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Page 1: A Democratização do Poder na Ditadura Militar do Brasil

A Democratização do Poder na Ditadura Militar do Brasil

Vitor Augusto Ahagon.*

Sou um dissidente da verdade. Desenvolvo uma teoria irônica cujo objetivo é formular hipóteses. Lanço mão de fragmentos e não de textos unificados por uma lógica rigorosa.

Jean Baudrillard

De acordo com as múltiplas perspectivas a cerca da época que compreendeu a

ditadura militar no Brasil (1964 a 1985) notamos que as liberdades das quais

alguns grupos de resistência, como os grupos/indivíduos artísticos ou as

guerrilhas urbanas armadas (e camponesas como no caso do Araguaia), não

foram alcançadas ou foram re-significadas de acordo com as necessidades * Graduando no curso de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

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contingenciais do processo de (re) democratização do Brasil. A questão então

do exercício da liberdade em desacordo com o poder se mostra de essencial

importância para a compreensão do conceito de democracia, o qual é produto

do projeto eurocêntrico de modernização, pois assim podemos verificar como a

noção de poder, por vezes, pode caracterizar o recenseamento da liberdade de

organização individual ou coletiva.

Mudando então o posicionamento angular a cerca do poder revelamos uma

nova faceta na qual o filosofo Michel Foucault se torna fundamental:

“(…) o poder não se dá, não se troca nem se retoma, mas se exerce, só existe

em ação, como também da afirmação que o poder não é principalmente

manutenção e reprodução das relações econômicas, mas acima de tudo uma

relação de força. Questão: se o poder se exerce, o que é exercício, em que

consiste, qual é sua mecânica?”[1]

Para a resposta de Foucault o período da Ditadura militar se mostra revelador,

pois o projeto civilizatório modernizador, introjetado na mentalidade coletiva, se

pautava essencialmente na burocratização do Estado e da disseminação na

sociedade civil, chegando às esferas microscópicas do trabalho, família e

amigos.

Quando analisados os dois artigos do jornal Folha de São Paulo, de Marco

Antonio Villa e Marcelo Ridenti, o que mais se mostra é que a Ditadura

modernizou o Brasil implementando medidas nas quais incentivava a

economia, ciência e cultura nacional, porem com algumas diferenças no que

tangem a abordagem repressiva e salvacionista. Marco Antonio Villa escreve,

comparando a “ditadura à brasileira” com outras ditaduras do Cone Sul:

“Enquanto a ditadura argentina fechou cursos universitários, no Brasil ocorreu

justamente ao contrário. Houve uma expansão do ensino publico de terceiro

grau por meio das universidades federais. Sem esquecer várias universidades

publicas estaduais que foram criadas no período, como a Unicamp e a Unesp

em São Paulo…A Embrafilme – que teve importante papel no desenvolvimento

do cinema nacional – foi criada no auge do regime militar, em 1969. Financiou

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a fundo perdido centenas de filmes, inclusive de obras criticas ao governo (o

ministro Celso Amorim presidiu a Embrafilme durante o regime militar). A

Funarte foi criada em 1975 – quem pode negar sua importância no

desenvolvimento da musica, das artes plásticas e do teatro brasileiro?…A

ditadura argentina privatizou e desindustrializou a economia…Já o regime

militar estatizou grande parte da economia. Somente o presidente Ernesto

Geisel criou mais de uma centenas de estatais. Os governos militares

industrializaram o país, modernizaram a infra-estrutura, romperam os pontos de

estrangulamento e criaram as condições para o salto recente do Brasil, como

por meio das descobertas da Petrobras nas bacias de Santos e de Campos

nos anos 1970”[2].

Marcelo Ridenti escreve:

“Ao contrário do que inicialmente pensaram seus adversários, a ditadura não

impôs um projeto ‘arcaico’, mas, sim, de modernização da sociedade. Não pelo

viés do capitalismo de massas, sonhado por Celso Furtado e outros nacional-

desenvolvimentistas antes do golpe. Houve um processo de modernização

autoritário, ou seja, os governos promoveram o desenvolvimento, embora à

custa do cerceamento das liberdades democráticas e com grande

concentração de riquezas.

