a democracia e suas dificuldades -bandeira de mello

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  • 8/20/2019 A Democracia e Suas Dificuldades -Bandeira de Mello

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    Brasília a. 35 n. 137 jan./mar. 1998 255  

    1. Democracia formal e democraciasubstancial

    Independentemente dos desacordos possí-veis em torno do conceito de democracia, pode-se convir em que dita expressão reporta-se nu-clearmente a um sistema político fundado em princípios afirmadores da liberdade e da igual-dade de todos os homens e armado ao propósi-to de garantir que a condução da vida social serealize na conformidade de decisões afinadascom tais valores, tomadas pelo conjunto de seusmembros, diretamente ou por meio de repre-sentantes seus livremente eleitos pelos cida-

    dãos, os quais são havidos como os titulares dasoberania. Donde resulta que Estado democrá-tico é aquele que se estrutura em instituiçõesarmadas de maneira a colimar tais resultados.

    Sem dúvida essa noção, tal como expendi-da, maneja também conceitos fluidos ou im- precisos (liberdade, igualdade, deliberaçõesrespeitosas destes valores, instituições armadasde maneira a concretizar determinados resul-tados). Sem embargo, é dela – ou de algumaoutra que se ressinta de equivalentes proble-matizações – que se terá de partir para esboçar uma apresentação sumária de certas relaçõesentre Estado e democracia, algumas das quaissão visíveis e outras apenas se vão entremos-trando a uma visão prospectiva.

    A democracia e suas dificuldadescontemporâneas

    CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO

    Celso Antônio Bandeira de Mello é Professor Titular da Faculdade de Direito da UniversidadeCatólica de São Paulo.

    SUMÁRIO

    1. Democracia formal e democracia substancial.

    2. A crise dos instrumentos clássicos da democracia.3. Tentativas de resposta à crise da democracia. 4.

     Insuficiência dos meios concebidos para salvaguar-da dos ideais democráticos. 5. Possível agravamentoda crise da democracia. 6. Globalização e noelibe-ralismo: novos obstáculos à democracia.

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    Seja como for – e até mesmo em razão dasobredita fluidez dos conceitos implicados nanoção de democracia – ,é conveniente distin-guir entre Estados  formalmente democráticose Estados substancialmente democráticos, alémde Estados em transição para a democracia,tendo-se presente, ainda assim, o caráter apro-

    ximativo destas categorizações.Estados apenas formalmente democráticos

    são os que, inobstante acolham nominalmenteem suas Constituições modelos institucionais – hauridos dos países política, econômica esocialmente mais evoluídos – teoricamente ap-tos a desembocarem em resultados consonan-tes com os valores democráticos, neles não apor-tam. Assim, conquanto seus governantes (a)sejam investidos em decorrência de eleições,mediante sufrágio universal, para mandatostemporários;  (b) consagrem uma distinção,quando menos material, entre as funções le-gislativa, executiva e judicial; (c) acolham, emtese, os princípios da legalidade e da indepen-dência dos órgãos jurisdicionais, nem por isso,seu arcabouço institucional consegue ultrapas-sar o caráter de simples fachada, de painel apa-ratoso, muito distinto da realidade efetiva.

    É que carecem das condições objetivas in-dispensáveis para que o instituído formalmen-

    te seja deveras levado ao plano concreto da re-alidade empírica e cumpra sua razão de exis-tir. Biscaretti Di Ruffía, em frase singela, maslapidar, anotou que “a democracia exige, paraseu funcionamento , um  minimum de cultura política”, que é precisamente o que falta nos países apenas formalmente democráticos. Asinstituições que proclamam adotar em suasCartas Políticas não se viabilizam. Sucumbemante a irresistível força de fatores interferentesque entorpecem sua presumida eficácia e lhes

    distorcem os resultados. Deveras, de um lado,os segmentos sociais dominantes, que as con-trolam, apenas buscam manipulá-las ao seusabor, pois não valorizam as instituições de-mocráticas em si mesmas, isto é, não lhes de-votam real apreço. Assim, não tendo qualquer empenho em seu funcionamento regular, pro-curam, em função das próprias conveniências,obstá-lo, ora por vias tortuosas, ora abertamentequando necessário, seja por iniciativa direta,seja apoiando ou endossando quaisquer desvir-tuamentos promovidos pelos governantes, sim- ples prepostos, meros gestores dos interessesdas camadas economicamente mais bem situa-das. De outro lado, como o restante do corposocial carece de qualquer consciência de

    cidadania1 e correspondentes direitos, não ofe-rece resistência espontânea a essas manobras.Ademais, é presa fácil das articulações, mobi-lizações e aliciamento da opinião pública, quan-do necessária sua adesão ou pronunciamento,graças ao controle que os segmentos dominan-tes detêm sobre a “mídia”2, que não é senão

    um de seus braços.É que – como de outra feita o dissemos – as

    instituições políticas destes países“não resultaram de uma maturação his-tórica; não são o fruto de conquistas po-líticas forjadas sob o acicate de reivindi-cações em que o corpo social (ou os es-tratos a que mais aproveitariam) nelasestivesse consistentemente engajado; nãosão, em suma, o resultado de aspirações

    que hajam genuinamente germinado,crescido e tempestivamente desabrocha-do no seio da sociedade”.

    Pelo contrário , suas instituições jurídico- políticas, de regra ,

    “foram simplesmente adquiridas por importação, tal como se importa umamercadoria pronta e acabada, suposta-mente disponível para proveitoso consu-mo imediato. Nestes Estados recepcio-

    nou-se um produto cultural, ou seja, ofruto de um processo evolutivo marcado por uma identidade própria, transplan-tando-o para um meio completamentedistinto e caracterizado por outras cir-cunstâncias e vicissitudes históricas. Édizer: instituições refletoras de uma dadarealidade vieram a ser implantadas de baixo para cima, como se fossem irrele-vantes as diversidades de solo e de en-raizamento”3.

