a cultura do trabalho em jaraguá do sul: um estudo sobre as trabalhadoras da indústria...

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  • 8/10/2019 A cultura do trabalho em Jaragu do Sul: Um estudo sobre as trabalhadoras da indstria txtil-vestuarista

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    A CULTURA DO TRABALHO

    EM JARAGU DO SUL:

    Melissa Coimbra

    UM ESTUDO SOBRE AS TRABALHADORAS DA

    INDSTRIA TXTIL-VESTUARISTA

  • 8/10/2019 A cultura do trabalho em Jaragu do Sul: Um estudo sobre as trabalhadoras da indstria txtil-vestuarista

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    melissa coimbra

    a cultura do trabalhoemjaragu do sul

    um estudo sobre as trabalhadorasda indstria txtil-vestuarista

    UFSC

    Florianpolis

    2014

  • 8/10/2019 A cultura do trabalho em Jaragu do Sul: Um estudo sobre as trabalhadoras da indstria txtil-vestuarista

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    C679c Coimbra, Melissa

    A cultura do trabalho em Jaragu do Sul: um

    estudo sobre as trabalhadoras da indstria

    txtil-vestuarista / Melissa Coimbra.

    Florianpolis : Editoria Em Debate/UFSC, 2014.

    232 p. : il., graf., tabs., mapas.

    Inclui bibliografa.

    ISBN: 978-85-68267-06-6

    1. Indstria txtil Jaragu do Sul. 2. Jaragu

    do Sul Histria. 3. Trabalho Aspectos sociais.

    4. Mulheres Trabalho. I. Coimbra, Melissa.

    II. Ttulo.

    CDU: 316.334.23 (816.401.06)

    Copyright 2014 Melissa Coimbra

    Capa

    Tiago Roberto da Silva

    Foto da capa

    http://nevsepic.com.ua

    Edio e editorao eletrnica

    Carmen Garcez

    Catalogao na fonte pela Biblioteca Universitria

    da

    Universidade Federal de Santa Catarina

    Todos os direitos reservados a

    Editoria Em Debate

    Campus Universitrio da UFSC Trindade

    Centro de Filosofa e Cincias Humanas

    Bloco anexo, sala 301

    Telefone: (48) 3338-8357

    Florianpolis SC

    www.editoriaemdebate.ufsc.br

    www.lastro.ufsc.br

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    agradecimentos

    Agradeo Capes pela bolsa concedida durante o mestrado,sendo que esse recurso foi fundamental para a concluso deminha pesquisa; ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia

    Poltica, pela ateno dedicada a esta pesquisa e pelos recursos

    nanceiros concedidos para a participao em congressos.

    Sou grata profa Maria Soledad, pelas suas orientaessempre oportunas e pelos incentivos acadmicos, essenciais ao

    meu crescimento como Cientista Social e como cidad. Aos(s)

    professores(as) do Programa de Ps-Graduao em Sociologia Po-

    ltica, que contriburam para a minha formao acadmica, e em

    especial aos professores Jacques Mick e Ricardo Gaspar Mller,

    que participaram da banca de qualicao, com suas sugestes in-

    dispensveis a este trabalho.

    Meus agradecimentos s(os) integrantes do NUSMER, que

    colaboraram de alguma forma para o meu crescimento acadmico:

    profaMrcia Mazon, Gabriel, Maria Alejandra e, especialmente,

    querida colega Caroline Jacques, sempre disposta a debater a teo-

    ria social e poltica.

    Agradeo a todas as trabalhadoras do setor txtil-vestuarista que

    me presentearam com suas histrias; e ao Sindicato dos Trabalhado-

    res nas Indstrias do Vesturio de Jaragu do Sul e Regio o STIV,que contribuiu signicativamente, fornecendo dados e informaes

    valiosas para esta pesquisa. Agradeo ao Instituto Federal de Jaragu

    do Sul IFSC, pela especial ateno que obtive durante a pesquisa

    de campo, inclusive concedendo transporte e fornecendo contatos de

    prossionais que atuam na cadeia txtil-vestuarista da cidade. Agra-

    deo aos(s) trabalhadores(as) do Museu Histrico Eugnio Victor

    Schmckel e da Biblioteca Municipal de Jaragu do Sul, que sempre

    foram atenciosos em fornecer dados, informaes e documentos ne-cessrios pesquisa.

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    Especialmente, agradeo ao meu companheiro Eric Araujo

    Dias Coimbra pelas suas sugestes e pelo sempre imenso incenti-

    vo acadmico em minha trajetria prossional. Agradeo minhame, Gertrudes, pelo incentivo, amor e carinho, ao meu pai Ernani

    Barcellos (in memoriam), ao meu irmo Marcelo Ernani Barcellos,ao Mrio Lcio Coimbra pela atenciosa reviso desta pesquisa e

    querida Elizabeth Adorno Araujo Dias pelo sempre incentivo, ami-

    zade e solidariedade.

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    o ltimo discurso

    Sinto muito, mas no pretendo ser umimperador. No esse o meu ofcio.

    No pretendo governar ou conquistarquem quer que seja. Gostaria deajudar se possvel judeus, o

    gentio... negros... brancos.

    Todos ns desejamos ajudar uns aosoutros. Os seres humanos so assim.

    Desejamos viver para a felicidadedo prximo no para o seuinfortnio. Por que havemos de odiare desprezar uns aos outros? Nestemundo h espao para todos. A terra,que boa e rica, pode prover a todas

    as nossas necessidades.O caminho da vida pode ser o daliberdade e da beleza, porm nosextraviamos. A cobia envenenoua alma dos homens... levantouno mundo as muralhas do dio...e tem-nos feito marchar a passode ganso para a misria e osmorticnios. Criamos a pocada velocidade, mas nos sentimosenclausurados dentro dela. Amquina, que produz abundncia,tem-nos deixado em penria. Nossosconhecimentos zeram-nos cticos;

    nossa inteligncia, empedernidose cruis. Pensamos em demasiae sentimos bem pouco. Mais do

    que de mquinas, precisamosde humanidade. Mais do que de

    inteligncia, precisamos de afeioe doura. Sem essas virtudes, a vida

    ser de violncia e tudo ser perdido.

    A aviao e o rdio aproximaram-nos muito mais. A prpria naturezadessas coisas um apelo eloquente bondade do homem... um apelo fraternidade universal... uniode todos ns. Neste mesmo instantea minha voz chega a milhares de

    pessoas pelo mundo afora... milhesde desesperados, homens, mulheres,criancinhas... vtimas de um sistemaque tortura seres humanos e

    encarcera inocentes.Aos que me podem ouvir eu digo:No desespereis! A desgraa quetem cado sobre ns no mais doque o produto da cobia em agonia...da amargura de homens que tememo avano do progresso humano. Oshomens que odeiam desaparecero,os ditadores sucumbem e o poder quedo povo arrebataram h de retornarao povo.

    E assim, enquanto morrem homens, aliberdade nunca perecer.

    Soldados! No vos entregueis a essesbrutais... que vos desprezam... quevos escravizam... que arregimentam

    as vossas vidas... que ditam os vossosatos, as vossas ideias e os vossos

    (charles chaplin)

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    sentimentos! Que vos fazem marcharno mesmo passo, que vos submetema uma alimentao regrada, que vostratam como gado humano e que vosutilizam como bucha de canho!

    No sois mquina! Homens quesois! E com o amor da humanidadeem vossas almas! No odieis! Sodeiam os que no se fazem amar...os que no se fazem amar e osinumanos!

    Soldados! No batalheis pelaescravido! Lutai pela liberdade!

    No dcimo stimo captulo de SoLucas est escrito que o Reino deDeus est dentro do homem no deum s homem ou grupo de homens,mas dos homens todos! Est emvs! Vs, o povo, tendes o poder

    o poder de criar mquinas. O poderde criar felicidade! Vs, o povo,tendes o poder de tornar esta vidalivre e bela... de faz-la uma aventuramaravilhosa. Portanto em nome dademocracia usemos desse poder,unamo-nos todos ns. Lutemos porum mundo novo... um mundo bomque a todos assegure o ensejo de

    trabalho, que d futuro mocidade esegurana velhice.

    pela promessa de tais coisas quedesalmados tm subido ao poder.

    Mas, s misticam! No cumprem o

    que prometem. Jamais o cumpriro!Os ditadores liberam-se, pormescravizam o povo. Lutemos agora

    para libertar o mundo, abater asfronteiras nacionais, dar m

    ganncia, ao dio e prepotncia.Lutemos por um mundo de razo,um mundo em que a cincia e o

    progresso conduzam ventura detodos ns. Soldados, em nome dademocracia, unamo-nos!

    Hannah, ests me ouvindo? Onde teencontrares, levanta os olhos! Vs,

    Hannah? O sol vai rompendo asnuvens que se dispersam! Estamos

    saindo da treva para a luz! Vamosentrando num mundo novo ummundo melhor, em que os homensestaro acima da cobia, do dioe da brutalidade. Ergue os olhos,

    Hannah! A alma do homem ganhouasas e anal comea a voar. Voa para

    o arco-ris, para a luz da esperana.

    Ergue os olhos, Hannah!Ergue os olhos!

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    trs apitos

    Quando o apito da fbrica de tecidosVem ferir os meus ouvidos

    Eu me lembro de vocMas voc andaSem dvida bem zangadaOu est interessada

    Em ngir que no me vVoc que atende ao apitode uma chamin de barro

    Porque no atende ao gritoTo aito

    Da buzina do meu carroVoc no invernoSem meias vai pro trabalho

    No faz f no agasalho

    Nem no frio voc crMas voc mesmo artigoque no se imitaQuando a fbrica apita

    Faz reclame de vocNos meus olhos voc lQue eu sofro cruelmenteCom cimes do gerente

    Impertinente

    Que d ordens a vocSou do sereno poeta muito soturnoVou virar guarda-noturno

    E voc sabe porqueMas voc no sabeQue enquanto voc faz pano

    Fao junto ao pianoEstes versos pra voc

    (noel rosa)

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    SUMRIO

    . introduo.............................................................................

    1.1 Metodologia................................................................................

    1.2 Referenciais tericos: mundos do trabalho, gnero e

    etnicidade atravs de trajetrias .................................................

    . aspectos sociais, histricos e econmicos

    de jaragu do sul.................................................................

    2.1 Aspectos histricos de Jaragu do Sul.............................. .........

    2.2 Histrico e mapeamento da imigrao e das etnias...................

    2.3 As caractersticas da colnia e o papel da mulher .....................

    2.4 Do sistema de colnia-venda industrializao........................

    2.5 Histrico e aspectos gerais da Malwee.................................... ..

    2.6 Histrico e aspectos gerais da Marisol ......................................

    . o mundo do trabalho visto do

    componente tnico..........................................................

