

No entanto, no programa Brasil 60, a arte comumente trazida à tela era a Música; a

rigor, a música popular brasileira.

A geração de grandes compositores, músicos e intérpretes brasileiros comprometidos

com uma produção musical que primava pelo acuro da concepção poética e por um padrão

estético de extrema qualidade tinha, naquele momento histórico, um veículo midiático que os

abrigava e cujas artes difundia. Qual acontecera no princípio da Era do Rádio, a música brasileira

tinha ao seu lado a mídia brasileira; em verdade, a música brasileira de alto padrão estético-

discursivo tinha ao seu lado ao menos um veículo midiático de alcance massivo, a TV Excelsior.

Esse fato, entre outros, possibilitou a sucessão de uma geração de grandes

compositores, músicos e intérpretes, como ressalta Bibi Ferreira, que assistiu de perto a tal

sucessão de grandes valores artísticos.

A parte musical do programa, do Brasil 60, é que era primordial, nunca existiu nem vai existir coisa semelhante. Foi o fim de uma geração e o começo de outra na música popular brasileira, e a Excelsior teve a sorte de pegar essa transição. A maioria deles já não existe mais e... Pessoas assim de uma importância hoje, como Edu Lobo, como o João Gilberto, o João Gilberto esteve muitas e muitas vezes se apresentando no programa... (FERREIRA, 2010, p. 107).

Entretanto, se a proximidade entre a música brasileira e o veículo midiático era tanto

nítida quanto profícua na programação da TV Excelsior, também o era na programação da TV

Record.

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A programação da TV Record e o embrião dos Festivais de Música Popular Brasileira

Ainda que ocupando um papel de menor protagonismo do que na emissora de Álvaro

Moya, a Música ocupava um espaço bastante bem definido na TV Record, onde ladeava uma

programação mais ampla, que se assemelhava à da TV Tupi, com exceção à produção de

telenovelas, porém com amplo domínio do telejornalismo, de programas humorísticos e dos

nascentes programas de entretenimento – espécie insipientes dos game shows.

No que tange à Música, a emissora de Paulo Machado de Carvalho primordialmente

adaptou a linguagem do Rádio para o veículo que exibia, juntamente com a voz, a imagem do

artista.

O Brasil, na era do Rádio, era o planeta dos rouxinóis. Nos anos 30 do século 20, brilham Chico Alves, Carmen Miranda, Gastão Formenti e tantos outros. Nos anos 50, o veículo novo, a televisão, que transmitia imagens e sons, exigia da produção atenção com a voz dos cantores, mas também com seu visual (AMARAL DE CARVALHO, 2009, p. 139).

Assim como ocorria na TV Excelsior, o acuro com a sonoridade dos programas da

emissora é evidente também na concepção da TV Record. Ao elencar alguns nomes ente os

agraciados com o prêmio Roquete Pinto de Televisão90 de 1956, Antonio Augusto Amaral de

Carvalho, o filho do fundador da emissora, diretor de programação dos primórdios da TV Record,

faz notar que, ao lado das categorias de premiação “Melhor Diretor de TV” (prêmio concedido a 90 Criado em 1950, inicialmente destinado aos destaques das rádio de São Paulo. Em 1952 passou a ser destinada também aos destaques da Televisão. É a mais antiga premiação da televisão brasileira. A primeira entrega do prêmio aos profissionais de televisão ocorreu no dia 16 de dezembro de 1952, sob organização da ACRESP (Associação dos Cronistas Radiofônicos do Estado de São Paulo). Todos os premiados eram ligados à TV Tupi, até então a única emissora de São Paulo. Foram eles: Dionísio Azevedo (Melhor Produtor de TV), Cassiano Gabus Mendes (Melhor Diretor de TV), Lima Duarte (Melhor Ator), Lia de Aguiar (Melhor Atriz), Walter Stuart (Prêmio Especial), Francisco Alves (Prêmio Saudade) e Edgar Roquette-Pinto (Menção Honrosa). Em meados da década de 1950 a entrega do prêmio passou a ser exibida ao vivo pela TV Record e TV Paulista. A premiação teve ao todo 26 edições.

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Nilton Travesso91 naquela edição) ou “Melhor Teleator” (prêmio concedido a Lima Duarte92

naquela edição), havia a premiação para as categorias “Melhor Maestro Orquestrador” (prêmio

concedido a Luis Arruda Paes93 naquela edição), “Melhor Maestro de Orquestra” (prêmio

concedido a Osmar Milani94 naquela edição) e Melhor Produtor de Shows” (prêmio concedido ao

compositor Theo de Barros95 naquela edição) (AMARAL DE CARVALHO, 2009, p. 114).

Nota-se que, assim como a TV Excelsior, a TV Record contava em seu cast de

contratados ao menos uma orquestra e, no mínimo, um par de maestros, um para orquestrar as

músicas que seriam executadas (o maestro orquestrador) e outro para reger a orquestra.

91 Diretor e produtor novelas, Nilton travesso dirigiu também o Teatro Cacilda Becker, importantes programas de televisão (Bate Papo com Silveira Sampaio, La Revuer Chic, com Jô Soares, Show Roquete Pinto, Show do dia 7 e os Festivais da Música Popular Brasileira, na TV Record. Dirigiu, na Rede Globo, o programa Fantástico, as novelas Sinhá Moça, Direito de Amar e criou os programas TV Mulher, Som Brasil e Balão Mágico. Montou o Departamento de Teledramaturgia da TV manchete, onde produziu as novelas Pantanal, Ana Raio e Zé Trovão e Kananga do Japão. Produziu, no SBT, as novelas Éramos Seis, As Pupilas do Senhor Reitor e Sangue do Meu Sangue.

92 Um dos grandes atores brasileiros, Lima Duarte começou no Rádio, como sonoplasta e radioator. Esteve no elenco da primeira telenovela brasileira, Sua Vida Me Pertence, estrelando, a partir de aí, mais de 80 produções para o veículo, além de extensa carreira no Teatro e no Cinema. Premiado no Brasil e no exterior por suas atuações, nas quais destacam-se as personagens Zeca Diabo (O Bem-Amado, de Dias Gomes, 1973), Sinhozinho Malta (Roque Santeiro, de Dias Gomes e Aguinaldo Silva, 1986) e Sassá Mutema, (O Salvador da Pátria, de Lauro César Muniz,1989), entre muitos outros.

93 Considerado um dos grandes arranjadores brasileiros, Luis Arruda Paes foi Instrumentista, arranjador, regente e compositor. Foi maestro de orquestras na TVs Record e Tupi. Atuou como maestro e arranjador em célebres produções discográficas no Brasil, entre as quais destacam-se Me "vo" a morir, de Vilma Bentivegna, a trilha sonora para o filme "O sobrado", de Walter George Durst, o LP solo Brasil - Dia e noite, considerado um acontecimento no fonográfico tanto sob o aspecto artístico como comercial, sendo lançado também na Argentina, no México, nos Estados Unidos e no Japão.

94 Maestro e arranjador, Osmar Milani regeu orquestras nas TVs Tupi, Record e SBT. Gravou diversos discos com os mais variados artistas e marcou época com a gravação do LP Osmar Milani e Sua Orquestra – Bossa Nova das Américas, em 1963).

95 Theo de Barros foi o exímio violonista que figurou em célebres gravações da história da música popular brasileira, em discos de Tom Jobim, Edu Lobo, Chico Buarque, Fagner, entre outros. É o compositor da música da canção vencedora do II Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, Disparada, com letra de Geraldo Vandré.

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Ambos os maestros em funções tão específicas no âmbito da Televisão são oriundos

da concepção radiofônica do complexo de comunicação de Paulo Machado de Carvalho. No

mesmo ano de 1956, o prêmio Roquete Pinto de Rádio agraciou com a estatueta os maestros

Gabriel Migliari96 e Guerra Peixe97, nas categorias de premiação “Melhor Maestro Regente” e

“Melhor Maestro Orquestrador” (AMARAL DE CARVALHO, 2009, p. 114).

Tanto as emissoras de Rádio quanto a de Televisão do grupo Record tinham

orquestras, maestros orquestradores e maestros regentes de vasto repertório (inclusive da música

erudita, universo de onde alguns desses excelentes profissionais provinham), o que evidencia o

cuidado extremo com o padrão estético do elemento musical na programação

Vale a pena ressaltar que mesmo a TV Tupi, que direcionava a maior parte de seus

investimentos em seu núcleo de dramaturgia e na produção das telenovelas, também dispunha de

uma orquestra em seu cast de artistas contratados. Em verdade, no caso da TV Tupi, a referida

orquestra era uma orquestra sinfônica, que acompanhava artistas internacionais em visita ao

Brasil. Na página 65 do livro TV Tupi, a pioneira na América do Sul, de Patricia Alves do Rego

Silva, pode-se ver a foto dos apresentadores Marly Bueno e J. Silvestre na condução do programa

Música e Fantasia, de Abelardo Figueiredo, de 1955, tendo atrás de si os instrumentos de uma

orquestra sinfônica (contrabaixos, violoncelos, instrumentos de sopro, entre outros) (SILVA,

96 Maestro e arranjador, provindo do universo da música erudita, trabalhou como regente na Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo e no Coral do Estado de São Paulo. Atuou como regente de orquestras e coros nas TVs Tupi e Record.

97 Maestro e compositor brasileiro, oriundo do universo da música erudita, mais precisamente da música erudita contemporânea, ferrenho adepto da concepção musical Segunda Escola de Viena, de Arnold Schöenberg, o dodecafonismo. Após o lançamento de sua Música n.º 1 para piano e solo, suas obras seguintes acentuaram a intenção de nacionalizar os 12 sons, como a Sinfonia n.º 1 para pequena orquestra, executada pela BBC de Londres, o 1º quarteto de cordas, as Miniaturas para piano. A peça Trio de Cordas foi um marco na pesquisa da dodecafonia, no sentido de conferir-lhe tons nacionais. Guerra Peixe compôs trilhas para os filmes Terra É sempre Terra e O Canto do Mar, sendo premiado em 1953 como melhor autor de música de cinema. Fez arranjos sinfônicos para músicas de Chico Buarque, Luiz Gonzaga e Tom Jobim. Integrou a Orquestra Sinfônica Nacional da Rádio MEC como violinista e dedicou-se à carreira de professor, dando aulas de composição na Escola de Música Villa-Lobos, e de orquestração e composição, na Universidade Federal de Minas Gerais.

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2004, p.65). A própria apresentadora, em seu artigo O céu era o limite, no mesmo livro, apresenta

parte do formato do programa e relembra o fato de que o programa tinha o patrocínio fixo de uma

grande empresa nacional, mesmo não sendo o principal programa da grade de programação da

empresa.

Na época existiam programas de gala que contavam com o patrocínio do café e açúcar União, que traziam artistas famosos da música internacional para o Brasil. Na apresentação desses shows da televisão estive atuando ao lado de grandes nomes como Abelardo Figueiredo e J. Silvestre (BUENO, 2004, p.46).

Em 1957, antes mesmo da fundação da TV Excelsior, um procedimento de procura de

talentos musicais foi encampado pela TV Record.

Interessada em descobrir e veicular novos nomes da música popular brasileira e

determinada por uma diretriz imposta pela natureza do novo veículo, a emissora procurou

encontrar espaço em sua programação para “um rosto bonito que tivesse muita música para

mostrar” (AMARAL DE CARVALHO, 2009, p. 139).

Na década de 1950, o procedimento preciso de procurar o talento da música no

âmbito da música (em lugar do procedimento inverso, de forjar talentos musicais no âmbito da

mídia, implantado a partir da segunda metade da década de 1980) propiciou o surgimento de uma

espécie de artista cuja consistência musical precedia seu caráter de fenômeno midiático. O

conceito de “grande nome” trazia consigo, primeiramente, o estofo de uma “grande capacidade

artística” para, em seguida, representar a possibilidade de uma grande penetração midiática.

Antes de ir para a Televisão o artista teria demonstrado seu valor no palco, no Rádio, no Disco.

Antonio Augusto Amaral de Carvalho narra o procedimento de procura de um

“grande nome” da Música do ano de 1956, que se transformaria, pelo canal midiático, num

grande nome da cena midiática, da Televisão, no ano seguinte: a cantora e compositora Maysa,

cujo disco de estreia fora um sucesso de público e impressionou positivamente a crítica98.

98 O industrial paulistano Alcebíades Monjardim, pai de Maysa, convidou o maestro Zezinho e Renato Côrte-Real, produtor musical, para passar ouvirem sua filha cantar. Admirado com o talento da moça, Côrte-Real (que mais tarde apresentaria ao Brasil o cantor Roberto Carlos) propôs à cantora a gravação de um disco. Convite para Ouvir Maysa é o primeiro álbum de estúdio gravado por ela, em 1956. traz oito samba-canções, todos compostos por Maysa, com arranjos do maestro Rafael Puglielli, arranjador de

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E, nos anos 50, a Record se lançou à procura de novos nomes, novas vozes, novos rostos. Foi aí que surgiu para o estrelato uma moça bonita, com apenas 19 anos e da alta sociedade paulistana: Maysa Matarazzo [...] ela logo se tornaria uma estrela de primeira grandeza num programa que ela comandava, chamado Convite para ouvir Maysa, exibido às 20h35 na TV Record. (AMARAL DE CARVALHO, 2009, pp. 139-140 – grifo do autor).

Entretanto, mesmo com todo o acuro estético da TV Record, a cena televisiva-

musical alterou-se profundamente com a fundação da TV Excelsior, em 1960.

Como já foi dito, a Música, mais especificamente a música popular brasileira, era a

protagonista da programação da nova emissora. O programa Brasil 60, apresentado por Bibi

Ferreira, no princípio era acompanhado por uma pequena parcela da população que tinha acesso à

programação televisiva; no entanto, fosse por conta de o público fiel ao programa pertencer à

classe dominante da sociedade brasileira, fosse por conta da qualidade musical do programa,

muito rapidamente o Brasil 60 ganhou o aporte monetário de que precisava para implementar sua

produção e, juntamente com o crescimento da emissora, aumentar sua penetração nos lares

brasileiros que dispunham de um aparelho televisor. Em suma, a audiência do programa

aumentava e atraía patrocinadores de peso, como a Nestlé, em 1961, e a Renner, no ano

seguinte99. O Brasil 61 e o Brasil 62 obtiveram grande audiência.

No entanto, seria a partir de 1963 que a TV Excelsior, após uma mudança na direção

da emissora, teria o aporte financeiro necessário para se distanciar largamente das concorrentes

no âmbito da programação musical. Se antes de 1963 as atrações dos programas eram artistas

convidados, a partir de então os grandes astros passaram a frequentar os programas como

contratados fixos da emissora. Como tais, os grandes nomes da música brasileira não podiam se

apresentar em programas produzidos por outras emissoras, como explica o produtor Manoel

Carlos.

grande capacidade (são dele, entre outros, os arranjos de Por causa de você, de Tom Jobim e Dolores Duran e Chove lá fora, de Tito Madi). Em 1998, a gravadora RGE relançou o álbum em CD. Em 2006, a Som Livre lançou um CD da coleção RGE Clássicos contendo este e o segundo álbum da cantora.

99 Ver p. 256.

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Não tínhamos contratados. Eram todos free-lancers. Mais tarde, a partir de 1963, com a entrada de Edson Leite e Alberto Saad na direção da emissora, um festival de dinheiro comprou o passe dos artistas mais populares do Brasil. Esvaziou as outras emissoras e estabeleceu um padrão rígido de qualidade (CARLOS, 2010, p. 112 – grifo do autor).

Desse modo, o Brasil 63 obteve um sucesso ainda maior. No entanto, seguindo o

mesmo procedimento tomado pela concorrente, a TV Record, a emissora sob nova direção

mantinha os programas já consagrados, que apresentavam atrações já conhecidas do grande

público, mas mantinha a busca por talentos musicais que emergiam na efervescente sociedade

brasileira da época.

Em grande medida por conta da ainda insipiente estratégia de programação, da

proximidade com a espécie de programação herdada do Rádio, mas também por conta da

proliferação de grandes compositores de música popular e pela importância fundamental da

Música na vida social brasileira da época, a busca por “grandes nomes” da música que poderiam

se transformar em grandes nomes da mídia televisiva era incessante.

Desse modo, a TV Excelsior ladeava o Brasil 63, programa dedicado aos grandes

nomes da música popular brasileira contratados da emissora, com um novo programa, dedicado a

encontrar novos “grandes nomes da música popular brasileira”.

O programa musical Cancioníssima-63 era exibido aos domingos, no horário nobre,

como faz notar o pesquisador Tobias Arruda Queiroz: “O musical Cancioníssima-63 era

apresentado aos domingos, no horário nobre das 20 horas. O programa, que tinha o objetivo de

apresentar músicas inéditas, apresentava trimestralmente uma competição entre aquelas que se

destacavam no período, sendo que as mais votadas participavam de uma final” (QUEIROZ, 2012,

p. 25).

Estava ali o embrião daqueles que seriam posteriormente chamados de Festivais de

Música Popular. Ainda não tinha a configuração de uma disputa por prêmios, tal como viria

brevemente a ser, mas já se caracterizava ali uma espécie de disputa na qual os grandes

compositores de música popular poderiam apresentar suas obras a um público midiático,

crescente a cada dia, em proporção direta à aquisição de aparelhos televisores nas habitações

brasileiras.

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O historiador Edgar Ribeiro de Amorim relata a intenção da TV Excelsior de

abranger uma veiculação mais extensa dessa espécie de produção midiática que visava a

encontrar novas obras, novos compositores, novos grandes nomes da música popular brasileira.

Surgiu, finalmente, no ano de 1965, a proposta de realização de uma competição musical de

âmbito nacional, exibida pela emissora, da qual poderiam participar compositores de todo o

Brasil: “Desde o programa Cancioníssima-63, a estação vinha se preocupando com a divulgação,

em maior escala de produção, da música nacional. Assim, encarregou seu profissional Solano

Ribeiro de coordenar a ideia de um certame nacional” (AMORIM, 2010, p. 250).

O I Festival de Música Popular Brasileira – TV Excelsior, 1965 Surgia, daquela feita, o I Festival de Música Popular Brasileira, com a transmissão

da final do concurso programada para o mês de abril, desde a cidade do Guarujá, no litoral do

estado de São Paulo, com o patrocínio da Cia. Rhodia do Brasil, que fez uma exigência bastante

profícua: as etapas eliminatórias do festival aconteceriam em diversas cidades brasileiras. A

marca do patrocinador se espalharia Brasil afora e compositores de todos os cantos do país

encontrariam o espaço midiático que permitiria a eles levarem suas obras a um público

suficientemente extenso.

A Cia. Rhodia do Brasil assumiu o patrocínio, mas exigiu que o festival fosse itinerante, ou seja, apresentado em diversas cidades brasileiras e que as finalíssimas fossem realizadas em São Paulo, Petrópolis, Rio de Janeiro e Guarujá (AMORIM, 2010, p. 250).

Após as etapas eliminatórias e as apresentações finais, a canção vencedora foi

Arrastão, de Edu Lobo e Vinicius de Morais, interpretada por Elis Regina, e o segundo lugar

coube a Canção do Amor que Não Vem, de Baden Powell e Vinicius de Moraes, interpretada

por Elizeth Cardoso.

Nota-se, do ponto de vista musical, que nomes como Vinicius de Morais e Elizeth

Cardoso já eram consagrados pela Bossa Nova quando concorreram no Festival, posto o LP

Canção do amor demais, com canções de Tom Jobim e Vinicius de Morais, ter sido gravado por

Elizeth Cardoso em 1958 e o I Festival de Música Popular Brasileira ocorreu no ano de 1965.

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Contudo, Elis Regina era uma cantora com apenas dois anos de carreira e os compositores Edu

Lobo e Baden Powell não haviam surgido para o cenário da música brasileira; ao contrário, foram

lançados justamente por conta de suas exibições no Festival.

Torna-se plenamente plausível a assertiva de Edgar Ribeiro de Amorim, que dá conta

de ser aquele o momento em que a música popular brasileira alcançou seu ponto culminante no

que diz respeito à produtividade de seus compositores. A quantidade de grandes compositores e a

qualidade musical-literária de suas obras tinham o aparato midiático que permitia a mais ampla

exposição e veiculação de uma produção musical de alta qualidade poética, de excelente padrão

estético: “A partir daí, a música popular brasileira encontrou um de seus maiores períodos de

criatividade e de divulgação através dos festivais de música realizados pela Televisão Record e

pela TV Globo, nos próximos anos” (AMORIM, 2010, p. 251).

Um programa dedicado exclusivamente à “música brasileira de alta qualidade”: O Fino da Bossa – TV Record, 1965 – 1967

O sucesso extraordinário do I Festival de Música Popular Brasileira da TV Excelsior

alarmou as emissoras concorrentes. A TV Tupi imediatamente passou a produzir um programa

musical chamado Spotlight Simonal, comandado pelo grande cantor, cuja carreira estava em

franca ascensão. A TV Record, por sua vez, estava às vésperas de produzir aquele que é

considerado por diversos artistas um divisor de águas, o melhor programa musical da época: O

Fino da Bossa.

Paulo Machado de Carvalho criou em sua emissora um programa mensal, no qual

seus artistas contratados apresentavam-se em números cômicos, musicais e dramatúrgicos, como

conta seu filho, Antonio Augusto Amaral de Carvalho, que produzia o programa denominado

Show do dia 7: “Tínhamos tanto orgulho de nosso elenco de sucesso que terminamos por fazer

um programa para reuni-los. Era o Show do dia 7. No dia 7 de cada mês reuníamos toda a nossa

constelação no palco” (AMARAL DE CARVALHO, 2009, p. 145 – grifo do autor).

Excepcionalmente no 1964, a emissora fez coincidir o Show do dia 7 com a

cerimônia de premiação do Prêmio Roquete Pinto. A festa foi embebida da música de um grupo

que gravara um disco instrumental que obteve um sucesso inesperado para a época, o Zimbo

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Trio, vencedor do Roquete Pinto na categoria “Melhor grupo instrumental”, como conta Amilton

Godoy, o extraordinário pianista do grupo: “No ano de 1964, com aquele sucesso do disco, o

Zimbo Trio ficou numa evidência muito grande. Ganhamos o prêmio Roquete Pinto. O prêmio

foi dado para o Zimbo Trio, como melhor grupo instrumental, o Simonal venceu como melhor

cantor, a Elis Regina como melhor cantora e o Jair Rodrigues como revelação” (GODOY, 2013).

A lógica encampada desde sempre pela emissora (estar alerta, em busca do

surgimento de um grande artista da música, que poderia se transformar num fenômeno midiático)

manteve-se naquele dia. Após as apresentações do Show do dia 7, a direção da TV Record

concebeu a ideia de um programa que abrigasse os talentos recém premiados. Uma pequena

dificuldade, porém, alterou minimamente os planos da emissora. Essa dificuldade indica o

momento midiático-musical da época, notadamente pela competição dos veículos de

comunicação de massa por artistas talentosos: o premiado da noite como “melhor cantor” não era

contratado da TV Record; ao contrário, já apresentava um programa musical na TV Tupi: Quanto o show terminou terminou foi um sucesso, todo mundo encantado com a música feita ali. O Paulo Machado de Carvalho Filho, que era o diretor da estação, foi até os bastidores, chamou a Elis, o Simonal, o Zimbo, e falou: “quero fazer um programa musical tendo vocês como base”. O Simonal não pode aceitar porque tinha um contrato com a TV Tupi, ele já tinha um programa dele chamado “Spotlight Simonal”. Então o Jair Rodrigues, a revelação do ano, foi convidado. (GODOY, 2013).

O momento musical-midiático é enaltecido por Amilton Godoy, que faz questão de

ressaltar o padrão estético da música apresentada no programa O Fino da Bossa, do qual

participou durante todos os três anos de existência: “Que maravilha você poder mostrar esse tipo

de música na televisão num programa semanal” (GODOY, 2013).

Se o momento musical-midiático indicava uma alvissareira safra de grandes

compositores e grandes obras levadas ao grande público pela Televisão, o momento midiático-

musical indicava a grande concorrência que se exacerbaria de aí em diante entre as emissoras de

Televisão, sobretudo entre a TV Record e a TV Excelsior, que competiam pela vanguarda do

mercado musical. Como aponta o historiador Edgard Ribeiro de Amorim, a TV Record, que no

princípio da década de 1960 perdia a disputa pela audiência do público de música para a TV

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Excelsior, tratou de produzir três programas distintos, direcionados para três distintas faixas de

público.

Em São Paulo, a TV Record Canal 7, começou a investir em programas musicais lançando O Fino da Bossa, com o comando de Elis Regina, Bossaudade, sob o comando de Elizeth Cardoso e Jovem Guarda, comandado por Roberto Carlos. Os três programas logo conquistaram o público. Mas o fato mais importante, contudo, foi a política de união da TV Record e da TV Rio que, para fazer frente à Excelsior, esqueceram velhas diferenças e iniciaram um intercâmbio, entre as duas cidades, de suas melhores atrações (AMORIM, 2010, p. 258 – grifo do autor).

Antonio Augusto Amaral de Carvalho, na qualidade de produtor de programação da

emissora à época, reafirma a postura da TV Record no que diz respeito à investida do Canal 7

numa programação musical de alta qualidade: “Elis [Regina] e Jair [Rodrigues] tinham feito

muito sucesso num show para estudantes chamado Dois na bossa, produzido pelo disc-jóckey

Walter Silva, o Picapau. Na mesma programação, que continha um espetáculo – Bossaudade –

conduzido por Elizeth Cardoso e Ciro Monteiro, entrou o de Elis e Jair” (AMARAL DE

CARVALHO, 2009, p. 154 – grifo do autor).

O poderio econômico da TV Record em comparação com o da TV Excelsior

gradativamente minou as chances da concorrente. Aquela que tinha sido a pioneira do programa

musical de padrão estético elevado assistia, pouco a pouco, à sua hegemonia decair. Manoel

Carlos, que escrevia e produzia os musicais da TV Excelsior foi contratado pela TV Record no

ano de 1965 e levou para a emissora todo o know how adquirido anteriormente.

E vem de lá também o embrião de tudo que eu realizei na TV Record, a partir de 1965, como O Fino da Bossa, Bossaudade, Corte-Rayol Show, Família Trapo, Esta Noite se Improvisa, etc. Foi na Excelsior desse tempo heroico que nasceram o Zimbo Trio, Jair Rodrigues, Elis Regina, para citar apenas três exemplos. (CARLOS, 2010, p. 113).

A arrancada da TV Record rumo à supremacia na disputa pela audiência do púbico

consumidor de música da época ficou evidente quando da realização concomitante do Festival

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Nacional de Música Popular Brasileira, pela TV Excelsior, e do II Festival de Música Popular

Brasileira, ambos no ano de 1966, como ilustra o Anexo 8 do presente trabalho100.

O II Festival de Música Popular Brasileira – TV Record, 1966. O Festival Nacional de Música Popular Brasileira trazia, já no título, a

intencionalidade da TV Excelsior quando da realização do I Festival de Música Popular

Brasileira no ano anterior: fazer um festival de música que abrangesse o Brasil todo, tanto do

ponto de vista da oportunidade a compositores de todos os cantos do país, quanto do ponto de

vista da veiculação do evento, passando pela estruturação das fases eliminatórias espalhadas por

diversas cidades.

O II Festival de Música Popular Brasileira não demonstrava a intenção

nacionalizante no que diz respeito ao local das eliminatórias e das finais (foram todas feitas em

São Paulo), tampouco necessitava de tal artifício, posto a cobertura da emissora ser à altura muito

mais ampla do que a da concorrente, de modo a abranger uma parte muito maior do território

nacional.

A final do Festival Nacional de Música Popular Brasileira, da TV Excelsior, ocorreu

em junho de 1966 e consagrou como vencedora a canção Porta-Estandarte, de Geraldo

Vandré e Fernando Lona, interpreteada por Tuca e Airto Moreira, e como segunda colocada a

canção pouco expressiva Inaê, de Vera Brasil e Maricene Costa, interpreteada por Nilson.

A final do II Festival de Música Popular Brasileira foi realizada nos meses de

setembro e outubro, no Teatro Record, em São Paulo, e o prêmio Viola de Ouro foi dividido entre

as canções A Banda, de Chico Buarque, interpreteada pelo próprio autor e por Nara Leão, e

Disparada, de Théo de Barros e Geraldo Vandré, interpreteada por Jair Rodrigues, Trio Maraiá e

Trio Novo; o segundo lugar coube a De Amor ou Paz, de Luís Carlos Paraná e Adauto Santos,

interpretada por Elza Soares.

Edgar Ribeiro de Amorim traça, à luz de um enfoque mercadológico, a comparação

entre os dois festivais realizados no mesmo ano por diferentes emissoras:

100 Ver Anexo 8, p. 509.

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Em maio e junho, a emissora realizou o II Festival Nacional de Música Popular, com a finalíssima em São Paulo, que premiou, com o troféu Berimbau de Ouro, os compositores: Geraldo Vandré e Fernando Lona, pela música Porta-Estandarte. O festival, porém, não teve o sucesso do festival realizado pela TV Record, em setembro, em que fizeram enorme sucesso as músicas Disparada, de Teófilo de Barros Neto e Geraldo Vandré e A Banda, de Chico Buarque de Holanda (AMORIM, 2010, p. 265).

Entretanto, é preciso ressaltar que, além da maior penetração do veículo de

comunicação no território nacional (da TV Record), do período de realização dos festivais (as

finais do Festival da TV Record foram realizadas posteriormente), da infraestrutura de uma

emissora em relação a outra, também do ponto de vista musical o II Festival de Música Popular

Brasileira, realizado pela TV Record apresentou um par de músicas vencedoras de qualidade

poética estrutural mais pronunciada do que o Festival Nacional de Música Popular Brasileira,

realizado pela TV Excelsior. A Banda e Disparada são peças musicais de alto padrão estético,

Chico Buarque viria a se consolidar como um dos maiores compositores da história da música

popular brasileira, e Jair Rodrigues era o cantor mais popular da época, justamente por conta de

seu programa na mesma TV Record, O Fino da Bossa, que apresentava ao lado de Elis Regina.

Se é fato que Porta Estandarte não deixa de ter valor poético estrutural, também são fatos a

maior qualidade interpretativa de Elza Soares em relação a Nilson e a maior relevância dos

compositores Luis Carlos Paraná e Adauto Santos, em relação a Tuca e Airto Moreira no cenário

da música popular brasileira que se configuraria a partir de aí. Enfim, também do ponto de vista

musical, o Festival da TV Record apresentou maior qualidade do que o Festival da TV Excelsior

de 1966.

O programa televisivo sazonal, o Festival, e o programa televisivo pertencente à grade de programação – a música brasileira de apurado padrão estético e seu espaço midiático

A música de apurado padrão estético ganhava assim mais um importante espaço

midiático. Em épocas específicas do ano, os Festivais de Música Popular dominavam a cena da

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mídia televisiva; ao longo do ano, os programas musicais tinham seu espaço costumeiro nas

grades fixas de programação das emissoras, como ilustra o Anexo 9 do presente trabalho101.

O ciclo de exposição midiática da música brasileira de alto padrão estético permitia o

surgimento de grandes obras musicais, compositores, cantores, músicos brasileiros, todos eles

empenhados em criar uma música popular brasileira cuja característica principal era o acuro no

uso dos recursos de linguagem, o extremo cuidado na estruturação de harmonias, melodias,

ritmos e letras, a composição de um discurso literário-musical cujo acuro poético gerava um

padrão estético de excelência daquela espécie de repertório. Tal ciclo midiático-musical pautado

pela qualidade estrutural das canções é descrito por Amilton Godoy, que escolhe a palavra

“qualidade” como mote:

Quando a Bossa Nova chegou, ela impulsionou a qualidade; culminou com o programa “O Fino da Bossa. Esse programa teve uma grande coisa que era a qualidade. Se você tivesse qualidade participava; se não tivesse, pode esquecer. Aquilo não era coisa para quem não tinha atingido aquele padrão. O padrão de qualidade era muito alto (GODOY, 2013).

Ao elencar parte dos convidados que participaram do programa O Fino da Bossa,

fossem ele da geração da Bossa Nova (Tom Jobim, Vinicius de Morais), fosse da geração que

antecedeu a Bossa Nova e trouxe o universo do nordeste brasileiro para música popular dos

grandes centro urbanos (Dorival Caymmi), fosse da geração do samba das décadas de 1930 e

1940 (Ataulfo Alves), o pianista refere-se a compositores que primavam pela concepção de obras

de alto padrão estético, que revelavam a extrema capacidade composicional do artista brasileiro, a

qualidade musical brasileira que fez o Mundo admirar essa forma de expressão artística.

O programa recebia gente como Antônio Carlos Jobim, Vinicius de Moraes, Agostinho dos Santos, Maysa... olha os convidados nossos! Caymmi, Ataulfo Alves, Carlos Lira, a turma toda da Bossa Nova que fazia coisa de qualidade ia lá e era enaltecido pelo seu trabalho. A cada semana rolava um baita de um som e O Fino da Bossa começou a mostrar para o Brasil o que o Brasil tinha de melhor. Ponto final. Então, não podia dar errado. (GODOY, 2013).

101 Os anexos 9, 10, 11, 12, 13 e 14 são de caráter meramente ilustrativo. Ver a partir da p. 513.

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O programa O Fino da Bossa, apresentado pela melhor cantora do país, que era

acompanhada pelo melhor grupo instrumental do país, em fato, não podia deixar de ser o

ambiente ideal para a proliferação de uma grande música brasileira. O grau de exigência dos

artistas que comandavam o programa era muito alto, o que provocava naqueles que aspiravam a

participar do programa a necessidade pela busca de recursos de linguagem que lhes aprimorasse o

discurso musical.

Amilton Godoy relata que, ao longo dos três anos de existência do programa, que era

exibido às 21 horas, acontecia outro programa, às 19 horas, que não era exibido pela emissora.

Este era um programa no qual compositores novos, aspirantes a compositores, compositores

ainda não conhecidos do grande público tampouco das pessoas do meio musical, apresentavam-se

e, caso seus trabalhos tivessem real consistência estrutural, seriam alçados ao patamar de serem

convidados a participarem do programa principal numa das semanas seguintes.

E o programa nesses três anos revelou todo mundo. O nível era tão forte que o Taiguara, por exemplo, participava de um programa chamado “Primeira audição”, que não era televisionado. O programa começava às 19 horas, com gente nova de talento (mas era de talento!) que depois passariam para o “O Fino da Bossa”. Toquinho, por exemplo, Chico Buarque, passaram pelo “Primeira Audição” e só foram fazer sucesso depois. Gilberto Gil também, com a pastinha dele procurando uma chance para cantar... o cara tinha de chegar e mostrar serviço; se não, não cantava. (GODOY, 2013).

O compositor de música popular brasileira que dispunha de recursos discursivos, que

conhecia os elementos estruturantes da linguagem musical, que se ocupava na busca por um

padrão estético, tinha assim um espaço midiático que permitia a ele a exposição de seu trabalho,

de sua arte: “Ninguém dá talento para ninguém, mas a oportunidade, o espaço, existia” (GODOY,

2013).

O cantor e compositor Miltinho, do grupo vocal MPB-4, relembra a participação do

grupo no Primeira Audição: “A gente veio lá do Rio de Janeiro para cantar no programa que era

feito antes de O Fino da Bossa, às 19 horas; a gente não tinha nem esperança de cantar no

programa de verdade, mesmo, às 21 horas. Ali tinha muita gente boa, fazendo uma música de

muita qualidade” (MILTINHO, 2013). Em consonância com Amilton Godoy, Miltinho define

com precisão o momento midiático-musical brasileiro: “O que aconteceu ali não acontece com

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frequência: era um momento em que estava nascendo uma geração de grandes compositores e um

ambiente midiático que queria expor esses grandes artistas. Isso beneficiou muita gente boa”

(MILTINHO, 2013).

Tal benefício, do qual desfrutavam os compositores da música brasileira, gerava ao

menos dois outros efeitos, ambos positivos: o espaço de exposição midiática inspirava uma nova

geração de grandes compositores, que partia em busca de uma linguagem músico-literária de alto

valor poético, de reconhecido padrão estético e o ouvinte do veículo midiático tomava contato

com uma produção de música brasileira de alta qualidade discursiva, de alto padrão estético. Em

certa medida, a música brasileira que era exposta nas programações da mídia televisiva

aculturava o ouvinte brasileiro que tinha acesso ao aparato midiático, a um aparelho de televisão.

Ainda para além desse público, a música brasileira produzida à época e veiculada

pela mídia televisiva chegava a um público ouvinte que não tinha acesso ao aparato midiático.

Esse fenômeno ocorria por conta da midiatização da música, que ocupava

primeiramente a Televisão para, em seguida, ser executada pelo Rádio (veículo mais acessível ao

grande público que ainda não dispunha de aparelho televisor), ser gravada em disco, ser

executada em shows; afora isso, é preciso considerar a instância das mediações culturais da

comunicação, na qual ouvintes-espectadores mediavam em seu convívio social as mensagens

musicais expostas nas canções veiculadas primeiramente pela mídia televisiva.

Um fato demonstra que tais mediações sociais circulavam uma concepção de franca

aprovação, aceitação e apreensão estética daquela espécie de música popular veiculada pela mídia

televisiva, ao menos por parte da população da cidade de São Paulo. As gravações do programa

O Fino da Bossa levavam um público extraordinário ao Teatro, como relata Antonio Augusto

Amaral de Carvalho: “O teatro vivia abarrotado de gente, que pagava entrada para vê-os. Eram

feitas reservas para semanas adiante” (AMARAL DE CARVALHO, 2009, p. 154 – grifo do

autor).

Os grandes compositores brasileiros das gerações anteriores ao surgimento da

televisão, produtores de um repertório cuja estruturação da linguagem musical propiciou um

discurso musical de alta qualidade poética, de reconhecido padrão estético, eram re-veiculados

pela mídia televisiva, em interpretações sofisticadas, com arranjos elaborados: “Nós fomos

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beneficiados, na verdade, pelo material todo que nos foi legado por pessoas que têm a qualidade

reconhecida” (GODOY, 2013).

Também esse fato fomentou o surgimento de uma nova geração de grandes

compositores que surgiram naquela época, a década de 1960 do século XX, e permanecem até

esta primeira metade da segunda década do século XXI como parte significativa do estofo de

grandes compositores da história da música popular no Brasil: “O Brasil tem uma plêiade de

compositores até hoje, mas naquela fase do processo de renovação da música, foram os

compositores brasileiros que colocaram a gente nessa dimensão” (GODOY, 2013).

O contexto sócio-midiático-musical anterior ao “Festival da Virada” – A mídia “musicalizada”.

Nesse contexto sócio-midiático-musical do meado da década de 1960 do século XXI,

também um aparato de divulgação, inúmeras vezes menos abrangente do que a Televisão mas

bastante eficaz no âmbito restrito dos universitários brasileiros, contribuía para a fomentação da

produção de uma espécie de música que aspirava a chegar ao veículo midiático que, em certa

medida, a inspirava: os shows de artistas aspirantes, pertencentes ao contexto universitário; os

festivais universitários; os jornais, panfletos, peças de propaganda que circulavam dentro do

ambiente universitário; todos esses elementos de divulgação da música produzida no ambiente de

parte da Universidade brasileira pulsavam naquele momento social no qual grande parte dessa

espécie de produção musical era direcionada a contestar o regime político de exceção no qual

aqueles estudantes (e o todo da sociedade brasileira) viviam. Parte da produção musical provinda

desse ambiente universitário era pautada pela elaboração de uma música popular de pronunciado

acuro discursivo.

A pesquisadora Fabiana Parra de Lazzari faz notar o fato de que parte da geração de

compositores que surgia por essa época provinha do ambiente universitário; uns naturalmente

mais engajados na construção de um repertório musical direcionado a embater frontalmente o

sistema político vigente do que outros, porém todos produzindo uma música popular em sintonia

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com as aspirações estéticas inspiradas por uma espécie de produção musical que tinha um amplo

espaço em algumas das grades de programação da mídia televisiva brasileira.

Alguns dos representantes mais proeminentes da cena musical eram ou haviam sido universitários – Chico Buarque cursou Arquitetura na Universidade de São Paulo até ter de abandoná-la por conta de sua carreira; Edu Lobo cursara a faculdade de Direito; do grupo MPB-4, apenas Aquiles não cursava faculdade – era jovem demais para isso –: Magro e Miltinho cursavam Engenharia e Ruy era advogado recém-formado; Geraldo Vandré também era advogado recém-formado pela Universidade do Estado da Guanabara (DE LAZZARI, 2011, p. 103).

Aquiles Rique Reis, o único dos cantores do grupo vocal MPB-4 que não fazia curso

superior no ano de formação do grupo, 1965, relata a efervescência musical do ambiente da

universidade brasileira do período: “eu ainda não estava na faculdade, mas frequentava os

festivais do CPC, os shows promovidos pelo CPC de Niterói, minha cidade Natal. Era um

movimento de todo o Brasil, não só das cidades grandes. Onde tivesse uma faculdade, tinha um

CPC e aquela ebulição cultural” (REIS, 2013).

Em verdade, o citado CPC da faculdade de Niterói ao qual refere-se o cantor era uma

espécie de entidade estudantil muito frequentemente fundada pelos estudantes de diversas

faculdades e universidades brasileiras à altura, que intentavam reproduzir o primeiro Centro

Popular de Cultura, criado em 1961, na cidade do Rio de Janeiro102.

A mídia televisiva, de amplo alcance, veiculava em parte de sua programação uma

produção musical comprometida com a busca pelo requinte do discurso; outras mídias, de menor

alcance, veiculavam a mesma espécie de música. A efervescência musical era alimentada pela

exposição midiática e, por conseguinte, estimulavam o surgimento de grandes compositores e de

uma geração de ouvintes preparados para apreender uma mensagem musical qualificada

esteticamente. O interesse da mídia pela música popular brasileira comprometida com um padrão

102 Associado à UNE (União Nacional dos Estudantes), o CPC foi um organização criada por um grupo de intelectuais capitaneados pelo dramaturgo Oduvaldo Viana Filho e pelo cineasta Leon Hirszman, com o intuito-primeiro de encampar a produção de uma “arte popular revolucionária” brasileira, expressa no Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura, redigido pelo sociólogo Carlos Estevam Martins, seu primeiro diretor, e publicado em março de 1962.

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estético de excelência gerava um ciclo no qual a boa música popular brasileira era produzida para

ser veiculada pela grande mídia; esta, ao expor os grandes artistas e suas grandes obras,

conquistava a audiência de um público maior e esteticamente melhor preparado. Por sua vez, o

telespectador que assistia à programação musical na mídia televisiva qualificava sua capacidade

de apreensão e dedicava sua preciosa audiência aos programas que veiculavam a música popular

brasileira comprometida com um padrão estético de excelência.

Assim, após o sucesso do II Festival de Música Popular Brasileira, a TV Record

direcionou esforços e investimentos para sua programação musical. Convencidos de que naquele

momento a Música era um produto tanto de grande qualidade poético-estética quanto de grande

apelo de consumo, os executivos da emissora, capitaneados por Paulo Machado de Carvalho

Filho, contrataram os grandes nomes da nascente geração de músicos, compositores e intérpretes

da música brasileira.

Aproveitando o privilegiado cast de artistas contratados, a TV Record passou a

produzir diversos programas com conteúdo estritamente musical e, na esteira do sucesso que a

programação musical trazia à emissora, programas de outros gêneros também foram lançados.

Antonio Augusto Amaral de Carvalho produziu os programas com conteúdo musical

da emissora e, ao citar um entre outros, faz notar que os programas possibilitavam a exposição de

grandes obras musicais compostas por grandes nomes da música popular brasileira de então (e de

sempre, pois apresentavam compositores, intérpretes vocais, músicos de gerações anteriores e

abriam espaço para os artistas que despontavam para o cenário musical brasileiro a partir de ali)

para o grande público.

A mídia era entrelaçada com a música popular brasileira ocupada com a estruturação

de um discurso pautado pelo acuro no uso dos recursos de linguagem. A mídia era

“musicalizada”.

A geração de Chico Buarque de Hollanda, Milton Nascimento, Caetano Veloso e Gilberto Gil, entre tantos outros gênios da música brasileira, foi parida e criada nos musicais e também num programa de enorme sucesso que a Equipe A da TV Record produziu, Essa noite se improvisa. (AMARAL DE CARVALHO, 2009, p. 160 – grifo do autor).

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A Música, a rigor a música popular brasileira, trazia de roldão o crescimento de toda

a faixa de programação da TV Record. Ancorada na proliferação de grandes artistas ligados à

música popular brasileira e de um vasto repertório musical de boa qualidade poética e de

excelente padrão estético, a emissora viveu uma fase de crescimento de receita e de audiência,

como relata o pesquisador Edgard Ribeiro de Amorim. Em 1966 (numa ascensão musical iniciada no ano anterior), a TV Record Canal 7 contratou todos os grandes valores da música brasileira, lançando programas para todos os gostos. Com a audiência conquistada nessa explosão musical, a emissora lançou também nova programação humorística e de variedades, com os grandes cartazes do gênero (AMORIM, 2010, p. 258).

A principal concorrente da TV Record no campo da música popular brasileira, a TV

Excelsior, no mesmo ano de 1966, tentava encontrar vias para retomar o comando das ações

nessa faixa de programação.

Uma alternativa tentada pela emissora foi produzir, no Rio de Janeiro, um programa

nos moldes de O Fino da Bossa, também apresentado pela cantora Elis Regina, a estrela do

programa. A cantora, por conta dos altos valores, ainda não tinha sido contratada em definitivo

pela TV Record. O programa da emissora carioca, por diversas vezes, era apresentado também

por Jair Rodrigues, contratado da TV Record, mas que atuava como artista convidado.

Em verdade, apesar de o programa ter sido exibido por pouco tempo, obteve o mesmo

sucesso que o programa produzido em São Paulo pela emissora concorrente alcançava, o que

evidencia a capacidade de o público televisivo da época apreender a produção de uma música

caracterizada pela sofisticação no uso dos recursos de linguagem e a conduta de parte da mídia

televisiva em investir esforços e finanças na produção de programas de conteúdo musical. O

telespectador, o polo da estética, também se mostrava “musicalizado”.

Em agosto, a cantora Elis Regina iniciou um programa musical na Excelsior-Rio, semelhante ao programa O Fino da Bossa, que fazia na TV Record. Elis apresentava-se, no Teatro Astória, às quintas-feiras, 20h, muitas vezes ao lado do cantor Jair Rodrigues, repetindo o sucesso que a dupla alcançava na capital paulista (AMORIM, 2010, p. 265 – grifo do autor).

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No entanto, a tentativa de reprodução de uma espécie de O Fino da Bossa na TV

Excelsior do Rio de Janeiro e a manutenção do sucesso do programa foi frustrada por uma ação

incisiva da TV Record, que contratou a grande estrela do programa: “A Record consegue

contratar a Elis Regina por um preço que ninguém acreditou que seria possível” (HOMEM DE

MELLO, 2013).

A contratação de Elis Regina transformou a TV Record na referência midiática

televisa no que tange à veiculação da música popular brasileira de alto padrão estético: “A

Record se transforma na principal emissora onde a música popular brasileira podia ser ouvida; ela

tinha Roberto Carlos, Elis Regina, Jair Rodrigues, todos os grandes cantores na mão e são esses

cantores que vão cantar as músicas do II Festival da Música Popular Brasileira” (HOMEM DE

MELLO, 2013).

A estratégia da TV Excelsior de realizar um programa nos moldes de O Fino da

Bossa, no Rio de Janeiro, foi evitada pela concorrente, cujos investimentos colocavam-na numa

posição de destaque entre as emissoras de televisão que tinham a música popular brasileira como

um de seus trunfos de produção e audiência.

No entanto, a TV Excelsior não abandonou a luta por manter-se como a referência na

produção de programas de conteúdo musical e, logo em seguida à contratação de Elis Regina pela

TV Record, lançou dois programas que figurariam em sua grade fixa de programação, ambos

voltados ao resgate dos grandes compositores e das grandes obras da música popular brasileira do

passado e à veiculação dos grandes compositores e das grandes obras da música popular

brasileira daquela época: “Ainda em agosto, foi lançado o programa Academia Brasileira de

Música Popular com apresentação de Kalil Filho e Oliveira Neto e produção de Alfredo Borba.

Outro programa lançado por Alfredo Borba foi Esta é a Nossa Música, que tinha a apresentação

de Branca Ribeiro” (AMORIM, 2010, p. 265).

Os programas produzidos por Alfredo Borba não obtiveram o sucesso esperado, pois

enfrentaram a concorrência do II Festival da Música Popular Brasileira, cujas finais foram

realizadas nos meses de setembro e outubro, imediatamente subsequentes ao lançamento dos

programas. O Festival da TV Record não deixou espaço para uma disputa pela audiência: “Essa

disputa se assemelhava a uma final de Copa do Mundo e levou o Festival aos píncaros de

audiência. O Brasil inteiro estava assistindo àquela transmissão” (HOMEM DE MELLO, 2013).

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Além do II Festival da Música Popular Brasileira, outro festival transmitido pela

mídia televisiva teve as finais no mês de outubro de 1966: o I Festival Internacional da Canção,

realizado pela TV Rio, parceira comercial da TV Record103.

Com menor visibilidade, o Festival realizado pela TV Rio apresentou ao cenário

musical brasileiro o filho do grande compositor Dorival Caymmi, Dori Caymmi, vencedor do I

Festival Internacional da Canção, com a canção Saveiros, feita em parceria com Nelson Motta,

interpretada por sua irmã, a cantora Nana Caymmi. O segundo lugar coube à canção O Cavaleiro,

de Tuca e Geraldo Vandré, interpretada por Tuca, e em terceiro lugar ficou a canção Dia das

Rosas, de Luís Bonfá e Maria Helena Toledo, interpretada pela cantora Maysa.

São notáveis um par de fatos: mesmo num Festival de menores proporções do que o

realizado pela TV Record, a canção vencedora apresenta um padrão estético extraordinário,

justamente por conta da alta qualidade poética empregada na estruturação do discurso literário-

musical; a geração de novos talentos da música popular brasileira que participou do Festival

(Dory Caymmi, Geraldo Vandré, Nelson Motta, Nana Caymmi) convivia na mesma disputa com

um ícone da geração anterior, provinda da Bossa Nova (o violonista e compositor Luís Bonfá,

autor de Manhã de Carnaval, música tema do musical Orfeu da Conceição, já mencionado neste

trabalho104).

Apesar das tentativas mal sucedidas, a TV Excelsior não desistiu do produto

“programa com conteúdo musical”. Logo após as finais do II Festival da Música Popular

Brasileira, realizado pela TV Record, e do I Festival Internacional da Canção, realizado pela TV

Rio, a emissora lançou um novo programa, com a participação de grandes nomes da música

popular brasileira que despontavam àquela altura. A emissora apostava insistentemente tanto na

103 A TV Rio, entre 1955 e 1977, tinha programação própria, mas compartilhava produções com a TV Record, de São Paulo, principalmente por conta de pertencer a João Batista do Amaral, o "Pipa", cunhado de Paulo Machado de Carvalho. O complexo comunicativo formado por tal associação era chamado de Emissoras Unidas. Com programação voltada primordialmente para a produção de programas humorísticos como O Riso é o Limite, Teatro Psicodélico e Chico Anysio Show, a emissora realizou somente o I FIC, em 1996. A partir do ano seguinte, até o ano de 1972, o Festival Internacional da Canção foi exibido pela TV Globo.

104 Ver p. 242.

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geração de grandes músicos, compositores e intérpretes cantores que ali surgia, quanto na

penetração sócio-midiática que os programas de conteúdo musical demonstravam ter.

Os altos índices de audiência que o produto midiático angariava e a intensidade das

mediações sociais que tais produtos geravam, estimulavam todos investimentos da emissora

nesse formato de programa.

Pelo final do ano, a Excelsior fez uma grande investida nos ídolos da música popular da época, criando o programa Ensaio Geral, que contava com a participação de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Maria Bethânia, Sergio Ricardo, Nana Caymmi, Francis Hime, Ciro Monteiro, Tamba Trio, Luizinho Eça e outros. O programa ia ao ar às terças-feiras, às 21h30. (AMORIM, 2010, p. 265).

Ao longo do ano de 1967, o programa O Fino da Bossa continuou a ser o programa

de conteúdo estritamente musical com maior audiência da TV Record. Aquele seria o último ano

de exibição do programa, que concretizava uma aspiração componente da intenção basilar da

realização do I Festival da Música Popular Brasileira, realizado pela emissora concorrente, a TV

Excelsior: atingir um alcance nacional da produção musical brasileira caracterizada pelo alto

padrão estético.

O compositor Raimundo Fagner, que passou a infância no estado do Ceará, distante

das sedes das emissoras de televisão (tanto de TV Excelsior quanto da TV Record), no sudeste

brasileiro, relata a espécie de repertório que chegava à cidade de Fortaleza, no Ceará, pela mídia

televisiva, ressaltando o protagonismo das principais estrelas do programa O Fino da Bossa: “A

gente ouvia todo o tipo de música: Jackson do Pandeiro, João do Vale e naturalmente Elis

[Regina] e Jair [Rodrigues], que fizeram muito sucesso” (FAGNER, 2013) e também faz notar

que a produção e a distribuição discográfica, apesar de menos pujante do que no Rio de Janeiro e

em São Paulo, influenciava o menino que viria a se tornar o compositor: “Eu escutava as músicas

todas. A Nara [Leão] era meu ídolo, por causa dos chorinhos e dos discos dela. Tinham aqueles

discos “Os 14 mais”, que era o que eu mais escutava, porque era o que chegava para a gente”

(FAGNER, 2013). Ademais, o compositor faz questão de ratificar um componente da música

brasileira produzida por compositores, músicos, intérpretes e reproduzida midiaticamente à

altura: “Era uma música muito qualificada” (FAGNER, 2013).

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O pianista Amilton Godoy traça com precisão a linha que une o programa O Fino da

Bossa aos Festivais realizados pelas emissoras de Televisão: “Os Festivais nada mais foram do

que o resultado de um programa desse nível” (GODOY, 2013) e faz questão de ressaltar a

qualidade estrutural poética e o alto padrão estético das canções apresentadas nos Festivais: “e

cada festival daquele... a qualidade que tinha...” (GODOY, 2013).

O compositor Ivan Lins, representante da geração que sucedeu àquela surgida nos

Festivais de Música Popular Brasileira da segunda metade da década de 1960, argumenta de

modo profundo e abrangente a questão de uma música popular brasileira de extrema qualidade

estrutural poética e alto padrão estético que habitava a cena midiática da época; mais do que isso,

que protagonizava a cena midiática da época. Como fora uma característica daquele tempo social,

o público consumidor de música, por vezes menos privilegiado financeiramente, ocupando uma

faixa mediana na estrutura econômico-social brasileira, tinha dificuldades para ascender sócio-

monetariamente, por isso almejaria ascender culturalmente; a música popular brasileira, exibida

pelo aparato midiático da Televisão, poderia ser um dos elementos de um enriquecimento cultural

que poderia prescindir de um enriquecimento monetário.

A música de qualidade é um belo produto de consumo para quem quer ter status cultural: “Não tenho dinheiro, moro no subúrbio, mas quero ter em casa um quadro de Picasso”. Então os espectadores procuravam na música brasileira quem fazia a mais sofisticada, mas que chegasse bem próximo deles, pela Televisão, um veículo que naturalmente aproxima o bem cultural de quem assiste à programação. (LINS, 2013)

O III Festival de Música Popular Brasileira – TV Record, 1967 No mês de outubro do ano de 1967, tanto próximo do final do ano quanto da

produção e das exibições do programa O Fino da Bossa, dois Festivais de música popular

brasileira foram realizados: o II Festival Internacional da Canção, pela TV Globo, e o III

Festival de Música Popular Brasileira, na TV Record – a TV Excelsior não realizou nenhum

Festival naquele ano.

O II Festival Internacional da Canção, realizado pela primeira vez pela TV Globo,

no Rio de Janeiro, mesmo com um corpo de jurados no qual figuravam o compositor Henri

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Mancini, o presidente do júri, e o arranjador Quincy Jones, teve menor participação dos grandes

compositores brasileiros da época, que direcionaram suas principais obras para o Festival da

emissora concorrente, em São Paulo.

Ainda assim, é notável que a canção terceira colocada do II FIC seja Carolina, do

compositor Chico Buarque, vencedor do II Festival de Música Popular Brasileira, realizado no

ano anterior pela TV Record. A canção foi interpretada pelas irmãs Cynara e Cybele, que

formariam a base do conjunto vocal Quarteto em Cy, formado em 1972, apadrinhado pelo

compositor Vinicius de Morais.