    Em suma: esses padrões de organização política não se impuseram à conta de autênticaresposta a conflitos ou pressões sociais que ostivessem inapelavelmente engendrado; antes,foram assumidos porque a elite dirigente desociedades menos evoluídas, de olhos postosnas mais evoluídas, entendeu que se constituí-am em um modelo natural a ser incorporadocomo expressão de um desejável estágio civili-

    1 O fenômeno não é restrito às camadas sociais

    mais desfavorecidas, mas alcança também a cha-mada classe média.2 O Brasil é um perfeito exemplo da situação

    descrita.3 Representatividade e democracia. In: DIREITO

    Eleitoral. Belo Horizonte : Del Rey, 1996. P.45.

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    zatório. Então, não lhes atribuem outra impor-tância senão figurativa. Daí que, não estandocerceadas por uma consciência social democrá-tica e correlata pressão, ou mesmo pelos even-tuais entusiasmos de uma “opinião pública”, já que as modelam a seu talante, aceitam asinstituições democráticas

    “apenas enquanto não interferentes comos amplos privilégios que conservam oucom a vigorosa dominação política que podem exercer nos bastidores, por detrásde uma máscara democrática, graças, justamente, ao precário estágio de desen-volvimento econômico, político e socialde suas respectivas sociedades”4.

    De outra parte, esta situação inferior em quevivem os Estados apenas formalmente demo-

    cráticos lhes confere, em todos os planos, umcaráter de natural subalternidade em face dos países cêntricos, os quais, compreensivelmen-te, são os produtores de idéias, de “teorias” políticas ou econômicas, concebidas na confor-midade dos respectivos interesses e que se im- põem aos subdesenvolvidos, não apenas pelo prestígio da origem, mas também por toda aespécie de pressões. Sendo conveniente aos países desenvolvidos a persistência desta mes-ma situação, que lhes propicia, em estreita ali-

    ança com os segmentos dominantes de tais so-ciedades, manejar muito mais comodamente osgovernos dos países “pseudodemocráticos” em prol de suas conveniências econômicas e polí-ticas5, é natural que existam entraves suplemen-

    tares para superação deste estágio primário deevolução.

    Resulta deste quadro que as sociedades deincipiente cultura política para poderem vir ase configurar como Estados democráticos, de-mandariam mais do que apenas reproduzir em

    suas Constituições os traços especificadores detal sistema de governo. Com efeito, de um lado,teriam que ajustar suas instituições básicas demaneira a prevenir ou dificultar os mecanis-mos correntes de seu desnaturamento6  e, deoutro – o que ainda seria mais importante –,empenhar-se na transformação da realidadesocial buscando concorrer ativamente para pro-duzir aquele mínimo de cultura política indis- pensável à prática efetiva da democracia, úni-ca forma de superar os entraves viscerais ao

    seu normal funcionamento.Uma vez que a democracia se assenta na proclamação e reconhecimento da soberania popular, é indispensável

    “que os cidadãos tenham não só umaconsciência clara, interiorizada e reivin-dicativa deste título jurídico político quese lhes afirma constitucionalmente reco-nhecido como direito inalienável, mas

    4 Ibidem, p. 46.5 Ainda aqui, o Brasil vale como exemplo. Após

    uma formidável campanha desencadeada pela “mí-dia” em prol de reformas constitucionais, com des-taque para as reformas fiscal e administrativa (semo que, dizia-se, o País seria “ingovernável”), o Pre-

    sidente Fernando Henrique Cardoso, em seu primei-ro ano de Governo, animado por esta onda reformis-ta, fez aprovar quatro emendas constitucionais. Cu-riosamente, entretanto, essas quatro emendas, aoinvés de se reportarem a problemas internos foramtodas  – registre-se e sublinhe-se – sintonizadas comaspirações externas ou de agrado internacional .Devem ter sido consideradas as verdadeiramente ur-gentes e importantes. São as seguintes: (a) EmendaConstitucional nº 6, de 15.8.95, por força da qual,de um lado, foram eliminados o conceito de empre-

     sa brasileira de capital nacional e a preferência

    que o Poder Público lhe deveria dar  quando preten-desse adquirir bens e serviços e, de outro, permitiu- se, assim, que a exploração mineral do subsolo bra- sileiro pudesse ser feita por empresas controladase dirigidas por pessoas não residentes no País,  oque dantes era vedado. (b) A Emenda Constitucio-

    nal nº

     7, também de 15 de agosto do mesmo ano,veio extinguir a garantia de que a navegação de ca- botagem e interior no Brasil fosse, salvo caso denecessidade pública, privativa de embarcações na-cionais, pelo que não há mais óbice constitucional a que seja feita por embarcações estrangeiras; alémdisto, suprimiu a exigência de que os armadores, os

     proprietários, o comandante e pelo menos dois ter-ços dos tripulantes de nossas próprias embarcaçõesfossem brasileiros  (espantosa a minúcia dos inte-resses alienígenas em excluir até mesmo a cláusulaque estabelecia devessem ser brasileiros dois ter-

    ços dos tripulantes de nossas próprias embarcações).(c) A de nº 8, da mesma data das anteriores, veio para eliminar a previsão de que a exploração de ser-viços telefônicos, telegráficos, de transmissão dedados e demais serviços públicos de telecomunica-ções fossem explorados diretamente pela União ou

     por concessão a pessoa sob controle acionário esta-tal. (d) A de nº 9, também da mesma data, para fle-xibilizar as disposições relativas ao monopólio es-tatal do petróleo.