    3.1 A noo de cultura do trabalho ..................................................

    3.2 A cultura do trabalho em Jaragu do Sul ...................................

    3.3 Etnicidade e religio ...................................................................

    3.4 A migrao das(os) trabalhadoras(es) do

    Estado do Paran ......................................................................

    . gnero e trabalho...........................................................

    4.1 O perl das trabalhadoras entrevistadas..................................

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    4.2 A sade das trabalhadoras ........................................................

    4.3 As trajetrias laborais das trabalhadoras .................................

    4.4 A rotina diria das trabalhadoras: a esfera domstica e a

    indstria....................................................................................

    4.5 A ausncia de benefcios sociais nas indstrias..................... ..

    4.6 Diferentes vises geracionais de trabalhadoras .......................

    4.7 O componente tnico nas indstrias:

    as daqui e as de fora.... ......................................................

    4.8 O que as trabalhadoras esperam de seu trabalho? ...................

    4.9 As trabalhadoras e o seu tempo de lazer ..................................

    . as transformaes do mundo do trabalho

    e a reestruturao produtiva..................................

    5.1 A reestruturao produtiva e as transformaes dos

    modelos de gesto ....................................................................

    5.2 Os impactos da reestruturao produtiva no polo

    txtil-vestuarista de Jaragu do Sul .........................................

    5.3 Caractersticas da indstria txtil-vestuarista: as etapas

    do processo produtivo .............................................................

    5.4 A exploso das faces em Jaragu do Sul:

    o trabalho a domiclio .............................................................

    5.5 O sindicato e as trabalhadoras ................................................

    . consideraes finais......................................................

    referncias.................................................................................

    anexos............................................................................................

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    1. Entrevista com empresria(o) do ramo txtil-vestuarista

    de Jaragu do Sul Campo II Outubro de 2012 ....................

    2. Entrevista com costureira de faco no registrada e que no

    possui carteira assinada Jaragu do Sul

    Dezembro de 2012 .....................................................................

    3. Entrevista com costureira de faco, registrada em carteira

    Dezembro de 2012 .....................................................................

    4. Entrevista com trabalhadoras da Marisol e Malwee

    Setembro a dezembro de 2012 ...................................................

    5. Entrevista com o historiador, concedida em 14 de dezembro

    de 2012. O mesmo roteiro foi aplicado ao professor do

    Instituto Tcnico Federal de Jaragu do Sul ..............................

    6. Entrevista com a vice-presidente e coordenadora do

    departamento da mulher do Sindicato dos Trabalhadores

    nas Indstrias do Vesturio de Jaragu do Sul e Regio (STIV),

    em 13 de agosto de 2012 ............................................................

    lista de grficos....................................................................

    lista de tabelas.........................................................................

    lista de fotos............................................................................

    lista de ilustraes.............................................................

    lista de mapas............................................................................

    lista de siglas ...........................................................................

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    introduo

    Esta pesquisa se prope analisar as trajetrias laborais das traba-lhadoras da cadeia txtil-vestuarista de Jaragu do Sul, cidadesituada na regio Norte do Estado de Santa Catarina (sul do Brasil),

    procurando construir uma interlocuo entre as dimenses de gnero,

    trabalho e etnicidade.

    Um marco signicativo nessas trajetrias remete aos impactos da

    reestruturao produtiva sobre o contedo e as condies laborais das

    trabalhadoras e requer que nos debrucemos sobre algumas das conse-

    quncias desse processo. As mudanas da economia global, junto com

    as reformas neoliberais que impactaram o mundo do trabalho, afetaram

    de forma signicativa o setor txtil, que no intuito de se readequar as

    condies de acirrada competitividade do mercado, imprimiu polticas

    severas de reestruturao no mbito das relaes e condies de traba-

    lho a partir da dcada de 1990. Procurando identicar como esse marco

    estrutural penetra nas possibilidades e expectativas das trabalhadoras,

    registramos seus testemunhos orais sobre a insero e condies labo-

    rais no setor, julgando estimulante selecionar pers pessoais de forma

    a garantir uma heterogeneidade desse grupo de trabalhadoras.

    A regio de Jaragu do Sul apresentou, em sua trajetria de con-

    solidao demogrca, fortes componentes migratrios e, entre estes,

    houve uma presena signicativa de populao oriunda de pases eu-

    ropeus (Alemanha, Itlia, Hungria e Polnia), cuja referncia constan-

    temente aparece no imaginrio local como emblemas para a identi-

    cao, sobretudo, em relao dimenso sociocultural que se expressa

    atravs da cultura do trabalho. Cabe frisar que o lema grandeza pelo

    trabalho encontra-se, inclusive, no centro da prpria bandeira da ci-dade e dessa forma evocado como marca de caracterizao cultural.

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    Esses discursos que se criam em torno de emblemas de identida-

    de tnica so, com frequncia, trazidos tona nas narrativas de traba-

    lhadoras, de empresrios da regio e de algumas guras vinculadas aomundo laboral, na esteira de supostos atributos positivos inerentes ao

    trabalho. Essa categoria tnica uma construo social que compare-

    ce como estratgia de diferenciao e hierarquizao social em certas

    circunstncias, onde poderia haver disputa de recursos. Seja no mbito

    do trabalho ou na ocupao de certos espaos urbanos que crescem e

    se transformam na esteira da consolidao de alguns bairros locais.

    Isso se manifesta, por exemplo, diante da prpria chegada de novos

    componentes migratrios, em dcadas relativamente recentes na his-tria da cidade.

    Alm do uxo de migrantes europeus nas primeiras dcadas da

    formao da cidade, Jaragu do Sul tambm recebeu um uxo migrat-

    rio de trabalhadores(as) a partir dos anos 1970 perodo de desenvolvi-

    mento econmico chamado milagre brasileiro1 oriundos de vrias

    regies do pas, especialmente do Paran, para trabalhar nas fbricas.

    Essa realidade se faz presente em diversos segmentos da indstria na

    cidade: alm das indstrias da cadeia txtil-vestuarista, como a MalweeLtda. e a Marisol S.A., indstrias como a Weg Motores e indstrias

    alimentcias tambm atraem mo de obra de outras regies do Brasil.

    Como essa varivel tnica considerada no caso do nosso estudo,

    como relevante para iluminar a compreenso das relaes de trabalho

    1 Embora o perodo tenha sido chamado de milagre brasileiro e apresentado altos

    ndices de crescimento econmico, ele foi acompanhado tambm de retrocessos so-

    ciais tais como: a concentrao de terras; a expulso dos pobres da rea rural, devi-do modernizao da agricultura; o intenso xodo rural, a violncia praticada con-

    tra a classe trabalhadora no campo e na cidade, alm da dvida externa brasileira que

    aumentou paulatinamente durante o perodo. O golpe signicou um retrocesso para

    o Pas. Os projetos de desenvolvimento implantados pelos governos militares leva-

    ram ao aumento da desigualdade social. Suas polticas aumentaram a concentrao

    de renda, conduzindo a imensa maioria da populao misria, intensicando a con-

    centrao fundiria e promovendo o maior xodo rural da histria do Brasil. Sob a re-

    trica da modernizao, os militares aumentaram os problemas polticos e econmi-

    cos, e quando deixaram o poder em 1985, a situao brasileira estava extremamente

    agravada pelo que fora chamado de milagre brasileiro. (Fernandes, 2000, p. 41).Ver Coimbra (2006).

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    A cultura do trabalho em jaragu do sul 17

    ligadas ao setor nessa cidade (e na regio), julgamos adequado apoiar-

    -nos nas argumentaes da antroploga Giralda Seyferth, que fala so-

    bre as caractersticas dos grupos tnicos que imigraram para o Brasil:

    As identidades tnicas foram elaboradas dentro de uma pers-

    pectiva etnocntrica de superioridade tnica. A comear

    pelo ethosdo trabalho, presente em quase todos os gru-

    pos, onde o pioneirismo ou a capacidade so argumentos

    manipulados para contrastar os imigrantes com os bra-

    sileiros. A obra da colonizao e a participao do imigrante

    na industrializao do Brasil so as marcas diferenciadoras

    mais frequentemente usadas para armar as identidades t-nicas. O trabalho concebido dessa maneira um dos sm-

    bolos de identidade mais utilizados, pois contrasta, de um

    lado, os imigrantes e seus descendentes, como aqueles que

    vieram para designar o trabalho, e de outro os brasileiros,

    denidos por oposio, como avessos ao trabalho, principal-

    mente manual (Seyferth, 1990, p. 91, grifo nosso).

    Na esteira dessa tica voltada ao trabalho, trata-se aqui de iden-

    ticar como isso se criou e recriou na cidade. Inclusive procuramos

    vericar se esse tom tnico apareceria como discurso de identicao

    diferenciao entre as trabalhadoras, sobretudo aps as transformaes

    econmico-estruturais no setor txtil-vestuarista a partir dos anos 1990.

    Por outro lado, no eixo temtico que vincula trabalho e gnero,

    que tambm constitui base fundamental para nossa anlise; verica-

    mos que foram produzidas vrias pesquisas nas universidades brasilei-

    ras, as quais, apesar das suas especicidades consideram esse recortede gnero como perspectiva indispensvel para pensar o mundo do

    trabalho.2Diz-se, inclusive, que relaes sociais de sexo e diviso

    sexual do trabalho so duas proposies indissociveis que formam

    um sistema (Kergoat, 1996, p. 1).

    Segundo Neves e Pedrosa (2007, p. 11), o processo de mudan-

    2 Coimbra (2012), Jinkings (2002), Jinkings e Amorim (2006), Leite (2004), Leite

    (2009), Lima (2009), Neves (2000), Pedrosa (2005), Calef (2008), Amorim (2003),Araujo (2001), Abreu (1993), entre outros(as).

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    18 melissa coimbra

    as que transformou o mundo do trabalho, a partir da reestruturao

    produtiva reconguraram as relaes de gnero no trabalho. Obser-

    vou-se nas pesquisas, que o trabalho exvel no processo produtivoacarretou na massiva terceirizao e subcontratao de mo de obra

    feminina, demandadas pelas indstrias do segmento txtil-vestuarista

    no Brasil, assim como o aumento do trabalho informal (a domiclio)

    realizado, muitas vezes, por famlias inteiras. Com a poltica de aber-

    tura econmica praticada pelo governo brasileiro nos anos de 1990 e a

    consequente reestruturao produtiva, as indstrias do segmento txtil-

    -vestuarista reconguraram as relaes internas do contedo e a forma

    do trabalho, tornando barata a mo de obra feminina neste setor daeconomia, sobretudo em relao costura, a ltima etapa da produo.

