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Universidade Nove de Julho Uninove Curso: História Professor orientador: Kátia Kenez Período noturno Enio E. A. Vieira RA: 911200134 Trabalho de conclusão de curso A crise da indústria fonográfica no início dos anos 1980 vista pela mídia especializada, e a popularização da pirataria e da fita K7

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Page 1: A crise da indústria fonográfica no início dos anos 1980 vista pela mídia especializada, e a popularização da pirataria e da fita k7

Universidade Nove de Julho – Uninove

Curso: História

Professor orientador: Kátia Kenez

Período noturno

Enio E. A. Vieira – RA: 911200134

Trabalho de conclusão de curso

A crise da indústria fonográfica no início dos anos 1980 vista pela mídia

especializada, e a popularização da pirataria e da fita K7

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Resumo

Este artigo tem como intenção interpretar as contradições no discurso midiático

sobre a crise da indústria musical durante o período de popularização da fita K7 e o

aumento da comercialização dos aparelhos para sua reprodução, focando suas análises

entre os anos de 1980 – 1981. Veremos como as condições socioeconômicas e as

tecnologias da época afetaram as vendas de discos, e as soluções propostas na época

contra o fenômeno da pirataria, que então se tornava cada vez mais corriqueiro, além de

uma campanha de conscientização contra esta prática de cópias ilegais. Utilizaremos

reportagens tanto da mídia de massas, tendo os jornais A Folha de São Paulo e O

Estado de São Paulo como representantes desse tipo de discurso, além de reportagens

da extinta revista Somtrês, especializada em música e técnicas de gravação em geral.

Ademais, mestrados diversos de historiadores, sociólogos, e antropólogos nos servirão

de fonte bibliográfica e base teórica, pois estes trabalhos buscaram entender a pirataria

não somente como um fenômeno novo possibilitado pelo surgimento de novas

tecnologias, mas como uma prática comum e própria do sistema capitalista. Em outras

famosas palavras, a pirataria só existe porque a própria indústria é responsável por

fornecer “armas contra si mesma” (MARX, 2011, p. 40).

Palavras-chave: Pirataria, Fita K7, crise, indústria musical, consumo de música.

Abstract

This article intends to serve as an interpretation the contradictions in the media

about the crisis in the musical industry that occurred in the event of the popularization

of the cassette tape and the increase in the commerce of appliances for its reproduction,

focusing its analysis between the years 1980 – 1981. We will see how socioeconomic

conditions and the technologies available at the time affected the sales of vinyl discs,

and the solutions proposed at the time against the piracy phenomena, which became

increasingly popular, besides a campaign to raise awareness against illegal copies. We

are going to use articles from the major press, such as the newspapers A Folha de São

Paulo and O Estado de São Paulo, as representative of the mass media speech, besides

articles and personal ads from the extinct Somtrês magazine, which specialized in music

and studio recording techniques. Also, we use as bibliographic and theoretical basis,

thesis and dissertations from historians, sociologists, and anthropologists, since these

words tried to understand piracy not only as a new phenomenon made possible due to

the appearance of new technologies, but as a practice intrinsic to the capitalist system.

In other words, piracy only exists because industry is responsible for providing “the

weapons against itself” (MARX, 2011, p. 40).

Keywords: Piracy, cassette tape, crises, musical industry, music consumption.

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“A gente não quer só comida, a gente quer comida diversão e arte.”

(ANTUNES, Arnaldo/ FROMER, Marcelo/BRITTO, Sérgio. Titãs – Jesus Não Tem

Dentes no País dos Banguelas. Warner Chapp. 1987)

I. Introdução

Ao falar ante a comissão de jurisconsultos do Midem – Mercado Internacional do

Disco e da Edição Musical – o advogado brasileiro Henrich Gandelman lamenta as

facilidades de emprego das, então, novas tecnologias, pois permitiam “a rápida

reprodução ilegal de toda produção musical.”1 Tal discurso poderia ter sido dito por

um rockstar nos dias de hoje, culpando as facilidades do download e do MP3 pela baixa

venda de seu último álbum, mas foi dito em 1980, momento em que a proliferação de

tecnologias como o reprodutor musical, a fita K7 e o som automotivo se popularizavam.

Ademais, nosso país vivia momentos de turbulência, pois o governo Figueiredo

prosseguia no caminho da abertura política rumo à redemocratização do país, que ao

mesmo tempo sofria profunda crise econômica:

Tendo alcançado o índice anual de 110,2% em 1980, [a inflação] caiu para

95,2 em 1981 [...]. Desenhou-se naqueles anos um quadro que se tornaria

familiar aos brasileiros, chamado de “estagflação”, por combinar estagnação

econômica e inflação. (FAUSTO, 2012, p. 428).

O historiador americano Paul Friedlander aponta como já no fim dos anos 70,

“importantes tendências econômicas e artísticas estavam afetando o modo como a

música era criada e vendida”. Ele também nos diz como

O surgimento da tecnologia das fitas cassete [...], aliado a outras variáveis

econômicas, mais a perda de interesse do público por certos segmentos [...],

causaram uma queda nas vendas do produto no final dos anos 70.

(FRIEDLANDER, 2012, p. 346).

E essa queda nas vendas do produto, no caso, o LP, atingiu também a indústria

musical brasileira.

Tratava-se agora de uma severa retração da economia como um todo,

relacionada a fatores como a recessão mundial e o grande endividamento

externo do país, e tendo como resultante altas taxas de inflação (próximas a

100% ao ano), acompanhadas de expressivo aumento no desemprego. Suas

consequências serão devastadoras para a indústria do disco, que passa a

atravessar o que seria, até aquele momento, a maior crise de sua história

(VICENTE, 1996, p. 89).

“Embora a atual configuração tecnológica da indústria tenha conferido à questão

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da pirataria uma importância inusitada, ela não deve ser vista como um fenômeno

recente” (VICENTE, 1996, p. 213). Friedlander desmistifica esta contemporaneidade da

pirataria ao escrever que 1969, o grupo de heavy metal Led Zepellin estava já “cansado

de competir com as gravações piratas” e arrastaram um suspeito da plateia que portava

um microfone, pois suspeitaram que este estivesse gravando o show para lança-lo em

um bootleg 2 (FRIEDLANDER, 2012, p. 336). Podemos ir ainda muito mais longe à

busca das origens da pirataria musical, antes mesmo da invenção dos suportes

fonográficos mais conhecidos, como o LP, o CD ou a fita K7, já que ambulantes

ingleses da passagem do século XIX ao XX vendiam cópias das partituras das obras

musicais da época:

Na Inglaterra, entre 1881 e 1906, editores de música e governo

intensificaram o combate à mesma prática [a pirataria de partituras]. Embora

grande parte do público demonstrasse certa indiferença, houve um apoio

considerável às edições desautorizadas, por serem compreendidas como uma

forma de acesso para aqueles que não podiam arcar com os custos dos

exemplares legítimos, muitas vezes caros. (SANTOS, 2010, p. 83).

II. Explicações para a crise fonográfica.

Os anos 70 foram, para a indústria musical brasileira, anos de crescimento em

vendas e prosperidade. O suposto milagre econômico promovido pelo governo civil-

militar trouxe mudanças significativas para nosso país:

Vivemos, entre 1967 e 1979, um período de altas taxas de crescimento, que

nos levaram à posição de oitava economia capitalista do mundo. Mas nosso

capitalismo combinava concentração gigantesca de riqueza e mobilidade

social vertiginosa, concentração de renda assombrosa e ampliação rápida dos

padrões de consumo moderno (MELLO e NOVAIS, 1998, p. 635).

Como veremos mais adiante, essa crescimento nos padrões de consumo causou

um significativo aumento da comercialização de discos, que transformou o

funcionamento da indústria fonográfica do ponto de vista mercadológico. Os anos 80,

no entanto, foram tempos de “grande turbulência, com intensa alternância entre

movimentos de crescimento e retração” quando houve “sob o signo da crise, [...]

expressivas quedas da produção verificando-se já em 1980 e 1981 (10,6% e 20,8%,

respectivamente)” (VICENTE, 2002, p. 87). Essa crise já era sentida pela mídia

especializada da época, como o caso da revista Somtrês.