    6 Sem embargo, os que acedem ao Poder, esme-ram-se na tendência inversa. Valendo-se de meios

     próprios e impróprios, que outrora combatia, apósingentes esforços junto ao Legislativo, o PresidenteFernando Henrique Cardoso conseguiu fazer passar emenda constitucional em proveito próprio: a dareelegibilidade para os atuais ocupantes da Chefiado Executivo. Completará, assim, neste particular,

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    que disponham das condições indispen-sáveis para poderem fazê-lo valer de fato.Entre estas condições estão, não apenas(a) as de desfrutar de um padrão econô-mico-social acima da mera subsistência(sem o que seria vã qualquer expectati-va de que suas preocupações transcen-

    dam as da mera rotina da sobrevivênciaimediata), mas também, as de efetivoacesso (b) à educação e cultura (para al-cançarem ao menos o nível de discerni-mento político traduzido em consciên-cia real de cidadania) e (c) à informa-ção, mediante o pluralismo de fontesdiversificadas (para não serem facilmen-te manipuláveis pelos detentores dosveículos de comunicação de massa)”7.

    Uma vez reconhecido que nos Estados ape-nas formalmente democráticos o jogo espontâ-neo das forças sociais e econômicas não pro-duziu, nem produz por si mesmo – ou ao me-nos não o faz em prazo aceitável – as transfor-mações indispensáveis a uma real vivênciademocrática, resulta claro que, para eles, os ven-tos neoliberais, soprados de países cujos estádiosde desenvolvimento são muito superiores, nãooferecem as soluções acaso prestantes nestes úl-

    timos. Valem, certamente, como advertência con-tra excessos de intervencionismo estatal ou con-tra a tentativa infrutífera de fazer do Estado umeficiente protagonista estelar do universo econô-mico. Sem embargo, nos países que ainda nãoalcançaram o estágio político cultural requerido para uma prática real da democracia, o Estado

    tem de ser muito mais que um árbitro de confli-tos de interesses individuais.

    Cumpre ter presente que acentuadas dispa-ridades econômicas entre as camadas sociais,que já foram superadas em outros países, in-clusive mediante ação diligente do Estado, persistem em todos aqueles de insatisfatóriarealização democrática. Nestes, a péssima qua-lidade de vida de vastos segmentos da socieda-de, bloqueia-lhes o acesso àquele “mínimo de

    cultura política” a que se reportava BiscarettiDi Ruffía. Assim, seria descabido imaginar queo papel do Estado pode ser o mesmo em quais-quer deles.

    De fato, para engendrar os requisitos con-dicionais ao funcionamento normal da demo-cracia ou promover-lhes a expansão, o Estadonão tem alternativa senão a de se constituir emum decidido agente transformador, o que su- põe, diversamente do que hoje pode ocorrer nos países que já ultrapassaram esta fase, um de-

    sempenho muito mais participante, notadamen-te no suprimento dos recursos sociais básicos eno desenvolvimento de uma política promoto-ra das camadas mais desfavorecidas.

     Na medida em que suas instituições e prá-tica estejam voltadas a este efeito transforma-dor, caberia qualificá-las como Estados em tran- sição para a democracia. Entretanto, se, emdespeito do formal obséquio que lhe prestematravés das correspondentes instituições clás-sicas, deixarem de consagrar-se à instauraçãodas condições propiciatórias de uma real vi-vência e consciência de cidadania, não se lhes poderá reconhecer sequer este caráter.

    Ademais, contrariamente ao que pode su-ceder, e vem sucedendo nos Estados substanci-

    sua paridade com dois outros seus confrades sul-americanos que também fizeram aprovar emendasda mesma natureza: os srs. Fujimori (Peru) e Me-nem (Argentina), os quais, tal como ele, desenvol-vem políticas ao gosto dos organismos internacio-nais controlados pelos países cêntricos, sendo-lhesconveniente que permaneçam no poder o máximode tempo possível. Note-se que, desde a primeiraConstituição Republicana, todas, com exceção daCarta da Ditadura de 1937, proibiam a reeleição doPresidente, perfeitamente cônscias do risco dosChefes de Executivo usarem seus formidáveis po-

    deres para assegurar-se a continuidade no mandatosucessivo. Foi o que bem anotou Geraldo Ataliba:“Aliada, portanto, à temporariedade dos mandatosexecutivos encontra-se, no Brasiil, a consagração tra-dicional do princípio da não reeleição dos seus exer-centes. Querem, destarte, as instituições assegurar que a formidável soma de poderes que a república

     presidencialista põe nas mãos do Chefe do Executi-vo seja toda ela empregada no benefício da função e

     jamais em benefício próprio. Não é por outra razãoque tal função designa-se no discurso político, por magistratura, dada a impessoalidade e imparciali-dade que hão de caracterizar o comportamento do

    seu titular.” ( República e Constituição. Revista dosTribunais, 1985. – grifo do autor).

    7 Representatividade e democracia. P. 46. Ob-serve-se que, entre nós, os veículos de comunicaçãoa que a esmagadora maioria da população verdadei-ramente acede são o radio e a televisão. Daí que a

    força, não apenas informativa, mas também alicia-dora ou persuasiva, que possuem é incontrastável.Assim, não por acaso, em contradita frontal às Cons-tituições e às leis, concessões de radio e televisãosão outorgadas sem um procedimento licitatório pré-

    vio; distribuídas como favor. Acresça-se que umaúnica emissora de televisão detém índices de audi-ência esmagadores, o que lhe proporciona, com umatecnologia de Primeiro Mundo sobre cabeças doTerceiro Mundo, modelar, a seu talante, a opinião eo pensamento do cidadão comum.