    Seguindo as perspectivas acima esboadas, elaboramos uma tra-

    ma social que ser tratada luz dos estudos tericos sobre as transfor-

    maes do mundo do trabalho, os estudos de etnicidade e tambm de

    gnero. Na interseo dessas variveis, procuramos buscar respostas a

    algumas das indagaes que nos desaavam, conforme segue.

    Pressupondo que a identidade tnica uma construo social,

    que se atualiza atravs das prticas e contedos no cotidiano das re-

    laes, de que forma ela poderia estar comparecendo nos discursos

    e prticas de identicao das trabalhadoras do setor? Haveria uma

    cultura de trabalho especca com contedos supostamente herdados

    dos imigrantes europeus? Em que medida essa identidade tnica re-

    criada como forma de hierarquizao ou diferenciao social, como

    um recurso de disputa de recursos? Dessa forma, at que ponto a cul-

    tura do trabalho peculiar regio, seria uma ideologia criada e tida

    como um pressuposto que assegura empregabilidade s trabalhadoras

    de ascendncia europeia em detrimento das que vm de fora? Quais

    seriam as representaes sobre a cultura do trabalho das trabalhadoras

    migrantes de outros Estados do Brasil, em especial as paranaenses, ou

    de trabalhadoras jaraguaenses que no so de ascendncia europeia,

    por exemplo, as negras? Quais so as especicidades das trajetrias

    laborais das trabalhadoras, considerando os componentes de gnero,

    gerao, origem e ascendncia familiar? Esta ltima questo, pensada

    diante do marco da migrao de trabalhadoras(es) de outros Estados

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    A cultura do trabalho em jaragu do sul 19

    brasileiros (sobretudo do Paran) e tambm mediante o processo de

    reestruturao produtiva a partir dos anos de 1990, que afetou as in-

    dstrias da cadeia txtil-vestuarista na regio.Partimos do pressuposto de que a etnicidade e as relaes de g-

    nero se entrelaam com as histrias de vida das trabalhadoras, e ao

    mesmo tempo, se recriam e se transformam no mbito da vida laboral

    (macroestrutural) e microssocial. Com esse pano de fundo, formula-

    mos as seguintes hipteses: 1) Existiria uma preferncia de compo-

    nente tnico de perl laboral por parte das indstrias txteis-vestua-

    ristas no momento da contratao das trabalhadoras, constituindo uma

    espcie pacto tnico de empregabilidade, no obstante, atualmenteesta preferncia teria se rompido mediante os cenrios de mudanas

    estruturais; 2) O discurso da grandeza pelo trabalho seria uma ide-

    ologia difundida pela elite industrial e poltica da cidade, o qual seria

    incorporado pelas antigas e novas geraes de trabalhadoras e traba-

    lhadores, embora tambm existam resistncias a este discurso. 3) A

    reestruturao produtiva afetou sobretudo as condies de trabalho

    das trabalhadoras, fragmentando as formas de contratao de servios

    e precarizando as suas condies de trabalho, independentemente dacondio tnica ou de origem (sejam nativas ou de fora da cidade)

    dessas trabalhadoras.

    Procurando dar cobertura a essas indagaes, elaboramos o pre-

    sente estudo organizando os contedos da seguinte forma: no primeiro

    captulo, apresentamos uma abordagem dos aspectos sociais, hist-

    ricos e econmicos de Jaragu do Sul, enfocando as caractersticas

    da colnia e elaborando um mapeamento da imigrao e das etnias.

    Abordamos o processo de transio do sistema colnia-venda in-

    dustrializao, com destaque para as empresas Malwee e Marisol. O

    segundo captulo, intitulado O mundo do trabalho visto do compo-

    nente tnico, faz uma abordagem terica da cultura do trabalho em

    Jaragu do Sul, enfocando os conceitos de etnicidade e religiosidade,

    bem como o processo migratrio das(os) trabalhadoras(es) do Estado

    do Paran. O terceiro captulo, intitulado Gnero e trabalho, enfoca

    o perl das trabalhadoras entrevistadas, suas trajetrias laborais, a re-

    lao entre a esfera domstica e a fbrica, as diferentes vises geracio-

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    20 melissa coimbra

    nais de trabalhadoras, o componente tnico nas indstrias, a ausncia

    de benefcios sociais e as condies de sade das trabalhadoras. O

    quarto e ltimo captulo, intitulado As transformaes do mundo dotrabalho e a reestruturao produtiva, aborda as transformaes do

    modelo de gesto, os impactos da reestruturao produtiva no polo

    txtil-vestuarista de Jaragu do Sul (SC), as caractersticas e as etapas

    de produo na indstria, a exploso das faces e o trabalho a domi-

    clio, e a questo sindical.

    1.1 metodologiaRealizamos uma amostragem constituda por 27 entrevistas. Fo-

    ram entrevistadas 16 trabalhadoras (costureiras) de duas indstrias

    txteis-vestuaristas da cidade de Jaragu do Sul SC: a Malwee Ma-

    lhas Ltda. e a Marisol S.A. Alm destas, entrevistamos duas costu-

    reiras de uma faco de roupas, registradas em carteira e trs costu-

    reiras de faces no registradas, que exercem trabalho a domiclio.

    Tambm entrevistamos uma dirigente do Sindicato dos Trabalhadores

    nas Indstrias do Vesturio de Jaragu do Sul e Regio (STIV), dois

    empresrios do ramo txtil-vestuarista, um historiador do Museu His-

    trico de Jaragu do Sul, um ex-diretor da Malwee Malhas Ltda. e

    um professor da Escola Tcnica Federal (IFSC) de Jaragu do Sul. As

    anlises e reexes que constituem essa pesquisa incluem todas essas

    fontes que foram registradas no campo emprico.

    Entre as 21 costureiras entrevistadas, trs so aposentadas j ido-

    sas, com mais de 65 anos. As diferenas de idade das trabalhadorasentrevistadas oferece-nos uma viso de anlise geracional, mediante

    entrevistas com mulheres que iniciaram na indstria txtil e do ves-

    turio antes mesmo da dcada de 1980 e outras que iniciaram suas

    atividades em perodos mais recentes (dcadas de 1990, 2000).

    Ao entrevistarmos as trabalhadoras mais antigas, vericamos

    que apesar de algumas terem se aposentado por tempo de servio, elas

    ainda continuam trabalhando nas mesmas indstrias em que se apo-

    sentaram, constituindo um fato comum na indstria txtil-vestuarista

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    A cultura do trabalho em jaragu do sul 21

    de Jaragu do Sul. Como a mo de obra de costureiras escassa na

    regio, as indstrias no demitem as trabalhadoras aposentadas, pois

    estas empresas, alm de perderem mo de obra qualicada, teriam quepagar todos os encargos sociais de anos de trabalho.3

    Procuramos contemplar na amostragem uma srie de pers pro-

    ssionais, incluindo costureiras de variadas faixas etrias e ocupaes,

    aposentadas que continuam trabalhando na indstria; aposentadas que

    no exercem mais a prosso na indstria; costureiras que so lderes

    sindicais; costureiras que no so ligadas ao sindicato e costureiras de

    pequenas faces registradas e no registradas.

    Parte das entrevistas realizadas foi possvel mediante uma lista

    de contatos de trabalhadoras fornecida pelo Sindicato dos Trabalha-

    dores nas Indstrias do Vesturio de Jaragu do Sul e Regio (STIV);

    tambm foram obtidos outros contatos a partir das primeiras traba-

    lhadoras entrevistadas. Solicitamos ao sindicato e s prprias infor-

    mantes que nos indicassem trabalhadoras de diversos pers tnicos:

    negras, nordestinas, paranaenses, descendentes de alems, hngaras,

    italianas e outras.

    Foram realizadas trs viagens de campo cidade de Jaragu do

    Sul, nos meses de setembro, outubro e dezembro de 2012. No ms

    de setembro, realizamos um pr-campo, investigando junto ao sin-

    3 Segundo as informaes do sindicato da categoria, o STIV, a lei permite que o tra-

    balhador (a) continue trabalhando aps aposentadoria, at mesmo porque, com o sis-

    tema do fator previdencirio que incide sobre o valor das aposentadorias, reduzindo

    muito o que se recebe, muitos trabalhadores/as preferem continuar trabalhando, para

    ajudar nos rendimentos. As indstrias no demitem, pois geralmente trata-se de pesso-as com muita experincia. No existe lei que obrigue a empresa a demitir o trabalha-

    dor (a), no momento em que se aposenta. Fonte: STIV (2013). Informao verbal. [...]

    Tambm, segundo as informaes do setor Jurdico do sindicato da Indstria Txtil de

    Blumenau SC SINTEX, No existe qualquer Lei que vincule aposentadoria res-

    ciso do contrato de trabalho. Existe um entendimento hoje estampado do art. 58 da

    Lei 8.213/91 apenas para os trabalhadores que fossem aposentados especiais (B-46),

    os quais no poderiam permanecer em ambiente insalubre. Entretanto o TRF4, em rei-

    terados julgamentos posicionou-se pela inconstitucionalidade de tal artigo. Assim, no

    ordenamento jurdico, se aposentar ou no, no surte qualquer efeito prtico, deven-

    do ser entendido como se o trabalho continuasse da mesma maneira. Fonte: SINTEX(2013). Informao verbal.

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    22 melissa coimbra

    dicato o perl das trabalhadoras, as especicidades econmicas da

    indstria txtil-vestuarista de Jaragu do Sul e a cultura do trabalho

    da regio.No incio da nossa pesquisa pretendamos entrevistar ao menos

    um empresrio da Malwee e um da Marisol, alm de visitar estas in-

    dstrias. No entanto, todas as tentativas de entrevistar as cheas das

    empresas, seja por via de e-mail, contato por telefone, atravs do sin-

    dicato da categoria e do sindicato patronal, por via institucional (pelo

    prprio RH das indstrias) e por via da prefeitura, foram infrutferas.

    Percebemos um clima de receio e desconana por parte dos empre-

    srios em fornecer dados institucionais qualitativos e quantitativos daprpria empresa, mesmo sabendo que se tratava de uma pesquisa de

    cunho cientco.

