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ISSN 1415 - 8973 A COR DAS LETRAS Revista do Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Feira de Santana Universidade Estadual de Feira de Santana Km 03, BR 116, Campus Universitário CEP: 44.031-460, Caixa Postal: 294 Tel.: (75) 3224-8265 - E-mail: [email protected] Feira de Santana - Bahia - Brasil

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Page 1: A COR DAS LETRAS - UEFS · Paloma Marques** RESUMO: Neste artigo, partindo dos pressupostos de que a aprendizagem de línguas estrangeiras é importante para o desenvolvimento integral

ISSN 1415 - 8973

A COR DAS LETRAS

Revista do Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Feira de Santana

Universidade Estadual de Feira de SantanaKm 03, BR 116, Campus Universitário

CEP: 44.031-460, Caixa Postal: 294Tel.: (75) 3224-8265 - E-mail: [email protected]

Feira de Santana - Bahia - Brasil

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Conselho EditorialProf. Dr. Alain Vuillemin – Université d’Artois (França)Prof. Dr. Benedito José de Araújo Veiga – UEFS (DLET – Literatura)Prof. Dr. Carlos Saez – Universidad de Alcalá (Espanha)Prof. Dr. Edson Dias Ferreira – UEFS (DLET – Artes)Profª. Dr.ª Ester Maria de Figueiredo Souza - UESBProf. Dr. Jenö Farkas – ELTE (Hungria)Prof. Dr. João Antônio de Santana Neto - UCSALProfª. Dr.ª Lílian Pestre de Almeida – Universidade Independente de Lisboa (Portugal)Prof. Dr. Luciano Amaral Oliveira – UEFS (DLET – Lingüística)Prof. Dr. Luiz Antônio Marcuschi - UFPE Profª. Dr.ª Maria da Conceição Reis Teixeira - UNEBProfª. Dr.ª Mary Kato - UNICAMPProf. Dr. Massaud Moisés - USPProfª. Dr.ª Milena Santos – UEFS (DLET – Estrangeiras)Prof. Dr. Odilon Pinto de Mesquita Filho - UESCProf. Dr. Pál Ferenc – ELTE (Hungria)Profª. Dr.ª Regina Zilberman - PUC-RSProfª. Dr.ª Rosa Borges Santos Carvalho - UFBAProfª. Dr.ª Sônia Maria van Dijck Lima – UFPBPeriodicidade: Anual

Os artigos e demais textos publicados nesta Revista são de inteira responsabilidade de seus autores. A reprodução, parcial ou total, é permitida, desde que seja citada a fonte.Solicita-se permuta./ Exchanges desired.

Ficha Catalográfica: Biblioteca Central Julieta Carteado

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA

REITORJosé Onofre Gurjão Boavista da Cunha

VICE-REITORAÉvila de Oliveira Reis Santana

DIRETORA DO DEPARTAMENTO DE LETRAS E ARTESAna Rita Sulz de Almeida Campos

VICE-DIRETORA DO DEPARTAMENTO DE LETRAS E ARTES

Maria Cristina Braga Mascarenhas

EDITORARita de Cássia Ribeiro de Queiroz

CO-EDITORCláudio Clédson Novaes

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A COR DAS LETRASNº 5 - 2004

DEPARTAMENTO DE LETRAS E ARTES

NESTE NÚMEROEric Brun, Milena Brun e Paloma Marques

Marcelo PeloggioSuani de Almeida VasconcelosAntônio Wilson Silva de Souza

Girlene Lima PortelaÂngela Vilma S. Bispo OliveiraMaria Tereza Carneiro Lemos

Maria do Socorro PessoaEdson Rosa Francisco de Souza

Luciano Amaral OliveiraJanete Silva dos SantosAnselmo Peres Alós

Cláudio NovaesRita de Cássia Ribeiro de Queiroz

REVISãOMarcia Tranzillo Barreto

Suani de Almeida Vasconcelos

CAPA“Marquesa”

Antônio Brasileiro e Nanja

DIAGRAMAÇãO E ARTE FINALJaciene Silva e Carvalho

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Normas Editoriais

A COR DAS LETRAS, revista do Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS, obedecerá às seguintes normas editoriais:

Matéria: a) Trabalhos no campo dos estudos lingüísticos, literários e das artes, apresentados sob a forma de artigos ou resenhas;b)Ser, preferencialmente, inédito, redigido em língua Portuguesa, Inglesa, Francesa ou Espanhola, levando-se em conta a ortografia oficial vigente e as regras para a indicação bibliográfica, conforme a ABNT;Encaminhamento: a) Os artigos devem ser enviados em duas cópias impressas sem identificação, acompanhadas de disquete. No mesmo enve-lope, deve ser enviada uma folha independente, contendo a identificação do trabalho e do autor no seguinte formato: Título do trabalho; Nome do autor por extenso e apenas o sobrenome em maiúscula; Filiação científica do autor (Departamento – Instituição ou Faculdade – Universidade – sigla – CEP – Cidade – Estado – País), endereço postal e eletrônico e uma autorização para publicação. Autores residentes fora do Brasil podem enviar seus artigos via e-mail. Além do arquivo com o artigo, deve-se incluir também um arquivo com a identificação do trabalho e do autor. Os textos devem ser encaminhados para o Editor da Revista.Formatação: a) Os trabalhos devem ser digitados em Word for Windows, e ter o seguinte formato:aa) fonte Times New Roman, tamanho 12, com exceção das citações e notas; bb) espaço 1,5 entre linhas e parágrafos; espaço duplo entre partes do texto; cc) as páginas devem ser configuradas no formato A4, sem numeração, com 3 cm nas margens superior e esquerda e 2 cm nas margens inferior e direita. Extensão: aa) O artigo, configurado no formato acima, deve ter 12 páginas, no máximo. Resenha, 6 páginas.Organização: a) A organização dos trabalhos deve obedecer à seguinte seqüência: TÍTULO (centralizado, em caixa alta e negrito); RESUMO (com máximo de 200 palavras) e PALAVRAS-CHAVE (até 6 palavras), escritos no idioma do artigo; ABSTRACT e KEYWORDS (versão para o inglês do Resumo e das Palavras-chave, caso a versão seja em outra língua: RESUMÉ e MOTS-CLÈS (francês), RESUMEN e PALABRAS-LLAVE (espanhol); TEXTO; NOTAS; REFERÊNCIAS

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(apenas trabalhos citados no texto). Resumos, palavras-chave, em por-tuguês e em língua estrangeira, devem ser digitados em Times New Roman, corpo 11.Referências: a) As referências bibliográficas e outras devem atender às normas da ABNT (NBR 6023:2002); b) As referências, dispostas no final do texto, devem ser organizadas em ordem alfabética pelo sobrenome do primeiro autor. Exemplos: livros e outras monografias (AUTOR, A. Título do livro. número da edição ed., Cidade: Editora, número de páginas p.), capítulos de livros (AUTOR, A. Título do capítulo. In: AU-TOR, A. Título do livro. Cidade: Editora, Ano. p. X-Y), dissertações e teses (AUTOR, A. Título da dissertação/tese: subtítulo sem itálicos. número de folhas f. Ano. Dissertação/Tese (Mestrado/Doutorado em Área de Concentração) – Instituto/Faculdade, Universidade, Cidade, Ano), artigos em periódicos (AUTOR, A. Título do artigo. Nome do periódico, Cidade, v. volume, n. número, p. X-Y, Ano), trabalho publi-cado em Anais de congresso ou similar (AUTOR, A. Título do trabalho. In: NOME DO EVENTO, número da edição ed., ano. Anais... Cidade: Instituição, Ano. p. X-Y).Citações dentro do texto: Nas citações feitas dentro do texto, de até três linhas, o autor deve ser citado entre parênteses pelo sobrenome, em maiúsculas, separado por vírgula da data da publicação (SILVA, 2000). Se o nome do autor estiver citado no texto, indica-se apenas a data, entre parênteses: “Silva (2000) assinala...”. Quando for necessário, a especificação da(s) página(s) deverá seguir a data, separada por vírgula e precedida de “p.” (SILVA, 2000, p. 100). As citações de diversas obras de um mesmo autor, publicadas no mesmo ano, devem ser discriminadas por letras minúsculas após a data, sem espacejamento (SILVA, 2000a). Quando a obra tiver dois ou três autores, todos poderão ser indicados, separados por ponto e vírgula (SILVA; SOUZA; SANTOS, 2000); quando houver mais de 3 autores, indica-se apenas o primeiro seguido de et al Citações destacadas do texto: As citações diretas, com mais de três linhas,

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FEIRA DE SANTANA n. 5 p. 1-225 2004

A COR DAS LETRASREVISTA

SUMÁRIO

A APRENDIZAGEM DE LÍNGUA ESTRANGEIRA NA ESCOLA REGULAR: DESAFIOS E POSSIBILIDADES

Eric Brun, Milenna Brun e Paloma Marques11 - 25

A ORDEM DO CONCRETO N’AS MIL E UMA NOITESMarcelo Peloggio

27 - 39ANÁLISE DE UM DISCURSO POLÍTICO

APRESENTAÇÃO

NORMAS EDITORIAIS

ARTIGOS

RESENHA

PRODUÇÃO LITERÁRIA

ARTIGOS

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(ASPECTOS RETÓRICOS)Suani de Almeida Vasconcelos

41 - 60CAMINHOS DO DESENHO NA BAHIA DO SÉCULO

XVIIIAntônio Wilson Silva de Souza

61 - 74

CONTRIBUIÇÕES DA LINGÜÍSTICA TEXTUAL PARA O ENSINO-APRENDIZAGEM DA LEITURA/ESCRITA

Girlene Lima Portela75 - 90

HErBErto saLEs: o romaNCE E a BUsCa dE si mEsmo

Ângela Vilma S. Bispo Oliveira91 - 110

modErNismo: étiCa x EstétiCaMaria Tereza Carneiro Lemos

111 - 119

o EsBoÇo HistÓriCo-EtNoGrÁFiCo-LiNGÜÍstiCo dE Um PoVo iNdÍGENa

Maria do Socorro Pessoa121 - 135

O PAPEL DOS ADVÉRBIOS FOCALIZADORES NA MANUTENÇãO DA ORDEM LINEAR DOS

CONSTITUINTES DA ORAÇãOEdson Rosa Francisco de Souza

137 - 155

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Luciano Amaral Oliveira157 - 169

PRODUÇãO DE TEXTO NA ESCOLA: UMA PRÁTICA DIALÓGICA

Janete Silva dos Santos171 - 182

qUANDO AS OVELHAS PASTAM NO ORIENTE:ESPAÇOS INTERSEMIÓTICOS ENTRE CAIO

FERNANDO ABREUE O I ChINg: O LIvrO dAS MUTAçõES

Anselmo Peres Alós183 - 199

VARIAÇÕES GRAFEMÁTICAS EM TRÊS TRATADOS ME-DIEVAIS PORTUGUESES

Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz201 - 215

RESENHA

CINEMA BRASILEIRO: DO SERTãO PARA O MUNDO...Cláudio Novaes

217 - 220

PRODUÇãO LITERÁRIA

o HomEm do CamisãoAo município de Ipirá e à lenda do Homem do Camisão.

Cláudio Novaes221 - 225

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A APRENDIZAGEM DE LÍNGUA ESTRANGEIRA NA ESCOLA REGULAR: DESAFIOS E

POSSIBILIDADES

Eric Brun & Milenna Brun*Paloma Marques**

RESUMO: Neste artigo, partindo dos pressupostos de que a aprendizagem de línguas estrangeiras é importante para o desenvolvimento integral do indivíduo e de que o ensino precoce de línguas estrangeiras pode e deve ser realizado na escola regular, apresentamos alguns de seus desafios e possibilidades. O ensino precoce de línguas estrangeiras na escola é justificado numa perspectiva humanista, socioafetiva e neurolingüística e seus objetivos educativos, culturais e lingüísticos são discutidos. Enfim, são propostas alternativas para as dificuldades freqüentemente encontradas na prática dos professores de línguas baseadas em projeto piloto atualmente em desenvolvimento.

PALAVRAS-CHAVE: Ensino de segunda língua, Ensino de línguas, Educação.

RESUMÉ: Dans cet article, croyant que l’apprentissage de langues étrangères est important pour le développement intégral de l’individu et que l’enseignement précoce de langues étrangères peut et doit être fait à l’école, nous présentons quelques uns de ces défis et possibilités. L’enseignement précoce de langues étrangères est justifié dans une perspective humaniste, socioaffective et neurolinguistique et nous y analysons ses objectifs éducatifs, culturels et linguistiques. Enfin, nous proposons des alternatives aux difficultés fréquemment rencontrées dans la pratique des enseignants de langues, basées sur un projet pilote en cours d’implantation.

MOTS CLÉ: Enseignement de langues étrangères, Enseignement de langues, Education.

*Universidade Estadual de Feira de Santana**Universidade Católica do Salvador

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INTRODUÇãO

Qual a melhor escola de inglês para os nossos filhos? Qual a idade adequada para se começar a aprender línguas estrangeiras? Tais inquietações parentais se transformam corriqueiramente em consultas a especialistas no campo do ensino de línguas. Como professores de línguas estrangeiras, recebemos freqüentemente solicitações de informações acerca das possíveis vantagens e desvantagens da aprendizagem de línguas na infância. Neste artigo, buscaremos atender a esta crescente demanda de esclarecimento e apresentar os desafios e possibilidades da aprendizagem precoce de línguas estrangeiras. Partimos dos pressupostos de que (1) a aprendizagem de línguas estrangeiras é importante para o desenvolvimento integral do indivíduo; (2) a aprendizagem precoce de línguas estrangeiras é possível e desejável; e, (3) o ensino de línguas estrangeiras pode e deve ser realizado na escola regular.

Embora ainda não sejam aceitas com grande facilidade, as duas primeiras premissas não seriam tão rejeitadas como a terceira, que é geralmente contemplada com muita descrença por parte de muitos colegas e da maioria dos pais. A incredulidade dos pais não é de todo infundada, porém não é mais cabível que profissionais deste campo permaneçam céticos quanto às possibilidades de tal ensino e, conseqüentemente, desistam de criar alternativas para viabilizá-lo.

Tal ceticismo compartilhado por pais, professores e diretores de escola é profundo e perigoso. Ele está relacionado ao mito de que “língua estrangeira não se aprende na escola e sim no cursinho”. Este mito instituído há décadas, no ensino de línguas estrangeiras, no país, tem sido a peça chave para igualar os contextos público e privado no que diz respeito ao ensino de línguas estrangeiras. De fato, enquanto em outras disciplinas existe uma grande diferença na qualidade do ensino e no conseqüente desempenho dos alunos, nas aulas de língua estrangeira, os resultados das escolas particulares são semelhantes aos das escolas públicas. Ambas têm

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sido incapazes de aceitar o desafio proposto tanto pela nova lei de diretrizes e bases da educação quanto pelo mundo contemporâneo. Retardam assim a necessária desmontagem do perverso fenômeno da paraescolarização do ensino de línguas estrangeiras ao qual estamos tão habituados no país.

Tal desmontagem, contudo, é imprescindível porque, no mundo atual, educar deve corresponder a contribuir para a construção da identidade de cada indivíduo. A escola do futuro, segundo Edgar Morin (2000, p.49):

[...] deveria oferecer um ensino primeiro e universal tratando da condição humana. Estamos na era planetária; uma aventura comum leva os humanos onde que eles estejam. Devem se reconhecer na sua humanidade comum e, no mesmo tempo reconhecer a diversidade tanto individual que cultural.

É isso que está em jogo atualmente: a aprendizagem da tolerância através das diferenças lingüísticas e culturais para aniquilar os preconceitos.

A criança já tem a consciência mais ou menos desenvolvida de que existem outras línguas, outros países e outras etnias no mundo através do rádio, da televisão, da música, das conversas de adultos, do turismo, do cinema, etc. Portanto, falar da diversidade e no mesmo tempo das semelhanças no resto do planeta é uma maneira de entender melhor a sua realidade. O ensino de línguas e culturas estrangeiras prepara a criança à complexidade das comunidades humanas desse planeta e do ser humano aproximando-a das outras comunidades estrangeiras longínquas. Este ensino luta, assim, contra o afastamento geográfico de algumas comunidades escolares trazendo um sentimento de identificação universal. A criança pode entender que: “as assimilações de uma cultura para a outra são enriquecedoras” (MORIN, 2000, p. 61) e assim falar da compreensão universal pode levar a falar de uma compreensão local com as comunidades nativas do Brasil. O ensino precoce de língua estrangeira é o aprender a [...] viver, dividir, comunicar também

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como humanos do planeta Terra. Não apenas ser de uma cultura, mas também ser terrestre (PORCHER E GROUX, 1998, p. 82).

A fim de atingir tais objetivos, a Comunidade Européia incluiu o ensino precoce de línguas como parte das suas novas diretrizes educativas. Infelizmente, no Brasil, embora a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação assegure um lugar de destaque para o ensino de línguas estrangeiras, ela apenas prevê tal ensino a partir da 5ª série. Esta parece ser uma das poucas falhas dos PCNs ocorrida não por razões teóricas, mas por evidentes questões políticas e práticas: isentar o governo de oferecer o ensino de língua estrangeira nos primeiros anos da educação fundamental.

Em muitos países, os sistemas educativos propõem o ensino de línguas a partir dos 7 anos de idade. No Canadá, particularmente no Quebec, o ensino bilíngüe (ministrado em inglês e francês) é muito pesquisado e difundido. Na Europa em geral, o ensino de língua está incluído no currículo do ensino fundamental há muito tempo já que:

[...] os alunos do Luxemburgo aprendem uma primeira língua estrangeira com 6 anos (o alemão) e uma segunda língua estrangeira com 7 anos (o francês). Os alunos irlandeses seguem um currículo bilíngüe (irlandês-inglês) durante a escolaridade toda (PORCHER e GROUX, 1998, p. 29).

A Itália, a Espanha e a Áustria têm projetos pilotos propondo um ensino precoce para crianças de 3 anos. Em 1998, a França definiu a competência oral como objetivo principal para o ensino de língua estrangeira, no ensino fundamental, através de uma abordagem interdisciplinar e conhecimentos transversais.

O ENSINO PRECOCE DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS

O ensino precoce de línguas estrangeiras na escola se justifica numa perspectiva humanista. Ele representa a possibilidade de oferecer às crianças alternativas lingüísticas e culturais na

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abordagem da complexidade do mundo em relação à língua franca que se tornou o inglês. Quando Jean-Claude Beacco (2003, p. 18) analisa a elaboração das políticas lingüísticas na Europa, ele afirma que:

[...] as políticas lingüísticas educacionais devem definir um projeto coerente para valorizar e desenvolver os repertórios plurilingüísticos dos cidadãos.

Defendendo a pluralidade lingüística, ele enfoca mais a dimensão humana do que os aspectos pragmáticos (necessidade e utilização da língua numa visão meramente instrumental) da aprendizagem de línguas estrangeiras.

Ensinar línguas estrangeiras significa oferecer à criança a possibilidade de descobrir um outro modo de tratamento interpessoal, outro modo de se relacionar com os temas universais tais como a morte, a vida, a religião, a liberdade, o poder, as leis, a escola, a família, os jogos, etc.; portanto, tal escolha segue uma lógica educadora e humanista, visto que os objetivos de todo sistema institucional de educação básica são de proporcionar ao mundo futuros cidadãos planetários responsáveis e cívicos.

Em termos neurolingüísticos, a aprendizagem precoce de línguas também é justificada. Claude Hagège (2001) afirma que “os bebês são capazes de perceber uma grande diversidade de sonoridades. Mas têm também um verdadeiro desejo de reprodução”.

O autor continua assegurando que:

Por um outro lado, algumas consoantes (h e r vibrado especialmente) muito utilizadas nas outras línguas, inclusive vizinhas, não existem no francês contemporâneo. Esta estreiteza do espetro acústico e a dificuldade de pronunciar alguns sons justificam a aprendizagem precoce das línguas estrangeiras.

Dominique Groux (2003, p. s24) lembra que várias pesquisas apontam a existência de uma vantagem no plano intelectual ligado

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ao desenvolvimento da competência bilíngüe oriunda de “uma grande flexibilidade cognitiva resultando do hábito de passar de um sistema de símbolos para outro”. Para um cérebro jovem, a aquisição de duas ou três línguas não é mais difícil que a de uma só. Tradução e “ensino” são desnecessários, pois a língua estrangeira é adquirida espontaneamente até os 6 ou 7 anos de idade. Para Claude Hagège (1996, p. 22):

[...] os hábitos articulatórios adquiridos na infância na língua primeira são gestos sociais [...] Por ser limitadas ao aparelho que vai dos lábios à laringe [...] as articulações dos sons que constituem a face fônica das línguas humanas são condutas gestuais.

O autor continua lembrando (ibidem, 1996, p. 25) que:

[...] a criança aprende a falar muito depois que ela aprende a ouvir. E é essa precocidade da audição, tanto quanto a sua riqueza de abertura aos mais variados sons que é preciso explorar na educação bilíngüe.

As oposições sonoras que não existem no ambiente lingüístico oral da criança se tornam cada vez menos sensíveis para o seu ouvido. Essa recessão explica-se provavelmente porque a ausência de estímulo no ambiente induz uma esclerose das sinapses correspondentes.

Daniel Modard apresenta razões que justificam o ensino precoce de línguas: uma exposição mais longa aos conteúdos lingüísticos, plasticidade dos órgãos fonatórios, ausência de inibição e de fenômenos de bloqueio. Modard (2000) defende a idéia de que a aprendizagem, na primeira infância, é facilitada devido a uma melhor percepção dos fonemas antes de 6/7 anos, ao crescimento cerebral, que ocorre até os 6 anos, e ao declínio dos processos de imitação que acontece a partir de 8 anos. E, já em 1988, Titone afirmava que a educação lingüística deveria fazer parte da formação geral da criança, visto que contribuía para uma

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consciência metalingüística capital.Portanto, inúmeras pesquisas comprovam que é possível

ensinar línguas para crianças mesmo antes da alfabetização, pois a aprendizagem de línguas estrangeiras não atrapalha a aprendizagem da língua materna (muito pelo contrário, crianças bilíngües desenvolvem sensivelmente suas habilidades metalingüísticas) e, biologicamente, o espectro auditivo e articulatório na primeira infância ainda é bastante flexível. Mas, onde este ensino deve ocorrer?

O ENSINO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS NA ESCOLA

O texto dos Parâmetros Curriculares Nacionais responde à tal questionamento de forma inequívoca: “o ensino de línguas estrangeiras é função da escola, e é lá que deve ocorrer”. (PCNs, p. 19). Tentemos esclarecer as razões de uma afirmação tão categórica.

O ensino de línguas estrangeiras, na escola, tem três tipos de finalidades: (1) educativas: saber ser; (2) culturais: saber – saber conviver; e (3) lingüísticas: saber fazer.

Os objetivos educativos são indubitavelmente os mais importantes porque estão relacionados com a ética, que deve ser considerada elemento universal, subjacente e definidor das relações intersociais e interpessoais.

As questões éticas se tornaram, nos últimos anos, uma preocupação maior no conjunto da sociedade tanto devido a novos paradigmas e formas de organização quanto à intensificação do contato e conseqüentes conflitos entre os povos. O mundo virtual sem lei propiciado pela Internet, faroeste da modernidade; as descobertas genéticas e possibilidades magníficas ou monstruosas que delas podem surgir; as urgências ecológicas e as dúvidas pertinentes sobre a sociedade da informação nos têm forçado a proceder a uma profunda revisão de valores morais, mas acima de tudo a refletir sobre princípios éticos.

Conseqüentemente, uma educação ética se torna necessária na

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medida em que possibilita uma reflexão sobre valores do mundo e serve de base para uma reflexão pessoal e para a construção de um mundo novo. Hoje talvez seja este o desafio filosófico e prático essencial dos sistemas educativos, particularmente no ensino de línguas. A escola, respondendo a uma demanda do social e também do individual, tenta deste modo recuperar uma função educativa propriamente dita e não apenas de ensino, ou transmissão e construção de conhecimento. No mundo atual, educar deve corresponder a contribuir para a construção da identidade de cada indivíduo, ou seja, para a formação de cidadãos com identidade própria, mas que vivem com outros, diferentes de si.

Especificamente no campo do ensino de línguas e culturas estrangeiras, desde a década de 80 a denominada abordagem comunicativa tem sido privilegiada. Segundo esta abordagem, aprender uma língua estrangeira é antes de tudo aprender a comunicar, ou seja, comunicando em língua estrangeira, o aluno aprende a se servir desta língua. Neste tipo de abordagem, (1) os problemas lingüísticos são teoricamente tratados apenas quando representam um obstáculo à comunicação, e (2) as questões (inter)culturais ganham relevo de caráter sobretudo pragmático. Porém, quando a língua é considerada apenas como possibilidade de gestão do real, e a comunicação que, como encontro da alteridade, deveria ser via de enriquecimento mútuo, é reduzida à construção de um saber e de um saber fazer, o espaço da aula de língua estrangeira promove, inversamente às expectativas, uma evacuação de uma reflexão ética. É exatamente isto que acontece nos cursinhos de língua.

A aprendizagem de língua estrangeira que, na escola, deve ocorrer de forma interdisciplinar com os conteúdos de história, geografia, ciências naturais, artes e educação física, não é apenas um exercício intelectual de aprendizagem de formas e estruturas lingüísticas em um código diferente. Por razões éticas, o ensino de línguas, na escola, se diferencia radicalmente do que é praticado nos cursinhos de línguas porque no espaço da escola regular não podemos compreender a língua apenas como um “instrumento”

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de comunicação, disponível para ser usado, como um martelo ou um computador.

A escola deve compreender a natureza sociointeracional da linguagem, isto é, de que quando usamos linguagem, nós o fazemos de algum lugar determinado social e historicamente. Em outras palavras, os valores dos interlocutores são intrínsecos aos processos de uso da linguagem, e os significados são construídos socialmente.

Por isso, a aprendizagem de línguas deve ser uma experiência de vida que possibilite a ação discursiva no mundo.