A Somtrês, editada entre 1979 e 1989, foi uma publicação voltada para amantes

não apenas da música, mas das novidades em áudio e vídeo. Os números que utilizamos

para este trabalho foram publicados entre 1980 e 1981, e possuem várias reportagens

sobre toca fitas, vídeos cassete, toca-discos, amplificadores, aparelhos de som

automotivo, instrumentos musicais, e muitos outros produtos voltados para

consumidores e músicos. Em março de 1981, uma reportagem intitulada “A Crise em 33

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RPM” faz a seguinte chamada:

Ninguém mais nega que a crise [financeira] chegou também ao setor

fonográfico. O indício mais claro está nas muitas tentativas que a indústria

do setor já está fazendo para enfrentar o ano [de 1981] que se anuncia

magro.3

Mas quais eram estas tentativas para enfrentar esse ano que se anunciava magro?

É interessante notar como tanto esta revista, voltada para um público específico e que

não se encontra mais em circulação, tanto quanto os grandes jornais de São Paulo,

Folha de São Paulo, e O Estado de São Paulo, debatiam a comercialização do disco de

dez polegadas, opção menor que o tradicional vinil de 12 polegadas, que por ser menor,

apresentaria uma série de vantagens. Segundo a Somtrês:

Os argumentos a favor do novo formato [...] começam na economia. A

resina de que são feitos os discos é derivada do petróleo [...]. Num disco

menor cabem menos faixas. Menor número de faixas exige menor tempo de

estúdio. Menor tempo de estúdio representa também um número menor de

horas pagas aos músicos para gravar. E mais: um disco menor tem capa

menor, reduzindo, portanto, o custo gráfico do produto final. 4

Tal formato fazia parte de uma série de iniciativas da Associação Brasileira de

Produtores de Disco (ABPD) para o enfrentamento da crise. Ademais de discos

econômicos, foram lançados álbuns com regravações, coletâneas, além de uma

campanha publicitária na TV incentivando a compra de discos originais (VICENTE,

2002, p. 95). Voltaremos a essa campanha publicitária e como ela foi vista na época

posteriormente.

Havia, no entanto, empecilhos que impediram que o álbum de dez polegadas

vingasse. Existia, antes de mais nada, uma desconfiança entre as gravadores e o

comércio. A revista culpa os vendedores de não repassarem o preço sugerido pelas

gravadoras para o produto final, o que prejudicava o comprador final. Um exemplo

dado é quando a Polygram lançou um LP de Jorge Mautner com o preço especificado na

capa de venda até Cr$ 15,00 em 1972. Segundo a reportagem, as lojas “simplesmente

não quiseram o disco, pois este já estabelecia uma margem de lucro determinada”4. É

preciso relativizar essa culpa dada aos lojistas pelos altos preços dos discos, pois, como

já dito acima, nosso país vivia uma época de inflação altíssima, e é seguro supor que

discos chegassem ao varejo em um preço X, sofressem remarcações que

acompanhassem o ritmo da inflação. Assim que, um produto encalhado em uma

prateleira durante um ano poderia ser comprado, seguindo as interpretações das fontes

utilizadas para esta pesquisa, com um valor no mínimo proporcionalmente mais alto que

seu preço de capa original, de maneira que o varejista pelo menos não sofresse grande

prejuízo. É, portanto, de nosso entendimento que a recusa dos varejistas por adquirir um

produto cujo preço fosse estampado na capa é perfeitamente aceitável.

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O Estado de São Paulo, ao falar do new-disc – outra expressão para o disco de

dez polegadas, o descreve como “um LP de oito faixas e com duração máxima de vinte

minutos”, com a vantagem de baratear o custo do produto em até 30%. No entanto, a

própria reportagem de 12 de julho de 1981 já aponta uma desvantagem do formato, pois

ele seria utilizado apenas por novos artistas, já que “os nomes consagrados dificilmente

aceitariam participar de um esquema de produção desse tipo”.5 Adiel Macedo de

Carvalho, presidente da gravadora Copacabana, gravadora que se dizia “imune” à crise,

explica:

Existe o pressuposto de que a cada dez lançamentos, apenas um vinga no

mercado. Estes lançamentos (de 10 polegadas) não representam a maior

parte dos custos de uma empresa, ao contrário, representam pouco no total.

Afinal, um estreante dificilmente merece uma produção muito cara. 5

Mais uma vez, temos aqui uma categoria de trabalhadores – os músicos iniciantes

– sofrendo mais com o peso da crise. Mesmo sendo a opinião de UM presidente de

UMA gravadora, é crível assumir que era – e ainda é – uma opinião que pode ser

generalizada para os grandes empresários deste setor, no que diz respeito ao trato com

novos artistas. Essa lógica, mais do que privilegiar os artistas já consagrados em

detrimentos de novos talentos, seguia a então corrente adaptação de mercado.

Friedlander escreve que ao longo dos anos 70, as gravadoras passaram por mudanças

internas. Se anteriormente as decisões corporativas eram tomadas por “homens com

experiência em descobrir talentos e com um ouvido nas ruas”, estas decisões passaram

então a ser tomadas com base nas estatísticas de lucros e perdas.

Consolidação tornou-se norma na indústria, enquanto pequenas gravadoras

se fundiam, outras eram engolidas pelas grandes e outras iam à bancarrota

[...]. Os novos executivos dos selos, advogados, conservadores e contadores,

ditavam um curso de ação cauteloso: assinar contratos milionários e longos

com os campeões de vendas, reduzir a lista de artistas secundários, e apenas

assinar com novos artistas se pudessem fazê-los passar por um rigoroso

processo de avaliação e se tivessem uma certeza razoável de que eles seriam

lucrativos (FRIEDLANDER, 2012, p. 409).

Pois, se um “estreante dificilmente merece uma produção muito cara”, o que

sobraria para este artista? Graças às novas tecnologias que então se popularizavam,

houve grande barateamento dos custos e usos de técnicas de gravação profissional, que

implicou no fim da década de 70 e início dos anos 80 no Brasil em um “crescimento

numérico de estúdios e gravadoras de pequeno porte que lançavam artistas até então

desconhecidos do grande público”, como aponta Ghezzi. No que diz respeito a esse

crescimento no número de gravadoras:

Se em meados da década de 70 os artistas consagrados pelo público eram

apenas aqueles lançados por grandes gravadoras transnacionais, a década de

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80 tomou conhecimento de artistas que não faziam parte deste cast. Houve,

no período indicado, um aumento quantitativo dos centros de produção

musical, o que implicou um equivalente incremento no número de

gravadoras que não eram diretamente vinculadas ao capital estrangeiro das

multinacionais do setor fonográfico (GHEZZI, 2003, pp. 22-23).

Temos até agora, como os responsáveis da crise fonográfica o vendedor varejista e

os artistas, tanto os iniciantes que na visão das grandes gravadores não merecem um

grande investimento na sua produção, ou o artista consagrado, que não se sujeita a

gravar seus trabalhos no formato de dez polegadas – a suposta solução para todos os

males. Em uma edição de 1980 d’O Estado de São Paulo, João Araújo, presidente da

ABPD, considera crise do petróleo de 1980 como uma das principais culpadas no

encarecimento no preço do disco, pois além de matéria prima, a alta do petróleo afetava

o transporte do produto e produção da parte gráfica – capas e encartes.