    Entretanto, tivemos sucesso ao entrar em contato com a coor-

    denao do curso txtil-vestuarista do Instituto Federal de Santa Ca-

    tarina IFSC de Jaragu do Sul, que nos apresentou toda a dinmica

    do processo produtivo, desde a produo dos os at a ltima etapa

    da produo, a costura, a elaborao nal e acabamentos da pea de

    roupa. Tivemos a necessidade de fazer uma imerso no universo das

    etapas do processo produtivo, que nos foi oportunizado por meio dos

    professores da rea txtil e do vesturio. A visitao no IFSC nos pro-

    porcionou uma viso mais tcnica do setor, o que facilitou o entendi-

    mento dos depoimentos das trabalhadoras e dos demais informantes

    envolvidos na pesquisa. Alm disso, tivemos acesso a uma pequena

    empresa do ramo txtil-vestuarista, que nos rendeu uma entrevista

    com o proprietrio. Tambm, por meio do IFSC, conhecemos uma

    pequena faco que presta servios para uma grande indstria txtil-

    -vestuarista da cidade, na qual entrevistamos a gerente/proprietria.

    Alm disso, procuramos outras vias de acesso, atravs de conta-

    tos que tnhamos na cidade de Jaragu do Sul em anos anteriores ao

    pr-projeto desta pesquisa. Estes contatos foram realizados por meio

    de redes de relacionamentos de funcionrias da Biblioteca Municipal

    de Jaragu do Sul e do Museu Histrico da cidade, que forneceram,

    alm de contatos de informantes para a pesquisa, fotograas antigasdas primeiras indstrias txteis-vestuaristas em Jaragu do Sul.

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    A cultura do trabalho em jaragu do sul 23

    Foto 1 Sede comercial da rma Weege (1906). Atual Malwee

    Fonte: Arquivo Histrico Eugnio Victor Schmckel Jaragu do Sul (SC).

    Atravs das entrevistas realizadas com a vice-presidente do

    STIV, o historiador do museu de Jaragu do Sul, o professor do IFSCe o ex-dirigente da Malwee, obtivemos uma anlise qualitativa das di-

    menses histricas e culturais da indstria txtil-vestuarista da cidade

    de Jaragu do Sul, alm das especicidades da cultura do trabalho.

    O tempo mdio de durao das entrevistas foi de uma a duas

    horas. Os contatos com as(os) depoentes foram marcados via e-mail e

    por telefone dias antes da conversa e o local da realizao da entrevista

    era estipulado pela(o) informante. Algumas entrevistas foram realiza-

    das no STIV, em uma sala fornecida pela diretoria. Outros contatosforam realizados nas prprias casas das(os) informantes. Percorremos

    de carro vrios pontos da cidade, incluindo bairros perifricos e rurais

    de difcil acesso. Apesar de algumas diculdades durante o campo da

    pesquisa, como a desconana e a falta de tempo de algumas trabalha-

    doras, consideramos de grande valor qualitativo os relatos e todos os

    materiais coletados durante o campo.

    Quanto estratgia metodolgica para a realizao desta pes-

    quisa, priorizamos o mtodo qualitativo, com foco na histria oral de

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    24 melissa coimbra

    vida.4Utilizamos a metodologia da histria de vida, atribuindo nfase

    nas trajetrias laborais das mulheres que atuam na cadeia produtiva

    do setor txtil-vestuarista, tanto as trabalhadoras formais como as in-formais. As entrevistas seguiram um roteiro mnimo, procurando re-

    gistrar os testemunhos das(os) informantes da forma mais cuidadosa

    possvel, e por isso zemos uso constante de um gravador. A mesma

    tcnica tambm foi adotada com as(os) demais informantes que nos

    concederam os momentos de conversa.

    As pesquisas com o mtodo da histria de vida tem como foco

    registrar a trajetria de pessoas recompondo os aspectos da vida in-

    dividual e do grupo na qual elas esto inseridas, de forma particular,quando as trajetrias representam experincias coletivas. Tal metodo-

    logia utilizada com o intuito de coletar, preparar e disponibilizar

    memrias gravadas, servindo de fonte primria aos pesquisadores.

    Tambm escolhemos tal metodologia, a m de dar voz gente co-

    mum, como os movimentos de minorias culturais e discriminadas,

    entre estes as mulheres (Meihy, 1996). A histria de vida um ins-

    trumento privilegiado para interpretar o processo social a partir das

    pessoas envolvidas, na medida em que se consideram as experinciassubjetivas como dados importantes que falam alm e atravs delas

    (Minayo, 1993, p. 126-127).

    1.2 referenciais tericos: mundos do trabalho,gnero e etnicidade atravs de trajetrias

    Ao analisar as histrias de vida das trabalhadoras envolvidas nes-sa pesquisa, procuramos mapear as suas trajetrias laborais no per-

    curso de suas vidas, com o intuito de identicar como tais biograas

    individuais se conectam com as mudanas estruturais, ou seja, o movi-

    mento que conecta o indivduo e a sociedade. Mills (1982, p. 12) fala

    4 As identidades de todas(os) as(os) informantes entrevistadas(os) foram preservadas.

    Assim as mantivemos no anonimato para que no houvesse problemas de ocasional-

    mente serem reconhecidas(os). Tambm optamos por preservar as falas das(os) depoen-

    tes, tendo em vista as variedades regionais, sem fazer alteraes em relao aos vciosde linguagem e aos eventuais desvios em relao norma culta da lngua portuguesa.

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    A cultura do trabalho em jaragu do sul 25

    da busca da necessidade de compreenso da estrutura social moderna,

    e como no interior dessas estruturas se formam as diferentes psicolo-

    gias de homens e mulheres, ou seja, a compreenso da relao entrehistria e biograa, como elas se entrelaam e tambm se tensionam.

    A noo terica de trajetria laboral que adotamos nesta pesquisa

    compreendida como:

    El estudio de las trayectorias laborales de la secuencia de

    posiciones del sujeto en el mercado de trabajo, permite cap-

    tar y comprenderlos procesos de cambio que se dan a nivel

    estructural-econmico, social y cultural a travs de su ex-

    posicin a nivel micro el curso de vida de los sujetos y

    su subjetividad. Permite, as, poner en relacin la demanda

    con la oferta de fuerza de trabajo, femenina y masculina,

    determinadas ambas tanto por los cambios tecnolgicos y

    organizacionales como por las transformaciones en las rela-

    ciones de gnero dentro y fuera del mercado laboral (Guz-

    man; Mauro; Araujo, 2000, p. 7.)

    Na sua anlise sobre o conceito de trajetria, Gomes (2002) ar-ma que a literatura atual apresenta o poder analtico desse conceito

    para os estudos sobre o trabalho, onde a categoria temporal representa

    um eixo central da abordagem da realidade. A autora estabelece um

    dilogo com a obra recm-citada de Guzman, Mauro e Araujo (2000)

    assumindo que:

    As trajetrias de trabalho so entendidas como os itinerrios

    visveis, os cursos e orientaes que tomam as vidas dos

    indivduos no campo do trabalho, e que so resultado de

    aes e prticas desenvolvidas pelas pessoas em situaes

    especcas atravs do tempo. [...] O conceito de trajetria,

    segundo sustentado, possibilita, apreender a interao en-

    tre dinmicas estruturais e decises individuais, e, tambm,

    conjugar aes com as signicaes e representaes do su-

    jeito (Gomes, 2002, p. 32).

    Outro aspecto da categoria trajetria que a mesma autora destaca sobre a associao intrnseca desse conceito com o de transio, j

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    26 melissa coimbra

    que ambas representariam linhas temporais entrelaadas no curso da

    vida pessoal (Gomes, 2002, p. 32). Gomes explica que as trajetrias

    consistem em percursos temporais de mais amplo espectro, e as transi-es, correspondem a um espectro temporal mais curto, j que apontam

    para o momento de mudana que se expressa no processo temporal cor-

    respondente ao intervalo entre esses estados. Armando a fecundidade

    dessa perspectiva conceitual, ela remete utilidade do conceito, quan-

    do se estuda carreiras prossionais, porque permite analisar as transfor-

    maes de curso decorrentes de perodos de desocupao e mudana de

    posies, os quais podem estar caracterizados por situaes de privao

    e/ou por novas oportunidades de trabalho (Gomes, 2002, p. 32).Para nosso estudo, a transio vivida pelas mulheres trabalhado-

    ras nas suas trajetrias de vida ocupacional (quando ocorrem as trans-

    formaes das empresas no processo de reestruturao produtiva do

    setor txtil-vestuarista) representa um marco para pensar esse mundo

    do trabalho desde os relatos dos sujeitos. Nossa preocupao era trilhar

    as possibilidades de manuteno do trabalho que essas mulheres tive-

    ram, e as condies em que essa manuteno do emprego ou reinsero

    ocupacional no setor se deu, e vericar como elas administraram e ad-ministram seus recursos pessoais e sociais para se manter trabalhando.

    Neste acompanhamento que zemos do curso de vida dessas mulheres

    trabalhadoras, vo se perlando os componentes de gnero e os conte-

    dos tnicos, quando estes so ou no considerados teis para compre-

    ender suas opes e possibilidades de trabalho e vida.

    Ainda, Gomes (2002, p. 33-34) nos orienta em relao conexo

    intrnseca entre trajetria, transio e a narrativa, demonstrando que

    ao potencializar uma mudana de curso numa trajetria, a transio

    imprime uma ressignicao do sentido que ordena suas experin-

    cias ao estabelecer esta conexo entre estados. A narrativa, assim,

    atribui um sentido a esse marco na trajetria. Alega esta autora que:

    A direo da trajetria no se constitui numa mera sequn-

    cia de acontecimentos, porque o ator est construindo seu

    ponto de vista sobre essa sequncia temporal. O enredo da

    narrativa permitir articular ambas as dimenses. Crenas,desejos, objetivos, necessidades, desaos a vencer, em m,

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    A cultura do trabalho em jaragu do sul 27

    esto na base dessas aes que se expressam temporalmente,

    e que so os materiais que permitem, ao ator, construir o en-

    redo da sua narrativa. Isto , as histrias que contamos para

    ns, e para os outros, sobre como ordenamos esses eventos,

    e assim, ao mesmo tempo nos construmos e projetamos

    para a vida, presente e futura (Gomes, 2002, p. 33-34).

    Nossa escolha pela histria oral como recurso metodolgico,

    fundamenta-se nesse entendimento trazido por Gomes sobre as traje-

    trias. Traduzindo as histrias de vida atravs desse conceito de traje-

    tria, podemos identicar certos marcos estruturais, de cunho econ-

    mico, social e cultural, vinculando biograa e histria.