Além disso, a sala de aula de língua estrangeira é o lugar por excelência do encontro com a diferença, do movimento em direção à descoberta do outro através da descoberta de si mesmo. É claro que é o lugar até certo ponto incômodo da estrangeiridade, o lugar do estranho, do diferente onde os alunos se deparam, se confrontam com o novo, se apaixonam pelo novo, ou rejeitam o novo... A língua estrangeira e a cultura estrangeira também se caracterizam por serem vetores capazes de conduzir o aluno à prática da construção do binômio identidade/alteridade (descoberta de si mesmo através da descoberta do outro).

Três aspectos que dizem respeito à identidade são particularmente evocados na situação de aprendizagem e ensino de línguas: em primeiro lugar, a necessidade de unidade e de coerência interna que é desestabilizada pelo questionamento dos valores; em seguida, o sentimento de diferença que é essencial para a conscientização da identidade; e, enfim, o sentimento de ruptura com a realidade externa à classe.

A aprendizagem de línguas estrangeiras vai permitir um movimento de encontro em direção ao outro, estrangeiro, mas, sobretudo, ao outro como indivíduo dentro de uma sociedade com a qual ele pode ou não partilhar a mesma forma de agir, de sentir e de pensar. No processo de aprendizagem de línguas, preconceitos e estereótipos podem constituir objetos privilegiados para uma abordagem intercultural permitindo que o aluno os ultrapasse e consiga enxergar seu caráter parcial e caricatural.

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A aprendizagem de línguas estrangeiras deve servir como referência para os alunos pela sua condição de cidadão em formação em um mundo onde ainda existe o fenômeno da guerra. Ao entender o outro, o aluno aprende mais sobre si mesmo e sobre um mundo plural, marcado por valores culturais diferentes e maneiras diversas de organização política e social.

Enquanto os objetivos educacionais explícitos são exclusividade da escola, os objetivos culturais fazem parte também das preocupações dos cursinhos de língua. Contudo, como já explicamos, no contexto extra-escolar, a preocupação é meramente pragmática e não visa necessariamente promover uma apreciação dos costumes e valores de outras culturas, contribuindo para o desenvolvimento de uma competência intercultural.

Ora, no que tange o ensino de línguas estrangeiras, o principal objetivo cultural da escola é exatamente o desenvolvimento dessa competência intercultural, visto que ela representa uma estratégia para gerenciar a heterogeneidade cultural, que tem sido intensificada na maioria das sociedades como conseqüência da globalização, não apenas econômica mais também de valores.

A abordagem intercultural, particularmente originada na problemática da imigração e na necessidade premente de incumbir a educação com o papel de lutar contra atitudes intolerantes, racistas e discriminatórias, se concentra nas estratégias utilizadas por um estrangeiro para gerenciar as discrepâncias entre suas ações e interpretações e aquelas presentes no contexto e/ou na comunidade que está sendo descoberta por ele. Esta abordagem pretende responder ao desafio das nossas sociedades plurais a partir de uma conscientização sobre atitudes e representações sobre si mesmo e sobre o outro, sobre culturas de filiação e de adoção. Por esta razão a educação intercultural somente tem sentido se tiver projeção na estrutura social, integrando-se em discursos que ultrapassam o âmbito educacional, ou seja, exercendo a função essencial da escola: refletir e transformar a sociedade.

Assim, enquanto nos cursinhos os objetivos culturais se restringem ao saber sobre; na escola, eles devem ser ampliados para

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o saber conviver.Enfim, os objetivos lingüísticos são semelhantes em ambos

contextos e talvez sejam mais conhecidos: permitir uma percepção crítica da natureza da língua, desenvolver maior consciência do funcionamento da língua e da cultura materna e desenvolver habilidades comunicativas abrindo acesso às informações.

Diante do exposto, parece fundamentada a inclusão do ensino precoce de línguas estrangeiras na escola devido não somente à importância deste processo de aprendizagem, mas também por ser um vetor de desenvolvimento psicossocial do indivíduo.

Porém, nos resta ainda contemplar o problema central: ainda que estejamos convencidos das vantagens do ensino de línguas na escola, continuamos sem acreditar nas possibilidades reais de tal empreendimento.

O ENSINO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS NA ESCOLA: DESAFIOS E ALTERNATIVAS

Relacionamos abaixo motivos freqüentes proferidos por pais e professores para justificar a inviabilidade do ensino e da aprendizagem de línguas estrangeiras na escola regular:

1. Não há livro didático adotado.2. A carga horária é insuficiente.3. Os professores não são formados adequadamente.4. Só há uma professora de língua estrangeira para todas as turmas.5. Não há sala de língua estrangeira.6. Não existem oportunidades para a prática.7. Os alunos têm níveis diferentes.8. A escola não dá valor (não há reprovação).9. As crianças não dão valor.10. Os pais não aprenderam línguas na escola e não acreditam que tal aprendizagem seja possível.

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Então, considerando que existem relatos de experiências bem sucedidas de ensino de língua estrangeira na escola regular tanto no exterior como no Brasil, e também levando em conta estas dificuldades, propomos alternativas para tais dificuldades1:

Livros didáticos para o ensino de crianças estão disponíveis nas editoras especializadas, inclusive com versões específicas para crianças brasileiras. Como o material é relativamente caro, a adoção de uma série didática pode ser realizada pela escola e não por cada família. Esta prática já acontece, por exemplo, no Curso de Licenciatura em Língua Inglesa da UEFS. Os livros didáticos foram adquiridos pela Biblioteca Universitária e os alunos os utilizam em regime de empréstimo longo durante todo o semestre.

A carga horária de uma hora semanal realmente é insuficiente para a aprendizagem de línguas estrangeiras, que requer uma certa quantidade e freqüência de input. É imprescindível um esforço para aumentar a carga horária de língua estrangeira para pelo menos duas horas semanais. Porém, atendendo as diretrizes curriculares que sugerem o ensino através de temas transversais e interdisciplinares, aulas de outras disciplinas podem ser utilizadas para complementar os conteúdos lingüísticos e culturais. Por exemplo, nas aulas de informática os alunos podem navegar em sites anglofones, exercitar inglês em Cdroms especializados e organizar projetos de inglês.

A formação dos professores é um elemento crucial neste processo. É necessário que a contratação de professores seja realizada a partir de conhecimentos sólidos tanto da língua estrangeira quanto da metodologia de ensino. Muitas escolas continuam contratando professores nativos sem formação específica como professores de língua, e vice-versa, professores licenciados sem a adequada competência lingüística. Contudo, se a formação continuada de professores de língua era dificultada no passado, atualmente algumas universidades já oferecem cursos de pós-graduação na área, a exemplo da UEFS que propôs em 2001 o primeiro Curso de Especialização em Ensino de Língua Inglesa da Bahia. Outras propostas de formação como aquela oferecida pela Cultura Inglesa em convênio com o Governo do Estado, ou ainda

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Projetos de Extensão Universitária (Palle na UEFS; Instituto de Letras na UFBa) são alternativas para a reciclagem de professores. As escolas que realmente se interessam pela formação de seus professores podem se associar e contratar consultores especializados para desenvolver projetos adaptados às suas realidades. Mesmo as escolas públicas podem contar com tais serviços caso busquem o apoio das universidades públicas.

Como geralmente as aulas de língua estrangeira não preenchem a carga horária dos professores contratados, eles devem assumir uma grande quantidade de turmas e ficam responsáveis pela totalidade de alunos de uma série, às vezes de toda uma escola. A contratação de estagiários ou projetos de convênio a longo prazo com Cursos de Licenciatura poderiam aliviar a sobrecarga de trabalho dos professores permitindo-lhes tempo para sua formação e para a elaboração de aulas e atividades.

Habitualmente as escolas não se preocupam em oferecer um espaço específico para o ensino de línguas estrangeiras. Isto acontece até na universidade. A sala de aula de língua estrangeira requer elementos ambientais peculiares: acústica adequada para as atividades de compreensão oral, equipamento de som permanente, cadeiras que possam ser facilmente deslocadas para atividades em grupos e pares, entre outros. É comum visitarmos escolas com elaborados laboratórios de informática, modernas quadras de esporte, sala de artes plásticas arrojadas, porém sem sala específica para o ensino de línguas. Nestes casos, as razões para a inadequação não estão relacionadas à aspectos financeiros.

A criação de oportunidades de prática lingüística extra-classe é uma tarefa simples. Muitas escolas já demonstraram soluções alternativas para aumentar o input: músicas e leitura de estórias nos intervalos, círculo de desenhos animados no recreio, etc.

Os alunos estão nivelados na educação infantil. O desnivelamento só começa porque muitas escolas não oferecem o ensino de línguas estrangeiras, contribuindo para a paraescolarização das crianças que são matriculadas pelos pais em cursinhos de idiomas. Rapidamente, nos 3º ou 4º anos, as turmas já apresentam

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níveis variados dificultando o ensino. A solução é tão óbvia quanto simples: adoção do ensino precoce de línguas enquanto todas as crianças são iniciantes. Nesse contexto, as transferências serão casos de exceção.

O valor da aprendizagem só será incorporado pelos alunos, caso o seja também pelos adultos. É importante que as crenças de pais e professores sejam revisitadas. Isto porque a teoria afirma que é desejável. A prática mostra que, com criatividade, é possível. A nossa experiência pessoal nos lembra outra coisa... Mas será que realmente ainda acreditamos que tudo o que aconteceu conosco na escola vai ter que se repetir com as novas gerações? Esperamos sinceramente ter contribuído se não para modificar, ao menos para abalar a crença daqueles que ainda pregam a inviabilidade do ensino precoce de línguas estrangeiras na escola regular.

NOTAS

1Atualmente um projeto piloto de ensino de inglês nestes moldes com turmas de 1º e 2º anos do ensino fundamental está sendo implantado e testado em uma escola particular de grande porte em Salvador. E um outro projeto piloto de ensino de francês e espanhol com crianças a partir de 2 anos de idade está sendo organizado na Creche e no Centro da escola básica da UEFS.

REFERÊNCIAS

BEACCO J-C. Elaborer des politiques linguistiques éducatives en Europe, Le Français dans le Monde, 2003, pp.330, 18-20.

BRASIL. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Parâmetros curriculares nacionais terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua estrangeira. Brasília, DF, 1998.

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GROUX D. Le meilleur âge pour apprendre. Le Français dans le Monde, 2003, pp.330, 23-25.

HAGEGE C. L’enfant aux deux langues. Paris: Editions Odile Jacob, 1996.

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A ORDEM DO CONCRETO N’AS MIL E UMA NOITES

Marcelo Peloggio*

RESUMO: Partindo do caráter relativo da noção de “realidade concreta”, o presente ensaio busca mostrar que, sob as imagens fantásticas dos contos d’As mil e uma noites, revela-se uma descrição notadamente objetiva das relações humanas, o que lhe torna o sistema de idéias universal.

PALAVRAS-CHAVE: Teoria da arte, Real/irreal, Literatura.

ABSTRACT: Based on the relative concern in relation to the idea of a “concrete reality”, the recent study aims at illustrating that, relying on the focus on the fantastic images of The thousand-and-one nights’ short stories, a notably objective description of the human relationships is revealed. This revelation makes the system of ideas in these short stories universal.

KEY WORDS: Theory of art, Real/unreal, Literature.

*Universidade Federal FluminenseDiz-se freqüentemente que a arte tem por empresa a “execução

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prática de uma idéia”. Nada mais perigoso, se for o caso de se considerar o fenômeno artístico tomado em si mesmo. Diante do objeto estético, em toda a sua extensão e espessura, é costume, em geral, o elogio à capacidade técnica e criativa do artista. E, sob tal ângulo, sua sensibilidade e liberdade mais parecem traduzir um não sei quê de meta – ainda que por meio delas as notas mais expressivas da alma recebam luz própria. É como se o artista buscasse em algum sítio, longe da vida, os dados com os quais elabora sua representação do mundo, o qual aparentemente lhe diz respeito. Ora, assim falando, dirigimo-nos mais precisamente ao idealismo.

Mas é preciso considerar, independente dessa fonte misteriosa, na qual seu mundo interior por uma razão qualquer se radica, que o artista não haverá de exprimir senão preceitos e valores que são nossos, ou melhor: que nos seriam a princípio inteligíveis, ainda que por força das circunstâncias sociais e históricas nos pareçam inauditos, impossíveis de se classificar.

O que queremos mostrar é justamente o contrário. Ao plano geral de uma obra não corresponderia nenhum princípio ou ensinamento estranhos a seu público, e que, por isso mesmo, a leva em conta como informação estética. Se nos parecem estranhos ou difíceis de se imaginar como algo inscrito no mundo empírico, é porque é do ser mesmo da arte oferecer, em maior ou menor grau, “uma visão e uma descrição fabulosa da realidade”, substituindo-se, por conseguinte, “a vida real por uma utopia” (HAUSER, 1982 II, p. 829).

Muitos diriam que o motivo desta concepção reside no fato de a arte não possuir um fim prático; que ela não manteria com o ambiente à sua volta a menor correspondência, de vez que as representações artísticas o transporia – posto que em alguns casos ofereçam dele uma descrição mais direta, tal como se deu, por exemplo, com a abordagem naturalista, cientificamente orientada, do Quattrocento, ou com o realismo de um Courbet, na segunda metade do século XIX, em um desejo sincero de se mostrar o real na maneira como este se nos apresenta, isto é, no plano agudo de suas contradições. Mas, em verdade, não lhe cura de ser a vivência

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propriamente dita senão um “naco”, um “fragmento”, ou ainda, se se preferir, uma “ontologia regional”.

De todo modo, a concepção de um lugar próprio às manifestações estéticas ganhará destaque. Ainda que fosse um instrumento teórico para o conhecimento sistemático e racional da realidade objetiva (da “natureza”), como aconteceu no século XV, a arte, num sentido mais amplo e geral, parece localizar-se mesmo num tipo de

esfera isolada do resto do mundo, na qual é possível organizar uma vida intelectual e entregar-se a prazeres intelectuais de uma espécie inteiramente particular. Quando alguém se move neste mundo da arte, separa-se tanto do mundo transcendente da fé como do mundo das realidades práticas (ibid. I, p. 438).

O terreno artístico, em outras palavras, estaria situado à parte, destinado a um público e classe social específicos, quer dizer, servindo ao gosto e interesse dos grupos dominantes. Aliás, este é o conceito defendido por um estudioso contemporâneo, Kurz (1999), para quem a arte, nos dias de hoje, por conta de fatores econômicos e culturais, ver-se-ia desligada de todos os departamentos da vida social: aquela não compreenderia outra coisa senão “l’art pour l’art”, ou a idéia, tal e qual a defendida na Renascença, “de que as formas culturais são independentes das leis externas” (HAUSER, 1982 I, p. 435). Com efeito, o novo predicativo que se lhe atribui constitui problema dos mais graves à sombra da autonomização capitalista. O surgimento de concepções “bizarras” e sobretudo “banais” reflete, pois, a fratura operada no seu ser próprio, naquilo que pode e deve articular: “uma reflexão estética da sociedade e da relação humana com o mundo” (KURZ, 1999). Na condição de fetiche, portanto, torna-se incapaz de fazer deitar sobre o real os elementos de uma ou outra ideologia (o que, do contrário, designaria algo vital, dado o dinamismo que representa ante as visões mais “fechadas” acerca do mundo e da vida).

Vistos assim, em todo o seu conjunto, os fatos estéticos

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devem ocupar lugar novo à conta da teoria que invoca os elementos centrais de sua produção, baseando-se no papel social que desempenham. Ora, num tal ponto de vista, a arte não se afastaria de sua função estética, quer dizer, do modo como atua sobre as faculdades do espírito e a sensibilidade do homem mediante suas formas de expressão; mas é que ela é também um “produto social”, e que portanto o fazer artístico, ao invés de ser considerado isoladamente – como que nos recessos de uma “jaula de vidro” –, exprime as mais variadas demandas coletivas, antes e depois de sua realização. Assim, é igualmente tarefa do crítico não se distanciar das referências sociais e históricas que, de algum modo, todo universo estético encarnará.

Desde já, contudo, é indispensável localizar outro problema muito comum na arte em geral, assim como em todas as atividades que, geração após geração, assistem o homem de gênio no conhecimento reto do mundo. Não se tratando, como foi visto a pouco, de uma concepção idealista, mas da expressão de certa “mentalidade”, entrando aí elementos do próprio sistema social, a representação estética parece encarar a vida com mais justeza: ela é, segundo esse enfoque, real. Em contrapartida, à imagem artística que, neste mundo e num só movimento, nada da experiência corrente venha cobrir, desfalcando a razão para o entendimento acerca das coisas, chamamos muito naturalmente de irreal.

É daí que procede todo juízo de valor com relação à obra de arte em suas formas de expressão. No terreno próprio da dualidade real-irreal, aquilo que o artista revela pode ser avaliado ou bem como fantasioso, absurdo, ou bem como objetivo, “verossímil”. Ou a obra guarda proporções que se ajustam mais facilmente ao real (quer dizer, exibiria certo ar inteligível), ou, do contrário, escapa à convenção e seu material é reputado incoerente, fora dos padrões. Por isso que, no diálogo com a arte, não é possível considerar apenas seus iniciados e o movimento mais amplo da crítica, mas de igual modo o público leigo, pouco ou nada habituado às ferramentas da criação estética (técnicas, idéias, prescrições). Assim, alistada nos círculos da realidade ou do imponderável, a arte sofre

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de um julgamento que prolonga, antes e depois, certa dimensão ideológica; para aquela afluem valores que só podemos explicar em função de um contexto histórico determinado. Ora, o resultado de tudo isso é que situamos a obra dentro de condições próprias de lugar e tempo.

De início, quando lemos os contos d’As mil e uma noites, somos tomados por um sentimento de estranheza em relação à série de imagens evocadas. É justamente aí que ocupará lugar central uma maneira toda própria à exteriorização de nossa “visão de mundo”. É porque o fazer artístico atua como fator preponderante para desencadear sentimentos vivos: seu produto final agrada ou desagrada, podendo exercer sobre nós uma influência diretora importantíssima. A obra, no todo ou em parte, é sempre o modo de ser de um valor histórico – socialmente traduzível quando incorporado ao plano geral de uma estrutura de pensamento previamente fixada.

Nas histórias d’As mil e uma noites, podemos, aqui e ali, e de modo claro, apurar um sem-número de episódios que em nada obstam nossa compreensão do mundo. Tal recolta deve-se, fundamentalmente, à constância dos seus elementos temáticos: inveja, ciúme, vingança, cobiça, bravura, prudência, ou seja, uma série de noções que o leitor ocidental reconhecerá como sendo sua. Em alguns casos, como em dado momento da “História do cavalo encantado”, o efeito de realidade atinge um nível de coerência tão profundo, “elementar”, que chega a nos dar a impressão de que as circunstâncias nas quais se verifica constituem, em sentido próprio, cópia fiel do cotidiano, e com tanta mais expressão de concretude no comezinho das imagens. É o que mostra a passagem em que o príncipe Firuz desperta para seu primeiro dia, como hóspede ilustre, no palácio da princesa de Bengala:

O príncipe da Pérsia, que ganhara de dia o que perdera de noite, e que se recompusera perfeitamente da sua penosa viagem, acabava de se vestir quando recebeu os bons-dias da princesa de Bengala por uma das suas aias (As mil e uma noites, s/d, p. 61).

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Ou ainda o sortimento do grande mercado, que a “História do príncipe Amed e da fada Pari-Banu” nos descreve:

Depois de uma caminhada de cerca de quatro meses, chegou finalmente a Xiraz, que era então a capital do reino da Pérsia. Como estabelecera amizade e sociedade pelo caminho com um pequeno número de mercadores (...), hospedou-se com eles no mesmo khan.No dia seguinte, enquanto os mercadores abriam os seus fardos de mercadorias, o príncipe Ali (...), depois de mudar de traje, fez-se conduzir ao bairro onde se vendiam as pedrarias, as obras de ouro e prata, os brocados, os tecidos de seda, os panos finos e as outras mercadorias mais raras e preciosas (ibid., p. 88).

Essas descrições têm destaque, sobremaneira, por conta do seu realismo demasiado simples. A tal ponto que podemos divisá-las como sendo para nós as mais “próximas”; e mais exatamente isso, já que coloca diante do leitor do Ocidente, por extensão, um panorama da vida social na Idade Média. Falamos do exato instante em que o renascimento urbano aí se impõe; quer dizer, da ameaça que as comunas fortificadas experimentam em face do faubourg, que não respeita seus limites, mostrando toda a vitalidade do comércio itinerante, e que é condição básica para se estabelecer, com exceção na cronologia, um paralelo entre o Ocidente e o Oriente. Finalmente exibem, tal como o fizeram nossos romances de cavalaria, as intimidades da realeza, as quais povoaram o medievo europeu a partir das noções de luxo e volúpia, estendendo-se até nossos dias. De tal sorte que, para o Oriente, essas narrativas formam toda uma documentação: os contos d’As mil e uma noites dissertam “sobre as ruas nas grandes cidades árabes, sobre os costumes dos mercadores, sobre a vida social, sobre a religião muçulmana” (ibid., p. 12, nota introdutória). E isso com um senso de objetivação admirável.

Essa nossa posição, contudo, é arbitrária. Porque o leitor, as

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mais das vezes, não atentará para associações dessa natureza. Em geral, por causa de uma postura etnocêntrica, refuta as idéias de outro tempo e lugar, como se estas não lhe dissessem respeito; vê-se tomado comumente pela admiração, quando sua imaginação as sobrevoa baixo, e pelo arrebatamento, em razão de não encarar como fictícias as “evocações brilhantes”, levando todas a sério. Com efeito, para o universo do leitor, afetado pelo excêntrico de algumas concepções – poligamia, haréns, eunucos –, as imagens d’As mil e uma noites acabaram por adquirir um sentido negativo dentro de um valor profundamente real, chegando a fazer “crer à Europa enganada que existia [no Oriente] uma região de felicidade sem limites” (ibid., p. 13, nota introdutória).

Mas é preciso perguntar, no que concerne à dicotomia real-irreal, o que, na esfera essencial da produção do discurso, é e não é “fictício”. Ou melhor: por que, em alguns casos, compreendemos a ficção pelo ângulo da realidade e, no caminho oposto, colocamos aquela no lugar desta? Ora, tudo isso dependerá de uma série de fatores; sobretudo se o discurso convence, a ponto de influir, enfaticamente, em nosso modo de ser.

Diz Luis Filipe Ribeiro (1999, p. 125-126) que o autor “consubstancia (...) visões de mundo que pertencem à sua sociedade e ao seu tempo”. De forma idêntica, o leitor apóia-se em “parâmetros adquiridos na aprendizagem em sociedade” (ibid., p. 126): faz correr pela obra uma série de valores que tocam as condições gerais de determinado tempo e lugar; em relação à obra propriamente dita, estes se lhe incorporam ao núcleo mais íntimo através da concepção de mundo do autor, a qual se integra ou não ao sistema simbólico de onde parte. Daí a importância das histórias d’As mil e uma noites, do modo como foram, a pouco e pouco, socialmente estruturadas: representam elas, em verdade, o produto da colaboração de inúmeros artistas (iranianos, árabes, egípcios), manifestando os preceitos desta, dessa ou daquela formação social. Pois que, de agora em diante, tais narrativas constituem, por um lado, um documento vivo, já que agrupam a história de vários povos, e, por outro, a coroação de um estilo literário: o realismo

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fantástico.Por conta deste último ponto, a oposição real-imaginário,

mantendo intacto seu fundamento, nem tenderá à ficção nem a descrições áridas da vida humana e natural. De modo que se eleva até a esfera do discurso, cuja matéria é ao mesmo tempo realista e imaginosa, tendo em vista o ser precário da linguagem em face do que é dinâmico na cultura. Porque

quando a cultura muda, as concepções dominantes em uma dada cultura mudam igualmente. Surgem então necessariamente novos pontos de vista que servem para a apreensão, a apreciação e a coordenação dos dados (DEWEY, apud Schaff, 1995, p. 271).

Em Lalo (1964), por exemplo, a dimensão social desempenha, em toda a espessura da obra, papel fundamental – mesmo que se valha da explicação econômica para os fenômenos de estética (o que é bastante sugestivo, dado o mundo de mercadores d’As mil e uma noites). De qualquer forma, vincula a produção artística (“discursiva”) a grupos dirigentes da sociedade:

Foi um público burguês de comerciantes e de proprietários de terras que pediu aos pintores holandeses do século XVII seus retratos de família ou de corporações, suas cenas de gênero popular, suas marinhas ou suas paisagens sóbrias (...) Na literatura, esta influência das condições econômicas gerais é ainda mais nítida. Quando a agricultura está na ordem do dia e passa por uma espécie de renascimento, pelo menos nas altas classes, o gênero pastoral multiplica-se imediatamente (apud Cuvillier, 1964, IV, p. 1983).

Por fim, é chegado o momento de se decidir pelo lado fulgurante da moeda, em que a ficção designará também uma “forma de discurso”. A seu abrigo, fazemos circular idéias cujas imagens (por causa do significado social que trazem) lançam-se a iluminar toda realidade humana. É nosso objetivo, portanto,

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mostrar de que maneira o “irreal” – o elemento fantástico d’As mil e uma noites –, liga-se, direta e principalmente, à ordem concreta do mundo.

No mais das vezes, somos arrastados por uma inclinação quase invencível de atribuir às obras de ficção um valor que é somente estético. Muitos olvidam o lado prático que de algum modo elas esclarecem, posto que de forma aberta. Mas talvez seja de pouco efeito uma tomada de posição ao contrário. Isso se explica, primeiro, em função de certo positivismo da crítica, preocupada só com o aspecto formal das obras, com bem pouco a dizer sobre os fatores que lhes norteiam a produção (a não ser que mostrem a influência direta da moda vigente, ou mesmo das desaparecidas, que refletiriam as solicitações de outro tempo social); em segundo lugar, devido ao preconceito de se lhes indicar a ideologia do artista, e por isso mesmo a deixando de fora nos estudos de arte. Seja como for, a experiência estética assinala, conforme foi visto em dada altura, o resultado concreto de determinações próprias, exprimindo certa concepção da realidade material por meio de uma “técnica socialmente organizada e consentida” (ibid., p. 1983).