A canção vencedora do II FIC foi Margarida, de Gutemberg Guarabira, que viria a

formar a dupla Sá e Guarabira, em 1973, interpretada pelo próprio compositor e pelo Grupo

Manifesto.

No entanto, a canção premiada com o segundo lugar, Travessia, de Milton

Nascimento e Fernando Brant, interpretada pelo próprio compositor, apresentaria ao cenário

musical brasileiro e mundial um de seus protagonistas, o cantor e compositor Milton Nascimento.

Dori Caymmi, vencedor do I FIC no ano anterior, relembra a impressão causada pela

qualidade estrutural da música do compositor mineiro, inserindo-o no contexto musical da época

de seu surgimento no II FIC:

O Chico [Buarque] com o MPB-4, a letra do Vinicius que leva a gente para outro lugar, o Sidney Miller que veio com uma outra informação, o Chico Buarque, o Capinan que veio da Bahia, Torquato Neto, Caetano e Gil e aí a grande novidade que foi o Milton Nascimento. O que me impressionou foi aquela liberdade que ele tinha de fazer o trabalho dele. Ganhou segundo lugar no Festival de 67, mas a música dele já tinha um poder e um violão muito próprios (CAYMMI, 2013).

Amilton Godoy corrobora as palavras de Dori Caymmi e ressalta o fato de que,

apesar de a música de Milton Nascimento ter surgido numa época em que parte do repertório era

destinado a estruturar mensagens musicais contrárias ao sistema político vigente (por vezes em

detrimento de um discurso poético-musical que visasse a um padrão estético de excelência como

já foi dito anteriormente), a estrutura musical da obra do compositor extrapolou os limites do

território nacional e se firmou no exterior justamente por conta de que seus elementos

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estruturantes, que compõem um discurso no qual é notável a maestria no uso dos recursos da

linguagem poético-musical.

Aquela música de qualidade, aquelas harmonias completamente modernas, aquele baita sucesso no Brasil. Apareceu numa época importante, na qual a música estava também sendo usado para protestar contra o regime vigente, mas a qualidade da música do Milton Nascimento está até hoje no mundo inteiro (GODOY, 2013).

Porém, se é fato que o II FIC apresentou uma produção altamente qualificada, no

mesmo mês de outubro de 1967 o III Festival de Música Popular Brasileira, chamado de “O

Festival da Virada”, realizado no Teatro Paramount, em São Paulo, foi provavelmente o mais rico

da história da música popular brasileira, como assevera um dos produtores do Festival, Zuza

Homem de Mello: “Das quatro primeiras colocadas, qualquer uma poderia ter sido a primeira que

não haveria discrepância muito grande em relação às demais, não haveria grandes protestos do

público e nem aquela sensação dos demais concorrentes” (HOMEM DE MELLO, 2013).

O prêmio “Sabiá de Ouro” ficou para a canção vencedora Ponteio, de Edu Lobo

e Capinam, interpretada pelo próprio compositor, pela cantora Marília Medalha e pelos conjuntos

Momento Quatro e Quarteto Novo.

A composição é dividida em três segmentos A-A-B-C-C, sendo B (“Parado no meio do mundo...”) menos um arremate à primeira parte, A, do que um preparatório para o refrão, C (“Quem me dera agora...”), o qual é muito bem explorado à medida em que a música avança. A letra de Capinan, de raiz sertaneja, tinha uma intenção política bem ao gosto da plateia mais politizada, com alusões certeiras ao desejo de mudança [...] ao mesmo tempo, o arranjo, magnificamente elaborado teria o destino de empolgar o mais indiferente dos ouvintes (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 217).

A canção segunda colocada foi Domingo no Parque, de Gilberto Gil, interpretada

pelo próprio compositor e pelo conjunto Os Mutantes.

... Numa descrição de cenas em cortes rápidos, como em uma sequência cinematográfica, o estado psicológico de cada um é abordado em flashbacks [...] A última estrofe, lentamente evocativa, com um oboé lamuriante, descreve o que resta dos corpos inertes na patética cena final, como a de um West Side Story ou

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de uma ópera. Gil havia feito um filme numa canção [...] O arranjador Rogério Duprat, dotado de uma visão abrangente da corrente pós-modernista da música erudita e desejoso de inseri-la na música popular, fora indicado a Gil pelo maestro Júlio Medaglia, o primeiro a trabalhar na orquestração, tendo se afastado depois para integrar o júri do Festival (HOMEM DE MELLO, 2003, pp. 207-208).

O terceiro lugar ficou para a canção Roda Viva, de Chico Buarque, interpretada pelo

próprio compositor e pelo conjunto vocal MPB-4.

O grande responsável pela estrutura com que “Roda Viva” foi montada era o Magro [cantor e arranjador do grupo vocal MPB-4]. Não poderá haver outro arranjo dessa música depois daquele que o Magro fez. Ele construiu a música de maneira a rodar em alguns momentos. Foi uma apresentação emocionante, cativante, envolvente e que fazia as pessoas da plateia cantarem junto, embora a música tivesse letra extensa (assim como as outras músicas também as tinham), portanto, dificilmente cantáveis por uma plateia, mas eles cantavam (HOMEM DE MELLO, 2013).

O quarto lugar foi da canção Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, interpretada pelo

próprio compositor e pelo conjunto Beat Boys.

... aquele finalzinho “Por que não? Por que não?”. “Por que não?” resume toda a ideia de uma juventude que estava querendo alguma coisa de novo dentro do contexto do que acontecia no mundo inteiro; é o resumo do Woodstock, do que aconteceu em Paris, do que aconteceu em São Paulo, do que aconteceu no Rio, no qual existe um conteúdo político fundamental (HOMEM DE MELLO, 2013).

Em fato, a afirmação de Zuza Homem de Mello é irretocável: as quatro canções

apresentam excelentes qualidades estruturais discursivas. Porém, vale notar que as canções

colocadas abaixo do quarto lugar também apresentam qualidades estruturais de requinte

composicional: a canção quinta colocada foi Maria, Carnaval e Cinzas, de Luiz Carlos Paraná

(segundo colocado no II Festival de Música Popular Brasileira, com De amor ou paz105)

interpretada por Roberto Carlos e a sexta colocada foi a canção Gabriela, de Francisco

Maranhão, interpretada pelo conjunto vocal MPB-4. A final do Festival teve ainda como uma das

105 Ver p. 268.

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canções concorrentes A Estrada e o Violeiro, de Sidney Miller, interpretada pelo próprio

compositor e pela cantora Nara Leão.

Soma-se a isso o fato de que, pela performance na canção O Cantador, de Dori

Caymmi e Nelson Motta, foi eleita como a Melhor Intérprete do III Festival de Música Popular

Brasileira a cantora Elis Regina.

Amilton Godoy relembra um dos fatores que davam credibilidade ao Festival e,

sobretudo, rigor criterioso na escolha das vencedoras: “Um júri seriíssimo, do qual eu me orgulho

de ter feito parte” (GODOY, 2013).

A mediação cultural imediata – o uso visionário do microfone sobre a plateia No entanto, além de apresentar uma série de grandes composições musicais, de

grandes intérpretes, de grandes músicos, além de evidenciar um incisivo interesse do veículo

midiático na veiculação de uma música popular comprometida com a busca por um padrão

estético cada vez mais apurado, uma estratégia do produtor musical Zuza Homem de Mello, à

altura o técnico de som do III Festival de Música Popular Brasileira, contratado da TV Record,

permitiu uma espécie imediata de mediação cultural que acontecia entre a plateia do teatro, os

artistas e os telespectadores em suas casas: posicionar sobre a plateia do Teatro um microfone

ligado diretamente à mesa de captação sonora. O artista ouvia in loco a manifestação do público,

e o telespectador, em sua casa, ouvia a música interpretada pelos cantores e, juntamente com a

canção, o telespectador apreendia a manifestação do público no momento da apresentação; era

uma mediação cultural instantânea entre pessoas que habitavam lugares tanto distintos quanto

distantes.

Eu queria dar a quem assistia pela televisão a mesma sensação de quem estava ao vivo, no Teatro. Quem estava no teatro estava envolvido pelos aplausos, mas quem estava em casa, não. Como a TV Tupi fazia todos os programas em estúdio, não tinha plateia; a plateia passou a fazer parte do conjunto de atrações da televisão. Dessa maneira, podia ser retratado aquilo que era essencial para uma música concorrente de Festival: aplausos no meio da canção, vaias no meio da canção, o público fazendo parte da performance do artista e da avaliação da música por parte dos telespectadores (HOMEM DE MELLO, 2013)

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A torcida por uma ou outra canção executada no Teatro era levada aos

telespectadores, que, naturalmente, envolviam-se com uma ou outra concorrente. O microfone

ligado, dependurado no teto do Teatro, envolvia o telespectador na apresentação. Esse, no dia

seguinte à exibição das canções, tinha as suas favoritas e mediava suas impressões e sua

avaliação em seu convívio social.

O momento sócio-político do Brasil, assim como de outras partes do mundo,

apresentava uma juventude ativa e consciente de seu papel nos processos de formação e de

transformação da sociedade. Era a vez de o jovem brasileiro se manifestar e a sua voz, enfim,

seria ouvida.

Juntamente com a tomada de posição política e com o anseio dos jovens da época de

encontrarem e definirem sua posição social, parte de outras camadas etárias e sociais brasileiras

encontravam naquele momento histórico sua vez; a vez de fazer ouvir a sua voz. A catarse

coletiva na qual transformaram-se as apresentações das canções concorrentes no III Festival de

Música Popular Brasileira era emblemática dessa nova postura do ouvinte-partícipe de música

brasileira.

Zuza Homem de Mello faz notar uma significativa alteração no modo como o público

espectador, formado em sua maioria por jovens da classe média urbana cosmopolita brasileira,

reagia à apresentação de algumas das músicas concorrentes no III Festival de Música Popular

Brasileira: “Em 1967, fica consagrada a possibilidade de público se manifestar de duas maneiras

diferentes: aplaudindo ou vaiando. O público se manifestava vaiando! Isso não existia antes.

Imagina se em algum show, de quem quer que seja alguém, a plateia ousaria vaiar” (HOMEM

DE MELLO, 2013) e, justamente por conta de uma brilhante estratégia midiática do próprio Zuza

Homem de Mello, a vaia da noite era apreendida por um público muito maior do que apenas

aquele que ocupava as cadeiras do Teatro. Para além disso, a vaia (e o também aplauso) eram

mediados no dia seguinte entre as pessoas que, em seu convívio social, estruturavam suas táticas

de posicionamento político e de comportamento social em seus cotidianos106.

106 Os conceitos de “estratégia” e “tática” aqui empregados seguem as proposições de Michel de Certeau, encontradas nas pp. 56-57 do presente trabalho.

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A célebre vaia à apresentação da canção Beto bom de bola, de Sérgio Ricardo, sétima

concorrente a ser executada na final do concurso, é um exemplo preciso do comportamento

participante da plateia:

Em vez de se aquietar, a plateia se excitou; surgiram vaias assustadoras e grande parte do público ficou de pé como se ouvisse uma caçoada. Na coxia, o nervosismo aumentou e todos o compeliam [Sérgio Ricardo] a cantar de uma vez. Sérgio ainda tentou convencer o público: “Atenção... um minutinho”. Não conseguia ser entendido, as vaias ensurdecedoras encobriam com folga o seu tom de voz (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 309).

É notável um fato acerca da vaia à canção Beto Bom de Bola, de Sérgio Ricardo; tal

fato denota a preocupação com elementos estruturantes da linguagem musical por parte de quem

apresentava o programa televisivo e a eventual capacidade de compreensão do uso de tais

elementos por parte do grande público espectador.

A canção já fora vaiada quando de sua apresentação na fase eliminatória107, quando

se classificou entre as 12 canções finalistas. Antes de sua apresentação na final, o apresentador

Blota Jr preparou o público para a entrada de Sérgio Ricardo ao palco, quando: “pediu atenção

para o novo acompanhamento em Beto Bom de Bola e um voto de confiança na sua

apresentação”. (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 209 – grifo do autor).

Porém, as vaias como forma de manifestação do público não se restringiram a Beto

Bom de Bola: “A primeira canção apresentada, Bom Dia, foi intensamente vaiada, mas Nana

[Caymmi] não se deixou perturbar. Nem bem começou, alguém do balcão gritou ‘Fora!’”

(HOMEM DE MELLO, 2003, p. 207). Também a canção quinta colocada ao final das

apresentações, Maria, Carnaval e Cinzas, de Luiz Carlos Paraná, interpretada por Roberto

Carlos, foi recebida com vaias, desta feita, por conta da ausência de um conteúdo político (se não

obrigatório, quase sempre necessário) na letra da peça musical: “Sob o ponto de vista político,

mais importante do que a vaia ao Sérgio Ricardo foi a vaia ao Roberto Carlos. A vaia não era

107 A preferência do público era para a canção Menina Moça, composta e interpretada por Martinho da Vila, que não se classificou para a final.

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dirigida ao Roberto Carlos, mas era dirigida à falta de conteúdo político da canção” (HOMEM

DE MELLO, 2013).

As manifestações do público no Teatro, fossem as vaias, fossem os aplausos,

chegavam aos lares brasileiros pelo veículo midiático que transmitia o concurso musical, a

Televisão. Vaias e aplausos eram apreendidos pela noite e mediados no dia seguinte. Público do

Teatro e público da Televisão participavam ativamente da construção do complexo músico-

midiático-social do III Festival de Música Popular Brasileira graças à estruturação deliberada de

uma estratégia sonoro-midiática.

Uma estratégia tamanhamente bem elaborada é fruto dos investimentos da emissora

em sua programação musical. Dificilmente um técnico de som mediano teria a capacidade de

estruturar os passos técnicos e midiáticos de tal empreitada. A TV Record, entretanto, não

poupava investimentos em seu departamento de áudio.

O som do teatro era feito por Zuza Homem de Mello, que, além de ser um técnico competente e com experiência nos melhores estúdios do mundo, é um músico de ouvido apurado: tocava contrabaixo e tomou aulas do instrumento com um dos maiores astros do jazz, Ray Brown. Som é fundamental na televisão. (AMARAL DE CARVALHO, 2009, p. 127 – grifo do autor).

Os investimentos no departamento de áudio, com a contratação de um profissional de

alto gabarito como Zuza Homem de Mello, foi levado a outras espécies de programações da

emissora. Por determinação do diretor de programação Antonio Augusto Amaral de Carvalho,

definitivamente convencido da eficácia da estratégia, as transmissões das partidas de futebol,

entre outras atrações esportivas, passaram também a ter um microfone ligado na cabine do

narrador, pelo qual o telespectador podia ouvir as manifestações das torcidas no campo de

futebol: “O segredo é fazer o telespectador em casa sentir-se na cadeira cativa (e, melhor ainda,

exclusiva) do estádio, com o maior conforto” (AMARAL DE CARVALHO, 2009, p. 80).

O círculo produtivo que se formava em torno da qualidade da programação musical

ampliava-se ainda mais.

A mídia televisiva abria espaço para a música elaborada por grandes compositores;

estes se esmeravam em utilizar os mais sofisticados recursos de linguagem na estruturação de

seus discursos musicais; o público tinha participação ativa na construção de um repertório de alta

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qualidade e, naturalmente, qualificava-se do ponto de vista de apreensão estética musical; a mídia

televisiva aumentava a audiência; os patrocinadores se aproximavam das emissoras, pois o

produto “música brasileira de qualidade” era de alto poder de consumo; as emissoras investiam

nos programas musicais; o público mantinha-se ainda mais próximo de tal programação; os

implementos técnicos experimentados nos programas musicais eram levados a outros segmentos

da programação; a mídia televisiva tinha, nos programas musicais, sua fonte de renda, de

audiência, de campo para experimentos técnicos, de cultivo de um público qualificado; por

conseguinte, a mídia televisiva investia na abertura de novos e amplos espaços para a música

elaborada por grandes compositores brasileiros.

Parte desse ciclo produtivo é resumido por Amilton Godoy, que se refere ao

programa O Fino da Bossa como o nascedouro dos Festivais da TV Record:

Os festivais nada mais foram do que o resultado de um programa desse nível. E cada festival daquele... a qualidade que tinha... O festival em que o Chico Buarque ficou em terceiro lugar com “Roda Viva”: ele já apareceu para o Brasil e para o Mundo. Como vai segurar um cara desses? O Gilberto Gil, com “Domingo no Parque”, que ficou em segundo lugar! Convergia tudo para lá, a expectativa de todo mundo era o que ía aparecer. (GODOY, 2013).

Tal parte do círculo produtivo se confirma justamente na história da composição da

canção Domingo no Parque, de Gilberto Gil: “Domingo no Parque fora composta por Gil durante

a noite seguinte à que assistira ao último programa O Fino [da Bossa], em seu apartamento no

hotel Danúbio, enquanto Nana Caymmi dormia, após uma visita ao pintor Clóvis Graciano”

(HOMEM DE MELLO, 2003, p. 207 – grifo do autor).

O sucesso dos Festivais em sua grade de programação encorajou a TV Record a

encampar o projeto de um Festival intitulado I Bienal do Samba, no ano seguinte, em 1968.

O sucesso da fórmula – I Bienal do Samba TV Record, 1968 Grandes nomes da cultura brasileira da época, sobretudo provindos da cena cultural

do Rio de Janeiro, como Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), Lúcio Rangel e Sérgio Cabral,

estimularam os executivos da TV Record a realizarem um Festival “do qual participaria apenas o

ritmo brasileiro por excelência, o samba” (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 252), posto o estilo de

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música apresentado nos Festivais precedentes requerer uma espécie de concepção que “forçava a

empolgação e não era exatamente a música brasileira de todo dia” (HOMEM DE MELLO, 2003,

p. 252).

Seguindo o mesmo formato de eliminatórias seguidas de uma grande final, no dia

primeiro de junho de 1968 a canção Lapinha, de Baden Powell e Paulo César Pinheiro,

interpretada por Elis Regina, acompanhada pelo conjunto Os Originais do Samba, foi

consagrada a vencedora da I Bienal do Samba.

Lapinha foi defendida por dois craques que se entendiam às mil maravilhas: Elis [Regina] cantando e Baden [Powell] ao violão, com os Originais do Samba reforçados pela rebolante cantora Sabrina e o excelente cavaquinho do Regional do Caçulinha, Xixa, que atacava a clássica introdução, dando legitimidade ao samba (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 250).

Em segundo lugar ficou a canção Bom Tempo, de Chico Buarque, interpretada pelo

próprio compositor.

O povo delirou novamente à entrada de Chico Buarque e cantou com ele a segunda parte, acompanhando o ritmo bem marcado com palmas e batendo os pés. Nenhum veterano tinha sabido aproveitar o ancestral do samba como o jovem Chico Buarque ao compor “Bom tempo” no Rio de Janeiro. A referência ao maxixe foi uma brincadeira que deu o maior pedal, com versos bem humorados e de esperança, numa época em que a cara amarrada era a tônica ((HOMEM DE MELLO, 2003, pp. 262-263)

Além das duas vencedoras, que trouxeram um trio de novos grandes nomes da música

popular brasileira (Paulo Cesar Pinheiro, Baden Powell e Chico Buarque), outras composições

eram assinadas por grandes compositores brasileiros que surgiam no cenário musical daquele

momento: Edu Lobo concorreu com Rainha, Porta Bandeira e Sidney Miller apresentou o samba

Quem Dera.

Outros compositores, já de renome de alcance nacional, nascidos na geração anterior,

figuras de destaque da Bossa Nova, também participaram do Festival I Bienal do Samba: Carlos

Lyra (autor de Minha Namorada, em parceria com Vinicius de Morais) concorreu com o samba

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Feio Não É Bonito e Billy Blanco (parceiro de Tom Jobim na canção Teresa da Praia108) com o

samba Canto Chorado. O compositor Tom Jobim foi convidado, mas não inscreveu a tempo o

samba intitulado Onda, que posteriormente viria a ser consagrado com o título original em inglês,

Wave; o grande compositor da Bossa Nova teria de esperar alguns meses para participar de um

Festival de Música Popular Brasileira.

Provindos do universo específico do samba, uma geração de extraordinários

compositores encontrou no Festival uma oportunidade de mostrar seu rico trabalho, até àquela

altura somente conhecido em ambientes distantes da grande mídia televisiva. Hermínio Bello de

Carvalho e Elton Medeiros trouxeram à I Bienal do Samba o samba Pressentimento, Zé Keti

apresentou o samba Foi Ela e o grande compositor Paulinho da Viola ficou em sexto lugar com o

irretocável samba Coisas do Mundo Minha Nega.

Essa geração de grandes sambistas ocupou o palco do Teatro Record juntamente com

grandes cantores e compositores de gerações anteriores, até mesmo com nomes que estão

historicamente ligados ao nascimento do samba nas décadas de 1920 e 1930: o samba Ingratidão,

de Ismael Silva, foi interpretado por Isaurinha Garcia; Sandália Mulata, de Donga e Walfrido, foi

interpretado por Elza Soares; Clementina de Jesus interpretou Protesto, Meu Amor, de

Pixinguinha e Quando a Polícia Chegar, de João da Baiana; e o paulistano Adoniran Barbosa

interpretou o Mulher Patrão e Cachaça, samba de sua autoria. Além desses, o samba Tive Sim,

interpretado por Cyro Monteiro, deu o quinto lugar ao compositor fundador da Escola de Samba

Estação Primeira de Mangueira, Angenor de Oliveira, o Cartola.

Como se não bastasse a profusão de memoráveis canções apresentadas, em cada uma

das três noites de eliminatórias um grande compositor da geração dos primórdios do samba foi

homenageado. Respectivamente, Noel Rosa (Aracy de Almeida, bisada incessantemente, voltou

ao palco três vezes antes de serem anunciadas as finalistas da primeira eliminatória), Sinhô e Ary

Barroso.

O aparato midiático do Festival de Música Popular Brasileira I Bienal do Samba,

dessa forma, não apenas trouxe ao grande público a música de uma geração de novos e grandes

valores da arte brasileira; trouxe a possibilidade de o grande público tomar contato com a

108 Ver p. 241.

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produção musical de grandes nomes da história da música brasileira, que estavam vivos à época,

e com a produção musical de grandes nomes da história da música brasileira que não mais

viviam, porém tinham deixado um legado musical de inegável teor poético e padrão estético. Um

grande público pode conhecer uma produção de música brasileira que não apenas trazia requinte

discursivo mas, também, era a produção musical basilar de toda a trajetória percorrida pela

música popular brasileira até aquele momento e assim o seria para todas as gerações de

compositores, músicos, artistas e ouvintes do futuro, como sinaliza Amilton Godoy, que remonta

sua análise a um compositor ainda anterior à geração dos grandes compositores do samba das

décadas de 1920 e 1930.

A música popular nasce naturalmente, ela é o misto de cultura folclórica com música erudita. O Villa-Lobos foi o homem que deu um rumo para a música brasileira. Muitos diziam que ele estava “jazzificando” a música brasileira por causa dos recursos de harmonia que ele usava. Perto de 1930 já tinham vários músicos contribuindo para uma linguagem cada vez mais moderna da música brasileira. O grande pianista e compositor Vadico era o parceiro musical do Noel [Rosa]. As obras que eles fizeram juntos são maravilhosas, porque o Noel mandava o recado na parte poética, nas letras, e o Vadico, que já tinha um conhecimento musical bastante avançado, pegava os temas brasileiros e adequava àquela nova linguagem, o samba. Eles são responsáveis por esse processo de evolução da música brasileira até os dias de hoje (GODOY, 2013).

Naquele ano de 1968, na esteira do sucesso dos Festivais dos anos anteriores e do

sucesso de programas com marcante conteúdo musical, o ambiente midiático-musical se

ampliava. Outra emissora de televisão fez companhia às TVs Excelsior, Record e Globo e,

naquele mesmo ano, a TV Bandeirantes, de São Paulo, produziu o programa Canto Geral,

apresentado por Geraldo Vandré. O programa mudaria de nome logo depois de sua primeira

exibição, por exigência de um órgão de censura do governo militar e, por insistência do

apresentador, o programa passou a se chamar Canto Permitido.

O III Festival Internacional da Canção, TV Globo, 1968 Enquanto ocorriam as finais da I Bienal do Samba, no Teatro Record em São Paulo,

aconteciam as eliminatórias regionais do III Festival Internacional da Canção, promovido pela

Rede Globo. A emissora programava as finais para o mês de setembro daquele ano de 1968, que

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ocorreriam no Rio de Janeiro, e investia alto tanto na produção das eliminatórias regionais quanto

na contratação do corpo de jurados para a final.

Uma plêiade de grandes nomes da música norte-americana comporia o júri presidido

pela mítica cantora de jazz, Ella Fitzgerald: os compositores Paul Anka, Harry Warren, Ray

Evans e Jay Livingston109, a cantora de jazz Dinah Shore, o cantor e compositor de reaggae

jamaicano Jimmy Cliff, os maestros franceses Frank Pourcel e Paul Mauriat, além de Don Costa,

arranjador de diversos grandes sucessos da carreira do cantor Frank Sinatra, entre eles, Night and

Day, do compositor Cole Porter, do disco Sinatra and strings, de 1962.

Fato curioso foi a eliminação da canção Vera Cruz, de Milton Nascimento e Márcio

Borges, que não foi classificada para a final e só foi apresentada na eliminatória de Minas Gerais.

No entanto, o fato mais impactante da fase eliminatória ocorreu em São Paulo, no

Teatro da Universidade Católica, o TUCA.

O compositor Caetano Veloso, ao apresentar a canção É Proibido Proibir ao lado dos

conjuntos Os Mutantes e Beach Boys, foi vaiado implacavelmente pela plateia do Teatro,

inconformada tanto com o uso de guitarras elétricas e de um gravador portátil (do qual provinha o

som da frase musical “É proibido proibir”) na apresentação, quanto com a postura não

assumidamente clara da canção, do compositor e da própria performance dos artistas na

execução, contra a ditadura militar; tanto com as vestimentas dos artistas (Veloso vestia plástico;

Os Mutantes, trajes extravagantes) quanto com uma espécie de “falta de virilidade que não se

coadunava com quem fosse contra a ditadura” (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 277).

A certa altura da apresentação, a plateia virou-se de costas para os artistas; os

integrantes do conjunto Os Mutantes reagiram da mesma maneira e viraram-se de costas para a

109 Dupla de autores da canção Mona Lisa, que fez grande sucesso no Brasil pela voz de Nat “King” Cole, como canção do filme dirigido por Mitchel Leisen Captain Carey, USA. A música foi a ganhadora do Oscar em 1950. O cantor alcançaria ainda maior sucesso no Brasil quando do lançamento da trilogia de discos de música latina, gravados em língua espanhola, Nat King Cole Español (1958), A mis amigos (1959) e More Cole Español (1962), que tiveram os arranjos escritos por Nelson Riddle e traziam canções como María Elena, de Lorenzo Bacelata e Bob Russel, Quizás, quizás, quizás, de Osvaldo Farrés e Joe Davies, Noche di Ronda, de Agustín Lara.

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plateia. O cantor Caetano Veloso não conseguiu interpretar toda a música e, em meio a vaias,

sons dos instrumentos, vozes no palco, vociferou contra a plateia, protestando contra uma espécie

de patrulhamento artístico dos jovens da esquerda brasileira: “O problema é o seguinte: vocês

estão querendo policiar a música brasileira!”, contra a formatação do Festival que, em certa

medida, padronizava o modo de se compor canções-para-festival: “eu e o [Gilberto] Gil já

abrimos o caminho, o que é que vocês querem? Eu vim aqui para acabar com isso. Em quero

dizer ao júri: me desclassifique [...] Gilberto Gil está comigo para acabarmos com o Festival e

com toda a imbecilidade que reina no Brasil”, contra o enquadramento estético exigido pelo

público que se encontrava no Teatro, supostamente formado pela juventude de esquerda do

grande centro urbano do Brasil: “se vocês, em política, forem como são em estética, estamos

feitos!” e contra o corpo de jurados do festival, que, à altura, não contava os grandes nomes da

música norte-americana, pois estes seriam os jurados apenas nas finais; o júri das eliminatórias

era composto por nomes ligados à música brasileira: “... me desclassifiquem junto com o Gil!

Junto com ele, está entendendo? E quanto a vocês... O júri é muito simpático mas é

incompetente”110 (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 279).

110 A íntegra do que disse o compositor: “Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês têm coragem de aplaudir, este ano, uma música, um tipo de música que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado! São a mesma juventude que vão sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem! Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada. Hoje não tem Fernando Pessoa. Eu hoje vim dizer aqui, que quem teve coragem de assumir a estrutura de festival, não com o medo que o senhor Chico de Assis pediu, mas com a coragem, quem teve essa coragem de assumir essa estrutura e fazê-la explodir foi Gilberto Gil e fui eu. Não foi ninguém, foi Gilberto Gil e fui eu! Vocês estão por fora! Vocês não dão pra entender. Mas que juventude é essa? Que juventude é essa? Vocês jamais conterão ninguém. Vocês são iguais sabem a quem? São iguais sabem a quem? Tem som no microfone? Vocês são iguais sabem a quem? Àqueles que foram na Roda Viva e espancaram os atores! Vocês não diferem em nada deles, vocês não diferem em nada. E por falar nisso, viva Cacilda Becker! Viva Cacilda Becker! Eu tinha me comprometido a dar esse viva aqui, não tem nada a ver com vocês. O problema é o seguinte: vocês estão querendo policiar a música brasileira. O Maranhão apresentou, este ano, uma música com arranjo de charleston. Sabem o que foi? Foi a Gabriela do ano passado, que ele não teve coragem de, no ano passado, apresentar por ser americana. Mas eu e Gil já abrimos o caminho. O que é que vocês querem? Eu vim aqui para acabar com isso! Eu quero dizer ao júri: me desclassifique. Eu não tenho nada a ver com isso. Nada a ver com isso. Gilberto Gil. Gilberto Gil está comigo, pra nós acabarmos com o festival e com toda a imbecilidade que reina no Brasil. Acabar com tudo isso de uma vez. Nós só entramos no festival pra isso. Não é Gil? Não fingimos. Não fingimos aqui que desconhecemos o que seja festival, não. Ninguém nunca me ouviu falar assim. Entendeu? Eu só queria dizer isso, baby. Sabe como

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A reação de Caetano Veloso causou, também, grande impacto. Não somente no

público que estava no Teatro. A repercussão do fato extrapolou o âmbito do local da apresentação

e alcançou o espaço midiático. Além da mediação natural que ocorreria entre aqueles que

assistiram ao vivo à apresentação e aqueles que conviviam com quem lá estava, notícias em

jornais, em rádios, e até mesmo em emissoras de televisão, ampliavam midiaticamente o

ocorrido.

Um outro aparato midiático amplificou o efeito do protesto do compositor. Foi

lançado um disco contendo duas versões da canção não executada por completo naquela noite:

“A performance de ‘É Proibido Proibir’ ofuscou de tal maneira o que aconteceu dali em diante,

que seria lançado um disco compacto tendo no lado A a gravação normal de estúdio e no lado B,

sob o título ‘Ambiente de Festival’, a música que não aconteceu” (HOMEM DE MELLO, 2003,

p. 277).

O público do Festival, naquele setembro de 1968, dois meses antes da decretação do

AI-5, estava à espera de canções com letras cujo teor de acentuado cunho político beirassem a

explicitação. Possivelmente por isso, Canção do Amor Armado, de Sérgio Ricardo; Questão de

Ordem, de Gilberto Gil; América, América, de César Roldão Vieira; e Pra Não Dizer Que Não

Falei de Flores, de Geraldo Vandré, suplantaram composições como Congada, de um artista que

surgiria naquele contexto sócio-musical-midiático e se perpetuaria como um dos grandes nomes

da música popular brasileira: Jorge Bem, chamado posteriormente Jorge Benjor.

Novamente a final de um Festival trazia grandes compositores da geração que brotava

de ali mesclados a grandes compositores da geração anterior, formada no movimento da Bossa

Nova.

é? Nós, eu e ele, tivemos coragem de entrar em todas as estruturas e sair de todas. E vocês? Se vocês forem... se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos! Me desclassifiquem junto com o Gil! junto com ele, tá entendendo? E quanto a vocês... O júri é muito simpático, mas é incompetente. Deus está solto! (Cantando) Me dê um beijo, meu amor, eles estão nos esperando, os automóveis ardem em chamas! (Declamando) Derrubar as prateleiras, as estantes, as estátuas, as vidraças, louças, livros, sim! E eu digo, (gritando) sim! E eu digo, não ao não! E eu digo: (cantando) É Proibido proibir. (Gritando histericamente) Como é, júri? Não acertaram qualificar a melodia de Gilberto Gil? Ficaram por fora. Gil fundiu a cuca de vocês, hein? É assim que eu quero ver. Chega!”

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Novamente, também, esses grandes compositores apresentaram grandes peças

musicais, de irretocável qualidade, interpretadas por grandes cantores e cantoras, executadas por

excelentes músicos.

Roberto e Erasmo Carlos apresentaram a canção Gabriela Mais Bela, interpretada por

Gal Costa; Toquinho e Paulo Vanzolini apresentaram Na Boca da Noite, interpretada pelo

conjunto vocal Canto 4; Salmo, de Roberto Menescal; Meu Sonho Antigo, de Sérgio Bittencourt e

Taiguara; Viola Enluarada, de Marcos Valle; Maré Morta, de Edu Lobo e Ruy Guerra; e

Carolina, de Chico Buarque, fizeram companhia à canção O Sonho, de um compositor que viria a

ser uma referência de música brasileira de alto teor poético e notável padrão estético no Brasil e

no exterior: Egberto Gismonti.

A canção Andança, dos jovens compositores Danilo Caymmi, Edmundo Souto e

Paulinho Tapajós (que fariam parte da geração de compositores subsequente à de Chico Buarque,

Edu Lobo, Caetano Veloso e Gilberto Gil), interpretada por Beth Carvalho e pelo conjunto

Golden Boys foi a terceira colocada do III Festival Internacional da Canção.

No entanto, a polêmica que marcou o Festival foi a escolha das primeira e segunda

colocadas.

Com forte apelo político explícito pela letra da canção, Pra não Dizer que não Falei

das Flores, de Geraldo Vandré, interpretada pelo próprio compositor, era a favorita destacada do

público.

Com um teor político sutilmente entranhado na letra e com um discurso musical

(sobretudo harmônico e melódico) extremamente sofisticado, Sabiá, de Chico Buarque e Tom

Jobim, interpretada pelas irmãs Cynara e Cybele, foi a canção preferida do corpo de jurados.

A vaia que sucedeu o anúncio da vencedora foi tanto ensurdecedora quanto histórica.

O próprio Geraldo Vandré teve de pedir silêncio à plateia para pode cantar sua música na

reapresentação da vencedora. O mesmo compositor fez questão de salientar que a dupla de

compositores da música vencedora merecia o devido respeito111.

111 A íntegra das palavras do compositor: “Olha, sabe o que eu acho? Eu acho uma coisa só mais: Antonio Carlos Jobim e Chico Buarque de Hollanda merecem o nosso respeito. A nossa função é fazer canções. A função de julgar, nesse instante, é do júri que ali está. (Vaias) Um momento. (Vaias) Por favor! Tem mais uma coisa só: para vocês que continuam pensando que me apoiam vaiando... (vaias, coros com cantos de

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Em verdade, a canção Pra não Dizer que não Falei das Flores, de Geraldo Vandré,

encontrava eco no anseio do público, no entanto, apresentava uma letra de caráter explícito, uma

melodia diatônica bastante frágil, apenas um par de acordes numa harmonia que sustentava o

ritmo ternário da guarânia:

Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores obedecia à conduta do compositor, resumida na frase do depoimento que me fora dado 12 dias antes, em seu apartamento da alameda Barros. Geraldo dissera que “em canção popular a música deve ser funcionária despudorada do texto” (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 293).

Enquanto Sabiá, de Chico Buarque e Tom Jobim, ao passo que não incorporava os

anseios de uma mensagem explícita na letra, apresentava um discurso musical extremamente

rico, com modulações, melodias cromáticas e amplo uso dos recursos da linguagem musical

baseada nas linhas melódicas do gênero modinha, desenvolvido pelo compositor Villa-Lobos, tal

como afirmou o próprio compositor Tom Jobim: “É uma toada que segue a linha da modinha de

Villa-Lobos” (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 295).

Fato é que, ao júri especializado que fora escolhido pela TV Globo, seria quase

impossível passar ao largo da grande composição musical que era Sabiá em favor do clamor da

plateia por Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores.

Na sua simplicidade aparente, “Sabiá” é uma música bastante elaborada, como tudo que Tom Jobim produziu. O motivo melódico principia no tom de ré maior, mas, no compasso 17, o mesmo motivo é harmonizado na relativa, em si menor [...] A sequência harmônica mais atraente é iniciada no meio do verso “Talvez possa espantar” com um movimento descente de meio em meio tom durante o verso “As noites que eu não queria”, até a preparação para reconduzir ao tom original através da dominante na frase “E anunciar o dia” (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 296).

ordem e gritos “É marmelada! É marmelada!) Gente! Gente!, por favor! Olha, tem uma coisa só: A vida não se A proximidade do final do ano de 1968 leva a canção Sabiá a um contexto político-social brasileiro muito específico.”

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A vaia a Caetano Veloso, as vaias ao resultado final, a subsequente proibição de

comercialização do disco de Geraldo Vandre, que continha Pra Não Dizer Que Não Falei de

Flores, amplificaram exponencialmente as mediações sociais da cultura no que diz respeito

especificamente àquelas canções e acontecimentos e, num âmbito mais amplo, da própria música

popular brasileira.

A Era dos Festivais em revista sob diversos pontos de vista Do ponto de vista político-social, é notável a importância da música popular, à altura

a que já poderíamos nomear de a “canção popular massiva brasileira”, na definição dos rumos de

uma sociedade oprimida por um regime autoritário de exceção.

Como se vê, não obstante a Era dos Festivais tenha começado num contexto de regime militar, a sociedade civil, e mesmo os setores culturais, não haviam sido atingido fortemente. A partir de outubro de 1965 é que se sente um avanço do poder repressivo do regime militar sobre a sociedade, pois, ao AI-2, segue-se o AI-3, em fevereiro de 1966. Quando o Congresso é fechado, em outubro de 1966, eclodem as primeiras manifestações estudantis, coincidentemente às vésperas do II Festival da TV Record. É a mobilização de estudantes universitários e secundaristas ao se articularem com as áreas culturais de música, teatro e cinema de uma forma geral. Os setores artísticos e estudantis convivem com formas de manifestação e de rejeição ao regime militar (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 289).

Do ponto de vista sócio-musical, é notável o desvirtuamento da proposta primeira dos

Festivais, qual seja, abrir o espaço midiático para a veiculação da produção de conteúdo musical

brasileiro provindo das obras dos grandes compositores de música popular. Ao se fazer

necessária a mensagem de cunho político, não mais seria privilegiada a mensagem de cunho

musical, de extremo acuro composicional, que intentasse ampliar o uso dos recursos de

linguagem na busca por um discurso musical sofisticado, profundo, abrangente, completo, e,

consequentemente, ampiar o repertório e o preparo estético do público ouvinte apreciador de

música.

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A falta de conteúdo político foi tão importante entre as canções que a mais linda de todas elas, em minha opinião, ficou de fora das finais do Festival da Record de 1967 por não ter conteúdo político: “Eu e a brisa”, de Johnny Alf. O pecado dos Festivais daí para a frente era a obrigação de a canção ter um conteúdo político (HOMEM DE MELLO, 2013).

Do ponto de vista estritamente musical, portanto, nota-se uma perda discursiva

motivada pela necessidade de o discurso musical ter de dar lugar ao discurso político. Não

coincidentemente, os grandes compositores da geração nascida nos Festivais, em certa medida

aculturada musicalmente por uma mídia televisiva que apurava o conteúdo musical de sua

programação, deixou de participar dos Festivais subsequentes; do mesmo modo, os grandes

compositores da geração anterior àquela, os principais nomes remanescentes do movimento da

Bossa Nova, também assim o fizeram.

O III Festival Internacional da Canção marcou a última participação de Tom Jobim como compositor num FIC. O time de estrelas dos festivais ficou ainda mais desfalcado quando Elis Regina, que fora jurada na fase internacional, declarou ao Jornal da Tarde que não renovaria seu contrato com a Record caso houvesse uma cláusula que a obrigasse a defender uma música. Sua carreira na Era dos Festivais se encerrava com duas vitórias. Também fizeram suas despedidas de palco dos festivais Gilberto Gil e Caetano Veloso. Suas relações com o poder militar iriam se agravar substancialmente. Geraldo Vandré ainda participou do IV Festival da Record, mas seus passos seguintes foram dramáticos (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 301).

Do ponto de vista midiático, contudo, o investimento direcionado à programação

musical nas grades de programação se manteve por mais algum tempo. A TV Record

promoveria, ainda, mais dois Festivais (o IV Festival de Música Popular Brasileira, no mesmo

ano de 1968, e o V Festival de Música Popular Brasileira, em 1969), a TV Globo realizaria ainda

mais quatro edições do Festival Internacional da Canção (o IV Festival Internacional da

Canção, em 1969, o V Festival Internacional da Canção, em 1970, o VI Festival Internacional

da Canção, em 1971 e o VII Festival Internacional da Canção, em 1972.

Além disso, a TV Excelsior ainda insistia em manter o investimento no formato de

Festivais, sempre com a premissa de eliminatórias em diversas localidades do Brasil, mesmo que

a empreitada não rendesse à emissora mais do que alguma sutil alteração positiva em seus índices

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de audiência e um acentuado prejuízo econômico, como enfatiza o historiador Edgard Ribeiro de

Amorim.

Na continuidade de seus esforços em favor da música popular brasileira e tentando, mais uma vez, obter sucesso junto ao gênero, a Excelsior lançou em maio de 1968 o festival O Brasil Canta no Rio, com a participação de grandes compositores. Competições regionais foram realizadas em São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Minas Gerais. Com o patrocínio da Secretaria de Turismo do Estado da Guanabara, o festival ofereceu muito dinheiro em prêmios, com o final sendo realizado no estádio do Maracanãzinho, em grande show transmitido para todo o país. O festival rendeu lucros artísticos para a Excelsior, mas nenhum lucro econômico (AMORIM, 2010, p. 278).

Até mesmo a TV Tupi, distante do universo dos Festivais, investia parte de suas

finanças e disponibilidade na grade fixa de programação à produção e veiculação de programas

com conteúdo cultural e sobretudo musical, de alta qualidade, perfazendo o complexo midiático

que se completava com a produção do disco, como afirma o compositor Dori Caymmi.

Fui para a TV Tupi junto com a Nana [Caymmi]; fui conhecer o top do teatro brasileiro. Participei de algumas tocando, sem videotape, era mito interessante. Eu gosto muito dessa informação brasileira de todos os campos, os discos chegando, essa gama de informações que o Brasil traz (CAYMMI, 2013)

Finalmente, do ponto de vista da apreensão e da mediação da canção popular massiva

brasileira, que se dava no âmbito da sociedade que convivia com a mídia televisiva da época, é

possível notar tanto o insipiente surgimento de uma nova geração de grandes compositores

quanto a ampliação do campo de ação da música brasileira fora dos limites nacionais.

O desenvolvimento da canção popular massiva brasileira – a importância fundamental da mídia televisiva

O interesse do governo em estender laços de amizade e parceria econômica na

América Latina somou-se à possibilidade de apresentar às Américas um produto de alto padrão

estético.

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O ministério do Brasil queria que o país se tornasse conhecido, então ele fez uma programação para todas as Américas e pediu para que a gente [o conjunto instrumental Zimbo Trio] fizesse uma representação da “nova música brasileira” a partir da Bossa Nova. Começamos a fazer excursões patrocinadas pelo governo brasileiro para mostrar a música brasileira no exterior. Panamá, Costa Rica, Nicarágua, Guatemala, nesses países nunca tinha aparecido música brasileira (GODOY, 2013).

O apoio do governo possibilitava o ingresso do artista brasileiro no mercado musical

do exterior e, portanto, só precisava acontecer no primeiro momento da empreitada: “Depois que

o empresário começa a perceber que ele vai ganhar com aquilo, aí o governo nem precisa fazer

mais nada” (GODOY, 2013).

Possivelmente, o interesse do governo fosse menos cultural e mais econômico; menos

musical e mais político. No entanto, havia àquela altura a possibilidade de atrelar os interesses;

havia uma música de alto padrão estético sendo produzida no Brasil, sendo veiculada pelo Brasil

por seus canais midiáticos, sendo apreendida pela população brasileira que se desenvolvia do

ponto de vista estético, exposta a uma música sofisticada no que tange à estruturação de seu

discurso. O pianista Amilton Godoi, que fez arte desse projeto do governo brasileiro, faz notar a

intencionalidade político-econômica do governo, mas ressalva o caráter do produto que era

exportado: “Só que o governo fez com música de qualidade, música instrumental, música cantada

de alto nível” (GODOY, 2013).

Ao mesmo tempo em que o governo brasileiro se esmerava em levar parte da grande

produção musical (provinda da proliferação de compositores e de obras de extrema qualidade da

canção popular massiva) brasileira para fora dos limites do país, dentro do Brasil uma geração de

compositores era, em parte aculturada pela mídia televisiva, e em parte desenvolvia seu trabalho

visando a ingressar no universo dos Festivais que se espalhavam por todo o país.

O compositor Ivan Lins traça um amplo panorama da evolução da canção popular

massiva no Brasil no que se refere ao uso dos recursos de linguagem, ao fazer uma leitura que

retoma o percurso discursivo que levou a música popular brasileira do samba-canção da década

de 1950 à música brasileira apresentada dos Festivais, pelo final da década de 1960.

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Do samba-canção do final dos anos 50s, apareceu Antônio Carlos Jobim, e as harmonias já começaram a sofisticar um pouco mais. Os boleros e os sambas-canções começaram a ganhar um pouco mais de refinamento melódico, harmônico, e isso começou a me apaixonar. Quando entrou a bossa nova com aquela sofisticação harmônica somada a um ritmo brasileiro, eu comecei a gostar, de fato, da música brasileira ritmicamente. Aí depois apareceram Edu Lobo, com aquela linguagem moderna do Nordeste, Milton Nascimento, com a linguagem também moderna de Minas, Caetano Veloso e Gilberto Gil, trazendo a Bahia, essa coisa toda misturada com o processo harmônico de Dorival Caymmi, Chico Buarque e toda aquela geração dos festivais. Isso me encantou (LINS, 2013).

Somada ao contexto musical da época e em grande medida responsável pelo

surgimento da geração de compositores citados por Ivan Lins, encontra-se a mídia televisiva e

seu direcionamento no sentido da divulgação e veiculação de uma espécie de produção musical

fincada sobre os pilares do rigor poético e do alto padrão estético: “As rádios e as televisões

abertas mostravam isso para o grande público, havia muitos bons programas de música” (LINS,

2013).

O ambiente universitário compunha parte da cena cultural brasileira daquela altura e

dos movimentos de estudantes provinha parte do movimento musical que influenciava a nova

geração de compositores que se afigurava nascente. Vale notar que Ivan Lins cursou a faculdade

de Engenharia Química no Rio de Janeiro: “Eu comecei a compor, porque já havia um

movimento universitário de resistência, pois já era depois de 1964, e o Brasil já estava sob o

governo militar; esse movimento todo clamava por mensagens de letra” (LINS, 2013) e

Raimundo Fagner cursava a faculdade de Arquitetura, em Fortaleza, no Ceará: “Quando

começaram os festivais eu me liguei, até porque quando eu comecei a compor, em 1968, já tinha

um movimento muito forte vindo lá do Ceará, da Faculdade de Arquitetura” (FAGNER, 2013).

Os Festivais compunham a parte restante ao ambiente musical da época; não apenas

os Festivais produzidos e transmitidos pela grande mídia televisiva como também os pequenos

Festivais promovidos em diversos pontos do Brasil. A atração da programação midiática se

espelhava em atrações locais, de menor repercussão, porém com igual possibilidade de veicular

grandes obras de grandes compositores incipientes: “Eu ganhei o Festival em Brasília, com

“Mucuripe”, depois ganhei todos os prêmios de um Festival em Fortaleza. O Belchior ganhou o

Festival Universitário no Rio [de Janeiro], com “Hora do almoço” (FAGNER, 2013).

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302

A declaração do compositor Ivan Lins evidencia a importância da transmissão

midiática dos Festivais na formação da nova geração de grandes compositores brasileiros (Ivan

Lins, Taiguara, Fagner, Danilo Caymmi, Maurício Tapajós), em sucessão à geração de

compositores dos Festivais (Chico Buarque, Edu Lobo, Caetano Veloso, Gilberto Gil): “Eu

acompanhei todos os festivais, era fanático. Lá em casa, minha família fazia apostas para ver qual

música ía ganhar; era praticamente um festival interno dentro de casa; logo em seguida eu

comecei a me inscrever nos festivais” (LINS, 2013).

O compositor ressalta que a cena midiática brasileira era intimamente ligada à

produção de música popular, não apenas no âmbito da mídia televisiva, mas também no âmbito

do Rádio e faz notar que tal procedimento, assaz profícuo, não mais se repetiu ao longo da

história da mídia e da música brasileira: “Nessa época – aliás, nunca mais se repetiu essa fórmula

– as músicas iam para a Rádio e tocavam de maio até outubro, em todas as rádios do Brasil, para

já começar a criar as torcidas, o interesse do público por uma música ou por outra” (LINS, 2013).

Naturalmente, o cenário que se apresentava gerava o interesse do mercado

fonográfico: “Os produtores procuravam boa música o tempo todo, em todo lugar” (FAGNER,

2013), o que ampliava exponencialmente os campos de produção e de veiculação da música

popular brasileira comprometida com o rigor poético e com um padrão estético, cada vez mais

próxima do conceito de uma canção popular massiva de alta qualidade discursiva.

O ciclo produtivo se fechava na medida em que, confiantes na exposição midiática de

suas obras, os compositores produziam cada vez mais e melhor; os canais midiáticos (restritos

como os das universidades, amplos como os da mídia televisiva) veiculavam a produção musical

altamente qualificada que provinha dos compositores; produtores de discos investiam naquela

espécie de produção musical; discos, programas de televisão, programações das Rádios, Festivais

espalhados pelo país, potencializavam a circulação mediada das mensagens musicais compostas

por discursos bem estruturados; a música popular brasileira tornava-se um produto de consumo

de massa, era a canção popular massiva; como tal, era consumida por uma faixa cada vez mais

ampla e extensa da população; do grande contingente atingido pela mensagem musical

qualificada exposta na grande mídia surgiam novas gerações de grandes compositores, autores de

grandes obras de música brasileira. Como sintetiza o compositor Ivan Lins: “Se a mídia dá

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espaço para o que tem qualidade, gira uma ‘Roda Viva do Bem’; os pais ouvem e os filhos

começam a aprender” (LINS, 2013).

Após a retumbante repercussão alcançada pelo III Festival Internacional da Canção

produzido e exibido pela TV Globo, naturalmente o IV Festival de Música Popular Brasileira,

realizado pela TV Record, em São Paulo, nos meses de novembro e dezembro de 1968,

alcançaria menor amplitude tanto musical quanto midiática, sobretudo após o decreto do AI-5, no

dia 13 de dezembro, que atraiu a maior parte da atenção da grande mídia brasileira.

A decadência do sucesso da fórmula – o fim dos Festivais da TV Record Antecedido em duas semanas pelo lançamento de um programa musical comandado

por Caetano Veloso e Gilberto Gil na TV Tupi chamado Divino, Maravilhoso, o IV Festival de

Música Popular Brasileira, realizado pela TV Record, trazia uma novidade. Por sugestão do

compositor Sérgio Ricardo, o Festival teria duas espécies de premiação: a do Júri Oficial e a do

Júri Popular. A divulgação do Festival nos cartazes estampava: “Você também é juiz” (HOMEM

DE MELLO, 2003, p. 308).

Enfrentando extremas dificuldades com os órgãos de censura (dez dias antes da

primeira eliminatória algumas canções, como Dia de Graça, de Sérgio Ricardo; O General e o

Muro, de Adilson Godoy; Dom Quixote, de Rita Lee; e São, São Paulo meu Amor; de Tom Zé,

ainda não tinham sido liberadas pela censura), o Festival teve apresentadas excelente canções

compostas e interpretadas por grandes compositores e artistas.

Bonita, de Geraldo Vandré; Memórias de Marta Saré, de Edu Lobo; Madrasta, de

Renato Teixeira e Beto Ruschel, interpretada por Roberto Carlos; A Grande Ausente, de Francis

Hime e Paulo Cesar Pinheiro; e Rosa da Gente, de Dori Caymmi e Nelson Motta, formaram uma

espécie de pano de fundo para as excelentes Benvinda, de Chico Buarque; Casa de Bamba, de

Martinho da Vila; Divino, Maravilhoso, de Gilberto Gil e Caetano Veloso; Sentinela, de Milton

Nascimento e Fernando Brant; e, sobretudo, Sei Lá Mangueira, de Paulinho da Viola e Hermínio

Bello de Carvalho.

O júri popular elegeu Benvinda, de Chico Buarque, interpretada pelo próprio

compositor, como a vencedora do Festival; Memórias de Marta Saré, de Edu Lobo

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e Gianfrancesco Guarnieri, interpretada por Edu Lobo e Marília Medalha, ficou com o segundo

lugar.

O júri especial premiou como a vencedora do IV Festival de Música Popular

Brasileira a canção São, São Paulo Meu Amor, de Tom Zé, interpretada pelo próprio compositor,

classificada na quinta colocação segundo o júri popular. O segundo lugar (assim como na votação

do júri popular) ficou para Memórias de Marta Saré, de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri. A

canção Divino Maravilhoso, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, interpretada por Gal Costa, foi a

terceira colocada e Dois Mil e Um, de Rita Lee e Tom Zé, interpretada pelo conjunto Os

Mutantes, ficou em quarto lugar.

É notável a sucessão de grandes obras musicais estruturadas por excelentes

compositores, que encontravam na mídia televisiva uma programação voltada exclusivamente

para a veiculação de uma espécie de música popular bastante desenvolvida do ponto de vista

discursivo. No intervalo de apenas um ano, além dos programas regulares das grades de

programação das emissoras, foram realizados três Festivais sazonais que trouxeram à tona um

repertório digno de menção tanto no que diz respeito à quantidade de obras produzidas quanto da

qualidade estrutural de tais peças musicais.

No entanto, a música brasileira despertou órfã no ano de 1969.

Decretado o AI-5 em 13 de dezembro do ano anterior, presos grandes nomes das artes

brasileiras, entre eles compositores de música popular pertencentes à geração que despontou por

ocasião dos Festivais de Música Popular Brasileira, como Chico Buarque, Caetano Veloso,

Gilberto Gil e até mesmo Tom Jobim, que provinha da Bossa Nova; perseguidos outros tantos,

como Edu Lobo, Geraldo Vandré, fosse por decisão própria, por decreto governamental, por

opção de fuga, os grandes compositores brasileiros encontravam-se exilados do Brasil. Chico

Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil foram forçados pelo regime militar a deixarem o país e

foram para Itália e Londres, respectivamente; Edu Lobo optou por deixar o país e partiu em

excursão para o Japão; Geraldo Vandré optou pela fuga e refugiou-se no Chile. Tom Jobim, preso

sem sequer escrever uma letra contra o regime político vigente, foi solto e construiu uma carreira

bem sucedida como compositor nos Estados Unidos da América do Norte.

Ainda assim, a mídia televisiva brasileira, segura do sucesso do formato do produto

Festivais, manteve a espécie de programação especial sazonal e realizou dois Festivais no ano de

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1969: O IV Festival Internacional da Canção (TV Globo), no mês de setembro, e o V Festival de

Música Popular Brasileira (TV Record), em novembro. Se a música brasileira tinha a certeza de

que estava órfã, a mídia televisiva brasileira ainda não tinha.

No entanto, a geração de compositores que ficara no Brasil não apresentou uma

produção musical suficientemente qualificada e que desse conta da ausência das obras que,

porventura, os grandes compositores brasileiros exilados apresentariam.

A vencedora do IV Festival Internacional da Canção foi a composição de Edmundo

Souto e Paulinho Tapajós, Cantiga por Luciana, interpretada por Evinha, e o segundo lugar

coube à canção Juliana, de Antônio Adolfo e Tibério Gaspar, interpretada pelo conjunto A

Brazuca. Ambas as canções angariaram pouca expressividade popular, além de apresentarem um

discurso musical empobrecido no que tange ao uso dos recursos de linguagem, tanto literária

quanto musical, na estruturação de seus discursos.

