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NANA SOARES
10 dezembro 2015 | 01:55
Demorei a perceber que o estupro era um crime relativizado e aceito em nossa sociedade. Ainda adolescente, já entendia sua gravidade e
pensava que a sociedade o considerava um dos piores atos existentes, digno de punição muito severa. Nos filmes, era um fato que
causava sofrimento para as vítimas. Fora isso, há o boato de que os estupradores são segregados e maltratados na prisão. Tudo isso me
levava a crer que a violência sexual nunca poderia ser posta em dúvida ou ignorada socialmente.
Pois bem, eu estava enganada.
Estranhei, então, quando ouvi a expressão “cultura do estupro” pela primeira vez, um conceito que acusa nossa cultura de legitimar esse
tipo de violência. Mas quando me explicaram, usando o exemplo do estupro na cadeia, eu entendi. Seja verdade ou não, a ideia muito
difundida de que os estupradores são ‘feitos de mulher’ na prisão só confirma como a cultura do estupro existe. E como ela é um
problema de gênero.
Explico melhor: violentar sexualmente aqueles que cometeram esse crime nada mais é do que dizer que o estupro é aceito na sociedade.
Que é uma forma legítima de punição e uma demonstração de poder. E vai além: ao registrarmos, em nosso imaginário, que aqueles que
passam por isso estão ‘virando mulherzinha’, escancaramos involuntariamente como esse problema tem gênero. Dizemos com todas as
letras o que é ser mulher no mundo*.
Já entrevistei várias mulheres vítimas de estupro e poucas experiências exigiram tanto de mim. Para todas elas, foi um episódio
traumático, talvez o mais traumático de suas histórias. Nenhuma denunciou à polícia, com medo do julgamento que iriam receber de
todos a seu redor e da culpabilização pelo ocorrido. Elas também não nutriam esperança de que seus agressores fossem encontrados
e/ou punidos. E tinham muito medo do que viria a seguir, porque o estupro não acaba quando o agressor vai embora. O estupro
permanece.
Permanece através do rótulo de mulher estuprada, das perguntas que vêm a seguir, da sua palavra colocada em dúvida, de uma
gravidez, de um medo que perdura por toda a vida. O estupro acaba, mas a violência continua quando nos perguntamos o que a vítima
deve ter feito, ainda que indiretamente, para causar a violência: “Por que você bebeu? Que roupa estava usando? Você tem certeza que
foi isso mesmo que aconteceu?”
Cresci, como a maioria das meninas, aprendendo a ter medo de andar sozinha na rua, principalmente à noite – e aqui pontuo que os
homens nunca saberão que medo é esse, tão instrínseco para nós e tão impensável para eles. Esse tipo de estupro, cometido por um
homem estranho e sem rosto, é talvez o menos tolerado pela sociedade, e mesmo assim as vítimas silenciam. Imaginem então a violência
sexual que acontece dentro de casa, por um membro da família ou pelo parceiro. Ou aquela cometida por “amigos” e outros conhecidos,
ou ainda a violência que ocorre com a vítima desacordada por causa do álcool.
Esses casos acontecem, queira você acreditar ou não. E com uma frequência aterrorizante. Os dados de violência sexual no país relatam
uma realidade vergonhosa: quase 48 mil casos de estupro registrados em 2014, uma média de um a cada 11 minutos. O pior é a
estimativa de que esses dados representem apenas 35% do total, segundo o. Mais triste ainda é olharmos para o perfil dos estupros. de
2014 identificou que 88,5% das vítimas eram do sexo feminino e mais da metade menor de 13 anos de idade (qualquer semelhança com o
#meuprimeiroassedio não é mera coincidência). E os agressores? Em sua maioria, pessoas conhecidas. O estuprador, no Brasil, não é
um louco isolado da sociedade. Ele é a sociedade.
A violência sexual por aqui é tão aceita e normalizada que chegamos a um ponto inacreditável de, em pleno Congresso Nacional no ano
de 2014, um parlamentar dizer que só não estupraria uma colega de Casa porque ela era muito feia. E continuar legislando.
Parafraseando uma fala largamente usada em protestos mundo afora: é 2015 e eu ainda tenho que protestar por essa merda.
*Registro aqui que estupros também acontecem com homens, embora em proporção muito menor. Nesse caso, se concentram em
garotos muito novos e que têm minha solidariedade.
A cultura do estupro existe sim
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