Quanto a esse “lado prático”, ninguém melhor do que Walter Benjamim (1994) para descrevê-lo em um de seus traços fundamentais. À noção de praticidade corresponderia, de maneira positiva, a pedra de toque da grande narrativa épica. Esta se situa, pois, no campo do “discurso vivo”, em virtude de seu aspecto utilitário; em outras palavras, ela teria por função “dar conselhos”. E essa prática do aconselhamento se traduz na qualidade de um “ensinamento moral”, de um “provérbio”, ou ainda de uma “norma de vida”, até porque “o narrador é um homem que sabe dar conselhos” (ibid., p. 200).

Mas do que isso, conclui-se que a narrativa não refletirá, mesmo no seio do elemento fantástico, o costume freqüente de explicar aquilo que se conta. Ora, “metade da arte narrativa está em evitar explicações” (ibid., p. 203). Todas essas aventuras, repletas de feitos portentosos de compleição lendária única e abrangente; ou ainda que seja a história primordial da comunidade aldeã, montada

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sobre o vínculo estreito entre o dado efêmero e a plenitude do mito, conferem a seus leitores e ouvintes grande liberdade de interpretação. De tal modo que atingem uma amplitude notável, fundamental para a manutenção secular da narrativa.

Os contos d’As mil e uma noites nos dão uma demonstração clara de como o senso prático é capaz de sublinhar, no curso dos fatos, algumas noções de fundo moral, e que esclarecem, tanto quanto possível, os meandros da vida de relação.

Tomemos, como exemplo, a “História de Ali Cogia, negociante de Bagdá”. Em um sonho (na verdade são três), um “velho venerável, de olhar severo”, censura Ali pelo fato deste nunca ter peregrinado a Meca – o que, evidentemente, o leva a se decidir pela viagem. Como primeira medida, resolve por vender todos os seus pertences, salvo algumas mercadorias que, na cidade santa, podem ser negociadas a varejo. Uma vez tudo pronto, ocupa-se de pôr em acerto um último detalhe: guardar em segurança a quantia de mil moedas de ouro. Resolve o problema depositando-as no fundo de um pote, que preenche com azeitonas. Antes de partir, deixa-o sob os cuidados de um “negociante seu amigo” até o dia da volta. Este, é claro, desconhece o conteúdo valiosíssimo que tem em mãos.

Daí a tempos – sete anos depois –, Ali Cogia regressa (porque, de Meca, segue curso livre, sempre motivado por mercadores, que lhe anunciam as chances de lucro fácil com a venda de alguns itens; e tudo isso mediante essa estrutura econômica simples, baseada apenas na compra e venda de mercadorias). Para sua maior surpresa, o pote lhe é restituído sem as moedas – o que leva a coisa toda para o campo da dúvida, depois da desconfiança, da desavença, e, por último, da lei.

Na presença do cádi – espécie de juiz de Direito –, ambos os negociantes se revezam com os argumentos de acusação e defesa. O cádi, sem aprofundar os detalhes, dá por encerrada a controvérsia: o negociante desonesto, jurando inocência, é absolvido; isso deixa Ali furioso.

A saída é levar o caso, sob a forma de petição, ao conhecimento

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do califa Harun-al-Raschid, que a lê, marcando dia e hora da audiência.

À semelhança daquilo que Todorov (1970) chamaria “movimento entre dois equilíbrios”, a história como que dá uma espécie de guinada.

Assim, o califa, como de costume, corre pela cidade à noite, sob disfarce, acompanhado do grão-vizir e do chefe dos eunucos. Em dado momento, ouve um grande número de vozes, e, dirigindo-se até elas, presencia um grupo de meninos, que encena um julgamento. Na verdade, trata-se de uma representação lúdica mas lúcida da audiência conduzida pelo cádi. Isso mostra que a história, sem mais, já pertence ao domínio público.

Na espreita, observa tudo com muita atenção, tomando ciência de que, no pote de Ali Cogia, recuperado após sete anos, os frutos ainda se acham em perfeito estado. O que prova um absurdo, já que “não valem nada ao fim do terceiro ano”, mostrando que, desta forma, o lacre sofreu violação.

Poderíamos mesmo, com efeito, sugerir uma “sentença moral”; ou quem sabe extrair dessas histórias, de cada situação descrita, um pouco daquilo que corre a eito em cada um de nós; aquilo que pode habitar, sem qualquer reserva, o âmago do nosso ser: medo e cupidez, ódio e ressentimento. Todas essas forças diretoras são, antes do mais, “concretas”, sendo que muitas vezes as plasmamos em ações depreendidas no curso geral do devir.

A história, em sua forma mais sensível, aponta para alguns valores ou elementos de objetivação: a fé operante de Ali Cogia (“bom muçulmano”); o cinismo do mercador desonesto, encontrando a morte na forca; a displicência no senso burocrático do cádi, que vai no contrário das suas atribuições; e, por fim, a inteligência e sensatez de um dos meninos atores (aquele que, fingindo ser o cádi, leva até seu termo a audiência de faz de conta).

Daí se concluir que essa história nada traz de fantástico e que por isso mesmo nos é mais “familiar”. Até porque, diante de lunetas e tapetes mágicos, cavalos voadores, reinos subterrâneos, monstros

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e gênios, o leitor é capaz de não fazer a ligação necessária entre o que toma à sua volta como habitual e as imagens fantasiosas que o “desorientam”. Vistos por este ângulo, todos esses contos não passariam senão de certa coisa pueril. Mas o que se dá de fato é algo bem diferente, uma vez que

o confronto com as dimensões históricas de outras sociedades e de outros tempos servirá para esclarecer e definir, ainda mais, [nossa] inserção na trajetória [da] sociedade, em primeiro lugar, e da humanidade como um todo, em última instância (RIBEIRO, 1999, p. 128).

Isso significa dizer que, sob esse aspecto, as imagens d’As mil e uma noites figuram, igualmente, como o produto de uma realidade social e histórica considerada em todo o seu conjunto: já não importa o texto (um dado gráfico), mas as “relações discursivas” que elas firmam entre o passado e o presente. Em sentido profundo, efetuam um diálogo todo próprio entre quem lê (dentro de uma noção) e quem é lido (o autor, considerando os fatores sociais que influíram direta e indiretamente sobre seu modo de ser, bem como a grande chama de liberdade a qual lhe certifica originalidade, argumentação crítica e sutileza, e o que refuta, de todo, a tese idealista).

Isso nos dá a ver que, mesmo no interior do elemento fantástico, os contos d’As mil e uma noites se apresentam, de pleno direito, como “discurso vivo”. Isso nos dá a ver, por tudo o que envolve, que seu enunciado pode ser entendido como a “expressão material de uma passagem”, já que “por ele trafegarão as versões

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de mundo, as indagações, as perplexidades dos atores” (ibid., p. 139). Por conseguinte, surge como um “campo onde os valores se organizam para dar inteligibilidade ao mundo” (ibid., p. 139).

Assim sendo, cai por terra, efetivamente, a dualidade real-imaginário. Como mesmo diz Todorov (1970, p. 165), “o objeto literário é ao mesmo tempo real e irreal; por isso, contesta o próprio conceito de real”. E porque expressa justamente uma realidade em devir, é que pode se mostrar cada vez mais rico no seio de suas imagens, povoando a mente dos homens, descrevendo o mundo como aquilo que efetivamente é: um todo complexo e contraditório, reflexo do que é concreto na experiência enriquecedora da humanidade.

REFERÊNCIAS

AUTOR DESCONHECIDO. As mil e uma noites. Tradução: Maria Eugênia de C. de Sá. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d., v. 6.

BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Magia e técnica, arte e religião. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, v. 1, 1994, p. 197-221.

CUVILLIER, Armand. Estética. In: Enciclopédia Delta Larousse. Tradução: Alberto Castiel. 2. ed. Rio de janeiro: Editora Delta, v. 4, 1964, p. 1982-1984.

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ANÁLISE DE UM DISCURSO POLÍTICO(ASPECTOS RETÓRICOS)

Suani de Almeida Vasconcelos*

RESUMO: O presente trabalho possui por objetivo analisar alguns aspectos retóricos do discurso político “Exército: nem guarda pretoriana nem tropas da SS”, de autoria do então Deputado Federal Francisco José Pinto dos Santos (Chico Pinto), proferido em 08 de agosto de 1972. A fim de atingir esse objetivo, tomou-se, como aporte teórico, a Nova Retórica, principalmente os trabalhos desenvolvidos por Chaïm Perelman ou baseados neles. São analisados alguns processos argumentativos utilizados pelo Deputado em seu discurso, considerando as relações entre orador e auditório e a cena enunciativa.

PALAVRAS-CHAVE: Argumentação, Ethos, Retórica.

ABSTRACT: The present work aims at analyzing some rhetorical aspects of the political speech “Army: neither Praetorian Guard nor SS troops”, by the then Congressman Francisco José Pinto dos Santos (Chico Pinto), delivered on August 8, 1972. In order to reach that aim, this paper has adopted the New Rhetoric, as its theoretical framework, mainly the works developed by Chaïm Perelman or the works based on his works. Some argumentative processes used by the Congressman in his speech are analyzed, by taking into account the relationships between speaker and audience and the utterance scene.

KEY WORDS: Argumentation, Ethos, Rhetoric.

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*Mestranda em Lingüística Aplicada - UFBAMembro do Grupo de Edção de Textos - UEFS1 INTRODUÇãO

O presente trabalho insere-se na pesquisa de mestrado em desenvolvimento junto ao Programa da PPGLL da Universidade Federal da Bahia na área de Lingüística Aplicada, iniciado em 2003. Essa pesquisa tem por objetivo estudar alguns processos argumentativos utilizados pelo, então, Deputado Federal Francisco José Pinto dos Santos (Chico Pinto) em alguns dos seus discursos, proferidos entre 1972 e 1974, na Câmara dos Deputados (Câmara Legislativa Federal), possuindo como aporte teórico a Nova Retórica.

O discurso “Exército: nem guarda pretoriana nem tropas da SS” de 08 de agosto de 1972 faz parte de uma coletânea de outros discursos produzidos pelo ex-deputado Francisco Pinto, os quais se constituem num conjunto de produções que refletem a sua resistência política às opressões da Ditadura Militar, denunciando e revelando as ações da censura e do estado totalitário durante o período do governo dos Generais Emílio Garrastazu Médici e Ernesto Geisel, entre os anos de 1971 a 1974.

2 CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO

Década de 60. O Brasil vivenciava um dos períodos mais difíceis e intransigentes da política brasileira: o golpe militar no ano de 1964, quando da deposição do, então, presidente João Belchior Marques Goulart, - Jango - e a tomada do poder pelas Forças Armadas.

Esse momento foi marcado por forte repressão às instituições democráticas como, por exemplo, a imprensa e aos veículos de comunicação, culminando com a extinção dos vários partidos políticos (criação do bipartidarismo: ARENA – Aliança Renovadora Nacional – e o MDB – Movimento Democrático Brasileiro), cassação de mandatos dentre outras medidas intervencionistas à vida política do país. Destarte, o golpe militar representou o

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esfacelamento da representatividade popular, uma vez que proibiu os movimentos sociais organizados, a exemplo de sindicatos e associações, os quais defendiam reformas de ordem política e institucionais, empreendidas pelo governo Jango. Conforme afirma HABERT (1994, p. 09), “o golpe militar foi uma reação das classes dominantes ao crescimento dos movimentos sociais mesmo tendo estes um caráter predominantemente nacional-reformista”.

A criação dos Atos Institucionais, iniciados no governo do General Castelo Branco (1964-1967), foi outra medida repressiva de caráter intervencionista nas várias instâncias políticas e sociais, visando a manutenção da ordem através de perseguições, torturas e mortes daqueles considerados comunistas, terroristas e desordeiros pelo Serviço Nacional de Informação - SNI. Os Atos Institucionais foram implementados durante os anos subseqüentes ao golpe militar, tendo como objetivo a implantação concreta e sólida do regime ditatorial.

O AI 5 do governo Costa e Silva (1967-1969) configurou-se no mais repressivo instrumento de silenciamento dos vários segmentos da sociedade organizada, haja vista que o ano de 68 foi período no qual aconteceram os maiores protestos conta os abusos da ditadura, destacando-se os movimentos estudantis e operários. O AI5 deu poderes ilimitados ao chefe de Estado, outorgando-lhe decisões válidas e legítimas sem possibilidade de contestação que

permitiu-lhe fechar o congresso por tempo indeterminado, continuar a cassar mandatos, suspender por dez anos os direitos políticos de qualquer cidadão, demitir ou aposentar qualquer funcionário público civil ou militar, estender a censura prévia à imprensa e aos meio de comunicação (HABERT, 1994, p. 10).

Nesse contexto nacional, particularmente na Bahia, destaca-se o político Francisco José Pinto dos Santos que foi eleito como chefe do executivo na cidade de Feira de Santana, pelo partido oposicionista – PSD, com o seguinte slongan “Chico Pinto na Prefeitura é o povo governando”, “numa campanha violenta e

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entusiasmada”, segundo palavras do próprio político em entrevista cedida, para o presente trabalho, em 07 de abril de 2003. Tomou posse em abril de 1963 e foi deposto pela ditadura em maio do ano seguinte, exatamente por contestar os “impositivos” e “desmandos” advindos do regime militar, denunciando torturas e mortes de companheiros políticos, bem como criticando o regime de força daquele momento da vida política brasileira. A partir de sua deposição, foi preso e torturado, começando, assim, uma série de prisões e torturas que sofreria durante sua vida política e se estenderia até o seu mandato de deputado federal pelo MDB, já na década de 70.

Os governos dos generais presidentes Emílio Garrastazu Médici (outubro/69 a março/74) e Ernesto Geisel (março/74 a março/78) deram continuidade ao processo iniciado com o golpe militar de 64, destacando, nesse período, o aumento da repressão política, do direito e da liberdade individual e de expressão, a exemplo da criação, pelos generais Médici e Orlando Geisel, irmão de Ernesto Geisel, do DOI (Destacamento de Operações de Informações) que, segundo GASPARI (2002, p. 174), “por mais de dez anos essas três letras foram símbolo da truculência, criminalidade e anarquia do regime militar”.

Em março de 1970, Francisco Pinto toma posse como Deputado Federal pelo MDB, iniciando, assim, mais um período de fortes contestações frente aos presidentes generais e aos delitos cometidos em nome da preservação da integridade nacional. Nos quatro anos de mandato (1970/1974), denuncia abusos e autoridade por parte do governo instituído, através dos seus discursos proferidos nas sessões da Câmara dos Deputados, como, nos seguintes discursos, “Censura: A imagem do Medo”, de 1973 e “Pinochet: o infame”, de 1974, o qual lhe rendeu a cassação dos seus direitos políticos pelo Supremo Tribunal Federal, bem como uma prisão por agravo a uma autoridade internacional - Presidente do Chile - que estava no Brasil, naquela época, em visita. Em cárcere, no 1º Batalhão da Polícia Militar do Distrito Federal, Chico Pinto, sabendo que receberia o indulto de natal do Presidente Ernesto

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Geisel, escreve-lhe um documento de repúdio ao indulto, alegando que tal medida seria cabível a um criminoso, e não para ele que não se enquadrava com tal.

Após sua liberação em abril de 1975, quatro meses a mais do prazo previsto de encarceramento, Francisco Pinto ingressa no Jornal O Movimento (SP/DF), em maio do mesmo ano, a convite do amigo Raimundo Pereira que participava do Jornal Opinião (RJ) para, assim, continuar seu trabalho de contestação às ações da ditadura militar. No ano seguinte, ingressa no grupo dos “autênticos” junto com outros militantes políticos do MDB.

Volta ao cenário político em 1978, quando elege-se a deputado federal (1978/1982) e, em 1985, participa, ao lado de Ulisses Guimarães, do movimento pela “Diretas Já”. Cumpre outro mandato de deputado federal no período de 1986 a 1990, ainda pelo MDB, quando se afasta por definitivo da militância política-partidária.

Hoje, reside em Brasília (DF), mas permanece vindo à sua terra natal, Feira de Santana, que, mesmo passado tanto tempo, ainda continua a ser lembrado como um símbolo do político forte e resistente, num período trevoso da vida brasileira, contra os desmandos da ditadura, até mesmo pelos seus opositores políticos.

3 A RETÓRICA E A ARGUMENTAÇãO

Em seu sentido geral, a palavra retórica indica “a arte da utilização da linguagem para persuadir ou influenciar os outros” (BLACKURN,1997, p. 344). Outros autores consideram a retórica como arte de convencimento, definição que remonta à Antigüidade Clássica, tendo os Sofistas como seus representantes mais célebres. Posteriormente, Aristóteles lhe confere o caráter de ‘ciência’, dedicando-lhe um dos seus livros, intitulado Arte Retórica, estabelecendo seus princípios gerais e as suas divisões básicas quanto aos tipos de discursos retóricos. Sob essa perspectiva aristotélica, a retórica objetiva “descobrir os meios que, relativamente a qualquer

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argumento, podem levar a persuasão de um determinado auditório” (SERRA, 1995, p. 5).

Passado o período de esplendor da cultura greco-romana, a retórica vai, durante os séculos subseqüentes, perdendo seu poder de influência nos diversos campos do saber, reduzindo-se à mera disciplina que auxilia na construção de discursos. O declínio maior dá-se nos primórdios do século XVI com o avanço da tendência cartesiana e a ascensão do pensamento burguês.

OSAKABE (1999, p. 150) analisa o ressurgimento da retórica no pensamento ocidental, salientando a figura de Chaïm Perelman que inicia o processo de retomada da dialética e da retórica com a publicação de uma obra significativa intitulada Tratado da Argumentação (1996). Esse livro questiona o cartesianismo ainda vigente como o único caminho ao conhecimento e estabelece uma reviravolta nos estudos relacionados a análise do discurso, pois retoma certas vertentes desvalorizadas pela secularização, a exemplo da natureza dialética do discurso. Ainda para OSAKABE (1999, p. 176), “trata-se de uma obra com finalidade polêmica, cujo objetivo é relativizar a tendência unilateral da lógica e da teoria do conhecimento de Descartes”.

No tocante à tipificação dos discursos, estabelecida por Aristóteles, Perelman questiona essa classificação, preconizando a atemporalidade para a aplicação dos argumentos. Para ele, a “atemporalidade e a não compartimentalização dos fatos são fundamentais para conhecer a natureza complexa dos objetos” (OSAKABE, 1999, p. 178). O argumento, assim, adquire o status antes ocupado pelas evidências matemáticas e estendido às ciências humanas, ou seja, enquanto o discurso analítico não prescinde das demonstrações claras e evidentes para obter o convencimento dos ouvintes, minimizando a força argumentativa pelo caráter evidente dos fatos, a nova retórica elege o verossímil como o caminho possível à persuasão já que a verossimilhança propicia o caráter dialético das idéias na interlocução.

Na concepção perelmaniana, a retórica assume a posição de disciplina basilar no estudo e análise dos atos discursivos, uma vez

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que a retórica, desde o final da Antigüidade Clássica, teve o seu campo de ação progressivamente diminuído, apresentando alguma revivescência no Renascimento, pois, na Idade Média, “a retórica ficou sendo essencialmente a arte de apresentar verdades e valores já estabelecidos” (PERELMAN E OLBRECHTS-TYTECA,1996, p. 179).

Na Idade Moderna, as correntes de pensamento, particularmente os filósofos racionalistas e empiristas, refutaram a possibilidade de a retórica compartilhar seu campo de ação e de estabelecer-se como uma via de acesso ao conhecimento,

entretanto, faz uns vinte anos que assistimos a um lento renascimento da importância da retórica, e isso seguindo a direção das correntes filosóficas que, desde as filosofias da vida, da ação e dos valores, até o pragmatismo, marcaram a revivescência filosófica desde quase um século. (PERELMAN E OLBRECHTS-TYTECA,1996, p. 180)

Perelman devolve à retórica o prestígio que desfrutava na Antigüidade Clássica, elegendo-a como essencial para a análise constitutiva do discurso. Em o Tratado da Argumentação, estabelece as idéias fundamentais, quanto a caracterização do argumento discursivo. Perelman então,

a) elege a verossimilhança, o plausível, o provável como pertencentes ao campo da argumentação;

b) refuta a idéia de evidência, na teoria da argumentação, pois

aquela limita a ação argumentativa;

c) defende as técnicas discursivas que permitem provocar ou

aumentar a adesão dos espíritos às teses que lhes apresentam;

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d) ressalta a importância do auditório, pois é nele que o argumento

se desenvolve;

e) afirma que todo discurso se dirige a um auditório.

A natureza do argumento, trazida pela Nova Retórica, rompe com o critério da prova, da evidência, já que estabelece a proximidade teórica com a dialética. Portanto, a oposição das teses constitutivas dos argumentos é o critério admitido para persuadir.

A relação estabelecida entre discurso e os constituintes da formação argumentativa, bem como as bases teoréticas que norteiam essas relações, serão elementos indispensáveis para a análise e estudo dos discursos que ora fazem parte desse projeto de pesquisa.

4 O DISCURSO: PANORAMA GERAL

Neste discurso, “Exército: nem guarda pretoriana nem tropas da SS”, o político Francisco Pinto faz uma análise, profundamente marcada pelo caráter denunciador, da repressão e da censura instituídas pelo sistema ditatorial. As Forças Armadas, particularmente o exército brasileiro, é a temática central desse discurso, constituindo-se no sistema disciplinador daquele momento da história política do país.

É ressaltada a figura do General Augusto César Muniz de Aragão como um dos protagonistas do regime de força na manutenção da ordem e da disciplina. Resgata, também, trechos do discurso do general Muniz de Aragão, no qual ratifica o compromisso das Forças Armadas com o bem-estar social, quando afirma que as

Forças Armadas deveriam encontrar-se disciplinadas, adestradas e aptas, prontas para a ação contra o desrespeito a lei, a perturbação da harmonia entre as

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classes, e o exercício do arbítrio e a prática da violência (ARAGÃO: In.: PINTO, 1972, p. 02)

Utilizando-se dos discursos próprios do regime de força e opressão, Francisco Pinto reverte o sentido, naquele momento, de que as Forças Armadas deveriam estar prontas para o esmagamento das instituições democráticas; ao contrário, coloca-as como defensoras de tais instituições, ressaltando as condições necessárias para a caracterização de um estado de direito, onde “leis justas e legítimas existam e traduzam a média da consciência coletiva” (PINTO, 1972, p. 03).

O termo ditadura e tudo que a ele está ligado e se refere é contestado em todo discurso do ex-deputado, já que tanto a ditadura de direita ou de esquerda e daí a obediência ilimitada ao sistema político imposto, fazem obscurecer a participação popular nas decisões governamentais e, conseqüentemente, o fenecimento da democracia. A partir dessa postura, convoca a participação das Forças Armadas para exercerem de fato a missão que a elas compete, ou seja, combate à violência, e a garantia da segurança nacional, e não “para tornar-se milícia, guarda pretoriana ou tropa de assalto SS” (PINTO, 1972, p. 03). Adiante, completa seu argumento afirmando que, assim, “os oficiais da dignidade de guardiães da pátria, ver-se-iam levados à condição de beleguins ou inquisitores e, mesmo de sequazes ou esbirros de camarilhas sem fé e sem patriotismo” (PINTO, 1972, p. 03).

Nota-se, enfim, em todo o discurso, há defesa pelo estado democrático e de direito, no qual as leis sejam respeitadas e que a liberdade de opinião e de expressão sejam garantidas. Enfatiza a necessidade de que o exército deveria estar ao lado do povo e não contra este, no cumprimento das garantias constitucionais.

Querem estes governos que os militares sejam fiéis executores destas leis; e quando estes passam a impor ao povo o cumprimento de leis ditadas por minorias arbitrárias, eles se desviam de suas verdadeiras missões, esquecendo-se ‘de suas nobres tradições’ e deformando

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assim a prática de sua função constitucional, para tornar-se milícia, guarda pretoriana ou tropa de assalto da SS (PINTO, 1972, loc. cit.).

5 CONTEXTO SITUACIONAL

O AQUI da enunciação é o lugar social do qual o EU fala. Lugar esse de autoridade, pois a enunciação não pode vir de quem não foi legitimado a falar. Em questão, Francisco Pinto, enquanto deputado federal, eleito por votação direta, que fala com autoridade conferida pelo povo através da escolha popular (votação direta). Representante popular, usa do lugar social que ocupa para falar em nome de quem o elegeu para denunciar os abusos de autoridade das Forças Armadas, bem como defender os interesses de ordem social, ou seja, a liberdade de pensamento e expressão.

O AGORA corresponde ao momento da enunciação. Neste caso, diz respeito ao discurso “Exército: nem guarda pretoriana nem tropas da SS” de 18 de agosto de 1972, em pleno governo do General Emílio Garrastazu Médici, considerado general “linha dura” na condução do executivo. Esse discurso retrata a indignação do político Francisco Pinto frente às ações da Forças Armadas que, na verdade, deveriam estar ao lado do povo, protegendo-o e zelando pela segurança nacional e não esmagando as conquistas democráticas e sociais, a exemplo das perseguições e torturas.

6 OS INTERLOCUTORES

6.1 O EMISSOR

Neste discurso, o locutor (L) é representado por apenas uma pessoa, na voz do político Francisco Pinto que ocupa a posição de deputado federal a favor dos interesses populares. Esse EU não fala de maneira pessoal, isto é, na primeira pessoa do singular, mas, muitas vezes, em nome de uma coletividade, marcando,

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entretanto, seu discurso na impessoalidade (forma pronominal), inserindo-se também no todo social através do uso de um vocabulário (substantivos) que dê conta dos vários segmentos sociais. A saber:

Nos países onde impera o Estado de Direito todos assumem responsabilidades, todos conhecem os limites de suas atribuições,..., todos opinam livre e despreocupadamente, todos emitem conceitos e julgam publicamente os poderosos do dia, enfim todos fazem opções (PINTO, 1972, p. 01).

Quando o intelectual, o estudante, o empresário, o operário se recusam a participar da vida política brasileira não é porque a esta negam validade e nela não crêem, vendo-a reduzida a simples força coonestante (PINTO, 1972, loc. cit.).