Ladeavam as vencedoras outras canções de pouca expressividade, ainda que

compostas por alguns dos grandes nomes da música popular brasileira remanescentes da Bossa

Nova (Marcos e Paulo Sérgio Valle apresentaram a canção O Mercador de Serpentes),

pertencentes à geração imediatamente anterior à que se apresentava na ocasião do IV FIC

(Egberto Gismonti trouxe a canção Beijo Sideral; Silvio da Silva Júnior e Aldir Blanc, Serra

Acima) ou nomes que brotavam naquele contexto pós AI-5 e consequente exílio dos grandes

compositores da geração anterior (Cesar Costa Filho, Ruy Mauriti e Ronaldo M. de Souza

apresentaram a canção Visão Geral; Alcivando Luz e Carlos Coqueijo, Ave Maria dos Retirantes,

interpretada por Maysa; Jards Macalé e Capinan apresentaram Gotham City).

Nenhuma das 36 canções classificadas para as eliminatórias sequer mencionava

temas relacionados com as questões políticas ou mesmo sociais daquele momento, o que fez com

que as torcidas por uma ou outra canção não se manifestassem de modo contundente; o festival

teve poucos aplausos e poucas vaias da plateia.

Tamanhamente pouco empolgante tanto do ponto de vista musical quanto do ponto de

vista social, o IV Festival Internacional da Canção não despertou paixões, tampouco representou

a continuidade da produção musical brasileira: “O IV FIC encerrava-se sem nenhuma música que

tivesse dado trabalho à Censura. Praticamente, canções românticas ou dançantes. ‘Seis

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espetáculos sem nenhum incidente, o mais tranquilo de todos os festivais’, estampava O Globo”

(HOMEM DE MELLO, 2003, p. 349).

Do ponto de vista estritamente musical, o IV FIC trouxe, ao menos, uma

contribuição: ratificou a posição de alguns artistas que se configurariam como grandes nomes da

música popular brasileira, da canção popular massiva brasileira, e que formariam a geração

sucedente àquela que despontara nos Festivais dos anos anteriores ao AI-5. Três compositores-

cantores apresentaram composições consistentes e performances precisas: Ando Meio Desligado,

de Rita Lee, interpretada pelo conjunto Os Mutantes; Madrugada, Carnaval e Chuva, de

Martinho da Vila, interpretada pelo próprio compositor; e Charles Anjo 45, de Jorge Ben,

interpretada pelo próprio compositor e pelo Trio Mocotó, são canções que foram apresentadas no

Festival e que denotaram o real valor artístico de seus autores-intérpretes.

O IV Festival Internacional da Canção, produzido pelo TV Globo, apontou para uma

série de possibilidades no que tange à mídia televisiva brasileira da época: o produto midiático

Festival de Música Popular aparentemente não se sustentava sem a geração de grandes

compositores exilados pelo regime militar. Possivelmente o formato tivesse se esgotado.

Eventualmente não apenas a música brasileira estava órfã, mas o formato do programa de

televisão Festival também.

Se o jornal pertencente ao grupo de comunicação da emissora de televisão que

realizou o IV Festival Internacional da Canção enalteceu o caráter “pacífico” do Festival,

naturalmente fica evidenciada a ausência de um caráter artístico mais pronunciado. Ainda assim,

o veículo midiático estenderia por mais três edições as exibições dos Festivais Internacionais da

Canção.

Por sua feita, a TV Record programou para os meses de novembro e dezembro do

mesmo ano de 1969 a realização do V Festival de Música Popular Brasileira. No entanto, três

graves incidentes alteraram sobremaneira o transcorrer do planejamento estratégico da emissora.

Logo no princípio do ano, no mês de janeiro, aconteceu o incêndio do edifício onde

se localizava a torre de transmissão do Canal 7, na Avenida Paulista; em 28 de março, outro

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incêndio destruiu o Teatro Record na avenida da Consolação; no dia 13 de julho, o Teatro Record

do Centro da cidade de São Paulo ficou quase todo arruinado112.

A TV Record precisou alterar parte significativa de sua produção, remanejando

programas, locais e cenários. Necessitou, também, reformular completamente a tabela de preços

cobrados pelos anúncios veiculados pela emissora. Tais fatos dificultaram a obtenção de recursos

suficientes para reformar os Teatros, comprar novos equipamentos, manter os grandes artistas em

sua folha de pagamento: “Os anunciantes ficavam exauridos porque, com um pequeno acréscimo

ao que lhes era cobrado pela Record para cobrir apenas a praça de São Paulo, poderiam alcançar

o Brasil todo anunciando na TV Globo” (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 353).

A direção da TV Record, um tanto desorientada em meio à perda de patrocínios,

equipamentos, cenários, estúdios e até mesmo artistas contratados, decidiu por manter na agenda

de programação o Festival que ocorreria pelo final do ano; a fórmula de sucesso, que tanto

angariou adeptos nos anos anteriores, poderia significar a retomada do rumo alvissareiro da

emissora.

No entanto, a direção artística da TV Record estruturou um Festival que não manteria

o formato das edições anteriores; desta feita, a competição musical seria incrementada com

debates públicos, transmitidos ao vivo, que dariam conta de avaliar a decisão dos jurados. Após

as apresentações das canções e da divulgação do resultado da noite, dois grupos de representantes

de cada música subiam ao palco para “defender” a decisão dos jurados em classificar ou

desclassificar a peça musical. A discussão não alteraria a decisão do júri, apenas traria um caráter

“polêmico” ao programa:

No desfigurado V Festival, as canções seriam avaliadas por um júri oficial mas, logo depois de apresentadas, deveriam ser submetidas a um tribunal formado por dois grupos de debatedores adversários que, esperava-se, deveriam se comportar entre o engraçadinho e o histriônico. A ordem era polemizar” (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 354).

112 A série de incêndios que acometeu emissoras de televisão no ano de 1969 levanta desde então inúmeras suspeitas ligadas a em eventual plano de sabotagem do governo militar contra os meios de comunicação no Brasil, tanto assim que também os estúdios da TV Globo, na rua das Palmeiras, em São Paulo, também foram destruídos por um incêndio.

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A decisão da direção artística não agradou ao público que assistia ao vivo às

apresentações no Teatro Record da rua Augusta, em São Paulo; Após o resultado ser anunciado,

boa parte da plateia abandonava as dependências do Teatro. Também não atraiu um maior

número de patrocinadores, atemorizados pelos altos valores cobrados pela emissora. Por fim, não

agradou aos concorrentes do Festival.

Os concorrentes também não estavam gostando: "Estão matando tudo, antes era um festival de música. Agora virou um festival de polêmicas, as estrelas são um grupo de debates e o júri. O cantor e a música são complementos”, declarou Tom Zé no ensaio para a segunda eliminatória (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 358).

Outra decisão pouco inspirada da direção artística da TV Record criou um elo até

então inexistente entre o modo de operar da emissora e da própria ditadura militar: “seriam

proibidas as guitarras, numa atitude de censura que se casava de véu e grinalda com o próprio

governo militar” (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 354).

A somatória de imperícias afastou inclusive o público que em regra lotava os Teatros

onde ocorriam os Festivais: “O afluxo de público ficou muito aquém do esperado pela emissora:

“O público não lotava nem os 400 lugares disponíveis e o balcão estava quase vazio” (HOMEM

DE MELLO, 2003, p. 355).

O fracasso do V Festival de Música Popular Brasileira era tanto previsível quanto

iminente. Após a noite da segunda eliminatória, a repercussão da mídia impressa revelava o

descontentamento generalizado com a organização, com a imperícia das decisões artísticas e até

mesmo com a produção musical apresentada no Festival: “‘Responda: você já viu festival pior do

que esse?’ era o título estampado no Jornal da Tarde de 22 de novembro. A matéria concluía: ‘o

que ele realmente merece é que a música de Paulinho da Viola não se classifique entre as

primeiras, porque é boa demais’ (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 358).

A “música de Paulinho da Viola” à qual o Jornal da Tarde se referia contrariaria o

desejo expresso pelo veículo de comunicação. A obra prima Sinal Fechado, interpretada pelo

próprio compositor, seria a vencedora do V Festival de Música Popular Brasileira e ganharia o

troféu “Viola de Ouro”.

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Se o veículo de comunicação foi contrariado pelo resultado, não o foi totalmente na

avaliação. Em fato, aquele foi um Festival que apresentou músicas de pouca expressividade, teve

diminuto afluxo de público, quase nenhuma repercussão.

As canções segunda e terceira colocadas, Clarisse, de Eneida e João Magalhães,

interpretada pelo cantor Agnaldo Rayol; e Comunicação, de Edson Alencar e Hélio Gonçalves

Matheus, interpretada por Vanusa, não causaram espécie.

Tampouco apresentavam qualidades discursivas que saltassem aos olhos outras

concorrentes, como Bola Branca, de Paulinho Nogueira, interpretada por Cláudia; Gostei de Ver,

de Eduardo Gudin e Marco A. Silva Ramos, interpretada por Márcia e pelo conjunto Os Originais

do Samba; Monjolo, de Dino Galvão Bueno e Eric Nepomuceno, interpretada por Maria Odete;

Infinito, de Reginaldo Bessa, interpretada por Agnaldo Rayol; Tu Vais Voltar, de Ribamar e

Romeu Nunes, interpretada por Antonio Marcos; Sou Filho de Rei, de João Mello e Fernando

Lobo, interpretada por Clara Nunes; Primavera, de Lupicínio Rodrigues e Hamilton Chaves,

interpretada por Isaurinha Garcia; Jeitinho Dela, de Tom Zé, interpretada pelo próprio

compositor e pelo conjunto Novos Baianos; Bola pra Frente, de Tom Zé; Vem Enquanto é

Tempo, de Moacir Franco e Fernando Lona; Moleque, de Luiz Gonzaga Jr., interpretadas por seus

próprios compositores.

Se, por um lado, de fato, a qualidade da produção musical do V Festival de Música

Popular Brasileira deixou a desejar, por outro lado são notáveis um par de acontecimentos

daquele Festival: a mescla de compositores e intérpretes que surgiam para o cenário musical

brasileiro com compositores e intérpretes de uma geração que precedeu o advento da Bossa Nova

na música popular brasileira (a cantora Márcia interpretou uma canção de Eduardo Gudin e

Marco A. Silva Ramos, enquanto Isaurinha Garcia interpretou uma composição de Lupicínio

Rodrigues e Hamilton Chaves); o surgimento de compositores como Eduardo Gudin e Luiz

Gonzaga Jr., que fariam parte de uma geração de grandes compositores que dominaria a cena da

canção popular massiva da década de 1970 e de parte da primeira metade da década de 1980 no

Brasil.

Porém, um fato ainda mais importante deve ser ressaltado: o aparecimento de uma

geração de cantoras de música popular (Cláudia, Márcia, Célia, Clara Nunes), inspiradas por e

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espelhadas no fenômeno musical que foi a cantora Elis Regina, ídolo surgido na geração

imediatamente anterior ao V Festival de Música Popular Brasileira.

O pianista Amilton Godoy revela a admiração e expõe a capacidade da cantora Elis

Regina em relação às outras cantoras de sua geração e das gerações anteriores a ela: “A primeira

viagem da Elis para o exterior foi com o Zimbo Trio, foi com o crooner; nós éramos mais

conhecidos do que a Elis. Depois ela veio e não deixou espaço para ninguém. Ela era fora de

série. Tão distante das outras...” (GODOY, 2013).

O compositor Ivan Lins reitera as palavras de Amilton Godoy: “Elis Regina era um

músico. Tinha excepcionalidade na afinação, na musicalidade e na interpretação das letras que

cantava. Ela se destacava por ter todas essas habilidades juntas e em altíssimo nível” (LINS,

2013).

No entanto, o surgimento de um par de grandes compositores e de uma geração de

grandes cantoras não salvou o V Festival de Música Popular Brasileira do fracasso, tanto do

ponto de vista comercial quanto artístico.

Soma-se a tantas perdas a mais significativa entre elas: as acomodações do Teatro

Record, na rua Augusta, em São Paulo, eram menores, o cenário ambientado não era empolgante,

a torcida pelas canções era tíbia e deslocada. Os incêndios ocorridos em 1969 queimaram não

somente o material do local mas sobretudo aniquilou a relação de mediação espontânea que

ocorria entre os artistas e o público e a relação de mediação midiatizada que ocorria entre o

público presente no Teatro e o telespectador em sua casa. O fenômeno de dupla des-mediação

empobreceu de modo definitivo o formato do programa televisivo Festival de Música Popular

exibido pela TV Record.

O canal 7 perdeu praticamente todo o seu equipamento por duas vezes seguidas. Se a programação que foi obrigada a produzir – após o primeiro incêndio nos estúdios – criou o inédito cenário que nenhuma outra emissora tinha, os rostos e a vibração espontânea da plateia participativa do Teatro Record não mais existiam. Os incêndios subsequentes dos dois teatros destruíram precisamente esse cenário fundamental, responsável pelo vínculo que se formou com o público (HOMEM DE MELLO, 2003, pp. 365-366).

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A equação entre perdas e ganhos apontou um número demasiadamente maior

daquelas sobre essas. Aquele seria o último dos Festivais da TV Record.

As perdas da TV Record, contudo, não suplantaram a perda que o fim dos Festivais

promovidos pela emissora representou para a música e para a mídia televisiva brasileira. A

primeira perdeu um importante espaço de veiculação de obras de grande qualidade discursiva; a

segunda, perdeu o elo de identificação com uma manifestação artística brasileira genuína e

grandiosa, como faz notar Álvaro Moya, diretor e produtor dos programas com conteúdo musical

veiculados na extinta TV Excelsior:

Essa emoção que a televisão não tem hoje, que terminou praticamente com os festivais de música popular, que começaram na Excelsior e depois foram para a Record, aquele foi o grande momento da emoção brasileira, né?! Na identificação com a música popular brasileira (MOYA, 2010, p. 103).

Finda a década de 1960, o Brasil se preparava para entrar na nova década imbuído do

ideário do governo do general Garrastazu Médici, que apregoava o investimento maciço na

infraestrutura de preparação da seleção brasileira que disputaria a Copa do Mundo no México

como uma entre outras formas de dar suporte à política econômica denominada “milagre

econômico brasileiro”113.

113 O Milagre Econômico Brasileiro é caracterizado pelo excepcional crescimento da economia brasileira entre os anos de 1968 e 1973, durante o Regime Militar no Brasil. Nesse período denominado politicamente de "anos de chumbo", a taxa de crescimento do PIB saltou de 9,8% a.a. em 1968 para 14% a.a em 1973. Concomitantemente, a inflação passou de 19,46% em 1968, para 34,55% em 1974, o que gerou um contraste social entre o aumento da concentração de renda de pequena parte da população e o aumento da pobreza de grande parte da população. Motivado por slogans ufanistas como o conhecido "Brasil, ame-o ou deixe-o", o perído do Milagre apregoava a possibilidade de transformar o Brasil numa potência econômica. Dados: GIAMBIAGI, F.; VILLELA, A.; BARROS DE CASTRO, L.; HEMANN, J. (orgs.). Economia Brasileira Contemporânea. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 2005.

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O início da década de 1970 – o V Festival Internacional da Canção da TV Globo e a inversão de valores.

O cenário político ainda era o da repressão à liberdade de imprensa e de expressão;

em verdade, o governo Médici arrochava ainda mais algumas das medidas repressivas do

governo anterior, do marechal Costa e Silva.

A música popular brasileira ainda sentia as ausências dos grandes compositores que

nasceram nos Festivais da segunda metade da década de 1960, exilados em diversos países,

produzindo raramente poucos discos, cujas faixas eram ainda menos tocadas nos veículos

midiáticos do Brasil.

A cena midiática brasileira, por sua vez, assistia ao crescimento da TV Globo

enquanto emissora de Televisão cujas torres de retransmissão cobriam quase todo o território

nacional, em movimento concomitante ao desenvolvimento de linhas de crédito que

impulsionavam um aumento significativo do número de residências brasileiras que dispunham de

um aparelho televisor.

A TV Globo, que vinha expandindo sua rede desde 1968, atingia predomínio maciço através de uma máquina bem azeitada, de uma imagem e programação uniformes – depois conhecida como Padrão Globo de Qualidade, idealizado por Boni [José Bonifácio de Oliveira Sobrinho] – difundidas por todas as afiliadas. Beneficiou-se ainda com o crescimento do número de aparelhos de televisão domésticos, alcançando 40% das residências urbanas em consequência das facilidades de crédito pessoal. (HOMEM DE MELLO, 2003, pp. 367-368).

Nesse contexto midiático-social, mesmo após o fracasso da TV Record na realização

do V Festival de Música Popular Brasileira, a TV Globo encampou a produção do V Festival

Internacional da Canção, marcado para o mês de outubro de 1970. A emissora aderiu – e, em

certa medida, potencializou – o clima de euforia que contagiou todo o país após a conquista do

Campeonato Mundial de Futebol no México e vislumbrou a possibilidade de estender o

entusiasmo a outra seara cultural massiva brasileira, a música popular.

Para tanto, investiu na compra de equipamentos de gravação, geração de imagens e,

sobretudo, de transmissão e retransmissão; a TV em Cores era uma realidade que se aproximava

célere e consistente. A realização do V Festival Internacional da Canção seria o momento em

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que possivelmente os avanços tecnológicos apresentariam a condição e a competência da

emissora – e, por conseguinte, do Brasil – ao Mundo.

O crescimento da emissora se refletiu nos antecedentes do V FIC. Prometendo uma transmissão a cores para toda a Europa e um documentário de 60 minutos feito pela Rede de Televisão Francesa com equipamento da EMI inglesa, o diretor da TV Globo Walter Clark se afinava perfeitamente com a euforia que se apossou do Brasil no ano de 1970 (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 368).

O investimento em tecnologia foi acompanhado do investimento num corpo de

jurados internacionais, no qual figuravam grandes nomes da música internacional: os cantores

Andy Williams e Percy Faith, norte-americanos, Carlos do Carmo e Amélia Rodrigues,

portugueses, teriam a incumbência de premiar a fase internacional da competição, que seria

realizada no Maracanãzinho, no Rio de Janeiro.

O repertório a ser interpretado na competição teria de ser avaliado por um órgão de

Censura, que teria acesso às canções selecionadas para as eliminatórias e, caso porventura

algumas das letras trouxessem um cunho político ou que resvalasse em problemas de ordem

econômica, social ou até mesmo comportamental, não participaria das eliminatórias.

O intento mais pronunciado do Festival era mostrar ao Brasil e ao exterior que as

situações política, econômica e social da população brasileira era a melhor possível, porquanto a

economia crescia a olhos vistos, a política provia a população de segurança, ordem e progresso, e

a sociedade brasileira orgulhava-se de sua cultura, pois o futebol era o único tricampeão e a

música popular era a mais criativa do Mundo. Tal criatividade seria flagrantemente exposta ao

público nacional e ao público do exterior no V Festival Internacional da Canção.

Gradualmente o festival se transformava numa grande janela escancarada para mostrar a felicidade do povo brasileiro. As odiosas vaias de cunho político eram coisa do passado. Driblando no futebol e sambando no carnaval, o povo agora torcia livremente por canções [...] a liberdade manifesta no Maracanãzinho era um símbolo vivo, talvez até mais valioso e eficaz que as ações da AERP (Assessoria Especial de Relações Públicas) promovidas no governo anterior. Claro, liberdade desde que não ofendesse a família brasileira (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 368).

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Os lucros que a música popular brasileira traria, presumivelmente não seriam apenas

aqueles referentes à imagem do Brasil no exterior. Patrocinadores trouxeram grande aporte

financeiro para a realização do Festival e a TV Globo estabeleceu um contrato com os artistas

participantes do concurso segundo o qual, tão logo findasse o Festival, as canções concorrentes

poderiam ser editadas em forma de partituras e gravadas em discos.

Tanto a edição e comercialização de partituras quanto a gravação e vendagem dos

discos seria feita por empresas ligadas à TV Globo:

Algumas canções do FIC, as mais celebradas supostamente, eram candidatas a possíveis rendimentos sob forma de edições e, vale recordar, também de gravações. Efetivamente o FIC foi um forte componente na criação da Sigla, que gerou a gravadora Som Livre, da Globo (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 371).

No entanto, toda a estrutura de lucro presumidos pela emissora não contava com uma

dificuldade provinda do campo musical: os grandes compositores brasileiros não participariam do

Festival, posto estarem exilados, e a geração de compositores que nascia naquele contexto sequer

tinha tido tempo hábil para se consolidar como a geração que sucederia aquela.

Assim, mesmo contando com grandes nomes da geração anterior (que não tinham

sido exilados) como Baden Powell e Paulo Cesar Pinheiro, que apresentaram a canção Sermão,

interpretada por Cláudia, ou Martinho da Vila, compositor e intérprete de Meu Laiaraiá, o

conteúdo musical do V FIC ficou a cargo de compositores pouco expressivos, que apresentaram

canções de qualidade estrutural-discursiva muito abaixo do que se esperava.

As canções Encouraçado, de Sueli Costa e Tite de Lemos, interpretada pelo cantor

Fábio; Conquistando e Conquistado, de Carlos Imperial e Ibrahim Sued, interpretada por

Guilherme Lamounier; Um milhão de Olhos, de Jorge e Sérgio, interpretada pelo grupo Terço; A

Charanga, de Wanderléa e Dom, interpretada pela própria compositora; E Coisa e Tal, de

Eduardo Souto e Sérgio Bittencourt; ou Diva, de Cesar Costa Filho, interpretada pelo grupo Som

Imaginário, não causaram espécie na plateia presente no Maracanãzinho, nem foram executadas

exaustivamente pelas Rádios, tampouco despertaram paixões em torcedores telespectadores do

concurso ou se tornaram grandes fenômenos de vendas de partituras ou discos; ao contrário,

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revelaram um discurso de compositores que se arvoraram à função, porém sem suficiente

capacidade para exercê-la.

A canção sertaneja, gênero à altura chamado de “moda de viola”, Rio Paraná, de Ary

Toledo e Chico de Assis, interpretada pela dupla Tonico e Tinoco, apresentada na primeira

eliminatória, demonstrou que o universo do Festival não comportava aquele gênero musical, por

mais que fosse um gênero amplamente difundido por todo o Brasil e encontrasse ressonância

evidente nas programações de Rádios e nos números de vendagens de discos.

As canções Feira Moderna, de Fernando Brant e Beto Guedes; Onoceonokotô, de

Nelson Ângelo, interpretada por Joyce e Toninho Horta; Um Abraço Terno em Você, Viu, Mãe?,

de Luiz Gonzaga Jr., revelaram uma geração de grandes compositores e intérpretes porém ainda

distantes dos artistas em que se transformariam a partir da segunda metade da década.

O destaque do V FIC ficou por conta da canção Eu Também Quero Mocotó, de Jorge

Ben, interpretada pelo maestro Erlon Chaves, autor do brilhante arranjo feito para a Banda

Veneno. A instrumentação composta por três trumpetes, três trombones, sax-contralto, bateria,

contrabaixo, guitarra e percussão, somada a um coro e bailarinos, perfaziam um total de 40

figuras em cena. Ainda havia espaço midiático-musical para os grandes arranjos e arranjadores. O

veículo midiático e o formato Festival comportavam, ainda, a concepção sonora complexa de

instrumentações sofisticadas.

Dois grandes compositores despontaram no V Festival Internacional da Canção

ocuparando o segundo e o terceiro lugares do Festival apresentando canções de alta qualidade

poética e padrão estético refinado: Universo do Teu Corpo, de Taiguara, interpretada pelo próprio

compositor, ficou em terceiro lugar; e O Amor é o Meu País, de Ivan Lins e Ronaldo Monteiro,

também interpretada pelo próprio compositor, ficou com o segundo lugar.

Contudo, a canção vencedora foi BR-3, de Antônio Adolfo e Tibério Gaspar,

interpretada por Tony Tornado, acompanhado pelo Trio Ternura.

O resultado controverso tem uma explicação na visão o compositor Ivan Lins,

segundo colocado no Festival:

Apareci em 1970, no Festival Internacional da Canção. A música chamava “O Amor é o Meu País” e ficou em segundo lugar, apesar de ser a favorita do público e da crítica. A música que venceu tinha um apelo mais popular, um

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swing que vinha da black music americana. Era boa música, mas o que mais chamava a atenção era que ela era próxima do universo do mercado americano. Naquela época a indústria era muito movimentada, havia muita coisa de qualidade e uma diversidade incrível (LINS, 2013).

Segundo as palavras do compositor, um elemento afastado da questão estritamente

musical, um tanto distante do conceito estrutural-discursivo de uma composição musical, foi o

fator decisivo para a escolha de BR-3 como a canção vencedora do Festival. Não era a melhor

música, a vencedora, mas a mais adequada a um conceito de mercado.

À parte a inversão de valores, privilegiando o mercado em detrimento do discurso

musical, a canção vencedora avançou para a fase internacional do Festival. A canção BR-3

representaria o Brasil nas apresentações da semana seguinte.

Na quinta-feira, dia da primeira eliminatória internacional, um grupo de 42 jornalistas e artistas ligados ao FIC foi recebido pelo presidente Médici no Palácio das Laranjeiras. O encontro durou quase uma hora, o presidente manifestou aos cantores de “BR-3” sua esperança de conquistarem o tricampeonato também na música. Alguns convidados acharam o chefe da Nação “uma extraordinária figura humana”, mas nenhum dos jornalistas presentes teve a oportunidade de conversar com o presidente sobre o que se dizia do Brasil no exterior (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 382).

Diferentemente do que ocorrera quatro meses antes, com a vitória da seleção

brasileira no México, desta feita o anseio do presidente da República não se concretizou. Pedro

Nadie, de José Tcherkaski e Piero Benedictis, que representava a Argentina, foi a canção

vencedora; BR-3 ficou com o terceiro lugar na fase internacional do V Festival Internacional da

Canção. Mesmo assim, o balanço black de Tony Tornado e do Trio Mocotó espelharam um dos

desejos do regime militar: mostrar ao Mundo a versatilidade rítmica essencial do Ser brasileiro e

a felicidade momentânea da população do país.

Se alguém ainda tinha dúvidas, o V FIC deixou claro que havia pressão do governo militar para que os festivais e a própria música popular fossem mantidos como eficazes torpedos para mostrar ao resto do mundo o quanto havia de alegria e felicidade no seio do povo brasileiro (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 390).

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Mais do estampar, à altura, a felicidade de um povo, os procedimentos que se

evidenciaram na realização do V Festival Internacional da Canção demonstram um par de fatores

que nos interessam de perto: o mais importante veículo da mídia televisiva brasileira, a TV

Globo, estreitava laços conceituais com o regime militar, que sinalizava pronunciado interesse

pela música popular brasileira enquanto produto de veiculação de mensagens dentro do Brasil e

de exposição do Brasil no exterior; surgia incipiente uma inversão de valores que distorcia a

relação da mídia com a música popular brasileira, de modo a sobrepujar questões mercadológicas

a questões estruturais discursivas da canção popular massiva brasileira.

Ambos os fatores ficam deflagrados na entrevista da dupla Dom e Ravel à revista

Veja, em fevereiro do ano seguinte, 1971.

A questão mercadológica foi abordada primeiramente. Perguntados acerca do

extraordinário sucesso da marchinha Eu Te Amo, Meu Brasil, gravada no compacto lançado em

outubro de 1970, que atingiu a casa de 200 mil unidades vendidas no início do ano seguinte, os

componentes da dupla responderam: “Pode colocar que é fabricada mesmo. Para uma música

fazer sucesso, nós estudamos o mercado com todos os detalhes. Temos um trabalho planificado,

pastas com paradas de sucesso, épocas do ano, faixas de público” (REVISTA VEJA, 1971 ou

HOMEM DE MELLO, 2003, P. 391).

Em seguida, foi abordada a questão do interesse do regime militar na canção massiva

brasileira. Perguntados acerca de um boato que circulara à época de que o governo militar

intentava substituir o Hino Nacional justamente pela música de grande sucesso da dupla, a

resposta foi clara: “Se o governo nos honrar com a deferência, muito bem. O hino brasileiro é

muito pessimista. Fala que o Brasil vai ficar deitado. O Brasil está de pé. Olha só a

Transamazônica” (REVISTA VEJA, 1971 ou HOMEM DE MELLO, 2003, P. 391).

O estreitamento de laços entre a mídia televisiva e o regime militar na década de 1970 – o VI FIC, produzido e exibido pela TV Globo

Nesse clima de patriotismo tanto exacerbado quanto inconsequente, a TV Globo

definiu o mês de setembro do ano de 1971 como data da realização do VI Festival Internacional

da Canção.

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Antes, porém, em abril de 1971, a emissora passou a exibir um programa de conteúdo

musical nas noites de quinta-feira, o Som Livre Exportação. A noite de estreia foi exibida

diretamente do parque do Anhembi, em São Paulo, e milhares de pessoas lotaram o local para

assistir e ouvir a música brasileira de alto teor poético, de padrão estético de excelência,

produzida pelos artistas que estavam no Brasil e por artistas que traçavam seu caminho de volta

do exílio.

O par de apresentadores do programa não deixava margem de dúvidas quanto à

qualidade do repertório e das execuções musicais que ali se dariam: Elis Regina e Ivan Lins. O

cantor e compositor Raimundo Fagner categoriza os apresentadores do Som Livre Exportação e

também determina a característica do programa: “Elis era meu ídolo. Eu vi a Elis no Som Livre

Exportação, era louco pela Elis. Ivan Lins também foi um cara muito importante para mim. Eu

estava muito focado no Som Livre Exportação, que era o que havia de moderno na televisão

brasileira no que se tratava de música” (FAGNER, 2013).

Porém, a despeito do sucesso e da qualidade musical do programa Som Livre

Exportação, a TV Globo manteve-se determinada a realizar o VI Festival Internacional da

Canção.

Um par de entraves prenunciava o fracasso do Festival: os grandes compositores

brasileiros estavam a traçar o caminho de volta para o Brasil, mas ainda encontravam-se exilados;

a Censura interpunha-se de modo desastroso entre a Mídia e a Música, na medida em que o

regime militar, apesar de reconhecer o poderio da mídia (e a consequente necessidade de dirimir

as dificuldades em favor do sucesso da parceria), não abria mão de controlar minuciosamente o

conteúdo das mensagens musicais contidas nas letras das canções que seriam inscritas.

O controle da Censura era nocivo à criação de um elenco dos grandes compositores brasileiros, justamente os que poderiam ser tão importantes para o VI FIC. A TV Globo desejava garantir a retomada de sua participação em festival, mas nenhum deles estava minimamente interessado em inscrever música (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 392).

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A TV Globo delegou ao compositor Gutemberg Guarabira, vencedor do II FIC114, a

tarefa de reunir o maior número de grandes compositores e de grandes peças musicais possível

para o Festival.

Guarabira, então, arquitetou a ideia de convidar os grandes nomes da música popular

brasileira da época, pertencentes à geração dos Festivais da segunda metade da década de 1960.

Esses compositores, que aos poucos voltavam de seus exílios, seriam a parte mais importante do

elenco de artistas que inscreveriam suas músicas no VI FIC. Para tanto, tais compositores não

teriam de participar do processo de seleção de músicas, de tal sorte que suas obras inscritas

seriam automaticamente selecionadas para as fases eliminatórias.

A seleção dos compositores que fariam parte dessa seleta lista seria feita da seguinte

maneira: os principais órgãos de imprensa receberiam os nomes de compositores que haviam

participado de festivais anteriores; cada órgão de imprensa escolheria 12 nomes e os mais

votados seriam convidados a participar o VI FIC na condição de hors-concours: “A princípio

seriam 17 vagas reservadas para essa elite, competindo lado a lado com as composições que se

inscrevessem” (HOMEM DE MELLO, 2003, pp. 392-393).

A estratégia parecia eficaz, na medida em que poderia atrair os grandes compositores

para o Festival, sem ferir o código de ética da competição, posto os compositores da “elite”

participarem do concurso como convidados hors-concours; além disso, o gesto elegante da

organização do Festival viria do fato de ser evitado o constrangimento de impor aos grandes

compositores a seleção prévia de suas músicas e tal gentileza poderia sensibilizar os

compositores.

No entanto, até o dia 4 de setembro daquele ano, apenas duas músicas foram

apresentadas pelo grupo de 12 compositores escolhidos pelos órgãos de imprensa: Calabouço, de

Sérgio Ricardo, e Instantâneos, de Marcos e Paulo Sérgio Valle.

Um fato contribuiu para agravar ainda mais a situação da TV Globo: a Censura, tanto

insensível ao constrangimento do veículo midiático quanto desastrada nos gestos que poderiam

atravancar a relação de cooperação que se estabelecia entre emissora e regime militar, impôs uma

114 Ver p. 281.

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espécie de “fichamento” aos compositores que participariam do VI Festival Internacional da

Canção.

Em 1º. de setembro, a Polícia Federal determinou que todos os participantes do VI FIC deveriam ser registrados em seus arquivos até uma semana antes do primeiro espetáculo, visando “sanear a área”. Seria fornecida uma carteira com nome, identidade oficial, foto 3 x 4 e especialidade no FIC (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 393).

A medida antipática da Censura sobrepôs todos os esforços da TV Globo e serviu

como um fator motivador para que, a duas semanas do início do Festival, provocasse a

desistência da grande maioria dos possíveis grandes compositores convidados pela organização

do concurso.

No dia 9 de setembro, duas semanas antes da abertura, a coordenação do FIC divulgou que das 17 vagas disponíveis para os hors-concours apenas 10 seriam preenchidas. Dori Caymmi, Taiguara, Milton Nascimento, Ivan Lins, Baden Powell, Os Mutantes e Caetano Veloso haviam se recusado a participar e estavam definitivamente fora (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 394).

Os demais compositores, que não declararam a desistência, tardavam a confirmar

suas inscrições: “As letras das músicas dos demais, Paulinho da Viola e Capinan, Egberto

Gismonti, Paulinho Tapajós, Edu Lobo e Ruy Guerra, Tom Jobim e Chico Buarque, Tibério

Gaspar e Antonio Adolfo, continuavam a ser aguardadas” (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 394).

Finalmente, no dia 16 de setembro, doze compositores, responsáveis por sete músicas

que participariam do VI Festival Internacional da Canção na qualidade de hors-concours,

cancelaram sua participação. Os editores de O Pasquim foram os intermediários da carta à

direção do FIC115.

115 A íntegra da carta: “Prezados senhores,

Os compositores que abaixo assinam o presente documento renunciam à sua participação no VI Festival Internacional da Canção Popular. As razões são públicas e notórias: a exorbitância, a intransigência e a drasticidade do Serviço de Censura na apreciação do que lhe tem sido submetido, afora exigências burocráticas inconcebíveis, tais como cadastramento e carteirinha dos participantes, estranhas ao que

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Sem a presença dos convidados hors-concours, as canções Sanfona de Prata, de Luiz

Gonzaga Jr., interpretada pelo próprio compositor, e Casa no Campo, de Zé Rodrix e Tavito,

interpretada pelo grupo Faya, na eliminatória da primeira noite; e Desacato, de Antônio Carlos e

Jocafi, interpretada pelos próprios compositores (que seria premiada como a terceira colocada do

Festival), foram as gratas revelações de obras de compositores cujos conteúdos estruturais

discursivos mostravam-se consistentes musicalmente.

As canções de Gonzaguinha, Zé Rodrix e Tavito, Antonio Carlos e Jocafi, foram

ladeadas pelas inexpressivas O Visitante, de Jorge Amidem e César das Mercês; Você Não Tá

com Nada, de Sílvio Cesar; Não Existe Nada Além de Nós, de Fernando Cesar e Nelson de

Morais Filho; Voltar, Eu Não, de Luís Bandeira; Sem Volta, de Guilherme Dias Gomes e Caique.

Zuza Homem de Mello, ao se referir ao final da primeira noite de eliminatórias,

aponta a repercussão midiática do VI FIC:

Na noite seguinte, foi impingida outra dose de 25 músicas inéditas para um público diminuto, calculado em 2,5 mil assistentes. “O Maracanãzinho estava melancolicamente quase vazio... O nível abaixo do medíocre das músicas e das letras que foram levadas ao palco do festival foi o único culpado pelo insucesso”, descreveu o Correio da Manhã (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 406 – grifo do autor).

O melancólico resultado final do VI Festival Internacional da Canção apontou a

canção Kyrie, de Paulinho Soares e Marcelo Silva, interpretada por Evinha, como a vencedora do

normalmente se adota para tais circunstâncias. Sem esquecer sempre a desqualificação dos que exercem uma função onde a sensibilidade e o respeito pela arte popular são prioritários.

Agradecemos à direção do Festival e à imprensa que honrosamente nos indicou para uma participação que, diante do exposto acima, torna-se impossível e impraticável.

Assinado: Paulinho da Viola, Ruy Guerra, Sérgio Ricardo, Tom Jobim, José Carlos Capinan, Chico Buarque, Vinicius de Morais, Toquinho, Marcos e Paulo Sérgio Valle, Edu Lobo e Egberto Gismonti.

Rio, 15/9/1971.

P.S.: Os demais compositores convidados não se manifestaram em virtude de não se encontrarem momentaneamente na cidade.” (HOMEM DE MELLO, 2003, pp. 394-395).

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Festival e a canção Karany Karanuê, de José de Assis e Diana Camargo, interpretada pelo Trio

Ternura, como a segunda colocada.

A proximidade entre o veículo midiático e o regime militar, que outrora fora entre o

veículo midiático e a música popular brasileira comprometida com o acuro discursivo e a

produção de obras de alto padrão estético, apresentou uma nova ordem, na qual os prejuízos de

produção e, sobretudo, estéticos, eram impostos ao veículo midiático pelo regime militar e refluía

ao regime na medida em que o Festival Internacional da Canção reforçava no exterior uma

imagem de felicidade do povo brasileiro, porém levava ao exterior a sonoridade de uma produção

musical menos qualificada do que aquela com a qual o Mundo se acostumara a ouvir.

Em meio à somatória de prejuízos de ambos os lados, ficava a música popular

brasileira que, na posição de canção popular massiva, via empobrecido seu discurso e não assistia

à reposição, à renovação, ao surgimento de novas gerações de grandes compositores

comprometidos com a produção de uma música brasileira pautada pelo rigor poético em busca de

um alto padrão estético.

O VII FIC da TV Globo, os erros sucessivos, e o fim da Era dos Festivais Mesmo em meio a tantos percalços, a TV Globo definiu o mês de setembro de 1972

para a realização do VII Festival Internacional da Canção, com as apresentações da final

transmitidas diretamente do Maracanãzinho, no Rio de Janeiro.

A emissora saltava na frente no âmbito tecnológico e, no mês de março daquele ano,

gerava e transmitia o primeiro programa em cores da história da Televisão brasileira: “Em março

de 1972 a TV Globo comandara a rede nacional do programa inaugural da televisão em cores no

Brasil – um filme sobre a vida de Cristo e o documentário Viagem pelo Brasil, transmitido

através do sistema PAL-M para aproximadamente 5.000 aparelhos existentes no país” (HOMEM

DE MELLO, 2003, p. 413 – grifo do autor).

O formato de disputa do Festival seria um tanto mais enxuto, posto ter sido uma das

falhas da edição anterior o excesso de concorrentes tanto na fase nacional quanto na

internacional. Seriam apresentadas apenas 15 canções em cada uma das eliminatórias (em lugar

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das 25 do ano anterior), realizadas nos dias 16 e 17 de setembro e 12 cançõs seriam as finalistas

do programa a ser exibido no dia 30 de setembro (em lugar das 20 do ano anterior).

Outra mudança no formato do programa foi o acréscimo de uma música no bloco que

representaria o Brasil na fase internacional. Desta feita, duas seriam as representantes, em lugar

de apenas a campeã representar o país que sediava o concurso. A emissora intentava aumentar as

chances de vitória no certame, fato que entrava em plena consonância com as estratégias do

regime militar, que insistia em fomentar a imagem de um país-potência pelos sucessos em

certames de diversas espécies.

O elenco de compositores que inscreveram músicas no VII FIC emprestava um alento

promissor à direção do Festival, sempre ao cargo de Solano Ribeiro.

Hermeto Paschoal apresentou a canção Serearei, interpretada por Alaíde Costa; Raimundo

Fagner interpretou sua própria composição Quatro Graus; Belchior e Ednardo apresentaram e

interpretaram Bip... Bip; Alceu Valença e Geraldo Azevedo apresentaram Papagaio do Futuro,

interpretada pelo mítico Jackson do Pandeiro; Raul Seixas apresentou duas canções, Let me sing

interpretada por ele mesmo, acompanhado do conjunto Os Lobos, e Eu sou eu, Nicuri é o

diabo na qual foi acompanhado pelo Grupo Feiner; o grupo Os Mutantes apresentou e interpretou

a canção Mande um abraço pra velha; e uma notável surpresa vinda da Bahia, Sérgio Sampaio,

apresentou a marcha-rancho Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua, que encantou Nara Leão, a

presidente do júri da fase nacional: “A presidente do júri, Nara Leão, não se conformou que seus

companheiros tivessem desprezado Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua com Sérgio Sampaio”

(HOMEM DE MELLO, 2003, p. 427).

Outro grupo de compositores menos expressivos também teve suas canções

selecionadas para as eliminatórias: Fototi e Fauzi Arap apresentaram Carangola ou Navalha na

Carne, interpretada por Marlene; Sirlan e Murilo apresentaram Viva Zapátria, interpretada por

Murilo; Roberto L. da Silva e Roberto F. dos Santos trouxeram A Volta do Ponteiro, interpretada

pelo conjunto Os Originais do Samba; Oscar Torales apresentou e interpretou a canção

Liberdade, Liberdade; e Luli trouxe à plateia Flor Lilás.

Duas canções surpreenderam positivamente o corpo de jurados: o samba Nó na Cana,

de Ari do Cavaco e César Augusto, e Automóvel, de um compositor que contava apenas 16 anos

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de idade e que seria um dos protagonistas de Festivais realizados a partir do final da década de

1970: Oswaldo Montenegro.

O compositor Walter Franco, em início de carreira, apresentou e interpretou a canção

Cabeça, de caráter e linguagem experimentais. Ao mesmo tempo em que foi vaiado pelo público:

“o público, despreparado para aquela linguagem poética adensada, vaiou violentamente”

(HOMEM DE MELLO, 2003, p. 420), tornou-se um dos favoritos do júri. O jurado Sérgio

Cabral declarou, no dia em que a canção foi apresentada: “Só quero destacar o trabalho de Walter

Franco em ‘Cabeça’. Essa música é genial porque mostra que a vanguarda brasileira não tem

nada a ver com a vanguarda americana” (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 421).

Baden Powell e Paulo César Pinheiro, remanescentes da geração anterior,

apresentaram o excelente samba Diálogo, interpretado por Cláudia Regina; Jorge Ben apresentou

a canção Fio Maravilha, interpretada por Maria Alcina, uma cantora considerada por parte da

direção do Festival e também da TV Globo como uma promessa musical: “o erro de cálculo [de

Solano Ribeiro, diretor artístico do Festival] foi considerar Maria Alcina como o maior fenômeno

surgido na música popular brasileira depois de Carmen Miranda e Elis Regina” (HOMEM DE

MELLO, 2003, p. 415).

De fato, a aposta da emissora no novo “fenômeno da música popular brasileira” não

se concretizou sequer na apresentação de Fio Maravilha na primeira eliminatória. A performance

“abaixo do esperado” de Maria Alcina provocou a declaração do próprio diretor Solano Ribeiro:

‘“A roupa que ela usou agrediu o público, assustou um pouco...’, justificou Solano Ribeiro ao

jornal O Globo, confiante que ela ainda iria estourar no FIC” (HOMEM DE MELLO, 2003, p.

421).

A avaliação do diretor Solano Ribeiro indica o desvio da direção artística da TV

Globo à altura, no que tange aos elementos que deveriam ser considerados quando da

consideração dos requisitos necessários a uma grande cantora ou intérprete. O diretor refere-se à

vestimenta em lugar da voz, da técnica ou da capacidade interpretativa.

Poucos dias antes do programa que exibiria a final do VII Festival Internacional da

Canção, no dia 30 de setembro, dia da apresentação das canções finalistas, a Censura Federal

voltou a entravar de forma autoritária, pouco sutil, nada perspicaz, o processo da TV Globo na

condução de um Festival de Música Popular.

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O diretor da emissora, Walter Clark, sob o argumento de que “ordem de militares não

se discute”, comunicou o diretor artístico Solano Ribeiro de um fato: a presidente do júri, Nara

Leão, deveria ser afastada: “Os militares impunham a saída de Nara por não terem gostado de

uma entrevista sua ao Jornal do Brasil desancando o que acontecia no país” (HOMEM DE

MELLO, 2003, p. 422).

Após a discussão, a ordem dos militares foi cumprida à risca pelo diretor Walter

Clark e foi comunicado o afastamento de Nara Leão da presidência do júri.

Evidentemente, os colegas de Nara Leão contestaram a decisão e abandonaram o

Festival, redigiram um comunicado e, na noite do domingo, dia 30 de setembro, foram ao

Maracanãzinho e exigiram dos diretores do Festival que o comunicado fosse lido antes da

apresentação das canções candidatas. Um dos diretores da TV Globo tomou a decisão: “Boni

[José Bonifácio de Oliveira Sobrinho] foi rápido no gatilho, passou os olhos no texto e disse: ‘Se

vocês tirarem esse primeiro período (falando mal da Globo) eu mando ler’. Assim foi decidido”

(HOMEM DE MELLO, 2003, p. 427).

A emissora convidou jurados internacionais e compôs o novo júri, que seria presidido

por Lee Zitho, editor da revista Billboard. Os jurados receberiam uma tradução literal das letras

em inglês e francês:

Por exemplo, “Eu quero é botar meu bloco na rua” foi traduzida por uma senhora, que confessou estar meio sem prática para a tarefa, para “I want to put my block in the street” o que, na cabeça dos gringos, foi entendido como “eu quero colocar meu enorme pedaço de pedra na rua” (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 422).

O despreparo artístico de parte da direção da TV Globo no que tange à Música ficava

a cada fato mais evidente.

Antes da apresentação da primeira finalista, o locutor Murilo Neri tomou o microfone

e leu o comunicado do júri brasileiro, destituído de suas funções pela direção do Festival, no qual

o júri, baseado no critério de que haviam sido convidados para aquela tarefa em nome de

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encamparem o início da consolidação de uma renovação na música popular brasileira, apontava

as vencedoras: Cabeça, de Walter Franco, e Nó na Cana, de Ari do Cavaco e César Augusto116.

Após a leitura do comunicado foram apresentadas as canções finalistas e o júri

internacional premiou a canção Fio Maravilha, de Jorge Ben, interpretada por Maria Alcina,

como a vencedora do VII Festival Internacional da Canção; Diálogo, de Baden Powell e Paulo

César Pinheiro, ficou com o segundo lugar.

Nesse ambiente degenerado foram proclamadas as duas vencedoras brasileiras que disputariam na noite seguinte com as 12 estrangeiras a final internacional: “Diálogo” e “Fio Maravilha”. Nem Baden Powell nem Jorge Ben, seus compositores, podiam ser considerados representantes da renovação prometida (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 428).

Entretanto, a imperícia da TV Globo, organizadora do Festival, ainda se mostraria

mais pronunciada em dois fatos ocorridos antes da divulgação do resultado final.

O primeiro deles: seguros de que a cantora Maria Alcina seria a nova e avassaladora

estrela da música popular brasileira, os diretores artísticos da emissora burlaram as regras que

eles mesmos instituíram para o Festival e forçaram a cantora a repetir sua apresentação tão logo

ela terminara de cantar Fio Maravilha; a TV Globo instituiu, com mão de ferro (qual a ditadura

militar), o “bis” antes de a música ser declarada vencedora, fato que não ocorreria numa situação

sem a intervenção da Organização do Festival.

116 A íntegra do comunicado: “Os integrantes do júri da fase nacional do VII Festival Internacional da Canção, cumprindo sua finalidade de apontar as duas composições musicais que representarão o Brasil na final internacional, decidiram indicar as seguintes concorrentes: ‘Cabeça’, de Walter Franco e ‘Nó na Cana’ de Ari do Cavaco e César Augusto. Ao tempo que divulgam esta decisão, os membros do júri manifestam sua estranheza ante a decisão do festival, destituindo-os sem qualquer explicação. Consideram ainda sua destituição um ato arbitrário e altamente suspeito.

Rio de Janeiro, 30 de setembro de 1972.

Nara Leão – presidente – Rogério Duprat, Décio Pignatari, Alberto N. C. de Carvalho, Léa Maria, Sérgio Cabral, Guilherme Araújo, João Carlos Martins, Walter Silva, Roberto Freire, Mário Luiz e Big Boy.” (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 427).

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Quando terminou sua apresentação na final internacional, os diretores da Globo Walter Clark e Boni aguardavam-na atrás do palco, incentivando-a a bisar o número, o que nunca tinha acontecido. Por conta da performance de Maria Alcina, Jorge Ben recebeu um prêmio que não estava programado. Pressionado, o júri houvera criado duas menções honrosas, uma para “Fio Maravilha” e outra para a canção grega [Velvet Mornings, de Demis Roussos]. Posteriormente, Roussos afirmaria que receber menção honrosa foi um insulto (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 431).

O segundo fato: após as canções terem sido apresentadas, a direção da emissora

recebeu o resultado e forçou o diretor artístico a mudar o resultado apontado pelo júri, em favor

de uma canção brasileira, interpretada pela cantora que a direção da TV Globo intentava

apresentar ao público (brasileiro e internacional) como o “novo fenômeno da música popular

brasileira”.

Um dos apresentadores do festival, Solano Ribeiro, aproximou-se correndo do assessor de imprensa João Luiz de Albuquerque: “o Walter Clark está me dizendo que eu preciso mudar o resultado final do festival. Não deu “Fio Maravilha” com a Maria Alcina e eles querem que eu mude, trocando com o segundo. E eu disse que não admito isso e que vinha falar com você para chamar a imprensa” (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 428).

A possibilidade premente de um escândalo vazado na imprensa fez com que a direção

da TV Globo recuasse e aceitasse a decisão do júri.

O resultado não foi mudado. Enquanto o júri popular deu a vitória à música da Itália, “Aeternum”, com o conjunto Formula Ter, o júri internacional premiou mesmo o crooner do Blood, Sweat and Tears, David Clayton Thomas com sua voz de Ray Charles Branco. Se Solano não tivesse peitado uma das duas figuras mais importantes da Globo e da televisão brasileira, teria sido dada a vitória à música defendida pela cantora em quem a TV Globo apostava antes mesmo do FIC (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 429).

Aquele seria o último Festival Internacional da Canção realizado pela TV Globo:

“Em maio do ano seguinte, a direção da Globo admitiu que o FIC de 1973 não seria realizado,

alegando falta de interesse dos patrocinadores” (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 433).

A truculência do regime militar, a imperícia de parte dos diretores executivos e de

diretores artísticos da emissora, a dificuldade de se criar uma nova geração de compositores sem

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a referência da geração anterior, a repetição do formato, a diminuição do interesse do público, a

menor repercussão mediada e midiática, a perda de audiência, a consequente dificuldade em

captar e manter os patrocinadores, levou a TV Globo a abandonar a realização dos Festivais.

Zuza Homem de Mello, o técnico de som responsável por inserir o público

telespectador no ambiente do Teatro Paramount nos Festivais realizados pela TV Record nos

meados da década de 1960, perguntou ao criador e diretor dos Festivais realizados pela TV Globo

o motivo pelo qual a emissora decidiu não encampar a produção daquele que seria o VIII Festival

Internacional da Canção: “Por que os festivais foram interrompidos? O criador dos Festivais,

Solano Ribeiro, responde: “Porque a Globo ficou cansada de resolver problemas políticos. A

Globo se desinteressou por festival. Preferiu parar e parou” (HOMEM DE MELLO, 2003, p.

433).

Em fato, os problemas políticos foram parte fundamental na derrocada dos Festivais

realizados pela TV Globo. No entanto, há um fator distante do âmbito político que nos interessa

sobremaneira trazer em coleção: no âmbito artístico, ainda mais especificamente no âmbito

musical, a TV Globo e os Festivais realizados pela emissora enfrentaram problemas graves

provindos do negligenciamento de um conceito essencial para aquela espécie de programação

televisiva.

Um Festival de música presume como elemento constituinte de sua essência o acuro

na produção, na execução, na sonorização, na transmissão, na avaliação e na premiação da peça

musical. O componente estrutural, provindo da capacidade de o compositor fazer uso dos

recursos de linguagem de que dispõe (explicitado na grafia da partitura), que compõem o discurso

melódico-harmônico-rítmico-literário da canção popular massiva é o elemento fundamental do

que se pode nomear como um conceito de apreciação de “música popular”.

Sem boa música não se faz um bom Festival. O produto midiático requer o produto

musical. Sem este, aquele deixa de existir.

Forjar a confecção de um produto midiático de conteúdo musical sem se ater à

concepção musical-em-si, é um erro essencial, pois acomete a instância-primeira, essencial,

arquetípica, do próprio produto midiático: a Música.

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Nos quase 30 anos subsequentes foram realizados festivais esparsos e se alguém ainda mantinha expectativas de que se pudesse reviver a Era dos Festivais, o Festival da TV Globo em 2000 foi uma prova dos nove a sepultar qualquer nesga de esperança, à qual se podem aduzir os ridículos e pretensiosos programas, também da Globo, Música do Século. Em ambos se revela que na cúpula da produção não havia o elemento indispensável: não havia quem tivesse ouvidos de músico (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 433).

Assim, negligenciando o elemento musical, privilegiando outros elementos, posturas,

até mesmo necessidades, a TV Globo encerrava aquela a que se chama Era dos Festivais, iniciada

pela TV Excelsior e que teve seu ápice nas realizações da TV Record. Os diferentes veículos

midiáticos estiveram presentes em distintos momentos e distintas medidas na ambientação de um

importante momento da história tanto da mídia quanto da música popular brasileiras; um

momento importante na história da cultura de massa brasileira, da cultura brasileira; um momento

importante na história do Brasil: “O povo brasileiro precisa saber. Saber também que em 1º. de

outubro de 1972 terminava o último festival de uma era. Acabou-se. A Era dos Festivais saiu do

ar.” (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 435).

Tentativas esparsas de recuperação do sucesso da fórmula – a ausência de “ouvidos de músico”

Após decidir interromper a série de Festivais Internacionais da Canção, realizados

anualmente entre 1966 e 1972, a TV Globo ainda tentou reviver a fórmula Festival de Música

Popular no ano de 1975. Não mais como um Festival Internacional mas, sim, como um Festival

de Música Popular, nos moldes dos realizados pela TV Record quase dez anos antes.

Embalada pela expressão “Abertura”117, referente ao processo de distensão política

iniciado pelo regime militar no ano anterior, a TV Globo denominou seu concurso musical de

Festival Abertura, que ocorreu no mês de fevereiro de 1975.

117 O processo de abertura política teve início no ano de 1974, no governo do general Ernesto Geisel, e terminou no ano de 1985, no governo do General João Batista de Oliveira Figueiredo, quando do final do regime de exceção. Ao passo que parte da sociedade civil pedia um processo de abertura fincado na anistia ampla, geral e irrestrita, o governo Geisel propôs um longo processo de uma abertura lenta, gradual e segura, com duração de mais de dez anos.

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Apresentando eliminatórias repletas de canções e compositores pouco expressivos,

vale destacar apenas as canções que ocuparam as primeiras colocações no concurso.

O terceiro colocado foi o compositor Walter Franco, com a canção Muito Tudo,

interpretada pelo próprio compositor, que surgira no VII FIC, três anos antes. Mantendo a

proposta de uma música de vanguarda, o compositor definia um estilo do qual não mais se veria

apartado ao longo de sua carreira.

Os dois primeiros colocados, contudo, eram compositores que viriam a se consolidar

como grandes nomes da música popular brasileira, notadamente o cantor e compositor Djavan,

que foi o segundo colocado com a canção Fato Consumado, mas também o cantor e compositor

Carlinhos Vergueiro, que foi o vencedor do Festival com a canção Como Um Ladrão; ambos os

compositores interpretaram suas músicas.