Uma parte dessa crise se deve à alta do petróleo [...]. Não é somente devido

ao fato do disco ser fabricado à base de um de seus derivados, o vinil. A

partir da alta do petróleo, o preço de tudo subiu, principalmente o do disco. 6

Outros fatores que justificavam a alta dos preços para a ABPD, eram o fato de

que, após os generosos anos de 74 a 78, nenhum estilo musical veio substituir a moda

discotheque, fenômeno que havia levado a indústria a piques de vendas. José Victor da

Ariola concorda que “faltou um novo modismo para substituir a onda disco”.6 Outro

fator que levaria a culpa das baixas vendas era a proliferação das rádios FM, que

segundo João Araújo, “ao contrário de incentivar a compra de discos, elas roubam um

pouco o público comprador”.6 O problema das rádios FM seria facilmente – e

paradoxalmente – contornado com práticas de suborno aos radialistas para a inclusão e

execução massiva de faixas de determinados artistas em sua programação,

popularmente conhecido como jabaculê ou jabá:

Nome pelo qual ficou conhecida a prática do pagamento de propinas aos

programadores das rádios [...] para a inclusão das músicas na sua

programação. Embora constantemente negada, sua existência já era bastante

comentada desde pelo menos os anos 70. (VICENTE, 2002, p. 104).

De vilão a futuro aliado, o rádio FM, auxiliado pela proliferação de novas

tecnologias, como o gravador caseiro e a própria fita K7, criaram novas possibilidades

para os consumidores de música:

Pode-se dizer que adoção da fita cassete é um marco em relação à pirataria.

A reprodução de gravações musicais por meio desse suporte sonoro ficou

consideravelmente mais simples e barata — aspecto fundamental para que

atingisse grande popularidade em pouco tempo. Ademais, a K-7 permitiu

que o público pudesse se relacionar de modo mais interativo com a música,

ao propiciar criações pessoais de coletâneas, gravações de programas de

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rádios e compartilhamento de músicas entre amigos. Tornou a música

facilmente transportável com o surgimento dos aparelhos toca-fitas portáteis,

entre eles, o emblemático walkman, lançado pela Sony em 1979 (SANTOS,

2010, p. 85).

O historiador Eduardo Vicente, em sua dissertação de mestrado, também aponta

para praticamente os mesmo motivos para a crise do mercado fonográfico nos anos

1980. Segundo ele, além das tecnologias disponíveis na época permitirem ao

consumidor gravar suas músicas preferidas direto das rádios em uma fita K7, havia uma

percepção por parte das gravadoras que a “classe média – mercado prioritário das

empresas internacionais – estava reduzindo sua participação no consumo de discos no

país”. Havia outras possibilidades de consumo e lazer competindo com o mercado de

disco, numa época na qual não se investiam em novos artistas, a não ser quando existia

uma “certeza razoável” [sic] que ele traria lucros (como dito acima), ao mesmo tempo

em que os executivos reclamavam do envelhecimento da geração anterior de artistas,

principalmente dos anos 60, que não se haviam adaptado e renovado ao então atual

contexto da indústria (VICENTE, 2002, p. 94).

III. A pirataria – a grande vilã

Em seu mestrado, o historiador mineiro Christiano Rangel dos Santos nos lembra

como o “universo da pirataria é demasiado complexo e pouquíssimo estudado no

Brasil, sendo raros os trabalhos de pesquisa a respeito” (SANTOS, 2010, p. 11). No

período aqui estudado, a pirataria era quase que exclusivamente feita em fitas K7,

apesar de que existia, de fato, uma circulação ilegal de registros musicais piratas em

vinil, ainda que tal circulação fosse ínfima (SANTOS, 2010, p. 86). Mesmo assim

O negócio formal da venda de música em cassete nunca decolou no país

desde quando foi adotado, no início dos anos 1970. O mercado ilegal logo

tomou conta e obteve mais sucesso na comercialização de canções por meio

desse suporte musical que, em linha ascendente, chegou a responder pela

quase totalidade das fitas gravadas vendidas nos anos 1990. (SANTOS,

2010, p. 18).

E por que a comercialização formal de fitas K7 nunca decolou no Brasil? Uma

possível resposta é que, ao contrário do que se poderia esperar, um suporte menor como

o K7 era, comparado ao LP, mais caro. Segundo O Estado de São Paulo, os lojistas se

queixavam que as fitas cassete acusavam uma queda ainda maior nas vendas, e um

representante dos lojistas reclamava que “mesmo tendo tabelado as fitas ao mesmo nível

dos LPs [...], muitas gravadoras continuam vendendo-as para nós mais caras” 5. Até

mesmo Nélson Fernandes, falando em nome da gravadora Eldorado, reconhecia que “o

cassete deveria, inclusive, custar mais barato. Afinal, ele não tem encartes, não há

como fazer capas duplas, etc.”.5 Outro fator que contribuía para a baixa venda das fita

K7 era que

Durante o período em que a indústria trabalhou com as fitas cassete e os long

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plays como suporte fonográfico padrão, havia uma expressiva preferência do

público consumidor por álbuns oficiais em formato de LP. A venda dos

discos de vinil, pouco pirateados, compensava ou pelo menos reduzia o

impacto das perdas causadas pela pirataria de K-7, então largamente

praticada (SANTOS, 2010, p. 20).

Um grande número de reportagens da época dedica suas páginas a questão da

pirataria musical, sendo o seu combate fundamental para a resolução da crise. A

pirataria, para o consumidor final, apresentava suas vantagens e desvantagens:

Por um lado, a facilidade do processo de produção das cópias em cassete

oferecia grande impulso à atividade dos piratas, por outro as cópias

falsificadas tendiam a utilizar material de baixa qualidade, que não só

comprometia sua audição como oferecia riscos aos equipamentos de

reprodução. (VICENTE, 2002, p. 215).

E esses riscos dos equipamentos de som eram assunto constante na Revista

Somtrês. Uma carta indignada de Luiz Alberto Backes, residente do Rio Grande do Sul,

pergunta aos editores de que adiantava analisar a qualidade dos aparelhos de som,

“enquanto os leitores não tiverem condições de distinguir, no ato da compra, as fitas de

boa das de má qualidade”.7 A carta não obteve resposta, ao menos não uma resposta

publicada, mas a mesma edição trás uma reportagem sobre “as falhas do gravador

cassete”, onde é dito logo no primeiro parágrafo que tais falhas são, “quase na sua

totalidade, o resultado da má conservação do aparelho ou do uso de fitas de baixa

qualidade”. Uma maneira de aumentar a longevidade do equipamento era manutenção

constante do gravador, essencial para uma melhor qualidade de som:

A limpeza e a desmagnetização periódica das cabeças [do gravador] é

imprescindível [...]. O óxido depositado na cabeça, mesmo em camada

minúscula, tem o efeito imediato de redução da resposta dos agudos além de,

a, longo prazo, causar apagamento permanente das frequências altas da fita. 8

A reportagem segue dando conselhos para saber se o aparelho necessita

desmagnetização, cujo sintoma era “um aumento do nível de ruído, em forma de chiado

constante observado durante a reprodução de qualquer fita”. Era aconselhado que o

dono do gravador, para diagnosticar tal defeito, acionasse o botão play sem fita, e

procurasse ouvir um chiado de fundo. Existia ainda um aparelho específico, o

desmagnetizador, que deveria ser utilizado com diversos cuidados, sendo que nunca

deveria ser ligado ou desligado próximo à cabeça; ser aproximado em movimentos

circulares; ser provido de uma capa de proteção plástica para não arranhar a cabeça; sua

passagem sobre as cabeças do gravador deveria ser suave; deveria então ser afastado do

gravador lentamente e sempre em movimentos circulares; e só então, quando afastado o

bastante, ser desligado. Um cuidado excessivo com um aparelho que reproduzia uma

mídia que, como dito acima, não vendia tanto em números oficiais e não representava a

preferência do público como suporte fonográfico.