O Governo Brasileiro, como de resto todos os governos autoritários, impõe-nos leis justas e injustas... (ibid., p. 03)

Utiliza-se também das marcas lingüísticas argumentativas - sentenças afirmativas – constituindo-se nas modalidades assertivas (PETRI, 1994, p. 78) que dão o tom de presencialidade da carga ideológica que defendia, naquele momento discursivo, bem como o tom contundente com que marca sua fala na intenção de produzir um efeito bombástico no auditório – os operadores argumentativos- na forma de adjetivos. Esse conjunto de procedimentos argumentativos, segundo PETRI (1994, p. 71), “pertencem as manobras ou estratégias discursivas, utilizadas pelo locutor com a intenção de produzir determinadas interpretações”. Senão vejamos:

Neste País o desrespeito à lei não é privilégio dos terroristas, mas também do Governo( PINTO, 1972, p. 02).

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Seus oficiais da dignidade de guardiães da Pátria, ver-se-iam levados à humilhante condição de beleguins ou inquisitores e, mesmo de sequazes ou esbirros de camarilha sem fé e sem patriotismo”( PINTO, 1972, loc., cit.).

O caráter polifônico também está presente em seu discurso, uma vez que se apropria da fala do General Augusto César Muniz e de parte do editorial do jornal O Estado de São Paulo para consubstanciar as teses levantadas e defendidas pelo locutor. Veja-se,

A verdade é que se o ‘País está sendo objeto da inveja, cobiça e cupidez de outros Estados, por tradições imperialistas e dominadoras, ora agressivos ora subversivos na maneira de agir’ como assevera, não é menos verdade que aquilo que para ele é, apenas uma ‘grande preocupação que me punge a alma de patriota’, já se constitui em uma realidade em nosso País (PINTO, 1972, p. 02).

Que a transformação das Forças Armadas em milícia ou guarda pretoriana nunca se dá por ato formal ou com plena consciência e concordância de seus membros. Simplesmente vai acontecendo, aos poucos, até que um dia se verifica sua evidência, até mesmo sem culpados ou responsáveis diretos (ibid., p. 04).

6.2 O RECEPTOR

O auditório, o TU da cena enunciativa, segundo Perelman, é fundamental na constituição argumentativa, pois é para aonde se dirige o discurso, objetivando a adesão das teses defendidas pelo emissor (L).

É, portanto, a natureza do auditório ao qual alguns

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argumentos podem ser submetidos com sucesso que determina m ampla medida tanto o aspecto que assumirão as argumentações quanto o caráter, o alcance que lhe serão atribuídos (PERELMAN, 1996 , p. 33)

Nesta cena, o alocutário (AL), constituído pelo presidente da república, no caso o General Emílio Garrastazu Médici, e pelos outros parlamentares, integra a relação da interlocução -emissor/receptor-, buscando influenciar nas opiniões e nas futuras decisões parlamentares e governamentais que, porventura, tivessem que ser tomadas.

Observa-se, outrossim, que o locutor também almeja atingir outros receptores não explicitados nos discursos, ou seja, receptores não-alocutários. Trata-se dos meios de comunicação que, mesmo sofrendo os agravos da censura, poderiam, de certa forma, publicar seu manifesto e daí atingir um auditório bem maior do que aquele restrito à Câmara Federal.

7 CONCLUSãO

O discurso, ora apresentado, faz parte de uma série de outras manifestações escritas do político Francisco José Pinto dos Santos no período que foi representante popular na Câmara Federal, nas décadas de 70 e 80, tendo sempre como temática central a denúncia e a irreverência frente aos governos da época.

O período da ditadura militar, iniciado na década de 60 e estendendo-se até meados dos anos 80, tornou-se o palco central das questões sócio-políticas trazidas por Chico Pinto em seus discursos. O exército, particularmente, chamou mais a atenção dos políticos de esquerda, pois representava o órgão repressor por excelência, disseminando por todo o país terror e medo a quem se posicionasse de forma contrária à nova ordem estabelecida.

Em toda sua produção escrita, Francisco Pinto ressalta a importância da liberdade de opinião e de expressão, reivindicando sempre o respeito às leis e às garantias individuais. Esse discurso, especialmente, é o retrato dessa postura ideológica, no qual

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combate fortemente às ações de força das Forças Armadas e o aniquilamento do estado democrático.

Estudar, portanto, os discursos do político feirense Francisco Ferreira Pinto dos Santos, representa, além do resgate da memória política do país de do Estado da Bahia, uma importante fonte histórica e uma importante fonte de estudo dos procedimentos argumentativos, haja vista a forte tônica elocutória dos seus discursos. O estudo retórico, assim, tem nessas produções escritas, um farto campo de análise e pesquisa, salientando-se as marcas lingüísticas de uma produção textual esteticamente viável.

Vale mais uma vez salientar que esse discurso faz parte do projeto de pesquisa, iniciado no ano corrente, no programa de pós-graduação em Lingüística Aplicada da Universidade de Federal da Bahia e, por isso, mesmo não foi possível aprofundar as análises no campo retórico, apresentando-se um panorama geral quanto as análises argumentativas.

EXÉRCITO: NEM GUARDA PRETORIANA NEM TROPA DE ASSALTO SS

18 DE AGOSTO DE 1972

O SR. FRANCISCO PINTO – MDB-BA- Sr. Presidente, Srs. Deputados, se outros elementos não existissem para diferençar o regime democrático dos ditatoriais ou semiditatoriais, o medo serviria para distingui-los.

Nos países onde impera o Estado de Direito todos assumem responsabilidades, todos conhecem os limites de suas atribuições, do que é proibido, todos opinam livre e despreocupadamente, todos emitem conceitos e julgam publicamente, os poderosos do dia, enfim, todos fazem opções. Nos Estados totalitários alguns dão ordens e poucos opinam. A maioria ou concorda com as determinações impostas, elogiando-as sempre, ou se postam

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silenciosas e inermes, mas sempre amendrontadas. Os que opinam discordando, mas conscientes dos riscos, o fazem sem esperar solidariedades. Ninguém quer se comprometer com vozes discordantes. E o medo não está longe, ele se encontra presente entre nós, nas mais variadas camadas da população e se apresenta sob as mais variadas formas.

Quando o intelectual, o estudante, o empresário, o operário se recusam a participar da vida política brasileira não é só porque estas negam validade e nela não crêem, vendo-a reduzida a simples força coonestante. Em verdade se utilizam deste argumento para justificar sua passividade, diante dos riscos que não negam, mas ficam bem com a sua consciência, porque amuletados nos seus próprios argumentos se dedicam tão só a atividade profissional, onde se realizam economicamente sem opinar sobre determinados valores incorporados à civilização ocidental, mas que o governo brasileiro teima e negar e destruir.

Se é um militar que fala, e experiência tem aconselhado a todos que dele não se deve discordar e a prudência recomenda nem elogiar é bom.

Mas é impossível silenciar depois de ler o pronunciamento do General Augusto César Muniz de Aragão, conhecido pelo seu destemor e pelas suas qualidades de disciplinador, as vezes até exagerado no respeito aos cânones hierárquicos. Ele fez um discurso analítico, polêmico e de certo modo angustiado, ao menos, cheio de preocupação. Os riscos por que estamos passando no Brasil só não enxerga quem não quer. O ilustre militar os aponta as claras e, como conhecedor profundo das Forças Armadas e talvez por isto mesmo, é mais otimista que muitos outros. Entende que as tradições democráticas das Forças Armada não serão desmentidas, esquecido apenas, que há momentos em que o medo se generaliza, a todos atingindo indiscriminadamente.

A verdade é que se o “País está sendo objeto da inveja, cobiça e cupidez de outros Estados, por tradições imperialistas e dominadoras, ora agressivos ora subversivos na maneira de agir” como assevera, não é menos verdade que aquilo que para ele é,

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apenas uma “grande preocupação que me punge a alma de patriota”, já se constitui em uma realidade em nosso País. Quando aconselha que as Forças Armadas precisam “encontrar-se disciplinadas, adestradas e aptas, prontas para a ação contra o desrespeito a lei, a perturbação da harmonia entre as classes, o exercício do arbítrio e a prática da violência” faz uma advertência não para o futuro remoto, mas para o presente. Neste País o desrespeito à lei não é privilégio dos terroristas, mas também do Governo. O que é importante no regime democrático não é só a existência da lei e a existência do seu respeito, porque nas ditaduras de direita ou esquerda a lei também existe e a força querem-nas respeitada. Nestas, determina-se obediência ilimitadas. O que caracteriza o regime democrático é a existência de leis justas e legítimas, de leis que traduzam a média da consciência coletiva. O Governo brasileiro, como de resto todos os governos autoritários, impõem-nos leis justas e injustas e a todas querem que juremos obediência e de todos exigem o seu cumprimento. Querem estes governos que os militares sejam fiéis executores destas leis; e quando estes passam a impor ao povo o cumprimento de leis ditadas por minorias arbitrárias, eles se desviam de suas verdadeiras missões, esquecendo-se “de suas nobres tradições” e deformando assim a prática de sua função constitucional, para tornar-se milícia, guarda pretoriana ou tropa de assalto SS. Seus oficiais da dignidade de guardiães da Pátria, ver-se-iam levados à humilhante condição de beleguins ou inquisitores e, mesmo de sequazes ou esbirros de camarilhas sem fé sem patriotismo. Tal hipótese – continua – constitui terrível dilema: para fugir ao perigo comunista seria a Nação mergulhada em regime de extrema direita, igualmente policialesco e violento. Tal alternativa não admite opção.

Como o ilustre general crê na sua corporação, acredita “que isto jamais ocorreria no Brasil devido à vocação cívica e democrática das Forças Armadas”. Externa no entanto, no início de sua oração, “a grave preocupação que me punge a alma patriota”,

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preocupação que é de todos que acompanham o processo a que estamos sendo conduzidos.

Sem ser um discurso político no sentido “strito”, foi objeto de comentário por parte de um dos maiores articulistas brasileiros, o Senhor Carlos Castelo Branco. Não foi sem razão que o “Estado de São Paulo”, sempre preocupado em preservar as legítimas conquistas que a revolução burguesa nos legou, em mais de um editorial, inclusive o de 13 do corrente, faz referência àquele discurso que teve uma dimensão nacional, esclarecendo “que a transformação das Forças Armadas em milícia ou guarda pretoriana nunca se dá por ato formal que com a plena consciência e concordância de seus membros. Simplesmente vai acontecendo, aos poucos, até que um dia se verifica sua evidência, até mesmo sem culpados ou responsáveis diretos”.

O que não nos desespera, nesta hora, Sr. Presidente, é a confiança que temos no povo e na proclamada e reconhecida tradição de inequívoca lealdade das Forças Armadas à causa democrática. (Muito bem.)REFERÊNCIAS

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CAMINHOS DO DESENHO NA BAHIA DO SÉCULO XVIII

Antônio Wilson Silva de Souza*

RESUMO: O presente texto versa sobre o desenho da Bahia do século XVIII, fazendo um sucinto relato sobre a escolha do tema, a realização da pesquisa, e a abordagem que lhe foi dada. Apresenta uma sucinta análise dos desenhos coletados, destacando as suas características e situando-os dentro do contexto social e religioso da Bahia setecentista.

PALAVRAS-CHAVE: Desenho, Arte, Bahia.

RÉSUMÉ: Ce texte parle du dessin de la Bahia du XVIIIme. siècle, faisant un rapport abrégé du choix de ce thème, de la réalisation de sa recherche, et de son abordage. Il y a encore une caractérisation de ces dessins, en même temps qu’ils sont analysés dans le contexte social et religieux de la Bahia de ce siècle.

MOTS CLÉ: Dessin, Art, Bahia.

*Universidade Estadual de Feira de Santana

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Dentre os diversos modos de expressão humana, encontra-se o desenho, figurando como um dos mais antigos e constantes. O desenrolar da história de cada sociedade e cultura deixa notar a presença deste modo de expressão. Portanto, tornar-se-ia difícil alcançar uma compreensão do desenvolvimento integral do ser humano sem uma atenção particular ao desenho. Para além de constituir uma dentre as várias formas de expressão, o desenho apresenta-se como poderoso auxiliar de um vasto conjunto de outras expressões e de manifestações artísticas, daí o porquê de Gomes (1996, p. 13) concluir que o desenho “É uma das formas de expressão humana que melhor permite a representação das coisas concretas e abstratas que compõem o mundo natural ou artificial em que vivemos”. Desde a fase primitiva da sua evolução, o ser humano utiliza-se do desenho como fator colaborativo da sua capacidade de expressão e comunicação. Presente em todas as culturas, o desenho assume conotações variadas, visto que depende do contexto no qual emerge, condicionando-se, inclusive, às aspirações e problemas vigentes na sociedade. Cada cultura cria uma maneira específica de desenhar, assim como possui uma reflexão1 própria sobre o desenho. Portanto, o desenho diversifica-se através da pluralidade dos estilos, ora refletindo o andamento do processo histórico, ora preludiando mudanças e, não raro, apresentando-se como elemento indicativo e subsidiário dos estágios de transformação pessoal e coletiva, sempre, porém, subjuntivo das intenções humanas de desenvolvimento pleno. No entanto, ao lado do reconhecimento contemporâneo da importância do desenho, insurge o paradoxo, sobretudo no meio artístico e acadêmico, da constatação de que essa expressão vem sendo muito pouco estudada, por ter sido considerada secundária dentro das artes até muito recentemente. Esse longo preterir do desenho em contraposição à acentuada atribuição de valor à outras expressões artísticas, deu incentivo, há algum tempo, para que se procurasse desenvolver pesquisa sobre a história do desenho. Sob a percepção da lacuna existente em relação à história do desenho no século dezoito e por acolher uma sugestão da professora Maria Helena Occhi Flexor, orientadora

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dessa pesquisa, deu-se início, no limiar do ano 2000, dentro do Mestrado em Artes Visuais do Programa de Pós-graduação da Escola de Belas Artes da UFBA, a pesquisa sobre a temática. Pesquisa que foi concluída satisfatoriamente, e a dissertação, intitulada O desenho na Bahia do século XVIII, teve defesa realizada em julho de 2002. Ora a revista A Cor das Letras torna oportuna mais uma transmissão do conhecimento haurido em consequência do estudo sobre a citada temática, corroborando, destarte, para que este texto realize a socialização do saber particularmente almejada e academicamente conveniente.

O estudo sobre a temática do mestrado foi possibilitado em decorrência da inexistência de material bibliográfico a respeito. As obras de historiadores da arte na Bahia, que se dedicaram ao estudo do Barroco, versam sobre as diversas manifestações deste estilo, tais como a arquitetura, a talha, a pintura, a escultura e a ourivesaria, no entanto elas deixam um espaço vazio quanto à manifestação do desenho. Pode-se comprovar tal assertiva, recorrendo-se às obras de renomados autores na história da arte da Bahia, como Marieta Alves, Valentim Calderon, Carlos Ott, o beneditino Dom Clemente Maria Nigra, entre outros, ou mesmo entre os brasilianistas como Germain Bazin, Robert Smith e Roberto Pontual. O locus que não fora reservado ao desenho na reflexão desses autores resultou em um pungente e significativo espaço aberto a uma necessária busca do desenho do século XVIII.

O objetivo principal da pesquisa sobre o tema supra citado foi analisar o desenho da Bahia setecentista, destacando as suas principais características, buscando descrevê-lo, classificá-lo dentro do seu contexto histórico, realizar uma análise iconográfica, além de identificar os materiais de base, de fixação, os instrumentos de execução, seus usos e a formação do profissional durante o período abordado.

Necessário se faz, entretanto, explicar a que concepção de desenho o projeto se ateve, uma vez que essa expressão artística é ampla em suas manifestações. Por exemplo, um projeto arquitetônico, as letras capitais iniciais de textos escritos ou

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impressos, as assinaturas rasas e públicas, o traçado das letras em si, entre outras, são expressões gráficas, mas que de certa maneira têm sido estudadas, mesmo que com enfoques variados, alguns dos quais apenas constituiu objeto de estudo deste projeto. Não se pretendeu também, enfocar o desenho enquanto meio educacional, mas tão somente constatar o ensino do desenho no setecentos na Bahia, medida que serviu para explicar a sua execução e o tipo de artista ou artesão que o executou. O desenho, alvo principal da pesquisa, foi o desenho enquanto idéia, obra de arte individualizada ou trabalho artístico manifestado como moldura de documentos, como ornamentação de textos, como decoração, aquele desenho, em geral feito à mão, e que, por isso mesmo, evidencia um conhecimento técnico de utilização de materiais, manuseio de instrumentos e muito mais o desenvolvimento de habilidade manual.

O estudo sistemático do desenho da Bahia do século XVIII exigiu pesquisa multidisciplinar e em documentação extremamente variada. Principiou-se, então, a pesquisa por meio da busca de acervo documental pertencente aos arquivos da Bahia. Desta maneira foi feito levantamento de material no Arquivo Público da Bahia, nos arquivos das Instituições religiosas, como da Ordem Terceira do Carmo, Ordem Terceira de São Francisco, Ordem Terceira de São Domingos, da Santa Casa de Misericórdia e do Mosteiro de São Bento, todos sitiados na Cidade de Salvador. Apesar de valiosa a contribuição desses arquivos, a quantidade de material coletado foi insuficiente para que se pudesse documentar, subsidiar e analisar o desenho com bastante profundidade, como se requeria. Portanto, sentiu-se a necessidade de buscar maiores subsídios para o estudo de sua manifestação na Bahia. Assim, levantou-se imperiosa a necessidade de busca, no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, onde se pôde coletar maior número de documentação do século XVIII, em que se apresentasse o desenho em quantidade suficiente para fundamentar a pesquisa com sólido embasamento. O material obtido naquele arquivo foi vasto em relação ao encontrado nos arquivos de Salvador da Bahia, o que

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viabilizou um melhor desenvolvimento da pesquisa em torno do desenho, sobretudo porque toda a documentação pesquisada se referia especificamente à Bahia e, na sua grande maioria, eram manuscritos.

Os desenhos levantados, nos citados arquivos, fazem parte dos seguintes tipos de documentos manuscritos: compromissos de irmandades religiosas, que contêm um material extenso de desenho e pintura, mapas de carga e descarga, importação e exportação de mercadorias, coleções cartográficas, escrituras e processos, que trazem assinaturas rasas e públicas, tratados de arquitetura, manuais de artilharia, figurinos militares, cadernos de desenho da aula militar, etc. Outro material importante que subsidiou o estudo em questão, com numerosos desenhos, foi a Nova Escola para aprender a ler, escrever e contar2 , da autoria de Manoel de Andrade de Figueiredo, publicado no ano de 1722. Nessa obra, o autor apresentava inicialmente a intenção de ensinar a escrever e a contar, posto que fizera uma cartilha, contudo, por ter acrescentado a este objetivo algumas informações de como se usar a pena, o papel e a tinta, terminou por ensinar também a desenhar, sobretudo, ornamentar documentos, como se pode ver na figura 1.

figura 1Fonte: FIGUEIREDO, Manoel Andrade de. Nova escola para aprender a ler, escrever e contar. Lisboa: Lisboa Occidental,

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Os desenhos encontrados nos documentos citados são, na maioria, de caráter decorativo, mais ornamentais, aparecendo como moldura, sobretudo naqueles dos compromissos de Irmandades. Além de emoldurar os documentos eles aparecem também como elementos ornamentais das capitais iniciais de textos e decoram a folha de papel, na parte inferior, em geral encerrando textos, capítulos. Representam figuras de anjos, querubins, elementos zoo e fitomorfos, coroas, cavaleiros, arabescos simples ou entrelaçados.

A maioria dos desenhos tem um traçado característico feito em curvas entrelaçadas num traço contínuo, sem interrupção para cada elemento realizado. As formas típicas do Barroco sobressaem e se repetem de maneira, às vezes, automática, o que vem evidenciar que os desenhos constituíam uma via de materialização da mentalidade vigente na época.

Há uma padronização que se percebe como uma constante em várias expressões. As assinaturas rasas, por exemplo, apresentam um traçado que se repete em muitas delas. As assinaturas públicas também têm uma forma específica de cruz da qual a haste vertical é bem elevada e em cada extremo da haste horizontal, o nome ou as iniciais do nome do tabelião que a tem como marca pessoal e profissional, registrada em tabelionato para uso nos documentos públicos. No cruzamento das hastes cada tabelião tem um desenho peculiar. Há uma enorme variedade dessas assinaturas, pois cada tabelião deveria criar o desenho que o identificaria profissionalmente. Para os olhos de quem se dedica, hoje, à pesquisa, aquelas assinaturas fazem situar o seu autor dentro de uma determinada época, pois o seu desenho é típico de um período que manifestava um traçado característico da expressão barroca.

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Os desenhos encontrados, nas coleções cartográficas, são também de cunho decorativo e complementar. O enfoque não foi a cartografia em si, mas as legendas. Elas apresentam uma moldura para os dados informativos dos mapas. São desenhos que mostram detalhes de formas que caracterizam esse estilo, como composição de folhas de acanto, e não têm finalidade senão ornamental. Os desenhos das molduras das legendas dessas coleções cartográficas apresentam formas típicas do estilo clássico que fora absorvido e transformado pelo Barroco.

O desenho como idéia aparece na representação de figurinos, desenhos coloridos, realizados para se mostrar como deveria ser a indumentária dos militares, têm uma significação especial, não somente por serem coloridos, mas também por constituírem desenho da figura humana. Esses figurinos manifestam uma visão típica do período barroco, quando o espírito de contradição perpassava a mentalidade e o comportamento do homem daquela época. O semblante dos militares faz alusão a um anjo tipicamente Barroco.

Outros exemplos de desenho como idéia foram levantados ao mesmo tempo em que se buscou exemplares que evidenciassem o desenho como expressão autônoma, o que não foi possível constatar. Outra busca esteve enfocada na relação do desenho, ou risco3, com a arquitetura decorativa, pintura, talha, imaginária, trabalhos em couro, os baixo-relevos das lápides tumulares, etc, visto que todas as manifestações artísticas estavam intimamente ligadas pelas formas, pela iconografia e pelo próprio desenho.

Não se deixou, evidentemente, de definir o significado do desenho, ou significados que historicamente ele foi assumindo a partir dos ideogramas, ou representações ideográficas, e como foi influenciado pelas culturas, sobretudo das religiosas, especialmente católicas.

Tendo em mãos este material, foi possível realizar uma análise descritiva e iconográfica que, de muito, contribuiu para o entendimento do desenho e de outras manifestações artísticas da Bahia. Apesar de reconhecer a eficácia do método de Panofsky

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que parte da análise dos símbolos para descortinar e interpretar o conteúdo temático, o significado intrínseco e o conteúdo convencional da obra de arte, deu-se preferência ao método de Ravi Poovaiah4, visto que possibilitaria um conhecimento aprofundado e alargado das expressões gráficas, sobretudo porque o referido método se estrutura sobre dois pilares: na natureza sintática do desenho, em termos de elementos, características e princípios visuais, e na dimensão semântica e pragmática do desenho, destacando o conteúdo, o contexto e o código da representação visual. Por essa razão, foi o que melhor se coadunou com o intento de analisar os desenhos do século XVIII.

A análise realizada ofereceu bases para uma reflexão sobre o desenho e, ao mesmo tempo, corroborou para uma melhor compreensão das expressões gráficas da Bahia setecentista. Assim, foi possível destacar com mais nitidez as suas características dos desenhos. Pôde-se, então, constatar que a maioria dos desenhos estudados revelam características do estilo barroco. É forçoso salientar que, na segunda metade da mesma centúria, houve manifestações do estilo rococó, que também se fez evidente nos desenhos5. A mentalidade barroca reinante na época orientava de tal forma a maneira de viver das pessoas que as suas expressões, artísticas ou não, revestiam-se de um caráter eminentemente barroco, como provam as assinaturas rasas6 do período abordado.

Uma análise sócio-cultural das expressões barrocas na Bahia setecentista mostraria que o barroco foi, mais que um estilo artístico, uma mentalidade filosófica, estética e religiosa da sociedade da época, foi propriamente um estilo de vida, pois pensava-se, vestia-se, falava-se, em realidade, agia-se barrocamente. (SOUZA, 2002, p. 52)

Essa mentalidade, ou melhor, essa maneira de viver caracteristicamente barroca propiciou inúmeras manifestações da arte, como a talha, a pintura, a arquitetura, a música, a escultura, fomentadas pelo espírito religioso, patrocinada pelas Ordens

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Terceiras e, em alguns casos, pelo governo7. Contudo não se deixou de dar mostras da expressão eminentemente gráfica, como provam os inúmeros exemplares dos desenhos pesquisados e analisados, na sua grande maioria, como já foi dito, de caráter ornamentativo.

Todo desenho representa em si mesmo uma forma de comunicação, por isso constitui uma linguagem8. Dentro desta maneira de entendimento, o desenho pode ser considerado como um caminho através do qual o homem setecentista pôde manifestar a sua visão de mundo. Reflexo de mentalidade e expressão de sentimentos, o desenho utilizou signos específicos do Barroco, ou baseados no vasto mundo de formas próprias desse estilo. Em razão do Barroco ter-se, intrinsecamente, vinculado ao espírito religioso da sociedade da Bahia do século em questão, o repertório de signos pelo desenho apresentado constitui uma vasta quantidade de elementos típicos da manifestação da fé cristã. E, sendo a mentalidade do século dezoito, eminentemente, barroca, as ornamentações dos documentos, mesmo civis, eram um esboço do carácter religioso constituinte da vivência do homem da época.

O Barroco não renegou as formas clássicas, mas as transformou de modo fantasista e subjetivo. Por esta razão, se pôde reconhecer, nos desenhos analisados, traços da arte clássica acrescidos de características formais propriamente barrocas, como por exemplo, a intensa movimentação, obtida pelo predomínio de linhas diagonais, os fortes contrastes como, por exemplo, o claro e o escuro, as curvas, a sinuosidade, as ondulações, os entrelaçados e o excesso de ornamentação. A decoração da capa de um compromisso de Irmandade da Bahia do século XVIII, figura 2, serve como ilustração comprovativa do que se acabou de afirmar.