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    almente democráticos, naqueles outros que ain-da estão em caminho de sê-lo, quaisquer tran-sigências com a rigidez do princípio da legali-dade, quaisquer flexibilizações do monopóliolegislativo parlamentar, seriam comprometedo-ras deste rumo.

    É que toda concentração de poder no Exe-cutivo, assim como qualquer indulgência emrelação a suas pretensões normativas, consti-tuem-se em substancial reforço ao autoritaris-mo tradicional, solidificam uma concepção paternalista do Estado – identificado com a pessoa de um “Chefe” – e alimentam a tendên-cia popular de receber com naturalidade e es- perançoso entusiasmo soluções caudilhescas oumessiânicas.

    Em uma palavra: atribuir ao Executivo – 

    órgão estruturado em torno de uma chefia uni- pessoal – poderes para disciplinar relações en-tre administração e administrados é, nos paí-ses de democracia ainda imatura, comporta-mento que em nada concorreria para a forma-ção de uma consciência valorizadora da res- ponsabilidade social de cada qual (que é a pró- pria exaltação da cidadania) ou para encarecer a importância básica de instituições imperso-nalizadas como instrumento de progresso e bem-estar de todos. Contrariamente, serviriaapenas para reconfirmar a anacrônica relaçãosoberano-súdito8.

    Assim, em despeito da generalizada tendên-cia mundial de transferir ao Executivo poderessubstancialmente legislativos, ora de maneiraexplícita e sem rebuços, como se fez na França(e logo acomodada pelos teóricos em uma eu-fêmica reconstrução do princípio da legalida-de), ora mediante os mais variados expedien-tes ou através de acrobáticas interpretações dos

    textos constitucionais, nos Estados que aindacarecem de uma experiência democrática sóli-da, a acolhida destas práticas não é compatívelcom a democracia, ainda que tal fenômeno haja

    sido suscitado – reconheça-se – por razões ob- jetivas poderosas, tanto que se impuseram ge-neralizadamente.

    2. A crise dos instrumentosclássicos da democracia

    O tópico do fortalecimento do Poder Exe-cutivo, e correlato declínio do Legislativo, sus-cita reflexões que concernem genericamente aotema das relações entre Estado e democracia,extravasando em muito o âmbito das conside-rações feitas quanto à especificidade de suasrepercussões imediatas nos países onde aindaé débil o enraizamento social da democracia.

    É sabido que, em despeito da importânciaatribuível ao Parlamento na história da demo-

    cracia, importância esta correlata ao declíniodo poder monárquico, o Executivo, sucessor dorei, cedo começou a recuperar, em detrimentoóbvio das Casas Legislativas e, pois, de um dos pilares da democracia clássica, os poderes nor-mativos que lhe haviam sido retirados9. É cer-to, sem dúvida, que, na presente quadra histó-rica, poderosas e objetivas razões vêm concor-rendo crescentemente para isto.

    Desde que o Estado, por força da mudança

    de concepções políticas, deixou de encarar arealidade social e econômica como um dado, para considerá-la como um objeto de transfor-mação, sua ação intervencionista operada por via da Administração e traduzida não só emaprofundamento, mas sobretudo em alargamen-to de suas missões tradicionais, provocaria,como tão bem observou Ernst Forsthoff, umainsuficiência das técnicas de proteção das li- berdades e de controle jurídico, as quais havi-am sido desenvolvidas sob o signo do Estado

    liberal10

    .Acresce que, inobstante ameacem vingar e prevalecer concepções neo-liberais, nem por isto reduzir-se-á a intensificação de um con-trole do Estado sobre a atividade individual. Éque o progressivo cerceamento da liberdade dosindivíduos, tanto como o fortalecimento doPoder Executivo, arrimam-se também em ra-zões independentes das concepções ideológi-

    8 Assim, exempli gratia, o atual Chefe do Poder Executivo brasileiro – no passado, havido como um“intelectual progressista” e hoje associado politica-mente com expoentes da ditadura que dantes com-

     batia – não se constrangeu em expedir uma “medi-da provisória” à cada 19 horas, conforme registro

    feito há alguns meses pela Revista Veja. Nisto con-tribuiu eficazmente para a crescente desmoraliza-ção das instituições democráticas entre nós, tantomais porque ditas medidas têm sido visivelmenteinconstitucionais, por ausentes os pressupostos desua válida produção.

    9 Notável a este respeito é o estudo desenvolvi-

    do por Santa Maria Pastor, em seu Fundamentos de Derecho Administrativo.Madrid : Editorial Centrode Estudio Ramon Areces. 1998. v.1, p 690-714.

    10 Traité de Droit Administratif Allemand . Tra-dução da 9. Ed. alemã por Michel Fromont. Bruxe-lles : Établissements Émile Bruyant, p.126-127 e133.

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    cas sobre as missões reputadas pertinentes aoEstado. Um outro fator de extrema relevância – o progresso tecnológico – igualmente con-correu e concorre de modo inexorável para es-tes mesmos efeitos.

    Deveras, o extraordinário avanço tecnoló-gico ocorrido neste século, a conseqüente com- plexidade da civilização por ele engendrada e,correlatamente, o caráter cada vez mais técni-co das decisões governamentais, aliados à ten-dência recente da formação de grandes blocos político-econômicos formalizados, quais mega-Estados, conspiram simultaneamente contra omonopólio legislativo parlamentar e, possivel-mente, a médio prazo, até mesmo contra as li- berdades individuais. Senão, vejamos.