    A literatura registra que as transformaes contemporneas do

    mundo do trabalho, que condicionam as trajetrias dos trabalhadores e

    trabalhadoras na esteira da reestruturao produtiva, tm incio a partir

    crise dos anos de 1970 na Europa, tendo como destaque as polticas

    neoliberais e o processo de crise do Estado de Bem Estar Social. Tal

    modelo poltico e econmico causou impacto aos pases em desenvol-

    vimento da Amrica Latina, desencadeando o processo de reestrutura-

    o produtiva na regio. Um novo paradigma de produo foi adotado

    nas grandes indstrias, alterando o contedo e a forma do trabalho,

    precarizando as relaes de trabalho e diminuindo a capacidade de

    organizao das classes trabalhadoras (Antunes, 2006; Ramalho; San-

    tana, 2003; Leite, 2003). Os novos arranjos produtivos alteraram o

    modelo de empresa verticalizada5cedendo lugar desverticalizao e

    a subcontratao (Carvalho; Crio; Seabra, 2007). Como a terceiriza-

    o6, o trabalho a domiclio, realizado em grande parte pelas mulheres

    e o modelo de empresa dita exvel.7Conforme os autores:

    5 Ver Lins (2000).

    6 As grandes empresas subcontratam pequenas rmas, a m de assumir funes au-

    xiliares ou ligadas ao processo produtivo, como a costura. Constitui-se como um

    setor intensivo de mo de obra e menos automatizao (Cardoso, 2004, p. 344).

    7Os novos arranjos industriais permitem desregulamentar os contratos de trabalho, o

    que incidi em perdas salariais aos trabalhadores(as), implica em fora de trabalho pro-dutiva exvel e realiza vrias tarefas no setor de produo, assim como externali-

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    28 melissa coimbra

    Trata-se de um cenrio semovente de economia altamente

    competitiva, as empresas buscaram se reestruturar para en-

    frentar os tempos novos e instveis. Essa reestruturao teve

    lastro na chamada revoluo microeletrnica, mas tambm,

    e em alguns casos mais fortemente, em novas formas de or-

    ganizao da produo. Como se disse, no mundo enxuto,

    produzir-se-ia mais, e melhor, com menos gente (Ramalho;

    Santana, 2003, p. 11).

    Tais anlises colocam em reexo a relevncia da temtica do

    mundo do trabalho no capitalismo contemporneo para o campo te-

    rico de anlise. Conforme Baumgartem e Holzmann o processo dareestruturao produtiva signicou:

    [...] o processo de reorganizao do sistema capitalista mun-

    dial, desencadeado a partir dos anos de 1970 como resposta

    crise que o abalou. Compreende transformaes profundas

    nos processos de trabalho e de produo na estrutura das

    empresas, na redenio do papel do Estado, na desregula-

    mentao das relaes entre capital e trabalho e na inovao

    tecnolgica de base microeletrnica. Essas transformaes

    se articulam e se combinam de modo particular em cada

    contexto histrico, traduzindo o poder de negociao dos

    agente econmicos, sociais e polticos envolvidos no pro-

    cesso (Baumgartem; Holzmann, 2011, p. 315).

    No campo da sociologia do trabalho (embora existam divergn-

    cias), parece haver o consenso de que as transformaes econmicas

    globais (tambm tecnolgicas) alteraram tanto a estrutura da produo,quanto as formas sociais da produo material de nossas vidas, como

    explica Leite, Novas estruturas industriais parecem impactar de ma-

    neira denitiva os mercados e as relaes de trabalho (Leite, 2003, p.

    17). O novo cenrio industrial, caracterizado pelo ps-fordismo, no

    realiza mais a produo padronizada em massa, na qual empregavam

    zao da produo ocasionando a terceirizao e precarizao das relaes de traba-lho (Holzmann; Piccinini, 2011, p. 196).

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    A cultura do trabalho em jaragu do sul 29

    inmeros trabalhadores e trabalhadoras, como na era fordista.8Hoje,

    as mercadorias produzidas nas indstrias so especializadas. O nme-

    ro de trabalhadores e trabalhadoras substancialmente reduzido e astecnologias so consideravelmente informatizadas (Sorj, 2000). Con-

    forme Castel (1998), a reduo de trabalhadores(as) assalariados(as)

    no capitalismo atual acompanhou simultaneamente a diminuio das

    formas clssicas de proteo social em tal contexto de mudanas:

    A situao atual marcada por uma comoo que, recente-

    mente afetou a condio salarial: o desemprego em massa

    e a instabilidade das situaes de trabalho, a inadequaodos sistemas clssicos de proteo para dar cobertura a essas

    condies, a multiplicidade de indivduos que ocupam na

    sociedade uma posio de supranumerrios, inempreg-

    veis, inempregados ou empregados de um modo precrio,

    intermitente. De agora em diante, para muitos, o futuro

    marcado pelo selo aleatrio (Castel, 1998, p. 21).

    Hoje as empresas administram a sua produo mundialmente, se

    fazendo presentes em inmeros pases, beneciando-se da presenade menores nveis salariais, da baixa incidncia de conitos industriais

    e das vantagens propiciadas por isenes scais de todos os tipos

    (Sorj, 2000, p. 29). A internacionalizao das empresas, assim como

    os deslocamentos industriais, uma realidade do segmento txtil e

    vestuarista no Brasil e no Mundo. Nas ltimas dcadas, as grandes in-

    dstrias desse setor da economia construram liais em algumas regi-

    es do nordeste do pas, como o caso da Malwee Malhas e a da Ma-

    risol, cujas matrizes localizam-se na cidade de Jaragu do Sul SC.

    Autoras como Hirata9iro argumentar que as dimenses da rees-

    truturao produtiva ocorrem de forma diferenciada, quando se trata

    das relaes de gnero no mundo do trabalho. Conforme a autora, as

    repercusses da especializao exvel e dos novos modelos de orga-

    8 Observam-se nas indstrias txteis de Jaragu do Sul aspectos do modo de organi-

    zao fordista de produo, como o grande nmero de trabalhadoras na etapa da cos-

    tura, sendo que este setor permanece pouco automatizado.9 Ver Hirata (2007).

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    30 melissa coimbra

    nizao e de desenvolvimento industriais no so as mesmas, quando

    se consideram os pontos de vista dos homens e das mulheres (Hirata,

    1998, p. 7). A insero no processo produtivo das trabalhadoras ainda seutiliza das formas taylorista/fordistas de produo, ou seja, de traba-

    lhos repetitivos e pouco automatizados (Neves, 2000, p. 172). Nos seg-

    mentos txtil e vestuarista trata-se da ltima etapa da cadeia produtiva,

    a costura, setor majoritariamente feminino. O processo de reestrutura-

    o industrial permitiu a terceirizao dessa etapa produtiva, mediante

    a desregulamentao de contratos de trabalho nas grandes indstrias e o

    incentivo dos baixos salrios pagos s trabalhadoras terceirizadas.

    As transformaes do mundo do trabalho no atual contexto docapitalismo global (embora haja diferenas de pases e regies) propi-

    ciaram o surgimento de novos arranjos de empregos o autnomo;

    assim como o crescimento de formas atpicas de emprego o tra-

    balho parcial, o temporrio, a subcontratao como um novo arranjo

    industrial e o trabalho a domiclio (Neves, 2000, p. 172). Essa ltima

    modalidade de emprego constituiu-se como uma parte do nosso cam-

    po emprico de pesquisa, pois o trabalho a domiclio uma realidade

    das costureiras que trabalham por conta prpria para inmeras m-dias e grandes empresas txteis-vestuaristas na cidade de Jaragu do

    Sul e Regio. Algumas dessas trabalhadoras exercem sua funo em

    faces que so legalmente registradas (com um salrio muitas vezes

    inferior ao salrio pago na grande indstria) e prestam servios para as

    grandes indstrias. Outra parcela dessas trabalhadoras (trs delas pres-

    taram o seu depoimento) atua de forma autnoma, em suas prprias

    residncias. Essas ltimas no possuem carteira assinada pela empre-

    sa, que contrata os seus servios e ganham por cada pea produzida.10

    Ao entrevistar as trabalhadoras, entendemos que as relaes de

    classe so sexuadas, assim como as relaes de gnero so perpassadas

    por pontos de vista de classe (Araujo, 2005, p. 90). A autora ainda obser-

    va, ao citar Hirata e Kergoat (1994), que a transversalidade das relaes

    de gnero permite pensar a ligao indissocivel entre opresso sexual

    (e de classe) e explorao econmica (e de sexo) (Araujo, 2005, p. 90).

    10 Ver as pesquisas de Sorj (2000), Abreu (1993) e Araujo (2001).

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    A cultura do trabalho em jaragu do sul 31

    Uma das reexes que aparecem em nossas anlises da articu-

    lao gnero e trabalho, e que pensamos ser de grande valor para as

    pesquisas nesse campo terico a ideia da experincia do trabalhoem outras esferas da vida, ou seja, a necessidade de se pensar a con-

    dio da mulher trabalhadora tanto na esfera da produo como o da

    reproduo (Sorj, 2000, p. 28). Tais realidades empricas se zeram

    presentes em nosso campo de pesquisa: a jornada de trabalho das tra-

    balhadoras nas indstrias e a necessidade das trabalhadoras em con-

    ciliar o trabalho domstico, ou seja, o segundo trabalho que no

    remunerado, caracterizando a dupla jornada de trabalho. Outra reali-

    dade que remete relao do gnero e trabalho refere-se produodas mulheres em meio ao ambiente domstico: o servio domstico

    e o trabalho remunerado que se confundem numa mesma paisagem.

    Foto 2 Costura em domiclio: o ambiente domstico e o trabalho

    remunerado se confundem numa mesma paisagem

    Fonte: Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (SINAIT)11.

    Conforme Chies (2010), a entrada em grande escala das mulheres

    no mercado de trabalho nas ltimas quatro dcadas trouxe a seguinte

    constatao: no decorrer das transformaes sociais que levaram as

    11 Disponvel em: . Aces-so em: 5 nov. 2013.

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    32 melissa coimbra

    mulheres ao campo de trabalho assalariado foram criadas prosses

    especcas a elas, ou seja, foram desenvolvidas ocupaes que detm

    uma porcentagem maior de mulheres e, muitas vezes, so estereotipa-das como femininas.

    Exemplos desse caso podem ser visualizados em prosses,

    a princpio, no regulamentadas, que se apresentam como

    continuidade da vida domstica, tais como: bordadeiras,

    costureiras, babs, etc. Por outro lado, as transformaes

    sociais aliadas s mudanas no sistema produtivo levaram a

    construo de novos espaos, e ambos, homens e mulheres,

    passaram a ocupar setores e postos de trabalho antes exclu-

    sivos do mundo masculino (Chies, 2010 p. 507).