Outro paradoxo: a modernização exigia profissionais capacitados – e muitos

deles eram de oposição. Foi assim que amadureceu, por exemplo, uma

indústria cultural digna desse nome sob a ditadura, que, com um braço,

incentivava a cultura, censurando-o com outro. Professores incômodos eram

afastados, ao mesmo tempo em que financiavam as pesquisas e a tecnologia,

até no meio universitário mais hostil ao regime”[3].

Ambas as falas, por mais distintas que sejam em relação à crença/descrença

de uma ditadura autoritária ou mais branda, concordam que o ponto nevrálgico

foi que o período de 1964-85 modernizou o país dando um salto de

desenvolvimento cultural, científico e econômico pautados por um

posicionamento nacionalista de raízes positivistas. Tais modernizações são

expressões de uma mentalidade que leva em consideração, principalmente, a

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forma universal de organização, pois pautadas por uma concepção de

linearidade temporal o processo evolutivo se dá numa escala progressista que

culmina na Civilização. E para se alcançar tal patamar evolutivo o aparato mais

usual é a utilização de instituições altamente hierarquizadas – tão proliferadas

como já ditas por ambos jornalistas – que materializam o exercício do poder.

Dois exemplos, das diversas instituições criadas pela ditadura, foram as

chamadas “comunidade de informações” e “comunidade de segurança” em

combate aos grupos opositores ao governo. Suas estruturas organizacionais se

baseavam no rígido e inflexível formato militar, onde os cargos eram

compostos também por militares que tinham como função “superintender e

coordenar as atividades de informações em todo o território nacional” o que

“paulatinamente foi buscando recolher informações também no exterior, sobre

tudo em relação aos países da América Latina”[4] como no caso do SNI e

combater a subversão e o terrorismo no território nacional pautados por um

órgão aglutinador como foi o sistema CODI-DOI.

Apesar do historiador Carlos Fico colocar o SNI em uma posição que não

subordinava os órgãos de repressão – sendo que este ultimo possuía uma

forma organizacional própria subsidiada pelo apoio da dita “linha dura” dos

militares – as instancias das quais os órgãos de repressão se pautavam eram

pelas informações colhidas, ou mesmo produzidas, pelo SNI, por exemplo,

proporcionando um exercício de poder predecessor à ação da repressão.

Poder esse que será dissolvido pela sociedade civil em três

esferas.

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A primeira consiste em incluir a sociedade civil na organização do sistema de

informações como foi o caso da Escola Nacional de Informações (EsNI), pois

se “planejava a transformação paulatina do SNI numa agência de civis, como a

norte-americana CIA” sendo que a “escola fora criada pelo governo Médici,

com base na experiência de um grupo de aproximadamente doze oficiais que

estiveram no exterior, por um mês, estudando os serviços de informações de

alguns países, como Estados Unidos, Alemanha, Israel, França e Inglaterra” e

“cerca de 120 pessoas, por ano, eram formadas pela EsNI e aproximadamente

90 eram civis”[5], ou seja, 75% das pessoas que se formaram na EsNI eram

civis e assim foram formatadas de acordo com os dogmas, disciplinas e

crenças do regime militar.

A segunda consiste no terror psicológico causado pelo regime, pois ao passo

que a tortura se torna um silêncio ensurdecedor, todos temerão à ela, assim o

exercício de poder prevalece no momento em que nossa vida é posta em

evidencia, portanto temendo o terror da ditadura delataremos qualquer um que

não siga os parâmetros exigidos pelo governo e que nos coloque em risco de

vida.

E, finalmente, a terceira consiste no discurso da verdade plena voltada para a

forma de organização social única e irrevogável, o qual se torna mais claro nas

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falas do historiador Eduardo Antônio Bonzatto quando compara o Estado

classista vinculado ao populismo e o Estado burocrático caracterizado pelo

regime militar:

“O Estado Burocrático, contrariamente ao que se imagina, é menos

concentrador de poder do que o Estado Classista (populismo), pois sua função

é exatamente a de ampliar e distribuir a experiência do poder, na busca de

cúmplices. Para tanto, a burocracia recebe um revestimento da competência,

um verniz técnico, e não uma distinção classista.