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Na edição de junho de 1981, encontramos a reportagem intitulada “As exigências

do gravador”, na qual dizia que “depois da série a respeitos dos cuidados com o toca-

discos, iniciamos uma outra, que trata da melhor maneira de conversar os

gravadores”.9 As páginas da nova série iniciada – ou seja, as edições posteriores

continuariam a detalhar maneiras de conservar melhor seu gravador – diziam ser

necessário “pensar nos cuidados e material necessários para a conservação deles [LPs

e K7s] e dos equipamentos [de reprodução]”. A revista faz então a previsão de que a

conversação dos equipamentos será fundamental, pois “mesmo quando tivermos em

casa tudo quanto é digital, provavelmente não vamos jogar no lixo as gravações e

equipamentos que ainda nos satisfazem”. Quanto à conservação dos equipamentos, era

enfatizado que “a limpeza vem em primeiro lugar”; “outro aspecto fundamental é o do

alinhamento dos cabeçotes”; entre muitas outras sugestões de caráter extremamente

técnico, a ponto do repórter que assina a matéria advertir que: “não aconselho aos

audiófilos pouco experientes tentar os ajustes, porque são delicados, quase críticos, e

exigem uma fita padrão cara e nem sempre fácil de encontrar”. 9 É curioso notar

reportagens que dedicam tamanha precaução na manutenção do gravador, ainda por

cima em uma publicação que, como veremos, procura se posicionar contra a pirataria.

Então, porque tanto cuidado com o gravador? Segundo Santos:

Na década de 1970, o crescimento da produção de fitas piratas foi rápido; em

1974, o Centro de Pesquisas de Arte Brasileira do Departamento de

Informação e Documentação Artísticas (Idart) estimava que das cerca de 11

milhões de fitas cassete virgens produzidas no país, apenas 4 milhões foram

usadas pela indústria oficial. O secretário da Associação Brasileira dos

Produtores de Discos (ABPD) na época, João Carlos Muller Chaves, chegou

a ironizar a situação, dizendo que “é difícil imaginar que os quase sete

milhões que sobram sejam utilizados por papais-corujas, que gravam

gracinhas dos filhos ou festas de aniversários” (SANTOS, 2010, p 86).

Em outras palavras, o secretário da ABPD levantava a seguinte hipótese, aqui

questionada por nós: as constantes reportagens sobre os cuidados com os gravadores da

revista Somtrês, somadas ao grande número de fitas K7 virgens no mercado, nos leva a

conclusão que o K7 não servia apenas para a gravação de “gracinhas dos filhos” por

papais-coruja. Possibilitava a gravação de álbuns inteiros; de músicas diretamente das

rádios; a criação de coletâneas com canções selecionadas pelo gosto do ouvinte; entre

outras possibilidades, como o empréstimo de discos entre amigos, que será mais bem

desenvolvido abaixo. Chegou-se a constituir, inclusive, um comércio informal de

gravações de discos, comércio esse que era praticado por aqueles que nosso senso

comum aponta como os mais interessados em vender álbuns oficiais: as lojas de discos.

Dos anos 1970 a meados dos 1990 [...] as lojas de discos gravavam fitas

cassete com o repertório selecionado pelos próprios clientes: as coletâneas

podiam ser de músicas do mesmo ou de diversos gêneros e de um ou vários

artistas, nem sempre seguindo apenas a lógica dos grandes sucessos, uma

vez que a seleção era de caráter mais pessoal. Concorrer com os piratas

nesse quesito era praticamente impossível para a indústria, porque os

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tramites necessários para o lançamento de uma coletânea oficial imprimiam

lentidão ao processo (SANTOS, 2010, p. 87).

Esse comércio informal transcendia o âmbito das lojas e era feito, também,

diretamente por aficionados em música. Uma olhada na sessão de vendas e trocas nos

números 21, 22, 27, 28, 30 e 31 da Somtrês nos dão uma pequena ideia do que era esse

comércio informal de gravações diversas em fitas K7. Vale a pena reproduzir alguns

desses anúncios, que vão dos mais variados estilos musicais, como o rock, o erudito e

até artistas nacionais:

VENDO – Gravações piratas de Led Zeppelin, Yardbirds e outros. Arthur.

Tel.: 458-4815. São Bernardo do Campo – SP.8

COMPRO – Gravações em fitas cassete dos discos: Alive I, Dressed to Kill

e Rock and Roll Over do Kiss. Milton Kiga. Caixa Postal, 217. CEP: 16.900.

Andradina – SP.11

COMPRO OU TROCO: Quero gravações de shows do Fagner realizados

nos anos 70. Pagarei bem. Troco correspondência com admiradores do

Fagner. Henrique Alarez. Rua Barão de Mesquita, 616. CEP: 20.540. Rio de

Janeiro – RJ.12

TROCO – Cópias de gravações das seguintes óperas com o restrospectivo

xerox do libreto: Oberon, de Weber; Cosi Fan Tutte, de Mozart; Ernani e

Rigoletto, de Verdi; Tannhausen e Parsifal, de Wagner ou qualquer uma de

suas óperas [...]. José Eduardo Ferreira de Freitas. Rua 41 nº 55 – Floramar.

CEP: 30.000. Belo Horizonte – MG.13

Isso para citar apenas alguns exemplos. Vendia-se, se trocava, e se comprava todo

o tipo de gravações nos mais diversos suportes – originais ou não – de LPs e K7s. Ainda

era possível encontrar anúncios de compra e venda de adesivos, traduções de letras,

fotos, reportagens nacionais e ou importadas sobre os mais variados artistas. Havia

músicos procurando bandas, ou ainda, apenas pessoas que somente procuravam

conversar com outros fãs do mesmo artista. Casos como o do fã do cantor Fagner

retratados acima, que gostaria de trocar correspondência com outros admiradores do

artista, não eram incomuns. Mais uma vez utilizando das palavras de Christiano Rangel

dos Santos:

Alguns anunciantes se mostravam como uma espécie de “homens de

negócio” e “fãs de música” ao mesmo tempo. O espaço era usado tanto para

a pirataria comercial como para a simples troca e compra de registros por

quem não tinha intenção de faturar com as gravações. Os fã-clubes

utilizavam a revista como canal de comunicação e realizavam intercâmbio

de discos ou de copias em fitas, além de outros objetos como livros de

música, pôsteres e reportagens sobre determinados artistas. (SANTOS, 2010,

p. 100).

Page 12: A crise da indústria fonográfica no início dos anos 1980 vista pela mídia especializada, e a popularização da pirataria e da fita k7

12

Nos números da Somtrês que trabalhamos, encontramos um total de 223 anúncios

de compra, venda e troca de discos em geral, em uma sessão da revista chamada Free

Shop. Alguns desses anúncios faziam referências explicitas à venda de produtos piratas,

sejam bootlegs, gravação de álbuns, ou ainda ambos no mesmo anúncio. Para a

confecção da tabela abaixo foram desconsiderados os anúncios de instrumentos

musicais, toca-discos e equipamentos de som em geral, como amplificadores e

gravadores, que também eram uma ocorrência constante na revista.

Ocorrências de anúncios de produtos piratas e gravações na Revista Somtrês entre

setembro de 1980 e julho 1981.

Edição número total de

anúncios

referências à

discos piratas

compra/venda de

gravações de

discos

Setembro de 1980 36 2 2

Outubro de 1980 36 1 4

Março de 1981 38 2 9

Abril de 1981 47 0 5

Junho de 1981 34 0 3

Julho de 1981 32 3 3

Mesmo não havendo nenhum padrão específico para o aumento de anúncios com

referências explícitas à álbuns piratas e/ou gravações ilegais, houve, em dezembro de

1980, uma alteração no Código Penal brasileiro, que configurava a pirataria como crime

de ação pública. A tabela acima nos deixa claro que tal alteração na lei pouco – senão

nada – fez para coibir ou intimidar o comércio informal na revista, ainda que fosse

extremamente fácil encontrar esses anunciantes, pois publicavam seu nome e endereço.

Poderíamos até afirmar o contrário: que a mudança no Código provocou um aumento

nos anúncios de cópias de álbuns; conclusão arriscada pelo fato de não foram

encontradas as edições de janeiro e fevereiro de 1981, imediatamente publicadas após a

penalização da pirataria. É também importante destacar que as edições publicadas em

setembro de outubro de 1980 – antes da alteração no Código Penal – possuíam o

seguinte aviso no início da sessão de compra e vendas:

Este é o primeiro e único mercado livre de equipamentos e discos da

Imprensa Brasileira. Se você quiser participar, mande uma carta com as

especificações do aparelho ou discos que você quer comprar, trocar, ou

vender. Não custa nada. Publicamos qualquer oferta, a não ser a venda de

fitas piratas [...].14 (Grifo nosso).