    A maior parte da fora de trabalho ocupada na indstria txtil-

    -vestuarista no Brasil constituda por trabalhadoras, sobretudo no

    setor da costura (Chies, 2010 p. 507). Conforme o estudo realizado

    por Neves (2000), referente fora de trabalho formal com base no

    relatrio sobre o Desenvolvimento Humano no Brasil, as mulheres

    representam 94% da fora de trabalho na costura.

    [...] as mulheres apresentam 48% da fora de trabalho do

    setor tercirio e apenas 20% nos casos da agricultura e da

    indstria. Em 16 ocupaes do setor formal, elas compare-

    cem com mais 50%, ressaltando-se alguns deles como ver-

    dadeiros guetos femininos, como: costura, 94%, magistrio

    do 1 grau, 90%; secretariado, 89%; telefonia/telegraa,

    86%; enfermagem, 84%; recepo, 81% (PNUD e IPEA,1996, p. 33)12(Neves, 2000, p. 174).

    As trajetrias das trabalhadoras do setor txtil-vestuarista de

    Jaragu do Sul foram analisadas levando-se em considerao os se-

    guintes aspectos: a insero no setor; as condies de trabalho; as ex-

    perincias laborais nos momentos de crise e inovaes tecnolgicas

    que aconteceram no setor a partir dos anos de 1990; a conciliao de

    12 Ver pesquisa Coimbra; Coimbra (2012).

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    A cultura do trabalho em jaragu do sul 33

    trabalho na esfera produtiva e reprodutiva; as representaes das tra-

    balhadoras sobre a empresa, o trabalho o sindicato da categoria. Tais

    anlises foram realizadas tendo como pano de fundo, as especicida-des da cultura do trabalho em Jaragu do Sul, permeadas pelo discurso

    da etnicidade constituda e construda na histria da cidade. Nosso

    estudo trata de evidenciar o que observou Sorj:

    Em que pese a grande variedade de abordagens que buscam

    salientar a importncia das relaes de gnero na organi-

    zao do trabalho, todas elas, de uma forma ou de outra,

    procuram mostrar a inuncia da cultura mais ampla [ou de

    um dado contexto] a organizao e a experincia no mundo

    do trabalho (Sorj, 2000, p. 28).

    As anlises da construo social e das representaes de et-

    nicidade na cultura do trabalho em Jaragu do Sul e o processo de

    imigrao europeia no Norte do Estado de Santa Catarina tm como

    embasamento os estudos de Seyferth. Nas palavras da autora, so co-

    muns em regies de imigrao problemas associados a sentimentos

    de etnicidade, que focalizam as trajetrias de ascenso social no in-cio do processo de industrializao de uma regio identicada com a

    imigrao alem (Seyferth, 1999a, p. 61). Seyferth (2011, p. 50) ao

    observar o status ontolgico da etnicidade, analisa a relao entre a

    descendncia e cultura, apresentada por Fenton (2008).

    Considera isso um ponto de partida e no simplesmente uma

    denio, e o ponto seguinte pensar que etnicidade se refe-

    re construo social da descendncia e da cultura, mobi-lizao social da descendncia e da cultura, e ao signicado

    e implicaes dos sistemas classicatrios construdos em

    torno dela (Fenton, 2008, p. 3 apud Seyferth, 2011, p. 50).

    De acordo com Seyferth (2011, p. 51), Cultura e etnicidade es-

    to entrelaados, o que pe em evidncia a diferena (em relao aos

    outros) e o embasamento da identidade. J Kreutz (1999, p. 82)

    arma que a categoria tnica de anlise nos orienta a dimenso cultu-ral [que] compete na consolidao do processo histrico, entendendo

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    34 melissa coimbra

    o tnico como processo, construindo-se nas prticas sociais, no jogo

    de poder e na correlao de foras.

    Segundo Oliveira (1976, p. 6), compreender os fenmenos deuma dada realidade sociocultural, [...] dar conta de um fenmeno

    social extremamente complexo. E o tratamento dado a um sistema

    cultural que compreende trs aspectos: o da identidade, cujo domnio

    o ideolgico; o do grupo social, cujo domnio a organizao; o

    da articulao social, cujo domnio o processo (relaes sociais).

    Somando-se o fator tnico nos aspectos mencionados, teremos a

    identidade tnica, o grupo tnico e o processo de articulao tnica

    como aquelas dimenses mais estratgicas do fenmeno das relaesintertnicas (Oliveira, 1976, p. 6).

    Conforme Seyferth (2011, p. 47), o fenmeno migratrio pro-

    duz a etnicidade. Este termo utilizado em estudos intertnicos

    amplamente usada nas ltimas dcadas com implicaes nas polticas

    de reconhecimento [...].13 Em termos tericos, a identidade tnica,

    traduz os seus aspectos subjetivos e a ideia de fronteira (social),

    caracterizando o pertencimento a um grupo ou comunidade (Seyfer-

    th, 2011, p. 47). A autora analisa os fenmenos migratrios contem-

    plados pela anlise da cultura, etnicidade e identidade. Mesmo sendo

    conceitos diferentes, os fenmenos esto entrelaados, assim como as

    representaes da identidade construdas por indivduos e grupos a

    partir dela, formando enunciados simblicos que apontam a ideologia

    como um sistema cultural14(Seyferth, 2011, p. 47-48).

    Assumimos neste trabalho a ideia de que as identidades tnicas

    produzidas histrica e socialmente na regio de imigrao europeia(Jaragu do Sul e regio) remetem s ideologias de pertencimento de

    uma elite econmica e poltica de ascendncia europeia, que esteve

    presente na regio desde o incio da colonizao e fundaram as primei-

    ras indstrias na regio.

    13 Associadas s anlises do multiculturalismo e do direito das minorias (Seyfer-

    th, 2011, p. 47).

    14 Segundo Seyferth, tais anlises so defendidas por Geertz (1964) e adaptadas por

    Aronson (1976), a m de reetir sobre a etnicidade como um tipo particular de ideo-logia (Seyferth, 2011, p. 48).

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    aspectos sociais, histricose econmicos dejaragu do sul

    2.1 Aspectos histricos de Jaragu do Sul

    A cidade de Jaragu do Sul localiza-se na regio Norte do Estadocatarinense e foi ocupada e colonizada por imigrantes vindos da Ale-manha, Hungria, Itlia, Polnia, e por negros libertos (Schrner, 2000).A imigrao europeia no Brasil consolidou-se por meio do decreto de25 de novembro de 1808, de D. Joo VI, que permitiu aos estrangeiroso acesso propriedade de terra. Tal poltica objetivou trazer ao Brasileuropeus que procuravam novas oportunidades na Amrica, ou como intuito de fazer a Amrica (Seyferth, 1990, p. 9).1

    O processo de demarcao de terras no territrio catarinense, pa-ra ns de colonizao, acorreu no ano de 1849, por meio das terrasda Princesa Dona Francisca2e do Prncipe de Joinville. A partir dainicia-se a colonizao do territrio Dona Francisca, pela Companhia

    Hamburguesa de Colonizao, tendo por limite o lado esquerdo doRio Itapocu. Esta mesma companhia de colonizao administrou tam-bm os ncleos de So Bento do Sul e Jaragu do Sul (Silva, 2005;Seyferth, 2004).

    1 Consideramos indispensvel apresentar no primeiro captulo uma reviso histricae social do processo de imigrao e colonizao na Regio do Vale do Itapocu, assimcomo as principais caractersticas e inuncias socioculturais da populao que ocu-

    pou o territrio. (Silva, 2005; Schrner, 2000; Seyferth, 1999a, 1999b, 1990).2 Filha do imperador D. Pedro I.

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    Mapa 1 Regio Norte do Estado de Santa Catarina

    Fonte: Fundao Catarinense de Cultura3.

    Mapa 2 Municpios do Vale do Itapocu

    Fonte: Associao dos Municpios do Vale do Itapocu (AMVALI)4.

    3

    Disponvel em: . Acesso em: 30 jul. 2013.4 Disponvel em: . Acesso em: 5 nov. 2013.

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    A cultura do trabalho em jaragu do sul 37

    Emlio Carlos Jourdan (engenheiro e coronel honorrio do Exr-cito brasileiro nas regies de demarcao para ns de colonizao

    Jaragu do Sul e regio) foi convidado por Conde DEu, esposo daprincesa Isabel, para demarcar e tombar as terras que foram ganhascomo dote de casamento em 1864. A cidade de Jaragu do Sul foifundada em 1876, a partir do contrato entre Jourdan e Conde DEu,que possibilitou colonizar terras que at ento eram de propriedadedo conde. A Colnia Jaragu passou a receber famlias de imigrantesalemes em meados e nais do sculo XIX, vindos da Colnia DonaFrancisca (Joinville) e Blumenau (Canuto et al., 2010).

    Com o intuito de colonizar os lotes, Jourdan levou a regio cercade sessenta trabalhadores negros, libertos na poca, que cultivaramcana-de-acar, estabelecendo um engenho de cana, serraria, olaria,engenho de fub e mandioca (Canuto et al., 2010). Posteriormente,Jourdan entrou em desavena com a Companhia de Colonizao deHamburgo, tendo diculdades com a precariedade dos transportese a falta de dinheiro. Mediante as circunstncias, Jourdan abando-nou o empreendimento no ano de 1888 deixando os trabalhadores

    prpria sorte (Schrner, 2000, p. 30). No perodo de junho de 1888 anovembro de 1889, o Estabelecimento Jaragu5foi administrado porFrederico Brustlein, que negociou com conde DEu o processo de co-lonizao de terras. Schrner ainda observa que no ano de 1890 umaagncia de terras de Blumenau inicia o processo de distribuio delotes em Jaragu para colonos deslocados de outras regies de colo-nizao e para hngaros, que vieram diretamente do pas de origem(Schrner, 2000, p. 30), para instalar-se em Jaragu do Sul.

    A colonizao de Jaragu no ocorreu de forma clssica, porqueno recebeu imigrantes vindos direto da Europa, com a exceo doshngaros. Embora existam dados que comprovem a chegada de imi-grantes hngaros, vindos diretamente de seu pas de origem, em 1891,estes representam apenas uma parcela minoritria dos imigrantes quese deslocaram para Jaragu do Sul. No ano de 1894, Jourdan solicitoudo governo do Estado de Santa Catarina licena para povoar 10.000

    5 Senhor do Vale em tupi-guarani.

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    hectares de terras do Vale do Itapocu (Jaragu do Sul e regio), autori-zada em 1895. Posteriormente, de modo acentuado, deslocam-se para

    a regio as famlias de imigrantes alemes vindas de Joinville e Blu-menau6(Stulzer, 1973; Schrner, 2000; Pffer; Kita, 2008). Conformeo autor arma:

    [...] Com exceo dos hngaros, no existiu uma correntede imigrantes vindo diretamente do seu pas de origem parao Jaragu, ao contrrio, o Jaragu foi colonizado por imi-grantes deslocados de outras reas de colonizao. Seu po-voamento se deu atravs dos movimentos migratrios inter--coloniais, ou seja, Jaragu havia se tornado uma espciede sada, uma alternativa possvel para aqueles que no seagradavam das terras de Joinville ou de Blumenau (Schr-ner, 2000, p. 31).