O aumento do número de ministérios, os concursos públicos para suprimento

de cargos nos bancos estatais, nas novas e crescentes organizações

fiscalizadoras, necessárias aos novos atributos econômicos do Estado

representam um compatível aumento entre o tamanho do Estado e seus novos

burocratas.

Tal burocracia estabelece uma hierarquia horizontal, dada pela competência e

não pelo mando. Desse modo, a experiência do poder é conferida a muito mais

pessoas do que aquela do modelo anterior, experimentada exclusivamente

pela classe. Basta recordarmos o aspecto cartorial que a burocracia anterior

carregava, relacionada à incompetência devida justamente ao privilégio.

Contudo, para funcionar como um projeto social, tal experiência deve ser

transposta para a sociedade civil. E existe uma forma dessa materialização

funcionar. O Estado Burocrático transfere sua experiência para a sociedade

civil por meio do discurso da organização (como já afirmou Chauí em O

discurso competente).

Essa transferência ocorre tanto na formatação das indústrias, com suas

diversas hierarquias móveis quanto nas associações, nos clubes e,

principalmente, nos sindicatos, cuja complexidade, agora, demanda estruturas

repletas de lideranças, dentro e fora das fábricas. Assim, a organização de toda

uma sociedade pautada pela hierarquia atinge seu ponto alto quando chega ao

operário, ao bancário, ao professor, ao gráfico e a suas famílias pela

experiência da organização.

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Estado, indústria, sindicato, eis o mecanismo projetivo que materializa a

internalização da dominação, ocultando o dominador no dominado. Agora

muitas pessoas usufruem do poder que o cargo confere e a ordem, essa ordem

advinda da organização, estabelece o ocultamento da própria dominação,

tornada trabalho, sobrevivência e consumo”[6].

Concluindo e justificando, todos esses processos de inserção de uma

mentalidade modernizadora, que possui seu fim na Civilização, proporcionam a

disseminação do exercício de poder controlador, portanto uma democratização

do poder enquanto cumplicidade de apenas uma forma de ser social normativa

e discriminatória perante a diversidade de múltiplas possibilidades de vivências.

“A hegemonia é uma manifestação da vontade humana historicamente

construída, urdida com força, cooptação, ideologia e voluntarismo”.

Eduardo Antônio Bonzatto.

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Bibliografia:

BONZATTO, Eduardo Antônio. Belindia, 1964: golpe in Manual da Contra-História na Antimodernidade. www.orbitfiles.com/download/id4069309801.html.

FERREIRA, Jorge e Daniel Aarão Reis. Revolução e Democracia (1964-…). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

FICO, Carlos. Como eles agiam – Os Subterrâneos da Ditadura Militar: Espionagem e Polícia Política. São Paulo: Record, 2001

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2007.

RIDENTI, Marcelo. Cultura e política – os anos 60 e 70 e sua herança in O Brasil Republicano nº4

________________. Tendências/Debates: Ditadura: nunca mais! In Folha de São Paulo.

VILLA, Marco Antonio. Tendências/Debates: Ditadura à brasileira in Folha de São Paulo.

[1] FOUCAULT, Michel. Genealogia e Poder, p.175 IN Microfísica do Poder. Editora Graal.

[2] VILLA, Marco Antonio. Tendências/Debates: Ditadura à brasileira in Folha de São Paulo.

[3] RIDENTI, Marcelo. Tendências/Debates: Ditadura: nunca mais! In Folha de São Paulo.

[4] FICO, Carlos. A Estrutura de Espionagem: O SISNI, p.81 in Como eles agiam. Editora Record, edição 2001.

[5] Idem, p.82.

[6] BONZATTO, Eduardo Antônio. Belindia, 1964: golpe, p.859-860 in Manual da Contra-História na Antimodernidade.