Foi dado um prêmio especial ao compositor Alceu Valença pelo “Melhor Trabalho de

Pesquisa”, com a canção Vou Danado pra Catende, interpretada pelo próprio compositor,

também oriundo do VII FIC; o prêmio de “Melhor Arranjo” foi para Hermeto Paschoal,

compositor também oriundo do VII FIC, que interpretou sua Porco na Festa; o prêmio “Melhor

Intérprete” coube à já então renomada cantora Clementina de Jesus, por A Morte de Chico Preto,

de Geraldo Filme de Souza.

O Festival Abertura, mesmo apresentando dois compositores da nova geração de

grandes nomes da canção popular massiva brasileira, pouco empolgou o público telespectador,

menos ainda o meio musical, que já conhecia o compositor Carlinhos Vergueiro por seus dois

compactos duplos lançados no ano de 1973 e por seu LP lançado em 1974. Djavan, o segundo

colocado, também já era conhecido pelo meio musical (e também pelo grande público) pela

gravação da canção Calmaria e Vendaval, de Toquinho e Vinicius de Morais, que integrara a

trilha sonora da novela Fogo Sobre Terra, de Janete Clair, dirigida por Walter Avancini,

produzida ainda em preto e branco, exibida entre maio de 1974 e janeiro de 1975, às 20H00, pela

TV Globo.

O Festival Abertura, desse modo, foi responsável, em certa medida, por apresentar ao

grande público os dois compositores da nova geração, mas não desempenhou a função de revelar

os compositores e suas obras, que já eram conhecidas do público por via de outros aparatos

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midiáticos (o disco) ou de outras programações do aparato midiático televisivo (a trilha sonora da

novela).

Quatro anos separariam o Festival Abertura, realizado pela TV Globo, de uma nova

investida no formato Festival de Música Popular, desta vez a ser realizado por uma outra

emissora de Televisão, que à altura vivenciava um processo de derrocada administrativo-

financeira.

Em 1979, um ano antes de ter a concessão cassada pelo governo brasileiro por conta

de problemas administrativos e déficit financeiro, a TV Tupi (fechada em 16 de julho de 1980)

lançou um programa cujos moldes não faziam parte de sua principal expertise, o Festival de

Música Popular chamado Festival 79 de Música Popular, também chamado Festival da MPB.

Notou-se, quatro anos depois do Festival Abertura da TV Globo, uma tendência já

apontada pelo concurso realizado no ano de 1975: as três primeiras colocadas foram canções de

compositores já consagrados pelo mercado fonográfico da música popular brasileira ou por

participações em Festivais anteriores.

A canção vencedora foi Quem me Levará Sou Eu, de Manduka e Dominguinhos,

interpretada por Raimundo Fagner; a segunda colocada foi a canção Canalha, de Walter Franco,

interpretada pelo próprio compositor; a terceira colocada foi a canção Bandolins de Oswaldo

Montenegro, interpretada pelo próprio compositor e pelo cantor José Alexandre.

Novamente, qual acontecera no Festival Abertura, realizado pela TV Globo, não

surgiram no Festival da MPB, realizado pela TV Tupi, novos grandes compositores da música

popular brasileira; ao contrário, os vencedores do Festival já eram nomes consagrados da canção

popular massiva brasileira fosse por conta da participação em Festivais anteriores, fosse porque

provinham do mercado fonográfico (por vezes com números expressivos de vendagem de

discos), cujo aparato midiático disco LP precedia a veiculação do artista em relação à mídia

televisiva, fossem ainda alguns casos em que os artistas já tinham alcançado o grande público por

intermédio de atuações no Teatro ou no Cinema118.

118 Dominguinhos já gravara um total de 12 LPs no ano de 1979 e já era o compositor de grandes sucessos, entre eles, Eu Só Quero um Xodó, em parceria com Anastácia, gravado por Gilberto Gil em 1974.

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Ao avaliar a produção e a repercussão dos dois Festivais de Música Popular

realizados na década de 1970 após a chamada Era dos Festivais, por duas emissoras de televisão

distintas, é possível notar que, a partir da segunda metade da década de 1970, invertia-se

paulatinamente a ordem pela qual os talentos musicais eram descobertos e tinham suas obras

veiculadas. Há uma nítida alteração da natureza midiática que impulsionava o mercado da música

popular, da canção popular massiva brasileira.

A inversão da natureza midiática que impulsionava o mercado da canção popular massiva brasileira – o disco precedia a Televisão, o intérprete era mais valorizado do que a canção.

Se ao longo da segunda metade da década de 1960 os programas exibidos pela mídia

televisiva (programas de conteúdo musical pertencentes à grade fixa das emissoras, como O Fino

da Bossa, entre outros, ou programas sazonais, como os Festivais de Música Popular) eram o

ambiente midiático no qual os grandes compositores da música popular brasileira encontravam o

espaço de veiculação de suas obras comprometidas com o acuro no discurso poético e na busca

por um padrão estético de excelência, a partir da segunda metade da década de 1970 o ambiente

de veiculação das grandes obras dos compositores brasileiros de música popular encontrava-se

primordialmente em outro aparato midiático: o disco.

Até os meados da década de 1970, o caminho partia da oportunidade na mídia

televisiva e chegava ao disco; a partir de então, o caminho se invertia e partia do mercado

fonográfico para chegar à televisão. Raimundo Fagner era um cantor e compositor de sucesso desde o ano de 1972, quando da gravação do compacto simples Disco de Bolso 2, do jornal O Pasquim, no qual interpretava a canção Mucuripe, composta em parceria com Belchior; já contava 3 LPs com uma vendagem superior a 1 milhão de cópias e interpretara a canção Joana Francesa, em dueto com o compositor Chico Buarque (autor da canção) para a trilha sonora do filme homônimo.

Walter Franco já contava a gravação de 5 LPs além das terceiras colocações no VII Festival Internacional da Canção, realizado no ano de 1972, e no Festival Abertura, de 1975, ambos realizados pela TV Globo.

Oswaldo Montenegro despontara no VII Festival Internacional da Canção, no ano de 1972, aos 16 anos de idade e quando do Festival da MPB realizado pela TV Tupi já contava 23 anos de idade, 3 LPs e um espetáculo teatral musical escrito e encenado na cidade de São Paulo em 1973.

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Tal situação midiática se consolidará a partir do início da década de 1980 e dará um

caráter definitivo a tal inversão.

Invertido definitivamente o caminho, o grande compositor brasileiro não mais é

procurado pelo mercado fonográfico; ao contrário, o mercado fonográfico forjará modelos

semelhantes de sucessos pré-concebidos. O mercado fonográfico buscará uma fórmula (de

sucesso) e a canção popular massiva, aos poucos, perderá o elo vital que mantinha com a busca

pela excelência poético-estética do conteúdo discursivo estrutural embalado pela forma (musical).

Essa argumentação será aprofundada adiante119. Por ora, vale abordar a realização dos Festivais

de Música Popular realizados pela TV Globo, a única emissora de televisão que investiu nessa

espécie de programação de cunho musical na década de 1980.

O resultado da competição musical intitulada Festival de Música Popular MPB 80,

realizado no mês de maio daquele ano, confirmou a tendência mercadológica da inversão

mencionada acima. A canção vencedora do MPB 80 foi Agonia, de Mongol, interpretada

por Oswaldo Montenegro; o segundo lugar foi da canção Foi Deus que Fez Você, de Luiz

Ramalho, interpretada pela cantora Amelinha120; o terceiro lugar ficou com a canção A Massa, de

Raimundo Sodré e Antônio Jorge Portugal, interpretada pelo próprio compositor121.

O prêmio de Melhor Intérprete foi para o cantor Jessé, pela interpretação da

canção Porto Solidão, de Zeca Bahia e Ginko.

119 Ver p. 359.

120 Amelinha pertencia ao grupo conhecido no meio artístico por “Pessoal do Ceará”, composto também por Fagner, Belchior, Ednardo, desde a primeira metade da década de 1970. Já contava, no ano da realização do MPB 80, 2 LPs gravados: o primeiro deles, Flor da Paisagem, conferiu à cantora o prêmio de “Revelação da MPB” do ano de 1977 e o segundo deles, Frevo Mulher, alcançou o Disco de Ouro em 1979 pela marca de vendagem superior a 100 mil cópias no ano de 1978.

121 O caso do compositor Raimundo Sodré é tanto peculiar quanto revelador da inversão midiático-mercadológica que teve início na segunda metade da década de 1970 e se consolidará na década de 1980. Logo após a segunda eliminatória do MPB 80, na qual o compositor apresentou a canção A Massa, que foi classificada para a final, a gravadora Polydor lançou o disco A Massa, com 10 músicas de sua autoria e parcerias com Jorge Portugal e Marcelo Machado. A segunda eliminatória do Festival ocorreu em abril e a final aconteceu em agosto, na qual Raimundo Sodré conseguiu a terceira colocação. A precipitação da gravadora fica evidente quando se nota o fato de que aquele foi o único disco da carreira do compositor.

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A vitória de Jessé como o Melhor Intérprete do MPB 80 reflete ainda outra faceta da

inversão mercadológica acima exposta e também do novo posicionamento da mídia televisiva em

relação à Música.

Logo no princípio da década de 1970, notadamente a partir de O Cafona (novela de

Bráulio Pedroso, dirigida por Daniel Filho e Walter Campos, exibida de 24 de março a 20 de

outubro de 1971), “as telenovelas da TV Globo passaram a contar um par de trilhas sonoras: a

trilha sonora nacional e a internacional” (XAVIER, 2012, p. 112).

A gravadora Som Livre, pertencente ao conglomerado Globo de Comunicação,

lançava um LP contendo a trilha sonora nacional e outro LP contendo a trilha sonora

internacional das telenovelas exibidas pela emissora.

Tal fato motivou diversos cantores brasileiro a lançaram gravações de músicas

internacionais, cantadas em outros idiomas, principalmente o inglês; cada cantor necessitava

também de um pseudônimo internacional. Jessé foi, primeiramente, Christie Burgh, porém foi

com o pseudônimo Tony Stevens que o cantor emplacou sucessos em todo o Brasil como as

baladas românticas If You Could Remember e Flyins High122.

O veículo midiático Televisão passava a ter o suporte de uma gravadora e o produto

midiático Telenovela passava a dar suporte à veiculação das canções e dos cantores e

compositores que faziam parte dos discos que continham suas trilhas sonoras.

No entanto, alguns cantores e compositores que não provinham do mercado

fonográfico ocuparam o palco do MPB 80 e levaram suas canções à final do Festival: Demônio

Colorido, de Sandra de Sá; Nostradamus, de Eduardo Dusek; Mais Uma Boca, de Fátima

Guedes, todas interpretadas por seus próprios compositores. Essa geração de artistas ladeava

nomes de já consagrado sucesso como a sambista Leci Brandão, que apresentou o samba Essa

Tal Criatura. Esses novos compositores tiveram destaque num Festival que pouco motivou o

público presente no teatro onde ocorreram as apresentações, pouco motivou o telespectador que

assistia ao programa desde sua casa, não constituiu torcidas apaixonadas. Porém teve alta 122 Outros tantos cantores fizeram o mesmo movimento mercadológico de Jessé. Fábio Júnior usou o pseudônimo Mark Davis para emplacar o sucesso Don’t Let Me Cry e Uncle Jack para emplacar My Baby; no entanto, possivelmente o mais famoso pseudônimo tenha sido Morris Albert, o adotado pelo cantor Maurício Alberto Kaiserman, que compôs e gravou o sucesso Feeling, em 1973.

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vendagem o disco com as 12 canções finalistas do Festival, chegando a alcançar o Disco de Ouro

da gravadora Som Livre123.

Apesar de o MPB 80 ter se constituído num Festival que interessou mais à indústria

fonográfica do que a artistas ou público espectador e telespectador, no ano seguinte, com o aporte

de um patrocinador exclusivo, a TV Globo realizou o Festival de Música Popular MPB Shell 81.

Novamente artistas já consagrados por seus discos ou por participações em Festivais

anteriores conquistaram os primeiros lugares: a canção vencedora foi Purpurina, de Jerônimo

Jardim, interpretada por Lucinha Lins; a segunda colocada foi a canção Planeta Água, de

Guilherme Arantes, interpretada pelo próprio compositor; a terceira colocada foi Mordomia, de

Ari do Cavaco e Gracinha, interpretada por Almir Guineto124.

Além disso, o MPB Shell 81 apresentou uma insipiente faceta midiático-

mercadológica que retomava um contexto pré-Bossa Nova e viria a se consolidar novamente logo

em seguida: a valorização do intérprete em detrimento do compositor. Importava menos a

qualidade estrutural da composição, mais a performance do intérprete, principalmente se já

conhecido de antemão pelo público espectador e, sobretudo, pelo público telespectador.

123 Dados ABPD.

124 Lucinha Lins era cantora do grupo musical de Ivan Lins, seu marido à altura, e gravara diversos discos como o compositor, incluindo um compacto duplo como cantora solo, chamado Lucinha Lins, pela RCA; já gravara, para a trilha sonora de Sítio do Pica-Pau Amarelo, produção da própria TV Globo, o sucesso Narizinho, em 1977.

Guilherme Arantes já gravara 5 LPs e figurara como compositor e cantor dos sucessos Meu Mundo E Nada Mais, canção pertencente à trilha sonora da novela Anjo Mau (escrita por Cassiano Gabus Mendes e dirigida por Fábio Sabag e Régis Cardoso), produzida pela TV Globo, em 1976, Cuide-se Bem, da trilha sonora da telenovela Duas Vidas (de Janete Clair, dirigida por Daniel Filho) e Baile de Máscaras, da trilha sonora da telenovela Espelho Mágico (de Lauro César Muniz, dirigida por Daniel Filho, Gonzaga Blota e Marco Aurélio Bagno), em 1977, e A Cara e a Coragem, da trilha sonora da telenovela Pai Herói (de Janete Clair, dirigida por Gonzaga Blota, Walter Avancini e Roberto Talma), em 1979, entre muitas outras.

Ari do Cavaco já despontara como compositor no VII Festival Internacional da Canção e Almir Guineto era cavaquinhista do grupo Os Originais do Samba, que participaram do Festival I Bienal do Samba, realizado no ano de 1968, pela TV Record, além de contar à altura um par de discos gravados.

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Tal faceta aparece insipiente de tal sorte que, mesmo a estrondosa vaia que se ouviu

no Maracanãzinho ao ser anunciado o resultado do MBP Shell 81, pois o público tinha como

flagrante favorita a canção (e o intérprete) segundos colocados, não impediu a cantora Lucinha

Lins de consolidar uma carreira de cantora de sucesso; Almir Guineto permaneceu e se

consolidou como intérprete fundamental do “samba de raiz” carioca; Guilherme Arantes foi um

dos cantores e compositores que mais sucessos musicais emplacou ao longo da década de 1980.

No entanto, é preciso notar que nenhum dos três artistas vencedores do MPB Shell 81

apresentava qualidades técnica de um grande cantor; nem faziam uso dos recursos provindos do

belcanto italiano (como o faziam os cantores das gerações antecedentes à Bossa Nova) tampouco

faziam uso escorreito da técnica da impostação de colocação da voz (como o faziam os cantores a

partir da Bossa Nova).

Importava menos o desempenho técnico, musical, mais o caráter de empatia e

identificação com o público e com a corrente musical à qual o intérprete pertencia.

Estaria definido ali, naquele momento, o possível nascedouro do cantor que não

precisa, necessariamente, cantar bem; é preciso que ele esteja identificado com um padrão

midiático que requer uma imagem adequada e uma adequação da imagem e da voz com um

público pré-definido. Aprofundaremos este assunto adiante125.

No ano seguinte, ainda com o aporte do mesmo patrocinador, a TV Globo realizou o

Festival de Música Popular MPB Shell 82.

O cenário mercadológico-midiático-musical se confirmou: a canção vencedora foi

Pelo Amor de Deus, de Paulo Debétio e Paulinho Rezende, interpretada pelo cantor Emílio

Santiago; o segundo lugar ficou com a canção Fruto do Suor, de Tony Osanah e Enrique Bergen,

interpretada pelo conjunto Raíces de América; em terceiro lugar ficou a canção Doce mistério,

de Tunai e Sérgio Natureza, interpretada pela cantora Jane Duboc126.

125 Ver p. 436.

126 O grande cantor Emílio Santiago surgiu no programa de televisão A Grande Chance (apresentado por Flávio Cavalcanti na TV Tupi desde o ano de 1966) no ano de 1973, e já contava 9 LPs em sua carreira no ano de 1982, entre eles o cultuado Feito para Ouvir, pela gravadora Philips, produzido por Roberto Menescal, com arranjos do renomado pianista Laércio de Freitas e de J. T. Meireles; já lançara discos nos quais gravara inúmeros sucessos, entre eles Bananeira, de Gilberto Gil e João Donato.

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Em verdade, à exceção de algumas composições que a dupla Tunai e Sérgio Natureza

(Frisson, gravada pelo próprio Tunai; Agora Tá, gravada por Elis Regina) teve gravadas, tanto a

dupla de compositores Paulo Debétio e Paulinho Rezende quanto a parceria Tony Osanah e

Enrique Bergen tiveram projeção, reconhecimento e oportunidades midiáticas inúmeras vezes

menores do que as tiveram os cantores Emílio Santiago e Jane Duboc ou o grupo musical Raíces

de América.

Um novo cenário midiático-mercadológico-musical aos poucos se consolidava: o

compositor de música brasileira perdia espaço de exposição e de possibilidades para mostrar seu

trabalho enquanto aumentava a exposição e a consequente procura por intérpretes de canções. A

mídia televisiva expunha a imagem de cantores e cantoras, criava possibilidades de veiculação e

divulgação de intérpretes cantores.

O cenário midiático do início da década de 1980, diferentemente do cenário midiático

da segunda metade da década de 1960, estimulava as gerações de telespectadores a almejarem

uma subsequente carreira de intérprete vocal mais do que um trabalho de compositor.

A nociva ingerência do mercado fonográfico e a mudança de postura da mídia televisiva.

O patrocinador dos Festivais realizados pela TV Globo nos anos de 1981 e 1982, em

vista dos acanhados números apresentados pelas medições de audiência, não estendeu o

patrocínio para outras edições do Festival MPB Shell. Desse modo, somente três anos depois do

MPB Shell 82, a emissora encamparia novamente o projeto de um programa de cunho musical

nos moldes de um concurso de música popular, o então denominado Festival dos Festivais.

O Grupo Raíces de América, tendo como madrinha a mítica cantora argentina Mercedes Sosa, realizara um multi-espetáculo musical teatral em São Paulo, dirigido por Flávio Rangel e já contava 2 LPs em sua discografia, ao passo que Jane Duboc já contava 3 LPs quando de sua participação no MPB Shell 82.

Curioso é notar que uma das canções favoritas do público foi Dona, da dupla Sá e Guarabira, interpretada pela própria dupla. Gutemberg Guarabira era o diretor artístico do VI Festival Internacional da Canção, realizado pela própria TV Globo, que tentou solucionar o problema da ausência dos grandes nomes da música popular brasileira. Ver nota 106.

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Com nove etapas eliminatórias, o Festival ocupou a programação mensal de quase

todo o ano de 1985, no qual a TV Globo completava 20 anos de existência. No mês de outubro,

no Maracanãzinho, foi realizada a apresentação das 13 finalistas.

A emissora investiu na divulgação e na produção do programa. Convidou Solano

Ribeiro, o idealizador e diretor dos Festivais Internacionais da Canção, realizados pela TV

Globo, para ser o produtor musical do Festival dos Festivais e encomendou um tema especial

para a vinheta de abertura, para os anúncios do programa, para a abertura das eliminatórias e

finais ao arranjador e compositor César Camargo Mariano, que compôs o tema Fest Wave, em

parceria com Dino Vicente.

No entanto, ao definir um total de nove eliminatórias para o Festival, a produção do

programa alongou sobremaneira a duração da atração da grade de programação que, ademais, não

apresentava em suas etapas eliminatórias nem canções que motivavam o público, nem canções

que despertavam a admiração de músicos e pessoas ligadas à música, tampouco apresentava um

compositor, sequer um intérprete que pudesse representar o “novo nome” da canção popular

massiva brasileira, a ser descoberto naquele concurso. Em verdade, nenhum dos nomes que

figuraram entre as três canções vencedoras do Festival eram propriamente “novos” no mercado

musical brasileiro da época.

O prêmio de Melhor Intérprete foi conferido a Emílio Santiago, por sua interpretação

da canção Elis, Elis. O Melhor Arranjo foi o da canção Mira Ira, feito por Mário Lúcio e pelo

conjunto Placa Luminosa. A Melhor Letra foi considerada pelo júri a da canção A Última Voz do

Brasil, de Zé Rodrix, Próspero Albanese, Armando Ferrante e Teco Terpins, integrantes do grupo

Joelho de Porco127.

127 Emílio Santiago, após carreira de sucesso, já tinha sido agraciado inclusive com a vitória no MPB Shell 82. Ver p. 327.

O conjunto Placa Luminosa já contava quatro LPs gravado quando da realização do Festival dos Festivais, três deles, inclusive, tendo o cantor Jessé como crooner. Ver p. 321.

Zé Rodrix era compositor de sucessos, tendo participado do VI Festival Internacional da Canção, no ano de 1971 (ver pp. 311 e 312) e, depois de compor inúmeros jingles de sucesso na década de 1970, como o jingle das Duchas Corona e da Pepsi Cola, e na primeira metade da década de 1980, como o jingle da Chevrolet, fundara o grupo Joelho de Porco.

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A canção vencedora do Festival dos Festivais foi Escrito nas Estrelas, de Arnaldo

Black e Carlos Rennó, interpretada por Tetê Espíndola128.

O segundo lugar coube à canção Mira Ira, de Lula Barbosa e Vanderley de Castro,

interpretada por Miriam Mirah129.

O terceiro lugar ficou com a canção Verde, de Eduardo Gudin e José Carlos Costa

Netto, interpretada por Leila Pinheiro130.

O compositor Eduardo Gudin, autor de Verde, que já participara do V Festival de

Música Popular Brasileira, realizado pela TV Record em 1969, relembra o fato de que, em

verdade, somente a sua composição, em parceira com José Carlos Costa Netto, tinha verdadeiro

acuro com os elementos discursivos musicais, tanto de letra quanto de harmonia, melodia e ritmo.

Verde era o que tinha de bom ali. Sem falsa modéstia, mas é verdade. A música da Tetê era a figura dela, o jeito como ela caiu nas graças do público; a música, em si, era um bolerão muito simples. O Mira Ira era o arranjo do Placa Luminosa; a letra é fraca e a musica só empolga com aquele refrão nacionalista. Fato é que já era difícil naquele Festival o público e o júri conseguirem identificar o que era uma música de qualidade, com harmonia refinada... O César Camargo Mariano declarou na época que a harmonia de Verde era uma poesia. (GUDIN, 2013)

A dificuldade pela qual passariam público e júri, referida pelo compositor Eduardo

Gudin, em grande medida revela a situação musical-midiática do Festival dos Festivais e das

cenas musical e midiática dos meados da década de 1980.

128 Tetê Espíndola já gravara pela Polygram/Phillips o LP Tetê e o Lírio Selvagem, em 1978, e Piraretã, no ano seguinte. Esse disco marca o início da parceria musical entre a cantora e o compositor Arrigo Barnabé, que protagonizarão a cena da música independente paulistana da década de 1980. Defendeu, no MPB Shell 81, de Arrigo Barnabé, a valsa Londrina, agraciada com o prêmio de Melho Arranjo para Cláudio Leal. Em 1982 lançou o disco Pássaros na Garganta pela gravadora Som da Gente, aclamado pela crítica.

129 Miriam Mirah era cantora do Grupo Raíces de América, segundo lugar no MPB Shell 82, e contava três LPs gravados quando da realização do Festival dos Festivais.

130 Leila Pinheiro já gravara o LP cujo título é seu próprio nome em 1983. O disco, uma gravação independente, fez grande sucesso de crítica, o que fez com que a cantora fosse convidada pelo Zimbo trio para uma excursão por diversas cidades do Brasil e do exterior no ano de 1984.

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340

Para além disso, o compositor apresenta um fato que desencadeou, desde o VII

Festival Internacional da Canção, em 1972, um dos motivos da ineficiência dos Festivais para o

universo da música popular brasileira e da derrocada do programa televisivo Festival de Música

Popular no universo da mídia televisiva brasileira: a ingerência externa ao resultado intrínseco à

avaliação da melhor composição do Festival.

Se o resultado do VII Festival Internacional da Canção, em 1972, fora contaminado

pela ingerência da direção da emissora de televisão que realizava o Festival131, o Festival dos

Festivais, realizado pela mesma emissora de televisão, era contaminado pela ingerência das

gravadoras.

As gravadoras impunham o resultado. Desde a seleção das músicas que iriam para as eliminatórias até aquele que ganharia o Festival. Era uma barbaridade... gente das gravadoras nos corredores, nos camarins... antes de entrar no palco você trombava com uns 15 caras de gravadoras: programadores, executivos, produtores... era uma vergonha (GUDIN, 2013).

A afirmação do compositor Eduardo Gudin é corroborada por Amilton Godoy,

pianista que compunha o corpo de jurados dos Festivais de Música Popular realizados pela TV

Record na segunda metade da década de 1960. A rigor, a contundência das palavras de Amilton

Godoy aponta a ausência de ilibação no processo de julgamento e premiação desde um período

anterior à realização do Festival dos Festivais: “Eu participava da seleção das 36 músicas

finalistas. Quando o festival saiu da Record e foi para o Rio de Janeiro, não aceitei mais. Não

teria a mesma seriedade com que era feito aqui.” (GODOY, 2013).

Para além disso, o depoimento do pianista indica também a ingerência das gravadoras

no processo de escolha das músicas e, sobretudo, dos artistas que deveriam vencer os concursos

realizados pala TV Globo, no Rio de Janeiro: “Depois começou a ter o dedo das gravadoras, já

não era mais a mesma coisa, as gravadoras estavam elegendo o que elas queriam, aí acabou tudo.

Enquanto era feito assim, os bons compositores colocavam as músicas, porque sabiam que a

gente ia julgar com imparcialidade” (GODOY, 2013).

131 Ver p. 326.

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Nota-se outro fator para o esvaziamento do conteúdo musical dos Festivais realizados

após o ano de 1968, notadamente a partir da migração da emissora realizadora dos Festivais

desde a TV Record para TV Globo; a ausência de ilibação do concurso musical promovido pela

emissora de televisão afastava os grandes compositores dos concursos e, por conseguinte,

aproximava-os de outros programas de conteúdo musical na mídia televisiva e da veiculação de

sua obra por intermédio de outras mídias, preponderantemente do disco.

Raimundo Fagner corrobora o que disseram Eduardo Gudin e Amilton Godoy e

ressalta o fato de o interesse do concurso musical exibido por uma emissora de televisão, o

Festival, ser um produto midiático representativo da inversão de valores, já mencionada no

presente trabalho132, que se afigurava na segunda metade da década de 1970 e se consolidaria na

década seguinte, privilegiando o interesse mercadológico e relegando a busca pelo acuro do

discurso musical estruturado pelo compositor.

O composto mercadológico gravadora-emissora de televisão passava, segundo o

compositor, a determinar o resultado dos Festivais e, por conseguinte, a ditar as normas não-

musicais de vencedores de concurso musicais, de artistas-atrações de programas de televisão, do

produto midiático-musical exibido pelas emissoras de televisão, da música popular brasileira em

última instância.

Ganhei festival em Fortaleza, ganhei festival em Brasília, chegou uma hora que eu não aguentava mais festival, até porque começaram a acontecer aquelas armações de festival, gravadora e televisão, que estraga com tudo, porque convergem os interesses para um outro interesse que não é a música (FAGNER, 2013).

Vale notar que o compositor Raimundo Fagner participou – e venceu, como o

intérprete da canção Quem me Levará Sou Eu, de Manduka e Dominguinhos133 – do Festival 79

de Música Popular, realizado em 1979 pela TV Tupi, o que direciona sua crítica severa à

realização de Festivais pela TV Globo.

132 Ver a partir da p. 311.

133 Ver p. 332.

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No entanto, o compositor não delega o papel de protagonista da inversão de valores

midiático-mercadológico-musical exclusivamente à TV Globo; ao contrário, relembra que, ao

final da década de 1970, participou da realização de dois programas de conteúdo musical

produzidos pela TV Bandeirantes de São Paulo. A emissora intentava uma atração dominical, a

ser exibida no horário das 20H00, capitaneada pela geração de compositores e cantores vindos do

Nordeste brasileiro, que faziam grande sucesso com excelentes vendagens de discos e execução

em emissoras de rádio (Amelinha, Belchior, Ednardo, Fagner, Zé Ramalho, entre outros). O título

do programa de televisão consistia numa tentativa de definir um nome concernente a um nicho

mercadológico: Movimento Musical Brasileiro. Entretanto, após a exibição de dois programas, a

emissora cancelou a iniciativa: “Era até uma série de programas que começaram e logo em

seguida. Era uma coisa com os nordestinos, que são em grande número em São Paulo. Só que a

emissora não teve paciência para esperar o programa vingar; cancelou antes”. (FAGNER, 2013).

O tom crítico atinge também outra emissora de televisão e seus procedimentos

mercadológicos pelo final da década de 1970 e início da década subsequente: a TV Record.

Detentor de grandes sucessos, vencedor do Festival 79 de Música Popular,

Raimundo Fagner teve, em agosto de 1980, a canção Noturno escolhida como o tema de abertura

da novela Coração Alado, de Janete Clair, dirigida por Roberto Talma e Paulo Ubiratan, exibida

pela TV Globo no horário nobre: “Noturno foi um grande sucesso e, naquele tempo, todos os

discos meus iam para o Fantástico, que era o programa de maior audiência da TV Globo”

(FAGNER, 2013).

O procedimento mercadológico da TV Record, então, em lugar de procurar um

grande nome da canção massiva brasileira para figurar em seu cast de artistas contratados, em

lugar de procurar o grande compositor para realizar grandes programas na emissora, intentou a

contratação de Fagner apenas para que este não mais pertencesse à emissora rival. Novamente o

elemento mercadológico monopolizou o interesse do veículo midiático em detrimento da

qualidade do discurso musical, quase totalmente esquecido. A disputa pelo artista se dava menos

pela música produzida por ele, mais pelo que ele representava em termos de popularidade,

audiência, lucro comercial-mercadológico.

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Antes do final do ano [de 1980], um dos presidentes da TV Record me procurou: “ah, quero que você vá para a Record”. Aí eu falei “não quero ir para a televisão, mas eu gostaria de te dar ideias, porque a Record é a história dos festivais, é uma televisão que está crescendo, numa cidade que tem um potencial extraordinário, que é São Paulo. Aí preparei planos de programas, levei lá, ele adorou, mas na hora que ele soube que eu não era contratado da Globo, ele não quis mais; o que ele queria mesmo era me tirar da Globo (FAGNER, 2013).

Assim, a década de 1980 se afigurava menos promissora do que as duas décadas

imediatamente anteriores no que tange à relação de mútua contribuição que se constituíra até

então entre a música popular brasileira comprometida com a elaboração de um discurso musical

de alto padrão estético e a mídia televisiva brasileira.

A morte da intérprete – o vazio dos compositores e a ausência de referência para a geração subsequente

De modo trágico, um fato provindo exclusivamente do âmbito musical contribuiu

incisivamente para acentuar as dificuldades mercadológicas-midiáticas-musicais dos possíveis

grandes compositores de uma nova geração que surgiria pelo início da década de 1980 e

sucederia a geração que despontou na segunda metade da década de 1970: em janeiro de 1982

morria a cantora Elis Regina.

Considerada por grande parte dos cantores, compositores, produtores, artistas daquela

e de outras épocas, como a maior cantora brasileira de todos os tempos, mais do que sua

capacidade técnica, sua extensão vocal, sua excelência interpretativa, Elis Regina colecionava

uma qualidade essencial para o ambiente musical brasileiro que se consolidava: era a grande

cantora que fazia questão de revelar grandes compositores e suas grandes obras artísticas.

Sabedora de que o cenário mercadológico que se apresentava era o da consolidação

da extrema valorização do intérprete cantor em detrimento da obra do compositor134, a cantora

Elis Regina definia ao menos um grande compositor que seria lançado em seu disco, no qual

figuraria ao menos uma canção daquele compositor, como conta Cesar Camargo Mariano,

pianista e arranjador de grande parte da obra discográfica da cantora:

134 Ver pp. 335 e 343.

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A Elis receba muitas fitas cassetes com músicas de todo mundo. Quando completavam 1000 músicas, a gente dividia 100 para cada um dos 8 músicos da banda e ela ficava com 200. Ouvíamos, cada um selecionava dez músicas, ela selecionava 20. Ficávamos com um universo de 100 músicas. Sorteávamos, cada um de nós ficava com 10 músicas, e ela com 20. Cada um de nós escolhia uma e ela, duas. A gente se juntava, ouvia as 10 finalistas e escolhia aquela que seria gravada. Como Nossos Pais foi assim, Romaria foi assim... junto com a música vinha o compositor (MARIANO, 2013).

Amilton Godoy corrobora as palavras de Cesar Camargo Mariano e reitera a

importância recíproca. A cantora de grande sucesso era importante para o compositor, pois

veiculava sua obra; o compositor era importante para a cantora, pois fornecia a ela material para

ser gravado. Contudo, é necessário notar que ambos os polos, tanto a cantora quanto os

compositores, pautavam suas produções por um parâmetro de qualidade discursiva no repertório

enviado por esses àquela.

Os compositores sabiam que a cantora tinha capacidade musical e independência

mercadológica para escolher as canções que apresentavam maior requinte discursivo; a cantora

sabia que a função da intérprete é trazer ao ouvinte a mensagem contida na obra do compositor.

Ademais, a cantora tinha ciência de que era responsável pela manutenção da sucessão de

gerações de grandes compositores da canção massiva brasileira.

Os compositores brasileiros preparavam o material musical para a Elis Regina cantar. Havia uma grande movimentação no meio dos compositores para chegar até a Elis e mostrar para ela. Ela tinha a capacidade de ver a qualidade numa música para gravar. Ela lançou muitos compositores bons. Ela é a intérprete, mas atrás está o Ivan Lins, o Vitor Martins, o Milton Nascimento, o João Bosco... quanta gente boa!, pelo amor de Deus!... (GODOY, 2013).

Raimundo Fagner, um dos compositores lançados por Elis Regina, ratifica o que foi

dito sobre a cantora: “Os compositores faziam música para ver se a Elis [Regina] gostava; ela foi

a maior referência nisso” (FAGNER, 2013), assim como também o faz o compositor Ivan Lins:

Mesmo antes de conseguir mandar uma música para a Elis [Regina] gravar eu já sonhava com ela gravando uma música minha. Depois que consegui isso, a cada música que eu fazia, eu pensava: “será que ela vai gostar? Será que ela gravaria

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essa música?” O padrão de qualidade que a gente mantinha era todo ele devido à Elis. Todos os compositores se esmeravam em fazer a sua melhor música, porque ela só gravava o que era bom mesmo; se a música não tinha qualidade, ela não gravava. (LINS, 2013).

Sem a presença de Elis Regina no cenário da canção massiva brasileira a partir do ano

de 1982, a geração de eventuais novos compositores comprometido com o acuro do discurso

musical ficou sem a referência da cantora que desempenhava o papel que fora da mídia televisiva

nas duas décadas anteriores: a procura e a abertura de espaço para a veiculação de grandes obras

musicais, a procura e a abertura de espaço para a veiculação dos grandes compositores da música

popular brasileira.

Sem a Elis não tinha mais isso. Ninguém mais tinha “A” cantora para mandar suas músicas. As outras grandes cantoras brasileiras não tinham a preocupação em descobrir gente nova de talento. Ela fazia questão de lançar gente nova que fazia música boa, as outras faziam grandes discos, mas com músicas de gente já consagrada. Isso contribuiu para que não nascesse uma geração de compositores como nasceu na época dos festivais (LINS, 2013).

A morte da Elis realmente foi uma perda danada. Artistas que tinham preocupação com o todo artístico, com o geral da música – e não só consigo –, que tinham interesse em descobrir novos talentos, em dar ideias e fugir da mesmice, eles também morrem com a morte da Elis. Morre um bando de gente que fazia música para a Elis, que pensava na Elis na hora de compor (FAGNER, 2013).

Além disso, era muito exigente na escolha do repertório e isso obrigava o compositor a se esmerar cada vez mais; ela foi melhorando a nossa capacidade de compor. Ter uma música gravada pela Elis [Regina] sempre foi o sonho de consumo de todo compositor. O Milton Nascimento me disse que, desde a morte dela, todas as noites ele sonha com a Elis. Ela faz muita falta na música brasileira, para os compositores de música brasileira (LINS, 2013).

Ainda outra perda significativa foi potencializada pela ausência da cantora Elis

Regina no cenário da canção massiva brasileira: a ausência do referencial de uma cantora de

excelência.

Com recursos técnicos e vocais extremos, Elis Regina era um parâmetro de execução

interpretativa. Afinação, articulação, inflexão, capacidade interpretativa, potência, dinâmica,

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precisão, todos os elementos estruturantes da arte de cantar eram evidentes nas performances (ao

vivo e gravadas em discos) da cantora, como relata o compositor Ivan Lins: “nenhuma cantora

tinha tantas qualidades e tão grandes quanto ela. A gente tem boas cantoras, a Gal Costa, a Maria

Bethânia, a Nana Caymmi, mas nenhuma delas tem todas as qualidades juntas, só a Elis tinha”

(LINS, 2013).

Em fato, as cantoras elencadas por Ivan Lins não deram sequência à empreitada de

Elis Regina135.

No entanto, ainda outra perda significativa para a música popular brasileira deu-se

após o final da carreira da grande cantora: a perda da referência daquilo que era um modo de 135 No ano de 1982, ano da morte de Elis Regina, a cantora Gal Costa lançou o LP intitulado Minha Voz, no qual gravou 11 canções: Minha Voz, Minha Vida (Caetano Veloso), Azul (Djavan), Musa Cabocla (Walli Salomão e Gilberto Gil), Dom de Iludir (Caetano Veloso), Solar (Milton Nascimento e Fernando Brant), Borzeguim (Tom Jobim), Bloco do Prazer (Moraes Moreira e Fausto Nilo), Verbos do Amor (João Donato e Abel Silva), Luz do Sol (Caetano Veloso), Pegando Fogo (Francisco Matoso e José Maria de Abreu), Groupie (Beti Niemeyer). Nenhuma das canções apresenta um novo compositor, incluindo Groupie, de Beti Niemeyer, que não era compositora e aglomerou depoimentos de Maria Bethânia, Gilberto Gil e Caetano Veloso numa melodia acompanhada. Vale ressaltar que os artistas amalgamados na faixa do disco compunham o grupo “Doces Bárbaros”, formado no ano de 1976.

No mesmo ano, a cantora Maria Bethânia lançou o LP Nossos Momentos, composto de 17 faixas, nas quais gravou Maria Bethânia (Caetano Veloso), o pot-pourri de cinco canções O que é, o que é?, Eterno Começo, Grito de Alerta, Explode Coração, Sangrando (todas de Luiz Gonzaga Jr.), Nossos Momentos (Caetano Veloso), Gás Neon (Luiz Gonzaga Jr.), Luzes da Ribalta (Charles Chaplin – versão João de Barro e Antônio de Almeida), Prenda (Joyce), Com Certeza (Moacir Albuquerque e Tavinho Paes), De Noite e de Dia (Moraes Moreira e Fausto Nilo), o pot-pourri de marchinhas antigas Anda Luzia (João de Barro), Mal-me-Quer (Cristóvão de Alencar e Newton Teixeira), Ta-Hi (Joubert de Carvalho), Não me Diga Adeus (João Correia da Silva, Luís Soberano e Paquito), Máscara da Face (Armando Cavalcanti e Klecius Caldas), Mora na Filosofia (Armando Passos e Monsueto), Como Dizia o Poeta (Toquinho e Vinícius de Morais), o pot-pourri de duas canções Baila Comigo, Shangri-lá (ambas de Rita Lee e Roberto de Carvalho), Doce Mistério de Vida (Victor Herbert – versão Alberto Ribeiro), Vida (Chico Buarque), Estranha Forma de Vida (A. Duarte Marceneiro e Amália Rodrigues), Canção da Volta (Antonio Maria e Ismael Neto), o pot-pourri de duas canções O Último Pau-de-Arara (Corumba, José Guimarães e Venâncio) e Pau de Arara (Guio de Moraes e Luiz Gonzaga), Carcará (José Cândido e João do Vale), O que é, o que é? (Luiz Gonzaga Jr.). Nenhuma das canções apresenta um novo compositor.

Nana Caymmi não lançou disco no ano de 1982, contudo teve uma música incluída na trilha sonora da novela Champagne, da TV Globo: Doce Presença (Ivan Lins e Victor Martins), de compositores já consagrados à altura.

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cantar que trazia a sonoridade do canto popular brasileiro com requinte de aperfeiçoamento e

acuro técnico-interpretativo.

Assim, a ausência da referência interpretativa, além de prejudicar o surgimento de

uma nova geração de grandes compositores, possivelmente tenha dificultado o surgimento de

uma geração de novos grandes intérpretes.

O compositor Dori Caymmi sinaliza para a distorção interpretativa-mercadológica

ocorrida na década de 1990, momento no qual a geração de cantores e intérpretes que teriam sido

influenciados pela performance de Elis Regina floresceria: “Da década de 1990 para cá, o canto

mudou. Veio o gospel, eu nunca tinha ouvido falar de gospel no Brasil. Hoje tem festivais de

música gospel, todo mundo cantando da maneira como se canta nos Estados Unidos. É uma perda

de identidade muito grave” (CAYMMI, 2013).

Ivan Lins reforça as palavras de Dori Caymmi: “É isso que falta nas cantoras novas:

elas não tiveram essa convivência com a Elis para poder captar toda a habilidade vocal e toda a

capacidade de interpretação dela” (LINS, 2013).

O esvaziamento do formato midiático Festival de Música Popular, a perda do

referencial da intérprete que lançava os novos compositores comprometidos com a estruturação

de um discurso musical de alto padrão estético, a perda da referência da sonoridade do canto

brasileiro, somaram-se, ao longo da década de 1970, a uma diminuição dos programas de

televisão de conteúdo musical (voltados para a exibição da canção popular massiva brasileira

estruturada por alto teor poético, possibilitado pela maestria dos compositores no uso dos

recursos de linguagem literário-musical) produzidos para a grade fixa e para os especiais sazonais

da programação das emissoras.

A definição de novos formatos de programas televisivos de cunho musical e o desaparecimento dos programas televisivos dedicados à música brasileira comprometida com o acuro poético

Após o programa Som Livre Exportação, apresentado por Ivan Lins e Elis Regina,

exibido entre os anos de 1970 e 1971, deixar sua grade de programação fixa136, a TV Globo

136 A título ilustrativo, ver Anexo 10, na p. 529, que traz a programação televisiva de uma semana do ano de 1971, na qual ainda era exibido o referido programa.

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passou a exibir, já no ano seguinte, nas noites das quartas-feiras, o programa Globo de Ouro. O

formato do programa, no entanto, não era o de apresentar novas obras, de novos compositores; ao

contrário, confirmava a tendência de a mídia televisiva apenas reverberar o movimento

mercadológico que provinha de outro aparato midiático, o disco137; afinal, as canções que se

mantinham nos primeiros lugares das “paradas de sucesso” e os artistas intérpretes dessas

canções, que se apresentavam no programa, eram aferidos pelos números das vendagens de

discos, tomando como base os dados fornecidos pela Associação Brasileira de Produtores de

Discos, a ABPD138.

O programa semanal teve longa duração e somente saiu da grade de programação fixa

da emissora no ano de 1990.

Também ao longo da década de 1970, programas de auditório comandados por

Abelardo Barbosa, o Chacrinha, foram exibidos por diferentes emissoras de televisão. Em 1970,

pela TV Globo, o apresentador comandava um programa semanal intitulado Buzina do

Chacrinha, no qual apresentavam-se calouros e artistas intérpretes que cantavam suas músicas

mais executadas nas Rádios, os chamados “carros-chefe” ou “música de trabaho” de seus discos.

Já no ano seguinte, o apresentador somava ao programa outra atração semanal, a Discoteca do

Chacrinha, que permitiu setorizar os quadros de calouros no programa antigo e a apresentação de

137 Ver p. 363.

138 A entidade tem em sua página oficial na internet a seguinte apresentação: “A ABPD - Associação Brasileira de Produtores de Discos, foi fundada em abril de 1958. Como entidade representante das gravadoras, seu objetivo é conciliar os interesses destas organizações com os de autores, intérpretes, músicos, produtores e editores musicais, além de defender coletiva e institucionalmente os direitos e interesses comuns de seus associados, combater a pirataria musical e promover levantamentos estatísticos e pesquisas de mercado.

A ABPD é filiada a IFPI www. ifpi.org (International Federation of the Phonographic Industry) – Federação Internacional da Indústria Fonográfica, que agrega cerca de 1.400 gravadoras em 76 países.

A Associação também é responsável por pesquisas de mercado, dados estatísticos e de vendagens do setor fonográfico no Brasil e pela emissão dos certificados que autorizam as gravadoras a premiar intérpretes com ‘discos especiais’ (Discos de Ouro, Platina e Diamante), em decorrência de grandes volumes vendidos.” Fonte: http://www.abpd.org.br/estatisticas_mercado_audio.asp (acesso em 15 de maio de 2014).

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intérpretes que já colecionavam discos gravados no novo programa. Em 1972 o apresentador foi

contratado pela TV Tupi e comandava apenas um dos programas. Em 1978 Chacrinha transferiu-

se para a TV Bandeirantes, onde também apresentava apenas um dos programas e, no ano de

1982, voltou à TV Globo, onde apresentava o programa Cassino do Chacrinha nas tardes de

sábado, no formato que mesclava as atrações já consagradas e os aspirantes calouros.

Outro programa semanal, exibido aos sábados pela TV Bandeirantes, trazia o formato

do programa de apresentação de calouros, o Clube do Bolinha, apresentado por Edson “Bolinha”

Curi. Imiscuídas a outros quadros pautados pelo caráter do entretenimento, as apresentações de

aspirantes a intérpretes eram a atração principal do programa, que se estendeu por 20 anos na

programação fixa, mantendo-se como um dos programas de maior índice de audiência da

emissora, saindo do ar no ano de 1994.

A TV Tupi exibia nas noites de domingo o Programa Flávio Cavalcanti, que passava

em revista fatos da semana, apresentava quadros de entretenimento e, também, atrações musicais.

Contudo, em regra tais atrações já provinham do mercado fonográfico com relativo sucesso.

Do mesmo modo, no programa dominical noturno da TV Globo Fantástico, o Show

da Vida, cuja estreia aconteceu em 5 de agosto de 1973, no mesmo horário do Programa Flávio

Cavalcanti exibido pela TV Tupi, as atrações musicais eram aquelas com sucesso fonográfico

estabelecido pelo mecanismo mercadológico capitaneado pela gravadoras de discos e pelas

programações do Rádio, que executavam as músicas “carros-chefe” dos discos lançados pelos

artistas139.

Amilton Godoy, ao referir-se ao cenário midiático-mercadológico-musical da década

de 1960, principia por situar a relação intrínseca entre a mídia e o mercado: “As pessoas que

detêm o monopólio da divulgação daquilo são comprometidas com grupos, com dinheiro”

(GODOY, 2013). Em seguida, o pianista aponta o movimento mercadológico (engendrado

principalmente pelo comportamento das gravadoras de discos no Brasil, do chamado “mercado

fonográfico brasileiro”) iniciado pela década de 1970 em sintonia com o veículo midiático

radiofônico, ambas as instâncias traçando seus procedimentos em detrimento da música

brasileira, do padrão estético dos produtos comercializados e veiculados: “Começa a acontecer

139 Ver citação do cantor e compositor Ivan Linsa, à p. 399.

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um boicote cultural, as gravadoras não têm mais o compromisso de ajudar o músico a produzir

seu trabalho, as rádios não tocam música instrumental, alegando que não vende, mas as rádios

não são loja de disco!” (GODOY, 2013). Finalmente, Raimundo Fagner corrobora o exposto por

Amilton Godoy e estabelece o prejuízo no padrão estético da produção musical daquela época e

do consequente empobrecimento da capacidade estética do ouvinte de música brasileira a partir

daquele momento:

O mercado, que era muito aquecido, mas com muita criatividade, com as pessoas cantando aquilo que o povo gostava e primando pela qualidade da música, até o começo dos anos 70s foi muito forte; mas a partir do começo dos anos 80s, tudo se inverteu e o mercado deixou de buscar o talento do compositor brasileiro e pensou que podia fabricar música de boa qualidade. Isso não se fabrica” (FAGNER, 2013).

O cenário midiático-mercadológico-musical do final da década de 1970 indicava a

inauguração de uma era na qual a nova geração de compositores de uma espécie de música

brasileira pautada pelo rigor poético na busca de um alto padrão estético encontraria seriíssimas

dificuldades de se estabelecer, de apresentar seu trabalho, de dar prosseguimento à evolução da

linguagem musical (do ponto de vista harmônico, melódico, rítmico e literário) da canção popular

massiva brasileira, no movimento de renovação constante que se iniciou na Bossa Nova, pelo

final da década de 1950 e foi paulatinamente interrompido a partir da segunda metade da década

de 1970. Tal cenário, que ali se configurava, concretizou-se na década seguinte.

O compositor Dori Caymmi resume a trajetória histórico-discursiva da canção

popular massiva brasileira comprometida com a evolução da linguagem musical, que perpassou

pouco tempo mais do que duas décadas:

A música do Tom [Jobim] e a capacidade musical do João Gilberto são o vértice da mudança de rumos da música brasileira. Depois deles vieram Caetano [Veloso], [Gilberto] Gil, Chico [Buarque], Milton [Nascimento], gente de grande valor. Depois, Ivan Lins que tem uma corrente romântica harmônica e melódica fantástica, Paulinho da Viola Marinho da Vil e João Nogueira, que têm uma outra escola. Depois, Djavan, João Bosco e sua música extremamente brasileira. Todas essas gerações ampliaram muito a música brasileira; eram gerações muito férteis. A composição do brasileiro sempre foi muito boa. Depois, a geração do Eduardo Gudin, que vinha de São Paulo, perdeu muito na música do Brasil, porque a Indústria inventou o tal do Rock Nacional, uma

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música impostada, que não tinha nada a ver com a música brasileira (CAYMMI, 2013).

O compositor Eduardo Gudin, citado por Dori Caymmi, localiza historicamente a

mudança de rumos da música brasileira a que se refere o colega de profissão, fazendo notar um

fator já apontado neste trabalho140: a necessidade de o bom compositor ser, também, um

intérprete; afinal, o “produto” mercadológico-midiático deixara de ser a música, a composição

musical, e passara a ser o intérprete, a estrela midiática em forma de cantor: “Meus primeiros

discos foram grandes sucessos de crítica nos anos 70s, mas como eu não era um cantor, tocava

pouco no Rádio, a gravadora fazia tiragens pequenas, eu não aparecia na Televisão” (GUDIN,

2013). Além disso, Eduardo Gudin indica o momento midiático-mercadológico que, segundo ele,

foi decisivo para a concretização das dificuldades pelas quais passava o compositor de música

brasileira comprometido com o acuro poético e com o alto padrão estético:

Nos anos 80s, quando chegou o Rock Nacional, quem fazia música boa tinha de ir de gravadora em gravadora, de emissora de televisão em emissora de televisão, implorar, pedir ‘pelo amor de Deus’, para tocar uma música, para aparecer num programa, para ser lembrado, mas não adiantava nada; todo mundo estava interessado em tocar em todas as Rádios, em todos os programas de Televisão, o tempo todo, aquela música que as gravadoras mandavam para eles tocarem; a música não era mais só música, era um produto (GUDIN, 2013).

O Rock Brasileiro – a década de 1980, o abandono da identidade musical brasileira, o mercado e a mídia televisiva distantes da música popular brasileira comprometida com o acuro poético

O movimento musical a que Eduardo Gudin chamou de “Rock Nacional”, que tinha a

parelha dos elementos midiático e mercadológico bastante pronunciada, ganhou essa

denominação já em seus primórdios, pelo início da década de 1980, e se configurava

musicalmente como uma adaptação do ritmo new wave provindo de um flanco de produção

140 Ver pp. 336, 343 e 344.

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ligado ao Rock 'n' Roll dos Estados Unidos da América do Norte, no qual o compasso quaternário

tinha os segundo e quarto tempos acentuados pela caixa da bateria, provocando uma repetição da

célula rítmica a cada dois tempos, sempre situados no contratempo do compasso, diferentemente

do Rock 'n' Roll norte-americano surgido pelo meado da década de 1950, que acentuava somente

o primeiro tempo do compasso quaternário.

Tal movimento musical surgiu no Rio de Janeiro, em apresentações de grupos de

jovens brasileiros ligados à cena do Rock 'n' Roll internacional, num local específico,

denominado “Circo Voador”, segundo o professor Arthur Dapieve, autor do livro BRock – o Rock

brasileiro dos anos 80.

Concebido por Perfeito Fortuna, Márcio Calvão e Mauricio Sette e abençoado pela primeira-dama do Estado do Rio, dona Zoé Chagas Freitas, o Circo Voador era um audacioso misto de centro cultural e comunitário, aberto a todas as formas de manifestações artísticas e educacionais. A lona pousou na Praia do Arpoador em 15 de janeiro de 1982 (DAPIEVE, 1995, p. 31).

O local específico das apresentações dos grupos naquele primórdio do Rock

Brasileiro tinha um fiel parceiro midiático, sem o qual a reverberação social do movimento

musical, caso chegasse, demoraria sobremaneira a atingir a grande parcela da sociedade que

atingiu: uma emissora de rádio.

Bem no meio daqueles três meses, às 6h do dia 1º. De março de 1982, entrava no ar a mais poderosa aliada do Circo Voador: a rádio Fluminense FM, bolada pelos jornalistas Luiz Antônio Mello e Samuel Wainer Filho, roqueira até a medula [a Rádio]. Através de seus fracos sinais, os felizes ouvintes tiveram o privilégio de escutar fitas demos de grupos iniciantes chamados Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, Plebe Rude, Biquíni Cavadão. De quebra, o fotógrafo e DJ Maurício Valladares, pilotando o programa “Rock Alive”, apresentava as últimas novidades do rock estrangeiro, como Echo & The Bunnymen, The Cure e The Smiths141. Formava-se um público, enfim (DAPIEVE, 1995, p. 31).

141 É notável o fato de que todos os três grupos mencionados são de origem britânica e não norte-americana (Echo & The Bunnymen, formada em 1978 em Liverpool, The Cure formada em 1976 em Crowley, e The Smiths, formada em 1982 em Manchester). Tal fato, em certa medida, indica a situação mercadológica do Rock’n Roll norte-americano a partir da década de 1960, quando da chegada dos Beatles ao mercado fonográfico dos EUA. O Rock’n Roll norte-americano, cuja raiz musical pertence à música negra produzida na primeira metade da década de 1950, abandonara sua raiz, banindo o sétimo

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Local específico de apresentação dos grupos do Rock Brasileiro, emissora de Rádio

onde se executavam as produções dos grupos do Rock Brasileiro, restava apenas um aparato

midiático-mercadológico para compor a tríade perfeita do processo de produção, veiculação e

massificação do movimento musical: o disco. A gravadora WEA encarregou-se de se tornar o

pilar que faltava.

A tabelinha ente Circo Voador e Fluminense FM funcionava à perfeição. Dentro do projeto “Rock voador”, organizado por Maria Juçá, o espectador assistia na Lapa (onde o Circo se instalou em 23 de outubro de 1982) a shows de bandas que só tocavam na emissora de Niterói. E, na programação desta, o ouvinte escutava bandas que só se apresentavam sob a lona. Em janeiro de 1983, via WEA, aterrissava nas lojas o filho desse casamento sem sogra e sem tédio, o desigual LP “Rock voador”, compilação de fitas autoproduzidas no ar pela Fluminense (DAPIEVE, 1995, pp. 31-32).

Completando a teia midiática que deu suporte a Rock Nacional, parte da mídia escrita,

representado por figuras de projeção social, asseveravam em veículos de comunicação de grande prestígio

o surgimento do movimento musical.

Além do eixo Circo/Fluminense, a afirmação do BRock passou também pela presença de pessoas-chave nos meios de comunicação. No jornal “O Globo” e na revista “Pipoca Moderna”, Ana Maria Bahiana. No “Jornal do Brasil”, Jamari França. Na revista “Som Três” e na Rádio Excelsior FM, Maurício Kubrusly (DAPIEVE, 1995, p. 32).