Este é o primeiro e único mercado livre de equipamentos de som e discos do

Brasil. Você também pode participar. É de graça. Basta mandar uma carta

para SOMTRÊS, contando o que você quer vender, comprar ou trocar [...].

Vale qualquer negócio, menos cópias em fita de discos que ainda estejam no

mercado. Ou seja: vale tudo, menos pirataria.15 (Grifo nosso).

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13

Lembremos mais uma vez que as próprias edições de setembro e outubro de 1980

possuíam anúncios com referências claras às gravações de álbuns e/ou pirataria. Para os

fins desse trabalho, não foi possível localizar as edições entre novembro de 1980 e

fevereiro de 1981, mas se nota uma mudança bastante interessante de discurso a partir

da edição de março de 1981: a palavra “pirataria”, ou qualquer referência a ela é omitida

da introdução da sessão Free Shop, como se este houvesse tornado um assunto que, se

não era proibido, era no mínimo evitável:

Este é o primeiro e único mercado livre de equipamentos e discos do Brasil.

Para participar, você não gasta nada. Basta enviar uma carta dizendo o que

você quer trocar, comprar ou vender. [...]. Você pode anunciar qualquer

coisa, menos cópias em fitas de discos que ainda estejam à venda no

Brasil.16 (Grifo nosso)

As edições seguintes seguem evitando a palavra pirataria, com variações da frase

destacada acima, como dizer que só não é válido o anúncio de “cópias em fitas que

ainda estejam em catálogo” (abril de 1981); e “cópias em fitas de discos que ainda

estejam à venda no Brasil” (junho e julho de 1981). Estariam os editores evitando coibir

a troca de produtos piratas? Ou estariam eles, com a mudança de discurso, buscando se

livrar de qualquer responsabilidade na comercialização da pirataria, jogando a culpa em

cima dos leitores, que não teriam interpretado corretamente que “gravações de álbuns

ainda à venda no Brasil” significava, pura e simplesmente, cópias ilegais? Essa troca de

expressões, aparentemente insignificante, esconde uma retórica eufemística:

Mas, se não há diferença importante entre uma e outra palavra, por que

trocá-las? Que jogo retórico está por trás do eufemismo? A resposta nos

remete a uma das vertentes do discurso persuasivo que é a de provocar

reações emocionais no receptor: o enunciador/emissor apela para recursos

afetivos visando a melhor conquistar adesão do seu público. Ou seja, em

nosso caso, ao se deslocar a expressão “contaminada” [...], para a “neutra”

(CITELLI, 2004, p. 34). 17

No caso da análise aqui feita, consideremos como expressão contaminada a

palavra “pirataria” e como expressão “neutra” a frase “discos que ainda estejam à venda

no Brasil”, ou qualquer uma de suas variações publicadas na Somtrês. Seguindo ainda

com as ideias de Citelli, tal omissão assegura uma recontextualização do signo que

passa agora a produzir novas ideias, valores que não são mais associados aos incômodos

históricos sugeridos pela palavra pirataria, pois recordemos que este termo, em sua

acepção moderna, é oriundo do século XV, sendo usado para designar a prática de

assaltos a embarcações marítimas em alto mar (SANTOS, 2010, p. 80). Por essa razão,

somos inclinados a concluir que a segunda hipótese levantada – o transferimento de

responsabilidades aos leitores pelas cópias ilegais comercializadas – é muito mais

plausível, ainda que diante de tantas reportagens sobre conservação de gravadores, e

crises da indústria, a revista buscasse se posicionar contra a pirataria. Tal conclusão

pode ser comprovada ao voltarmos à reportagem “A Crise em 33 RPM” de março de

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14

1981, reportagem que termina com o seguinte parêntese:

Em tempo: SOMTRÊS, como já avisou à direção da Associação Brasileira

dos Produtores de Discos, oferece seu espaço para esta campanha contra a

pirataria. Ao mesmo tempo, continuará impedindo que se anuncie, nas

páginas de seu Free-Shop, ofertas de cópias em fita de discos em catálogo.18

Impedimento este obviamente esquecido pelos editores, ao lembrarmos que a

própria edição em questão contraditoriamente possuía nove referências às gravações de

discos – maior número de referências a cópias ilegais entre as edições trabalhadas. Ao

dizer que impediria o anúncio de “ofertas de cópias em fita de discos em catálogo”, e

mesmo assim seguir publicando tais anúncios, não estaria a revista, como se diz

popularmente “fazendo vistas grossas”? Em outras palavras, nos perguntamos aqui o

levavam os editores da Somtrês a adotarem um discurso antipirataria, e mesmo assim

publicar anúncios de venda de cópias de álbuns. Não podemos considerar o atrativo de

receber por esses anúncios, pois a revista enfatizava que era “de graça”, ou que “você

não gasta nada”. Uma possibilidade era a fidelização dos seus clientes e procura de

aumento no número de leitores, o que causaria uma maior circulação no número de

revistas vendidas. Continuamos, no entanto, no âmbito das especulações. O que vale

recordar aqui é a ambiguidade entre discurso e prática da Somtrês, ambiguidade essa

clara ao lermos as reportagens da revista e os anúncios por ela vinculados.

A produção da fita K7 ainda produziu diversos subprodutos além da pirataria e o

comércio informal em revistas de música. Esse comércio informal possibilitou não

somente a ampliação do público ao acesso a música, como também se colocou como

uma oposição ao controle das corporações, mudando a maneira de socialização através

da música. “Um grupo de amigos podia comprar uma única cópia de um disco, copiá-lo

em fitas virgens e passar estas cópias para outros” (FRIEDLANDER, 2012, p. 411).

No Brasil, um exemplo desse tipo de socialização pode ser encontrado no documentário

Botinada.

Este documentário, disponível gratuitamente para download em vários sites na

internet, narra o surgimento das primeiras bandas de punk rock em nosso país. Há uma

sessão inteira desse documentário dedicado ao LP e a fita K7 (dos 12:58 aos 16:48),

onde temos depoimentos de vários dos primeiros músicos desse estilo no Brasil, que

corroboram essa prática de copiar vários discos e distribuí-los aos amigos, em especial

os discos importados, por seu preço excessivo (“Eu deixava de comprar uma calça pra

comprar um disco de punk rock” – dita por Anselmo – ou ainda “Pra você conseguir

um vinil era o pagamento do mês.” – por Mineirinho). “Esses discos viravam dezenas

de fitinhas, porque era o lado cooperativa que existia”, depoimento de Vladi.19 A

paixão pela fita era tal que chegava ao ponto que o público punk, segundo João Gordo,

do Ratos de Porão, preferia ouvir o som de fita à shows de bandas iniciantes, devido a

péssima qualidade dos músicos da época. Os irmãos Max e Igor Cavalera, fundadores

do grupo mineiro de thrash metal Sepultura, vendiam em sua adolescência fitas de

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15

bandas estrangeiras como complemento de sua renda:

Max e Igor começaram a fazer “vaquinhas” entre os amigos para comprar

discos importados. Juntando o dinheiro de 30 ou 40 pessoas, viajavam 600

quilômetros até São Paulo e compravam 10 ou 15 discos de uma vez. De

volta a BH, reuniam a turma para ouvir as novidade e gravar fitas [...]. Quem

conseguia um LP raro ou uma revista importada imediatamente emprestava

para os outros (BARCINSKI, 1999, pp. 26-27).

Outra novidade que a popularização da fita K7 trouxe no modo de ouvir música

foi a mobilidade, pois graças as fitas gravadas “qualquer um poderia viajar e ouvir a

música que escolhesse”, seja através do já citado walkman, ou pelo toca-fitas

automotivo, que se popularizava na época (FRIEDLANDER, 2012, p. 411). Um

exemplo dessa proliferação de toca-fitas portáteis no Brasil pode ser encontrado na

edição de junho de 1981 da Somtrês, onde uma reportagem de várias páginas ensina a

instalar um som automotivo, através de uma linguagem extremamente técnica, com

fotos, ilustrações e etapas passo a passo para a correta instalação do aparelho e das

caixas de som.