    Sabidamente, como resultado da evolução

    tecnológica, as limitadas energias individuaisse expandiram enormemente, com o que am- pliou-se a repercussão coletiva da ação de cadaqual, dantes modesta e ao depois potencialmen-te desastrosa (pelo simples fato de exponenci-ar-se). Em face disto, emergiu como imperati-vo inafastável uma ação reguladora e fiscali-zadora do Estado muito mais extensa e intensado que no passado. Notoriamente, o “braço tec-nológico” propiciou gerar, em escala macros-cópica, contaminação do ar, da água, poluiçãosobre todas as formas, inclusive sonora e visu-al, devastação do meio ambiente, além de en-sejar saturação dos espaços, provocada por umadensamento populacional nos grandes conglo-merados urbanos, evento, a um só tempo, im- pulsionado e tornado exeqüível pelos recursosconferidos pelo avanço tecnológico. Tornou-se, pois, inelutável condicionar e conter a atuaçãodas pessoas físicas e jurídicas dentro de pautasdefinidas e organizadas, seja para que não sefizessem socialmente predatórias, seja paraacomodá-las a termos compatíveis com umconvívio humano harmônico e produtivo.

    Em suma: como decorrência do progressotecnológico engendrou-se um novo mundo, umnovo sistema de vida e de organização social,consentâneos com esta realidade superveniente.Daí que o Estado, em conseqüência disto, teveque disciplinar os comportamentos individu-ais e sociais muito mais minuciosa e extensa-mente do que jamais o fizera, passando a imis-

    cuir-se nos mais variados aspectos da vida in-dividual e social.Este agigantamento estatal manifestou-se

    sobretudo como um agigantamento da admi-nistração, tornada onipresente e beneficiária de

    uma concentração de poder decisório que des- balanceou, em seu proveito, os termos do ante-rior relacionamento entre Legislativo e Execu-tivo. Com efeito, este último, por força de suaestrutura monolítica (chefia unipessoal e orga-nização hierarquizada), é muito mais adapta-do para responder com presteza às necessida-

    des diuturnas de governo de uma sociedade quevive em ritmo veloz e cuja eficiência máximadepende disto. Ademais, instrumentado por uma legião de técnicos, dispõe dos meios há- beis para enfrentar questões complexas cadavez mais vinculadas a análises desta naturezae que, além disto, precisam ser formuladas comatenção a aspectos particularizados ante a diver-sidade dos problemas concretos ou de suas im- plicações polifacéticas, cujas soluções dependemde análises técnicas – e não apenas políticas.

    3. Tentativas de resposta à criseda democracia

    Estes fatores convulsionantes do quadroclássico da democracia (e não apenas da de-mocracia liberal) suscitaram respostas tenden-tes a neutralizar, ao menos parcialmente, osriscos oriundos da transferência de poderes doLegislativo para o Executivo e da maior expo-sição, individual ou coletiva dos cidadãos, aum progressivo cerceamento das liberdades.

    A disseminação do parlamentarismo terásido, possivelmente, o meio de que as socieda-des mais evoluídas lançaram mão, na esfera política, para minimizar as conseqüências dofortalecimento do Executivo. Os Estados Uni-dos da América do Norte constituem-se emexceção confirmadora da regra. Com efeito,ainda dentro dos quadros tradicionais de orga-nização política, não havendo irrompido ou-

    tras fórmulas de estruturação democrática doPoder e ante a presumida impossibilidade dedeter utilmente a aludida transferência deatribuições do Legislativo para o Executivo, asolução terá sido transformar este último emdelegado daquele. Ou seja: se o Executivo, ar-mado agora de formidáveis poderes, atuar des-comedidamente, em descompasso com o senti-mento geral da coletividade, é simplesmentederrubado. Ou seja: converte-se o Parlamento,acima de tudo, em um organismo dotado do

    mais formidável poder de veto: o veto geral; portanto, uma inversão radical, do modesto e provisório poder de veto típico do Executivo.

     Na esfera administrativa, ganha relevo cres-cente o procedimento administrativo, obrigan-

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    do-se a administração a formalizar cuidadosa-mente todo o itinerário que conduz ao proces-so decisório. Passou-se a falar na “jurisdicio-nalização” do procedimento administrativo (ou processo, como mais adequadamente o deno-minam outros), com a ampliação crescente da participação do administrado no iter  prepara-

    tório das decisões que possam afetá-lo. Emsuma: a contrapartida do progressivo condici-onamento da liberdade individual é o progres-sivo condicionamento do “modus procedendi”da Administração.

    Outrossim, no âmbito processual, mas comas mesmas preocupações substanciais de defe-sa dos membros da sociedade contra o poder do Estado, surge o reconhecimento e proteçãodos chamados “interesses difusos” ou “direitosdifusos”, os quais, em última instância, ao nossover, não passam, quando menos em grandenúmero de casos, de uma dimensão óbvia dossimples direitos subjetivos. De fato, não há sen-tido algum em conceber estes últimos com vi-são acanhada, presa a relações muito típicasdo direito privado, inobstante categorizadocomo noção pertinente à teoria geral do direito.

    4. Insuficiência dos meios concebidos parasalvaguarda dos ideais democráticosOs valiosos expedientes a que se vem alu-

    dir minimizaram, mas não elidiram, a debili-tação dos indivíduos perante o Estado, assimcomo o enfraquecimento da interação entre oscidadãos e o Poder Público.

    O certo é que entre a lei e os regulamentosdo Executivo, hoje avassaladoramente invasi-vos de todos os campos (nada importando quan-to a isto que hajam sido autorizados expressa-mente ou resultem da generalidade das expres-

    sões legais que os ensejam), há diferenças ex-tremamente significativas que, no caso dos re-gulamentos, repercutem desfavoravelmentetanto no controle do poder estatal quanto nasuposta representatividade do pensamento dasdiversas facções sociais. Estas diferenças, a se-guir referidas, ensejam que as leis ofereçam aosadministrados garantias muitas vezes superio-res às que poderiam derivar unicamente dascaracterísticas de abstração e generalidade tam- bém encontradiças nos regulamentos.