    2.2 Histrico e mapeamento da imigrao e das etnias

    Para Seyferth (1999a, p. 61), o processo imigratrio regio doVale do Itaja e do Norte catarinense heterogneo. Essas regies sorecorrentes denominadas de regio de colonizao alem. No en-tanto, os imigrantes de etnia alem no so exclusivos durante as duas

    primeiras dcadas de colonizao. Nos nais do sculo XIX e inciodo sculo XX, registros ociais mostram a chegada de vrias outrasetnias vindas da Europa:

    Os documentos coloniais registram a chegada de italianos,russos, hngaros, austracos, irlandeses, franceses umaheterogeneidade em parte provocada pelas diculdadesde aliciar imigrantes (comentada nos escritos de HermannBlumenau, por exemplo), mas tambm relacionada s preo-cupaes das autoridades brasileiras com possveis enquis-

    6 Neste perodo, o processo de ocupao e colonizao ocorre de forma mais inten-sa. No entanto h registros de colonizadores, sobretudo de origem alem, em Jara-

    gu do Sul e regio, antes de 1876 (Curtipassi, 2012, p. 42). Ver pesquisas de Pffere Kita (2008).

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    tamentos tnicos, o que recomendava colnias mistas.Tal composio, aparentemente, quebra a homogeneidadegermnica do Vale, mas na sua denio como regio decolonizao alem, fundamental na construo de umaidentidade teuto-brasileira (Seyferth, 1999a, p. 65).

    Em relao imigrao para Jaragu do Sul, os Hngaros insta-laram-se na regio do Garibaldi, por volta de 1891, prximo s loca-lidades de So Pedro, Jaragu 99 e Jaragu 84, que hoje so bairrosda cidade. J os imigrantes alemes, procedentes das Colnias DonaFrancisca (Joinville e de Blumenau), instalaram-se nas comunidadesRio do Serro I, Rio do Serro II e Vale do Rio da Luz, que so bair-ros que do acesso a Malwee (Pffer; Kita, 2008, p. 14-15).

    A partir de 1890 o povoamento de Jaragu do Sul se d atra-vs de trs frentes migratrias. Uma delas, partindo de Join-ville sob os cuidados da Companhia de colonizao Ham-

    burgo, vai atingir os rios Itapocuzinho e Itapocu nas suasmargens esquerda, sendo que a maioria dos imigrantes eram

    de alemes. Outra, sob a administrao da Agncia de Ter-ras e colonizao de Blumenau, Pomerode e Rio dos o RioCedros, trazendo consigo alemes, hngaros e italianos, vaiocupar a margem direita do Rio Jaragu. A terceira delas,sob a administrao da sociedade criada por Jourdan, ocupaa regio margem direita do Rio Itapocu e esquerda do RioJaragu, ou seja, as terras que cam no meio dos dois rios.

    Nesta, a colonizao feita com italianos e alemes (Schr-ner, 2000, p. 31).

    O processo de ocupao e colonizao dos ncleos de Jaragu doSul SC e So Bento do Sul SC, ao longo dos Rios Itapocu e SoFrancisco, foi realizado pela Sociedade Colonizadora de Hamburgo,na Alemanha, em 1849. Em consequncia deste processo, verica-sena regio, uma totalidade geogrca com predominncia de popu-lao de origem germnica lugares distintos da sociedade brasilei-ra, onde a lngua alem era idioma do cotidiano, independente das

    modicaes estruturais da linguagem percebida (Seyferth, 2004,

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    p. 155). Atualmente, se zermos viagens pela regio do Garibaldi epelos bairros jaraguaenses da Barra do Rio Serro I e II e Rio da Luz,

    provavelmente, encontraremos pessoas idosas falando a lngua alemnos pontos de nibus, ou um dialeto prprio: um portugus que seentrelaa com palavras em alemo. Conforme Stulzer (1973, p. 216),no ano de 1912, Jaragu do Sul ainda fazia parte do 2 distrito de Join-ville, tinha 8.000 mil habitantes, 2.000 pessoas falavam o portugus,1.000 falavam o italiano, 4.500 o alemo e 500 o polons7. Alm doshngaros e alemes, a cidade de Jaragu do Sul demarcada territo-rialmente por comunidades de predominncia italiana e negra.

    Foto 3 Povoamento do municpio de Jaragu do Sul s margensdo Rio Itapocu (1909)

    Fonte: Arquivo Histrico Eugnio Victor Schmckel Jaragu do Sul (SC).

    7 Stulzer (1973) coletou esses dados do primeiro relatrio Cria Episcopal. Ano de1912 da Parquia de Santa Emlia de Jaragu.

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    Foto 4 Comunidade de ascendncia alem na primeira sociedadeescolar de Jaragu do Sul, bairro Rio do Serro,

    Vale do Rio da Luz (1895)

    Fonte: Arquivo Histrico Eugnio Victor Schmckel Jaragu do Sul (SC)8.

    Os negros se instalaram na cidade com o propsito de trabalharna construo do empreendimento colonial Jaragu, coordenado peloCoronel Emlio Carlos Jourdan, em 1875. Mais tarde, uma parte dostrabalhadores negros teria migrado para o litoral catarinense e outra

    parte instalou-se no bairro Morro Boa Vista, lugar onde se concentragrande parcela da comunidade negra da cidade. Essa localidade -cou conhecida ao longo dos anos por Morro da frica (Curtipassi,2012). Abaixo o relato de uma trabalhadora negra da Marisol S.A.,moradora do Morro da Boa Vista.

    8 Esta sociedade escolar atualmente a escola municipal Professora Gertrudes Stei-

    lein Milbratz. Esta localidade tambm funcionou como sede da 2 Sociedade de Atira-dores, conhecida como Salo Barg, em 1915 (Pffer; Kita. 2008).

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    Ali eram os negros que habitava, sobe reto aqui ... se tupega o Beeling sobe l pra cima, ali o Morro da frica,antigamente era chamado assim, hoje j no porque tem ou-tras etnias ali, alemes... Principalmente paranaenses. An-tigamente era Morro da frica porque era s negro, ouali no Nova Braslia, na Vila Lenzi, mas 90% era aqui nomorro, essas terras tudo a era dos negros. Da comeou a viros alemes, os paranaenses, mas os alemes no dominaramesse morro, mais os paranaenses. Eles vendiam a terra delesl no Paran e compravam aqui no morro, enrolavam os ne-gros e compravam a terra por bagatela dos negros mais anti-

    gos. E os que no compravam, chegavam se achavam donoe qualquer branquinho chegava e fundava uma cachorrasentada em casa como diziam... que uma meia gua, umacasinha pequenininha, montavam ali e cavam; e assim fo-ram tomando conta. Ento hoje no tem quase ningum dosnegros antigos, tem uma ou duas famlias que eu conheo.Agora tem um ndio ou outro, eu at disse pro meu marido

    esses dias eu vi dois ou trs descendo o morro (CostureiraMarisol S.A., trabalhadora negra).

    Foto 5 Famlia da comunidade negra de Jaragu do Sul (1956)

    Fonte: Museu Histrico Emlio Silva Jaragu do Sul (SC)9.

    9 Fonte: Comunidade Negra Museu Histrico de Jaragu do Sul. Disponvel em:. Acesso em: 5 nov. 2013.

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    A cultura do trabalho em jaragu do sul 43

    A trabalhadora relata que atualmente h uma diversidade tnicana localidade do Morro Boa Vista, devido ao processo migratrio mais

    recente, que levou a populao negra a perder espao, com a chegadados migrantes oriundos do Estado do Paran. Ela tambm relata quehavia uma relao conituosa envolvendo a populao negra, aleme migrantes paranaenses, sobretudo em relao disputa de terras.

    Os imigrantes poloneses chegaram ao Sul do Brasil em 1864,na cidade de Brusque. Mais tarde, teriam migrado para a cidade deMassaranduba (SC) e logo se instalaram em pequenos lotes no Es-tabelecimento Jaragu. Tambm h registros de imigrantes italianos

    em Jaragu do Sul e regio, que tem sua origem em Trento, na Itlia.Esses imigrantes instalaram-se na Barra do Rio Serro e Rio da Luz,misturando-se com os alemes (Curtipassi, 2012; Schrner, 2000).

    Cabe lembrar que o uxo migratrio da Europa para a Amricado Sul signicou um negcio lucrativo para as companhias de colo-nizao10, com a utilizao dos meios de transporte e atravs dos re-crutadores, que prometiam muitas vantagens no momento da venda eaquisio das passagens (Schrner, 2000). A propaganda de um novo

    mundo era realizada durante o percurso da viagem ao Brasil, como aliberdade em todos os sentidos, sobretudo a religiosa esta condioos levaria a uma prosperidade nanceira. No entanto, os imigrantes,ao chegarem ao Brasil (Santa Catarina), passaram por diculdades pa-ra abrir os seus lotes de terra na oresta; sabiam pouco de tcnicasagrcolas e no possuam equipamentos. Tais lotes foram concedidos

    pelas companhias colonizadoras nos pases de emigrao em parceriacom o governo imperial brasileiro (Schrner, 2000).

    A emigrao de alemes em grande escala, no sculo XIX,coincidiu com o perodo de grandes crises que antecederam unicao da Alemanha sob a hegemonia da Prssia, a partirde 1871. As causas da emigrao so tanto polticas comoeconmicas, acrescentando-se a elas uma intensa propaganda

    por parte das Companhias de Colonizao e de alguns pasesinteressados em atrair imigrantes (Seyferth, 1999b, p. 18).

    10 Ver pesquisa Rocha (2013). Blumenau Acumulaes Originrias.

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    Os hngaros se instalaram em lotes que mediam 25 a 30 hec-tares, a maioria com riachos ou vertentes dgua. Os 700 imigrantes

    que chegaram em 1891, em sua maioria agricultores, compraram 96lotes vendidos a famlias provenientes do Imprio Austro-Hngaro.Entre essa camada de imigrantes vieram um professor, um mineiro,dois oleiros, um alfaiate e dois comerciantes. Estes imigrantes traba-lharam na construo das estradas, canais e pontes para pagar os seuslotes. Em suas terras plantavam milho, batata-doce, aipim, car, inha-me e outros produtos. Schrner ainda destaca que o bairro Garibaldiainda hoje, uma regio que se mantm agrcola, no entanto todos os

    dias saem trabalhadores e trabalhadoras para trabalhar nas fbricas dacidade (Schrner, 2000, p. 32).