Montada a teia, o Rock brasileiro rapidamente tomou conta da cena midiático-

musical brasileira da primeira metade da década de 1980. A indústria fonográfica encontrou um

veio de altos lucros por intermédio de vendagens de discos em marcas gigantescas. As gravadoras

encontravam um nicho mercadológico na juventude brasileira e se apoiavam nos veículos de

comunicação para veicularem seus produtos musicais.

No ano de 1983, o compacto duplo do cantor Ritchie, lançado pela gravadora CBS,

no qual figurava a canção “Menina Veneno”, vendeu mais de 500 mil cópias e o LP “Voo de grau menor dos acordes de I e IV graus, em favor das sequências baseadas nos encadeamentos harmônicos I – VIm – IV – V, provindas da música de origem não-negra europeia.

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coração”, 700 mil cópias, segundo a ABPD. O cantor vendeu mais cópias de discos do que

Roberto Carlos, o campeão de vendagens de discos no Brasil desde a década de 1960: “Naquele

1983, o LP do Rei [Roberto Carlos] vendeu menos do que o de Ritchie que, de quebra, ganhou o

Troféu Imprensa, concedido por Sílvio Santos, e quase privativo do rival” (DAPIEVE, 1995, p.

40).

No entanto, a trajetória do cantor Ritchie é significativa e emblemática do

procedimento inaugurado pela indústria fonográfica à época: o lançamento de um intérprete, cujo

disco continha uma ou duas canções que se tornavam sucesso imediato e avassalador, a

vendagem de discos que apresentava números extraordinários e, subitamente, o declínio daquele

intérprete em favor do surgimento de um novo cantor, grupo, banda ou cantora.

Seu segundo LP [do cantor Ritchie], “E a vida continua”, lançado em 1984, vendeu 100 mil cópias [...] No ano seguinte vi o terceiro disco pela CBS, o fraco “Circular”. Vendo as vendagens estacionarem abaixo das 100 mil cópias, Ritchie pediu para sair mesmo tendo, por contrato, outro disco a gravar. A CBS aceitou com tanta facilidade que alguma coisa coçou atrás da orelha do cantor-compositor (DAPIEVE, 1995, pp. 40-41).

No ano seguinte, 1986, o cantor Ritchie assinou contrato com a gravadora PolyGram.

No entanto, o mercado fonográfico passava a conhecer uma espécie bastante nítida do que se

chamou neste trabalho de “sistema de resposta social”142. Ao procedimento criado pelo próprio

mercado fonográfico em sua ligação profundamente arraigada às mídias televisiva e radiofônica,

no qual um intérprete de um sucesso era substituído por outro, a sociedade respondia dando as

costas à tentativa de perpetuação daquele mesmo intérprete no topo das paradas de sucesso

quando contratado por outra instituição ou conglomerado pertencente ao mercado fonográfico:

“O LP que se seguiu, ‘Loucura & mágica’, lançado em julho de 1987, contudo, não passou das 25

mil cópias” (DAPIEVE, 1995, p. 41).

A resposta social provocou a reação imediata da gravadora, que rescindiu o contrato

do cantor Ritchie.

142 Ver pp. 61 e 98.

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Abandonado pelo pilar mercadológico do tripé gravadora-mídia-música, o cantor,

apostando na força de seu nome alcançado pelo sucesso da canção “Menina Veneno”, de seu

primeiro LP, lançado apenas cinco anos antes, lançou um LP produzido sem uma gravadora, uma

espécie de “LP independente”: “Ritchie caiu na tentação de fazer um disco sozinho. O resultado,

‘Pra ficar contigo’, de 1988, foi gélido [...] o público fugiu e o disco só vendeu 13 mil cópias”

(DAPIEVE, 1995, p. 41).

Ritchie ficou dois anos sem gravar discos e conheceu dolorosamente os efeitos do

novo procedimento da indústria fonográfica brasileira e do sistema de resposta social que esta

engendrou.

Quando novamente pôs seu bloco na rua, em maio de 1990, descobriu que pior, muito pior do que ficar estigmatizado por um megassucesso era ficar marcado por uma sucessão de pequenos fracassos. Seu sexto disco, “Sexto sentido”, concebido junto ao tecladista William Forghieri, ex-Gang 90 e Blitz, atraiu apenas seis mil compradores (DAPIEVE, 1995, pp. 41-42).

Entretanto, é mister notar que, além do procedimento da indústria fonográfica, além

do sistema de resposta social, há uma evidente questão musical a envolver a questão.

Após o encanto-primeiro, a canção megassucesso (se desprovida de consistência

discursiva) apresenta seu caráter de aceitação extrema, porém duração imediata. O megassucesso

(que apresenta discurso musical-literário empobrecido), apreendido à primeira audição,

consumido de modo voraz, exposto renitentemente em canais de veiculação, mediado

socialmente por ouvintes não-críticos apenas nos primeiros estágios de seus processos de

apreensão estética, apresenta sua natureza pouco consistente e, desse modo, não tem longevidade.

Numa pesquisa não-científica realizada por este pesquisador, com amostragem de 10

pessoas nascidas entre os anos de 1957 e 1972, contando respectivamente entre 15 e 30 anos de

idade quando do lançamento do LP “Loucura & Mágica”, nenhuma delas recordava-se de

qualquer uma das 30 músicas listadas, que compunham os três LPs do cantor Ritchie lançados

entre 1987 e 1990.143

143 Das 30 canções listadas abaixo, nenhuma resistiu ao tempo e são praticamente esquecidas ou desconhecidas do público ouvinte de música quando da feitura deste trabalho, menos de 30 anos após o lançamento dos referidos discos.

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A totalidade dos respondentes, ao mesmo tempo em que não se recordavam de

nenhuma das 30 canções, traziam na memória o sucesso “Menina Veneno”, o megassucesso do

cantor Ritchie no ano de 1983. Contudo, não foram capazes de se recordar de outra canção

qualquer da produção do artista.

O sucesso meteórico do artista fabricado pela gravadora e, sobretudo, da composição

musical também forjada pelo complexo mercadológico-midiático, aparentemente traça a

trajetória de rápida ascensão e mais rápido ainda declínio, levando consigo o próprio artista,

como apontou Raimundo Fagner, em citação pertencente a este trabalho144.

Amilton Godoy ressalta o empobrecimento do discurso musical representado pelo

Rock Brasileiro da década de 1980 e de sua procedência internacional, onde os recursos de

linguagem já eram de natureza harmônico-melódica restrita, constituída de elementos muito

simples e limitados.

O LP “Loucura & Mágica”, de 1987, era composto por 10 faixas: Tudo Normal (Ritchie, Bernardo Vilhena), Me Gusta La Rumba (Torcuato Mariano, Paulinho Lima), Loucura e Mágica (Ritchie, Antonio Cicero), Mariana (Ritchie, Bernardo Vilhena, Lauro Salazar), Transas (Nico Rezende, Paulinho Lima), Guerra Civil (Ritchie, Cazuza), Mentira (Ritchie, Bernardo Vilhena), Forças de Dentro (Kiko Zambianchi), Meantime (Poema de Fernando Pessoa musicado por Ritchie).

O LP “Pra ficar contigo”, de 1988, também contava 10 faixas: Pra Valer (Fred Maciel, Paulinho Lima), Pra Ficar Contigo (Vinicius Cantuária), Déjà Vu (Casaverde, Fausto Nilo), Horizonte Perdido (Ritchie, Bernardo Vilhena), A Sombra da Partida (Luiz Paulo Simas/Ritchie/Bernardo Vilhena), A Vida Não Espera (Ritchie, Aldeone Santos, Ronaldo Santos, Bernardo Vilhena), Olhos de Video Tape (Ojos de Video Tape) (Charly Garcia, versão: Ritchie), Temporal (Ritchie, Fausto Nilo), Black Magic Woman (Peter Green), O Eterno Verão (Ritchie/Ronaldo Bastos).

O LP “Sexto Sentido”, de 1990, era composto por 10 faixas: Relógios (Ritchie, William Forghieri, Bernardo Vilhena), Mais Você (Ritchie, William Forghieri, Bernardo Vilhena), Eu e Meu Rádio (Guerra dos Mundos) (Ritchie, Fausto Nilo), Longe Com Você (Ritchie, Bernardo Vilhena), Deixa Brilhar (Ritchie, William Forghieri, Bernardo Vilhena), No Man's Land (Ritchie, William Forghieri), Obsessão (Francisco Casaverde, Fausto Nilo), A Perdida Ilusão (Ritchie, William Forghieri, Bernardo Vilhena), Ponta Cabeça (Ritchie, Bernardo Vilhena), Ondas, Sombras e Sonhos (Ritchie, Bernardo Vilhena).

144 Ver p. 351.

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O Rock feito no Brasil naquela época já tinha uma procedência estrangeira, com aquelas melodias simples deles, com aquelas harmonias deles, que são muito limitadas. Por isso é que o [Tom] Jobim detestava o Rock. Porque o músico, para tocar certos tipos de música, não precisa nem estudar; ele aprende dois acordes e pronto (GODOY, 2013).

Arthur Dapieve faz notar que, do ponto de vista midiático, a relação entre gravadoras

e emissoras de televisão ganhava novos agentes e se aprofundava no sentido de consolidar os

lucros mais acentuados e distribuídos por um número maior de pessoas. Entrava no circuito

gravadora-emissora de televisão, a figura do apresentador do programa exibido pela emissora. O

caso do surgimento do cantor e compositor Lulu Santos é emblemático:

Num período de seis meses de 1981, Lulu gravou três bem-sucedidos compactos: “Tesouros da juventude”, “Areais escaldantes” e “De leve”. Com este vasto repertório, ele excursionou como um louco pela periferia do Rio, fazendo até quatro shows em playback por dia, mercado conquistado graças a constantes aparições no programa de TV de Chacrinha, dentro do esquema do Velho Guerreiro – uma espécie de permuta marota entre aparições na TV e participações do apresentador nos lucros obtidos pelo artista em shows Brasil afora (DAPIEVE, 1995, pp. 42-43).

Para além dos programas de conteúdo musical da emissora, a TV Globo representava

a possibilidade de uma música conquistar a maior audiência midiática da época caso figurasse a

trilha sonora de uma de suas novelas, notadamente aquela exibida às 20 horas, o horário nobre.

O caso do cantor e compositor Lobão, que provocou o litígio com a gravadora RCA,

evidencia o jogo de altos interesses que movimentava a relação entre as gravadoras (o elemento

mercadológico) e a emissora de televisão (o elemento midiático) no que se tratava da produção

musical da canção popular massiva brasileira, no caso específico, do Rock Brasileiro.

O produtor Guto Graça Mello pediu uma cópia do disco [“Cena de Cinema”] a Lobão, pois tencionava incluir uma de suas faixas na trilha de alguma novela da Rede Globo – um passaporte visado para o sucesso comercial. O agora cantor-guitarrista-baterista foi até a RCA pedir a tal cópia. Mas arrumou uma briga e ganhou não uma cópia de “Cena de Cinema”, e sim uma geladeira de quase um ano (DAPIEVE, 1995, p. 47 – grifo do autor).

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O cantor e compositor Raimundo Fagner, que ocupou o cargo de produtor musical da

gravadora CBS entre os anos de 1981 e 1985, conhecedor das entranhas dos procedimentos

mercadológicos e midiáticos, além de dominar o âmbito musical do tripé que se estabeleceu na

primeira metade da década de 1980 na música brasileira, traça um panorama preciso do

empobrecimento do discurso musical da canção popular massiva brasileira engendrado pelo Rock

Brasileiro.

Começou o Rock Nacional na mesma época em que eu saí da gravadora onde eu tinha todo um trabalho de lançar artistas e tudo. Ali eu acho que começou a cair a qualidade da música. Nosso rock não era legal. Tinha o Cazuza, mas com toda a mídia em cima. O Cazuza tinha uma qualidade, mas sem a mídia ele não teria nem aparecido. A mídia até hoje só fala no Cazuza, como se só houvesse existido ele. Acho que o Belchior falou mais do que esses caras. Daí ficou um rastro; a música perdeu muito da qualidade (FAGNER, 2013).

A “perda da qualidade” a que se refere o compositor tem estreito laço com o fator já

apontado por ele mesmo, quando mencionou em citação pertencente ao presente trabalho145, o

procedimento de as gravadoras passarem a criar seus próprios produtos midiáticos, a “fabricar”

intérpretes e, até mesmo, canções de sucesso estrondoso porém sem consistência discursiva.

O Rock entrou e começou a entrar também muito esse negócio de rádio, de produção, de gravadora. As gravadoras interferiram muito enquanto ainda existia qualidade na música. Se você pegar os artistas que eles fizeram, cadê? Os artistas que eles fabricaram não existem mais (FAGNER, 2013).

Segundo o compositor, o modelo de gestão das gravadoras (corporações que

passavam a ser multinacionais) não se restringia à gestão administrativa mas, também, à gestão

artística.

Ao importar o modelo de gestão administrativa, as gravadoras teriam contaminado

também o modelo norte-americano de produção musical. Teria sido aí o início de um modelo

artístico que se ocupava menos da busca de uma forma musical, mais da fabricação de uma

fórmula de sucesso.

145 Ver p. 351.

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Chegou nas gravadoras uma geração com uma cabeça de fora e esse pessoal trouxe um tipo de comportamento importado. Antes, nossa criatividade era lapidada aqui mesmo. Depois começaram a trazer moldes, importar modelos de fora. Ao mesmo tempo, começaram a se importar mais com os modelos de gestão do que com os artistas. Então a fábrica de artistas deles foi muito grande, mas tem um limite de duração, o cara explode com uma música e, depois, some. Até hoje eles tentam manter esse esquema. Eles têm as amizades dentro da televisão, daí bota na novela e ali a música resiste um ano; é o máximo que eles conseguem (FAGNER, 2013).

A longevidade diminuta não fez, no entanto, o modelo de gestão mudar. Motivadas

pela sucessão de artistas e megasucessos, gravadoras e emissoras de televisão mantinham o

procedimento.

Raimundo Fagner, no entanto, ressalta o fato notório: o artista de real valor, que

concebe e produz uma música pautada pelo acuro poético, promove uma experiância estética

duradoura no público ouvinte.

Segundo o compositor, a imperícia administrativa, definida pela inexistência de acuro

artístico nas corporações do mercado fonográfico na geração de administradores que surgiu

àquela época (em contraste com gerações de administradores e produtores musicais de épocas

anteriores), provém da confusão de funções que se deu nas gravadoras; os administradores, os

gestores, não deveriam confundir procedimentos com produtores artísticos.

De modo otimista (ao menos do ponto de vista dos compositores comprometidos com

o acuro discursivo musical-literário), o compositor Raimundo Fagner aponta para a possibilidade

de ruína do modelo inaugurado pela década de 1980, justamente motivado pela excelência

intrínseca à produção musical do compositor da canção massiva brasileira.

Eu já fui diretor de gravadora e sei como se comporta esse povo. O cara que faz gestão artística tem que conhecer, e eu convivi com uma gente que entendia mesmo de arte e gostava de música. Depois vierem os caras para administrar isso aí; administrar é outra coisa. Esse mundo todo está em ruína e quem tem valor está em alta, porque os artistas que são bons mesmo, vão de qualquer jeito. (FAGNER, 2013).

Em grande medida, o compositor Raimundo Fagner corrobora o pensamento do

produtor musical Zuza Homem de Mello, quando este faz notar que as tentativas de retomar a

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produção de programas televisivos de conteúdo musical na TV Globo (tanto os programas

baseados na fórmula Festival de Música Popular quanto aqueles que teriam a música

comprometida com o acuro discursivo como conteúdo principal) ao longo da primeira década do

século XXI foram inócuas: “Em ambos se revela que na cúpula da produção não havia o

elemento indispensável: não havia quem tivesse ouvidos de músico” (HOMEM DE MELLO,

2003, p. 433), citação já mencionada anteriormente neste trabalho146.

Enquanto naquele princípio da década de 1980 as gravadoras representavam a

distorção estética provocada pelo mercado fonográfico, a mídia televisiva definia-se de modo

bastante preciso como o braço midiático de uma polarização que não incluía a produção de

programas de conteúdo musical pautados pela busca de compositores determinados a

constituírem um repertório definido pelo acuro poético, responsável pela produção de obras

caracterizadas por um teor estético de excelência.

A polarização evidenciava-se pela produção de programas de conteúdo musical que,

por um lado, ratificavam como grandes compositores aqueles pertencentes à geração surgida nas

décadas de 1960 e 1970; por outro, programas que reverberavam e amplificavam sucessos

provindos do cast de artistas das gravadoras – ambos (cast de artistas e gravadoras)

descomprometidos com a qualidade da música produzida e, por conseguinte, com o

enriquecimento do discurso literário-musical da canção popular massiva brasileira.

Assim, no que tange à produção e veiculação musical nas grades de programação das

emissoras147, o cenário da mídia televisiva aberta brasileira definia-se de maneira a ser possível

146 Ver p. 329.

147 Ver anexos 11, 12, 13 e 14, a partir da p. 535, nos quais pode-se perceber a referida transformação gradual do cenário da mídia televisiva aberta brasileira. As programações das emissoras de televisão encontradas nas semanas de cada uma das décadas que abrangem o período histórico aqui delimitado indicam, numa amostragem pequena, colhida de modo não-científico, constante deste trabalho apenas a título ilustrativo, a ausência de programas de conteúdo estritamente musical, produzidos com o intuito de veicular um repertório de canções estruturadas com acuro poético, apesar de as emissoras manterem a produção e exibição de programas com conteúdo musical. A “desmusicalização da mídia televisiva” não implica, portanto, uma diminuição da presença da Música na programação da Televisão brasileira mas, sim, a diminuição da exposição de um repertório musical comprometido com um elevado padrão estético da canção popular massiva brasileira.

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notar o abandono de programas de conteúdo musical por parte da TV Record, a dificuldade de

emplacar uma programação de conteúdo musical por parte da TV Bandeirantes (também em

função da pouca tradição da emissora nessa espécie de programa) e as dificuldades financeiro-

administrativas da TV Tupi que, apesar da tradição na produção dessa espécie de programa,

anunciaria o fechamento de suas atividades no ano de 1980, como já foi dito neste trabalho148.

A TV Globo, à parte o âmbito das trilhas sonoras das novelas (que não se

caracterizam como programas de conteúdo musical produzidos pela emissora), por sua vez,

alternava sua produção entre as duas facetas da polarização: de uma parte, programas como

Cassino do Chacrinha, que dominava a tarde do sábado da emissora exibindo ora calouros, ora

artistas provindos das entranhas da indústria fonográfica brasileira, comprometidos (ambos,

calouros e programa) com os interesses das gravadoras, como já mencionado anteriormente149 e

Globo de Ouro, exibido semanalmente na programação noturna, que chancelava na mídia

televisiva o movimento mercadológico que provinha de outro aparato midiático, o disco150; de

outra parte, a emissora investia na produção de programas especiais, nos quais ratificava a

presença midiática de grandes artistas a interpretar grandes obras dos grandes compositores da

música popular brasileira, todos eles pertencentes às gerações nascidas nas décadas de 1960 e

1970.

Mulher 80 – as intérpretes e a ausência de uma geração de grandes compositores Na esteira do sucesso do seriado Malu Mulher151, escrito por Armando Costa, Lenita

Plonczynski, Renata Palottini, Manoel Carlos e Euclydes Marinho, dirigido por Daniel Filho,

148 Ver p. 331.

149 Ver p. 351.

150 Ver p. 359.

151 Seriado criado no momento histórico de reinvindicações femininas por direitos, melhores condições de trabalho e igualdade de funções, posições e remunerações no mercado de trabalho, que culminou com a instituição, em dezembro do ano de 1977, do Dia Internacional da Mulher, pela Organização das Nações Unidas (ONU). O seriado foi exibido às quintas-feiras, no horário das 22H00, de maio de 1979 a dezembro de 1980.

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Paulo Afonso Grisolli e Dennis Carvalho, e estrelado por Regina Duarte, a TV Globo exibiu na

faixa de programação intitulada Sexta Super, às 21H00 do 19 de outubro de 1979, o programa de

conteúdo musical Mulher 80, produzido e dirigido por Guto Graça Mello, apresentado pela

mesma atriz que estrelava o seriado (Regina Duarte).

Mulher 80 trazia um elenco formado pelas grandes cantoras brasileiras da época, que

davam depoimentos e cantavam seus sucessos do momento. Apresentaram-se, pela ordem, as

cantoras: Simone, Fafá de Belém, Joanna, Zezé Motta, Marina Lima, Maria Bethânia, Rita Lee,

Elis Regina, Gal Costa, e o grupo vocal Quarteto em Cy, que interpretaram as canções Começar

de Novo (Ivan Lins e Vítor Martins), Que me Venha Esse Homem (David Tigel e Bruna

Lombardi), Paula e Bebeto (Caetano Veloso e Milton Nascimento), Seu Corpo (Roberto e

Erasmo Carlos), Pecado Original (Caetano Veloso), Não Há Cabeça (Ângela Rô-Rô), Álibi

(Djavan), Mania de Você (Rita Lee e Roberto de Carvalho), O Bêbado e a Equilibrista (João

Bosco e Aldir Blanc) e Maria, Maria (Milton Nascimento e Fernando Brant), Meu nome é Gal

(Roberto e Erasmo Carlos) e Cantoras do Rádio (Lamartine Babo, João de Barro e Alberto

Ribeiro).

É possível notar que a quase totalidade das canções executadas no programa são de

autoria de compositores já consagrados à altura – exceções feitas à parceria entre David Tigel e

Bruna Lombardi (cuja canção foi interpretada pela cantora Fafá de Belém) e à compositora

Ângela Rô-Rô (cuja canção foi interpretada pela cantora Marina Lima). No entanto, se a quase

totalidade das canções executadas no programa são de autoria de compositores já consagrados, a

somatória de canções de real valor poético e de padrão estético comprovados pela longevidade

das obras perfazem a totalidade.

Série Grandes Nomes – a consolidação das gerações de compositores surgidas nas décadas de 1950, 1960 e 1970

Também no início da década de 1980 a TV Globo produziu e veiculou um programa

de conteúdo musical que reafirmava os grandes nomes da música popular brasileira e as obras

dos grandes compositores surgidos nas décadas de 1960 e 1970, a série Grandes Nomes,

programas especiais exibidos às sextas-feiras, 21H00, dentro da faixa de programação fixa Sexta

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Super, cujos títulos eram os nomes completos dos grandes artistas brasileiros da época. Exibidos

mensalmente, entre março de 1980 e dezembro de 1981, os programas Simone Bittencourt de

Oliveira, Caetano Emanuel Viana Teles Veloso e Jorge Duílio de Menezes (Jorge Benjor),

Abelim Maria da Cunha (Ângela Maria), Paulo Cesar Batista de Farias (Paulinho da Viola),

Gilberto Passos Gil Moreira e James Chambers (Jimmy Cliff), João Gilberto Prado Pereira de

Oliveira, Elis Regina Carvalho Costa, Rita Lee Jones, Maria da Graça Costa Penna Burgos (Gal

Costa), Gilberto Passos Gil Moreira, Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior, Caetano Emanuel

Viana Teles Veloso, Nei Souza Pereira (Nei Matogrosso), Raimundo Fagner Cândido Lopes,

Rita Lee Jones foram estrelados pelos respectivos artistas, que tinham a liberdade de convidar

outros artistas para participarem de seus programas especiais152.

A série Grandes Nomes foi interrompida no final do ano de 1981 e voltou a ser

exibida esporadicamente entre maio de 1983 e junho de 1984, sem apresentar os nomes

completos dos artistas no título. A emissora produziu e veiculou a realização dos programas Um

Facho de Luz, estrelado por Djavan, em maio de 1983; Agnaldo Timóteo – A voz... o cantor..., em

agosto de 1983; Luiz Gonzaga Especial, em maio de 1984; e Milton Nascimento Especial, em

junho de 1984; todos os artistas optaram por levar ao palco seus respectivos convidados153.

É notável que tanto os programas eram dedicados aos já consagrados “grandes

nomes” da canção massiva brasileira quanto os artistas corroboravam (ainda que sem intenção 152 Alguns programas não tiveram artistas convidados. No entanto, a maioria dos artistas optou por contar com a presença de colegas. Paulinho da Viola convidou o músico Canhoto da Paraíba, o maestro Radamés Gnatalli, a cantora Zezé Motta e a Velha Guarda da Portela; João Gilberto convidou Rita Lee; o convidado de Elis Regina foi o pianista e arranjador César Camargo Mariano. O convidado de Rita Lee não provinha da área musical; foi apresentador Hilton Gomes, que encenou a apresentação de uma miss, para a música “Miss Brasil 2000”. Gal Costa convidou Elis Regina; o convidado de Gilberto Gil foi Jorge Benjor; Luiz Gonzaga Jr convidou Roberto Ribeiro, Simone, As Frenéticas e seu pai, Luiz Gonzaga. Caetano Veloso convidou Paulinho da Viola e Moraes Moreira; Nei Matogrosso encenou, ao lado da atriz Marília Pera, a canção “Taí”, de Joubert de Carvalho; Fagner convidou Cauby Peixoto e Zizi Possi.

153 Os convidados de Djavan foram Chico Buarque, Gal Costa, Caetano Veloso e Paulinho da Viola; Agnaldo Timóteo convidou o maestro Radamés Gnatalli; Luiz Gonzaga convidou seu filho Luiz Gonzaga Jr., Elba Ramalho e Fagner; Milton, na transmissão do show de inauguração da Praça da Apoteose, no Rio de Janeiro, convidou o pianista e arranjador Wagner Tiso.

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deliberada) a tendência do programa de consagrar artistas já consagrados; afinal, os convidados

dos “grandes nomes” da música popular brasileira eram artistas de renome, já consagrados pela

mídia televisiva nas décadas de 1960 e 1970 ou pelo disco já na própria década de 1980.

Chico & Caetano – o meado da década de 1980 e a consolidação do cenário mercadológico-midiático brasileiro

Já na segunda metade da década de 1980, a TV Globo produziu e veiculou aquela que

seria uma das atrações da grade de programação mensal do ano de 1986, o programa Chico &

Caetano. O título do programa era uma menção explícita ao título do show homônimo realizado

pelos mesmos Chico Buarque e Caetano Veloso 14 anos antes, no ano de 1972, no Teatro Castro

Alves, na cidade de Salvador, na Bahia, quando da concretização da volta dos grandes artistas

exilados pela ditadura militar logo após entrar em vigor o Ato Institucional no. 5, em dezembro

de 1968.

O formato do programa não tencionava revelar novos compositores da música

popular brasileira. Ao contrário, levaria ao palco do Teatro Fênix, no Rio de Janeiro, artistas

convidados pelos apresentadores do programa e grandes nomes da música latino-americana.

Escritos por Luiz Carlos Maciel e Nelson Motta, dirigidos por Roberto Talma, entre

os dias 25 de abril e 26 de dezembro de 1986 foram exibidos nove programas mensais, todos eles

dentro da faixa de programação Sexta Super, às 21H30.

A cada programa reafirmava-se a tendência de ratificação dos nomes já consagrados

pela mídia televisiva ou pelo disco. Nem mesmo o fato de o programa apresentado por dois

expoentes da geração de compositores que surgiu na Era dos Festivais foi suficiente para se

encontrar uma fórmula na qual houvesse a oportunidade de a mídia televisiva veicular obras de

grandes compositores de música popular brasileira que, porventura, estivessem distantes tanto da

mídia televisiva quanto do aparato midiático do disco. Os compositores que, à altura, estavam

alijados da possibilidade de apresentar suas obras, fosse pela mídia televisiva comercial, fosse

pela indústria fonográfica representada pelas estratégias de comercialização das gravadoras,

continuaram à margem do processo de produção e veiculação de obras musicais em programas de

conteúdo estritamente musical, produzidos com o intuito de dar suporte e oportunidade à criação

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poética determinada pelo acuro no uso de recursos de linguagem e consequente padrão estético

de qualidade discursiva154.

A acanhada presença de artistas e grupos surgidos na própria década de 1980,

provindos todos do movimento do Rock Brasileiro, torna ainda mais evidente a lacuna de obras

de relevância musical; tal lacuna é atrelada, naturalmente, à ausência de uma geração de grandes

compositores, comprometidos com o acuro discursivo e com o aprimoramento do padrão estético

da canção popular massiva brasileira.

É notável que apenas cinco representantes do Rock Brasileiro figuraram entre os

convidados do programa (os grupos Paralamas do Sucesso, RPM e Legião Urbana, além dos

cantores Cazuza e Evandro Mesquita) sendo que três deles interpretaram obras de compositores

de gerações anteriores; somente os grupos Paralamas do Sucesso e Legião Urbana interpretaram

uma música de seus próprios repertórios. Também é notável que o espaço destinados a estas

atrações era de apenas uma música ao longo de todo o programa, ao passo que os outros

convidados interpretavam ao menos duas músicas em cada um dos programas.

Homem 90 – os intérpretes e a ausência de uma geração de grandes compositores Tentando resgatar o sucesso do programa Mulher 80, realizado 10 anos antes, a TV

Globo produziu e veiculou o programa Homem 90 pelo final da década de 1980.

154 Os convidados do primeiro programa foram o cantor Luiz Caldas (provindo do mercado fonográfico e com uma música-tema na novela das 8 da TV Globo), Rita Lee e Maria Bethânia. No segundo programa os convidados foram Astor Piazzolla e Tom Jobim. O terceiro programa teve Paulinho da Viola, o grupo do movimento do Rock Brasileiro Paralamas do Sucesso e Jorge Benjor. O quarto programa contou com a presença de Beth Carvalho, do movimento do Rock Brasileiro Cazuza (que interpretou o samba “Luz Negra”, de Nelson Cavaquinho), Elza Soares, Willie Colón e Dominguinhos. O quinto programa teve como convidados Elizeth Cardoso, Baden Powell e João Bosco. O sexto programa apresentou Nei Matogrosso, o grupo do movimento do Rock Brasileiro Legião Urbana, o grupo RPM, também provindo do movimento do Rock Brasileiro (que interpretou a canção “London, London”, de Caetano Veloso) e exibiu o ensaio do cantor Tim Maia, que não compareceu no dia da gravação do programa. Os convidados do sétimo programa foram Silvio Rodrigues, Gal Costa, Mercedes Sosa e Milton Nascimento. No oitavo programa, Marina Lima, Djavan e Pablo Milanés. O nono e último programa teve como convidados o cantor Evandro Mesquita, do movimento do Rock Brasileiro, e Gilberto Gil.

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Em 26 de dezembro de 1989, Homem 90, produzido por Carlos Alberto Sion e

dirigido por Roberto Talma, exibido às 21H00, foi o Especial de Fim de Ano com os mais

expressivos nomes masculinos da música popular brasileira: Caetano Veloso, Chico Buarque,

Danilo Caymmi, Djavan, Gilberto Gil, Hermeto Paschoal, João Bosco, Marçal, Milton

Nascimento, Paulinho da Viola, Tom Jobim, Titãs, Lobão e Moleque de Rua.

O formato se repetiu e os já consagrados grandes nomes da música popular brasileira

foram ali ratificados (pois o conjunto Titãs e o cantor Lobão provinham do movimento do Rock

Brasileiro e o grupo Moleque de Rua não intentava apresentar grandes obras musicais, mas sim

marcar a posição de uma produção musical insipiente à altura, que provinha das periferias dos

grandes centros urbanos brasileiros e, em certa medida, despertavam o interesse de gravadoras,

atentas ao crescente mercado de consumidores que brotava nas regiões periféricas das grandes

cidades155).

Vale notar que as atrações do programa Homem 90 pertenciam às gerações surgidas

no movimento da Bossa Nova (Tom Jobim) e contavam cerca de 60 anos de idade, quase 30 anos

de consolidação de suas obras; na Era dos Festivais (Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto

Gil, Milton Nascimento e Paulinho da Viola) e contavam cerca de 50 anos de idade, mais de 20

anos de consolidação de suas obras; nas gerações que tiveram como inspiração as anteriores

(João Bosco, Djavan e Danilo Caymmi) e contavam mais de 40 anos de idade e mais de 10 anos

de consolidação de suas obras; além de Mestre Marçal, representante do samba brasileiro surgido

pelo início da década de 1930.

Os programas especiais produzidos pelas emissoras e a ratificação de um modelo que evidenciava a ausência de compositores comprometidos com o acuro poético na estruturação da canção popular massiva brasileira – a década de 1980

A TV Globo, emissora de maior audiência na década de 1980, realizou diversos

programas especiais tendo como figuras centrais os grandes nomes da canção massiva brasileira,

fazendo acentuar a lacuna poético-estética que passou a separar as gerações consagradas desde as

155 Ver citação do cantor e compositor Ivan Lins, à p. 410.

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décadas de 1960 e 1970 e as gerações surgidas no movimento do Rock Brasileiro e as

subsequentes.

Os programas especiais Corpo e Alma, produzido e veiculado no ano de 1982,

Delírios, Delícias, em 1983, e Simone Especial foram dedicados à cantora Simone; Jorge Ben

Especial, em 1981, e Jorge Ben Especial – “Energia”, em 1982, tinham o cantor e compositor

Jorge Benjor como atração principal; Gil Extra, em 1983, e Raça Humana, em 1984, foram

dedicados ao cantor e compositor Gilberto Gil; Agora Eu Sou uma Estrela, de 1983, homenageou

a cantor Elis Regina, um ano após a sua morte; Rita Lee teve os Especiais O Circo, de 1982, e

Rita Lee e Roberto de Carvalho, de 1985; em 1983 a emissora levou ao ar o Especial de Fim de

Ano Baby Gal, com a cantora Gal Costa; Fagner teve o especial Sorriso Novo, em 1982; e Milton

Nascimento foi homenageado duas vezes no ano de 1982, com os programas Milton Nascimento

Especial e Travessia.

Ao mesmo tempo, a TV Globo investia na produção e veiculação de um programa

especial, exibido às 17H00 dos domingos do verão do ano de 1986, entre os dias 5 de janeiro e 23

de fevereiro, intitulado Mixto Quente.

Com supervisão musical de Nelson Motta e direção de Vítor Paranhos, o programa

era realizado nas praias do Rio de Janeiro e contava com a participação de bandas e cantores

surgidos primordialmente no movimento do Rock Brasileiro.

A TV Bandeirantes, ao longo da década de 1980, manteve o segmento musical na

produção dos programas de auditório comandados por Edson “Bolinha” Curi e Chacrinha, já

mencionados anteriormente156.

A emissora priorizou os investimentos no segmento esportivo157, concretizando a

produção de apenas um programa com conteúdo musical, o Boa Noite Brasil, apresentado

diariamente por Flávio Cavalcanti. Contudo, o programa não era dedicado integralmente à

156 Ver p. 350.

157 A TV Bandeirantes concretizou, em 1983, a produção e exibição do programa Show do Esporte aos domingos, das 10H00 às 20H00. O programa semanal, com 10 horas de duração, idealizado pelo locutor esportivo Luciano do Valle, ficou no ar até o ano de 2004.

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Música, caracterizando-se por trazer atrações musicais imiscuídas a entrevistas, matérias e

reportagens diversas.

Em dificuldades financeiras, a TV Record exibiu programação conjunta com a TVS

(futuro SBT), de Silvio Santos, entre aos anos de 1980 e 1987. Nesse período, o programa de

conteúdo musical produzido pela emissora foi o Especial Sertanejo, exibido a partir de 1983,

apresentado por Marcelo Costa.

O SBT158, por sua vez, investia na produção do programa Viva a Noite, exibido nas

noites dos sábados, apresentado por Augusto Liberato. O programa especializou-se no segmento

mercadológico do Boy Band e lançou no Brasil os grupos internacionais Menudo (em 1982) e

New Kids on the Block (1990) e os grupos nacionais similares Dominó (em 1984), Tremendo

(em 1985) e Polegar (em 1989).

Tal fato distanciava a programação musical da emissora do conceito de formação de

uma nova geração de grandes compositores de música popular brasileira. Ao contrário, os

programas do SBT tendiam a reverberar o repertório de atrações musicais fabricadas pelas

gravadoras, de sucessos pontuais, de músicas de consumo rápido, de fenômenos avassaladores

porém de longevidade diminuta.

A estratégia midiática da emissora era direcionar sua programação (inclusive a

programação musical) às classes de menor poder aquisitivo: “a rede dirigia sua programação

para classes sociais definidas como B2, C e D1, que representavam na época 61% da população”

(FOLHA DE SÃO PAULO, 6 de julho de 2005).

No que tange aos índices de audiência, a estratégia funcionou e a emissora passou,

rapidamente, a ocupar o segundo lugar nos índices de medição de audiência, ficando apenas atrás

da TV Globo.

O SBT passou rapidamente à condição de vice-líder do mercado, aumentou sua participação em audiência para 30% no segundo ano de operação. A Rede Globo continuava líder, mas diminuiu sua participação em audiência de 60% para 45%. A Rede Bandeirantes ficava entre 7% e 8%. Nesses dois anos de

158 Fundada em 19 de agosto de 1981, a emissora preenchia as 12 horas obrigatórias de transmissões com a programação da TV Studio. A partir de novembro do mesmo ano, a programação passou a ser preenchida com os programas produzidos pela própria emissora.

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existência [1981 e 1982], a audiência do SBT cresceu 25% e agregou 21 emissoras à sua rede (FOLHA DE SÃO PAULO, 6 de julho de 2005).

Do ponto de vista estritamente musical, as estratégias midiáticas adotadas na década

de 1980 faziam aprofundar a distância entre a produção musical brasileira dos compositores

comprometidos com o acuro discursivo e com o aprimoramento do padrão estético da canção

massiva brasileira, representada à altura pelos compositores das gerações consagradas desde as

décadas de 1960 e 1970, e a produção musical brasileira dos compositores das gerações surgidas

no movimento do Rock Brasileiro e as subsequentes, comprometidas menos com o acuro

discursivo de suas obras, mais com os movimentos mercadológicos ditados pelas gravadoras em

sintonia com parte da programação midiático-televisiva.

O compositor Ivan Lins amplia a mirada acerca do exposto acima e estende o alcance

do contexto midiático-mercadológico à esfera política, atrelando os procedimentos midiáticos ao

fato de que, à altura, as concessões de propriedades de veículos midiáticos eram cedidas pelos

órgãos governamentais.

A política educacional e cultural brasileira, a partir dos anos 80, foi ladeira abaixo. O nível educacional e cultural da grande massa brasileira atualmente é muito baixo [...] A própria mídia não está colaborando com isso. Evidentemente, a indústria musical passou a perceber quem era o grande consumidor: o pessoal de baixa renda, o pessoal com nível cultural baixo, mas maior poder aquisitivo. Então, ao invés de eles tentarem melhorar a qualidade através do seu veículo, fizeram o oposto, como uma forma de aumentar a audiência e os lucros. Essa pedagogia perversa se mistura com interesses políticos. 80% dos donos de Rádios e Televisões são políticos. Então, se o povo está consumindo aquele produto, ao mesmo tempo o político está conquistando seus eleitores. Assim, a música de qualidade foi ficando para trás (LINS, 2013).

A “música de qualidade”, mencionada por Ivan Lins, vítima das estratégias político-

midiático-mercadológicas ainda tinha o reduto dos programas especiais, dos lançamentos de

discos, de alguma frequência de aparição nas programações do Rádio.

No entanto, a produção dessa “música de qualidade” veiculada midiaticamente era a

de compositores já consagrados, com nome consolidados no mercado fonográfico e com alto

poder de inserção na mídia televisiva, pois emprestavam requinte e credibilidade às

programações.

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Aprofundava-se, assim, a distância que separava as duas espécies de produção

musical no Brasil: a produção musical de alto padrão estético, restrita aos grandes nomes

surgidos nas décadas de 1960 e 1970, e a produção desprovida de acuro poético, disseminada

entre grupos ou intérpretes de sucessos tanto instantâneos quanto passageiros. Segundo o

compositor Ivan Lins, na década de 1980 não foi fertilizada159 uma geração de compositores

comprometidos com o acuro poético discursivo e o consequente padrão estético de excelência na

produção do repertório da canção massiva brasileira: “Antigamente [nas décadas de 1960 e

1970], havia uma proposta de que o produto ia dar cultura àqueles que iam comprar ou consumir

aquilo; depois [a partir da década de 1980] isso deixou de existir” (LINS, 2013).

De um lado, os grandes compositores envelheciam e eram colocados em pedestais de

quase intangibilidade; de outro, novos compositores faziam sucessos descartáveis. A “música de

qualidade” mencionada pelo compositor Ivan Lins era a vítima desse processo de distanciamento

que alijou a geração de bons compositores daquele período, comprometidos com o acuro poético

discursivo, que não tiveram a chance de veicular midiaticamente suas obras.

Também Amilton Godoy lança o olhar para o âmbito político que envolveu o

distanciamento da produção musical brasileira dita “de qualidade” do veículo midiático

televisivo, o que engendrou o alijamento da geração de compositores que porventura surgiria em

sucessão àquelas provindas das décadas de 1960 e 1970; na visão do pianista, o direcionamento

da veiculação de uma produção musical apartada do referencial sonoro brasileiro foi um fator

preponderante para a mudança do cenário produtivo musical e, consequentemente, estético.

Se você pegar de Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Ivan Lins, tudo o que explodiu foi na década de 1960. Depois começou a vir a influência política em cima, o Brasil deixou de ser produtor de música e passou a ser o consumidor de todo o lixo musical do mundo. Eu vejo isso com muita tristeza (GODOY, 2013).

159 Aqui o termo é propositalmente escolhido, em função da similaridade entre os conceitos de “fertilizar” e “aculturar”; para fertilizar a terra, faz-se a cultura da terra. O cultivo produtivo fértil vem de uma terra fertilizada.

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Parte daquilo a que Godoy chama de “lixo musical do mundo” que o ouvinte

brasileiro passou a consumir a partir do início da década de 1980 está ligado, naturalmente, à

produção musical brasileira ligada ao surgimento do Rock Brasileiro, inspirado na produção

musical conhecida como new wave, de origem norte-americana, como já foi dito

anteriormente160.

A ressalva – o fator geracional a reforçar as consequências do procedimento da mídia televisiva em sintonia com o mercado fonográfico brasileiro

A título de precatarmo-nos da definição de um único motivo para uma transformação

tamanhamente decisiva e consistente, vale ressaltar a possibilidade de que, em fato, não houvesse

à altura uma geração de grandes compositores a suceder as gerações anteriores. Por conta dessa

espécie de “vácuo criativo” no âmbito discursivo composicional brasileiro, a indústria

fonográfica não teria outra alternativa que não fosse a de investir na produção musical de jovens

compositores ligados à linguagem do Rock 'n' Roll norte-americano.

O pesquisador e produtor musical Zuza Homem de Mello sinaliza para a

possibilidade de a geração de compositores de música popular surgida no Brasil pelas décadas de

1960 e 1970 ser um fato raro em outras culturas musicais do mundo todo, ser uma ocorrência

histórico-discursiva rara, que dificilmente viria a se repetir em outro lugar ou outro momento.

A seleção de músicos e compositores brasileiros dos anos 1960 era de tal ordem que qualquer coisa que surgisse depois jamais igualaria aquele time, que tinha aproximadamente uns 15 nomes de primeira categoria e que surgiram nos Festivais. Todos eles surgiram nos Festivais: Egberto Gismonti, Milton Nascimento, Moraes Moreira, Paulinho da Viola, Martinho da Vila... é um elenco de primeira linha que qualquer país do mundo gostaria de ter um terço para se tornar um orgulho nacional. O Brasil tinha 100%. Para ter uma seleção que fizesse metade do que esses artistas fizeram seria quase impossível (HOMEM DE MELLO, 2013).

O pesquisador Arthur Dapieve também faz notar a possibilidade de uma “ausência de

talento criativo suficiente” na geração de compositores que despontava pelo início da década de

160 Ver p. 351.

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1980. Mencionando um encarte intitulado “Jornal do Disco”, da edição do mês de janeiro de

1980 da revista “Som Três”, o autor decreta a inexistência de uma geração de grandes

compositores no cenário da canção massiva brasileira no elo que faz entre a pouco qualificada

produção musical de tais artistas à época e sua consequente longevidade diminuta.

Sob o título “o time que as gravadoras escalaram”, estavam lá dez nomes nos quais as ditas cujas apostavam suas fichas para o primeiro ano a década. Eram eles: Oswaldo Montenegro (indicado pela Warner), Grupo Paranga (Bandeirantes), Gilliard (RGE), Gilson (Top Tape), Zé Ramalho (CBS), Olívia Byington (Som Livre), Paulo André Barata (Continental), Diana Pequeno (RCA), Djavan (EMI) e Ângela Rô Rô (Polygram) [...] quase nenhum – o tempo iria se encarregar de provar isso – talentoso o bastante para vingar (DAPIEVE, 1995, p. 23)

No entanto, o próprio autor faz uma ressalva necessária: “Felizmente, aposta de

gravadora nunca foi sinônimo de qualidade ou de sucesso. A arte vive do inesperado”

(DAPIEVE, 1995, p. 23).

A ausência de uma geração de compositores talentosos e comprometidos com o acuro

discursivo nos âmbitos estritamente musical e literário de suas produções não pode ser vinculado

ao espectro de “apostas” das gravadoras, que representavam o âmbito mercadológico da canção

massiva brasileira.

É possível, em verdade, que a geração que sucedeu à surgida nas décadas de 1960 e

1970 não fosse tão volumosa, ampla ou profícua quanto aquela que a antecedeu. Porém, tal

vaticínio não poderia provir de uma constatação da indústria fonográfica brasileira já

comprometida, à altura, menos com a qualidade dos produtos, mais com a fabricação de sucessos

instantâneos, veiculados massivamente por diversos canais midiáticos (notadamente a mídia

televisiva), de consumo tão rápido quanto pouco duradouro – as “apostas” das gravadoras não

tiveram longevidade tanto pela suposta ausência de talento criativo quanto pelo próprio

procedimento adotado pelo mercado fonográfico brasileiro a partir da década de 1980: trocar a

busca de compositores comprometidos com o acuro discursivo pela fabricação de artistas, ondas

musicais e sucessos de consumo imediato e descartável; estabelecer a veiculação de tais produtos

“fabricados” massivamente em todos os canais midiáticos disponíveis; visar à obtenção de lucros

instantâneos com alguns artistas comprometidos com ondas criadas mercadológica-

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midiaticamente e consequente descarte dos artistas e criação de novas ondas para novos produtos

fabricados exclusivamente pelo e para o mercado fonográfico.

Arthur Dapieve expõe tal procedimento ao narrar o surgimento do cantor e

compositor Lulu Santos no cenário midiático-mercadológico-musical brasileiro no ano de 1982.

“Tempos Modernos”, o primeiro LP lançado pelo cantor, gravado pela Warner: “só tinha

sucessos. Vendeu respeitáveis 56 mil cópias, 12 mil de estalo” (DAPIEVE, 1995, p. 43).

Ao observar a capacidade de produzir “sucessos”, a gravadora designou um produtor

contratado especificamente para a concepção do segundo LP do cantor, no ano seguinte.

Liminha, produtor do disco, fez a cabeça de Lulu na direção de um artesanato pop. Deu-lhe um livrinho americano que ensinava a fabricar hits. Misturando a fórmula do sucesso à sua memória musical e a seu próprio talento, Lulu chegou ao segundo LP, “O ritmo do momento”, de 1983, mais seguro de si, mais regular em termos de composição, melhor. O disco continha um clássico instantâneo, “Como uma onda no mar”, e mais duas faixas certeiras, “Adivinha o quê” e “Um certo alguém”. Pop perfeito, melodioso, aderente aos tímpanos” (DAPIEVE, 1995, p. 43 – grifo do autor).

Nota-se que conceitos ligados ao âmbito da poética como “harmonia bem

estruturada”, “melodia rica em cromatismos e diatonismos”, “ritmo condizente com a condução

melódico-harmônica”, “letra de âmbito individual que remete a questões essenciais do ser

humano”, são substituídas por “clássico instantâneo”, “faixas certeiras”, “pop perfeito,

melodioso”; nota-se, de modo ainda mais revelador, a valoração de um conceito ligado ao âmbito

da estética: a expressão “aderente aos tímpanos”.

O pianista Amilton Godoy, em mirada ampla, alerta para o fato de que aquele

momento midiático-mercadológico alterou de modo profundo e definitivo tanto o polo da poética

quanto o polo da estética da música brasileira e, por conseguinte, da cultura brasileira: “Em

qualquer lugar do Brasil você ouve aquele mesmo som; estão jogando no lixo a nossa cultura.

Eles não têm o mínimo interesse de elevar o nível da plateia” (GODOY, 2013).

Indústria fonográfica e mídia televisiva de um lado, público consumidor ouvinte de

outro, ambos partilhavam dos procedimentos ditados pelos primeiros. Aqueles fabricavam

sucessos, artistas, movimentos musicais; estes os consumiam instantaneamente; ambos

descartavam sucesso, artista e movimento musical tão logo surgisse um novo artista fabricado,

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munido de um novo sucesso, motivado por uma nova onda. O ciclo se completava, se reiniciava,

se concretizava. As estratégias mercadológico-midiáticas encontraram um antídoto para os efeitos

das táticas engendradas pelo público ouvinte de música em seu “sistema de resposta social”.

Arthur Dapieve aponta para a consolidação desse ciclo ao dividir as bandas surgidas

no movimento do Rock brasileiro pela primeira metade da década de 1980. Para o autor, poucas

bandas tiveram relevância dentro do cenário musical da época e, por conta disso, apresentaram

maior longevidade. Tomando emprestada uma expressão típica das divisões por categorias dos

clubes de futebol brasileiros, seriam oito as bandas da “primeira divisão” do Rock Brasileiro:

Blitz, Barão Vermelho, Paralamas do Sucesso, Titãs, Ultraje a Rigor, RPM, Legião Urbana,

Engenheiros do Havaí. Das oito, apenas cinco (Barão Vermelho, Paralamas do Sucesso, Titãs,

Ultraje a Rigor, Engenheiros do Havaí) sobreviveram até a primeira metade da segunda década

do século XXI.

Outras oito bandas comporiam a “segunda divisão” do Rock Brasileiro: “bandas que

tiveram o prestígio da crítica mas nunca foram grandes vendedoras” (DAPIEVE, 1995, p. 149),

caso do grupo Ira!, e “bandas que tiveram boas vendas mas nunca caíram no gosto da crítica”

(DAPIEVE, 1995, p. 149), nomeadamente Kid Abelha & Os Abóboras Selvagens, Capital Inicial,

Camisa de Vênus, Inocentes, Biquíni Cavadão, Plebe Rude, Nenhum de Nós. Três delas (Ira!,

Camisa de Vênus, Inocentes) também não chegaram ao século XXI.

No entanto, além das primeira e segunda divisões do Rock Brasileiro, o autor aponta

uma robusta série de bandas que sequer alcançaram o sucesso instantâneo de uma música tocada

exaustivamente no Rádio ou de seguidas aparições na mídia televisiva; seriam as “divisões de

base” do Rock Brasileiro.

O pulso do BRock era mantido por dezenas, centenas de bandas que brotavam do Rio Grande do Sul ao Pará, batalhando duro para gravar um mero compacto, uma faixa num pau-de-sebo ou, menos que isso, uma fita demo. Às vezes com uma única música bem sacada ou até simplesmente com um nome bem bolado, essas bandas faziam a figuração da cena roqueira brasileira dos anos 80 (DAPIEVE, 1995, pp. 179-180).

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Ao elencar o rol de bandas e artistas pertencentes à casta mercadológica chamada de

“divisões de base” do Rock Brasileiro, o pesquisador Arthur Dapieve nomeia 122 grupos cuja

longevidade foi diminuta a ponto de sequer sobreviverem à própria década de 1980.

Hojerizah, Picassos Falsos, Black Future, Detrito Federal, Coke Luxe [...], Mercenários, Arte no Escuro, Azul Limão, Distúrbio Social, OVNI [...], Grafite, Tonton Macoute, Urge, W3, Ph7, TNT, Garotos da Rua [...], Golpe de Estado, Nau, Cabeça de Praia, Garotos do Gueto, 14º. Andar Replicantes, Metrô [...], Sempre Livre, Hanoi Hanoi, Inimigos do Rei, Violeta de Outono, Uns & Outros [...], Inimigos do Rei, Milionários da Cobertura, Joe Euthanázia, Neuzinha Brizola, Absyntho, Erva Doce [...], Justa Causa, Vzyadoq Moe, Abalo Cínico. A lista não tem fim (DAPIEVE, 1995, p. 179).

A teia produção-divulgação-veiculação: Rock Brasileiro- mídia televisiva-mercado fonográfico

Um sinal bastante nítido do envolvimento da mídia televisiva com o Rock Brasileiro

e, por conseguinte, com o procedimento mercadológico adotado pela indústria fonográfica

brasileira na primeira metade da década de 1980 era a aparição dos grupos e artistas em

programas que apresentavam conteúdo musical (Cassino do Chacrinha, Globo de Ouro), com a

inserção de músicas daquele movimento musical nas trilhas sonoras nacionais das novelas

produzidas e exibidas pela TV Globo (Ti Ti Ti, de Rita Lee e Roberto de Carvalho, interpretada

pelo grupo Metrô, foi a música tema da novela homônima161) e, também, pela produção de

programas especiais protagonizados pelos grupos de maior sucesso em cada um dos momentos da

história do Rock Brasileiro (já nos primórdios do movimento musical, a TV Globo produziu e

exibiu um show da banda Blitz realizado na Praça da Apoteose, no Rio de Janeiro): “O especial

para a Globo foi ao ar em 12 de setembro [de 1984], com o nome ‘Blitz contra o gênio do mal’.

Na época, achava-se que o próximo passo seria um filme” (DAPIEVE, 1995, p. 60).

161 A primeira versão da novela “Ti Ti Ti”, escrita por Cassiano Gabus Mendes e Luís Carlos Fusco, com direção de Wolf Maya e Fred Confalonieri, estrelada pelos atores Luiz Gustavo e Reginaldo Farias, foi ao ar entre agosto de 1985 e março de 1986, às 19H00, pela TV Globo. Além da música tema, outras três canções pertenciam ao movimento do Rock Brasileiro: “Já Fui” (Joe), “Não Diga Nada” (Prêntice) e “Lobo” (Absyntho).

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A menção à possibilidade de o Rock Brasileiro alcançar outras mídias além da mídia

televisiva (o cinema, como mencionado acima) se concretizava em outros flancos das

organizações Globo, em parceria com patrocinadores consistentes. A gravação do especial da

banda Blitz ocorreu no dia 7 de julho de 1984.

Três dias depois, a Blitz estava de volta à Praça da Apoteose, dessa vez dividindo o palco com o Barão Vermelho, as orquestras sinfônicas Brasileira e do Teatro Municipal e o coro deste, sob a regência do maestro Isaac Karabtchevsky, dentro do “Projeto Aquarius”, promovido pelo jornal “O Globo” e pela Sul América Seguros. Na plateia, mais dezenas de milhares de pessoas (DAPIEVE, 1995, p. 60).

A gravadora Som Livre, parte das organizações Globo, contava à altura uma das

maiores vendagens de discos do mercado fonográfico brasileiro. A teia produção-divulgação-

veiculação de grupos, artistas e músicas era quase completa. A gravadora registrava as músicas

do Rock Brasileiro em discos, tais músicas figuravam em trilhas sonoras de novelas, programas

com algum conteúdo musical e programas especiais da emissora, a vendagem de discos era

extraordinária, o faturamento alimentava o surgimento de um novo artista ou grupo, que gravaria

seu disco pela Som Livre. A teia só não era completa pois faltava a grupos e artistas iniciantes a

possibilidade de gravar seus discos; era difícil chegar à gravadora.

Um fato evidencia a estruturação e a consolidação da teia produção-divulgação-

veiculação mencionada acima. A engrenagem, quase completa, não apresentou a um dos grupos

do Rock Brasileiro a única dificuldade apontada, a da aproximação entre artista e gravadora.

O grupo “Barão Vermelho”, cujo vocalista era filho de João Araújo, diretor da

gravadora Som Livre, gravou seus primeiros acordes nos estúdios da gravadora: “Uma fita demo

foi gravada num horário ocioso dos estúdios da Som Livre” (DAPIEVE, 1995, pp. 66-67).

Uma peça de vital importância na teia produção-divulgação-veiculação era o

produtor. Partia dele o primeiro movimento de toda a engrenagem: “A fita caíra na mão do

produtor Ezequiel Neves” (DAPIEVE, 1995, p.67).

Produtor e diretor, após um primeiro momento de dificuldade, logo chegaram a um

acordo sobre o lançamento do novo grupo; o acordo deu-se motivado por um argumento ligado

exclusivamente aos movimentos do mercado fonográfico.