    Deveras, as leis provêm de um órgão cole-gial – o Parlamento – no qual se congregamvárias tendências ideológicas, múltiplas facções políticas, diversos segmentos representativos doespectro de interesses que concorrem na vida

    social, de tal sorte que este órgão do Poder seconstitui em verdadeiro cadinho onde se mes-clam distintas correntes. Daí que o resultadode sua produção jurídica termina por ser, quan-do menos em larga medida, fruto de algum con-temperamento entre as variadas tendências. Até para a articulação da maioria requerida para a

    aprovação de uma lei, são necessárias transi-gências e composições, de modo que a matérialegislada resulta como o produto de uma intera-ção, ao invés da mera imposição rígida das con-veniências de uma única linha de pensamento.

    Com isto, as leis ganham, ainda que emmedidas variáveis, um grau de proximidade emrelação à média do pensamento social predo-minante muito maior do que ocorre quando asnormas produzidas correspondem à simplesexpressão unitária da vontade comandante doExecutivo, ainda que este também seja repre-sentativo de uma das facções sociais, a majori-tária. É que, afinal, como bem observou Kel-sen, o Legislativo, formado segundo o critériode eleições proporcionais, ensejadoras justa-mente da representação de uma pluralidade degrupos, inclusive de minorias, é mais demo-crático que o Executivo, ao qual se acede por eleição majoritária ou, no caso do Parlamenta-rismo, como fruto da vitória eleitoral de um

     partido. Daí que os regulamentos traduzem uma perspectiva unitária, monolítica, da corrente oudas coalizões partidárias prevalentes.

    Além disso, o próprio processo de elabora-ção das leis, em contraste com o dos regula-mentos, confere às primeiras um grau de con-trolabilidade, confiabilidade e imparcialidademuitas vezes superior ao dos segundos, ense- jando, pois, aos administrados um teor de ga-rantia e proteção incomparavelmente maiores.

    É que as leis se submetem a um trâmite gra-ças ao qual é possível o conhecimento públicodas disposições que estejam a caminho de se-rem implantadas. Com isto, evidentemente, háuma fiscalização social, seja por meio da im- prensa, de órgãos de classe, ou de quaisquer setores interessados, o que, sem dúvida, difi-culta ou embarga eventuais direcionamentosincompatíveis com o interesse público em ge-ral, ensejando a irrupção de tempestivas alte-rações e emendas para obstar, corrigir ou mi-nimizar tanto decisões precipitadas quanto pro- pósitos de favorecimento ou, reversamente, tra-tamento discriminatório, gravoso ou apenasdesatento ao justo interesse de grupos ou seg-mentos sociais, econômicos ou políticos. Ade-

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    mais, proporciona, ante o necessário trâmite pelas Comissões e o reexame pela Casa Legis-lativa revisora, aperfeiçoar tecnicamente a nor-matização projetada, embargando, em graumaior, a possibilidade de erros ou inconveni-ências provindos de açodamento. Finalmente, propicia um quadro normativo mais estável, a

     bem da segurança e certeza jurídicas, benéficoao planejamento razoável da atividade econô-mica das pessoas e empresas e até dos projetosindividuais de cada qual.

    Já os regulamentos carecem de todos estesatributos e, pelo contrário, ensancham as ma-zelas que resultariam da falta deles. Oposta-mente às leis, os regulamentos são elaboradosem círculo restrito, fechado, desobrigados dequalquer publicidade, libertos, então, de qual-

    quer fiscalização ou controle da sociedade oumesmo dos segmentos sociais interessados namatéria. Sua produção se faz em função da di-retriz estabelecida pelo Chefe do Governo oude um grupo restrito, composto por seus mem- bros. Não necessita passar, portanto, pelo em- bate de tendências políticas e ideológicas dife-rentes. Sobre mais, irrompe da noite para o diae assim também pode ser alterado ou suprimido.

    Tudo quanto se disse dos regulamentos em

    confronto com as leis, deve-se dizer – e commuito maior razão – das medidas provisórias, sobretudo tal como utilizadas no Brasil, isto é,descompasso flagrante com seus pressupostosconstitucionais e com a teratológica reitera-ção delas.

    5. Possível agravamento da

    crise da democracia

    Ao que foi dito cumpre acrescer – e é este possivelmente o aspecto mais importante – que,na atualidade, está ocorrendo um distanciamen-to cada vez maior entre os cidadãos e as ins-tâncias decisórias que lhes afetam diretamen-te a vida. A claríssima tendência à formaçãode blocos de Estados, de que a Europa é a maisevidente demonstração, por exibir um estágioqualitativamente distinto das ainda prodrômi-cas manifestações, mal iniciadas em outras partes, revela o surgimento de fórmulas políti-

    cas organizatórias muito distintas das que vi-goraram no período imediatamente anterior e,como dito, um distanciamento quase que ine-vitável entre o cidadão e o Poder. Com efeito,as decisões tomadas pelos Conselhos de Mi-nistros Europeus (os quais não são investidos

     por eleições para este fim específico) possivel-mente afetam de maneira mais profunda a vidade cada europeu do que as tomadas pelos res- pectivos Parlamentos nacionais, isto é, pelosque receberam mandato expresso para lhes re-gerem os comportamentos (O chamado “Par-lamento Europeu”, distintamente do que o

    nome sugere não é um órgão legislativo).Procederia concluir que um número cada

    vez menor de pessoas decide sobre a vida deum número cada vez maior delas e que os mo-delos tradicionais, sobre os quais se assentou ese procurou assegurar a democracia, estão seesgarçando. Os valores liberdade, igualdade,assim como a realidade da soberania popular (que se pretendeu traduzir nas formas institu-cionais da democracia representativa), encon-tram-se, hoje, provavelmente, muito mais res-guardados enquanto valores incorporados àcultura política do ocidente desenvolvido doque propriamente pela eficiência dos vínculosformais das instituições jurídico-políticas. Ditode outro modo: a convicção generalizada de queliberdade e igualdade são bens inestimáveisatua como um freio natural sobre os governan-tes e permite que a positividade concreta detais valores se mantenha ainda incólume, con-quanto as instituições concebidas para assegu-

    rá-los já não possuam mais as mesmas condi-ções de eficácia instrumental que possuíram.Para usar uma imagem exacerbada, é como

    se já houvesse se iniciado uma caminhada emdireção a um “despotismo esclarecido”.