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figura 2Capa do Compromisso da irmandade de Nossa senhora da

Ajuda da Vila de Porto Seguro, Bahia, 1778. Fonte: Códice 1668 do Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa.

No Brasil, notadamente na Bahia, a arte barroca se tornou um instrumento de manifestação do sentimento religioso, de maneira que resulta quase que impossível dissociá-la do contexto da fé cristã. Todavia, apesar da preponderância da fé, uma das tônicas do Barroco é o espírito de contradição que se exprimiu inúmeras vezes na dicotomia entre o profano e o sagrado. Assim, os desenhos evidenciaram também essa característica do citado estilo, quando muitos dentre eles representam em sua ornamentação uma coroa real, símbolo do poder terreno, ao lado de anjos, símbolos da dimensão ultraterrena, ou espiritual.

O Barroco, portanto, foi um seguro caminho que a Bahia setecentista escolheu para manifestar de forma plurissignificativa a linguagem do desenho, embora esta linguagem tenha permanecido secundária em relação às outras expressões artísticas.

Sem pleitear dimensionar vantagens entre as manifestações artísticas, o Barroco não poderia estar melhor representado do que pelo desenho que, com mais clareza que outras expressões da arte, materializou a mentalidade do homem setecentista. A análise dos desenhos fez compreender que as formas e símbolos, por eles representados, integram uma concepção de mundo especialmente religiosa, transmitida por uma linguagem cujo código identifica o estilo barroco e revela influência da cultura portuguesa.

Pelo exposto, uma constatação insurge para reafirmar e reforçar, ainda mais, a concepção que se apresentou no desenrolar deste texto: o desenho é um componente basilar do universo de expressões do homem da Bahia setecentista, e por essa razão, fez-se

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presente como uma manifestação dentre as outras manifestações da arte da época. Essa constatação, porém, não impediu de reconhecer que o desenho setecentista não possuía carácter autônomo.

Após todas as considerações e análises, estudos e reflexões, pôde-se concluir que o desenho foi uma manifestação constante e largamente utilizada em todo o século XVIII, reverberou a mentalidade e a visão de mundo características da época, integrou o universo de manifestações peculiares da arte daquela centúria e constituiu um caminho de expressão barroca do pensamento e da cultura material da sociedade setecentista da Bahia.

NOTAS

1Usa-se aqui a expressão “reflexão” para designar não o discurso intelectivo sobre o desenho, pois este é relativamente muito recente, mas para referir-se a toda intenção que conduz as diversas sociedades e culturas a desenhar.

2Essa obra impressa, que contém desenhos feitos à mão pelo próprio autor, passou pela aprovação de todas as instâncias necessárias, em Portugal, inclusive pelo crivo da Mesa de Consciência e Ordens e só assim foi publicada. Urge ressaltar que o autor nasceu no Brasil, filho do Governador e Capitão General do Espírito Santo. Esse material foi fornecido por Maria Helena Occhi Flexor, que obteve cópia microfilmada no Instituto de Estudos Brasileiros da USP.

3Termo comumente utilizado em Portugal e no Brasil, durante o século XVIII, para designar os desenhos. Era um sinônimo da palavra “desenho”.4Ravi Poovaiah nasceu na Índia, em 1954 e formou-se em engenharia mecânica pelo Instituto Indiano de Madras, em 1975. Em 1977, pós-graduou-se na área de projeto de produto no Instituto de Tecnologia de Bombai, Índia. De 1982 à 86, foi professor do

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curso de Desenho industrial de Bombai. Fez o mestrado na área de Comunicação Visual pela Escola de Desenho da Ilha do Rhode, em Providence, EUA. Tornou-se Professor Adjunto no Instituto de Desenho Industrial de Bombai. Suas linhas de pesquisa, desde 1986, são: estudo dos princípios da representação gráfica bidimensional, estudo da linguagem visual, desenvolvimento de padrões para sinalização urbana, desenvolvimento de sinalização de hospitais e desenvolvimento de fontes tipográficas para computador. Hoje ele é Phd.5Deu-se preferência, neste artigo, ao estudo do desenho barroco, reservando para um próximo texto uma mais aprofundada e detalhada explanação sobre o desenho rococó, merecedor por seu turno, de estudo sistemático, posto que também integra o arsenal de manifestações artísticas da Bahia do século XVIII.

6Chama-se de assinatura rasa a assinatura pessoal de um indivíduo.

7No século XVIII as Ordens Terceiras (de leigos) eram mais fortes que as Primeiras (de sacerdotes), visto que àquelas se agremiavam, em geral, pessoas abastadas da sociedade da época. Com a contribuição financeira dos Irmãos Terceiros e também com a verba do governo para a construção do altar-mor das igrejas, foi desenvolvida a maioria das obras da arte religiosa da Bahia setecentista.

8Por linguagem, neste texto, deve-se ser entendido todo e qualquer sistema de signos que serve de meio de comunicação individual, e entre indivíduos, e que pode ser percebido pelos órgãos dos sentidos. Não se pretendeu, ao longo presente artigo, enfocar questões mais profundas relativas à concepção do desenho enquanto linguagem. Já há autores de renome que se debruçaram e vêm se debruçando sobre esta temática assaz relevante para o desenvolvimento da reflexão sobre a história do desenho.

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MUSEU DE ARTE MODERNA DO RIO DE JANEIRO.Coleção Gilberto Chateaubriand: o desenho moderno no Brasil. Rio de Janeiro: MAM, 1995.

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CONTRIBUIÇÕES DA LINGÜÍSTICA TEXTUAL PARA O ENSINO-APRENDIZAGEM DA LEITURA/

ESCRITA

Girlene Lima Portela*

RESUMO: O presente texto aborda as contribuições da Lingüística textual para o ensino-aprendizagem da leitura/escrita, por meio de uma discussão teórica que dá conta de variados contextos, apontando caminhos para a utilização dos postulados da matéria em questão nas aulas de língua e redação.

PALAVRAS-CHAVE : Lingüística textual, Ensino-aprendizagem, Escrita.

RÉSUMÉ: Le présent texte traite des contributions de la Linguistique textuelle pour l’enseignement-apprentissage de la lecture/écriture, au moyen d’une discussion théorique qui rend compte de contextes variés, démontrant des cheminements pour l’utilisation des postulés de la matière en question dans les cours de langue et de rédaction.

MOTS CLÉ: Linguistique textuelle, Enseignement-apprentissage, Écriture.

*Universidade Estadual de Feira de Santana

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UM BREVÍSSIMO HISTÓRICO

A partir do esquema proposto acima, podemos asseverar que a Lingüística Textual nasceu na Europa, mais especificamente na Alemanha, nos anos 60 e teve por objetivo “descrever os fenômenos sintáticos e semânticos presentes nos enunciados” (KOCH, 1996, p. 11). Na década de 80, ela passou a ser conhecida no Brasil, sobretudo a partir dos trabalhos de KOCH (UNICAMP) e de MARCUSCHI (UFPE).

Europa (Anos 60, 80)

Problemas de ordem textualCharolles; Vigner; Adam

Estruturas textuais(van Dijk)

Critérios de textualidade(Beaugrande e Dressler)

Fenômenos sintáticos e semânticos(Alemanha, França)

Brasil (Anos 80)

Critérios de textualidade(Koch, Marcuschi)

São PauloRecife

História da Lingüística Textual

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Como podemos observar, no esquema acima, a Lingüística textual preocupa-se com o texto e suas ações lingüísticas (conhecimentos gramaticais e enciclopédicos), cognitivas (conhecimentos guardados a curto, médio e longo termo) e sociais (contratos e convenções determinados por uma dada sociedade), as quais estão envolvidas em sua organização (pesquisa de idéias), produção (planejamento), compreensão (análise e síntese) e funcionamento (intenção/aceitação) no meio social.

Considerando-se esses postulados, podemos dizer que as ações lingüísticas, cognitivas e sociais ajudam a explicar o objeto de estudo da LT - o TEXTO - em sua globalidade (produção/compreensão/reprodução), uma vez que tais dimensões nos facultariam das condições necessárias para a compreensão dos processos de escrita, a saber, o planejamento, a revisão e a escrita de um texto, o que facilitaria o desenvolvimento de ilimitadas leituras/escritas/reescritas sobre uma dada temática, enriquecendo assim o nível de produção escolar.

Contudo, a produção de textos escolares foge totalmente a

ações lingüísticascognitivas

sociais

OrganizaçãoProdução

CompreensãoFuncionamento no meio social

O texto

Objeto de estudo

OBJETO DE ESTUDO DA LINGÜÍSTICA TEXTUAL

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observância acima proposta. Preocupados com essa desvalorização da complexidade que encerra uma tarefa de leitura/escrita, muitas pesquisas foram desenvolvidas sobre essa temática, a exemplo do projeto “A circulação de textos na escola (...)” , coordenado por Chiappini (1998).

De acordo com alguns pesquisadores do referido projeto, nos cursos de língua portuguesa, pouquíssimos foram os professores que demonstraram preocupação com a leitura e com a escrita de textos ou ainda com a qualidade do material adotado pelas escolas.

Sobre o tipo de ensino de leitura/escrita, concluiu-se que a leitura se faz de forma magistral: o professor escolhe um texto proposto por um livro didático e os alunos, um após outro, decodifica os símbolos de cada parágrafo sem uma discussão ou análise do que se está lendo.

Sobre a escrita, a situação é ainda mais grave, pois os professores não ensinam seus alunos a escreverem nem mesmo sugerem atividades que valorizem a escrita, como veremos mais adiante.

Sobre a utilização do material didático adotado, verificou-se que o tipo de texto que circulava nas escolas pesquisadas se tratava única e exclusivamente de textos didáticos e didatizados e que os livros adotados se constituíam em material auto-suficiente para o estudo da língua, pois eles não incitavam a consulta de outros materiais, como por exemplo, dicionários, gramáticas, antologias, obras integrais, etc.

Considerando-se essa situação problemática de ensino-aprendizagem da leitura/escrita, observemos, a seguir, como os postulados da Lingüística textual poderiam contribuir para a mudança de atitudes dos professores de língua e redação e como a observância desses postulados poderia melhorar o nível do ensino-aprendizagem dessas matérias.

O TEXTO E SEUS FATORES DE TEXTUALIDADE

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Se considerarmos as palavras de Lispector (s/d), quando ela assevera que “escrever é como construir um galinheiro de ripas no meio de um furacão”, constataremos como é complexa a tarefa de escrita e daríamos mais importância a essa fundamental atividade para o desenvolvimento de escritores mais preparados não só para o mercado de trabalho, mas também para os concursos, que eles farão, na busca de melhores oportunidades. Assim, discutiremos, a seguir, o que vem a ser um texto e como ele se configura num todo coeso, coerente, eficiente e eficaz naquilo a que ele se propõe, seja informar, persuadir, denunciar ou divertir.

O que é um texto ?

Um texto é tudo aquilo que comunica algo, seja ele oral, escrito, visual ou musical. Do ponto de vista oral e escrito, o texto se constrói a partir de mecanismos sintáticos e semânticos, os quais são responsáveis pela produção do sentido.

De acordo com Chareaudeau (1992), o texto pode ser concebido como “[...] a manifestação material (verbal e semiológica: oral/gráfica, gestual, icônica, etc.) de um ato de comunicação, numa situação dada, para servir de projeto de fala de um dado locutor” (p. 645). (Tradução livre).

Texto e intertexto

Podemos ainda considerar o texto como objeto cultural, produzido a partir de certas condicionantes históricas em relação dialógica com outros textos (Fiorin, 1996).

Segundo Barthes (1991), o texto serve a redistribuir a língua. Uma das vias dessa redistribuição é a permuta de textos, seus fragmentos, que existiriam ou existem ao redor do texto fonte, e, por fim, dentro dele mesmo; todo texto é um intertexto, uma vez que outros textos estão presentes nele, em vários níveis, sob formas mais ou menos reconhecíveis.

Entendido como um tecido polifônico que entrecruza fios

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dialógicos de vozes que polemizam entre si, se completam ou respondem umas às outras, o texto, na concepção bahktiniana, tem, na função intertextual, uma dimensão de primazia em detrimento do textual, pois é através dela que as vozes falam e polemizam, reproduzindo, a partir do texto, o diálogo com outros textos.

Texto e intertextualidade

De acordo com Kristeva (1966), a intertextualidade seria o encontro de duas vozes, ou seja, quando ocorre um diálogo entre os muitos textos de uma (ou várias) cultura(s) que se instala no interior de cada texto e o define ocorre tal fenômeno, que vem a ser um ponto de intersecção de muitos diálogos, cruzamento de vozes oriundas de práticas da linguagem socialmente diversificadas, que têm, no texto, sua realização.

Na perspectiva da Lingüística textual, a intertextualidade sempre foi vista como um dos critérios de textualidade de considerável relevância. Muitos trabalhos já deram conta desse fenômeno como coadjuvante na construção/reconhecimento da tipologia textual e do estabelecimento de novos sentidos. Dentre estes trabalhos, destacam-se aqueles produzidos por Koch (1986, 1991, 1994, 1997) e Portela (1999) os quais procuram estabelecer critérios para uma melhor compreensão desse fenômeno.

Outros fatores convergem para a textura de um texto ou enunciado, a saber, a coesão, a informatividade, a situacionalidade, a aceitabilidade (que está atrelada à intencionalidade) e demais fatores pragmáticos, normalmente centrados nos usuários, os quais serão explicitados a seguir.

Texto e coesão

A coesão ocorre quando a interpretação de algum elemento do discurso é dependente de um outro, ou seja, quando um elemento pressupõe o outro, no sentido de que ele não pode ser efetivamente decodificado exceto por referir-se ao outro. Quando isso ocorre, a relação de coesão é estabelecida, e os dois elementos, o que

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pressupõe e o pressuposto, são pelo menos integrados num texto (HALLIDAY e HASAN, 1979).

De acordo com Costa Val (1995), a coesão seria a manifestação lingüística da coerência, ou seja, ela resulta da maneira como os conceitos e relações subjacentes são expressos na superfície textual.

Já segundo Fávero (1996), os fatores de coesão servem a dar conta da estruturação do texto e os fatores de coerência servem ao processamento cognitivo deste.

Texto e coerência

A coerência resulta da configuração que assumem os conceitos e relações, os quais são preponderantes para o sentido do texto. De acordo com Van Dijk (1973), ela está no nível global do texto e daria conta, de um lado da macoestrutura e, de outro, da microestrutura textual.

A macroestrutura seria a forma lógica subjacente ao texto e que corresponderia a uma representação geral da significação da produção, já a microestrutura se manifesta por meio de relações localizadas de conexão mútua entre os enunciados. Esse microcomponente seqüencial daria conta dos vínculos inter e intrafrasais, manifestos através de fenômenos como a recorrência de morfemas, a pronominalização, o emprego de conjunções e verbos, que representariam, na superfície, as relações semânticas da macroestrutura profunda.

De outro lado, podemos considerar os significados locais de cada enunciado como dependentes do significado global articulados na macroestrutura semântica, uma vez que a representação semântica de um enunciado não seria determinada pelos enunciados precedentes ou subseqüentes e sim pelo princípio global, subjacente, que persiste em todos os enunciados do texto.

No texto “Introdução aos problemas de coerência dos textos”, Charolles (1996) faz um estudo sobre coerência e coesão, sem diferençá-las, uma vez que para ele a coerência é global. O

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que, para alguns, é coesão, para Charolles, trata-se de coerência microestrutural; o que outros chamam de coerência é, para ele, coerência macroestrutural.

Retomando-se os estudos de Beaugrande e Dressler (1981;1983), de Halliday e Hasan (1979) e aqueles de Charolles (1996; 1997) constatar-se-á que o primeiro apresenta os sete princípios da textualidade, o segundo aborda a coesão e o terceiro prioriza a coerência.

No Brasil, encontramos muitos trabalhos sobre os fatores de textualidade, sempre baseados nos pesquisadores ingleses e franceses, a exemplo daqueles desenvolvidos por Koch e colaboradores e por Fiorin que, em um de seus estudos, apresenta cinco níveis de coerência (a narrativa, a argumentativa, a figurativa, a espacial e a do nível de linguagem utilizado), a saber :

a) intratextual, aquela que diz respeito à compatibilidade, à adequação, à não-contradição entre os enunciados do texto;

b) extratextual, aquela que diz respeito à adequação entre o texto

e uma “realidade” exterior a ele.

Finalmente, ele aponta seis fatores que contribuem para dar coerência a um enunciado: o contexto, a situação de comunicação, o conhecimento de mundo, as regras do gênero, a conotação e o intertexto. (FIORIN, 1997).

Os fatores pragmáticos da textualidade

Embora a maioria dos autores, aqui apresentados, considerem a intertextualidade um fator de ordem pragmática, preferimos destacá-lo dos demais fatores, pois a nosso ver ele se configura num elemento essencial para a produção, apesar de considerarmos também que os demais fatores são de extrema importância para a construção da textualidade.

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Uma vez que os fatores pragmáticos estão diretamente ligados à relação produtor-interlocutor, explicitaremos abaixo, os fatores que dão conta dessa relação dialógica.

Texto e informatividade

A informatividade é avaliada em função das expectativas e dos

conhecimentos dos usuários. Para Beaugrande e Dressler (1981), esse fator de textualidade tem a ver com grau de novidade e de previsibilidade, pois quanto mais previsível, menos informativo será o texto para determinado usuário, porque acrescentará pouco às informações que o recebedor já tinha antes de processá-lo.

Os usuários tenderiam a rejeitar tanto os textos que têm, para eles, informatividade alta demais, porque são muito difíceis (ou impossíveis) de serem entendidos quanto aqueles que lhes parecem óbvios, porque pouco acrescentam aos conhecimentos já adquiridos pelo interlocutor do enunciado.

Segundo os autores supracitados, um grau mediano de informatividade seria o mais confortável, porque permitiria ao recebedor apoiar-se no conhecido para processar o novo. Por outro lado, para os autores, funcionaria melhor um texto que alternasse zonas de baixa informatividade com zonas de alta informatividade, porque, no processamento desse texto, o recebedor teria que agir no sentido de alçar ou rebaixar informações, levando-as ao nível mediano, para integrá-las no sentido que está produzindo para o texto, e esse trabalho o manteria envolvido com o texto, interessado no texto.

Nessa perspectiva, a informatividade não é pensada como característica absoluta nem inerente ao texto em si, mas como um fator a ser considerado em função dos usuários e da situação em que o texto ocorre.

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O princípio da informatividade mostra até que ponto uma informação é nova ou não no texto. Tanto o excesso como a escassez de informações novas podem prejudicar o entendimento do texto. Cabe destacar que é nova a informação não recuperável no texto e que constitui um dado a que pode ser recuperada. Facilita a compreensão do texto o conhecimento partilhado, o conhecimento de mundo, com algum grau de similaridade, do remetente e do destinatário.

Texto e situacionalidade

A situacionalidade refere-se a fatores que dão relevância a um texto numa dada situação comunicativa. O texto vincula-se às circunstâncias em que interagimos com ele e sua configuração aponta a utilidade e a pertinência dos nossos objetivos.

Assim, a situacionalidade se configura como um princípio importante para a constituição da textualidade, já que a coesão, a coerência, a informatividade e as atitudes/disposições de produtor e recebedor (intencionalidade e aceitabilidade) são funções do modo como os usuários interpretam as relações entre o texto e sua situação de ocorrência: o sentido e o uso do texto são decididos via situação (BEAUGRANDE e DRESSLER, 1981, p. 10).

Esse conceito não se resume às circunstâncias empíricas em si, mas de atividade dinâmica, que envolve monitoramento e gerenciamento contínuos da interação comunicativa, por parte do produtor e do recebedor, uma vez que as ações discursivas não se prendem só às evidências perceptíveis, mas sobretudo “às perspectivas, crenças, planos e metas dos usuários”,... (BEAUGRANDE e DRESSLER, 1981, p. 179).

Texto e aceitabilidade

A aceitabilidade está relacionada à atitude do receptor frente aos textos, se têm relevância ou utilidade para ele. Tal princípio depende da intencionalidade, relacionada à atitude do autor que busca apresentar um texto coerente e coesivo. O remetente

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tenta criar um texto que tenha sentido, e o destinatário o recebe como algo com sentido. Há quem considere que não existe texto incoerente, uma vez que, pelo princípio da cooperação, o receptor esforça-se para dar um sentido ao texto e tenta encontrar coerência nele.

Assim, a aceitabilidade de um texto dependeria menos de sua correção, em termos de correspondência ao “mundo real”, e mais da credibilidade e relevância que lhe são atribuídas numa determinada situação. (Sobre o assunto, consultar KOCH, 1996,1997 e COSTA VAL, 1996).CONTEXTO TEÓRICO-PRÁTICO : ANÁLISE DE ALGUNS FATORES DE TEXTUALIDADE

De acordo com Hayes et Flower (1980), para escrever/entender um texto é preciso que se tenha uma meta, a qual deve estar intimamente ligada a textualidade, pois os fatores nelas expressos servirão para um planejamento e uma execução que leve a um bom resultado.

Nessa perspectiva, o escritor precisa se ater aos princípios e ainda se antecipar ao seu leitor na formulação de eventuais dúvidas, revisando seu texto para eventuais correções, pois ler/escrever um texto pode ser comparado a uma resolução de problemas, uma vez que se deve planejar o modo pelo qual o texto escrito será lido.

Sobre as condições de produção de um texto, Geraldi (1997) diz que, seja qual for a modalidade, o aluno precisa ter o que dizer e ter uma razão para dizer. Assim, o interlocutor e as estratégias do que será dito devem estar bem definidas.

O sentido de um texto está na observância dos seus fatores de textualidade, como pudemos constatar no contexto anterior. Observados tais fatores, teríamos condições de fazer ilimitadas leituras/escritas/reescritas sobre um tema, o que enriqueceria o nível de produção escolar.

Contudo, a produção de livros escolares foge totalmente a observância acima proposta. Na maioria dos cursos de língua portuguesa, pouquíssimos são os professores que demonstram

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preocupação com a leitura ou com a escrita ou ainda com a qualidade do material adotado pelas escolas.

Uma pesquisa feita por Garcez (1998), em Brasília, demonstra que a relação dos 72 alunos pesquisados com a escrita pode ser assim descrita:

Segundo Garcez (op. cit.), esses dados revelam que um dos obstáculos que serve a bloquear a competência escrita dos alunos é a falta de experiência, pois, na grande maioria dos casos, os alunos admitem que escrevem raramente, seja em casa seja na escola.

Nesse contexto, apresentaremos, abaixo, quatro fragmentos de textos, analisando brevemente alguns fatores de textualidade discutidos anteriormente, considerando-se o caráter interativo e dialógico da produção textual.

Para iniciarmos as análises, tomemos, por exemplo, o texto Gênesis de Caetano Veloso, que retoma, através dos recursos da informatividade e da intertextualidade, o texto bíblico de mesmo nome, para estabelecer um diálogo entre os textos e seus interlocutores.

Vemos, nesse fragmento, alguns argumentos (em itálico) que se fundam na intencionalidade (refletir sobre o texto bíblico). Nesse intuito, o autor generaliza um caso particular (a criação do Universo) para estabelecer uma relação entre a reflexão (intenção) e a estrutura do real socialmente construído (aceitação): (a fé nos postulados bíblicos).

Observemos também o papel da coerência, que nesse caso seria

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uma coerência em nível discursivo. Através do uso das palavras parafuso e confuso e da expressão espírito de tudo, o autor parodia o texto original.

Lembremos também o papel da informatividade. Um leitor que desconheça o papel da paródia na produção textual dirá que esse é um texto incoerente, pois tais escolhas estão destoantes do contexto religioso do texto bíblico.

Assim, podemos concluir que, como defende Beaugrande e Dressler (1981), a coerência está centrada no leitor, e também, nesse caso, no ouvinte da canção, pois serão eles a estabelecer o grau de coerência do texto.

Sobre a coesão, Veloso utiliza os conectivos aditivos e (para concluir seus argumentos) e nem (para dar idéia de falta, de ausência), o conectivo adversativo mas (significando que, apesar do caos (céu então confuso), o espírito de tudo (ou Deus) consegue colocar ordem.

Encontramos ainda a elipse (Ø céu era então confuso), os pronomes indefinidos tudo e nada, indicando caos e ordem, etc., entre outros recursos que poderão ser encontrados numa análise mais pontual, a qual será feita oportunamente.

Além desses recursos, observemos ainda a analogia (uso de exemplos) e da metáfora (comparação) para facilitar a compreensão do assunto. O texto em questão foi estruturado de modo a explicar algo desconhecido ou algo não-familiar por meio de algo familiar, estabelecendo-se uma relação de similitude entre duas relações que unem duas entidades.

Continuando as análises, tomemos alguns fragmentos dos textos Canção do exílio (1 e 2) e Nova canção do exílio, retiradas do manual didático Lições de texto - leitura e redação (p. 69), de autoria de Platão e Fiorin para exemplificar o recurso da intertextualidade.

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Nesses exemplos, observamos a oposição ou contraste, que visam a explicar fatos, idéias, comparando-se e apontando-lhes as diferenças. Vejamos :

a) descreve-se o elemento comparante. Em seguida, os elementos

comparados, apontando os contrastes (palmeira/macieiras; Brasil/Califórnia; sabiá/gaturanos);b) desenvolvem-se as idéias, comparando-as ao mesmo

tempo apontando os contrastes (Beleza e exaltação da fauna e da

flora brasileira/Degradação dessa beleza e crítica a essa

exaltação/ingenuidade).Nos exemplos citados, a intertextualidade se coloca como

condição prévia para a produção/recepção de textos. Neles, as paráfrases e as paródias se constituem em fatores decisivos para o processamento textual, sejam eles canções, narrativas ou poemas, os quais envolvem conhecimentos, crenças e ações explícitas e implícitas no material verbal e a interpretação que o recebedor faz delas, a partir de seus modelos prévios de mundo.

Como vimos, a produção e a recepção de textos devem ser observadas a partir de funções textuais de natureza lingüística e extralingüística, organizadas em quatro categorias, a saber, a contextualização, a coesão, a coerência e a conexão de ações. (MARCUSCHI (1983).

Para finalizar esse estudo, visualizemos, a partir do esquema abaixo, como ocorre o fenômeno da textualidade.