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Araújo não queria passar por nepotista. “Imagina o que vão dizer: Que estou gravando meu próprio filho. Não”, objetava. [Guto] Graça Mello [também produtor da gravadora Som Livre] foi persistente. E ganhou a parada com uma ameaça premonitória. “Pior vai ser se seu filho estourar em outra gravadora, aí vão dizer ‘viram, o Araújo não sabe nem o valor do que tem na própria casa’”, argumentou. Araújo finalmente cedeu (DAPIEVE, 1995, p.67).

No entanto, a figura do produtor nem sempre estava comprometida com a evolução

discursiva da música brasileira. O produtor, por vezes, não tinha estofo de repertório para ocupar

uma função de importância tamanha; por vezes carregava consigo a frustração por não ser um

artista de talento; por vezes era desprovido de ambos, talento e repertório: “Ezequiel [Neves, o

produtor do primeiro disco do grupo encabeçado pelo filho do diretor da gravadora], também

conhecido como Zeca Jagger em função de sua adoração pelos Rolling Stones, era um crítico de

música frustrado” (DAPIEVE, 1995, p.67 – grifo do autor).

Como tal, desprovido de todo e qualquer compromisso com a linguagem musical, o

produtor viabilizava a concepção de um produto que não mantinha elo de compromisso com o

âmbito discursivo literário-musical. Nem no conteúdo, nem mesmo na forma: “Ezequiel meteu o

Barão vermelho no estúdio por dois finais de semana seguidos, totalizando 48 horas de gravação”

(DAPIEVE, 1995, p.67).

O tempo de gravação de um LP contendo 10 faixas, com duração total de 31’10’’, ao

ser gravado em apenas 48 horas, dificilmente não apresentaria graves problemas de execução,

edição, mixagem ou masterização. Em média são consumidas 6 horas para a gravação de uma

faixa de disco, sem contar o tempo de edição, mixagem e masterização, que triplica o tempo

dedicado a cada faixa162.

162 O LP Barão Vermelho, conta as faixas: 1. Posando de Star (Cazuza) – 02:18; 2. Down em Mim (Cazuza) – 03:15; 3. Conto de Fadas (Cazuza; Maurício Barros) – 03:39; 4. Billy Negão (Cazuza; Guto Goffi; Maurício Barros) – 03:24; 5. Certo Dia na Cidade (Cazuza; Guto Goffi; Maurício Barros) – 04:43; 6. Rock'n Geral (Cazuza; Roberto Frejat) – 02:43; 7. Ponto Fraco (Cazuza; Roberto Frejat) – 02:54; 8. Por Aí (Cazuza; Roberto Frejat) – 03:40; 9. Todo Amor que Houver Nessa Vida (Cazuza; Roberto Frejat) – 02:15; 10. Bilhetinho Azul (Cazuza; Roberto Frejat) – 02:19.

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O disco de Cazuza, Frejat, Maurício, Dé e Guto era mal gravado à beça, mas tinha qualidades aos montes. A maior: a espontaneidade. Num gênero tão vulnerável quanto o rock, “Barão vermelho” é comovente. São cinco jovens aproximando sua música de seus companheiros de faixa etária (DAPIEVE, 1995, p. 68).

Nota-se que as qualidades referidas à produção musical do movimento do Rock

Brasileiro provêm de searas distantes do âmbito literário-musical, são ligadas mais de perto ao

âmbito sócio-geracional.

Naturalmente, o componente sócio-geracional estava presente também nos

movimentos da Bossa Nova (evidenciado pela produção musical dos jovens da classe média

carioca no final da década de 1950), do Tropicalismo (pela produção musical voltada à

concretização de um conceito de Nação culturalmente forte e de posição decisiva no cenário

cultural mundial no final da década de 1960) e nos Festivais de Música Popular (na produção

musical inserida no contexto sócio-político da segunda metade da década de 1960). Contudo,

havia nesses movimentos uma ocupação poética com o acuro no uso dos recursos tanto da

linguagem musical quanto literária, na busca pela estruturação de um discurso literário-musical

de excelência. Tal ocupação ampliava o alcance do gênero Música Popular e emprestava à canção

massiva brasileira o caráter de um produto de alto padrão estético.

A consolidação do modelo midiático-mercadológico – as décadas de 1980 e 1990 O modelo midiático-mercadológico inaugurado no início da década de 1980

consolidou-se e aprofundou seus procedimentos ao longo da década e pelas décadas seguintes.

De um lado as gravadoras, pelas mãos de produtores desprovidos de ocupação poética ou

percepção estética, criavam artistas e movimentos musicais; de outro, a mídia televisiva

(acompanhada de outras mídias) reproduzia e amplificava as criações das gravadoras.

Ao longo das décadas de 1980 e 1990, movimentos musicais foram criados e, com

eles, artistas e fenômenos de vendagens instantâneos e descartáveis.

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O Novo Pagode e o Pagode Romântico

O movimento musical do Pagode163 surgiu ainda na primeira metade da década de

1980: “O pagode é um estilo de samba. Tem suas origens no Rio de Janeiro entre o final

da década de 1970 e início da década de 1980, a partir da tradição das rodas de samba feitas nos

‘fundos de quintal’” (LOPES, 2005, p. 9).

Entretanto, as primeiras manifestações do Pagode eram genuínas, provindas de

recantos cariocas que cultivavam o Partido-Alto, um dos gêneros do samba, notadamente o

núcleo pertencente à comunidade do bairro da Leopoldina, na zona norte da cidade do Rio de

Janeiro, chamado “Cacique de Ramos”.

Do bloco carnavalesco Grêmio Recreativo Cacique de Ramos surgiu o grupo Fundo

de Quintal, apadrinhado pela renomada sambista Beth Carvalho.

Do mesmo núcleo provinham grandes sambistas como Almir Guineto, Arlindo Cruz,

Sombrinha e Zeca Pagodinho, que se esmeravam na produção de uma espécie de samba chamado

posteriormente de “samba de raiz”. Tal produção musical “ficara desde há muito à margem dos

acontecimentos musicais dos grandes meios de comunicação brasileiros” (PEREIRA, 2003, p.

41).

Vinda à tona do universo midiático ainda na primeira metade da década de 1980, a

produção musical do Pagode Genuíno vivenciou o mesmo procedimento midiático-

mercadológico ao qual foram submetidos os outros movimentos criados pelas gravadoras: uma

explosão de popularidade e vendas, o consumo instantâneo e voraz do gênero e o consequente

declínio rápido e acentuado de popularidade, consumo e vendas.

Carlos Alberto M. Pereira retoma historicamente o procedimento de mídia e mercado

da época: “Esse sucesso fonográfico rápido e, num certo sentido, fácil do samba de pagode daria

conta de seu ‘desgaste’ lá por volta de 1988, quando já se visualizava o ‘fim’ do movimento de

pagode” (PEREIRA, 2003, p. 165).

163 O termo "Pagode" surgiu na linguagem musical brasileira pelo final do século XIX, associado às festas que aconteciam nas senzalas e, mais tarde, nos morros da cidade do Rio de Janeiro. Em seguida, já nas primeiras décadas do século XX, tornou-se sinônimo das festas em que eram executados sambas no formato Partido-Alto.

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Para corroborar sua assertiva, o autor recorre a alguns grandes nomes da crítica

musical e do próprio universo do Pagode da década de 1980. Primeiramente, toma emprestadas

as palavras da cantora e compositora Leci Brandão:

As gravadoras, elas pegaram qualquer carinha que estava cantando pagode na esquina e punha dentro do estúdio; isso não é assim, não é porque a coisa está fazendo sucesso que você vai pegar qualquer um e botar lá. Então, o pessoal estava querendo faturar... porque todo mundo ganhou todo o dinheiro que tinha direito em cima dos pagodeiros e depois deixaram pra lá. Gravaram mais de 50/60 pessoas, sei lá, sem critério... (PEREIRA, 2003, p. 165).

Em seguida, as palavras do crítico Tárik de Souza e do compositor Beto-Sem-Braço

asseveram o desgaste provocado pela superexposição midiática e pela imperícia mercadológica

das gravadoras.

Nas palavras de Tárik de Souza: “O pagode sofreu um pouco com a exposição. Na época que ele explodiu, com o negócio do ‘plano cruzado’, tocou-se muito pagode, aconteceu muita coisa. E aí, de repente, ele ficou um pouco desgastado”. E Beto-sem-braço conclui: “(...) o pagode teve assim o apogeu e, de repente, todo mundo achou que era compositor e fazia pagode. Aí estragou o pagode” (PEREIRA, 2003, p. 165).

Entretanto, o “Pagode” ainda sofreria de mais alguns “estragos”.

Cooptado pela indústria fonográfica e ainda denominado “Pagode”, o samba

produzido no subúrbio carioca ganhou conotações literário-musicais um tanto distintas de seu

homônimo antecessor e adentrou a década de 1990 sob as luzes tanto do mercado fonográfico

quanto da mídia televisiva. O compasso binário delimitado pelo uso da síncopa ganhou contornos

quaternários com a supressão da síncopa e a consequente acentuação do tempo forte do primeiro

tempo de cada par de compassos; a temática das letras da nova forma do Pagode tendia para uma

abordagem romântica do amor comezinho, distando da abordagem temperada pela picardia, que

fazia eco à produção das letras de Noel Rosa, o compositor carioca da década de 1930

considerado “o pai do samba”.

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O novo Pagode distava também geograficamente de seu antecessor. Não mais

provindo do subúrbio da cidade do Rio de Janeiro, o movimento abria flancos desde Minas

Gerais e São Paulo.

O grupo “Só pra Contrariar”, formado em Uberlândia, gravou, em 1993, o disco Que

se chama amor, cuja vendagem atingiu 500.000 cópias. Sucederam-se a esse os discos Meu Jeito

de Ser, que vendeu 800.000 cópias em 1994, O Samba não Tem Fronteiras, cujas vendas

atingiram a marca de 1.200.000 cópias em 1995, e Depois do Prazer, cuja vendagem atingiu as

3.200.000 cópias em 1997.

Nove anos depois de seu primeiro disco, o grupo, já desprovido de seu vocalista,

arriscou um par de empreitadas: lançou em 2003 o CD Produto Nacional I e, no ano seguinte, o

Produto Nacional II, que não passaram, juntos, das 150.000 cópias vendidas164.

Em Carapicuíba, São Paulo, foi criado o grupo “Negritude Júnior”, que lançou os

CDs O Melhor do Pagode, em 1993, e Deixa Acontecer, no ano de 1994, e vendeu mais de 1

milhão de cópias de ambos.

Sete anos após o estrondoso sucesso de O Melhor do Pagode, já sem seu vocalista

original, o grupo lançou o CD Periferia, que não atingiu a casa dos 70.000 exemplares

vendidos165.

Também de São Paulo, a rigor da cidade de São Caetano do Sul, provinha o grupo

“Raça Negra”, que gravou e lançou um disco a cada ano desde 1991 até 1999, todos eles

homônimos ao próprio grupo. As vendagens sustentaram-se ao longo desse tempo variando entre

400.000 e 800.000 mil cópias por disco. A partir do ano de 2000, lançamentos e vendagens

declinaram para menos de um disco a cada dois anos, com vendagem média de 60.000

exemplares166.

164 Dados da ABPD.

165 Dados da ABPD.

166 Dados da ABPD.

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O movimento midiático-mercadológico fica um tanto mais evidente quando o

compositor Nei Lopes expõe o procedimento da TV Globo quando da realização de um programa

dedicado ao primeiro movimento do Pagode, chamado acima de “pagode genuíno167”.

Convidado, juntamente com a escritora Maria Carmem Barbosa, para conceber e

escrever o texto de um programa mensal, o compositor Nei Lopes viu estrear, no dia 5 de

setembro de 1987, às 13H25, o programa Pagode, inicialmente planejado para abrigar a produção

musical genuína do samba brasileiro. Porém, a edição de estreia do programa foi também a única

edição de Pagode. Gravado no Teatro Fênix, da TV Globo, e contando com as participações de

grandes nomes do samba, como Beth Carvalho, Dona Ivone Lara, Jovelina Pérola Negra e Zeca

Pagodinho, o programa, dirigido por Roberto Talma, foi tirado do ar por conta das transmissões

da Copa União, o campeonato brasileiro de futebol do ano de 1987.

Fui convidado para escrever o programa, articulei toda a nata do samba, convidei o José Dias, que tinha montado a Globo Computação Gráfica [GCG], para fazer o cenário – ele montou um bar perfeito, onde os artistas cantavam ao vivo, sem play back! –, fizemos um programa e saímos do ar. Tempos depois surgiu uma onda que eles chamaram de “pagode”, “pagode romântico”, que não tem nada a ver com o samba, e fizeram um programa. Evidentemente, não me chamaram para escrever esse programa, já estava tudo armado lá com as gravadoras (LOPES, 2013).

O programa a que se refere Nei Lopes foi exibido aos sábados, às 15H00, entre os

meses de março e maio do ano de 1999, e era denominado Samba, Pagode & Cia.

Apresentado pela dupla Salgadinho e Netinho [de Paula], vocalistas dos grupos

Katinguelê e Negritude Jr., do movimento do Novo Pagode, dirigido pelo mesmo Roberto Talma,

o cenário também apresentava um bar nas laterais do palco. Entretanto, os artistas não cantavam

ao vivo, mas dublavam os play backs de seus sucessos comerciais168.

167 Ver p. 379.

168 Apresentaram-se nos oito programas realizados os convidados Eliana de Lima, os grupos Exaltasamba, Karametade, Os Morenos, Sem Compromisso e Soweto.

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O sucesso meteórico e o desaparecimento quase instantâneo da Lambada

Ficava patente, pelo surgimento de um “novo pagode”, que a parelha gravadora-mídia

televisiva precatava-se do desaparecimento ocorrido com um movimento trazido ao cenário

midiático-musical brasileiro também pela segunda metade da década de 1980: a Lambada.

Após o sucesso meteórico, as vendagens gigantescas, a exposição midiática exaustiva

(pois quase exclusiva) de alguns nomes ligados ao movimento musical da Lambada, a indústria

fonográfica acompanhou o natural recrudescimento desses artistas, porém não cultivou novos

nomes que viriam a suceder aqueles já consagrados e desgastados. Assim, o próprio movimento

musical recrudesceu até quase desaparecer.

A partir de então, o procedimento mercadológico-midiático prevenia-se: o

movimento musical era lançado, alguns artistas encabeçavam os primeiros sucessos e novos

artistas eram cultivados nas entranhas da indústria fonográfica para ocuparem os lugares deixados

pelos pioneiros do gênero, que, naturalmente, caíam rápida e quase definitivamente no

esquecimento da indústria, da mídia e do público.

O movimento musical da Lambada169 surgiu pelo final da década de 1980. A

gravadora Continental lançou, no ano de 1988, o LP Louca Magia/Adocica, do cantor Beto

Barbosa. A quinta faixa do lado B do disco, intitulada Adocica, alcançou rádios e televisões de

todo o Brasil, de modo a contribuir para uma vendagem de mais de 3 milhões de cópias do LP170.

O movimento foi levado ao exterior e ganhou projeção internacional pelo sucesso da

canção Chorando se Foi, do grupo Kaoma. O disco single Lambada (Chorando se Foi), lançado

169 O termo “Lambada” tem origem midiática, no Pará, onde uma emissora de rádio local chamava de "Lambadas" as músicas mais vibrantes executadas na programação. O gênero, próximo ao carimbó (de fórmula rítmica quaternária, pautada pela sucessão colcheia pontuada – semicolcheia – par de colcheias – par de colcheias – semínima), surgiu, primeiramente, na faixa de número seis, "Lambada (Sambão)", do LP "No Embalo do Carimbó e Sirimbó – vol. 5", do compositor paraense Pinduca, lançado no ano de 1976.

170 Dados da ABPD. O disco era composto por 12 faixas. Lado A: 1. Louca Magia; 2. Embalo Trilegal; 3. Mar de Emoções; 4. Eu Só Quero Amar; 5. Maracatu, Bumba Meu Boi; 6. Amor Supremo Amor. Lado B: 1. Forreggae; 2. Operando com Prazer; 3. Diz pra Mim; 4. Tens que Me Dar; 5. Adocica; 6. Perdido na multidão.

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no ano de 1989, alcançou êxito na Europa e vendeu mais de cinco milhões de cópias171: “Com

uma gigantesca estrutura de marketing e músicos populares, o grupo Kaoma lançou com êxito a

lambada na Europa e outros continentes. Adaptada ao ritmo, a música boliviana ‘Chorando Se

Foi’ tornou-se o carro chefe da novidade pelo mundo” (AZEVEDO, 2003, p. 92).

Completando a engrenagem midiático-mercadológica constituída por gravadora-

mídia televisiva, entre os meses de abril e outubro de 1990, a TV Globo exibiu a novela “Rainha

da Sucata”, escrita por Sílvio de Abreu e José Antonio de Souza, dirigida por Jorge

Fernando, Fábio Sabag, Mário Márcio Bandarra e Jodele Larcher, estrelada pela atriz Regina

Duarte. A música tema da abertura da novela era a Lambada Me Chama Que Eu Vou,

interpretada pelo cantor Sidney Magal. O disco, com a trilha sonora nacional da novela,

comercializado pela gravadora Som Livre, vendeu cerca de um milhão de cópias172.

A decadência do movimento musical da Lambada fica evidente quando se

contabilizam os números de vendas de discos de um de seus principais nomes: o cantor Beto

Barbosa.

Se o LP Louca Magia/Adocica vendeu mais de 3 milhões de cópias em 1988, se o LP

Beijinho na Boca/Preta, cujas faixas eram todas elas composições do próprio cantor, foi recorde

de vendas no ano de 1990, ano da novela Rainha da Sucata, o LP Dona não ultrapassou as 500

mil cópias em 1992 e o LP Meu Amor Não Vá Embora, do ano seguinte, não atingiu a vendagem

de 100 mil cópias173.

171 Dados da ABPD.

172 Dados da ABPD. O disco contava 14 faixas. Lado A: 1. Me Chama Que Eu Vou – Sidney Magal; 2. Foi Assim (Juventude e Ternura) – Wanderléa; 3. Coração Pirata – Roupa Nova; 4. Cigano – Djavan; 5. Próxima Parada – Marina Lima; 6. A Mais Bonita – Maria Bethânia; 7. Na Captura (Instrumental) – Ary Sperling. Lado B: 1. Coisas da Vida – Milton Nascimento; 2. Nua Ideia – Gal Costa; 3. Meninos e Meninas – Legião Urbana; 4. Mais Você – Ritchie; 5. Lanterna dos Afogados – Os Paralamas do Sucesso; 6. Naquela Estação – Adriana Calcanhoto; 7. Em Busca do Amor (Instrumental) – Ary Sperling.

173 Dados ABPD.

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Também ratifica a quase extinção do movimento musical da Lambada a dissolução

do Grupo Kaoma no ano de 1999, após sucessivos fracassos comerciais de vendagem de

discos174.

A partir da quase extinção do movimento da Lambada após pouco mais de dois anos

de sucesso avassalador, mercado fonográfico e mídia, prevenidos, lançaram ao longo da década

de 1990 movimentos musicais, artistas ligados a tais movimentos, novos nomes e grupos, que

vinham suprir a ausência midiática e a decadência mercadológica dos pioneiros dos gêneros.

As lições aprendidas com a Lambada e o Axé Music

Daniela Mercury foi a cantora que, contratada por uma gravadora multinacional bem

estabelecida no mercado fonográfico e do entretenimento, simbolizou o primeiro momento do

movimento midiático-mercadológico-musical da “Axé Music”.

Pela primeira vez, uma estrela de sucesso popular, ao explodir com a venda de um milhão de discos, atravessou a fronteira. Era a bonita e branca Daniela Mercury, lançada pela Sony para sair do Pelourinho e animar a plateia no vão do Museu de Arte de São Paulo, na Avenida Paulista. Pela porteira aberta por Daniela, passaram o Olodum e demais grupos que tocavam a música de Carnaval baiana, que recebeu, no mercado fonográfico, o rótulo de axé music (MASSON; FERNANDES, 1997, p. 83).

O movimento musical intitulado “Axé Music” traduzia em disco parte da sonoridade

que saltava dos trios elétricos do carnaval da Bahia.

No entanto, ratificando a tendência de valorização extrema do intérprete em

detrimento da obra interpretada, cantoras de trios elétricos ganharam amplo espaço na indústria

fonográfica a partir do início da década de 1990, como constata Marilda Santanna, em seu livro

As donas do canto – o sucesso das estrelas-intérpretes no Carnaval de Salvador:

174 O LP “Mélodie d’Amour (Lambamor)”, “Donna com Te” e “Jambé Finète”, todos lançados no ano de 1990, atingiram, juntos, a marca de vendas de 900 mil cópias. No ano seguinte, o LP “Dança Tago-Mago” não atingiu a marca de 70 mil cópias vendidas. Dados ABPD.

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O desenvolvimento da axé music e do Carnaval de Salvador passa a valorizar cada vez mais o papel da intérprete já “descolada” do bloco e da banda, o que aconteceu nítida e explosivamente com a ascensão da carreira solo de Daniela Mercury em 1991, quando se deu o sucesso do seu primeiro álbum solo (SANTANNA, 2009, p. 24).

A valorização do intérprete, já apontada anteriormente neste trabalho175, não deve ser

reputada propriamente ao procedimento mercadológico-midiático da década de 1990, pois

antecede a esta em mais de 40 anos. Vale notar aqui a valorização exacerbada do intérprete; o que

já existia ficou ainda mais pronunciado.

Tamanhamente evidente foi o aprofundamento da valorização do intérprete, que

extrapolou o âmbito do cantor ou da cantora do grupo; estendeu-se até aos dançarinos dos grupos

de axé music, movimento também chamado “Pagode Baiano”, cujo expoente maior foi o grupo

Gera Samba, posteriormente batizado de grupo É o Tchan!, em menção à canção de grande

sucesso pertencente ao segundo disco do grupo, lançado no ano de 1995.

Os componentes do grupo musical do movimento axé music, sobretudo os grupos

ligados ao Pagode Baiano, não mais eram divididos entre o intérprete e os músicos que o

acompanhavam; a partir de então, a divisão se dava entre os integrantes do grupo que ficavam à

frente do palco (intérpretes e dançarinos) e os músicos que os acompanhavam, que ficavam um

tanto mais distantes do primeiro plano do palco.

Entre os anos de 1995 e 1999, o grupo lançou um disco por ano, totalizando cinco

discos, com vendagem total de 6.250.000 cópias176.

O composto mercado-mídia televisiva evidenciou da maneira mais nítida seu

procedimento quando, no ano de 1997, o programa Domingão do Faustão, da TV Globo,

veiculou o concurso que visava a escolher a substituta de uma das dançarinas do grupo É o

Tchan!. No ano seguinte, novo concurso para escolher nova substituta, desta vez da outra

175 Ver pp. 336, 343, 344 e 351.

176 Dados ABPD. 1995: “É o Tchan” – 500 mil cópias; 1996: “Na Cabeça e na Cintura” – 2 milhões de cópias; 1997: “É o Tchan do Brasil” – 2 milhões de cópias; 1998: “É o Tchan no Havaí” – 1 milhão de cópias; 1997: “É o Tchan na Selva” – 750 mil cópias.

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dançarina do grupo, que contava um par de dançarinas do sexo feminino e um dançarino do sexo

masculino177.

É preciso fazer a ressalva de que não apenas a TV Globo veiculava artistas, bandas e

grupos de sucesso provindos do mercado fonográfico. Outras emissoras exibiam em suas

programações de conteúdo musical e entretenimento os mesmos produtos mercadológicos-

midiáticos. O Programa do Gugu, exibido pelo SBT aos domingos, 11H00, realizou o concurso

Loirinha do Tchan, em 1998, no qual três candidatas com idade inferior a 10 anos, trajadas à

maneira das dançarinas adultas, dançavam no palco sucessos do grupo É o Tchan! e concorriam

entre si pela eleição da melhor dançarina infantil das músicas daquele grupo musical.

No âmbito das cantoras de Axé Music, o movimento mercadológico-midiático foi o

mesmo. A cantora Daniela Mercury teve produzido e exibido pela TV Globo o programa Canto

da Cidade, dirigido por Roberto Talma, exibido no dia 15 de dezembro de 1992, 21H30, dentro

da programação especial de fim de ano da emissora. O programa mesclava imagens gravadas em

estúdio, cenas na cidade de Salvador e canções executadas num show realizado na Praça da

Apoteose, no Rio de Janeiro.

Acentuando um traço do comportamento da mídia televisiva em sintonia com o

mercado fonográfico a partir da década de 1990, o programa foi reapresentado no mês de

fevereiro de 1993 e em junho de 1997.

Tal traço de procedimento se configurava no sentido de preservar alguns artistas

pioneiros dos diferentes movimentos musicais, de modo a transformá-los em ícones que

balizavam e serviam de referencial para novos grupos, bandas e artistas daquele mesmo gênero.

Os pioneiros de cada gênero galgavam o status de “referência para as novas gerações” e,

portanto, deixavam a exposição midiática excessiva, mas não deixavam de protagonizar a cena

midiático-musical ligada àquele movimento, como relata o compositor Nei Lopes, que faz

referência específica ao movimento do Novo Pagode (ou Pagode Romântico) como fora este um

177 A dançarina Débora Brasil, da formação original do grupo, foi substituída por Sheila Carvalho em 1997 e a dançarina Carla Perez, também da formação original do grupo, foi substituída por Sheila Mello, em 1998, no concurso intitulado “A Nova Loira do Tchan”, título de uma das canções do disco “É o Tchan no Havaí”, lançado após a final do concurso.

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procedimento específico a espelhar um procedimento-padrão da indústria fonográfica em sintonia

com a mídia.

Eles [gravadoras e veículos midiático] perceberam que a Lambada veio, fez um sucesso danado, mas desapareceu. Então trataram de se garantir: lançavam uma moda, mas não deixavam essa moda morrer. Como eles faziam isso? Alimentavam o surgimento de grupos diferentes, mas idênticos aos que já tinham feito sucesso. Era uma fórmula. O “Só pra Contrariar” fez um sucesso enorme, aparecia na televisão toda hora, tocava no rádio o dia todo. Antes de esgotar, foi tirado um pouco de cena e entrou outro grupo, que fez um sucesso enorme, apareceu na televisão toda hora, tocou no rádio o dia todo. O “Só pra Contrariar” virou uma espécie de cult do gênero, para não desaparecer e não parar de dar lucro. Foi assim com o Pagode, com o Forró, com o Sertanejo; uma fórmula de fazer dinheiro. Ninguém ali estava preocupado em fazer música (LOPES, 2013).

O surgimento de outro fenômeno de vendas ligado ao movimento do Axé Music

corrobora as palavras do compositor. A cantora Ivete Sangalo, sucessora de Daniela Mercury no

centro da cena mercadológica-midiática da Axé Music, ainda como vocalista da Banda Eva,

estava entre os convidados especiais do programa de estreia da apresentadora Xuxa Meneghel,

dirigido por Marlene Mattos, o “Planeta Xuxa”178.

O programa, exibido inicialmente nas tardes de sábado, substituiu, a partir do ano de

1997, o programa “Xuxa Hits”, criado em 1995, e permaneceu na grade de programação da

emissora até o mês de julho de 2002.

A partir do ano de 1998, o programa passou a ser exibido às 12H00 dos domingos,

por conta da transmissão dos jogos da Copa do Mundo realizada na França.

No mês de agosto daquele ano, após o término da Copa, a apresentadora titular do

programa entrou em licença maternidade e o programa passou a ser apresentado por artistas

variados179. Somente a uma artista coube a tarefa de apresentar o programa um par de vezes: a

178 Os demais convidados foram o ator Marcello Antony, a atriz Luana Piovani, os jogadores de futebol Renato Gaúcho e Ronaldo Nazário, o cantor Netinho, a cantora Aline Barros, os grupos Molejo e É o Tchan!, a banda Cheiro de Amor e a própria cantora Daniela Mercury, pioneira da axé music pelo princípio da década de 1990, à altura (1997), ícone daquele movimento musical.

179 Entre os meses de agosto e outubro de 1998, apresentaram o programa Alexandre Pires, vocalista do grupo Só pra Contrariar; Gabriel, o Pensador; Daniel; Grupo Molejo; Netinho; a dupla Zezé di

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cantora Ivete Sangalo, à altura já em carreira solo, desvencilhada da Banda Eva, seu grupo

musical de origem.

Os programas produzidos pela TV Globo e apresentados por Xuxa Meneghel tinham

um conteúdo musical desde o programa “Xou da Xuxa”, produzido originalmente no ano de

1986, dirigido por Paulo Netto.

O programa infantil, de auditório, exibido de segunda-feira a sábado, misturava

gincanas, números circenses, exibição de desenhos animados e apresentações de atrações

musicais.

Um dos nove quadros do programa era o “Paradão da Xuxa”, no qual a apresentadora

trazia ao palco artistas de sucessos mercadológicos ligados a movimentos musicais específicos

para dublarem os play backs de seus discos de sucesso.

No ano de 1991, o quadro dentro de um programa transformou-se num programa, o

“Paradão da Xuxa”, dirigido por Marlene Mattos, exibido aos sábados, 9H30, durante o ano de

1992 na TV Globo.

O quadro “Paradão da Xuxa” fui substituído, então, pelo “Xuxa Hits”, dentro do

programa “Xou da Xuxa”.

Em 1995, novamente o quadro dentro de um programa transformou-se num programa

e o “Xuxa Hits”, também dirigido por Marlene Mattos, passou a ser exibido aos domingos,

13H30, pela TV Globo.

O formato do programa era simples: apresentar os hits mercadológicos dos artistas

que faziam sucesso dentro dos movimentos musicais criados pelo mercado fonográfico.

Os programas da grade fixa de programação das emissoras de televisão e cenário mercadológico-midiático-musical brasileiro

O compositor Eduardo Gudin recorda, historicamente, o momento midiático e

ressalta aquele que seria um desserviço da mídia televisiva em relação à canção popular massiva

brasileira: “Os programas de televisão, sobretudo nos anos 1990, faziam mais mal do que bem à

Camargo & Luciano; o grupo Negritude Júnior; a dupla Claudinho & Buchecha; o grupo Terra Samba; e o humorista Tom Cavalcante. No dia 8 de novembro, a apresentadora titular voltou a comandar o programa.

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música brasileira. Eu jamais fui convidado a ir a um programa daqueles, nem mesmo quando

fiquei em terceiro lugar no Festival dos Festivais, da Globo” (GUDIN, 2013).

O compositor aponta, ainda, a relação que se estabelecia entre gravadoras,

programadores de emissoras da mídia, apresentadores de programas de televisão e, até mesmo,

emissoras de televisão:

As gravadoras inventavam uma moda. Encontravam uma brecha e criavam as estrelas daquela moda. Pagavam os caras da Rádio para tocar somente aquela música. Pagavam para botar aqueles artistas nos programas de televisão. Os donos dos programas cobravam para botar o artista lá. A emissora ganhava um dinheirão ali e depois, porque colocava a música do cara na novela e vendia os discos da trilha sonora. (GUDIN, 2013).

Eduardo Gudin faz questão de salientar que sua assertiva não vem contaminada de

qualquer espécie de envolvimento pessoal com uma eventual dificuldade de se inserir na teia

midiático-mercadológica exposta: “eu não falo isso por mim, que não sou cantor, nunca fui

cantor; meu trabalho não é feito para que eu apareça. Sempre tive consciência disso” (GUDIN,

2013).

Segundo o compositor, a vítima do procedimento midiático-mercadológico não foi

ele, mas a canção massiva brasileira, a música brasileira.

Imagina o garoto que tinha talento musical, que queria ser compositor. Ligava a televisão e via aqueles artistas, ouvis aquela espécie de música. Ele achava que aquilo era o que ele devia compor, que aquilo era a música brasileira, pois se a Televisão está mostrando! Se está na televisão deve ser bom. Eu cresci ouvindo o Chico Buarque. O Chico Buarque cresceu ouvindo o Tom Jobim. O Tom Jobim cresceu ouvindo o Dorival Caymmi. E o garoto? Cresceu ouvindo quem? Se ouvir o Caymmi gera um Tom, se ouvir o Tom gera o Chico, ouvir aquela música gerou a música que se ouve hoje. É lamentável (GUDIN, 2013).

O compositor Ivan Lins corrobora as palavras de Eduardo Gudin, trazendo um traço

específico da natureza do compositor de música brasileiro:

O brasileiro sabe misturar bem todos os ingredientes e criar seu próprio sabor; não há uma diversidade tão rica como há aqui no Brasil. E fazemos música com muita paixão também. O grande diferencial brasileiro, que se soma à sua

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qualidade e à sua criatividade, é a paixão que nós temos pela música (LINS, 2013).

Ivan Lins, assim como Eduardo Gudin, lamenta a ingerência no trabalho do

compositor da canção popular massiva brasileira e, sobretudo, aponta um fato de fundamental

importância: o natural distanciamento entre o verdadeiro compositor e aquele processo midiático-

mercadológico cujo início deu-se pelo início da década de 1980, com o movimento do Rock

Brasileiro, e se aprofundou na década de 1990, com o surgimento de outros movimentos

engendrados pela indústria fonográfica em sintonia com o complexo midiático-musical brasileiro:

“O que não pode é dizer para os compositores que eles têm de fazer aquela espécie de música que

as gravadoras querem. O bom compositor vai fugir disso, evidentemente. Só vai topar uma coisa

dessas quem não é compositor de verdade” (LINS, 2013).

Indústria fonográfica e mídia televisiva brasileiras, assim, não fomentavam o o

ambiente mercadológico-midiático que propiciaria o surgimento de uma geração de compositores

de música popular comprometidos com a evolução do discurso musical brasileiro pelo uso

preciso dos recursos de linguagens literário e musical de que dispunham a partir das heranças

musicais que tiveram. Ao contrário, estimulavam cada vez mais o distanciamento entre os

grandes compositores surgidos nas décadas de 1950, 1960, 1970 e os compositores provindos dos

movimentos musicais surgidos a partir da década de 1980. Enquanto aqueles se consolidavam

como compositores de uma “música brasileira de classe”, estes encontravam espaço midiático e

mercadológico se consolidando como compositores de uma “música brasileira efêmera,

fragmentada e passageira”, como sinaliza o compositor Raimundo Fagner.

Eu tinha uma discografia enorme, muitos discos mesmo. Eu muito criança já tinha uma audição de adulto. Chico Alves, o Rei da Voz, Orlando Silva, o grande ídolo do meu irmão, o Silvio Caldas, Ataulfo Alves... então eu me criei muito ouvindo isso, paralelo ao Luiz Gonzaga, que era o rei do Nordeste; a gente escutava muito o Rádio, então tinham as paradas que tocavam todo o tipo de música, não era segmentada como é hoje. Hoje a música faz tanto sucesso, toca tanto, os caras aparecem tanto na televisão, que o público cansa. Compra o disco hoje, amanhã não ouve mais. Não se cultiva a música, não se evolui culturalmente (FAGNER, 2013).

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O compositor sintetiza o cenário mercadológico-midiático-musical brasileiro que se

consolidou a partir da década de 1990: “A Televisão se enriquece de dinheiro, o público fica mais

pobre de cultura; as gravadoras se enriquecem de dinheiro enquanto empobrece a música

brasileira” (FAGNER, 2013).

O Forró Eletrônico e o Forró Universitário – a mudança de nomenclatura, a sustentar o movimento musical

No ano de 1993 surgiu, provinda dos escritórios da gravadora Som Zoom Estúdio,

pertencente ao produtor musical e empresário Emanuel Gurgel, um novo movimento musical, o

Forró Eletrônico.

O produtor, além de possuir um elemento ligado ao polo mercadológico-musical, a

gravadora, era o proprietário, também, de um elemento ligado ao polo midiático-musical, uma

emissora de rádio, a Som Zoom Sat, responsável por reverberar os primeiros produtos advindos

da gravadora: as bandas Mastruz com Leite, Cavalo de Pau, Alegria do Forró e Catuaba com

Amendoim.

O movimento musical, em certa medida, mantinha similaridade com parte do

movimento musical da Axé Music, sobretudo no que tange à formação dos grupos musicais de

Forró Eletrônico, que traziam para as apresentações um corpo de baile que contava entre 10 e 12

dançarinos, que executavam as coreografias à frente dos músicos do grupo musical, ocupando a

linha de frente da formação, emparelhados aos cantores solistas. O pesquisador Expedito Leandro

Silva, em seu livro Forró no Asfalto: mercado e identidade sociocultural, atenta para o fato:

Inspirada em mega-produções da música sertaneja country, do axé music, desenvolve o modelo conhecido como forró eletrônico, o qual se caracteriza por uma mudança radical no instrumental — substituição do instrumental tradicional por um arsenal de instrumentos eletrônicos, incluindo-se sintetizadores — e pela inclusão de dançarinos que, sob um ritmo mais acelerado, desenvolvem de modo eletrizante uma rica coreografia revestida de muita sensualidade (SILVA, 2003, p. 102).

O autor faz notar, ainda, uma mudança radical na característica musical, propriamente

dita, do movimento; o Forró Eletrônico trazia instrumentação distinta do Forró, o gênero musical

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revelado ao público nacional brasileiro pelos meados da década de 1950180. Em lugar dos

tradicionais trios de instrumentistas (sanfona, triângulo e zabumba), os grupos musicais

apresentavam-se com formações instrumentais baseadas nos quartetos similares a parte da

produção do Rock’n’Roll (guitarra, contrabaixo, teclado e bateria), em parte das vezes somados

ao saxofone.

A temática do Forró Eletrônico também diferia daquela encampada por seu gênero

predecessor, como salientou em entrevista à revista Época o próprio empresário Emanuel Gurgel:

"Mudamos a filosofia do forró: Luiz Gonzaga só falava de fome, seca e Nordeste independente.

Agora a linguagem é romântica, enfocada no cotidiano, nas raízes nordestinas, nas belezas

naturais e no Nordeste menos sofrido, mais alegre e moderno”. (ÉPOCA, janeiro de 2012, apud

SILVA, p. 109).

Como gênero midiático-musical ligado de forma muito delimitada a um universo

específico do Brasil, o universo nordestino, o Forró Eletrônico não foi veiculado pela mídia

televisiva com o mesmo poderio com que o foram os movimentos do Rock Brasileiro, da

Lambada, do Pagode, do Axé Music. A TV Globo não produziu programas específicos para o

gênero, apenas exibia grupos em programas diversos, nos quais havia espaço para apresentações

musicais; outras emissoras da Televisão Aberta, pela década de 1990, não produziam programas

especiais com conteúdo musical, limitando-se a encaixar grupos, artistas e bandas em programas

de entretenimento nos quais havia espaço para apresentações musicais.

No entanto, mesmo sem a completa adesão da mídia televisiva, o eventual

desaparecimento do Forró Eletrônico não aconteceu, justamente por um novo procedimento do

complexo mercadológico-midiático: a alteração conceitual na nomenclatura de um movimento

musical que, por sua vez, não indica mudança fundamental no estilo de música produzida.

Surgiu assim pelo final da década de 1990, o “Forró Universitário”. 180 O Forró é o gênero musical típico e nativo da região Nordeste do Brasil, oriundo principalmente das festas juninas. Derivam-se dele outros ritmos dançantes também baseados no compasso binário dilatado e executados com a mesma instrumentação: o baião, a quadrilha, o xaxado, o xote. A chegada à Capital Federal do grande cantor e compositor Luiz Gonzaga, pelo meado da década de 1950, deu visibilidade nacional ao gênero. É emblemático o primeiro verso da primeira música registrada em disco pelo compositor: “Eu vou mostrar pra vocês como se dança o Baião”, da canção “Baião”, gravada no compacto duplo “O Reino do Baião”, lançado pela RCA Victor no ano de 1951.

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A denominação do gênero revela, segundo o pesquisador Expedito Leandro Silva, o

primeiro nicho de consumidores daquela espécie de produção musical: “O forró universitário foi

assim designado pelos seus idealizadores porque os primeiros consumidores eram, de fato, jovens

universitários” (SILVA, 2003, p. 103)

Mantendo a mesma linha discursiva do Forró Eletrônico (a instrumentação, a

temática das letras), novos grupos e artistas surgiram a partir da cidade de São Paulo, entre eles o

pioneiro grupo Falamansa, cujo primeiro disco, lançado em janeiro do ano 2000, vendeu um total

de 900 mil cópias181.

Mídia e indústria fonográfica encontravam um novo modo de preservar os

movimentos musicais, mantendo os elementos discursivos, renomeando o movimento.

É notável o fato de que, a comprovar o local de origem dos movimentos musicais

midiáticos (a saber, os escritórios das gravadoras), os gêneros musicais criados pelas gravadoras e

veiculados massivamente pela mídia sequer mantinham vínculos com os locais de origem dos

gêneros propriamente ditos. O Pagode Romântico provinha de Minas Gerais, em detrimento do

Pagode original, nascido no Rio de Janeiro; o Forró Eletrônico provinha do Ceará, em detrimento

do Forró original, nascido em Pernambuco; o Forró Universitário provinha de São Paulo, em

detrimento do Forró original, nascido em Pernambuco, e do Forró Eletrônico, que provinha do

Ceará.

A música produzida a partir dos escritórios das gravadoras sequer respeitava a origem

dos gêneros musicais.

É inegável também, como aponta o pesquisador Expedito Leandro Silva em adendo

às críticas a respeito da contaminação de um gênero musical genuíno, a aproximação de um

grande público, notadamente urbano, com o universo de uma música de um lugar específico do

interior do Brasil.

Em todo caso, o forró universitário parece ter proporcionado uma integração entre os forrozeiros tradicionais e os novos adeptos do gênero, um encontro da cultura interiorana com a cultura urbana das grandes metrópoles. A rebeldia e o agito do rock, bem como a massificação da cultura vinda do exterior (rock,

181 Dados ABPD.

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reggae, pop, etc.) cederam lugar ao baião e ao ritmo lento do xote pé-de-serra. (SILVA, 2002, p. 109).

A ausência de opções e a massificação dos movimentos musicais engendrados pelo complexo mercado fonográfico-mídia televisiva – o procedimento da mídia televisiva pelo início do século XXI

Após o preciso adendo do pesquisador Expedito Leandro Silva, faz-se necessário

salientar, também, que a mencionada aproximação de um grande público, notadamente urbano,

com o universo de uma música de um lugar específico do interior do Brasil não ocorria de modo

natural mas, sim, de modo direcionado pelo aparato midiático-mercadológico; não havia um

movimento de interesse do público ouvinte que era preenchido pela produção musical. Ao

contrário, os movimentos musicais eram engendrados por produtores musicais

e empresários (como o caso de Emanuel Gurgel, o idealizador do Forró Eletrônico), veiculados

de modo massivo pela mídia brasileira (protagonizada pela mídia televisiva) e levados ao público

ouvinte como uma entre muito poucas oportunidades musicais. O complexo gravadoras – canais

midiáticos abria poucas brechas para a chegada de outra espécie de música ao público ouvinte,

como relata o compositor Ivan Lins.

As gravadoras mandavam para as rádios um CD com uma música de cada artista da casa. Só uma música de cada. O programador da rádio, ainda que quisesse tocar outra música do disco de determinado artista, teria de comprar o CD, porque o da gravadora vinha com uma música de cada artista. O programador, por sua vez, aceitava esse CD porque ele vinha acompanhado de um jabazinho182. As gravadoras mandavam uma música dos artistas consagrados que elas tinham sob contrato. De vez em quando eles tocavam uma música do Caetano [Veloso], uma do [Gilberto] Gil... mas a esmagadora maioria das músicas do CD eram de artistas de um sucesso só, fabricados ali mesmo, que iam desaparecer em seguida (LINS, 2013).

182 “Jabá” é o termo popularmente utilizado para designar o procedimento de envio de dinheiro a programadores de rádio e televisão para executarem em suas programações musicais exclusivamente determinadas músicas de determinados artistas que mantêm contrato com gravadoras.

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Ciente do relato do compositor Ivan Lins, o cantor Miltinho, do grupo vocal MPB-4,

não apenas corroborou o que fora dito, como apresentou o adendo que estende o procedimento

também à mídia televisiva.

Não era só no Rádio que isso acontecia; na Televisão também. Pior: muitos apresentadores de programas de televisão levavam artistas nos programas e cobravam parte dos lucros dos shows desses artistas183. A partir da década de 1990 eles profissionalizaram o jabá: era preciso ter um acerto muito bem firmado entre a gravadora, o artista e o apresentador do programa (MILTINHO, 2013).

Dalmo Medeiros, originariamente cantor do grupo Céu da Boca, atualmente um dos

quatro integrantes do grupo vocal MPB-4, ciente de ambos os relatos trazidos acima, aponta para

um problema de ordem ainda mais ampla, a saber, o reflexo de tais procedimentos na formação

das gerações de compositores de música popular brasileira, no polo da poética

O problema é que, se ninguém toca uma música de qualidade, se as rádios não tocam, se a Televisão não toca, se eles só tocam uma espécie de música feita para vender e desaparecer, o músico brasileiro que está nascendo vai achar que aquela é a música brasileira; o compositor iniciante vai achar que é uma música como aquela que ele deve fazer. (MEDEIROS, 2013).

e de ouvintes de música popular brasileira, no polo da estética: “E o público também.

Quem ouve música vai pensar que aquilo é o que se deve ouvir. Vai mudando o conceito do que é

Bom. Daqui a algum tempo, o João Gilberto vai ser considerado um lixo. Esse é o problema

maior” (MEDEIROS, 2013).

O novo procedimento do complexo mercadológico-midiático, a alteração conceitual

na nomenclatura de um movimento musical sem alterar fundamentalmente o estilo de música

produzido, revelou-se de grande eficácia comercial também no movimento da Música Sertaneja.

183 A corroborar o procedimento explicitado pelo cantor Miltinho, ver citação à p. 272.

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A Música Sertaneja e o Sertanejo Universitário

Registrada em disco pela primeira vez no ano de 1929 a partir das gravações de

histórias e cantos tradicionais rurais brasileiros feitas pelo jornalista e escritor Cornélio Pires,

preponderantemente no interior dos estados de São Paulo, Goiás, Matogrosso, Rio Grande do Sul,

Paraná e no Triângulo Mineiro, a música sertaneja, na época de tais gravações pioneiras,

apresentava temática e locais de expressão específicos, como aponta a professora e pesquisadora

Martha Tupinambá Ulhôa: “o gênero era conhecido como música caipira, cujas letras evocavam

o modo de vida do homem do interior (muitas vezes em oposição à vida do homem da cidade),

assim como a beleza bucólica e romântica da paisagem interiorana” (ULHÔA, 2004, p. 60).

Executada inicialmente acompanhada apenas por um instrumento, a viola caipira184, a

produção musical desse gênero, que se estendeu pelas décadas subsequentes, também foi

chamada de “moda de viola”, como apontam José Rogério Lopes e André Luiz da Silva: “A

denominação de ‘moda de viola’ também está sujeita aos registros próprios do movimento

histórico do instrumento” (LOPES; SILVA, 2008, p. 5).

Segundo os autores, a importância do instrumento extrapola o âmbito da execução

musical e se estende aos âmbitos do imaginário (proposto pela poética e apreendido pela estética)

e da sociabilização proposta pelo próprio gênero da “música caipira”.

Nas mãos dos violeiros, ou dos ‘tocadores de viola’ – como se denomina o músico Galvão Frade, de São Luis do Paraitinga – na roça e nas cidades, nos bailes ou nos bares, a viola puxa a memória e redefine o lugar, atualizando os motivos de vida das pessoas. Ela também incita a sociabilidade, contra inveja, ruindade, doença, ou outra coisa qualquer que atrapalhe as relações comunitárias fundadas em um ideal de solidariedade vicinal, de participação e companheirismo, enfim, de fortalecimento dos nós e laços traçados com o outro, na vida afora (LOPES; SILVA, 2008, p. 5).

O movimento mercadológico-midiático da Música Sertaneja, surgido na segunda

metade da década de 1980, principiava por não utilizar a viola como parte da instrumentação de

184 Instrumento popular de cordas, semelhante a um violão, contém cinco cordas dobradas (por esse motivo também chamada de “viola de 10 cordas”), cuja afinação estabelece um acorde perfeito maior de Sol quando da execução rasqueada das cordas soltas.

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sua produção musical. A instrumentação, qual ocorrera no movimento do Pagode Romântico, do

Forró Eletrônico e do Forró Universitário, era distinta daquela utilizada no gênero original e

próxima daquela empregada pelos grupos musicais de parte da produção do Rock’n’Roll

brasileiro produzido a partir da primeira metade da década de 1980: guitarra, contrabaixo, teclado

e bateria.

Duplas como Chitãozinho & Xororó, Leandro & Leonardo, Zezé Di Camargo &

Luciano, Chrystian & Ralf, João Paulo & Daniel, Gian e Giovani, Rick & Renner,

cantoras solistas como Sula Miranda, Roberta Miranda, atingiam números de vendagem

superiores a 1 milhão de cópias de CDs com sucesso como as canções Fio de Cabelo, de

Marciano e Darci Rossi, Pense em Mim, de Douglas Maio, Entre Tapas e Beijos, de Nilton

Lamas e Antonio Bueno185.

Como faz notar a professora e pesquisadora Martha Tupinambá Ulhôa, além da

alteração no âmbito da instrumentação, também no que tange à temática, ao ritmo, ao arranjo, à

interpretação e à formação musical (por vezes o cantor solista em lugar da dupla), a Música

Sertaneja produzida a partir da segunda metade da década de 1980 dista de sua manifestação

musical ancestral, a Música Caipira.

Os cantores alternam solos e duetos para apresentar canções, muitas vezes em ritmo de balada, que tratam principalmente de amor romântico, de clara inspiração urbana. Algumas canções classificadas como sertanejas nas paradas de sucesso são às vezes interpretadas totalmente por solistas, dispensando o recurso tradicional da dupla. Os arranjos instrumentais dessas músicas adicionam instrumentos de orquestra além da base de rock, já incorporada ao gênero. A unidade estilística da música sertaneja é conseguida pelo uso consistente do estilo vocal tenso e nasal e pela referência temática ao cotidiano, seja rural e épico na música sertaneja raiz, seja urbano e individualista na música sertaneja romântica (ULHÔA, 2003, p. 160).

É possível notar que da manifestação musical pioneira restava somente a

nomenclatura. Mercado e mídia entenderam que o “novo gênero musical” deveria conter um elo

com o gênero predecessor, a saber, o fator que o identificaria, o nome “Música Sertaneja”.

185 Dados ABPD.

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A possibilidade de ponderação acerca de outro elemento, além do nome do

movimento musical, que manteria elo com a manifestação musical pioneira, vale dizer, o local de

origem das duplas e cantores solistas, em regra provindos do sudeste do estado de Goiás

(Leandro & Leonardo, Chrystian & Ralf, Zezé Di Camargo & Luciano), do interior dos estados

do Paraná (Chitãozinho & Chororó), de São Paulo (João Paulo & Daniel, Gian e Giovani) , do

estado do Mato Grasso do Sul (Matogrosso e Mathias), do triângulo mineiro (Rick & Renner),

não mais existe a partir da sucessão do movimento da Música Sertaneja, quando do surgimento

do movimento da Música Sertaneja Universitária, chamado “Sertanejo Universitário”, pelo

princípio da década de 2000.

Deslocando o eixo geográfico mas, sobretudo, o local de origem, o “Sertanejo

Universitário” delegava ao ambiente universitário, distante da realidade do sertão do Brasil tanto

no que diz respeito ao polo da poética quanto ao polo da estética daquele movimento

mercadológico-midiático-musical. Duplas e artistas-solo jovens, provindos dos centros urbanos,

produziam um repertório musical com grande penetração em festas, eventos e contextos sociais

de jovens das universidades brasileira.

O pesquisador Eugênio Pacelli da Costa Neves faz notar o distanciamento entre a

“música caipira”, à qual denomina “música sertaneja de raiz” e o “sertanejo universitário”, ao

qual denomina “música sertaneja urbana”; além disso, ratifica que tal distanciamento não ocorre

apenas no âmbito da poética mas, também e em igual proporção, no âmbito da estética, do

movimento mercadológico-midiático-musical.

A música sertaneja urbana não daria nada ao sertanejo típico, não faria nenhuma alusão real ao seu universo original, não teria nenhum compromisso com suas raízes fundamentais e tampouco com sua ética moral. A música sertaneja urbana não firmaria com a instancia de recepção ideal sertaneja nenhum contrato de comunicação por não respeitar os parâmetros originais da música sertaneja raiz (NEVES, 2002, p. 91).

Duplas como Bruno & Marrone (com o sucesso Dormi na Praça), João Bosco &

Vinícius (com o sucesso Chora, Me Liga), Jorge & Mateus (com Amo Noite e Dia), João Lucas

& Marcelo (com Eu Quero Tchu, Eu Quero Tcha), João Neto & Frederico (com Lê Lê Lê),

Thaeme & Tiago (com Hoje Não) Munhoz e Mariano (com o sucesso Camaro Amarelo) e artistas

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solistas como Luan Santana (com Sogrão Caprichou), Michel Teló (com o hit que virou febre

internacional Ai se eu te pego) e Gusttavo Lima (com Balada Boa), ícones o movimento do

Sertanejo Universitário, pouco contribuíram para a evolução do discurso musical da canção

popular massiva brasileira, ainda que tomada do ponto de vista específico da própria Música

Sertaneja, como indica o pesquisador Eugênio Pacelli da Costa Neves.

A música sertaneja urbana privilegiando quase exclusivamente o tema da desilusão amorosa, não necessita de um universo de referencial complexo e plural como encontramos na música sertaneja caipira. Limita-se quase sempre à expressão sentimental e à súplica amorosa, a descrição de estados de alma subjetivos e íntimos ou, como é o caso mais frequentes, ao diálogo, amoroso e confidente a pessoa amada. É justamente a dominância narrativa da música (NEVES, 2002, p. 91).

O movimento da Música Sertaneja desde seu primeiro formato (antes do Sertanejo

Universitário), diferentemente do que ocorrera com o Forró Eletrônico186, teve ao seu lado o

aporte midiático da Televisão.

Ao longo da primeira metade da década de 1990, a TV Globo produziu e exibiu os

programas especiais intitulados Chitãozinho & Chororó, em 1990; Zezé Di Camargo & Luciano

Especial, em 1991; Leandro & Leonardo Especial, também em 1991; Leandro & Leonardo, em

1992; Chitãozinho & Chororó – Planeta Azul, também em 1990.

O sucesso dos programas levou a TV Globo a produzir, no ano de 1995, o primeiro

programa da série especial Amigos, que seria exibida anualmente entre as atrações de fim de ano,

no horário das 22H00, com direção musical de Mariozinho Rocha e direção geral de Aloysio

Legey e Paulo Netto. A série de programas era dedicada exclusivamente à apresentação de duplas

e artistas ligados ao movimento musical.

O programa era protagonizado por três duplas sertanejas (Chitãozinho & Chororó,

Leandro & Leonardo, Zezé Di Camargo & Luciano) que viriam a compor o núcleo de artistas

que seriam transformados nos ícones balizadores que serviriam de referencial para novas duplas e

186 Ver p. 393.

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artistas solistas daquele mesmo gênero, como mencionado anteriormente neste trabalho187; os

pioneiros do gênero se transformavam em “referência para as novas gerações”, deixavam a

exposição midiática excessiva, e protagonizavam a cena midiático-musical ligada àquele

movimento numa programação especial, produzida exclusivamente para alguns dos nomes

daquele movimento.

O procedimento midiático-mercadológico de construção de um “núcleo de

referência” fica evidente na produção do segundo programa da série Amigos, exibida em 25 de

dezembro de 1996.

Três duplas sertanejas (Chrystian & Ralf, João Paulo & Daniel, Gian e Giovani)

protagonizaram o programa, no mesmo formato daquele exibido no ano anterior. No entanto,

como a avalizar as duplas que compunham uma espécie de grupo de duplas aspirantes a grandes

referências, Luiz Fernando Carvalho dirigiu o clipe da música Coração Sertanejo, interpretada

pela dupla Chitãozinho & Chororó, produzido especialmente para a exibição durante o programa.

O programa Amigos do ano de 1997 trouxe como grande protagonista o cantor

Daniel, desta feita como solista, pois João Paulo, seu companheiro dupla, havia morrido três

meses antes da exibição do programa. Daniela Mercury, Fábio Jr. e a cantora Roberta Miranda

foram os convidados do cantor.

O último programa da série, também por conta da morte de um integrante de uma das

duplas (Leandro, da dupla Leandro & Leonardo) trouxe novamente as três duplas-referências

como protagonistas.