Iniciaremos aqui o primeiro artigo de uma nova série, com a intenção de

ajudar os leitores que pretendem instalar, trocar ou modificar o som do carro.

Nessa primeira montagem teremos um toca-fitas com rádio AM/FM, dois

alto-falantes full-range, dois tweeters, uma gaveta de toca-fitas e uma

antena. Sem dúvida, um equipamento dos mais comuns.20 (Grifo nosso)

Uma nova série que se iniciava, que nos mostra uma importância considerável do

som automotivo para os leitores e a revista. A matéria segue então com uma minuciosa

explicação de como instalar o aparelho, que se assemelha até mesmo a uma receita de

culinária. Há “ingredientes”, onde temos a lista de ferramentas, o material a ser

comprado e o equipamento necessário. A instalação é dividida em várias etapas

distintas, todos seguindo uma linguagem mais facilmente acessível à pessoas que tem

afinidade e experiência em instalação de equipamentos de som, em geral. Nos início dos

anos 1980, a popularização de novos suportes para a reprodução musical, tal como o

som automotivo, eram um atrativo por si só ao mercado fonográfico, fomentando as

vendas de aparelhos.

Vale observar que, nestes primeiros momentos da indústria, a venda de

suportes sonoros funcionava muito mais como um atrativo para a

comercialização dos aparelhos reprodutores do que como negócio autônomo.

Não havia, portanto, grande preocupação com respeito a escolha do que

tocar, uma vez que qualquer som mecanicamente reproduzido apresentava

interesse para os ouvintes (VICENTE, 1996, p. 29).

IV. Campanha anti-pirataria

Obviamente toda essa acessibilidade às cópias de discos não passaram

despercebidas pela grande mídia da época. A Folha de São Paulo de 22 de janeiro de

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1980, ao reportar uma reunião do Mercado Internacional do Disco e da Edição Musical

– o MIDEM – nos diz que “a pirataria que atinge a indústria do disco no mundo

inteiro, mediante gravações não autorizadas, foi classificada de verdadeira calamidade

durante um debate internacional realizado em Cannes”. 21 Uma série de novas leis eram

discutidas de modo que os direitos de autoria fossem respeitados, como a “criação de

um imposto aplicável às fitas magnéticas mediante o qual poderia se enfrentar, de certo

modo, a concorrência desleal” 21 que era a gravação caseira de músicas. Em dezembro

de 1980, quando ocorreu a já citada alteração no Código Penal no que diz respeito à

pirataria, o Estado de São Paulo publicou a seguinte reportagem:

A partir de hoje, às 11 horas, quando o presidente João Figueiredo sancionar

a lei que altera os artigos 184 e 186 do Código Penal, estará tipificada como

crime de ação pública a reprodução ilícita de obra literária, artística ou

científica através de fonograma e videograma. 22

Tal solenidade tinha confirmada a presença de vários artistas ainda hoje

conhecidos por boa parte do grande público, como Jair Rodrigues, Sidney Magal, Baby

Consuelo (que hoje atende pelo nome artístico de Baby do Brasil) e Luiz Gonzaga.

Representantes de gravadoras e da ABPD se mostravam otimistas, pois tal sanção

tornaria “bem mais fácil fiscalizar a pirataria no setor de discos”. 22 A Somtrês, ao

mencionar a mudança dos artigos 184 e 186, nos diz como para a ABPD tal sanção era a

“realização de um sonho”, pois a associação lutava há pelo menos seis anos para

“eliminar um inimigo poderoso, capaz de unir numa causa comum lados quase sempre

conflitantes, como artistas e gravadoras: a pirataria”. 23

Tal reportagem da Somtrês segue comparando as vantagens da mudança dos

artigos 184 e 186, pois até então a “pirataria estava configurava como crime de ação

privada, na esfera dos crimes contra a honra, o que exigia uma acusação formal de

pessoa a pessoa”. Com a mudança, a prática da cópia ilegal colocava o “crime como de

lesão ao patrimônio, e praticamente o equipara ao furto”. Seria punido não somente o

produtor, mas todos que participavam do processo: o revendedor, o distribuidor,

expositor, divulgador. O consumidor estava fora do alcance da lei, pois:

Com o aperfeiçoamento das técnicas da pirataria, fica quase impossível a

distinção imediata entre o legítimo e o falso produto [...]. É preciso muita

atenção, porque muitas vezes o pirata coloca uma fita falsa na caixa de uma

legítima, selando o produto com o invólucro plástico. Por isso, recomendo

que, uma vez decidida a compra, o consumidor abra a caixa na frente do

vendedor e examine o produto. 23

Ademais, é recomendada atenção ao observar a qualidade das cores da capa, e o

consumidor que se sentisse lesado ao comprar um produto pirata inadvertidamente

deveria denunciar as casas que vendessem produtos piratas à Polícia Federal. Esse apelo

ao consumidor de música era pregado pela revista já no número anterior, onde uma

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17

campanha televisiva que incentivada a “dar e receber música de presente”, e que

buscava conscientizar o público contra a pirataria, prática na qual “todo mundo sai

perdendo, com exceção dos comerciantes e demais envolvidos”, era criticada, pois, tais

campanhas estavam destinadas ao receptor errado:

A mensagem da campanha contra a pirataria talvez tenha desperdiçado seu

tempo enfatizando demais que a legislação a respeito foi alterada, tornando-

se mais rigorosa. Então, é possível concluir que tal recado se destinava mais

àqueles que, de qualquer maneira, estão envolvidos com o clandestino

comércio de música. Porque não ao contrário, dirigir essa mensagem a quem

compra discos & fitas? Ou seja, ao invés de advertir os ladrões, conquistar

aliados na campanha contra os piratas do som 18 (grifo nosso).

Até que ponto os piratas de 1980 se consideravam criminosos, ou acreditavam que

ao vender cópias de discos estava, de fato, cometendo um crime, dificilmente

saberemos. Se traçarmos um paralelo entre estes “envolvidos com o clandestino

comércio de música”, e os nossos contemporâneos camelôs, podemos concluir que

eram, de fato, “ladrões”, mas com plena consciência de quem realmente estava sendo

roubado:

Muitos desses trabalhadores, ao efetuarem um comércio ilegal baseado na

revenda de mercadorias contrabandeadas e/ou pirateadas, aceitam o fato de

que estão descumprindo as leis existentes, que condenam tais práticas como

crime [...]. Ao mesmo tempo, tais delitos não impedem que exerçam um

trabalho que é considerado por esses como digno e honesto, na medida em

que não consideram estar causando prejuízo a pessoas em específico, mas

sim ao Estado ou a grandes empresários (GOULART, 2004, pp. 97).

Seria possível que tais comerciantes de produtos piratas já tivessem essa

consciência em 1980? A antropóloga Rosana Machado conclui que “para os camelôs,

pirataria não mede honestidade”, e alguns deles, inclusive, acreditam que estão fazendo

um “bem”, pois vendem produtos que são inacessíveis às classes menos abastadas, e por

isso se consideram como um verdadeiro exemplo de honestidade (MACHADO, 2004,

p. 69). Machado compartilha da ideia que a pirataria é uma consequência própria das

brechas existentes no sistema capitalista, ideia que concordamos plenamente.

A comercialização de pirataria é o filho rebelde e já independente do mundo

global capitalista. Filho porque reproduz as mesmas leis ensinadas pelos

pais, foi germinado no próprio sistema. Rebelde porque ninguém consegue

controlá-lo. Independente porque já possui uma lógica própria e, de certa

forma, caminha sozinho (MACHADO, 2004, p. 111).

Os artistas iniciantes também são beneficiados pela prática das cópias ilegais, pois

tais cópias permitem que seu trabalho atinja um maior número de pessoas por um preço

mais acessível. Ainda que o artista em questão não receba pela obra copiada, a pirataria

fortalece cenas independentes do esquema das grandes corporações. Christiano Rangel

dos Santos aponta como as cópias ilegais constroem novos modelos de negócio musical:

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A pirataria [...] é apontada comumente como um fator que contribuiu

decisivamente para o desenvolvimento das cenas musicais regionais,

propiciando que toda uma produção musical que está fora das grandes

gravadoras venha à tona. (SANTOS, 2010, p. 15).