    Poder-se-ia entender que os valores própriosda democracia encontram-se tão profundamenteenraizados na consciência coletiva de socieda-des politicamente mais evoluídas que se consti-tuiriam em estágio já definitivamente incorpo-

    rado, tornando impensável a possibilidade dequalquer retrocesso, independentemente da in-trínseca eficiência das instituições concebidas para lhes oferecer o máximo de respaldo.

     Nada garante, entretanto, o otimismo destasuposição. Ainda permanece verdadeira a clás-sica asserção de Montesquieu: “todo aquele quetem poder tende a abusar dele; o poder vai atéonde encontra limites”11. A História da huma-nidade, inobstante a progressiva evolução emtodos os campos, confirma, tanto quanto fatos

    e episódios ainda muito recentes, que a preva-lência de idéias generosas ou o sepultamentode discriminações odiosas e preconceitos detoda ordem mantém correlação íntima com as

    11 De l’ esprit des lois. Paris :Garnier 1869. P.142.

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    situações coletivas de bem-estar e segurança.E duram tanto quanto duram estas.

     No patamar do humano existem algumasconstantes de comportamento social comuns àgeneralidade da esfera animal. Tal como os ir-racionais, que, uma vez saciados, convivem

     bem com as demais espécies e, inversamente,agridem quando tangidos pela fome ou acica-tados pelo temor, também as coletividades hu-manas, quando ameaçadas pela presumida in-segurança ou pelo risco ao seu bem-estar, subs-tituem suas convições e ideais mais elevados pelas pragmáticas (e já agora especificamentehumanas) racionalizações e atacam com zoo-lógica violência. Surtos de racismo, de recha-ço ao estrangeiro, de nacionalismo exacerba-do, de inconformismo com as levas migratóri-

    as advindas de um refluxo do colonialismo ousimplesmente da descomposição política, eco-nômica ou social de outras sociedades – quais-quer deles já prenunciados nas tendências degrupos políticos ou sociais em algumas socie-dades européias – tanto como o recente e de-vastador consórcio bélico dos principais Esta-dos desenvolvidos contra um país árabe, o Ira-que (cujo ditador, quanto a isto, em nada é di-ferente dos demais, distinguindo-se deles ape-nas em que se revela mais resistente aos inte-

    resses das grandes potências e mais preocupa-do na defesa dos pertinentes ao próprio País),demonstram exemplarmente a precariedade dasidéias que não se encontrem alicerçadas, simul-taneamente, em interesses e em instituiçõesformais hábeis para mantê-las consolidadas.

    À vista deste panorama, ainda incipiente,mas desde logo preocupante, é difícil prenun-ciar, nestes umbrais do próximo milênio, o queseus albores reservam para a sobrevivência dademocracia e, muito mais, portanto, para as

     possibilidades dos países subdesenvolvidosacederem às condições propiciatórias de umademocracia substancial . É que os subdesen-volvidos têm sido e são, naturalmente, meros peões no tabuleiro de xadrez da economia e, pois, da política internacional; logo, por defi-nição, sacrificáveis para o cumprimento dosobjetivos maiores dos que movem as peças.

    6. Globalização e neoliberalismo: novos

    obstáculos à democraciaTalvez se possa concluir, apenas, que as

    condições evolutivas para aceder aos valoressubstancialmente democráticos, como igualda-de real e não apenas formal, segurança social,

    respeito à dignidade humana, valorização dotrabalho, justiça social (todos consagrados na bem concebida e mal-tratada Constituição Bra-sileira de 1988), ficarão cada vez mais distan-tes à medida que os governos dos países subde-senvolvidos e dos eufemicamente denomina-dos em vias de desenvolvimento – em troca do

     prato de lentilhas constituído pelos aplausos dos países cêntricos – entreguem-se incondicional-mente à sedução do canto de sereia proclama-dor das excelências de um desenfreado neoli- beralismo e de pretensas imposições de umaidolatrada economia global. Embevecidos nar-cisisticamente com a própria “modernidade”,surdos ao clamor de uma população de miserá-veis e desempregados, caso do Brasil de hoje,não têm ouvidos senão para este cântico mo-nocórdio, monolítica e incontrastavelmenteentoado pelos interessados.