Compreensão e funcionamento

Informatividade Situacionalidade

Intertextualidade Coesão e coerência

Organização

Intencionalidade Aceitabilidade

Produção

Texto e textualidade

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CONCLUSãO

Como pudemos perceber, a observância dos fatores de textualidade, propostos pelos analistas textuais, assim como os fatores cognitivos, propostos pela Didática da escrita, poderiam contribuir grandemente para a melhoria da qualidade das aulas de escrita, através de métodos mais sistemáticos de análise de textos e de estratégias que valorizassem a tessitura textual.

REFERÊNCIAS

CHIAPPINI, L. et al. A circulação de textos na escola: Um projeto de formação-pesquisa. v. 1, 2, 3. São Paulo: Cortez, 1998.

FIORIN, J. L. Elementos de Análise do Discurso. Análise de textos de 2° grau e vestibular. Como aproveitar a leitura e a produção de texto literário. São Paulo: Contexto, 1996.

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______. e SAVIOLI, F. P. Lições de texto: Leitura e redação. São Paulo: Ática, 1997.

______. Para entender o texto. Leitura e redação. São Paulo: Ática, 1992.

GARCEZ, L. H. C. A escrita e o outro. Brasília : Editora Universidade de Brasília, 1998.

GERALDI, J. W. Escrita, uso da escrita e avaliação. In: Geraldi (Dir.) O texto na sala de aula. São Paulo : Ática, 1997.

HALLIDAY, M. A. K. e HASAN, R. Cohesion in spoken and written English. London: Longman, 1976.KOCH, I. G. V. O texto e a construção de sentidos. São Paulo: Contexto, 1997.

______. O desenvolvimento da Lingüística textual no Brasil. In: D.E.L.T.A., v. 15, n.º especial, p. 165-180, 1999.

______. Text Linguistics. In: Revista Virtual de Estudos da

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HERBERTO SALES: O ROMANCE E A BUSCA DE SI

MESMO

Ângela Vilma S. Bispo Oliveira*

RESUMO: O presente artigo pretende estudar o romancista baiano Herberto Sales nas relações que permeiam e entrecruzam vida e obra. Trata-se de estabelecer uma visão panorâmica da obra romanesca do escritor para, a partir daí, encontrarmos o autor nas particulares do sujeito biográfico; o memorialista, pois que sua obra ficcional traz cifrados rastros e vivências particulares em meio a memória de uma coletividade; e, principalmente, o prosador – homem que, na busca incansável de si mesmo, transforma o que viveu e o que poderia ter vivido em objeto estético.

PALAVRAS-CHAVE: Ficção, Memória, Autobiografia.

RESUMEN: Este texto pretende estudiar al novelista bahiano Herberto Sales, en las relaciones que atraviesan su vida y su obra. Se trata de estabelecer una vision panorámica de la obra novelística del escritor para, a partir de ese punto, encontrar al autor en las particularidades del sujeto biográfico; el memorialista, ya que su obra ficcional trae cifrados rastros y vivencias particulares aliadas a la memoria de una coletividad; y, principalmente, el prosador – hombre que, en busca incansable de si mismo, transforma lo que vivió y lo que podria haber vivido en objeto estético.

PALABRAS-CLAVE: Ficción, Memoria, Autobiografía.

*Mestre em Teoria da Literatura (UFPE) Doutoranda em Teoria da Literatura (UFPE)

Foi no primeiro livro de memórias que Herberto Sales

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revelou o quão autobiográficas se faziam a sua relação com o conto, gênero no qual se firmou utilizando alguns dos instrumentos de romancista. Disse ele que para fazer um conto bastava-lhe “escrever um dos mil e um desimportantes episódios” com que ao longo do tempo vinha compondo a sua autobiografia, permitindo com que nelas tomassem parte as pessoas que conheceu e que recordava.1 Tal afirmação vem ilustrar as nítidas relações autobiográficas existentes na obra desse escritor - fato que nós já constatamos na sua contística, quando percebemos como o conto e o romance, assim como toda sua obra, estão entrelaçados, revelando a forte ligação às suas raízes e aos lugares em que viveu.2 É como prolongamento de estudo que podemos conjecturar o que abarca a obra desse romancista – sua vida, memória e arte literária se conjugam numa fronteira movediça e instigante.

Sabe-se o quanto as relações entre a biografia de um escritor e a narrativa curta se estreitam, haja vista as pulsações individuais que as cercam; nesse caso, lembramos também a poesia - formas idiossincráticas em que se denotam com mais evidência as relações de parentesco entre os acontecimentos existenciais e a literatura. Já o romance não nos permite, com muita evidência, tal afirmação, pois que a afluência de vias e percursos, aquela multiplicidade romanesca que possibilita várias histórias se entrelaçarem e personagens diversos se delinearem, nos põe num certo distanciamento da voz autoral, pessoal. O escritor como que se dissemina em diversidade de vozes e pessoas, desdobrando-se em muitos, em outros, em diversos, tornando quase que impossível encontrar sua fisionomia, aquela que costumamos chamar de biográfica. Nos labirintos do espelho – que é o romance – o escritor e sua imagem se transformam em fragmentos, onde por instantes pensamos vê-lo e o que detectamos são outros, ou quiçá ele mesmo, o autor, encarnado numa legião.

Herberto Sales sempre afirmou “escrever com sinceridade”. Nas entrevistas, constantemente relatou as relações presentes entre seus livros e sua própria vida. Neles, fatos emergem como de um sonho: voláteis e presentes, os acontecimentos de sua existência permeiam a narrativa, seja ela romance, conto, ensaio e

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aquilo que, em falta de um outro nome, chamamos de literatura infanto-juvenil. Nessa vasta obra, caminhos e descaminhos do escritor se encontram, e o romancista é mesmo o homem - naquilo que busca de possível unidade diante do múltiplo e indecifrável de sua condição; memorialista – pois que não consegue esquecer o seu passado, sua família, seus mortos; e, principalmente, é o prosador, porque transforma em material estético o que viveu, perseguindo a “verdade da alma” nos meandros feéricos daquilo que poderia ter sido e que não foi.

Tudo o que quero é ser realmente eu mesmo. Tenho de voltar de mim mesmo, para em mim mesmo ficar.3

Sou um habitante do passado, estrangeiro em terras do presente e do futuro.4

Literatura não é apenas o que é feito com arte literária. É, também, o que se faz com a verdade da alma.5

Nos restos perdidos de mim busco o outro que não fui e que não sou.6

“Um homem em busca de si mesmo, indisfarçável e puro”, assim o definiu Austregésilo de Athayde,7 quando da publicação da trilogia herbertiana de memórias. Depois de uma constante perseguição de si na obra ficcional, Herberto Sales resolve pôr termo em suas confissões, existenciais e factuais, nos três volumes memorialísticos de sua bibliografia. Neles, o homem assina deliberadamente a confissão, permeada muitas vezes da literariedade que a deixa suspensa e da verdade crua que a desestabiliza. Na obsessão pela sinceridade, mostra-se assim como é, e dele, do homem Herberto Sales, podemos endossar aquela definição que o mesmo fez a respeito de um outro escritor, amigo seu.

... Era um homem inteiro em suas duas metades: nas suas antipatias e nas suas simpatias. Um raro ser humano fiel a si mesmo nos seus extremos. Não brincava em serviço nos seus ódios. E dava plantão em sua gratidão.8

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Como reiterou Cid Seixas, “Herberto xinga com raiva e beija com amor” e “não abraça quando brigar devia, pois que, “assim como o escritor, o homem não é invernizado por fora”.9 Essa personalidade forte vai influenciar a divulgação da obra, explicando talvez o silêncio atual que desce sobre sua literatura e seu nome. O homem e o escritor pagam um preço “alto” por dizer “certas verdades”, sendo legado, pela mídia e mercados editoriais, a um esquecimento que nos perturba, motivando-nos ao trabalho amoroso e justo de “dizê-lo”, “contá-lo”. Essa é uma reação natural do leitor que se encontra na memória do outro, na literatura que promove o reencontro “com o que temos em nós de mais profundo e verdadeiro”, como bem assinalou Herberto,10 sendo que nela, na obra que lemos, “nos identificamos em nossas convicções mais profundas, em nossas dúvidas e inquietações”.11 Assim, nessa relação crítica, que também permeia o autobiográfico, nos situamos como seres que se ficcionalizam, adentrando como personagens da narrativa que se encontra em permanente construção.

Como leitores, o escritor escolhido por nós se transforma num ser especial, pois que é muito difícil separar a obra, que nos identificamos, do autor que a escreveu. Estamos, quase todo o tempo, buscando a pessoa em meio a escrita; sabemos que o homem é o arquiteto dos vestígios, diluindo suas pegadas nas fronteiras, seja do sonho, seja da palavra materializada. Por mais que o autor tente se esconder entre as páginas, intuímos que sua história pessoal de alguma maneira se espraia e flui, evanescente ou cristalizada. Simulacro que encena a própria alteridade,12 a literatura aqui funciona como enigmática busca do autor. A variante da crítica como história policial, proposta pelo argentino Ricardo Piglia, situando o crítico como “decifrador de oráculos” e o escritor como “o delinqüente que apaga suas pegadas e cifra seus crimes”,13 nos possibilitará a investigação de Herberto Sales, que, nas interfaces do romance, busca a si mesmo e se esconde. Sua presença persiste, não atrás do texto - como bem assinalou Roland Barthes - mas perdido no meio dele.14 A vida do autor

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torna-se a composição da ausência, rastro que não autentica sua passagem, tampouco legitima acontecimentos vividos, mas que, ao tempo em que flutua e se dissipa, permanece como uma sombra. E é essa sombra que perseguimos ao revisitarmos seus diários, documentos, entrevistas dadas, e, principalmente, em meio a seu romance. Perscrutando aquelas “verdades da alma” – enviesadas e perversas – que coabitam os enredos e artifícios literários, notamos que sua figura se impõe e a relação que temos com ela é tão espessa quanto a tentativa de totalizá-la. É assim que entramos no reino do romanesco, configurando as formas enigmáticas e múltiplas das leituras que empreendemos sobre o mundo.

Numa entrevista, ao ser questionado sobre a sua relação com o garimpo, projeto do primeiro livro (Cascalho – 1944), e se o mesmo acreditava na feitura romanesca a partir de uma pesquisa deliberada ou, ao contrário, a partir de uma experiência natural, espontânea, de fatos vividos e assistidos, Herberto Sales afirmou que “cada pessoa que tem que escrever um romance”, na verdade, de alguma maneira, ela “já traz dentro de si os romances que tinha de escrever”. Esses romances surgem a partir de circunstâncias que envolvem o escritor, configurando-se como uma “superposição, uma sedimentação de vivências”.15 Explicando, com tal afirmação, a gênese de Cascalho, dela nos apropriamos para agregá-la à gênese de todos os seus outros romances, tão bem contados por ele na sua trilogia memorialística.

É imperioso dizermos aqui, mais uma vez, que a obra de Herberto Sales, em temas e formas, acompanhou seus percursos biográficos. De Cascalho (1944) a A Prostituta (1996) – último romance -, visualizamos aqueles caminhos por ele percorridos. Nascida de uma relação visceral com a vida, tal obra vem confirmar a posição do escritor diante de uma época, de sua existência e de sua criação literária. Nesta se insere, sim, o autor que a escreveu, munido de uma identidade particular, a despeito de tal identidade ser quase sempre - em sua narrativa, como em todas as narrativas - uma procura constante e, possivelmente, sem solução. Muito mais, nessa literatura se insere, sim, o homem, seus personagens são todos

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nós, impressos nos abismos da perplexidade e da mais compassiva ironia, pois que é a tessitura humana que a perpassa.

Pouco sabemos de nós – e vivemos. É o que nos sugerem as entrelinhas da prosa herbertiana, que, dizendo passado e presente, possibilita-nos visualizarmos os caminhos do homem, do prosador e do memorialista, confirmando a certeza de que a obra literária traz a vida do escritor, mas ultrapassa-a, vai além. Essa mobilidade do eu, que se mostra e se esconde, e que faz da biografia uma encenação é o que mais nos interessa. Aqui Herberto Sales dá a mão a Mnemosyne, a deusa da memória, e canta o que foi, mas também o que poderia ter sido. Ou melhor, o que poderá ainda acontecer. Nesse tríplice caminho, presente, passado e futuro se encontram eivados de possibilidades, iluminados pela ficção.

Encontrar Herberto Sales, o andaraiense que viveu e testemunhou uma época, e que buscou retratá-la num romance comprometido com a denúncia social, nas linhas e entrelinhas de Cascalho, livro de 1944, totalmente reescrito em 1951, torna-se tarefa instigante quando, debruçados sobre sua obra, percebemos nele já nítidos aqueles “sinais particulares” que irão marcar a sua dicção literária - não obstante a tentativa de desaparecimento - a partir de romances tão aparentemente distintos entre si. Nesse livro, escrito quando o autor tinha 24 anos, vimos a história centrada na sua terra natal, Andaraí, na qual histórias de garimpos e garimpeiros são contadas a partir da motivação do autor em denunciar as mazelas ali presenciadas. O depoimento humano-social ganha realces de crônica regionalista, onde a denúncia perpassada pelas páginas, na voz de um narrador aparentemente distante, perfaz-se num tom não planfetário, permitindo assim que as desigualdades sociais ali expostas ganhem notoridade nas variadas perspectivas estabelecidas pelo narrador. O autor quer esconder-se e ao mesmo tempo dizer-se, pois que sua vida está lá, inscrita na mobilidade e no desaparecimento, em meio àquela vida de garimpeiros:

... Todos três estavam agora curvados sobre a pedra que Zé de Peixoto tinha na mão. Dizer da ansiedade,

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do alvoroço e do atordoamento deles, é impossível. (...). (grifo nosso) 16

... Encontram-se como que encurralados no âmago da gruna – seres insignificantes ao lado das grandes rochas úmidas e escuras, sobre as quais vêem projetadas suas próprias sombras. (...). (grifo nosso)17

Em 1961, com a publicação de Além dos Marimbus, segundo romance, encontramos o mesmo e outro Herberto – vemos os seus “sinais particulares”, porém a estrutura é distinta de Cascalho. Nesse romance, escrito sobre a exploração madeireira de sua terra, percebemos exacerbada a preocupação com a forma artística, já prenunciada em Cascalho. Se este se fazia nos moldes memorialísticos dos contadores de histórias nordestinos, Além dos Marimbus nasce de um rigor visual na forma, apesar de não abandonar o cerne memorialístico. Nesses dois livros, o autor está escondido na voz de um narrador aparentemente distante, “disfarçado” na terceira pessoa do discurso indireto livre.

Um desconhecido cruzava agora aquelas paragens: Jenner. De casaco e culote de brim cáqui, chapéu de abas largas, e coturnos, conservava-se atento à mata que se descortinava além dos marimbus. (...).18

* * *... E nessa personagem central [Jenner] talvez haja também um pouco de mim, por conta das reminiscências da minha viagem às matas. (...).19

Com Dados Biográficos do Finado Marcelino (1965), é outro o narrador que se pronuncia. A partir desse livro ficamos mais próximos do escritor, do homem e do memorialista Herberto Sales. Com a pretensa finalidade de contar a vida e a morte de um tio com o qual conviveu na época de sua adolescência, quando de Andaraí se transportou para estudar em Salvador, o narrador, entabulado na primeira pessoa do discurso, se posiciona, delineando a sua própria memória biográfica. A riqueza do “disfarce”, e da

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possível confissão do escritor, vem confirmar o entrelaçamento desse romance com os anteriores e, também, com as obras que virão depois. Nesse amalgamar de existências, percebemos a reiteração temática, estilística, a migração de personagens, todo o diálogo possível que nos ajudará a compreender a obra, o homem, o escritor. Funcionando como um divisor de águas, Dados Biográficos do Finado Marcelino nos traz o Herberto citadino, mas enraizado ainda à terra, alvo de suas reminiscências e presença decisiva em sua formação humana.

Andava pelos treze anos quando conheci meu tio Marcelino: era a primeira vez que eu ia a Salvador. Três dias antes deixara Andaraí, minha terra natal, em companhia de um comprador de diamantes, o Sr. Gumercindo, velho amigo de meu pai. A viagem enchera-me o coração de alvoroço. Com tamanha alegria eu partira – e mamãe chorava tanto ao abraçar-me! – que os abalos da separação logo se diluíram na idéia daquela experiência nova e fascinante: ia conhecer a Capital. (...).20

É, a seguir, com o intuito de fazer um romance sobre seus antepassados que o escritor inicia as primeiras anotações que irão desaguar num livro publicado oito anos após a idealização - Os Pareceres do Tempo (1984). É importante situá-lo aqui, cronologicamente, a fim de percebemos como a história pessoal de Herberto se posiciona diante do fazer literário - história de uma vida recorrendo aos enviesados caminhos da verossimilhança, naquilo que abarca como possibilidades desentranhadas. Na verdade, Os Pareceres do Tempo requeria algo maior de seu autor, e ficou à espreita da melhor oportunidade de urdidura. E antes disso acontecer, Herberto escreveu e publicou dois livros que bem dirão das circunstâncias por ele vividas nas épocas datadas: 1976 e 1983, respectivamente O Fruto do Vosso Ventre e Einstein, O Minigênio. Ele, Herberto Sales, era diretor do Instituto Nacional do Livro e, por isso, vivenciador do burocratismo que desumaniza as relações

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entre os homens. Nas reuniões que participava, vivia a anotar tolices para compor os dois romances. O Dicionário das Idéias Feitas flaubertiano de alguma maneira está inscrito nessa crítica atroz que Herberto faz às instituições sociais e seu jargão tecnocrático. É aqui que o riso, tão presente nesse escritor-contista, começa a pulsar. Lembremos que em estudo anterior nosso,21 descobrimos que o contista Herberto Sales nasceu no intervalo após a publicação de Dados Biográficos do Finado Marcelino e antes da aparição de O Fruto do Vosso Ventre. No livro de contos, Histórias Ordinárias (1966), já começamos a visualizar a mordacidade dessa crítica social com os contos Conselho e Ordem de Pagamento. Contos que anunciaram os romances seguintes. Riso que desabrocha cruel e positivo, pois que somado à sátira e à piedade - humor intuindo uma ternura pela nossa triste e engraçada condição humana.

A publicação seguinte é mesmo Os Pareceres do Tempo. Romance que compõe, a partir de alusões, a genealógica história do autor, ao restituir, ficcionalmente, dois personagens de sua família, Policarpo Golfão e Liberata. Confidenciou ele no livro de memórias:

... O meu Policarpo só tem que ver é com o meu antepassado Policarpo. Assim mesmo em linhas gerais de origem. Porque, enquanto o meu antepassado gastou todo o dinheiro que tinha, apostando a alma no baralho, e para isso indo de canoa São Francisco abaixo São Francisco acima em busca de parceiros, o Policarpo do romance é o desbravador romântico de Cuia d’Água. (...)22

Para fazer este “romance de família”, Herberto foi em busca de uma linguagem antiga e criou um cronista com a aparência de um estilo oitocentista, situando a história no Brasil colonial. Afirmou o escritor que aqui “a História foi apenas um prego” onde pendurou o seu romance,23 sugerindo com tal declaração a intencionalidade visceral do escritor - o resgate de sua história pessoal, ainda que o romance se desvincule por si mesmo da intenção do autor e nos deixe ver e refletir a história nacional,

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através das complexas relações que determinaram nossa formação. Assim, as fronteiras entre o imaginário e o real, entre a história e a literatura estão vinculadas aos meandros da verossimilhança, aos desejos de representação, aliadas ao lirismo de um terceiro olho, que tudo vê:

Finalmente, ainda com o sol alto, entreviu Policarpo o acampamento, através da discreta folhagem dumas árvores. Havia uma clareira, onde os índios moviam-se lentos e descuidados, entregues aos seus quefazeres índios deles: ralavam mandioca, com mandioca faziam cauim, que bebiam, e farinha, que comiam. Três índias entreteciam cipós sentadas, acalentando no regaço uns balainhos que iam nascendo. Um índio soprava uma flauta de bambu; da flauta escorria uma música triste, que ia pingando tristeza em tudo. Era uma cena tão pura e essencial, tão embebida na essencialidade das coisas, com a mata rodeando calada e toda em verdor os índios, que parecia um começo de mundo: um mundo começando com um sopro de flauta.24

Em 1986, com A Porta de Chifre, Herberto Sales traz de volta a crítica mordaz à sociedade robotizada, iniciada com os contos de Histórias Ordinárias e, principalmente, com O Fruto do Vosso Ventre, romance que ele intitulou como marco do seu “apocalipse particular”.25 Disfarçado em “relato anticientífico”, A Porta de Chifre nos mostra uma Amazônia devastada em virtude das irresponsabilidades humanas. O futuro se instala com crueldade (a história é situada no ano de 2352, começando exatamente no dia do aniversário do autor, 21 de setembro) e o resultado é o pior possível. O Herberto cruel, “castigador”, como bem o definiu Antonio Olinto,26 aqui é mordaz e, ao mesmo tempo, humano, terno, piedoso, com tão frágeis destinos.

Se o escritor, de 1988 a 1991, dá uma pausa nos romances a fim de escrever a trilogia memorialística, podemos encontrar, entre o primeiro livro de memórias, Subsidiário – Confissões, Memórias

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e Histórias (1988) e o segundo, Andanças por umas Lembranças (1991), um pequeno romance intitulado Na Relva da tua Lembrança (1988), escrito quase que paralelamente ao primeiro livro de memórias. Nesse romance, em tudo diferente dos anteriores, o escritor quebra com o classicismo de sua escritura, tentando, como ele mesmo afirmou, “captar na escrita não a forma, mas a emoção”,27 desfazendo propositalmente de tudo o que sabia fazer e fazia:

Vírgulas, travessões, em geral toda a parafernália diacrítica, e também todo o material convencional de apoio escritural romanesco, os calços dos advérbios, os parafusos das conjunções, os andaimes marcadinhos da marcação das personagens, peguei tudo e joguei para o ar e no ar fiz desaparecer tudo, (...).28

Nesse romance, corrosivo e ao mesmo tempo lírico, a poesia se instala para “segurar a barra dos parricidas”,29 filhos desnaturados que resolvem matar os pais a fim de se verem livres destas “inúteis” criaturas. Narrado em primeira pessoa, o narrador é um velho que presencia tais acontecimentos do mais fundo de sua solidão. Escrito quando o autor tanto refletia sobre a dor de envelhecer, Na Relva da tua Lembrança apresenta-se como uma doce e trágica alegoria dos destinos humanos. Nele, os vestígios do escritor são evidentes - cenas, palavras e concepções dialogam com obras anteriores, tornando-se nítida a sua voz, que já é outra e a mesma, encenação que nos desestabiliza à medida em que nos promove o encontro com o autor. O narrador inicia a história dizendo que o que ali vai contar “pouco importa saber em que lugar se passou”, e no segundo parágrafo, situa-se sentado numa pedra, “na beira do rio” - já conhecida do leitor herbertiano - , pedra que virava navio infâncias afora:

A pedra onde eu costumava me sentar ficava num desses trechos de areia. Muitas vezes imaginava que ela era um barco ancorado ali, e que eu era o comandante do barco. Não estava mais em idade de imaginar coisas

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assim, ter esses pensamentos de menino. Mas o menino que a gente um dia foi não há meio de largar a gente: fica escondido na memória da gente, fundo e escuro poço sem fundo, onde ele, o menino que a gente foi, de vez em quando vem à tona e fica boiando, como uma flor.30

No livro infanto-juvenil do autor, O menino perdido (1984), num capítulo intitulado “O castelo que virava navio”, lá está a mesma pedra:

Fui direto ao areal, onde havia uma pedra muito grande, uma pedra enorme, que era o castelo de brinquedo do menino. (...)Às vezes, a pedra deixava de ser um castelo. E virava um navio, que ia navegando no mar de areia, rompendo as ondas de areia. Ao leme ia o menino, comandante que fazia o seu navio apitar, apitando com um canudo de mamão. Sim. O menino costumava estar ali, no seu castelo ou no seu navio. Mas agora não estava. Tinha de procurá-lo em outro lugar. (...).31

Não obstante a localização afetiva, nostálgica, vimos, até aqui, que a preocupação localista inicial do escritor torna-se, com o decorrer de sua escritura, diluída, tendo Andaraí, terra natal, explicitamente ambientada nos dois primeiros romances, Cascalho e Além dos Marimbus, se transformado, a partir daí, simbolicamente, no “mundo todo”, adquirindo um teor universalizante. Herberto Sales deixou sua terra e fixou residência no Rio de Janeiro, em decorrência do sucesso que envolveu o primeiro romance. Foi assim que outros ambientes surgiram, seguindo a trajetória do escritor. As origens telúricas cederam lugar às preocupações com o homem citadino, emergindo a crítica às instituições sociais na figura caricata do ser robotizado e desumano, possuidor da linguagem uniforme. Porém, como já dissemos, detalhes de suas origens permanecem diluídos no cerne de sua literatura. Sentimos o quanto a terra continua presente em si, pois que faz parte de sua história pessoal, juntamente com o seu passado, sua família,

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seus mortos. Entretanto, estava faltando um regresso explícito a Andaraí - regresso intenso a si mesmo -, ocorrido no nono romance do escritor, Rio dos Morcegos (1993).

Tradução féerico-literária de uma cidade (Andaraí em tupi-guarani significa, etimologicamente, rio dos morcegos), esse romance é uma busca proustiana do autor nos lugares que sonhou e viveu as duas fases mais intensas: a infância e a juventude. Andaraí surge feericamente iluminada pelas dolorosas perguntas de um adolescente que se debruça o tempo todo sobre si mesmo e o mundo, entranhado nas complexas perseguições de um sentido para a vida. Fatos emergem de uma neblina poética e, de quando em quando, o diálogo com Cascalho e outros livros, assim como com os três volumes de memórias do escritor, se avultam. Porém, aqui o que importa é outra coisa: não mais a denúncia social de Cascalho, pois que, em Rio dos Morcegos, Andaraí surge disfarçada naquele desdobramento sutil e invisível existente entre as fendas de uma cidade e o homem, e que envolve as nuanças psicológicas de deciframento do eu. Percebemos, assim, nesse romance, como uma biografia autoral se encena, se ficcionaliza, e os mistérios da vida e da morte são pontos que nos empurram à busca dos enigmáticos abismos de uma individualidade.