Ao contrário do que destaca Santos, esse novo modelo não serviu de promoção

musical apenas a ritmos regionais brasileiros, como o forró eletrônico do Ceará, o funk

carioca, o tecnobrega paraense, ou o sertanejo do centro-oeste brasileiro. No início de

carreira dos mineiros do Sepultura, Silvio, um dos ajudantes de palco, não recebia

salário, pois vivia “da venda de gravações do Sepultura” (BARCINSKI, 1999, p. 63),

em um típico caso de pirataria autorizada por aqueles que seriam os mais interessados

em ver sua música comercializada por vias ditas “legais”. Essas e mais cópias de seus

discos, ainda que houvessem prejudicado financeiramente o grupo, provavam que havia

um interesse crescente pela banda (BARCINSKI, 1999, p. 59), inclusive no mercado

estrangeiro:

Mas não era apenas no Brasil que Bestial Desvastation [primeiro disco do

Sepultura] estava sendo notado: sem que os próprios integrantes da banda

soubessem, fitas com a gravação do disco começaram a circular no mercado

de troca de fitas cassete, uma verdadeira rede internacional de divulgação

que juntava fãs em todo o mundo (BARCINSKI, 1999, p. 36).

Por isso que concordamos mais uma vez com Santos que a pirataria não pode ser

analisada apenas enquanto a questão de sua licitude ou de ilicitude, preço acessível ou

inacessível. Existem outras questões a serem discutidas, pois ela tanto favorece quanto

prejudica pessoas envolvidas no comércio musical. Entre os favorecidos, estão os

comerciantes de discos que vendiam cópias de álbuns inteiros ou de coletâneas, e os

músicos iniciantes, que tem seu trabalho mais amplamente divulgado. Entre os

prejudicados, as grandes corporações. A pirataria “muitas vezes, propicia experiências

não contempladas pelas formas de relação com a música possíveis a partir do modelo

de produção, divulgação e consumo operado pelo mercado oficial” (SANTOS, 2010, p.

29).

Analisar a pirataria física considerando apenas a questão do preço é atitude

simplista e insuficiente. A motivação do consumidor para comprar um título

musical nem sempre se mede pelo valor que ele paga, embora seja inegável

que os altos preços praticados tornam os produtos inacessíveis as camadas

sociais de menor poder aquisitivo (SANTOS, 2010, p. 152).

Porém, é importante ressaltar que mesmo nos dias de hoje, quando um álbum

musical custa consideravelmente menos do que custava nos anos 1980, até mesmo os

consumidores de camadas sociais mais favorecidas economicamente optam pela cópia

oriunda da pirataria (SANTOS, 2010, p. 150), seja ela física ou digital. Essa é uma

questão que foge ao recorte deste artigo, pois seria mais bem trabalhada desde o ponto

de vista sociológico.

V. Considerações finais

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Com as facilidades de reprodução musical, jamais ocorreria um caso como o LP

Araçá Azul de 1973 de Caetano Veloso, “um disco supervanguardista que desagradou a

muitos e registrou recordes de devolução” (SEVERIANO, 2008, p. 388). A praticidade

das tecnologias atuais nos permite ouvir uma obra musical e decidir se vale a pena

adquiri-la fisicamente ou não, praticidade esta que não foi prevista pela indústria. Além

disso, a pirataria pode ser vista não apenas pelo viés da ilegalidade, mas uma forma de

inclusão social daqueles que não podem consumir um produto cultura, no caso, a

música, nos preços em que ele é comercializado hoje em dia, a fim de que tais

consumidores de música exerçam uma cidadania plena, através do que Zitkoski chama

de “Ética da Liberação”, que se preocupa “com as condições concretas para produzir a

humanização da sociedade, da cultura e da vida prática das pessoas que hoje se

encontram [...] excluídas, tanto do mercado econômico, quanto do acesso à cultura”

(ZITKOSKI, 2000 apud AHLERT, 2007, p. 05). Ademais, o prejuízo supostamente

causado por cópias ilegais é compensado pela indústria musical de outras maneiras. Se

de fato os downloads reduzem a probabilidade de compras CDs

Não obstante, esse efeito negativo é ao menos parcialmente compensando

por um efeito positivo dos downloads sobre a demanda por shows de música

[...]. Os downloads reduzem em até 45% a probabilidade de comprar CDs ao

passo que produzem um aumento de até 40% sobre a probabilidade de ir a

shows. Essa última estimativa é confirmada com outro resultado que mostra

que os indivíduos [...] que fazem download têm um gasto médio com shows

de música superior em até 200 reais (CORTEZ, 2010, p. 44).

Nesse estudo econômico citado acima, Igor Siqueira Cortez utiliza como base os

estudantes da Universidade de São Paulo, o que nos dá uma ideia do poder aquisitivo

dessas pessoas que nos dias de hoje baixam seus álbuns pela internet, mas acabam

gastando consideravelmente em shows. Ainda assim, devemos lembrar que a indústria

musical também ganha com diversos produtos fora os CDs e os shows. Arquivos MP3

são vendidos online, existe o comércio de camisetas, bonés, pôsteres, chaveiros, e

muitos outros produtos que podem ser visto e comprovados empiricamente ao visitar

praticamente qualquer site de qualquer artista musical.

Em seu artigo de 2011, o professor Ulrich Dolata acusa as gravadoras de não se

prepararem para as mudanças no mercado fonográfico, pois foram incapazes de

antecipar o impacto socioeconômico das novas oportunidades surgidas com o avanço

tecnológico. Não buscaram, devido a seu conservadorismo, estabelecer opções

industriais que competissem com esses avanços e procuraram manter uma oligarquia

hierarquizada desse setor (DOLATA, 2010, p. 03). 24 Esse conservadorismo se deve ao

fato de que:

A indústria musical não é um setor no qual novas tecnologias são

desenvolvidas e produzidas. Todas as tecnologias relevantes para gravação,

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produção, estocagem e, mais recentemente, distribuição musical são

baseadas em desenvolvimentos que ocorreram fora do setor (DOLATA,

2010, p. 20). 24

O estudo de Dolata pode ainda ser reforçado pelos escritos de José Ramos

Tinhorão. O célebre pesquisador brasileiro previu que os estúdios se tornariam

verdadeiros laboratórios de engenharia musical, com músicos sendo progressivamente

substituídos por computadores, e tal engenharia

permitirá ultrapassar as próprias possibilidades dos sons normalmente

produzidos pelos instrumentos acústicos, mediante a alteração de suas

tessituras, através da ampliação, por exemplo, de sua extensão, com a

consequente ampliação de seu âmbito. Possiblidades técnicas desse tipo,

sobre implicar necessariamente dispensa de músicos e maestros-arranjadores

nos estúdios, permitirá ainda programar, através de novas combinações

rítmicas, o lançamento de modas musicais caracterizadas por um tipo de

acompanhamento sonoro fora do alcance da participação humana

(TINHORÃO, 2006, p. 194).

Previsão acertada do pesquisador, comprovada em empiricamente apenas ao

ligarmos o rádio, irmos a uma danceteria, ou até mesmo nos shows, onde sons

computadorizados corrigem de forma automática as imperfeições dos artistas atuais, ou

em outros casos esses sons pré-gravados complementam a apresentação dos

instrumentos tradicionais, e enriquecem a experiência musical tanto do público quanto

do artista. Não obstante, Tinhorão não escreveu, até onde pudemos comprovar, sobre

questões relevantes à pirataria no consumo musical, se preocupando com “a progressiva

dominação do mercado brasileiro pela música importada dos grandes centros europeus e

da América do Norte” (TINHORÃO, 2006, p. 193).