Qual ocorrera na consolidação do movimento da Axé Music, repetiu-se o

procedimento da mídia televisiva em sintonia com o mercado fonográfico, já mencionado neste

trabalho188.

O primeiro programa da série Amigos foi reapresentado pela emissora duas vezes, em

março e em junho de 1996; o segundo programa foi reapresentado em janeiro de 1997. Ao longo

do ano de 1999, aos domingos, 15H00, foi exibido o programa Amigos & Amigos, derivado do

187 Ver p. 387.

188 Ver pp. 386 e 393.

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programa especial Amigos, apresentado pela mesma tríade de duplas sertanejas, desta feita,

porém, sem o cantor Leandro, apenas com o cantor Leonardo, da dupla Leandro & Leonardo.

Já no ano de 2010, a TV Globo produziu um programa especial com sua maior estrela

musical, o cantor Roberto Carlos, no qual cantores e duplas sertanejas interpretavam canções do

protagonista do programa. Dirigido por Roberto Talma, o especial Emoções Sertanejas foi ao ar

em 1 de abril, às 22H10. As duplas Bruno & Marrone, Cesar Menotti e Fabiano, Zezé di

Camargo & Luciano, Chitãozinho & Chororó, Milionário & José Rico, Rio Negro & Solimões,

Victor & Léo, Gian e Giovani, e os cantores Daniel, Leonardo e Paula Fernandes, dividiram

execuções de canções com Roberto Carlos.

Outros programas com algum conteúdo musical na própria TV Globo e em outras

emissoras da rede comercial aberta do Brasil veicularam os artistas da Música Sertaneja e,

posteriormente, do Sertanejo Universitário.

Os Especiais de Fim de ano estrelados pelo cantor Roberto Carlos levaram ao palco

os ícones do Sertanejo Universitário Michel Teló (em 2012) e Paula Fernandes (em 2013) para

cantarem em parceria com o protagonista do programa.

Em 2012, na novela Cheias de Charme, escrita por Filipe Miguez e Izabel de

Oliveira, com direção de Denise Saraceni, exibida no horário das 19H00, uma das tramas do

núcleo central de personagens das empregadas domésticas Maria da Penha, Maria do Rosário e

Maria Aparecida, que formavam o grupo musical As Empreguetes, o ator Ricardo Tozzi vivia a

personagem Fabian, o “rei do sertanejo universitário”.

Sintetizando o procedimento midiático-mercadológico exposto acima, o compositor

Dori Caymmi expõe a sucessão de movimentos musicais cujo nome remete a uma manifestação

musical com a qual a produção dos artistas não mantém vínculo e ressalta o empobrecimento do

discurso musical engendrado pela ausência de recursos de linguagens nas composições do

repertório da Música Sertaneja e do Sertanejo Universitário. O compositor alerta ainda para o fato

de que até mesmo no âmbito literário do repertório do Sertanejo Universitário o empobrecimento

é notório e causa, no polo da estética, a criação de uma visão do sertão brasileiro que não mantém

vínculo com a imagem do sertão com a qual o próprio público brasileiro se identifica. Há, para o

compositor, dentre outras espécies de prejuízos causados pela superexposição midiática do

repertório referido, um de difícil remediação: a perda da identidade do brasileiro.

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Eles [canais midiáticos e gravadoras] inventam tanta coisa, tantos gêneros musicais, que a gente não consegue acompanhar. É o Sertanejo, depois é o Sertanejo Universitário, daqui a pouco vem o Sertanejo mestrado, o Sertanejo Doutorado... não tem fim. O problema é que nenhum deles canta a música sertaneja de verdade, a música do sertão brasileiro, que ficou escondida nas duplas de moda-de-viola que não aparecem na mídia de jeito nenhum. Só aparecem os meninos tocando aqueles três acordes, cantando mal, uma música que não acrescenta nada. Eu tinha uma visão diferente do sertão, uma visão mais romântica, mais literária. Até a identidade desse sertão ficou comprometida (CAYMMI, 2013).

Na segunda metade da década de 1990, outro movimento mercadológico-musical

ganhou ampla exposição midiática, o Funk189.

O Funk e os gêneros similares

A apresentadora Xuxa Meneghel apadrinhou aquela que seria a dupla pioneira do

gênero Funk na mídia brasileira. Em 1995, no programa “Xuxa Hits”, apresentou-se para um

auditório pleno em adolescentes, a dupla Claudinho & Buchecha, interpretando a canção

Conquista, que seria o primeiro grande sucesso da dupla190.

Sucessivas voltas ao programa renderam à dupla o status do estrelato, o apodo de

“reis do Funk”, e a vendagem de 1,2 milhões de cópias do primeiro CD gravado pela dupla

(intitulado Claudinho & Buchecha)191.

189 Com influência musical do Rap e do Hip Hop norte-americanos, as músicas do repertório do Funk brasileiro, no início, apresentavam batida rítmica gravada eletronicamente, melodia com ausência de movimentos entre as notas, ausência de cromatismos, ausência de suporte harmônico e letras com temáticas românticas, do universo jovem, descompromissadas com a crítica social. No segundo momento do Funk, a partis dos anos 2000, a temática social fica mais presente aproxima ainda mais o discurso musical daquele empregado pelos antecessores surgidos nos Estados Unidos da América do Norte.

190 A canção trazia, logo após a primeira palavra da letra, uma sucessão de interjeições: “Sabe / Tchu ru ru ru...”

191 Dados ABPD.

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O segundo CD, lançado no ano seguinte, trazia o sucesso Quero te Encontrar e

vendeu 1 milhão de cópias192.

O sucesso da dupla fez se repetir o procedimento mercadológico-midiático utilizado

em outros movimentos musicais criados no Brasil desde a década de 1980: os artistas pioneiros

de cada movimento musical inspiravam novos artistas, bandas, grupos, que compunham o estofo

necessário para dar suporte e longevidade ao movimento; os artistas pioneiros galgavam um

degrau de “referências” do gênero, distanciavam-se das aparições tanto constantes quanto

desgastantes da imagem; novos nomes surgiam e realimentavam o processo até que este

requeresse um novo nome sem que se alterasse sua formatação.

No ano de 1999, as irmãs gêmeas idênticas Pepê & Neném sucederam a dupla

Claudinho & Buchecha nas aparições midiáticas e venderam 1 milhão de cópias de seu primeiro

CD, que continha o sucesso Mania de Você193.

A exposição midiática da dupla dava conta de sustentar as vendagens dos primeiros

CDs; no entanto, Tudo Bem o segundo disco da dupla vendeu apenas 70 mil cópias.

A fórmula da exposição constante na mídia mostrou-se pouco eficaz e em 2007,

mesmo fazendo o lançamento ao vivo de seu quinto CD, intitulado Um Novo Caminho, no

programa Qual É a Música?, apresentado por Sílvio Santos, no SBT, a dupla não alcançou a

vendagem de 20 mil cópias. Em 2010, o CD Imprevisível Demais vendeu apenas mil cópias.

O declínio da dupla Pepê & Neném assinala alguns pontos já explanados neste

trabalho: a dupla não galgou o patamar de “referência no gênero”; manteve a desgastante agenda

de aparições em programas televisivos de diversas emissoras; os artistas, bandas e grupos que

sucederam a avassaladora aparição da dupla pioneira do gênero (Claudinho & Buchecha)

encamparam a produção de uma outra espécie de Funk; o movimento, tal como se apresentou

primeiramente, deixou de existir e foi substituído por gêneros similares: o Funk carioca, o Rap

brasileiro, o Hip Hop brasileiro.

O primeiro deles cambiava a temática de seus pioneiros, direcionando-a do amor

romântico ao cotidiano de conflitos sociais na periferia das grandes cidades, notadamente do Rio 192 Dados ABPD.

193 Dados ABPD.

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de Janeiro e à abordagem sexual de cunho próximo ao explícito. Os MCs vinham em lugar das

duplas e trocavam a abordagem do discurso literário mantendo a quase-ausência do discurso

musical, como define a professora Adriana Facina:

Empurrado de volta para as favelas e condenado à ilegalidade, no final da década de 1990 e no início dos anos 2000, o funk se dedicou a cantar o cotidiano neurótico de seus moradores, seja fazendo das facções criminosas sua inspiração, seja cantando o sexo num estilo papo reto, sem romantismo nem meias palavras (FACINA, 2009, p. 8).

O segundo, surgido na primeira metade da década de 1990, tendo como pioneiro o

cantor Gabriel, o Pensador, deixou a temática explicitamente ligada à questão penal e direcionou

a abordagem literária para a questão da diferença social brasileira. O grupo Racionais MCs

alcançou a marca de 1,4 milhões de CDs vendidos do disco Sobrevivendo no Inferno, em 1997194;

o mesmo disco foi eleito pela revista Rolling Stone como o 14º. melhor disco brasileiro de todos

os tempos195.

Marcelo D2 mesclou elementos percussivos do samba ao discurso musical do Rap

brasileiro, que influenciou outros artistas daquele movimento musical como Emicida ou MV Bill.

O terceiro, nascido nas ruas da zona central da cidade de São Paulo na segunda

metade da década de 1980, sustentado pela produção de artistas reconhecidos como Thaíde, DJ

Hum, Styllo Selvagem, Região Abissal, Sérgio Riky, e Mc Jack, ganhou projeção na primeira

194 Dados ABPD.

195 Os 100 maiores discos da Música Brasileira - Revista Rolling Stone, Outubro de 2007, edição nº 13, página 115.

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década dos anos 2000, quando proliferaram no Brasil competições de DJs196 e de artistas

especialistas em Beat Box197.

Com discurso distante daquele produzido inicialmente pelo Funk, grupos como

Movimento Enraizados, MHHOB, Zulu Nation Brasil, Casa do Hip Hop e Nação Hip Hop Brasil,

definem sua temática de abordagem literária em sintonia com outras manifestações artísticas e

ressaltam os aspectos políticos e a intervenção social que os movimentos que provêm daquela

manifestação cultural empreendem.

Os gêneros musicais similares ao Funk, os produtos midiáticos derivados das duplas

de Funk, modificavam-se rapidamente e traziam à cena mercadológica-midiática-musical outras

espécies de discursos, distintos daquele apresentado na segunda metade da década anterior pela

dupla Claudinho & Buchecha, que, nas vozes da dupla Pepê & Neném não mais se sustentava.

No entanto, todos os discursos provindos daquele inaugurado pelo Funk são pautados

pela presença do elemento literário (a letra) e caracterizam-se pela ausência de elementos

musicais (melodia e harmonia), fincando-se numa única e constante batida de pulsação rítmica.

Outro elo que identifica tais movimentos musicais é sua origem norte-americana, que

muito dista das matrizes sonoras e musicais brasileiras. Como já citado pelo compositor Ivan Lins

anteriormente198, em referência à natureza criativa do compositor brasileiro, vale relembrar que o

acuro do discurso musical do compositor brasileiro passaria pela capacidade de estruturação de

melodias e harmonias ricas em termos de movimentos naquelas, montagem e sucessão de acordes

nessas.

196 Beat-Juggling é o nome dado à composição de músicas pelos DJs em seus toca-discos, meslando discos e canções diferentes. O DJ de competição, diferentemente do DJ de grupo, que atua em bailes, festas, eventos, utiliza a técnica na operacionalização de equipamentos sonoras e a criatividade para criar riffs, ritmos e mesclas de músicas que chamam a atenção do público realizando scratchs, batidas e frases recortadas e sampleadas de diferentes discos. Tais profissionais competem entre si usando trechos musicais de discos de vinil, arquivos digitais ou sequencias MIDI.

197 Reprodução sons percussivos, de sons sintetizados, de scratchs e de samples com a voz, ou com a cavidade nasal. É a simulação vocal de efeitos sonoros extraído de discos por DJs.

198 Ver p. 390.

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O resgate histórico da perda de identidade e do empobrecimento do discurso musical da canção popular massiva brasileira

O mesmo compositor Ivan Lins traça um resgate histórico e refere-se aos movimentos

musicais surgidos nos subúrbios das grandes cidades brasileiras, nas periferias, que foram

expostos midiaticamente a partir da segunda metade da década de 1990. Vale ressaltar a menção

à influência musical dos artistas que participam de tais movimentos musicais e à sonoridade que a

música de tais artistas incorpora em seu discurso.

Os anos 70s foram anos de transição, pois estávamos no período mais duro da ditadura. Foi nesse período que começou a surgir a música mais jovem, que tinha muita influência do Woodstock, dos Beatles... começaram a aparecer os primeiros movimentos da periferia do Rio [de Janeiro] e de São Paulo. Vinte anos depois, duas gerações depois, isso gerou o Rap, o Hip Hop, o Funk. Essa influência do subúrbio sempre existiu, só foi se modificando. Quando foi para a Televisão, o subúrbio começou a ter voz. Uma voz brasileira, cantada sobre uma música norte-americana (LINS, 2013).

O compositor Dori Caymmi reforça as palavras de Ivan Lins no que tange à

influência musical que inspirou o movimento do Funk brasileiro e seus gêneros similares. Dori

Caymmi faz notar a perda de identidade da música brasileira que ocorreu a partir do

distanciamento entre a canção popular massiva brasileira comprometida com a evolução do

discurso musical e a mídia televisiva, que direcionou sua programação para produtos musicais

provindos de movimentos mercadológicos que não mantêm vínculo estreito com a construção do

discurso musical brasileiro.

Eles [a mídia televisiva brasileira] exibem o tempo todo esses artistas que só tiveram influência da música americana, não conhecem a música brasileira. Por causa disso as pessoas estão perdendo um pouco essa informação brasileira e trocando pela informação de fora. Elas estão perdendo essa identidade, que é tão rica e tão nossa (CAYMMI, 2013).

O compositor sinaliza para a época em que começou a ocorrer a transformação

identitária de artistas e público brasileiros. Aponta, ainda, para um assunto que será abordado em

breve neste trabalho: a questão tecnológica.

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Nesses últimos anos a música se perdeu. Com essa coisa da globalização, esse vício de telefone celular e laptop, mudou tudo. Os programas de televisão são todos baseados no que acontece nos Estados Unidos. O brasileiro veste a camisa americana, o computador americano, a cabeça americana. É um comércio, eu não gosto (CAYMMI, 2013)

O pianista Amilton Godoy corrobora as palavras de Dori Caymmi e alerta para uma

espécie de procedimento da mídia televisiva, ao qual denomina “enganar o público”, que é o de

reincidir em sua programação apenas uma espécie de música, descomprometida com aqueles

compositores (e com outra espécie de música, portanto) aos quais denomina “gente de talento”.

Tem muito brasileiro que faz música no Brasil, mas a música não é brasileira. Cada um tem o direito de escolher seu próprio caminho, mas o que não pode é enganar o público. Por que só um tipo de música? São sempre os mesmos, será que não aconteceu nada no país, será que não nasceu mais gente de talento? (GODOY, 2013).

Amilton Godoy estabelece a diferenciação entre a canção popular massiva provinda

dos movimentos musicais engendrados pelo mercado fonográfico em sintonia com a mídia

televisiva brasileira acusando ambas de “enganarem o público” oferecendo ao polo da estética, ao

ouvinte brasileiro, apenas uma espécie de música.

Tal música não manteria traço identitário com a genuína música popular brasileira,

pois proviria de uma linguagem musical preponderantemente norte-americana.

Tal linguagem musical difere da linguagem musical brasileira sobretudo nos âmbitos

da melodia e da harmonia. O discurso musical estruturado pela linguagem de influência norte-

americana é menos rico do que aquele estruturado pela linguagem musical brasileira, que faz uso

de recursos melódicos de movimentação e cromatismos e de recursos harmônicos de construção

de teias de sucessão de acordes complexas e completas, ausente em grande parte do repertório da

canção popular massiva norte-americana.

A contribuição da mídia televisiva Por relação de consequência, a mídia televisiva brasileira teria contribuído

significativamente para o empobrecimento do discurso musical da canção massiva brasileira, pois

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ao abrir e ampliar os espaços midiáticos de exposição de uma música popular que não mantém

elo de comprometimento com o acuro discursivo, diferentemente do que ocorrera nas décadas de

1960 e 1970, quando a mídia televisiva brasileira mantinha espaços de exposição da produção de

uma espécie de canção popular massiva de discurso pobre, porém ao mesmo tempo abria e

ampliava espaços midiáticos de exposição de uma música popular que mantinha estreito elo de

comprometimento com o acuro discursivo pela estruturação de uma linguagem plena no que

tange ao uso de seus recursos literários-musicais.

A mídia televisiva, à altura, teria controbuído com a evolução do discurso musical da

canção popular massiva brasileira, fato que teria deixado de ocorrer pelos meados da década de

1980 e não mais voltado a ocorrer até a primeira metade da segunda década do século XXI.

A evolução tecnológica de aparatos de gravação, reprodução e apreensão de música

Paralelamente à evolução musical e à consolidação das estratégias midiático-

mercadológicas, o cenário musical brasileiro, tanto no âmbito da produção quanto no âmbito da

apreensão estética, também conhecia mudanças evolutivas no que diz respeito aos aparatos

tecnológicos utilizadas para a gravação e a reprodução musical; era construída,

concomitantemente à linha evolutiva musical-midiático-mercadológica, uma linha evolutiva

tecnológica.

O polo da poética musical brasileira, no que tange à captação e gravação sonora,

acompanhando o transcorrer acelerado das transformações tecnológicas que ocorreram a partir da

segunda metade do século XX, conheceu implementos que transformaram o modo gravar e,

também, de pensar a construção musical (sobretudo nas searas dos arranjos e da instrumentação).

O polo da estética musical brasileira, no que tange à reprodução e consequente

apreensão sonora, também conheceu equipamentos que transformaram o modo se reproduzir e de

ouvir a construção musical elaborada pelo polo da estética.

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Os recursos de gravação e reprodução sonora – da década de 1950 à Era Digital Lançaremos olhar, primeiramente, para a instância da produção musical brasileira e

seu convívio com o desenvolvimento de tecnologias de captação e gravação sonora.

Os aparelhos de captação sonora dos estúdios musicais brasileiros, até meados da

década de 1950, não dispunham de equipamentos de captação múltiplos, o que equivale a dizer

que as tomadas musicais gravadas eram, necessariamente, executadas com todos os músicos

envolvidos (inclusive cantor solista e eventual coro) presentes na sala de gravação

simultaneamente, como explica o engenheiro acústico Pedro da Cruz Lima199:

Até a chegada do gravador de fita, depois da segunda guerra, as gravações eram feitas com um microfone de captação. A cantora, a Carmem Miranda, por exemplo, ficava em frente ao microfone, os cantores do Bando da Lua ficavam um passo atrás, em torno dela, os instrumentistas de cordas (violão, violão de 7 cordas, violão tenor) alguns passos atrás, o pessoal da percussão mais atrás ainda. O técnico de mixagem daquele tempo era, na verdade, um bom “posicionador”. Eles gravavam tudo numa tomada só (LIMA, 2014).

A menção de Pedro da Cruz Lima ao “técnico de mixagem” da época expõe o

espectro de soluções engendradas pelos profissionais que necessitavam criar condições para uma

captação sonora minimamente fiel ao contexto musical executado na sala de gravação.

Após a Segunda Guerra Mundial, os gravadores de fita magnética lentamente

chegavam aos estúdios de gravação brasileiros e permitiam gravações em “pistas” distintas, o que

permitia que a execução dos instrumentos de percussão ocorresse antes da gravação dos

instrumentos harmônicos e, somente após a gravação da instrumentação completa, se realizava a

gravação das vozes do coro e do cantor solista.

A chegada da fita magnética aos estúdios de gravação inaugurou a era da Gravação

Elétrica, que sucedeu a era das Gravações Mecânicas.

199 Pedro da Cruz Lima é engenheiro de som, proprietário do estúdio Ultrassom, localizado na cidade de São Paulo, e foi coordenador de produção de áudio nos Estúdios Mega, em São Paulo, onde foi o responsável pela produção sonora de filmes nacionais (Noel Rosa, o Poeta da Vila, entre outros), internacionais (Carandiru, entre outros), publicitários, políticos, eleitorais, CDs (De Volta aos Bares, de Bruno e Marrone, entre outros) e DVDs (Prenda Minha, de Caetano Veoso, entre outros).

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Primeiramente munido de duas pistas (e, posteriormente de quatro pistas), os

“gravadores de rolo” traziam uma espécie ambígua de situação para músicos e técnicos dentro do

estúdios, como explica o compositor e arranjador Cesar Camargo Mariano: “Por um lado, a fita

trouxe para os estúdios a possibilidade de o músico refazer um erro ou outro cometido durante a

gravação; por outro, com o tempo, isso pode ter acomodado o instrumentista, que podia errar

inúmeras vezes até conseguir um take bom” (MARIANO, 2013).

Como sinaliza o compositor, a gravação em fitas permitia que os trechos gravados

fossem apagados e, em seguida, refeitos; as tomadas gravadas não exigiam, portanto, uma

execução perfeita de todos os envolvidos no processo.

Ao longo da década de 1960, os estúdios investiam na aquisição de equipamentos de

captação, mixagem e equalização chamados comumente de “periféricos”, que permitiam uma

captação mais precisa das amplitudes sonoras de instrumentos e vozes, sucedida da possibilidade

de misturar os sons captados em volumes e intensidades encontrados após a gravação que era, por

fim, transformada em parâmetros de dinâmicas próximos uns dos outros; eram, assim,

“equalizados”.

O músico e pesquisador Waldir de Amorim Pinto indica a época em que os nascentes

estúdios caseiros ainda não conseguiam competir com os estúdios profissionais em termos de

qualidade de captação sonora, justamente por conta dos altos investimentos destes em

equipamentos periféricos.

No final da década de 1970, quando os primeiros gravadores de 4 pistas em fita cassete (os porta-estúdios) apareceram no mercado, proporcionando o acesso do artista à gravação caseira de seus trabalhos, existia uma enorme lacuna em relação à qualidade conseguida em estúdios profissionais, que se valiam de equipamentos de gravação analógicos caríssimos, além de periféricos de altíssima qualidade (PINTO, 2012, p.3).

No entanto, a partir da década de 1980 o aparato tecnológico interveio de modo

definitivo na concepção tanto musical quanto mercadológica no que diz respeito à captação e

gravação sonora. A chegada aos estúdios dos equipamentos digitais transformou de modo

contundente a concepção do processo de gravação. A era da Gravação Elétrica ficava para trás e

era inaugurada a era da Gravação Digital.

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Tentativas de gravação digital vem acontecendo desde a década de 1930, mas apenas a partir de 1967 os avanços com tornaram-se mais visíveis, tendo como mídias as fitas de vídeo comerciais (VHS e Betamax) e os discos de vídeo laser. Estas experiências convergiram para a criação do CD como mídia de áudio digital para produção em massa, em 1982. A alta fidelidade tão buscada parece, enfim, ter sido alcançada: a captação da amplitude de frequências audíveis (20 a 20.000 Hz) sem distorções ou ruídos mensuráveis (PINTO, 2012, p. 3).

A era da Gravação Digital permitiu gravações chamadas “multipistas”, nas quais cada

instrumentista poderia gravar sua execução em diferentes tomadas, que podiam ser recortadas em

milimétricos fragmentos, a ponto de o instrumentista poder corrigir a execução de uma única nota

que não tivesse sido gravada a contento. O músico executava parte a parte, em horários distintos,

em dias distintos; os dados ficavam registrados nos computadores munidos de softwares

específicos para a gravação de música; o músico podia corrigir criteriosa e sistematicamente cada

uma das notas de sua execução.

Waldir de Amorim Pinto, ainda estabelecendo a contraposição entre estúdios caseiros

e profissionais, faz notar a revolução tecnológica em ambos os ambientes, fincado principalmente

no fator “capacidade de armazenamento” de dados que os computadores emprestaram a estúdios

e profissionais de gravação sonora. O que outrora exigia um microfone de captação de extrema

qualidade, de um profissional que “posicionava” músicos e cantores de modo ao microfone

captar com o maior índice de fidelidade possível todo o espectro de frequências emitidos pelos

executantes, músicos e cantores capazes de uma execução inteira desprovida de erros, agora

podia delegar boa parte de tais tarefas a um técnico à frente de um computador equipado com um

software adequado.

Os computadores passaram a ser ferramenta de suporte e armazenamento dos estúdios profissionais e softwares foram desenvolvidos para auxiliar em vários procedimentos da gravação multipista. Com o incremento exponencial da capacidade de armazenagem dos PCs, os computadores caseiros também poderiam se tornar estações de trabalho de áudio digital (DAW). Softwares de gravação e mixagem eram outros aplicativos que poderiam transformar os computadores caseiros em gravadores digitais versáteis (PINTO, 2012, pp. 3-4).

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Como apontou anteriormente o mesmo músico e pesquisador Waldir de Amorim

Pinto, são concomitantes e interligadas as chegadas do equipamento de captação digital e o

equipamento de reprodução digital em massa, o CD200.

De fato, como asseveram os pesquisadores Danilo Cabello, Erivelton Martinez e

Glauco Junquera, a chegada concomitante dos equipamentos de captação e reprodução digital em

massa ocorreu pela década de 1980: “O disco compacto digital (Digital Compact Disc),

conhecido como CD, foi inventado no final de 1965 por James T. Russell. Porém, se tornou

popular somente nos anos 80 quando começou a ser produzido em massa pela empresa holandesa

Philips” (CABELLO; MARTINEZ; JUNQUERA, 2012, p. 1).

A audição musical em movimento No entanto, para além da evolução tecnológica no polo da gravação de Música

(engendrada pelos equipamentos digitais que transformaram o modo de se produzir música em

estúdios) e no polo da reprodução da Música (com o advento do CD, de tamanho menor,

capacidade de armazenamento maior, maior pureza sonora, porém limitação de frequências), a

segunda metade da década de 1980 conheceria o aparato tecnológico que engendraria a revolução

no modo de se ouvir música, à qual refere-se Laan Mendes de Barros, já mencionada neste

trabalho201: a revolução em forma de movimento.

200 Os primeiros CDs comerciais comercializados foram o álbum “The Visitors”, do grupo Abba e a gravação de Herbert Von Karaja regendo a Sinfonia dos Alpes, de Richard Strauss. Em 1985, o álbum “Brothers In Arms”, do grupo Dire Straits, atingiu pela primeira vez na história a marca de 1 milhão de cópias comercializadas e é, até os dias de hoje, o mais bem sucedido CD no mundo em termos de vendagem. No ano 2000 as vendas de CDs atingiram ao redor de todo o mundo atingiram a marca de 2,455 bilhões de cópias. No ano de 2006,esse número caiu para 1,755 bilhões de cópias vendidas. (The first commercial CDs pressed were The Visitors by Abba and a recording of Herbert von Karajan conducting the Alpine Symphony by Richard Strauss. In 1985 Dire Straits' Brothers In Arms became the first CD to sell more than one million copies. It is still the world's most successful CD album. In 2000 global sales of CD albums peaked at 2.455 billion. In 2006 that figure was down to 1.755 billion.) BBC News. One-Minute World News. Atualizado em 17 de agosto de 2007. http://news.bbc.co.uk/2/hi/technology/6950933.stm. Acesso em 18 de junho de 2014.

201 Ver p. 73.

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Sucedendo o equipamento de audição móvel, o Walkman202, surgido antes da década

de 1980, o Discman203 se tornou a mídia móvel que representou a união de tecnologias digitais de

gravação, reprodução e escuta em movimento.

Mais leve do que o Walkman e processando CDs em lugar de fitas-cassetes, o

Discman permitiu ao ouvinte de música o deslocamento no momento da audição. O aparato

midiático pessoal trouxe uma possibilidade de o ouvinte se desvincular da mídia televisiva, que

requeria a presença quase estática para a apreensão das obras musicais.

É fato que o ouvinte da segunda metade da década de 1980 já conhecia os aparelhos

de reprodução sonora dos automóveis, que também permitiam a audição em movimento. No

entanto, o Walkman e posteriormente o Discman permitiram o deslocamento independente do

ouvinte, para lugares aos quais ele não necessitava do automóvel; o ouvinte se deslocaria

escolhendo para si um repertório próprio, específico, que, à altura, ainda era necessariamente

ligado à programação das rádios ou ao espectro de músicas contidas num CD produzido e

lançado por uma gravadora. Ainda não se configurava a completa independência midiática do

ouvinte. Contudo, era aquele o primeiro passo para a sua “revolução individual no modo de ouvir

música” e esta revolução se apresentava “em forma de movimento”. Era o embrião da

consolidação de um “sistema de resposta social” eficiente e decisivo no embate travado entre as

táticas dos consumidore de música e as estratégias mercadológico-midiáticas dos produtores e

veiculadores de música.

O ouvinte brasileiro adentrou a década de 1990 convivendo com a possibilidade de se

deslocar ouvindo música reproduzida numa mídia digital (que proporcionava uma sonoridade

desprovida de ruídos em detrimento da fidelidade a todas as frequências sonoras contidas na 202 “O clássico toca-fitas, desenvolvido pela multinacional japonesa Sony, se tornou febre na década de 1980 e conquistou o mundo todo. A tecnologia foi lançada comercialmente no dia 1º de julho de 1979, e o nome original da marca era Soundabout”. ZAMBARDA, Pedro. Walkman faz 35 anos; veja como a maneira de ouvir música evoluiu. Atualizado em 7 de julho de 2014. http://www.techtudo.com.br/noticias/noticia/2014/07/walkman-faz-35-anos-veja-como-maneira-de-ouvir-musica-evoluiu.html. Acesso em 12 de julho de 2014.

203 “A fita cassete dominou os anos 1980, mas foi perdendo, aos poucos, seu espaço para os CDs, na década de 1990. A Sony, visualizando o futuro, se antecipou e lançou o D-50 em 1984. Esse aparelho ganhou maior popularidade com o nome de Discman” (Idem).

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execução), gravada em processo também digital (que abria a músicos e intérpretes as

possibilidades de esmero técnico proporcionado por equipamentos dos estúdios de som).

A gravação de áudio multipista (com vários canais simultâneos) em HD através dos programas de computador só começou a ser levada a sério pelo mercado na virada para os anos 90. Os pioneiros foram o computador Mackintosh e o programa ProTools. A gravação profissional de áudio em PCs só se popularizou a partir do Windows 95, com a imigração do Cubase e do Logic e a transmutação do sequenciador Cakewalk Professional no gravador Cakewalk Pro Audio, hoje chamado Sonar (IZECKSOHN, 2004, p.34).

A performance áudio-visual e a audição estática Também na década de 1990 despontou a mídia digital que armazenava áudio e vídeo,

o DVD: “O resultado DVD 1.5 foi anunciado ao público em 1995 e terminado em setembro de

1996” (CABELLO; MARTINEZ; JUNQUERA, 2012, p. 6).

O consumidor musical, há mais de uma década acostumado à pureza de reprodução

de áudio do CD poderia obter um produto que trazia também as imagens dos executantes de

música em performances áudio-visuais.

A mais importante diferença entre os CD e DVD está na capacidade de armazenamento dessas mídias. No DVD, há uma maior densidade no armazenamento de dados, além do que ele deixa um menor espaço de sua área útil sem dados e ainda proporciona o armazenamento multi-camadas (CABELLO; MARTINEZ; JUNQUERA, 2012, p. 8).

Pelo final da década de 1990, os estúdios contavam com equipamentos digitais de alta

capacidade, que emprestavam às execuções possibilidades de aperfeiçoamento, tais como

afinação de notas pouco precisas (aproximando notas distantes até um tom – nove comas – umas

das outras204), compressão de sons emitidos com maior volume do que a cápsula do microfone

204 A distância musical diatônica entre uma nota e sua subsequente (entre uma nota DÓ e uma nota RÉ, por exemplo), denominada distância de 1 Tom, encontra em medições precisas de Hertz, outros nove sons intermediários, um deles a nota que delimita a distância média entre as notas (o DÓ SUSTENIDO ou RÉ BEMOL); cada um dos nove pequenos intervalos é denominado coma.

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pode absorver (evitando, assim, o clip sonoro205), equalização de frequências (que permite

encontrar o equilíbrio entre as frequências graves, médias e agudas de uma emissão sonora),

redução de ruídos de captação (diminuindo as interferências não-musicais das execuções tais

como o deslizar dos dedos do violonista pelo espelho do braço do violão, respiração do

instrumentista de sopro, resvalar de baquetas do baterista nos aros dos elementos percussivo de

seu instrumento), masterização (a valorizar as frequências da sonoridade geral, concebida após a

fase da mixagem sonora, de modo a prever o ambiente no qua se dará a apreensão sonora e visual

do produto final.

No final da década de 1990, os plug-ins ou programas acessórios para processar o áudio encontraram computadores com velocidade suficiente para rodar uma boa quantidade simultânea deles. Foi a senha para a popularização das mixagens virtuais. Dezenas de canais de áudio podem ser mixados com ótimos efeitos, compressores, equalizadores paramétricos, auto-afinação de vozes, redutores de ruídos, modeladores de imagem estéreo ou surround (IZECKSOHN, 2004, p.37).

O DVD conheceria ainda a evolução midiática do surgimento da tecnologia de

gravação e prensagem Blu-ray, pelo início da primeira década do século XXI. O aparato

midiático requer implementos mais sofisticados do que os utilizados no DVD, tanto no que tange

à tecnologia de gravação, quanto no âmbito da prensagem e da reprodução áudio-visual do

produto.

O Blu-ray, que obteve o seu nome a partir da cor azul de seu raio laser ("blue ray" em inglês significa "raio azul"), é um formato de disco óptico da nova geração de 12 cm de diâmetro (como o CD e o DVD) para vídeos de alta definição e armazenamento de dados de alta densidade. É o sucessor do DVD e capaz de armazenar filmes até 1080p Full HD de até 4 horas sem perdas. Requer, obviamente, uma TV de alta definição (Plasma ou LCD) para exibir todo seu potencial e justificar a troca do DVD (CABELLO; MARTINEZ; JUNQUERA, 2012, p. 9).

205 Ao emitir uma vibração maior do que aquela suportada pela cápsula de captação sonora do microfone, a onda sonora extrapola sua dimensão e o som produzido não é catado integralmente, sequer é captado fielmente, provocando o efeito conhecido comumente como “estouro”, denominado “clip”.

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A Internet e a proliferação de plataformas midiáticas de acesso e compartilhamento de músicas – a hipermidiatização da música e a consolidação “sistema de resposta social” do ouvinte independente da mídia televisiva

Contudo, do ponto de vista do deslocamento do consumidor musical no momento da

audição, a mais profunda e revolucionária gama de possibilidades midiáticas surgiu por conta da

popularização da Internet e dos Sites de compartilhamento de músicas convertidas em arquivos

de dados de áudio comprimidos, a tecnologia MP3.

No primeiro momento, pelo final da década de 1990 e princípio da primeira década

dos anos 2000, Sites que permitiam ao consumidor “baixar” gratuitamente as músicas de sua

preferência e compartilhar tal repertório com sua rede de amigos, causaram um incômodo

mercadológico que abalou gravadoras pelo mundo todo.

O consumidor, à distância de um acesso, não mais necessitava adquirir o CD ou o

DVD de seu artista favorito, tampouco carregar consigo no produto adquirido as canções que

menos apreciava; ao contrário, baixava somente as canções que a ele despertavam maior interesse

e compunha seu repertório de modo mais amplo e variado, pois podia obter gratuitamente suas

canções favoritas de outros artistas.

Outro surto, e de todos o mais literalmente revolucionário, que ocorreu no período foi o advento do áudio “líquido”, representado pelos arquivos de áudio comprimidos, como o MP3. A prática de baixar arquivos musicais da internet passou a ser uma das atividades mais comuns (e polêmicas) da rede. A conseqüência de tanta avidez por música, aliada à inabilidade da indústria em lidar com mudanças tão profundas, fez gerar uma nova e poderosa ferramenta tecnológica: o P2P (peer to peer). O ato de trocar arquivos musicais gratuitamente virou manchete diária, talvez o assunto mais comentado pela imprensa mundial, durante a virada do milênio. Enquanto as empresas eletrônicas da Nasdaq foram falindo em série como dominó no estouro da “bolha” da internet, o Napster, respeitando a cultura de gratuidade da comunidade internauta, cresceu até aterrorizar a grande indústria fonográfica. Hoje, dezenas de milhões de usuários se espalharam por centenas de ferramentas sucedâneas, como o Kazaa. E as gravadoras, ainda tentando inibir a prática em vez de torná-la lucrativa, nunca mais se encontraram com o mercado (IZECKSOHN, 2004, p.37).

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Logo em seguida, pelos primeiros anos da primeira década do século XXI, o acesso

do consumidor de música ao repertório de sua escolha tornou-se ainda mais amplo, com a

possibilidade de conversão de vídeos disponibilizados no Site Youtube para arquivos de áudio no

formato digital MP3.

O ouvinte tinha a prerrogativa de assistir ao vídeo em seu computador pessoal, baixar

o vídeo, convertê-lo em arquivo de áudio e, finalmente, deslocar-se com aquele arquivo

armazenado numa mídia móvel, fosse ela um aparelho de reprodução de MP3, um Ipod, um Ipad,

ou mesmo um aparelho de telefonia celular.

O acesso quase ilimitado do ouvinte ao repertório de música mundial espelhava, no

polo da estética, uma espécie de “democratização” que ocorria no cerne do polo da poética: “Em

fins do século XX muitos músicos amadores conseguiam adquirir um pacote de US$ 500 com

hardware e software de gravação digital multipista para fazer gravações com qualidade

profissional em seus quartos” (PINTO, 2012, p.4). Era o momento histórico da consolidação de

um “sistema de resposta social” eficiente e decisivo no embate travado entre as táticas dos

consumidore de música e as estratégias mercadológico-midiáticas dos produtores e veiculadores

de música.

Mais importante do que imaginar qual fato deflagrou o movimento de democratização

do mercado musical é compreender que, a partir dos anos 2000, de um lado os músicos,

intérpretes e compositores conheciam, com o advento dos hardwares e softwares de gravação

musical, a possibilidade de baratear sobremaneira a produção musical, como indica o pesquisador

norte-americano Andre Millard.

Os músicos que costumavam usar os gravadores de rolo ou as unidades baratas de fita cassete (as quais usualmente continham mesas de mixagem) para fazer gravações de demonstração nos anos 1980 agora tinham máquinas poderosas que se utilizavam da mesma tecnologia das profissionais” (MILLARD, 2005, p. 383).

A partir do surgimento dos Sites de compartilhamento de músicas e do Youtube, o

polo da produção de um vasto repertório musical, que prescindia de estúdios e gravadoras,

também podia abrir mão dos tradicionais veículos de comunicação, notadamente o Rádio e a

mídia televisiva, para se tornarem conhecidas. A música popular mundial se democratizava no

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polo da poética: “A estação de trabalho de áudio digital foi a tecnologia que democratizou a

música popular” (MILLARD, 2005, p. 383).

De outro lado, no polo da estética, a democratização da música popular mundial deu-

se não apenas pela possibilidade de acesso e compartilhamento de repertórios personalizados,

mas inclusive pela própria característica das mídias de reprodução (e consequente apreensão)

musical.

Se o ouvinte de música, em deslocamento munido de seu aparato midiático-

tecnológico de reprodução musical, ou estático defronte ao seu computador pessoal, tem a

audição musical (e consequente apreensão musical) atrelada a um equipamento de reprodução

cuja característica principal dista sobremaneira da fidelidade de emissão de frequências, estas

também não precisariam necessariamente constar na gravação do repertorio que será apreendido.

Se o ouvinte apreenderá as canções desde um fone de ouvido conectado a uma mídia móvel,

cujos recursos de emissão sonora são restritos a estritas faixas de frequências, a gravação das

canções destinadas a tal espécie de público não necessita de equipamentos de captação, mixagem

e masterização exclusivos de grandes conglomerados de produção musical; a “gravação caseira”

é suficientemente elaborada do ponto de vista técnico-tecnológico para se adequar à “reprodução

individualizada da mídia móvel”.

Seja o ponto de partida desse movimento o polo da poética (os músicos, intérpretes e

compositores, satisfeitos com a possibilidade de registro sonoro de suas obras, que optaram pela

simplicidade de produção e veiculação das canções e arriscaram-se na empreitada de exposição

de peças musicais gravadas com limitados recursos técnicos-tecnológicos), seja o polo da estética

(os ouvintes, por conta de seus equipamentos móveis de reprodução musical, passaram a exigir

menor qualidade técnica-tecnológica de reprodução e receberam de modo adequado a seus

aparelhos a produção musical gravada com as limitações oriundas do polo da poética), fato

notável é que a democratização mencionada por Millard alterou de modo contundente a ordem

pré-estabelecida entre mercado, mídia e música.

O mercado musical, em certa medida, viu deslocar-se o eixo produção – exposição

midiática – consumo musical. O polo da produção não mais estava restrito ao universo das

gravadoras, a instância da exposição midiática podia prescindir da mídia radiofônica e da mídia

televisiva, o polo do consumo musical não mais estava ligado à programação das emissoras de

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rádio ou televisão ou mesmo ao produto comercializável (CD ou DVD) mas, sim, ao bem cultural

disponível para o acesso, armazenamento, compartilhamento e deslocamento no instante da

audição.

Os novos hábitos de escuta e a revolução do movimento configurando o sistema de resposta social como a tática que burla as estratégias midiático-mercadológicas – as primeiras décadas do século XXI

Munido de diveros aparatos tecnológicos que permitem a aquisição gratuita de uma

farta gama de músicas, que possibilitam a configuração de repertórios musicais personalizados e

a audição em movimento, o consumidor de música, a partir do final da década de 1990 e ao longo

das duas primeiras décadas do século XXI, enfim pode encampar aquela a que o pensamento de

Laan Mendes de Barros indicou como “a subversão da ordem institucionalizada”, que “se dá na

forma de movimento”, como já mencionado neste trabalho206.

Não mais restrito a um ambiente fixo, a veiculações midiáticas específicas, o

consumidor de música estabeleceu com precisão sua “tática”207 consuetudinária em resposta à

“estratégia”208 estabelecida pelos procedimentos midiáticos-mercadológicos concebidos e

concretizados ao longo de, ao menos, três décadas – as décadas que findaram o contexto social do

século XX.

As pesquisadoras Lívia Barbosa, Letícia Veloso e Veranise Dubeux, em valiosa

pesquisa realizada em duas etapas (a primeira de cunho quantitativo, seguida da pesquisa de

206 Ver p. 73.

207 O termo é utilizado aqui em referência ao conceito do pensador francês Michel De Certeau aos “procedimentos de natureza consuetudinária”, que emprestam ao consumidor de música “possibilidades de burlar” a “racionalização estratégica de gravadoras nacionais, multinacionais, emissoras de televisão, divulgadores, programadores de rádio, apresentadores de programas, dentre outros elementos da teia de produção, programação e veiculação homogêneas e de intenção massificantes”. Ver p. 44 do presente trabalho.

208 Ver também p. 57.

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cunho qualitativo) no ano de 2008209, puderam aferir as “principais vantagens” apontadas pelos

jovens entrevistados no que tange ao cenário midiático consolidado com a chegada e a

consequente popularização da internet permitindo o acesso ao repertório escolhido, armazenado e

compartilhado pelo ouvinte de música brasileiro:

“(1) a variedade de músicas disponíveis, (2) o baixo custo (já que uma percentagem muito pequena (somente 8,7%) paga pelo download), (3) o fato de que já se está sempre conectado à Internet, o que permite que se baixe música enquanto se realiza outras atividades, e (4) a facilidade de uso. Uma rede de práticas interligadas, que em si mesmas têm objetivos diferentes, acaba por se reforçar mutuamente (BARBOSA; VELOSO; DUBEUX, 2012, pp. 42-43).

As quatro principais vantagens apontadas pela amostra de pesquisa contida no

universo dos jovens entrevistados distanciam o hábito de ouvir música do ambiente fixo onde se

encontraria a mídia televisiva, estática na sala da casa ou mesmo no quarto dos jovens que

compõem a pesquisa. Na programação da televisão, dificilmente o ouvinte de música encontraria

variedade de repertório, possibilidade de armazenar tal repertório quase gratuitamente e de fazê-

lo enquanto realiza outra atividade na mesma plataforma em que já está a trabalhar ou estudar ou

se divertir.

A facilidade de acesso ao repertóiro de sua própria escolha, disponível na plataforma

digital, aproxima naturalmente o ouvinte do universo de apreensão digital, ainda que este se

apresente com recursos de reprodução sonora menos amplos do que os encontrados em outras

flataformas: “Quando pedimos aos jovens brasileiros que indicassem quais os aparelhos que

utilizam para ouvir música, eles apresentaram, novamente, uma grande multiplicidade de

209 Foram entrevistados “jovens entre 16 e 29 anos de idade, moradores da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, de São Paulo e Porto Alegre [...] Mais especificamente, enfocamos como jovens de diferentes formações e classes sociais se relacionam com a música e como a consomenm, e qual o papel que atribuem à música em suas vidas cotidianas. Na primeira etapa, quantitativa, aplicamos 1080 questionários entre Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, bem como 218 questionários adicionais somente na Região Metropolitana do Rio de Janeiro; ambos abrangiam amostras aleatórias de jovens de todas as faixas de renda. Já na etapa qualitativa, realizamos grupos de discussão e entrevistas em profundidade com 44 jovens de idades entre 16 e 28 anos, todos da RMRJ. Em amba as etapas, trabalhamos com diferentes faixas de renda e capital intelectual” (BARBOSA; VELOSO; DUBEUX, 2012, pp. 36-37).

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utilização de plataformas, todas direta ou indiretamente relacionadas à digitalidade” (BARBOSA;

VELOSO; DUBEUX, 2012, p. 40)210.

O hábito de escuta, aparentemente, passa a poder prescindir da mídia radiofônica e da

mídia televisiva.

A Música como “trilha sonora do cotidiano” Ao prescindir de um aparato tecnológico fixo, seja ele a mídia radiofônica, seja a

mídia televisiva (notadamente mais “fixa” do que o Rádio, que mesmo no ambiente das casas

permite maior mobilidade por conta de seu peso, tamanho, necessidade de pontos fixos de

eletricidade), o ouvinte também prescinde de um ambiente comum no qual se constitui o hábito

de audição musical. Não mais restrita à sala da casa, emitida pelos alto-falantes de reprodução do

aparelho televisor, a música que se permite ser levada em deslocamento não é uma música ouvida

em grupo, em conjunto; o compartilhamento dos arquivos de áudio com outros ouvintes não se

constitui necessariamente de modo presencial. O ouvinte disponibiliza seu repertório a outros

ouvintes que, distantes do ambiente físico do primeiro ouvinte, podem conhecer, armazenar e re-

compartilhar tal repertório de modo virtual. A digitalização da Música e sua consequente

possibilidade de maior disseminação não implica numa maior socialização do espaço e das

apreensões musicais. A “democratização” do acesso à Música não implica uma “socialização” da

música, tampouco na “sociabilização” dos ouvintes de música.

210 Expostos à pergunta acerca da frequência com que utiliza os mencionados aparelhos de reprodução musical, tendo ccomo alternativas quatro momentos temporais definidos como “nunca”, “raramente”, “frequentemente” e “sempre”, os resultados revelaram os percentuais de cerca de 54% de respostas “frequentemente” e “sempre” para o uso de IPod, 49% para o uso de aparelhos mp3, e significativos 56,5% para o uso de telefone celular como principal aparato tecnológico de audição musical.

A resposta à pergunta: “Como você obtém música?” apontou o ainda mais significativo percentual de 79, 4% de ouvintes que baixam seu próprio repertório da internet (BARBOSA; VELOSO; DUBEUX, 2012, p. 43)

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A portabilidade musical permitida pela digitalização, contudo, não implica uma maior socialização do hábito de se escutar música, pois apesar da portabilidade da mesma, ela abre espaço para uma individualização crescente da escuta musical. Isso porque cada indivíduo possui as “suas” músicas armazenadas em suas várias plataformas, servindo-se delas com facilidade e podendo, portanto, construir suas próprias listas de música (as famosas “playlists”) (BARBOSA; VELOSO; DUBEUX, 2012, p. 44)

Menos “sociabilizado”, o ouvinte de música não tem o compromisso de estabelecer

com a Música um vínculo de comprometimento no que tange aos seus conceitos, suas

influências, suas definições de comportamento mediante as mensagens contidas em seu repertório

musical individualizado.

A Música perderia, assim, naturalmente, parte do caráter que porventura a

configurara como a mais importante manifestação artístico-social das décadas de 1960 e 1970 no

Brasil.

O hábito de ouvir música no local determinado, no horário específico, acompanhado

de pessoas que ali estão em conjunto à espera da apreensão do conteúdo a ser veiculado, no

ambiente social de plena disponibilidade de fruição das mensagens artísticas que provêm do polo

da poética musical, no contexto social de apreensão estética do objeto artístico, decresceu

paulatinamente a partir da chegada e da popularização das novas tecnologias de comunicação,

notadamente da Internet. Tal decréscimo, provindo em parte dessa “hipermidiatização da

música”, alterou de modo significativo a relação produção – apreensão de conteúdos musicais,

polo da poética – polo da estética da canção popular massiva brasileira.

A audição musical à mercê de um aparelho fixo, centrado num ambiente específico

das casas, transformou-se na possibilidade de uma audição cujo repertório está à mercê da mão

do ouvinte em deslocamento, eventualmente imerso em outra atividade, menos atento à

apreensão estética do objeto musical, mais ocupado com outras demandas de seu cotidiano. A

Música, como nomeiam as pesquisadoras Lívia Barbosa, Letícia Veloso e Veranise Dubeux, ora

pode ser vista como uma espécie de “trilha sonora do cotidiano”.

A música está presente em diferentes momentos e atividades e através de diferentes meios físicos. Ela chega aos jovens de diferentes formas, é armazenada em diversos formatos, podendo ser recuperada de maneiras específicas dependendo do uso que dela se irá fazer. Ao mesmo tempo, porém, a

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prática de se ouvir música como atividade-fim perde espaço para a música como participante de uma infinidade de outras atividades corriqueiras. Trata-se, portanto, de uma centralidade secundária, e é daí exatamente que surge a ideia de música como trilha sonora, como sonorização da vida cotidiana, como fundo musical da existência (BARBOSA; VELOSO; DUBEUX, 2012, pp. 31-32).

A Música, definida “como trilha sonora, como sonorização da vida cotidiana, como

fundo musical da existência”, contida em diversos aparatos midiáticos de reprodução sonora, a

Música hipermidiatizada, passa a fazer parte da “paisagem sonora211” das primeiras décadas do

século XXI. Primeiramente como trilha sonora individualizada, em seguida como trilhas sonoras

individualizadas compondo uma ausência de música comum, comun-icada.

É possível aventar-se uma nova espécie de estruturação do cotidiano (ao menos dos

jovens) revelada pela pesquisa; um cotidiano no qual a música está inserida como um dos

elementos constantes das atividades, em igual ou menor proporção de importância em relação a

outros afazeres e interesses.

A presença da música na estruturação do dia a dia dos jovens é um fenômeno novo, na medida em que novas tecnologias permitem que cada momento do dia possa ser preenchido com música. Ouve-se música enquanto se realiza quase todas as atividades cotidianas, diferentemente do que ocorria em outras épocas. Nessas, grupos específicos de jovens reuniam-se para ouvir uma música, compartilhada por todos, a partir de uma base material comum em um momento particular. No presente, contudo, a imagem que surge é a de uma juventude para quem a música é parte integrante da vida cotidiana (BARBOSA; VELOSO; DUBEUX, 2012, p. 31).

Distante do aparato tecnológico físico, disponível à mão do ouvinte em

deslocamento, distante do envolvimento social, da escuta dedicada, em grande medida

“desritualizada”, a Música aos poucos vai deixando de ser o produto poético a ser apreendido

pelo polo da estética e vai se tornando um entre outros elementos constitutivos do ambiente

social, do cotidiano das pessoas (ao menos dos jovens que fizeram parte da pesquisa):

“descobrimos nas entrevistas que para cada determinada atividade há um tipo de música

211 A expressão é tomada aqui em consonância com os pensamentos de Heloísa Valente e Monica Rebecca Nunes, Murray Schafer, Simone Pereira de Sá, Emily Thompson, cujos conceitos constam do Referencial Teórico e já foram trazidos anteriormente neste trabalho. Ver a partir da p. 69.

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específico. Existe a ‘música para malhar’, a ‘música para relaxar’, a ‘música para ouvir com

amigos’, ou namorar, ou andar de ônibus, carro ou metrô” (BARBOSA; VELOSO; DUBEUX,

2012, pp. 44-45)

O novo cenário midiático-musical engendrado pela transformação dos hábitos de

escuta teria mudado, inevitavelmente, os procedimentos mercadológicos-midiáticos de produção

e veiculação de música. As táticas do consumidor requerem novas e distintas estratégias do

mercado e da mídia.

As estratégias de reação da mídia televisiva e do mercado fonográfico – a busca pela Nova Voz, pela Nova Banda

No início do século XXI, o telespectador brasileiro foi apresentado a uma espécie de

programação na qual pessoas comuns, do convívio social, eram expostas diariamente em

episódios que variavam entre 10 e 45 minutos, apresentando imagens ao vivo e um resumo dos

principais acontecimentos do dia numa casa onde habitavam durante um período do verão212: o

“Big Brother Brasil 01” foi ao ar entre 29 de janeiro e 02 de abril do ano de2002.

O formato do programa, denominado reality show, reproduzia a versão original

exibida no ano de 1999 na Holanda (criada por John de Mol) e previa a participação do

telespectador nos processos de eliminação de concorrentes e de definição do vencedor da

competição. 212 Diariamente, ao longo da programação, a jornalista Renata Capucci entrava no ar, ao vivo, com o boletim De Olho no Big Brother, que mostrava flashes do convívio na casa em que se encontravam aos competidores. Já em sintonia com a nova realidade de apreensão de conteúdos midiáticos digitais pela internet, a TV Globo lançou o Site oficial do programa e o público podia ter acesso aos acontecimentos do Big Brother Brasil pelo site oficial do programa, lançado pela Globo.com. Uma equipe de jornalistas produzia notícias em tempo real, galerias de fotos e vídeos com os melhores momentos dos participantes no dia. Os internautas podiam mandar recados para seus concorrentes favoritos através da seção Fale com o BBB e ainda comentavam sobre os assuntos motivados pela convivência num Fórum aos moldes de ferramente chat.

Outra maneira de se acompanhar o jogo era através do Pay Per View, canal pago que transmitia imagens das câmeras da casa durante 24 horas por dia. O PPV era disponibilizado pelos canais a cabo Net e Sky e estaria presente em todas as edições do programa.

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Em verdade, o sucesso do programa exibido pela TV Globo no ano de 2002 apenas

ratificava o sucesso do formato reality show, pois no dia 16 de dezembro do ano anterior213 foi

exibido pelo SBT o episódio final do programa “Casa dos Artistas”, concebido em moldes

similares, porém expondo artistas conhecidos do público ao convívio confinado, que também era

exibido diariamente.

O sucesso do formato não se restringia ao âmbito midiático brasileiro e a produção de

programas similares licenciados por seu idealizador espocavam por diversas programações de

emissoras de televisão de todo o mundo.

Tanto assim, que no dia 11 de junho de 2002 foi ao ar214 pela primeira vez uma

espécie de reality show musical, o “American Idol”.

O programa se configorou como o programa musical com a maior publicidade

nos Estados Unidos da América do Norte e chegou a ser descrito por executivos de emissoras

rivais como "o show mais impactante da história da televisão” (CARTER, 2007. The New York

Times. Acesso em 25 de junho de 2014).

Com formato similar ao do programa American Idol, o SBT veiculou no Brasil o

programa Popstars215.

Mais de 30 mil jovens do sexo feminino, provindas de todo o Brasil, participaram de

testes de canto e dança. As 35 primeiras selecionadas participaram de um workshop onde

receberam visitas e ensinamentos das cantoras de renome nacional Daniela Mercury e Fernanda

Abreu, além do cantor Samuel Rosa, do grupo de reaggae Skank. 12 jovens foram escolhidas por

um júri para a 3ª fase do programa. Os jurados, então, selecionaram oito candidatas, que foram

213 O programa foi exibido entre 28 de outubro e 16 de dezembro de 2001.

214 O programa foi exibido originalmente pela rede de televisão FOX, nos EUA, e transmitido pelo canal Sony Entertainment Television, no Brasil.