    Foto 6 Comunidade Hngara de Jaragu do Sul

    Fonte: Arquivo Histrico Eugnio Victor Schmckel Jaragu do Sul (SC).

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    Os imigrantes alemes, italianos e hngaros que se instalaramnas comunidades do Rio da Luz e do Rio do Serro I e II, ainda hoje

    exercem atividades agrcolas e, em muitos casos, tambm se deslocamem direo cidade para trabalhar nas fbricas (Schrner, 2000). importante observar que hoje, a regio central da cidade constitui-secomo um espao urbanizado e industrializado, em que se misturam

    pessoas de diferentes etnias (ver grco 1), provenientes de diversasregies do Brasil atradas pelo trabalho nas fbricas. Muitas famliasso provenientes do Paran, Rio Grande do Sul, Estados do Sudestee Nordeste do pas, sendo que o contingente de pessoas do Paran

    signicativamente elevado.

    Grco 1

    Fonte: IBGE. Elaborado pela autora.

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    Cabe observar que, com exceo dos portugueses, que foram osprimeiros a colonizarem o Brasil, o primeiro uxo migratrio mais ou

    menos contnuo foi o dos alemes, instalando-se em colnias isoladasno Rio Grande do Sul e Santa Catarina a partir de 1824. No decorrerda segunda metade do sculo XIX, foram fundadas colnias alems noRio Grande do Sul, Santa Catarina e Esprito Santo. Somente a partirdos anos de 1870, que imigrantes de outras etnias vieram para o Brasil,como italianos, espanhis, entre outras. Esse nmero de imigrantes foiaumentando com o m da sociedade escravocrata e o incio do regimerepublicano, entre os anos de 1888 e 1910 (Seyferth, 1990, p. 10).

    Seyferth (1990) observa que at o ano de 1880, o predomniodos imigrantes no Brasil de alemes e portugueses, posteriormente,o nmero de imigrantes italianos ultrapassaria o de alemes. Teriamemigrado para Brasil cerca de 1000 e 2000 pessoas por ano, entre asdcadas de 1850 a 1940. No entanto, os anos de 1880 marcam a siste-mtica imigrao de italianos ultrapassando os 100.000 mil imigrantes

    por ano (Carneiro, 1950 apud Seyferth, 1990, p. 11).

    Tabela 1

    Fonte: IBGE.11

    11 Disponvel em: . Acesso em: 5 nov. 2013.

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    Considerando as imigraes ao longo do sculo XIX, a presen-a da imigrao alem a mais antiga, [...] colnias homogneas,

    isoladas e fortemente prximas da identidade tnica germnica [que]est longe de ser comparada, em termos numricos, com a italiana. Suma corrente imigratria europeia foi to intensa quanto italiana: a

    portuguesa (Seyferth, 1990, p. 11).

    2.3 As caractersticas da colnia e o papel da mulher

    O sistema econmico do imigrante caracterizava-se pela pequenapropriedade agrcola, administrada pelo trabalho familiar. A atividadedesses grupos domsticos de camponeses era cultivar as suas terras/lotes e tambm fabricar produtos artesanais derivados. Uma parceladesses produtos seria para suprir sua subsistncia, no entanto, a pro-duo excedente era destinada para a venda ou troca, nos pequenoscomrcios das colnias, lugar onde se encontravam os vendeiros.Conforme Seyferth, (1999b, p. 95) os vendeiros eram os propriet-rios de casas comerciais, asKaufden(vendas) onde os colonos ven-diam ou trocavam suas mercadorias12por produtos das cidades, queeram necessrios a sua subsistncia.

    Quando os imigrantes tomaram posse dos seus lotes, um iso-lamento foi imposto aos colonos: pelas condies das vias de comu-nicao e pela escassez de dinheiro, os levaram a produzir o mximoque podiam em suas propriedades e a buscarem o mnimo fora dela(Schrner, 2000, p. 39). A participao da mulher e dos lhos era fun-

    damental na produo e nas atividades da colnia, como a produodo fumo de corda, da manteiga, da banha e o do queijo, que so ativi-dades domsticas por excelncia. Schrner (2000) ainda observa queas atividades realizadas pelos colonos dependiam da quantidade e dacomposio dos membros da famlia. Se a maioria dos membros da fa-mlia fosse constituda por mulheres, seria raro encontrar uma serraria,uma plantao de cana ou uma olaria.

    12 Suas mercadorias eram basicamente a produo de laticnios, como queijos, mantei-ga, banha de porco, vinho de laranja e fumo de corda (Schrner, 2000; Seyferth, 1999).

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    Determinadas atividades econmicas dos colonos, como a cria-o de animais, as atividades agrcolas e a produo de derivados,

    eram concebidas como pequenas indstrias domsticas. De acor-do com Schrner (2000, p. 39) estas atividades eram denominadasHausindustriede transformao, para ns de consumo e venda.Os imigrantes que adquiriram o seu lote se dedicaram tambm em ou-tras atividades, como o comrcio, o negcio de madeiras, o transportede cargas e passageiros e a abertura de estradas da regio. Podemoschamar a casa/lote do imigrante de casa global camponesa, lugarem que as atividades econmicas integram-se com as domsticas,

    uma caracterstica da economia rural que ainda hoje persiste (Re-naux, 1995, p. 131).

    Por meio da confeco de produtos artesanais na colnia origi-nou-se a pequena indstria de base familiar. No entanto, conformeSchrner (2000, p. 41) esse fator no poderia ser o principal respon-svel pela industrializao sem precedentes na regio de imigrao,

    pois, nas palavras do autor, poucos dos que se tornaram grandes em-presrios capitalistas comearam como artesos, como veremos mais

    frente sobre o desenvolvimento industrial na regio de Jaragu do Sul.Retornando questo das atividades econmicas na colnia, co-

    mo j mencionado, havia isolamento de um lote ao outro, o que fezcom que os colonos praticamente produzissem tudo para sua sobrevi-vncia e o excedente a para a venda (Seyferth, 1999; 1999; Schrner,2000). Estudos de Renaux (1995) sobre a colonizao europeia no

    Norte do Estado de Santa Catarina fala sobre as caractersticas do tra-balho do verdadeiro campons. Dizia o ditado popular: no encon-trar ele(o colono) o sol nascente perto da casa, nem o sol poente forado campo, fazendo uma referncia ao seu rduo ritmo de trabalho(Renaux, 1995, p. 22).

    A diviso sexual do trabalho era algo bem denido para o ade-quado funcionamento da colnia e era assim estabelecida: a derru-

    bada da mata e a extrao de madeiras era tarefa essencialmente mas-culina; as mulheres e as crianas (acima de sete anos) trabalhavam no

    cuidado da horta, da casa, no preparo de alimentos e na confeco deroupas. Cabe observar que as mulheres imigrantes traziam na baga-

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    gem a mquina de costura, que era uma das heranas da mulher da-quele contexto (Renaux, 1995). Conforme o relato de um historiador

    de Jaragu do Sul, entrevistado:

    Os hngaros no trouxeram provavelmente mquinas decostura, mas o alemo trouxe. Ento ele foi nos centros deBlumenau, Joinville e adquiriu [artefatos de costura], at

    porque as lojas de armarinho, de ferragens, as lojas especia-lizadas j tinha esse produto [utenslios para costura] paravender. E assim que ele apareceu no mercado e foi introdu-zido no ambiente microssocial da famlia. Ali as meninas j

    desde pequenas aprendiam a manipular o tecido pra fazeras roupas das bonecas e a aprender com a me. Pelo gesto,o convvio familiar, aquilo despertou o gosto pelo trabalholigado moda, at porque uma funo especializada quea mulher queria conquistar (Historiador do museu histricode Jaragu do Sul).

    A quantidade de lhos (a prole) e a constituio da famlia eram

    fundamentais para o funcionamento da produo camponesa, devi-do utilizao do trabalho infantil. Conforme os estudos de Seyfer-th (1999b) em decorrncia das precrias condies de contratao demo de obra no campo, os colonos alemes utilizavam-se do trabalhodos lhos, que quanto mais numerosos fossem, maior seria a fora detrabalho destinada produo no campo.

    O trabalho infantil era comum na Alemanha, devido prin-

    cipalmente impossibilidade do pequeno campons obtermo de obra assalariada por no dispor de meios para con-trol-la. Por isso os lhos desde os 6 ou 7 anos auxiliavamos pais nas atividades econmicas. O sistema persistiu nasreas de colonizao alem quase que pelas mesmas razes:

    pouca disponibilidade de mo de obra assalariada e a faltade meios para contratar auxiliares (Seyferth, 1999b, p. 76).

    Era comum que as mulheres imigrantes tivessem muitos lhos,

    devido s necessidades de mo de obra exigidas pelo trabalho na col-

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    Quando falamos na histria das mulheres do sul do Brasil, no po-demos traar um nico perl, podemos diferenci-las em alguns aspec-

    tos socioculturais de outras mulheres do restante do pas. Nas palavrasde Pedro (1997, p. 278) no Sul, encontramos diferentes pers femi-ninos nos diversos perodos histricos: mulheres oriundas de etnias eclasses sociais vrias. Nesse sentido, podemos dizer que a histria dasmulheres em Jaragu do Sul, tem suas razes no processo de migraoalem, hngara, italiana, polonesa e brasileira, entre 1876 e 1891.

    Segundo estudos histrico-biogrcos referentes ao deslocamen-to das famlias de imigrantes para o Brasil, o impacto do novo mundo

    causava revolta nas mulheres, que atribuam aos homens a deciso deemigrar, com a promessa de terra para plantar, liberdade (sobretudo re-ligiosa) e melhorias econmicas. Esse processo migratrio turbulentodas mulheres para o Sul do Brasil teria atribudo a elas o ttulo de valen-tes e corajosas, dispostas ao trabalho e a responsabilizao pelo zelo da

    paz e da ordem no ambiente familiar (Renaux, 1995; Schrner, 2000).

    O papel feminino nas colnias do Vale do Itapocu e Regio teriauma relevncia fundamental para a boa administrao econmica

    das famlias. Conforme Renaux (1995, p. 109-110), as mulheres imi-grantes, principalmente as menos favorecida