... Pedras do meu caminho. Por toda parte, inumeráveis e gerais, as pedras que me viram nascer, com os seus opacos olhos de pedra. O horizonte montanhoso, pedras bloqueando meus passos. A serra com os seus morros altos era um desafio, um enigma: muralha de rumos e ventos. Aonde ir? Que havia além da serra, minha prisão de pedras? Grandes pedras mudas me espreitavam: os gigantes de pedras dos meus medos infantis, das minhas incertezas de adolescentes. Pedras. (...)32

Essa busca de si prossegue ainda no penúltimo romance, Rebanho do Ódio (1995) livro-exorcismo, como o próprio autor proclama nas primeiras páginas, à maneira de uma indicação inicial

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para o leitor:

A quem me vai ler, quero aqui lembrar que uma vida longa (muito longa) faz sofrer a gente: os amigos vão morrendo, os afetos apodrecendo. De repente, só resta mesmo de cada um de nós a gente: nós sozinhos, somente nós, cercados de mágoas que magoam a gente. E então é preciso exorcizá-las, se queremos entrar de coração aliviado e limpo na eternidade.

A história se desenrola em São Pedro da Aldeia-(RJ) e se debruça sobre as complexas relações familiares, quando nelas estão envolvidas questões de fortuna e herança, ódio e mágoa. Entretanto, o livro poderia estar muito bem situado em Andaraí, ou, como disse o autor, em qualquer lugar, desde que nesse lugar o ódio assuma “uma forma diferente”, “insinuando semelhança (ou identidade) entre uma impressão presente e uma lembrança aparentemente morta do passado”.33 Percebemos que os fatos narrados, nesse romance, são pura ficção, mas os sentimentos que perpassam pelas páginas são fortes o suficiente para revelarem os desvãos biográficos de uma alma,34 as tristezas de um homem em perplexidade com a velhice, com o tempo e com as pessoas se desmascarando sem ilusões.35 Ficam, no ar e nas entrelinhas, a ressoar as palavras acima do escritor, confidenciando ao leitor sentimentos de sua história pessoal, de seu passado mais íntimo.

Com A Prostituta, em 1996, Herberto Sales se despede, deliberadamente, do romance. Esse livro é a história da prostituta Maria Corumba, remanescente criada pelo escritor, da família de Os Corumbas, em homenagem ao romance de Amando Fontes que muito o impressionou, quando de sua leitura em Andaraí. Na verdade, a partir da criação do personagem, diz Herberto estar, muito mais, voltando à juventude, quando foi estudar em Salvador e ligou-se à boemia, em detrimento dos estudos. Nessa fase tão intensa, tinha o autor uma forte ligação com as prostitutas, e, resolvendo falar dessa fase, não poderia deixar de lado aquelas que ele denominou “irmãzinhas” e que fizeram parte de sua mocidade:

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A Prostituta sempre foi o livro que quis escrever. Quando era estudante, tive uma vivência enorme com prostitutas. Eu saía da pensão na quinta-feira e ficava dois, três dias na casa de uma delas. Era viciante, uma coisa extraordinária. Elas eram gente boa, maravilhosa, simples. (...) Eu queria falar da minha experiência como estudante e falar sobre mim sem elas não seria interessante.(...).36

Aliando vida e obra, mais uma vez, com esse livro Herberto Sales se despede do romance. Nas orelhas de A Prostituta, no texto-confissão “O romancista, para as despedidas”, o autor afirma ser esse livro, “de modo absoluto”, “a liberação de lembranças obscuras de sua vida, nas saudades machadeanas de si mesmo, numa hora em que em si mesmo se recolhe, invocando a misericórdia de Deus”. Nessa confissão, o autor se despede, deixando para nós, leitores, as interrogações do que foi e do que é uma vida, nas entrelinhas ficcionais do que aconteceu ou poderia ter acontecido - literatura como tentativa de fixar-se enquanto individualidade, somada ao enigmático sortilégio de poder também ser outro a fim de negar a desintegração do ser, a morte. Não é à toa que o autor, nas páginas iniciais desse último romance, confessa a sua múltipla condição humana, situada entre as diversas “verdades da alma”:

Sabe-se que cada homem é um ser múltiplo, e cada estado de alma seu é uma realidade à parte, sem perder no conjunto a sua totalidade anímica. Ou a sua unicidade intrínseca. Eu sou o mesmo romancista (a mesma alma) em cada um dos entre si tão diferentes romances que escrevi.

NOTAS

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1 SALES, Herberto. Subsidiário - confissões, memórias e histórias, p. 491.

2VILMA, Ângela. A tessitura humana da palavra – Herberto Sales, Contista.

3 SALES, Herberto. Op. Cit., p. 430.

4 SALES, Herberto. Subsidiário 3 - Eu de mim, com cada um de mim, p. 307.

5 Idem, p. 198.6 Idem, p. 274.

7 ATHAYDE, Austregésilo de. Herberto Sales, perfil de um homem. In: Subsidiário 3, p. 116.

8 SALES, Herberto. Subsidiário 2 - Andanças por umas lembranças ., p. 218.

9 SEIXAS, Cid. O riso da metralhadora. Do Cascalho ao Diamante. In: Triste Bahia, Oh QuãoDessemelhante, p. 117.

10 SALES, Herberto. Subsidiário - Confissões, memórias e histórias p. 67. Assim definiu o “bom escritor”: “O bom escritor é o que nos seus livros nos leva a um reencontro com o que temos em nós de mais profundo e verdadeiro”.

11 SALES, Herberto. Subsidiário 2, p. 139.

12 ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário.

13 PIGLIA, Ricardo. O laboratório do escritor, p. 72.

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14 BARTHES, Roland. O prazer do texto, p. 38.

15SALES, Herberto. O depoimento. In: LEAL, Eneida. Eu, Herberto Sales, pp. 11-14

16 SALES, Herberto. Cascalho, p. 116.

17 Idem, p. 292.

18 SALES, Herberto. Além dos marimbus, p. 8.19 SALES, Herberto. Subsidiário - confissões, memórias e histórias, p. 111.20 SALES, Herberto. Dados biográficos do finado Marcelino, p. 7.

21 VILMA, Ângela. Op. Cit.

22 SALES, Herberto. Subsidiário – Confissões, memórias e histórias, p. 391.

23 Idem, p. 391.

24 SALES, Herberto. Os pareceres do tempo, p. 365-366.

25 SALES, Herberto. Subsidiário – confissões, memórias e histórias, p. 457.

26 In: SALES, Herberto. Subsidiário 3 - Eu de mim com cada um de mim.

27 SALES, Herberto. Subsidiário 2, Andanças por umas lembranças, p. 121.

28 Idem.

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29 Idem, p. 118.

30 SALES, Herberto. Na relva da tua lembrança, p. 7-8.

31 SALES, Herberto. O menino perdido, p. 11-13.

32 SALES, Herberto. Rio dos morcegos, p. 27.

33 SALES, Herberto. Rebanho do ódio. Palavras do autor impressas nas páginas iniciais do romance, à maneira de pórtico.34 GUIMARÃES, Márcia. Herberto Sales: O ódio sob a ótica amarga. In: A Tarde Cultural, 30-09-95.

35 SALES, Herberto. Subsidiário – confissões, memórias e histórias, p. 290. Afirmou desconsoladamente o autor: “(...) Estou envelhecendo. E a velhice é feita de desilusões. De desilusões filosóficas, que levam à descoberta da verdade humana. Ou da verdade sem ilusões.”

36 SALES, Herberto. Entrevista concedida a Marielson Carvalho. A Tarde Cultural. Salvador, 20-09-1997.

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1999.

CARVALHO, Marielson. Herberto Sales (entrevista). In: A Tarde Cultural. Salvador, 20-09-1997.

GUIMARÃES, Márcia. Herberto Sales – O ódio sob a ótica amarga. Sobre as salinas do litoral fluminense, uma história de herança, intriga e solidão. In: A Tarde Cultural. Salvador, 30-09-

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1995.

ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário. Perspectivas de uma antropologia literária. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996.

PIGLIA, Ricardo. O laboratório do escritor. São Paulo: Iluminuras, 1994.

SALES, Herberto. Além dos marimbus. São Paulo: Círculo do Livro, s/d.

______. Cascalho. São Paulo: Círculo do Livro, s/d.

______. Dados biográficos do finado Marcelino. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.

______. Eu, Herberto Sales – Entrevista concedida a Eneida Leal. Rio de Janeiro: Cátedra, 1978.

______. Na relva da tua lembrança. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.

______. O menino perdido. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1984.

______. Os pareceres do tempo (Edição revista pelo autor). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.

______. Rebanho do Ódio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.

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MODERNISMO: ÉTICA X ESTÉTICA

Maria Tereza Carneiro Lemos*

RESUMO: A partir da avaliação do movimento modernista feita por Mario de Andrade e Oswald de Andrade nas conferências “Movimento modernista” e “O caminho percorrido”, na década de 40, busco uma compreensão da questão ética que, segundo os autores, estava ausente na proposta modernista tornando o movimento “gravemente precário”. O desinteresse pelos problemas sociais e políticos de sua geração gerou um “conformismo legítimo”, nas palavras de Mario de Andrade, e acabou por criar, nos seus discursos, um confronto entre o valor estético e ético na arte.

PALAVRAS-CHAVE: Modernismo, Ética, Estética.

ABSTRACT: From the analysis of modernism made by Mario de Andrade and Oswald de Andrade on the lectures “Movimento modernista” and “O caminho percorrido”, given in the 40’s, I look for an understanding of the ethical question which, according to the authors, was missing in the modernist proposal, turning the movement into a “seriously precarious” one. According to Mario de Andrade, the lack of attention given to social and political problems of his generation created, in his own words, a “legitimate resignation” and ended up provoking, in his speeches, a confrontation between the aesthetical and ethical values in the Arts.

KEY WORDS: Modernism, Ethics, Esthetics.

*Doutoranda em Literatura Brasileira – PUC-RJ

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A década de 40 foi bastante significativa na avaliação do movimento modernista, principalmente no que se refere ao testemunho deixado pelos dois grandes expoentes do movimento: Mário de Andrade, na conferência o “Movimento modernista” proferida no Itamarati, em 1942, e Oswald de Andrade, na conferência “O caminho percorrido” proferida em Belo Horizonte, em 1944. Ambos, distantes 20 anos da revolução da qual foram os grandes protagonistas, sentiram-se impelidos a deixar para a posteridade os seus testamentos intelectuais. As conferências acabaram se tornando, também, uma reavaliação confessional dos dois autores, considerando-se que cada um abordava de forma bem diversa e pessoal seu caminho percorrido.

Gostaríamos de expor aqui, não exatamente uma análise comparativa entre as duas conferências, nem tampouco nos ater a uma análise pessoal, mas ressaltar um ponto convergente que curiosamente surge no discurso dos dois autores: a questão ética.

Oswald de Andrade, depois de ter gradualmente perdido espaço junto à intelectualidade brasileira, usou parte do seu discurso para defender-se do ostracismo e de alguns desentendimentos que surgiram com o tempo, acabando por imprimir à sua fala egocentrismo e ressentimento, valorizando seus feitos e sua mágoa.

Se alguma coisa eu trouxe das minhas viagens à Europa dentre duas guerras, foi o Brasil mesmo. O primitivismo nativo era o nosso único achado de 22 (...). A Antropofagia foi na primeira década do modernismo, o ápice ideológico, o primeiro contato com nossa realidade política porque dividiu e orientou no sentido do futuro. 1

O discurso é marcado pela semântica da guerra e do combate, em que o autor ataca, com seu conhecido deboche, os seus inimigos que surgem contra os seus “aliados”.

Quem havia de publicar essa carta senão a ratazana

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em molho-pardo que é o Sr. Cassiano Ricardo? Nesse documento vem à tona o estado de sítio que proclamaram contra mim os amigos da véspera modernista de 22. Pretendia-se que eu fosse esmagado pelo silêncio, talvez por ter lançado Mário de Andrade e prefaciado o primeiro livro de Antônio de Alcântara Machado. (...) Tudo isso teria um vago interesse anedótico se não viesse elucidar as atitudes políticas em que se bipartiu o grupo oriundo da Semana. Comigo ficaram Raul Bopp, Oswaldo Costa, Jaime Adour da Câmara, Geraldo Ferraz e Clóvis Gusmão. 2

Este espírito de guerra, muito ao gosto futurista, reflete o próprio espírito destruidor que dominou o modernismo paulista em que Oswald parecia ainda estar imerso. Atitude que destoa essencialmente da de Mário de Andrade que, numa confissão marcada pela humildade e coragem, minimizava seus atos e o próprio movimento do qual tornou-se o grande ícone, apresentando as contradições do afã destruidor modernista: “o movimento modernista foi essencialmente destruidor. Até destruidor de nós mesmos” (p. 240). Livre de autodefesas e ressentimentos, Mário de Andrade reavalia o movimento, expondo questões que possibilitam uma nova leitura do modernismo paulista.

Numa longa análise do passado com os olhos do presente, Mário confessa que, na verdade, eles, modernistas de 22, tinham “apenas servido de altifalantes de uma força universal e nacional muito mais complexa que [eles]”. E não deixa de mostrar um descompasso entre as atitudes do seu grupo e a realidade brasileira, desmistificando os heróis do movimento:

Todo esse tempo destruidor do movimento modernista foi pra nós tempo de festa, de cultivo imoderado do prazer. E se tamanha festança diminuiu por certo nossa capacidade de produção e serenidade criadora, ninguém pode imaginar como nos divertimos. 3

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No entanto, reconhece a indiscutível importância do movimento que, mesmo com todo o cultivo imoderado do prazer, e distante da “dor” real do país, não foi o fator das mudanças políticas e sociais posteriores a ele, mas acabou sendo um “preparador” dessas mudanças, e um “criador de um estado de espírito revolucionário e de um sentimento de arrebatação”. E defende o papel da sua geração como preparadora do espírito de liberdade que dominou a geração de 30.

Resume em três princípios básicos, a nova realidade que o modernismo criou: o direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência artística nacional. O primeiro princípio representa a liberdade de experimentação conquistada pelos artistas brasileiros que, à exceção dos românticos, “jogaram sempre colonialmente no certo. Repetindo e afeiçoando estéticas já consagradas, [eliminando] assim o direito de pesquisa, e conseqüentemente de atualidade.” (p. 243).

O espírito destruidor veio da Europa (“é muito mais exato imaginar que o estado de guerra da Europa tivesse preparado em nós um espírito de guerra, eminentemente destruidor” p. 235) como veio da Europa “o espírito modernista e as suas modas” (p. 236), mas Mário defende-se: chamá-los de “antinacionalistas” ou “antitradicionalistas europeizados” era “falta de sutileza crítica”. E defende São Paulo com exemplos da tradição regionalista do estado, como a arquitetura e o urbanismo neocolonial nascidos também lá, até concluir “Desta ética estávamos impregnados”(p. 235). A ética nacionalista.

Paralelamente ao afã destruidor que dominava esses artistas, o nacionalismo representou a grande construção modernista, e está aí a atitude ética: a construção de símbolos, imagens e instrumentos que representam valores (nacionais) e rejeitam antivalores (estrangeiros). Nas palavras de Alfredo Bosi:

A translação do sentido da esfera ética para a estética é possível, e já deu resultados notáveis, quando o narrador se põe a explorar uma força catalisadora da vida em

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sociedade: os seus valores. À força desse ímã não podem subtrair-se os escritores enquanto fazem parte do tecido vivo de qualquer cultura. 4

A estética nacionalista junto à pesquisa da “língua brasileira”, que confrontava os fortes valores nacionais aos fracos antivalores estrangeiros, eliminava o academismo reinante tanto no tema quanto na linguagem das artes naturalistas dominantes, e ao mesmo tempo procurava construir uma outra realidade através das artes. No entanto, Mário não vê no nacionalismo modernista, a “verdadeira consciência da terra”. Este espírito atualizado que se radicava na terra brasileira, “não se deu sem alguma patriotice e muita falsificação ...” gerando um “conformismo legítimo”, e observa:

o que caracteriza essa radicação na terra, num grupo numeroso de gente modernista, de uma assustadora adaptabilidade política, palradores de definições nacionais, sociólogos otimistas, o que os caracteriza é um conformismo legítimo, disfarçado e mal disfarçado nos melhores, mas na verdade cheio de uma cínica satisfação. A radicação na terra, gritada em doutrinas e manifestos, não passava de um conformismo acomodatício. 5

Completa que “a verdadeira consciência da terra levava fatalmente ao não- conformismo e ao protesto” (p. 244). O modernismo paulista no seu afã nacionalista e festivo, acabou se desviando desta “verdadeira consciência”, quando representou o Brasil de forma simbólica e otimista. Desmistifica também a construção da “língua brasileira” que, por falta de critérios científicos adequados, acabou reduzida a manifestações individuais, aderindo-se também a um certo espírito festivo. Mário conclui: “era ainda o mesmo caso dos românticos: não se tratava duma superação da lei portuga, mas duma ignorância dela.”6

Inserido agora no contexto mundialmente conturbado da 2º guerra, em que o engajamento tornava-se uma questão ética,

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Mário acabava muitas vezes reduzindo o seu movimento a um conformismo infantil. Na verdade, a rígida autocobrança que faz é em relação ao engajamento social e político, ou o interesse pelo humano, que o seu movimento não teve. A estética se faz através da arte que é uma expressão do social:

Mas a inteligência estética se manifesta por intermédio de uma expressão interessada da sociedade, que é a arte. Esta é que tem uma função humana, imediatista e maior que a criação hedonística da beleza. E dentro dessa funcionalidade humana da arte é que o assunto adquire um valor primordial e representa uma mensagem imprescindível. Ora, como atualização da inteligência artística é que o movimento modernista representou papel contraditório e muitas vezes gravemente precário. 7

O segundo princípio, da “atualização da inteligência artística brasileira”, por apresentar contradições profundas em relação às necessidades sociais e políticas, parece ser, segundo Mário, a grande falha do movimento. Diferente da “liberdade de pesquisa estética” que lida com a forma, a técnica e a beleza na arte, a “atualização da inteligência” lida com a dimensão mais ampla da arte, ou seja, com a “força interessa da vida”. E conclui a sua conferência:

Si tudo mudávamos em nós, uma coisa nos esquecemos de mudar: a atitude interessada diante da vida contemporânea. (...) uma coisa não ajudamos verdadeiramente, duma coisa não participamos: o amilhoramento político-social do homem. E esta é a essência mesma da nossa idade”8

E cobra da arte sua missão ética:

Sei que é impossível ao homem, nem ele deve abandonar os valores eternos, amor, amizade, Deus, a natureza. Quero exatamente dizer que numa idade humana como a que vivemos, cuidar desses valores apenas e se refugiar

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neles em livros de ficção e mesmo de técnica, é um abstencionismo desonesto e desonroso como qualquer outro (...) De resto, a forma política da sociedade é um valor eterno também.9

E aponta o movimento de 30 como aquele que deixa de lado o caráter destruidor e assume uma construção de “uma fase mais calma, mais modesta e quotidiana, mais proletária” (p. 242). Agora, em 1942, o caráter construtivo da arte tornava-se uma questão premente. O espírito destruidor das vanguardas parecia já se desgastar e a arte deveria, mais do que nunca, realizar sua função social e política.

O embate, ao final da conferência, ganha um caráter de conclamação revolucionária: “Façam ou se recusem a fazer arte, ciências, ofícios. Mas não fiquem apenas nisto, espiões da vida, camuflados em técnicos de vida, espiando a multidão passar. Marchem com as multidões.”(p. 255). O que se assemelha às palavras de Oswald de Andrade, em Belo Horizonte, que de maneira ardentemente revolucionária, conclama os intelectuais como os guerreiros da sociedade:

Com a guerra, chegamos aos dias presentes. E os intelectuais respondem a um inquérito. Se a sua missão é participar dos acontecimentos. Como não? Que será de nós, que somos as vozes da sociedade em transformação, portanto os seus juízes e guias, se deixarmos que outras forças influam e embaracem a marcha humana que começa? O inimigo está vivo e ainda age (...) O papel do intelectual e do artista é tão importante hoje como o do guerreiro de primeira linha.”10

Da mesma forma, conclama os mineiros a se unirem a seus irmãos paulistas no combate heróico em prol da utopia e estende o seu chamado a todos os irmãos brasileiros:

Tomai lugar em vossos tanques, em vossos aviões, intelectuais de Minas ! Trocai a serenata pela

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metralhadora ! Parti em espírito com os soldados que vão deixar suas vidas na carnificina que se trava por um mundo melhor. (...) Vinde com vossos irmãos de São Paulo, com vossos, com vossos irmãos do Norte e do Sul, fazer com que se cumpram os destinos do Brasil ! 11

Os dois discursos terminam conclamando os homens (intelectuais) à revolução. Enquanto Mário, em 1942, julgava o passado de forma às vezes cruel, cobrando uma atitude que não foi possível realizar 20 anos antes, Oswald, imbuído da ideologia marxista, apontava para um futuro revolucionário.

A primeira literatura modernista, sendo uma literatura de resistência aos valores artísticos vigentes era implicitamente resistente aos valores ideológicos que determinavam esta arte. Mas este fenômeno de resistência se fazia como um processo inerente à escrita e não como tema dessa escrita. É compreensível que Mário, em 1942, quando analisava o primeiro modernismo, tivesse percebido que, depois da literatura de 30 a sua geração tornava-se anacrônica política e socialmente. Os valores que nortearam a arte desta primeira geração estavam sem dúvida mais ligados ao fenômeno estético do que ao fenômeno ético da resistência.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

1ANDRADE, Mario de. O movimento modernista. In.: Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, p. 96, s/d.

2ANDRADE, Oswald de. O caminho percorrido. In.: Ponta de lança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 96, 1972.

3ANDRADE, Mario de. O movimento modernista. In.: Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, p. 241 s/d.

4BOSI, Alfredo. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia

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das Letras, p. 120, 2002.

5ANDRADE, Mario de. O movimento modernista. In.: Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, p. 243, s/d.

6Idem, p. 245.

7Idem, p. 252.

8Idem, p. 252.

9Idem, pp. 252, 255.

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O ESBOÇO HISTÓRICO-ETNOGRÁFICO-LINGÜÍSTICO DE UM POVO INDÍGENA

Maria do Socorro Pessoa*

RESUMO: O povo indígena Suruí Paíter reside hoje, em sua maioria, no Distrito do Riozinho, no Município de Cacoal, no Estado de Rondônia, Brasil. Esse povo sofreu todo o processo de invasão de suas terras por colonos imigrantes, especialmente quando da construção da BR 364, rodovia que liga o Estado de Mato Grosso a Porto Velho. O contato com os imigrantes provocou alterações profundas na vida desse povo nos mais diversos aspectos: cultura, religião e instalação da língua portuguesa no cotidiano de suas vidas. Este esboço histórico-etnográfico-lingüístico descreve alguns aspectos dessa “invasão” na vida dos Suruí Paíter do Riozinho, no Estado de Rondônia.

PALAVRAS-CHAVE: Suruí Paíter, Percurso Sociolingüístico, Lingüística.

ABSTRACT: Suruí Paíter indian people live today in Riozinho District, nearby Cacoal, in Rondônia in Brasil. This Indian people suffered all the process of invasion in their area by immigrant people, specially when BR-364 was built.This BR-364 conect Mato Grosso State to Porto Velho. The contact with immigrant people made several changes in Suruí Paíter life like: the culture, religion and the use of Portuguese language in their life. This historic-etnographic-linguistic text describe some aspects about the “invasion” in Suruí Paiter people from Riozinho District, in Rondônia state.

KEY WORDS: Suruí Paíter, Sociolinguistic Way, Linguistic.

*Profª. Drª da Universidade Federal de Rondônia - UNIR Campus de

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Vilhena1 INTRODUÇãO

Os indígenas residentes em Rondônia, desde os primeiros contatos com os imigrantes vindos de todas as partes do Brasil para a região, assistiram a surpreendentes mudanças. Entre essas mudanças a mais marcante foi a construção da Rodovia Cuiabá-Porto Velho, hoje denominada BR-364. Com a conclusão da BR-364 abriu-se o caminho para a imigração de pessoas que buscavam o “Eldorado Rondoniense”, propagado em toda a mídia nacional pelo Governo Brasileiro. Em conseqüência, a população de Rondônia passou de 85.504 pessoas em 1960, para 111.064 em 1970 e 490.153 em 1980 (IBGE, Censo Demográfico, 1960 a 1981). O maior crescimento ocorreu, porém, na década de 1970, o que fez com que as cidades ao longo da BR-364 crescessem assustadoramente, dando à região motivos mais que suficientes para conflitos e lutas. Percebe-se, assim, que era inevitável que, com tal crescimento, a luta pela terra ocorresse desenfreadamente, iniciando-se, infelizmente, a ocupação das áreas indígenas, cujas terras foram sendo comprimidas e ameaçadas, num cerco cada vez mais fechado de violência, lutas e conflitos. Como se não bastasse toda a usurpação territorial e a conseqüente eliminação física de milhares de indígenas, os não-índios desenvolveram e utilizaram armas mais sutis de dominação e massacre, nos mais diversos domínios dos povos indígenas, inclusive no âmbito da cultura. Não foi diferente com o povo Suruí Paíter, nosso objeto de pesquisa.