215 A rigor, o programa exibido pelo SBT pela primeira vez no dia 28 de abril de 2002 (antes do programa de estreia de American Idol na FOX norte-americana) era uma versão do formato neo-zeolandês também denominado Popstars, criado originalmente para contar a trajetória da formação de um grupo pop feminino. Produzido em mais de 30 países, o programa (e seu respectivo formato) fez grande sucesso a partir do final da década de 1990.

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confinadas em convívio mútuo na “Casa Pop”. O público assistia aos programas exibidos pela

emissora e elegeu as cinco jovens cantoras/dançarinas216 que formariam a Banda Popstars.

Batizadas com o nome Rouge, o grupo musical lançou quatro álbuns CDs e dois DVDs,

vendendo mais de 6 milhões de cópias217 em todo o Brasil, antes de encerrar suas atividades, no

final do ano de 2005.

Concomitantemente, a rigor quase exatamente no mesmo dia, a TV Globo lançou seu

reality show musical, denominado Fama.

O programa, cuja estreia aconteceu no dia 27 de junho de 2002, um dia antes da

estreia de Popstar, no SBT, era exibido de segunda-feira a sábado, nos horários das 16H00,

16H30 e 17H30.

O sucesso de Fama foi tamanho, que, no mesmo dia da final, 6 de julho de 2002, foi

lançado o Fama Bis, segunda edição do programa, exibido nos mesmos dias, horários e moldes

de seu predecessor, até o dia 17 de agosto daquele mesmo ano de 2002.

O formato reality show de música, então, estava consolidado como produto midiático

de grande sucesso e penetração social (afinal, mais de 30 mil jovens participaram da primeira

rodade de testes).

No entanto, se o reality show de música era, à altura, uma novidade no que diz

respeito ao formato do programa de conteúdo musical, o cerne conceitual do programa repetia o

programa de calouros e, sobretudo, buscava-se encontrar uma estrela musical, um intérprete,

fosse ele do sexo feminino ou masculino. O formato do programa indicava, após eliminatórias e

semifinais, um vencedor, que não era um compositor que porventura apresentaria ao mercado

musical brasileiro canções marcadas pela característica da busca pela estruturação de um discurso

pleno no uso dos recursos de linguagem musical e literária, que encorparia o repertório de

criações da música popular brasileira; ao contrário, o formato do programa intentava encontrar

um intérprete, que se esmerava em dar novas cores interpretativas a canções já consagradas do

repertório musical brasileiro.

216 Karin Pereira (Karin Hils), Patricia Lissa (Lissah Martins), Fantine Thó, Luciana Andrade e Aline Silva (Aline Wirley).

217 Dados ABPD.

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Ilustra o exposto acima o fato de que, na terceira edição do programa Fama, da TV

Globo, que foi exibido entre os dias 5 de junho e 7 de agosto do ano de 2004218, as apresentações

dos candidatos, exibidas nas tardes dos sábados, tinham temas específicos. Tais temas

proporcionavam o repertório de canções que cada um dos candidatos deveria interpretar. Os

temas foram: “canções de novelas”, “músicas de Roberto Carlos”, “músicas de Chico Buarque” e

“canções apresentadas nos Festivais da Música Brasileira”.

A própria fórmula do programa contribuía para aprofundar o cenário que já se

configurava desde a década de 1980, no qual a mídia televisiva brasileira não produzia nenhuma

espécie de programa que propiciasse o surgimento de uma geração de compositores de música

popular brasileira que contribuíssem com o desenvolvimento da linguagem literário-musical, que

fossem comprometidos com o aprimoramento do discurso da canção massiva brasileira.

De um lado, a fórmula dos reality shows de música intentava revelar intérpretes a

despeito de revelar compositores; de outro, justamente por conta da ausência de uma geração de

grandes compositores cujas obras tivessem a devida longevidade, as canções interpretadas nos

programas eram aquelas pertencentes a uma Era ou a compositores surgidos numa Era na qual a

mídia televisiva brasileira produzia programas (sazonais e pertencentes às suas grades fixas)

cujas fórmulas propiciavam o surgimento de compositores de música popular brasileira cujo

acuro composicional-estrutural era comprometido com o aprimoramento do discurso da canção

massiva brasileira.

Vale notar que o regulamento do programa restringia a participação dos concorrentes

aos candidatos que contassem entre 18 e 30 anos de idade. Assim, se o surgimento de gerações de

grandes compositores de música popular brasileira cessara a partir da década de 1980, os próprios

jovens intérpretes concorrentes nos programas produzidos a partir do ano de 2002 não tinham

experienciado contemporaneamente o surgimento de uma geração de grandes compositores; eles

estavam, em fato, inseridos num contexto histórico-musical no qual o repertório da canção

massiva brasileira que iriam interpretar era anterior aos seus respectivos nascimentos. A canção

massiva brasileira que propiciava os temas dos programas era mais antiga do que os próprios

concorrentes.

218 No ano de 2003 a emissora não exibiu o programa.

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Também as apresentações especiais dos concorrentes da quarta edição do programa

Fama, exibido entre 16 de julho e 17 de setembro de 2005, eram temáticas: “música dos anos

80”, “Tropicália”, “Top hits” e “Bossa Nova” compuseram o repertório apresentado a cada

sábado daquele período.

Aquela foi a última edição de Fama. O programa não mais foi produzido pela

emissora. O sucesso da primeira temporada, exibida em 2002, não se repetiu nas outras três

versões do programa219. Também não se repetiu o sucesso de vendas dos discos dos artistas

vencedores, lançados após a vitória no programa220. Mesmo a apresentação de intérpretes

provindos do reality show musical em outros programas da emissora, como

Fantástico e Domingão do Faustão, manteve os índices de audiência da primeira temporada,

tampouco a inserção de canções interpretadas pelos concorrentes nas trlhas sonoras das novelas

da emissora221.

219 Segundo dados do Painel Nacional de Televisão, a primeira edição do reality show aumentou em 17% a média de ibope do horário em que era exibido, aos sábados, logo após o programa Caldeirão do Huck.

220 À época do lançamento do CD da cantora Vanessa Jackson, vencedora da primeira edição do programa, a canção “De Volta pra Mim” ficou entre as dez mais tocadas nas rádios brasileiras e o disco teve vendagem acima das 100 mil cópias. Dados ABPD.

221 O concorrente Ivo Pessoa gravou “Uma Vez Mais”, de Blanch e Felipe Loeffler, incluída na novela Alma Gêmea, produzida e exibida no ano de 2005; “Além do Olhar”, de Paulo Henrique e Paulinho Soledade, música de abertura da novela O Profeta, de 2006; “Teletema”, de Antônio Adolfo e Tibério Gaspar, inclusa na novela Sete Pecados, de 2007; “Outra Vez”, de Isolda, sucesso na voz de Roberto Carlos, para a novela Cobras & Lagartos, em 2006; e “A Deusa da Minha Rua”, de Newton Teixeira e Jorge Faraj, para a trilha sonora da novela Desejo Proibido, de 2007.

A concorrente Marina Elali gravou a música “Você”, de Roberto e Erasmo Carlos, para a trilha sonora da novela América, de 2005; “One Last Cry”, de Brian McNight, Brandon Barnes e Melanie Barnes, para a novela Páginas da Vida, de 2006; e “Eu Vou Seguir”, também de Roberto e Erasmo Carlos para a novela Sete Pecados, de 2007.

A dupla concorrente Cídia e Dan gravaram “Pra Você Eu Digo Sim, versão de Rita Lee para a composição If I Fell, de John Lennon e Paul McCartney”, para a trilha sonora da novela Como Uma Onda, de 2005; “Eterno Amor”, música dos próprios intérpretes para a novela Alma Gêmea, de 2005; “Close to You”, de Burt Bacharach e Hal David, para a novela O Profeta, de 2006; e “I’ve Got You Under my Skin”, de Irvin Berlin, para a novela Eterna Magia, de 2007.

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Ademais, vale ressaltar que as canções interpretadas por concorrentes provindos dos

programas Fama e inseridas nas trilhas sonoras das novelas da TV Globo são, à exceção de duas

delas, todas composições nacionais e internacionais anteriores à década de 1980, em regra

sucessos já consagrados por outros intérpretes (A Deusa da Minha Rua, sucesso na voz de Orlando

Silva) ou intérpretes-compositores (Você, sucesso na voz de seu compositor Roberto Carlos).

O SBT, no ano de 2006, produziu e exibiu seu novo programa reality show de música:

Ídolos. A segunda edição do programa, no ano seguinte, foi a última produzida pela emissora222.

O programa, licenciado pela franqui Idol Franchise, de propriedade de Simon Fuller,

também detentor dos direitos de transmissão e exibição do programa (e de programas similares)

American Idol, migrou para a TV Record, emissora na qual foram realizadas as edições anuais

entre 2008 e 2012223.

O interregno de sete anos sem a produção e a exibição de um programa no formato

reality show de música em sua grade fixa mostrou à TV Globo que, possivelmente, o formato não

estivesse esgotado mas, talvez necessitasse de pequenas alterações para voltar a ser uma das

atrações de sucesso da emissora.

Simultaneamente às apresentações finais de Ídolos na TV Recprd, em 23 de setembro

de 2012, estreava na TV Globo o programa The Voice Brasil.

O programa, cujo formato foi desenvolvido pela empresa holandesa Endemol, a

mesma que criou o reality show Big Brother, contou em sua primeira versão com quatro artistas

de renome nacional (a cantora Claudia Leitte, o compositor e percussionista Carlinhos Brown, o

cantor Daniel e o cantor e compositor Lulu Santos), que formavam o grupo de “técnicos” que

escolhem, sem os ver, os novos talentos vocais do cenário musical brasileiro, treinam-nos e

produzem seus shows.

A dupla concorrente Hugo e Tiago fizeram sucesso com a música “8 Segundos”, de Djalma Dias e Junior Martins, para na trilha da novela América, produzida e exibida no ano de 2005.

222 O cantor Leandro Lopes foi o intérprete vencedor da edição de “ídolos” do ano de 2006 e a cantora Thaeme Mariôto foi a vencedora da edição do ano seguinte.

223 Os intérpretes vencedores dos programas realizados foram, respectivamente: Rafael Barreto (2008), Saulo Roston (2009), Israel Lucero (2010), Henrique Lemes (2011) e Everton Silva (2012).

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De modo semelhante ao procedimento já consolidado da indústria fonográfica em

sintonia com a mídia televisiva, a alteração conceitual na nomenclatura de um movimento

musical sem alterar fundamentalmente o estilo de música produzido, já mencionado neste

trabalho224, também o programa The Voice Brasil mantinha os elementos basilares do formato

reality show musical de seu antecessor, Fama, alterava poucas estruturas e era denominado de

modo distinto, a fazer parecer que a atração na grade de programação era completamente inédita.

A cantora Ellen Oléria venceu a final realizada no dia 16 de dezembro de 2012 e o

cantor Sam Alves foi o vencedor da edição do ano seguinte, finda no dia 26 de dezembro de

2013.

Ao longo das eliminatórias, novamente um traço de repertório perpassava o

programa: as canções executadas, assim como os temas diversos que delimitavam as peças

musicais que seriam interpretadas pelos concorrentes, provinham de épocas e artistas anteriores à

década de 1980, apesar de os “técnicos” dos concorrentes fazerem parte de movimentos

midiáticos-mercadológicos pertencentes à realidade subsequente (a cantora Claudia Leitte

provém do movimento da Axé Music225, o compositor e percussionista Carlinhos Brown surgiu

como estrela da canção popular massiva brasileira na primeira metade da década de 1990, o

cantor Daniel é pretencente ao movimento da moderna Música Sertaneja226 e cantor e compositor

Lulu Santos é um dos nomes do Rock Nacional227).

No ano de 2014, a TV Globo lançou nova atração, no mesmo formato: o programa

Superstar, exibido entre os dias 6 de abril e 6 de julho.

Dedicado a encontrar uma “nova banda” em lugar de uma “nova voz” da música

brasileira, a produção do programa repete o procedimento de alterar poucas estruturas e

denominar a atração de modo distinto, a fazer parecer que a grade de programação foi

incrementada por um programa de natureza completamente nova e distinta das anteriores.

224 Ver p. 398.

225 Ver p. 386.

226 Ver p. 399.

227 Ver p. 357.

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Desta feita, o corpo de jurados é composto pela cantora Ivete Sangalo e pelos

cantores Fábio Jr. e Dinho Ouro Preto, todos pertencentes a movimentos midiáticos-

mercadológicos pertencentes à realidade subsequente à década de 1980. A primeira provém do

movimento da Axé Music228, o segundo consolidou-se no cenário musical brasileiro a partir da

década de 1980 como o cantor romântico que sucederia o cantor e compositor Roberto Carlos, o

terceiro é um dos nomes surgidos a partir do movimento do Rock Nacional229.

No entanto, a própria formatação do programa, que intenta revelar uma nova Banda

para o cenário musical brasileiro, impõe o repertório pertencente aos movimentos musicais

provindos do cenário midiático-mercadológico construído e consolidado a partir da década de

1980, quando as bandas do Rock Nacional, do Forró Eletrônico, do Forró Universitário, da Axé

Music, os grupos do Novo Pagode ou do Pagode Romântico, concretizaram sucessos de

vendagens de discos e delimitaram a produção musical veiculada midiaticamente.

A novidade do programa, portanto, não provém de seu formato, mas de seu

componente tecnológico.

O público definiu o vencedor do programa230 por meio de um aplicativo para

smartphone. Durante a apresentação de cada Banda, o público votava SIM ou NÃO em seu

telefone. O sistema permitia apenas um voto por usuário (era necessário fazer um login por

intermédio das redes sociais). Um painel de LED em volta do palco subiu quando a banda

vencedora atingiu o percentual de votos estabelecidos. Ao final de cada programa, o aplicativo

disponibilizava as músicas apresentadas para serem compradas via download.

A novidade tecnológica, no entanto, não significou uma novidade em termos de

repertório. As bandas eram inseridas no contexto de temas a cada programa, qual ocorria tanto na

produção de Fama quanto na produção do The Voice Brasil.

Executando o repertório das bandas surgidas no movimentos mercadológicos-

midiáticos-musicais posteriores à década de 1980, as bandas concorrentes reverberavam as

228 Ver p. 389.

229 Ver p. 353.

230 A banda Malta foi a vencedora do programa, com 74% dos votos.

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canções de sucesso já consumado, não apresentavam composições novas distintas daquelas já

conhecidas do grande público.

Nem mesmo no contexto de produção musical distante daquele em que poderíamos

inserir os compositores comprometidos com o acuro discursivo proveniente da estruturação

músico-literária ocupada em fazer o mais preciso uso dos recursos da linguagem musical, distante

do contexto daquela a que poderíamos chamar de “linhagem” de compositores comprometidos

com o acuro discursivo musical, o formato do programa permite a formação, o surgimento, de

uma geração de compositores.

O cenário mercadológico-midiático-musical da primeira metade da segunda década do século XXI

As estratégias da mídia televisiva em sintonia com o mercado fonográfico,

aparentemente, não suplantaram as táticas engendradas pelo sistema de resposta social

encampado pelo ouvinte de música.

O atual cenário musical, hipermidiatizado, evidencia que o “ambiente midiático que

queria expor grandes artistas”, mencionado pelo cantor Miltinho, do grupo vocal MPB-4, já

mencionado neste trabalho231, não mais está ligado à mídia televisiva nas primeiras duas décadas

dos anos 2000; ao contrário, a mídia televisiva aberta brasileira, quase de todo desmusicalizada,

veicula e reverbera um repertório de compositores e intérpretes vocais muito distantes daqueles

comprometidos com o padrão estético acurado, e canções estruturadas pelo preciso uso dos

recursos de linguagem literário-musical que pautou parte da programação televisiva nas décadas

de 1960 e 1970.

O pianista Amilton Godoy disseca o cenário midático atual de modo bastante preciso,

excetuando a produção e veiculação de videoclipes, restringindo a análise à ausência de

programas de conteúdo estritamente musical (sejam sazonais, como os Festivais de Música,

sejam pertencentes às grades fixas de programação das emissoras de TV aberta) que se esmeram

em veicular a produção de música popular produzida no Brasil pautada pelo esmero

composicional discursivo. A crítica do pianista se estende até mesmo ao aparato de imagem e 231 Ver p. 272.

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som na reprodução da programação televisiva, que contrapõe ao avanço do desenvolvimento

tecnológico à estagnação e ao retrocesso do elemento discursivo contido no repertório musical.

Nós estamos vivendo numa época hoje, na qual eu tenho de ficar procurando na TV um programa musical que me agrade, mas é tão difícil de encontrar, que me leva a desistir. Não tem um programa! Não tem produção de programa feito nesses canais. Não estou falando de clipe, estou falando de um programa montado, produzido com música brasileira de qualidade. Não tem. Ou tem? Tem aquilo que você vê uma vez e semana que vem já tem outra coisa. Eu não entendo. Com os canais HD, você continua com grande qualidade de imagem, cinco-ponto-não-sei-o-quê, mas o que vem não presta. Falando genericamente, é claro, mas se for agir com seriedade e procurar uma única produção, um único programa, não tem (GODOY, 2013).

O pianista amplia sua análise e faz notar o despreparo e o procedimento das

emissoras de televisão do ponto de vista da gestão de seus próprios recursos humanos, que revela

o descuido com o polo de produção da canção popular massiva brasileira: “As televisões não

contratam nada, não tem uma orquestra contratada, não tem um maestro contratado. Ficam

preparando diversas gerações de garotos para usar como vitrine, mas que não sabem nada de

música” (GODOY, 2013).

O tom crítico no que tange à programação da mídia televisiva brasileira também é

encampado pelo compositor Ivan Lins, que se refere de modo bastante contundente à relação

entre mercado fonográfico e aparato midiático televisivo: “Agora virou o lucro pelo lucro, virou

um mercado só” (LINS, 2013).

Também o compositor Raimundo Fagner menciona o elo entre canal midiático (no

caso específico mencionado, o Rádio) e produção musical: A Elis [Regina] me lançou no

programa do Flávio Cavalcanti, na TV Tupi. Eu já vinha do rádio, de escutar rádio, então eu

queria tocar na rádio, para chegar no grande público (FAGNER, 2013). No entanto, o compositor

assevera a possibilidade de produzir e veicular um repertório que alcance o grande público sem

que, necessariamente, sejam abandonados os recursos de linguagem literário-musical sejam

empobrecidos: “Não perder a qualidade, procurar os versos simples, mas de qualidade, que não

banalize a Música. Acho que foi isso que eu construí com os meus parceiros, a minha história de

fazer com que a minha música chegasse nas pessoas e marcasse (FAGNER, 2013).

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435

Em depoimentos diferentes, em ocasiões distintas, o pianista Amilton Godoy e o

compositor Raimundo Fagner convergem nas observações acerca das contundentes diferenças

entre os momentos midiáticos televisivos das décadas de 1960 e 1970 e o momento midiático

televisivo atual: “Eu gostaria de ver o que aconteceu há muito tempo acontecendo agora e eu não

vejo isso” (GODOY, 2013).

Eu estava lançando um disco, estava o Milton [Nascimento] lançando o dele, estava o Chico [Buarque], estava o Caetano [Veloso], era uma briga boa, e você lá em cima; era uma disputa de alta qualidade, de uma coisa efervescente, de um momento cultural muito rico. Hoje não dá nem vontade de estar na parada. Você vai estar do lado de quem? (FAGNER, 2013).

Amilton Godoy arremata a argumentação acerca do procedimento da mídia televisiva

brasileira adotado a partir da década de 1980 e aponta para uma consequência muito mais ampla

do que aquela que atinge o âmbito estritamente musical. Fazendo uso do conceito filosófico do

Ser platônico e valendo-se da metáfora de oposição entre as filosofias das sociedades das

principais cidades da antiguidade grega, o pianista indica a consequência nefanda ocorrida na

capacidade de apreensão do polo da estética, do ouvinte de música brasileiro: “Você só da

“Esparta” para esses caras e não dá “Atenas”, você não sensibiliza o ser. A música é a arte que

mais sensibiliza o ser humano; às vezes você se comove só com o acorde. Se não tem o equilíbrio

entre melodia, harmonia e ritmo, você desarticula o ser” (GODOY, 2013).

O procedimento estratégico da mídia televisiva aberta brasileira, no entanto, apesar de

se manter qual se consolidou nas mais recentes três décadas, como aponta o compositor Dori

Caymmi ao referir-se especificamente ao contexto da veiculação do repertório da música baiana:

“Eu não sou fã do que acontece na Bahia atualmente. Eu sei que tem muita coisa boa lá que não

aparece mais porque não é comercializável” (CAYMMI, 2013), não domina as táticas de

apreensão permitidas e disponibilizadas pelas mídias digitais (sobretudo as mídias digitais

móveis) e pelos aparatos tecnológicos de acesso, armazenamento e compartilhamento de

repertórios musicais no polo da estética.

O compositor Ivan Lins preconiza a tática do polo da estética como a possibilidade de

procedimento a sobrepor as estratégias do polo de veiculação da poética: “Eu acredito nas novas

gerações. Quando se tem uma escolha, existe um caminho para seguir. Basta um empurrãozinho.

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Tem muita gente nova hoje, principalmente na internet, produzindo coisas boas. É o grande

exemplo do que pode acontecer no futuro (LINS, 2013).

O compositor Raimundo Fagner, por sua feita, não preconiza, mas traça um paralelo

com a situação indicada por Ivan Lins. Avaliando o momento mercadológico-midiático-musical

brasileiro e tentando apontar o futuro, o compositor amplia a análise para os âmbitos histórico,

social e político do Brasil, estendendo-se ao âmbito da cultura:

Eu ainda tenho esperança no sentido de que o Brasil esteja acordando para a sua situação política, para a sua condição, para a cultura de um modo geral. Isso tudo é um momento de um país desgovernado, um país em desenvolvimento. Acho que a gente tem uma bagagem cultural muito forte que não desaparece com facilidade, tem muito o que se reaproveitar. Espero que as gerações que estão chegando vivam uma música brasileira menos excessivamente comercial, excessivamente descartável (FAGNER, 2013).

O segmento de visão: crítico no conteúdo, saudosista na forma Como apontamos no princípio desse capítulo, o estudo do percurso histórico da mídia

televisiva e da canção popular massiva brasileira, suas relações intrínsecas, seu envolvimento

com o mercado fonográfico, denota um segmento de visão. Crítico no conteúdo, justamente por

conta de as personagens entrevistadas fazerem parte (como coadjuvantes) de um contexto

musical atual, possivelmente empobrecido do ponto de vista discursivo em relação ao contexto

das décadas de 1960 e 1970, dos qual também fizeram parte (daquela feita, como protagonistas);

por vezes saudosista na forma, possivelmente (na instância individual) por conta de o contexto

midiático-musical atual não permitir o protagonismo da corrente poético-estética da qual os

entrevistados fazem parte, possivelmente (numa instância mais ampla) por conta de o tempo

passado frequentemente soar mais melódico, mais harmônico, mais musical, do que o tempo

presente.

O recorte de pesquisa que se estabeleceu quando da intenção do pesquisador em ouvir

as personagens protagonistas da cena midiático-musical do início do tempo histórico aqui

abordado, naturalmente encaminhou a abordagem crítica que se delineou ao longo do capítulo.

No entanto, é necessário ressaltar que os depoimentos de personagens da importância

de Zuza Homem de Mello, Dori Caymmi, Miltinho e Aquiles (protagonistas do contexto histórico

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da década de 1960, na qualidade de produtor musical, compositor e cantores respectivamente),

Ivan Lins e Raimundo Fagner (protagonistas do contexto histórico da década de 1970, na

qualidade de cantores e compositores), Cesar Camargo Mariano, Eduardo Gudin, Dalmo

Medeiros e Nei Lopes (protagonistas do contexto histórico da década de 1980, na qualidade de

arranjador, compositor, cantor e produtor musical, respectivamente) para a mídia, para a música,

para a cultura brasileira, enfim, compõem uma visão assaz profunda e, se não a única tampouco a

verdadeira, também relevante tanto pela descrição vivenciada do período histórico percorrido

quanto pela precisa análise e consequente interpretação coerente dos fatos ocorridos, dos

movimentos midiáticos e dos procedimentos mercadológicos que se estabeleceram ao longo das

mais recentes décadas.

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Conclusão

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Conclusão

Após os extensos percursos analítico e histórico-interpretativo, vale retomar, na

conclusão deste trabalho, o referencial teórico que embasou a presente pesquisa.

Naquele ora distante início de texto, afirmávamos que a argumentação central da

pesquisa teria como base a afirmação de que o fenômeno aqui nomeado “desmusicalização da

mídia televisiva” revelaria a perda de espaço, o empobrecimento do discurso e o declínio de

importância da linguagem musical na TV aberta no Brasil nas mais recentes décadas, na

comparação entre a cena midiático-musical das décadas de 1960 e 1970 e o cenário da primeira

metade da segunda década do século XXI.

Principiamos, então, pela discussão estética; afinal, definíamos desde aquele início

que o termo “desmusicalização” não se referia à presença ou ausência de música nas grades de

programação das emissoras da mídia televisiva aberta, mas sim à escassa presença de um

repertório musical de acuro poético, e consequente padrão estético de excelência, nas mesmas

grades de programação, sobretudo quando em comparação ao contexto midiático das décadas de

1960 e 1970, quando a Televisão reservava espaço tanto nas grades de programação fixa quanto

em produções especiais sazonais para essa espécie de “música de qualidade”.

Nossa discussão estética, que visava a construir o estofo conceitual filosófico

necessário para apontarmos quais seriam os elementos que permitiriam definir determinada

produção musical como sendo aquela cujo acuro poético emprestava à obra um elevado padrão

estético, principiava pelo conceito de Belo Essencial, proposto por Platão e sustentado por

Aristóteles. O primeiro delimitava a existência do Belo Essencial no Mundo das Ideias; o

segundo indicava a possibilidade de o ser humano, por um processo baseado no conceito de

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Imitação, reproduzir no Mundo do Real o Belo Essencial. A representação-do-Belo responderia

ao Belo-em-si.

A discussão estética principiava, portanto, no polo da produção da mensagem

artística, o polo da poética. No entanto, logo no momento seguinte nota importância do polo de

apreensão artística quando alcançamos o conceito de prazer. O prazer estético seria ligado ao

conceito de Conhecimento. Àquele que melhor entende a obra de arte é proporcionado o maior

prazer estético.

Desse modo, ainda na chave do entendimento, ficaria definida a instância onde se

encontraria o conceito de qualidade artística: no fazer poético. O fruidor entenderia os elementos

e os movimentos de composição de harmonia entre tais elementos utilizados pelo autor na

estruturação de sua obra. Em termos comunicacionais, o receptor entenderia os modos de

estruturação da mensagem enviada pelo emissor.

Assim, se o Belo, imitado pela obra de arte de qualidade no polo da poética, chega ao

fruidor, que por seu conhecimento re-conhece os elementos estruturantes da obra e é tomado pelo

prazer, a obra de arte cuja estruturação do discurso apresenta o melhor uso dos recursos daquela

linguagem específica, mais se aproxima do Belo e, consequentemente, maior qualidade

apresenta.

Sendo a Música um dos objetos de estudo deste trabalho, necessária era a definição

de seus elementos de linguagem específica. Os elementos estruturantes da linguagem musical são

a harmonia, a melodia e o ritmo. Porém, como estaríamos a analisar a música-na-mídia,

necessário era incorporar outro elemento de linguagem, característico do gênero Música Popular:

o elemento literário, presente nas letras das canções veiculadas nas programações das emissoras

de Televisão.

Em sintonia com os filósofos gregos no que tange ao conceito de qualidade imerso na

estrutura da obra de arte, aderimos à discussão estética a definição do conceito de contemplação.

A experiência estética entender-se-ia para além do conhecimento, para além da chave do

entendimento, e repousaria na interpretação que o fruidor constrói a partir do momento em que

contempla a obra de arte. O observador partilha a experiência da obra de arte na medida em que

somente nele (e no julgamento que ele faz sobre a obra) se completa a relação poética – estética

que se estabelece entre autor, obra e fruidor. No polo da estética ocorre uma nova poética e o

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processo de interpretação, na perspectiva da hermenêutica, extrapola “o que está contido na

obra” e encampa uma “tarefa do entendimento” que está para além da explicação, mais próxima

da compreensão. O prazer estético transforma-se em complacência; a experiência estética

pressupõe uma espécie de compartilhamento do prazer. O fruidor contempla a obra, compreende

seu grau de qualidade e, assim, entra em contato com o Belo.

Contudo, a produção da obra de arte está inserida num determinado momento

histórico-cultural-social; do mesmo modo, assim o está a apreensão estética posterior. A

experiência estética, portanto, extrapolaria os limites da contemplação e seria envolta em

referenciais sociais, políticos, geográficos e, sobretudo, históricos.

Devidamente inseridas (tanto a criação poética quanto a experiência estética) nos

contextos histórico-cultural-sociais de produção e de apreensão, encontrávamos a possibilidade

de uma análise poético-estética de obras musicais inseridas num contexto midiático. Em grande

medida, tal inserção afasta a concepção de uma abordagem estética platônico-aristotélica de um

universo de obras clássicas, constituídas de um discurso estruturado por uma linguagem erudita, e

aproxima a abordagem poético-estética do universo de obras contemporâneas a quem analisa,

constituídas por um discurso estruturado pela linguagem popular.

A experiência estética definia-se como aquela que intenta re-encontrar o Ser da coisa,

não restrito do objeto estético que se encontra sob a égide do fazer poético, mas revelado na

experiência estética que envolveria os atores (e seus contextos históricos-socioculturais) do

processo que se concretiza na apreensão estética. A obra e aquilo que o observador concretiza

dentro de si quando em exposição à obra, em seu processo de interpretação – e consequente

compreensão – de um Belo que está para além do entendimento do que está contido na arte,

resgatam o conceito platônico de ideia essencial, que se concretiza num objeto poético, é

apreendida pelo sentido do observador e este tem a possibilidade de vislumbrar aquilo que não é

apreensível pelos sentidos.

Completo o ciclo filosófico acerca da discussão estética, restava ressaltar que a

análise dos procedimentos de estruturação discursiva seria encampada no território da música

popular, em seus elementos estritamente ligados à linguagem musical (harmonia, melodia e

ritmo) somados ao elemento literário (a letra das canções). Tais elementos estariam devidamente

documentados nas partituras das canções analisadas.

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Assim, definimos aquela que seria a teia conceitual que daria suporte à argumentação

na discussão estética deste trabalho: 1) há o Belo em si e este pode ser encontrado nas

representações artísticas; 2) o Belo se revela na produção da obra que apresenta a busca pela

qualidade e o esmero na construção de cada passo nessa busca; 3) a qualidade de uma obra de

arte é diretamente proporcional à capacidade do artista ao estruturar o seu discurso empregando

os recursos de linguagem que tem à sua disposição; 4) a obra de arte, seja ela estruturada

mediante o excelente uso dos recursos de linguagem, seja ela estruturada com recursos de

linguagem parcos, está inserida num contexto histórico e, portanto, sociocultural; 5) a Música

tem seu registro documental numa linguagem específica, grafada na partitura, pela qual podemos

observar e entender o modo como cada peça musical foi estruturada.

As análises das canções intentariam, primeiramente, desvendar o uso dos recursos de

linguagem utilizados na estruturação do discurso de algumas obras musicais, de modo a

estabelecer qual espécie de estruturação caracterizaria o acuro poético que empresta padrão

estético de excelência à canção e qual espécie de estruturação não o faz.

Definida a teia conceitual, ao longo do capítulo 3 foram encampadas análises de

canções populares massivas brasileiras desde o âmbito estritamente poético, segundo seus

elementos estruturantes, a saber: harmonia, melodia, ritmo e letra. A tais elementos constituintes

do discurso da música de cunho popular, foram somados dois outros elementos, aqui

considerados ambos como também constituintes da instância poética: a interpretação vocal e o

arranjo.

O complexo de seis elementos da construção poética de uma canção foi aplicado,

primeiramente, na análise de três canções produzidas e veiculadas nas décadas de 1960 e 1970. A

interpretação que sucedeu a análise de tais canções evidenciou a distinção entre um par de

canções (Domingo no Parque, de Gilberto Gil, e Sabiá, de Tom Jobim e Chico Buarque) e outra

canção (Doce de Coco, de Wanderley Cardoso e Claudio Fontana). As primeiras podem ser

definidas como espécies de canções estruturadas com acuro poético no uso dos recursos das

linguagens musicais e literárias para a composição de seus discursos; a terceira pode ser definida

como a canção cuja espécie de estruturação discursiva não é delimitada pelo acuro poético e,

consequentemente, é desprovida de um padrão estético de excelência discursiva.

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Tal processo analítico-interpretativo evidenciou um par de conclusões: 1) nas grades

de programação da mídia televisiva das décadas de 1960 e 1970 havia espaço para a veiculação

tanto de canções compostas com acuro poético quanto de canções desprovidas de um padrão

estético excelência; a análise eventualmente saudosista, que reputaria à cena midiática daquela

época somente a veiculação de um repertório musical composto por canções “de alta qualidade”,

não se configurou. 2) Há uma espécie de produção musical que empenha a busca por imitar o

Belo essencial, mesmo na música dita popular, veiculada pelo aparato televisivo numa sociedade

midiatizada; as duas primeiras canções analisadas serviram como matrizes dessa espécie de

produção e a terceira canção serviu como matriz de uma produção musical não comprometida

com o acuro discursivo poético e, consequentemente, com um empobrecimento estético.

O mesmo complexo de seis elementos da construção poética de uma canção foi

aplicado, em seguida, a duas canções produzidas e veiculadas na década de 2010. A interpretação

que sucedeu a análise de tais canções evidenciou a distinção entre uma canção (Vidro Fumê, de

Carlos Colla e Kaliman Chiappiani) e outra (Além, Porém Aqui, de Fernando e Gustavo Anitelli).

A primeira pode ser definida como uma canção que espelha a canção Doce de Coco, tomada

como matriz de uma espécie de estruturação discursiva não delimitada pelo acuro poético e

desprovida de um padrão estético de excelência discursiva; a segunda, espelhando as matrizes de

Domingo no Parque e Sabiá, pode ser definida como uma canção estruturada com acuro poético

no uso dos recursos das linguagens musical e literária para a composição de seus discursos.

Da mesma forma, tal processo analítico-interpretativo evidenciou um par de

conclusões: 1) corroborando a primeira conclusão provinda das análises das canções das décadas

de 1960 e 1970, pode-se afirmar que há espaço para a veiculação tanto de canções compostas

com acuro poético quanto de canções desprovidas de um padrão estético de excelência, no

entanto, eventualmente tal espaço não seja pertencente às grades de programação da mídia

televisiva brasileira, mas a outros aparatos midiáticos; a análise eventualmente saudosista, que

reputaria à cena midiática das décadas de 1960 e 1970 somente a veiculação de um repertório

musical composto por canções “de alta qualidade” e à cena midiática da década de 2010 somente

a exposição de um repertório musical “desprovido de qualidade”, não se configurou. 2) A espécie

de produção musical que empenha a busca por imitar o Belo essencial na música dita popular,

veiculada pelos aparatos midiáticos digitais numa sociedade hipermidiatizada, difere da produção

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musical veiculada pela mídia televisiva na década de 2010; a produção musical similar à segunda

canção analisada neste bloco encontra espaço em mídias distintas da televisiva e a produção

musical similar à primeira canção analisada neste bloco ainda encontra amplo espaço de

veiculação na mídia televisiva aberta.

Tais conclusões afiguravam-se valiosas. No entanto, no intuito de aproximar a análise

das canções de seus contextos histórico-socioculturais, tais elementos de análise eram um tanto

insuficientes, pois atinham-se de modo restrito ao âmbito da poética, da estruturação do discurso

literário-musical das obras, deixando de lado importantes elementos da sociedade e cultura dos

momentos históricos tanto de produção poética quanto de apreensão estética daquelas obras;

afinal, a análise abordaria canções expostas por veículos midiáticos, cujos contextos extrapolam a

instância das notas grafadas na partitura. As canções a serem analisadas seriam aquelas inseridas

num contexto social midiatizado, cujo cotidiano do ouvinte de música é pautado por suas

mediações culturais. Estendemos, assim, a visada aos campos do cotidiano, das mediações e da

midiatização.

Traçamos, assim, um deslocamento conceitual de uma arte bela-em-si a uma

conceituação mais próxima do universo do consumidor de música em seus hábitos

consuetudinários; tomamos o conceito de consumidor de música em lugar de ouvinte ou fruidor

de música justamente a fim de encaminhar de modo preciso a discussão estética para o âmbito do

cotidiano, no qual o consumidor tem possibilidades de manobras de interação social por

intermédio de produtos culturais. Tais interações seriam parte dos processos de mediações

culturais.

O consumidor de música das décadas de 1960 e 1970, portanto, teria possibilidades

de realizar interações sociais (por intermédio de produtos culturais) muito distintas do

consumidor de música da primeira metade da segunda década do século XXI. Distintas tanto do

ponto de vista das mediações culturais que se realizavam há algumas décadas (os programas

televisivos chegavam a apenas uma parcela da população, que compartilhava suas apreensões e

consequentes interpretações com as pessoas de seu ciclo social) e se realizam na presente década

(as apreensões e interpretações são disponibilizadas em redes sociais e acessadas por um universo

de pessoas tanto maior quanto menos próximo) quanto do ponto de vista da midiatização da

sociedade de há algumas décadas (a Televisão era o principal veículo de comunicação e as

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possibilidades de acesso a repertórios musicais eram restritas ao Rádio, ao Disco e à Televisão) e

da década atual (os repertórios são acessados e compartilhados à distância, em tempo diminuto).

No que tange ao âmbito da midiatização inserida no cotidiano do consumidor de

música, analisamos os procedimentos táticos encampados por consumidores de música e

estratégicos da indústria fonográfica em sintonia com a mídia televisiva. Os consumidores de

música teriam, notadamente após a popularização da Internet e a proliferação de aparatos

midiáticos digitais (que permitem o acesso, o armazenamento, o compartilhamento e a audição-

em-movimento de um repertório individualmente escolhido), estruturado táticas cotidianas com

as quais burlariam as estratégias mercadológico-midiáticas, que ao longo de farto tempo

definiram tanto repertório quanto procedimentos de apreensão estética do consumidor de música.

A “hipermidiatização da música” teria contribuído de modo contundente para a consolidação de

um sistema de resposta social.

No que tange ao âmbito das mediações culturais, a produção de sentidos inserida num

contexto espaço-sócio-temporal midiatizado é caracterizada por uma experiência estética que

considera o consumidor de música como um receptor ativo, cujas dinâmicas de fruição e

interpretação se estendem no tempo e circulam em interações que se dão entre mídia e sociedade.

A produção de sentidos não mais se restringe ao polo de emissão, o polo da veiculação de

produtos midiáticos e representações da mídia; ao contrário, a produção de sentidos ocorre em

sistemas de circulação diferidos e difusos nas interações dos consumidores em suas relações

sociais, nas quais intervêm o tempo, o espaço, a história de cada um. A produção de sentidos

passa pelo receptor e se completa em sua interação social.

Deslocamos, assim, a recepção de seu espaço passivo e limitado, para o espaço amplo

e ativo da circulação de sentidos.

A análise das canções, portanto, teria de levar em consideração o contexto de

apreensão estética de um consumidor de música nas décadas de 1960 e 1970 inserido num

determinado contexto sociocultural, que porventura emprestaria às canções (e, consequentemente

à Música) maior relevância, porém um consumidor de música distinto daquele que, na primeira

metade da segunda década do século XXI já estruturara táticas de apreensão estética que o

aproximam sobremaneira de um caráter de consumidor ativo de música, o que altera a própria

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concepção de apreensão estética, afinal esta se consolida num consumidor ciente de sua posição

no complexo poética-estética da sociedade midiatizada a partir da segunda metade do século XX.

Para tanto, fez-se necessária a inserção de dois outros elementos de análise no

Capítulo 3, a saber, a análise das técnicas de gravação e reprodução utilizadas, e do contexto de

apresentação e apreensão das referidas obras. O primeiro elemento de análise mencionado mais

se justifica por conta do âmbito da midiatização; o segundo, por conta das mediações

socioculturais que ocorrem no âmbito do cotidiano.

Além disso, era mister agregar às análises técnicas de elementos estruturais, uma

explanação histórica, que contribuiria tanto para situar a canção popular massiva em suas

diversas cenas do período determinado para a comparação, quanto para delimitar um estudo sobre

os procedimentos da mídia televisiva em relação à música popular brasileira no mesmo período.

A música-na-mídia requer uma especificação de seus distintos contextos (tanto midiático-

musicais quanto histórico-socioculturais, passando necessariamente pelos contextos

mercadológicos) estabelecidos ao longo do tempo.

Tal explanação histórica não poderia se restringir ao âmbito descritivo do passar do

tempo; era necessário o aporte analítico acerca dos cenários midiáticos-mercadológicos-musicais

que se compuseram ao longo do período histórico abordado e, para além disso, era necessário

encampar a busca por um caráter interpretativo no que se refere aos fatos e tempos descritos e

analisados.

Para tanto, foi encampada uma pesquisa empírica com personagens protagonistas da

cena midiático-musical das décadas de 1960 e 1970. Os depoimentos dos entrevistados, somados

às pesquisas bibliográfica e documental sobre o período histórico abordado compuseram o

Capítulo 4 deste trabalho.

Concluiu-se, após o transcorrer histórico descrito, analisado e interpretado, que o

momento político-sociocultural das décadas de 1960 e 1970, cujo contexto era o de uma ainda

insipiente midiatização da sociedade, aponta para uma relação tanto estreita quanto específica

entre mídia televisiva e canção popular massiva brasileira.

A mídia televisiva, herdeira da linguagem radiofônica, plena em veiculação de

conteúdo estritamente musical desde seu nascedouro até aquele momento (seus primeiros 20 anos

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de penetração social) encontrava na música popular um produto de alto valor de veiculação tanto

em sua grade de programação fixa quanto na produção de programas especiais sazonais.

Naquele primeiro período de atividades, menos próxima dos interesses financeiros-

administrativos que a aproximariam do mercado fonográfico, mais próxima dos procedimentos

discursivos do veículo de comunicação de massa que a antecedeu, a mídia televisiva abria espaço

para a veiculação de uma espécie de canção popular massiva pautada pelo acuro poético. Vale

sempre ressaltar que a mesma mídia televisiva também abria espaços para a veiculação de um

repertório musical caracterizado pelo parco uso dos recursos estruturantes das linguagens literária

e musical. No entanto, há de se reconhecer que havia na mídia televisiva brasileira, à altura, o

espaço destinado à veiculação de um repertório de música popular brasileira caracterizado por um

padrão estético de excelência.

Ao longo do Capítulo 4 deste trabalho é possível notar que, paulatinamente,

sobretudo a partir da segunda metade da década de 1980, a mídia televisiva (já com mais de 20

anos de atividade consolidados) aproximou seus interesses daqueles que convergiam com os

procedimentos do mercado fonográfico. Por conseguinte, afastou-se dos interesses estritamente

musicais do repertório comprometido com o acuro discursivo (e com o padrão estético) que

comporia suas grades de programação.

Vale ressaltar, a bem verdade, que outros fatores contribuíram para essa gradual

mudança dos procedimentos midiáticos em relação à canção popular massiva “de qualidade”: o

esgotamento do formato de programa televisivo Festival de Música Popular; a ausência de parte

dos grandes compositores surgidos na Era dos Festivais, exilados do país e, consequentemente,

do cenário midiático brasileiro; a ausência de uma geração de grandes compositores que

sucedesse imediatamente aquela exilada ou alijada de sua liberdade expressiva.

Além do distanciamento da mídia televisiva da produção musical caracterizada pelo

acuro poético, o empobrecimento do discurso musical da canção popular massiva brasileira pode-

se dever também a outros fatores: a obrigatoriedade da abordagem explicitamente contrária ao

regime militar nas letras das canções; a morte de Elis Regina, a grande cantora brasileira daquele

período; o fato episódico do surgimento de grandes compositores num mesmo momento histórico

em detrimento do momento seguinte.

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No entanto, em seu deslocamento de aproximação das gravadoras e distanciamento

dos artistas, em sua aproximação do mercado fonográfico e distanciamento do discurso musical

estruturado pelo acuro poético dos grandes compositores, a mídia televisiva brasileira tornou-se

uma das responsáveis pelo processo de empobrecimento do discurso da canção popular massiva

brasileira. Mais do que isso, tornou-se responsável também pelo empobrecimento estético da

manifestação artístico-cultural Música Popular.

Esse empobrecimento estético é notável em diversos flancos: a homogeneização de

manifestações regionais, que, em grande medida, contribui para diminuir a riqueza da

multiplicidade de discursos; a descaracterização da natureza discursiva da música brasileira

quando da imposição de gêneros e modos de execução de gêneros musicais; a construção de

referenciais midiáticos-ligados-à-música, de cunho estritamente mercadológico, de sucessos tão

avassaladores quanto passageiros, em detrimento de referenciais musicais cujo conteúdo

discursivo empresta às suas obras o caráter eviterno.

Assim, o procedimento da mídia televisiva nas mais recentes três décadas teria sido

um dos responsáveis por um par de empobrecimentos: do discurso poético e da apreensão estética

da canção popular massiva brasileira. Em ambos, o prejudicado maior é o ouvinte de música,

denominado anteriormente consumidor de música.

Entretanto, é principalmente a partir da popularização da Internet e da proliferação de

aparatos digitais móveis, que permitiram ao consumidor de música o acesso, o armazenamento, o

compartilhamento e a audição em deslocamento de um repertório escolhido por ele, que o agora

novamente denominado ouvinte de música pode estruturar seu “sistema de resposta social”.

Diferentemente do contexto histórico-sociocultural das décadas de 1960 e 1970, o

ouvinte de música dos anos 2010 conhece a possiblidade de intervir de modo contundente no

processo comunicacional; neste caso específico, na relação entre mídia e música, que o atinge

sobremaneira.

Partindo do âmbito das mediações, a circulação – “diferida e difusa” – de mensagens

produzidas e veiculadas pela mídia, que ocorre no polo de recepção do complexo

comunicacional, é feita de modo a nos fazer notar que o receptor tem na hipermidiatização a

ferramenta tática para burlar as estratégias da mídia televisiva em sintonia com o mercado

fonográfico.

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Partindo do âmbito da midiatização, que amplia as possibilidades de acesso a aparatos

tecnológicos para os indivíduos em sociedade, o receptor, agora com amplo acesso a aparatos

midiáticos que o aproximam de seu próprio repertório, assume uma postura crítica com relação

ao que lhe é oferecido como produto pela mídia e pode mediar de modo virtual, com outros –

distantes e distintos – ouvintes de música tanto sua postura crítica com a programação musical da

mídia televisiva quanto seu repertório de escuta, eventualmente caracterizado pela produção

pautada pelo acuro poético em busca de um padrão estético de excelência.

Essa nova postura do ouvinte de música, que influencia tanto o polo da produção

poética musical quanto o polo da apreensão estética musical nos leva aos hábitos de escuta

contemporânea, o derradeiro tema abordado no Referencial Teórico deste trabalho, que nos

aproxima do conceito de “hipermidiatização da música”.

Partimos do conceito de que os efeitos dos avanços tecnológicos dos aparatos

midiáticos ligados à apreensão musical desde a função de transmissores de sons e imagens à

função de construção de novos modos de escutar, novos modos de perceber. Também desde esse

ponto de vista fez-se bastante importante os elementos de análise técnicas de gravação e

reprodução” e “contexto de apresentação e apreensão”, levados a cabo no Capítulo 3 deste

trabalho.

Desse modo, se o aparato midiático interfere no hábito de escuta, o ouvinte de uma

música “hipermidiatizada”, na primeira metade da segunda década dos anos 2000, é distinto do

ouvinte da música apreendida pela mídia televisiva nas décadas de 1960 e 1970.

Diversas são as razões para tal distinção: a escuta da música apreendida pela mídia

televisiva é produzida com recursos de gravação muito menos sofisticados do que a música

hipermidiatizada; aquela é reproduzida por alto falantes frontais ou laterais dos aparelhos de

televisão, esta é reproduzida por micro alto falantes dos aparelhos de reprodução (computador,

Ipad, Ipod, telefones celulares); aquela é apreendida a uma determinada distância, percorrida pelo

ambiente, esta pode ser apreendida sem interferência do meio ambiente, pelo fone de ouvido.

Ademais, o ouvinte de uma música hipermidiatizada nos anos 2010 tem uma prerrogativa em

relação àquele das décadas de 1960 e 1970: a prerrogativa da audição em movimento.

Ao elencar seu repertório próprio, acessar tal repertório, armazená-lo, eventualmente

compartilhá-lo, o ouvinte de música pode ainda se deslocar levando consigo tal set list, realizar

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tarefas distintas e distantes enquanto realiza sua apreensão estética das músicas. O ouvinte de

música não mais encontra-se atrelado a um aparato midiático que requer dele toda e exclusiva

atenção e que, portanto, tem nele um receptor de característica passiva; ao contrário, as mídias

digitais móveis caracterizam um receptor ativo desde o momento da construção do repertório a

ser apreendido até o momento da audição em hora, local e situação por ele mesmo determinados.

A consolidação dessa espécie de escuta nômade nos hábitos do ouvinte de música das

primeiras décadas do século XXI transformou a paisagem sonora e engendrou um par de

caracterizações de uma nova ordem estética no que tange à musica midiatizada:

Por um lado, a audição em movimento empobreceu a experiência estética da audição,

pois o momento midiático-social em que a música deixa de ser apreendida desde o meio que

delimita o local onde o ouvinte se encontra estático durante sua experiência de fruição e passa a

ser armazenada em meios que se deslocam para onde e quando o ouvinte determina, é o momento

em que, paulatinamente, a obra de arte deixa de ser a protagonista da ação do ouvinte e se

transforma na companhia do ouvinte que realiza outra e qualquer atividade simultaneamente à

audição de música; como parte integrante do complexo objeto poético musical – objeto estético

musical, a transformação do papel da Música na ação cotidiana do ouvinte (de protagonista a

coadjuvante) implica uma espécie de empobrecimento estético na construção do discurso

musical. Tal empobrecimento seria definidor de uma abordagem mais ampla do que a de uma

“desmusicalização da mídia televisiva”, mas sim responsável pela consolidação de uma

“desmusicalização da mídia” (como um todo).

Por outro lado, a escuta individualizada, ainda que em movimento,

“hiperterritorializou” o espaço de escuta, ampliando-o sobremaneira, alterando a sincronia entre

o tempo do indivíduo e o tempo da cidade (do cotidiano, portanto), construída primeiramente

pelo Rádio e aprofundada pela Televisão. Com a proliferação das mídias sonoras móveis, a

simultaneidade de transmissão deu lugar à especificidade da audição nos âmbitos do tempo, do

local e, sobretudo, do repertório. Tal especificidade estende seus efeitos para além do polo de

recepção e atinge o polo da produção musical. O ouvinte-em-deslocamento define o repertório

que habita sua mídia sonora móvel e o polo da produção de música encampa todos os seus

esforços para figurar e permanecer entre os que compõem tal repertório. O receptor de música

tem o controle da produção músico-midiática a que decide ter acesso, não mais está vinculado a

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uma mídia que o domina, que define seu repertório musical, sobre o qual ele não tem controle.

Desse modo, o ouvinte de música prescinde da mídia televisiva, pois esta (justamente por se

caracterizar como uma mídia massiva) não o provê de um repertório individualizado, mas não

prescinde das mídias digitais (notadamente das mídias digitais móveis), onde compõe seu

repertório musical. O repertório, individualizado, nem sempre é composto da produção musical

que prescinde do acuro poético na construção de seu discurso; as mídias digitais não são

definidoras de uma ação cotidiana do ouvinte, que delimitaria um empobrecimento estético na

construção do discurso musical.

Portanto, a abordagem que apontasse para a consolidação da “desmusicalização da

mídia” (como um todo) nas primeiras décadas do século XXI seria bastante imprecisa, o que

implica a definição que se restringe à consolidação de uma “desmusicalização da mídia

televisiva”.

Essa nova ordem estética, caracterizada pela hipermidiatização da música, teria

devolvido à própria Música (tomada aqui como objeto estético) seu caráter de obra de arte

imaterial. Acessada, armazenada e compartilhada sem a interveniência do mercado fonográfico, é

restabelecido à música seu caráter de bem cultural em lugar do caráter de produto cultural. O bem

cultural, tipicamente comum, comum-nicável, requer a relação comum-nicante entre o emissor (o

polo da poética musical neste caso específico) e o receptor (o polo da estética musical neste caso

específico) por meio de uma mensagem (a Música, neste caso específico, que pode ser aquela

estruturada com acuro poético, que empresta a ela um padrão estético de excelência).

A Música, hipermidiatizada, em grande medida retoma seu caráter de objeto estético

que intenta o Belo essencial, que somente se completa na experiência estética. Por conta da

hipermidiatização da música, ouvinte de música – acesso ao repertório escolhido – apreensão

estética torna-se um complexo de procedimentos estéticos que independe do mercado fonográfico

e da mídia televisiva como intermediários.

Neste ponto, em que o círculo teórico acerca da discussão estética se fecha, faz-se

necessário indicar um procedimento de pesquisa que não foi contemplado neste trabalho: os

elementos de análise constituintes do Capítulo 3 não contemplaram a interpretação estética do

receptor. Como justificamos à altura, tal instância de análise demandaria outra espécie de

abordagem, ligada ao universo de uma pesquisa de recepção, que intentaria rastrear as

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interpretações provindas da estética da recepção em diversos e distintos lugares, tempos, modos e

contextos de apreensão de música. Também como apontamos naquele mesmo momento, a

presente pesquisa, de caráter teórico-argumentativo, que não se arvorou à empreitada de uma

pesquisa de recepção, pode ser sucedida por um trabalho que considere as conclusões obtidas

desta feita como referenciais para construir parte do estofo teórico que sedimentará a metodologia

a ser empregada nas perguntas aos receptores e nas análises e consequentes interpretações das

respectivas respostas.

É possível afirmar, portanto, que nestas primeiras décadas do século XXI, nesses

tempos de hipermidiatização da música, assistimos à consolidação de um processo de

desmusicalização da mídia televisiva, que teve início pela segunda metade da década de 1980.

Conforme pudemos notar ao longo deste trabalho, em comparação ao cenário

midiático-musical das décadas de 1960 e 1970, a canção popular massiva brasileira

comprometida com o acuro poético na estruturação de seu discurso perdeu espaço nas grades de

programação das emissoras de TV aberta. Desse modo, evidenciou-se o declínio de importância

da linguagem musical de alto padrão estético no repertório musical da Televisão e o consequente

empobrecimento da música popular na programação televisiva brasileira.

Responsável pelo empobrecimento estético da canção popular massiva brasileira, a

mídia televisiva aberta prescinde da “música de qualidade”. Esta encontra seu espaço de

produção e veiculação nas mídias digitais móveis. O ouvinte de música acultura sua apreensão

estética distante da mídia televisiva desmusicalizada. A Música, hipermidiatizada, entrega-se aos

ouvidos de quem por Ela almeja.

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Depoimentos

CAYMMI, Dori – entevista concedida a este pesquisador no dia 7 de julho de 2013, na cidade de

São Paulo.

GODOY, Amilton – entevista concedida a este pesquisador no dia 4 de maio de 2013, na cidade

de São Paulo.

LINS, Ivan – entevista concedida a este pesquisador no dia 22 de junho de 2013, na cidade de

São Paulo.

LOPES, Nei – entevista concedida a este pesquisador no dia 14 de agosto de 2013, na cidade do

Rio de Janeiro.

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FAGNER, Raimundo – entevista concedida a este pesquisador no dia 16 de junho de 2013, na

cidade de São Paulo.

GUDIN, Eduardo – entevista concedida a este pesquisador no dia 6 de junho de 2013, na cidade

de São Paulo.

LIMA, Pedro da Cruz – entevista concedida a este pesquisador no dia 4 de fevereiro de 2014, na

cidade de São Paulo.

MARIANO, Cesar Camargo – entevista concedida a este pesquisador no dia 10 de julho de 2013,

na cidade de São Paulo.

MEDEIROS, Dalmo – entevista concedida a este pesquisador no dia 12 de agosto de 2013, na

cidade do Rio de Janeiro.

MELLO, Zuza Homem de – entevista concedida a este pesquisador no dia 14 de maio de 2013,

na cidade de São Paulo.

MILTINHO (Milton Lima dos Santos Filho) – entevista concedida a este pesquisador no dia 13

de agosto de 2013, na cidade do Rio de Janeiro.

REIS, Aquiles Rique – entevista concedida a este pesquisador no dia 13 de agosto de 2013, na

cidade do Rio de Janeiro.