    Diga-se de passagem que é incorreta a su- posição de que tanto a chamada “globalizaçãoda economia” (com as feições que, indevida-mente, se lhe quer atribuir como inerências),quanto o “neoliberalismo”, constituam-se sim- plesmente em um estágio evolutivo determi-nado tão só por transformações econômicasinevitáveis e, conseqüentemente, que encam- pá-las nada mais significa senão adotar umaatitude racional de atualização do pensamento para mantê-lo conformado ao que há de inco-ercível no desenvolvimento histórico. Esta for-ma de “interpretar” o fenômeno presente é – como freqüentemente ocorre – apenas uma for-ma astuciosa de valorizar o próprio ideário ede desacreditar, por antecipação, as contesta-ções que se lhes possam fazer. É que traz con-sigo, implícita, ou mesmo explicitamente, a prévia qualificação dos que se lhe oponham,

    como ultrapassados (“dinossauros”).Em rigor, elas nada mais são que “teoriza-ções” pobres, racionalizações, elaboradas para justificar interesses meramente políticos – edestarte contendíveis – dos países cêntricos edas camadas economicamente privilegiadas, emcujo bojo e proveito foram gestadas. Com efei-to, o modesto acervo de idéias atualmente di-fundidas “sub color” de verdade científica uni-versal nada mais é que o uso de nomenclatu-ras novas encobridoras de experiências velhas,destinadas a consagrar um simplesmovimen-to de retorno , quando menos parcial, ao sécu-lo passado, ao statu quo precedente à emer- gência do chamado Estado Social de Direitoou Estado Providência.

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    Relembremos que a partir de meados doséculo XIX e sobretudo no início do atual ir-rompeu e expandiu-se um movimento de in-conformismo das camadas sociais mais desfa-vorecidas cujas condições de vida, como é no-tório, eram extremamente difíceis. Fazendo ecoa tais eventos, eclodiram, no campo das idéias

    e sucessivamente das realizações políticas,manifestações, de maior ou menor radicalismo, ponto de origem de duas diversas vertentes – comunismo e social democracia – insurgentesambas contra o quadro político social da época.

    O Manifesto Comunista (1848) e assim tam- bém ulteriormente Encíclicas papais (“Rerum Novarum”, 1891, “Quadragesimo Anno”,1931) são expressivas de uma visão então crí-tica e renovadora. Os resultados concretos des-te panorama de insurgência, em suas duas ver-tentes, foram, respectivamente, de um lado, aRevolução Comunista de 1917 e implantaçãode tal regime na Rússia e, de outro a expansãoda social democracia. Em sintonia com estasegunda vertente, consagraram-se, pois, pela primeira vez, em Texto Constitucional, os “Di-reitos Sociais”, na Constituição mexicana, tam- bém de 1917 e ao depois na Constituição ale-mã de Weimar em 1919, disseminando-se pelomundo a acolhida de tais direitos, de tal sorte

    que a preocupação em fazer do Estado um agen-te de melhoria das condições das camadas so-ciais mais desprotegidas expande-se ao longode todo o século presente, explicando porque passou a ser referido como Estado Social deDireito ou Estado Providência. De outra parte,o regime comunista, ano a ano se alastrava,implantando-se em novos países. Paralelamen-te, o colonialismo e seu sucessor, o imperialis-mo das grandes potências do Ocidente, iniciaum processo de agonia, lenta, mas contínua,

    afligido também por censuras crescentes aoexcessivo desequilíbrio entre as nações (Encí-clicas “Mater er Magistra”, 1961, “Pacem inTerris”, 1963 e “Populorum Progressio”, 1967).

    Foi, desde o início, o temor de que se ex- pandisse a concepção comunista – radicalmenteantitética à sobrevivência do capitalismo – comsua capacidade de atrair as massas insatisfei-tas, ou quando menos de alimentar os ativistasque as mobilizavam, o que forneceu o necessá-

    rio combustível para a implantação e dissemi-nação do Estado Social de Direito. Com efeito,a História não registra gestos coletivos de ge-

    nerosidade das elites para com as camadas maiscarentes (ainda que seja pródiga em exemplosdela no plano individual). Ora bem, assim comoo receio do comunismo propiciou a irrupçãodo Estado Providência, sua falência na UniãoSoviética e no Leste Europeu – e sinais precur-sores de seu declínio no Extremo Oriente – está

    a lhe determinar o fim.A simples cronologia dos eventos e das cor-

    relatas idéias o demonstram de modo incon-tendível. O Estado Social de Direito emerge,encerrando o ciclo do liberalismo, quandoemerge o comunismo. Tão logo fracassa o co-munismo, renascem, de imediato, com vigor máximo as idéias liberais, agora “recauchuta-das” com o rótulo de “neo”, propondo liminar-mente a eliminação ou sangramento das con-quistas trabalhistas e direitos sociais, do mes-mo passo em que revive o imperialismo plenoe incontestado sob a designação aparentemen-te técnica de “globalização”.  Não há nisto,como é óbvio, coincidência alguma. O que háé disseminação de idéias políticas, de interes-se dos países dominantes e das camadas soci-ais mais favorecidas. Livres, uns e outros, dostemores e percalços que lhes impuseram as con-cessões feitas no curso do século presente, em- penham-se, agora, ao final dele, em retomar as posições anteriores. Trata-se, como se vê, deum retorno ao mesmo esquema de poder, nos planos interno e internacional, vigente no finaldo século passado e início deste, sob aplausos praticamente unânimes em ambas as frentes.

     No momento, parece que não há mais nú-cleo algum capaz de contender esta rebarbati-va unaninimidade que se autolisonjeia com oqualificativo de moderna, categorizando comoultrapassados quaisquer que ainda não hajamrenunciado ao trabalho de pensar criticamen-te. A bipolaridade mundial, dantes existente(mas finda com a implosão da União Soviéti-ca), com o confronto de idéias provindas dosdois centros produtores de ideologias antagô-nicas, ensejava, além da área de fricção, de per si desgastadora de seus extremismos, um natu-ral convite à crítica de ambas, na trilha da sín-tese resultante de tal dialética. A momentâneaausência das condições objetivas para um de- bate consistente possivelmente é, para os paí-ses subdesenvolvidos, um dos piores dramas

    deste final de milênio e um dos maiores obstá-culos a que venham, finalmente, a abicar emregimes efetivamente democráticos.