José Ramos Tinhorão é um dos maiores autores brasileiros no que diz respeito à

historiografia musical, mas a ausência de estudos sobre a pirataria em sua obra

confirma, como já citamos anteriormente, a escassez de estudos no Brasil quando o

assunto é o consumo “ilegal” de música, escassez essa notada na própria bibliografia

pesquisada, pois os poucos autores que se dedicaram a questão citam uns aos outros

constantemente. Também ainda é precária a quantidade de pesquisas acadêmicas

quando tratamos de expressões musicais que não são consideradas “100% nacionais”.

O pouco valor dado às questões pertinentes a música internacional [...] expõe

a enorme dificuldade dos estudos sobre a música popular no Brasil em lidar

com a presença da música estrangeira que influencia tantos artistas e fazem

parte da experiência musical dos brasileiros. Impressiona como o ufanismo

triunfa nesse campo de estudo, com pesquisadores ignorando a música

internacional ou excluindo-a de suas análises, por mais que tenham a ver

com o tema de suas investigações. Fruto disso é a tendência de tratar a

música em termos de “cultura nacional” e olhar com desconfiança para tudo

o que vem de fora, considerando como mera imposição o ingresso de

produções artísticas de países centrais como os Estados Unidos. Para os

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ufanistas musicais, mais difícil ainda é reconhecer que das músicas

executadas em programas de rádio, a maior parte é internacional, ou seja, são

as canções estrangeiras que tem prevalecido. (SANTOS, 2010, pp. 143-144).

Esse ufanismo leva a diversas obras sobre a história da música no Brasil a não

mencionar toda uma série de artistas nacionais que cantam em línguas que não são o

português, ainda que sua música seja carregada de brasilidade. Artistas como Tom

Jobim, Carmem Miranda, Caetano Veloso, isso para citar somente alguns “medalhões”

de nossa música popular, gravaram em línguas diferentes do português e voltaram boa

parte de suas carreiras para o mercado estrangeiro. Ainda que em termos gerais o heavy

metal em nosso país seja uma coisa recente (LEÃO, 1997, p. 199), acreditamos que

estudos sérios sobre a apropriação desse estilo e adaptação às temáticas brasileiras,

ainda são muito escassas no âmbito acadêmico. O que faz das batidas tribais e as

temáticas terceiro-mundistas do Sepultura, ou um artista de heavy metal como o cantor e

compositor de formação erudita André Matos, que mistura guitarras distorcidas, música

erudita e batidas tipicamente brasileiras, menos nacionais? Há ainda o hip-hop

paulistano dos Racionais MCs, entre muitos artistas desse nicho, que com suas letras

descreve uma visão da realidade das favelas da Zona Sul de São Paulo, representando

toda uma camada social excluída, só passou a ser estudado recentemente pelos cientistas

sociais (SILVA, 2007, p. 01), pois o hip-hop, tal como o heavy metal, não possuiu o

apoio e divulgação das grandes mídias, se popularizou entre as chamadas tribos urbanas,

e ainda é visto como mera imposição yankee. Mais do que nos preocuparmos com a

pura e simples imposição, por que não falarmos também de sincronismo, ao estudarmos

como a música estrangeira foi adaptada, incorporada, e transformada pelos interpretes

nacionais? Além disso, Eduardo Vicente aponta que

Quanto à questão da dominação cultural, o problema é evidentemente mais

complexo, mas os próprios números apresentados mostram que uma

internacionalização mais radical do consumo musical não parece ter estado,

em momento algum, próxima de ocorrer e mesmo que os lançamentos

internacionais se mostrassem de fato mais lucrativos para as empresas

instaladas no país, a exploração do repertório doméstico foi – via de regra –

o caminho adotado pelas empresas internacionais para a sua efetiva

consolidação no país. Desse modo não me parece justificável o

estabelecimento de uma relação direta entre a internacionalização da

produção fonográfica brasileira e a predominância do consumo de um

repertório importado (VICENTE, 1996, pp. 57-58).

Gostaríamos também de apontar a virtual ausência do estudo dos músicos

enquanto classe trabalhadora nos bancos de teses de mestrado. Existe todo um estudo a

ser feito das condições de trabalho dessa classe, fora do âmbito romântico do artista

talentoso que canaliza as ideias de uma época, mas como trabalhadores que vivem à

margem da CLT – experiência vivida por este que vos escreve e compartilhada com

vários de seus amigos e conhecidos. Talento, técnica musical, senso rítmico, vozes

afinadas, entre outros atributos musicais, não são inatos, mas como tudo mais,

adquiridos (HOBSBAWN, 1989, p. 60). Não devemos nos apegar tão somente à história

dos músicos bem sucedidos, mas também estudar a história “de baixo”, dos que não

conseguem ascender devido ao sistema existente de shows e contratos com gravadoras.

É evidente que muitos músicos talentosos não acenderam ao estrelato porque não

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tiveram – e não tem – oportunidades reais de divulgação de seu trabalho, pois não são

filhos de, e/ou apadrinhados por figuras importantes dentro das gravadoras, como o

cantor e compositor Cazuza, e teve seu grupo, o Barão Vermelho, lançado por João

Araújo, seu pai, e também diretor da gravadora que o contratou (SEVERIANO, 2008, p.

438). O cantor citado é apenas um dos muitos apadrinhados da indústria musical que,

apesar de seu inegável talento, devemos nos perguntar se teria, de fato, chegado ao

estrelato sem ter sua carreira facilitada pelo pai influente.

Parafraseando Hobsbawn em sua História Social do Jazz, o mundo do qual o

músico vem e onde ele trabalha não é apenas uma forma de ganhar a vida, mas muito

mais importante, uma maneira de se criar um caminho próprio dentro do mundo

(HOBSBAWM, 1989, p. 262). A já citada “auto pirataria”, praticada por grupos como o

Sepultura ou o Língua de Trapo, que “comercializava por conta própria em suas

apresentações uma fita K7 com composições do grupo” (GHEZZI, 2003, p. 157), são

apenas uma das muitas práticas que mostram como essa classe busca o seu caminho

próprio dentro do mundo.

VI. Bibliografia

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80 e 90. 335 f. Tese (Doutorado em Comunicação Social) – USP, São Paulo, 2002.

Notas

1. Folha de São Paulo, 21 de janeiro de 1980, p. 27.

2. “Refere-se à produção de gravações não autorizadas de concertos públicos de

artistas, sua impressão e posterior comercialização de cópias” (VICENTE, 2002,

p. 213).

3. Revista Somtrês, número 27, março de 1981, p. 96.

4. Revista Somtrês, número 27, março de 1981, p. 98.

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5. O Estado de São Paulo, 12 de julho de 1981, p. 39.

6. O Estado de São Paulo, 23 de setembro de 1980, p. 17.

7. Revista Somtrês, número 22, outubro de 1980, p. 08.

8. Revista Somtrês, número 22, outubro de 1980, p. 97.

9. Revista Somtrês, número 30, junho de 1981, pp. 18 - 19.

10. Revista Somtrês, número 21, setembro, p. 46.

11. Revista Somtrês, número 22, outubro de 1980, p. 32.

12. Revista Somtrês, número 30, junho de 1981, p. 53.

13. Revista Somtrês, número 27, março de 1981, p. 34

14. Revista Somtrês, número 21, setembro, p. 44.

15. Revista Somtrês, número 22, outubro de 1980, p. 30.

16. Revista Somtrês, número 27, março de 1981, p. 30.

17. No original, o autor se referia aos termos “capitalismo” – expressão

contaminada, e “livre-empresa” – expressão neutra.

18. Revista Somtrês, número 27, março de 1981, p. 97.

19. Depoimentos extraídos do documentário “Botinada”, disponível gratuitamente

em www.youtube.com/watch?v=22lSR-o4n98 acessado em 02 de dezembro de

2012.

20. Revista Somtrês, número 30, junho de 1981, pp. 23, 24, 25, 26, 28, 29, 30, 32,

33.

21. Folha de São Paulo, 22 de janeiro de 1980, p. 35.

22. O Estado de São Paulo, 17 de dezembro de 1980, p. 17.

23. Revista Somtrês, número 28, abril de 1981, p. 57

24. Traduções livres feitas pelo autor deste artigo.