Os Suruí, residentes no Distrito do Riozinho, têm como língua materna a Língua Suruí, do grupo de línguas Tupi-Mondé, usada na vida tradicional da comunidade.A bibliografia sobre esta nação indígena é praticamente inexistente, mas DAL POZ (1991, p. 25) nos fornece dados relevantes quando explicita:

... a bibliografia sobre os Suruí é ainda escassa. Os missionários W. C. Bontkes, do Summer Institute of Linguistic, durante vários anos estudaram sua língua (Bontkes 1978, apud Moore 1984,p. 8), e obtiveram

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alguns dados sobre organização social e parentesco (BONTKES 1974). Os missionários Lori Altmann e Roberto Zwetsch (1980), da IECLB, traçaram um histórico dos contatos e um relato sumário de suas observações ao longo de um ano de permanência entre eles. Betty Mindlin, que os pesquisou entre 1979 e 1983, apresentou uma descrição despretenciosa do modo de vida Suruí, na qual destacou o sistema de nominação e a instituição do ritual de metades, que divide o grupo entre “mato” e “aldeia” a cada estação seca (MINDLIN, 1985). Quanto à mitologia, incluiu alguns fragmentos míticos. Dados escatológicos esta autora havia publicado anteriormente (MINDLIN, 1982). Os Suruí foram ainda estudados por Carlos Coimbra (1985), interessado em ecologia humana, e por Leda Leonel (1984), quanto à arquitetura e meio-ambiente.

Segundo o CIMI (Conselho Indigenista Missionário), em documento de 1998, o primeiro contato do povo Suruí Paíter com a sociedade envolvente deu-se em junho de 1969, através da FUNAI, no acampamento Sete de Setembro, fundado no dia 07 de Setembro de 1968 (daí a origem do nome de uma das aldeias do povo Suruí Paíter). O contato foi feito pelo sertanista Apoema Meirelles e seu pai, ambos pertencentes à FUNAI. O lugar onde ocorreu o primeiro contato é chamado, pelos Suruí Paíter de “Nambekó-dabadaki-ba”, que significa “o lugar onde os facões foram pendurados”, numa referência aos presentes que Apoema Meirelles e seu pai ali deixaram para os indígenas: machados, facões, panelas, facas e canivetes. Em 1969 os Suruí Paíter eram, aproximadamente, 4.000 índios. De 1970 a 1974, sua população reduziu-se a aproximadamente 600 pessoas: muitos morreram por causa de sarampo, gripe e tuberculose. Suas terras foram constantemente invadidas e essa questão só foi resolvida definitivamente em 1981, com a retirada dos posseiros da área Sete de Setembro (FUNAI, 2002). Atualmente, os Suruí Paíter formam um grupo de cerca de 740 pessoas que habita nas fronteiras dos Estados de Rondônia e Mato Grosso, no parque Aripuanã,

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com extensão de 220.000 hectares e onde estão instalados dois postos da FUNAI: o PIN Sete de Setembro e o PIN Linha 14. A área original do parque Aripuanã era, na verdade, um território contínuo que englobava os vários grupos Tupi-Mondé que formam um grande complexo cultural (DAL POZ, 1991). Suas terras, por estarem muito próximas da BR-364, estão cercadas por colonos, e, por isso, os Suruí Paíter sempre foram muito vulneráveis aos efeitos da colonização. Na época do contato, a população Suruí Paíter foi calculada em 600 pessoas, por Jean Chiappino (1971). Nos anos 70, houve muitas mortes causadas por doenças trazidas pelo homem branco, reduzindo-se a população a 272 pessoas. Dos anos 80 até os nossos dias, passou a haver um grande crescimento populacional, e hoje os Suruí Paíter somam cerca de 750 pessoas entre homens, mulheres, crianças, jovens e adultos. Nos anos 80, devido às invasões de suas aldeias por colonos, o povo Suruí se dividiu por grupos familiares, ficando confinado em estradas da área indígena nas Linhas 8, 9, 10, 11, 12 e 14. Na década de 1990, iniciaram o processo de migração para o Distrito do Riozinho à busca de melhorias de vida para seus grupos, especialmente junto ao Posto da FUNAI, com sede ali estabelecida.

1.1 A ALDEIA E O PERÍODO DO PRÉ-CONTATO

Na aldeia o centro da vida era a casa grande, a casa mais importante do Nambekô-dabada-quibá-coco, como é chamado pelos Paíter o conjunto de malocas. Na casa grande, a família vivia e se relacionava como família nuclear – pai, mãe e filhos. Só nos momentos mais importantes, quando faziam uma grande caça, todos se juntavam num ritual de partilha. Os homens caçavam e providenciavam a carne e as mulheres podiam acompanhá-los nessas tarefas. As outras fontes de alimentação vinham da floresta, como a castanha, o mel, os frutos. A tarefa de pescar era de todos: homens, mulheres e crianças. Quando necessitavam prevenir a fartura e a produção, invocavam os espíritos – Hô-êi~-ê-tê – pois, para os Suruí Paíter, a invocação dos espíritos era sempre

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necessária. Antes do contato com a sociedade envolvente, o povo Suruí Paíter utilizava-se apenas da sua língua, o Suruí, em todo tipo de comunicação com seus pares. 1.2 DO CONTATO À ATUALIDADE

Com a criação em 1907 da Comissão de Linhas Telegráficas e Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas (a conhecida Comissão Rondon), por ato do presidente da República Afonso Pena, planeja-se a ocupação sistemática e permanente do noroeste do então imenso Estado de Mato Grosso: além de estender o telégrafo, abrir estradas estratégicas, executar trabalhos geográficos, botânicos e mineralógicos, a Comissão Rondon encarregou-se de “pacificar” as populações indígenas em seu percurso. Os primeiros contatos, nem sempre pacíficos, entre os índios que aí viviam e elementos da sociedade nacional, deram-se em torno das estações telegráficas de Vilhena, José Bonifácio, Barão de Melgaço e Pimenta Bueno, inauguradas pela Comissão Rondon entre os anos de 1912 e 1915 (CIMI, 1998), quando toda a linha de Cuiabá a Santo Antônio do Madeira entrou em funcionamento. Relatos circunstanciados, traçando os diversos surtos pelos quais se deu a colonização de Rondônia e adjacências, e caracterizando os danos causados à população indígena, podem ser encontrados em Meirelles (1984) e Brunelli (1985). Certo é que, apesar de tudo, subsistiu nessa região um número considerável de grupos indígenas, entre eles os Suruí Paíter. No início do contato, os Suruí Paíter foram, em várias situações, confundidos com os Cinta-Larga. DAL POZ (1991, pp.92, 93).

A partir do primeiro contato do povo Suruí Paiter com os não-índios, o intérprete da FUNAI foi de fundamental importância para suas vidas. Era esse intérprete que proporcionava a compreensão da linguagem que os Suruí Paíter careciam ter para suprir as necessidades de comunicação com a sociedade envolvente ou para a comunicação com a própria FUNAI. Com o passar do tempo, já não bastava a comunicação feita pelo intérprete. O povo Suruí Paíter sentia necessidade de aprender a língua daquele intérprete

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para compreender o novo mundo que se estabelecia em suas terras e à sua volta. Nesse sentido, podemos afirmar que, a partir das relações com os intérpretes da FUNAI, a língua portuguesa foi adentrando à comunidade da nação indígena Suruí Paíter. O contato com o homem branco fez com que o povo Suruí Paíter passasse a ter alterados, não só os seus costumes tradicionais, mas também a própria maneira de convivência com seus pares. Ter os costumes tradicionais alterados parece constituir-se um processo “normal” para os olhos da sociedade em nosso país, especialmente quando tais alterações referem-se aos grupos de minorias, muito mais expostos a processos de “devastação” e, ainda, especialmente, se tais minorias são indígenas. Sabemos que o “contato” do indígena com o homem branco sempre foi, historicamente, prejudicial ao primeiro. Heckenberger (2001, p.77) nos confirma como isso ocorreu na região Amazônica:

Na Amazônia, vários povos nativos, muitos dos quais radicalmente diferentes dos que conhecemos hoje, foram dizimados nas primeiras situações de contato (PORRO, 1996; ROOSEVELT. 1991; WHITEHEAD, 1994). Fatores como escravidão, ações punitivas, deslocamentos forçados, além de etnocídio explícito, provocaram a dissolução ou fuga de muitos povos amazônicos logo após os primeiros contatos (KIEMAN, 1954). Entretanto, como em outros lugares da América, os efeitos provocados pela vanguarda da expansão européia – personificada pelos quatro cavaleiros do apocalipse: Praga, Fome, Guerra e Morte – ultrapassaram largamente o contato propriamente dito com os europeus. Mais do que a interação direta, foram as forças indiretas, invisíveis, do “contato” europeu que moldaram a história do contato para a maior parte dos povos amazônicos.

Se não há novidades quanto ao fato de modificações drásticas na vida indígena dos Suruí Paíter, quando comparados com outras nações indígenas que passaram pelo mesmo processo de

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envolvimento com a nova sociedade, há, nesta comunidade, um motivo que se tornou relevante para a Lingüística e, em especial, para o trabalho sociolingüístico: os Suruí Paíter “praticam”, publicamente, um discurso de super-valorização de sua língua, de sua cultura e de sua condição de “ser índios”, mas, na verdade, já há algum tempo exibem um conjunto de comportamentos e práticas, entre eles o uso da língua portuguesa, muito próximos da vida e das ações do homem branco, como detalhado em PESSOA, (2003, p. 54).

Na década de 80, do século XX, os Suruí Paíter iniciaram suas intermináveis viagens da aldeia para o asfalto e do asfalto para as aldeias. Partindo das Linhas 8, 9, 10, 11, 12 e 14, eles passaram a se encontrar no Distrito do Riozinho, permanecendo no Posto da FUNAI por longos períodos de espera, aguardando médicos, remédios, roupas, alimentos. No início iam nus, enfeitados com seus ornamentos significativos para demonstrar situações particulares. Desconsiderando essas ornamentações tradicionais, os agentes da FUNAI foram providenciando roupas para que se vestissem, tomassem banhos de chuveiro, usassem medicamentos da medicina ocidental. Buscar recursos junto ao posto da FUNAI, no Distrito do Riozinho, para continuarem saudáveis, foi o grande motivo, ou senão o motivo inicial da peregrinação que os Paíter iniciaram das aldeias para o Posto da FUNAI. Doenças como a gripe, o sarampo e a tuberculose foram tão letais para os Suruí Paíter que dizimaram muito mais da metade de sua população se observarmos a população existente antes do contato com o homem branco. Todos estão de acordo sobre as mudanças introduzidas com o contato e sobre o fato de que antigamente existiam menos doenças. O período dos primeiros contatos e as epidemias que lhe seguiram é uma lembrança muito viva na memória dos Suruí Paíter, que crêem que, mesmo se, atualmente, estas doenças não têm mais os mesmos efeitos catastróficos de antes, sua saúde foi irremediavelmente afetada pelo contato. Vemos, assim, que os Suruí Paíter têm plena consciência de que as modificações introduzidas pelo contato estão na origem de seus problemas de

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saúde e de pobreza. Mas os costumes dos brancos já invadiram irremediavelmente suas vidas e também suas atuais aldeias. Antes de ir ao “médico”, eles tentaram de tudo, pois em sua cultura vários espíritos comandam os males e as doenças, como por exemplo, aquelas causadas pelas almas dos mortos atormentando o sono dos que os mataram. Mas depois de muito lutar e não conseguir vencer o sarampo e a tuberculose, eles terminaram por aceitar a “enorme ajuda” da FUNAI e passaram a receber medicamentos e consultas no Distrito do Riozinho, a zona urbana cortada pela BR-364, de asfalto novo, que traz imigrantes, novos colonizadores. A aldeia era o espaço natural, onde ficavam muitas mulheres e crianças, aguardando os homens que, sempre juntos, vinham à FUNAI para levar saúde para casa. Com dificuldade em expressar-se em língua portuguesa, sentiram-se forçados a aprender essa nova língua, da qual nada compreendiam ou compreendiam apenas o que haviam aprendido nos primeiros anos de contato. Nem sempre o “intérprete” da FUNAI estava ali para “ajudá-los” em suas reivindicações.

As alterações na vida Suruí Paíter ocorreram com grande velocidade e, rapidamente, o doente em uma família da aldeia já não vinha sozinho ao Posto da FUNAI Quando um índio ficava doente, os demais membros da família acompanhavam-no até o Distrito e lá ficavam até a recuperação de seu parente enfermo. Nas longas esperas por atendimentos diversos aprenderam a comer a comida do branco, aprenderam a comunicar-se em língua portuguesa, aprenderam a entregar madeiras nobres em troca de comida, de roupas, de saúde, de bem estar. Aprenderam, também, a ver as imagens na televisão instalada no Posto da FUNAI, e conheceram outros mundos, viram outras lutas, outros retratos da violência. Já não ficavam sob o luar conversando e brincando. Ficavam sob a luz elétrica, presos à televisão, dormindo em camas, e quando estas faltavam, dormindo ao relento, nas varandas do “ponto de apoio”, como também é conhecido o Posto da FUNAI. Aprenderam, a duras penas, que era preciso viver bem com esse homem branco, “o Yara”, como denominam a comunidade não

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índia, porque esse homem é poderoso, possui armas, carros, televisão, dinheiro. O constante deslocamento do povo Suruí Paíter no vai-e-vem da aldeia para o asfalto e do asfalto para a aldeia é sempre causado pelo conflito: estar no Distrito com saudades da vida livre da aldeia; estar na aldeia sem o conforto da televisão, das comidas compradas nos “boliches” (nome dado às pequenas mercearias do Distrito do Riozinho) e da falta de medicamentos para os filhos. Este vai-e-vem provoca a inserção de elementos não indígenas nas aldeias. É muito comum encontrar, hoje, nas malocas, potinhos de iogurtes, comidas enlatadas (sardinha, margarina, etc.), ao mesmo tempo em que se encontram, nas geladeiras das casas indígenas do Distrito, a carne de macaco, a mandioca, o cará, para as refeições.

O crescente contato dos Suruí Paíter com a sociedade envolvente tem provocado conseqüências nas relações sociais da comunidade. A disputa por terras, os conflitos entre famílias, a necessidade de consumismo desenfreado e a grande vontade de ter dinheiro coloca esta nação indígena em meio a toda a violência da região, tais como: assassinatos, crimes jamais desvendados e índios que desaparecem de sua comunidade. Muitos Suruí Paíter são assassinados e há casos de estupro nunca desvendados, pois as meninas e moças ficam expostas ao longo da BR-364, residindo muito próximas ao movimento que a rodovia traz. À medida em que têm suas terras invadidas, suas madeiras vendidas ilegalmente, os bens da floresta explorados e consumidos, nada lhes resta a não ser perambular pelas ruas do Distrito do Riozinho, ou ir para Espigão D’Oeste, ou Cacoal, cidades que nunca os acolhe bem e onde são, inclusive, presos. São presenças constantes nos noticiários policiais, tanto da imprensa falada quanto da imprensa escrita, como mostramos a seguir:

ÍNDIOS QUEREM LIBERDADE – Índios da etnia Surui, liderados por 4 caciques continuam aguardando na Fundação Nacional do Índio (FUNAI), em Cacoal, a liberdade dos índios José Naraicola e Júnior Suruí, autuados em flagrante, pela Polícia Federal, no

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último final de semana, acusados de exploração ilegal de madeira na Aldeia 7 de Setembro. O advogado Antonio Júlio Ribeiro informou que a decisão judicial, autorizando ou não a liberação dos dois indígenas, deve sair ainda hoje. Os índios Suruí querem saber quais são as propostas do governo para contrapor as atividades consideradas ilícitas, das quais hoje são dependentes para adquirir os bens industrializados, necessidades impostas pelo contato com a sociedade branca. Os Suruí querem discutir também com o presidente da FUNAI os limites de suas terras (Aldeia 7 de Setembro), uma vez que o espaço pertencente à reserva não estaria bem sinalizado, o que estaria permitindo a invasão de suas terras. Querem, também agilidade no processo de demarcação da área Tucum, o que, segundo os caciques, já é de conhecimento da Fundação Nacional do Índio, em Brasília. A prisão dos dois indígenas foi levada ao conhecimento do presidente da FUNAI, Glênio Costa Alvarez, pela organização Metarelá do Povo Indígena Suruí, na quarta-feira. Eles continuam presos em Pimenta Bueno, sob a custódia da polícia civil. No documento enviado a Brasília, os caciques cobram a presença de Glênio Costa, acompanhado da Procuradoria da FUNAI, do Ministério Público Federal e da Polícia Federal, em Cacoal, para discutir a prisão de índios nas terras por eles habitada, além de outros problemas que estariam afetando as comunidades indígenas. O advogado dos Suruí, Antonio Júlio Ribeiro, disse não concordar com a prisão dos dois índios. Ele entende que a polícia precisa de mandado judicial para entrar em terra indígena. Sobre a exploração dos recursos naturais, por parte das comunidades indígenas, o advogado cita o artigo 231, da Constituição Federal, parágrafo 2º. “As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.” Júlio Ribeiro defende a implantação de um plano de manejo florestal na região e discorda

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da maneira como os índios vêm sendo tratados pelos órgãos repressores.”(http:/www.diariodaamazonia.com.br/didad.php3 – 29/07/2002)

1.3 O VAI-E-VEM DOS SURUÍ PAÍTER: UM PERCURSO MARCADO POR SAUDADES, CRIMES, CHACINAS, VENDAS DE MADEIRA, SAÚDE E EDUCAÇÃO PRECÁRIAS, CRISES LINGÜÍSTICAS E SOCIAIS

Definitivamente, após o contato, os Suruí Paíter se deslocam da aldeia para o asfalto e vice-versa, numa espécie de vai-e-vem constante. Esse vai-e-vem não tem afetado apenas suas festas, suas reuniões, seus rituais, suas construções e suas comidas. Suas práticas de linguagem sobre os fatos de suas vidas alteram-se constantemente, num crescente conflito de desejar preservar sua história e de integrar-se às necessidades do cotidiano em contato com a sociedade envolvente. Outro exemplo ilustrativo diz respeito à religião. Tradicionalmente, o Hoeietê era a festa sagrada para invocar saúde e fartura de colheita, ou como ritual de cura, quando havia alguém doente. O Hoeietê acontece raramente hoje em dia e nem todos os Suruí residentes no Distrito se deslocam para a aldeia por ocasião desse ritual sagrado, seja porque são proibidos de freqüentá-lo, por freqüentarem outras religiões do Distrito do Riozinho (em geral evangélicas), seja porque já não se interessam por essa tradição.

O vai-e-vem da aldeia para o asfalto e do asfalto para a aldeia está delineando a perda das raízes culturais do povo Suruí Paíter, cujos grandes representantes são os jovens e as crianças. No conflito do vai-e-vem e apesar de toda essa intervenção, os Suruí dizem que seu espírito está voltado para valorizar e conservar, sempre, o passado e as experiências vividas pelos ancestrais, na perspectiva de efetuar uma melhor formação dos jovens na vida futura. Nosso trabalho de campo, porém, não confirmou esse discurso corrente. É preciso ressaltar que, ao negar as visíveis mudanças em seu grupo, os Suruí Paíter estão tentando manter-se como nação indígena por diversas

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razões: não perder o status de “povo indígena” tão valorizado na região Amazônica e aos olhos do mundo em geral, não perder os parcos “benefícios” que a FUNAI ainda lhes proporciona depois de ter permitido as invasões de suas reservas; tentar recuperar as terras que lhes pertencem e que lhes foram roubadas. Nesse sentido, a situação lingüística do povo Suruí Paíter é tão peculiar quanto a sua situação de contato, que envolve múltiplos agentes atuando de diferentes formas. O conflito social provocado pelo constante vai-e-vem dos Suruí Paíter gerou, então, práticas de linguagem também conflituosas, de discursos incoerentes ou não condizentes com a realidade lingüística que observamos no Distrito do Riozinho. Esse conflito lingüístico aprofunda-se no cenário dos intensos contatos com os madeireiros, com os policiais que são chamados para amenizar conflitos do comércio ilegal de madeira, as autoridades em geral e, não poucas vezes, entre os Suruí Paíter da zona urbana versus os residentes nas aldeias. Podemos apontar que a mola propulsora do conflito social para os Suruí Paíter tem sido o comércio da exploração de madeira, que teve início em meados da década de 80, do século XX, e tem sido atualmente a principal fonte de renda desse povo indígena, sendo que, na maioria dos casos, a distribuição desta renda não é eqüitativa, “beneficiando” basicamente um número reduzido de pessoas. Em princípio, a retirada de madeira era seletiva e direcionada para as espécies de maior valor do mercado, como mogno e cerejeira. Atualmente, nas áreas onde este potencial de madeiras nobres se encontra esgotado, a retirada se estende a outras espécies, de menor valor comercial, as chamadas “madeiras brancas”, como garapeira, angelim pedra, ipê, cedro rosa e madeiras para laminação Os Suruí Paíter têm consciência dos malefícios decorrentes deste tipo de exploração, mas continuam possibilitando que em todos os anos ela se repita. Os órgãos governamentais responsáveis pela proteção e fiscalização também não tomam providências cabíveis, na época adequada, e este tipo de exploração altamente predatória, em áreas de preservação permanente, com imensos prejuízos para os índios, se apresenta como permissível, pois qualquer cidadão comum tem

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conhecimento destes fatos. Nesse sentido, o vai-e-vem dos Suruí Paíter está sempre marcado pela presença desses “vendedores” de madeiras, dos “compradores” de bens naturais da floresta, de discussões intermináveis e de negociações sempre desfavoráveis aos Paíter. Costumes, tradições e linguagem estão se perdendo pelos percursos da aldeia ao asfalto e do asfalto para a aldeia. Muitas vezes, atualmente como no passado, esse percurso é marcado por crimes e assassinatos. Doentes e empobrecidos, explorados economicamente e correndo riscos de perder a totalidade de suas terras, os Suruí Paíter exigem, cada vez mais, escolas e saúde para seus filhos. Pelos relatos apresentados, após o contato dos Suruí Paíter com o homem branco inúmeras alterações ocorreram na vida desse povo indígena e, o que se vê hoje é um incessante percurso: aldeia/cidade/aldeia com o uso da língua portuguesa. Além disso, o contato com o homem branco criou, para o grupo Paíter, necessidades antes desconhecidas, como por exemplo: necessidade de escolas com o conseqüente uso da língua portuguesa; dependência em relação à saúde – o ritual tradicional de invocação à saúde foi substituído pela procura de remédios usados pelos homens brancos; os cultos tradicionais do Pajé estão sendo substituídos pelas religiões ocidentais; casavam apenas entre si, mas no Distrito do Riozinho estão se envolvendo com relacionamentos externos ao grupo (o namoro); estão havendo mudanças nas relações físicas, sociais e culturais. Na realidade, no vai-e-vem e no grande conflito social já estabelecido por esse percurso, os Suruí Paíter tentam aproximar-se sempre mais do homem branco. Nossas observações nesse sentido são confirmadas pelo trabalho de Santilli (1987), uma coletânea de depoimentos, experiências pessoais e fotografias que retratam, especialmente, o povo Suruí Paíter residente no Distrito do Riozinho. Santilli usa a expressão “ÀRE” para enfatizar como os Suruís, em seu idioma, chamam os demais povos indígenas que convivem no Estado de Rondônia. Ao mesmo tempo, explica que os Suruí já denominam, na época, também os homens “civilizados” com a expressão “ÀRE”, possivelmente, segundo o autor, numa tentativa de aproximação no mais novo Estado brasileiro, que ele

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denomina “a Terra de Rondon”. ÀRE é também parte do “Projeto Nharamaã” de documentação áudio-fotográfica da colonização de Rondônia, cujo objetivo é o registro das transformações sócio-ambientais da região. Em resumo, os resultados que obtivemos a partir deste estudo é que a perda da língua étnica entre os Suruí Paíter do Distrito do Riozinho está ocorrendo mais amplamente do que podíamos esperar e que a maioria deles tem o português como a língua de prestígio para a comunidade. Apesar da insistência dos idosos na preservação da língua Suruí, com o falecimento desses é provável que essa desapareça, sobretudo porque os atuais adultos, futuros idosos, estão mergulhados no mundo da língua portuguesa. Não gostaríamos de apontar isso, mas, é muito provável que esse desaparecimento seja tão rápido quanto tem sido o desaparecimento das madeiras nobres, das aves, dos animais e das riquezas naturais das aldeias dos Suruí Paíter!REFERÊNCIAS

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BLACK, F. Infectious disease in primitive societies. In: Science. pp. 187; 515-518, 1975.

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CIMI-Conselho Indígena Missionário. Panewa Especial. Revista Missionária. Porto Velho, 1996, 1997, 1998, 2000, 2001.

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Dissertação de Mestrado. SP. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP. p.19-21-24- 25-38-39-40-41-92-93, 1991.

FRANCHETTO, B; HECKENBERGER, M. (Org). Os povos do Alto Xingu – História e Cultura. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, p. 77-156, 2001.

FUNAI – Fundação nacional do Índio. Relatórios de 1960 a 2001.

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O PAPEL DOS ADVÉRBIOS FOCALIZADORES NA MANUTENÇãO DA ORDEM LINEAR DOS

CONSTITUINTES DA ORAÇãO*

Edson Rosa Francisco de Souza**

RESUMO: O objetivo deste trabalho é descrever, com base na Gramática Funcional de Dik, a funcionalidade dos advérbios focalizadores (exatamente, principalmente, justamente, somente, também) e sua possibilidade de co-ocorrência com a ordem especial de constituintes no Português Falado do Brasil, de acordo com suas funções sintáticas, semânticas e pragmáticas. Em outras palavras, o nosso objetivo é verificar se o uso dos advérbios focalizadores constitui um mecanismo utilizado pelo falante para preservar a ordem linear dos constituintes da oração, isto é, se o uso desses mecanismos está relacionado à manutenção da ordem canônica da oração.

PALAVRAS-CHAVE: Funcionalismo, Advérbios Focalizadores, Ordem de Palavras, Co-ocorrência de Estratégias de Focalização.

ABSTRACT: Under Dik’s Functional Grammar, the aim of this research is to describe the functionality of focus adverbs (exactly, mainly, actually, justly, also, only) and their possibility of co-occurrence with word order in Spoken Brazilian Portuguese, according to their syntactic, semantic and pragmatic functions. In other words, our principal goal is to verify if the use of the focus adverbs constitutes a mechanism used by the speaker to preserve the lineal word order of the clause, that is, if the use of these focus mechanisms is related to the maintenance of the canonical order of the clause.

KEYWORDS: Functionalism, Focus Adverbs, Word Order, Co-occurrence. *Neste artigo, apresento algumas questões da minha Dissertação de mestrado “Os advérbios focalizadores no português falado do Brasil: uma abordagem funcionalista”, desenvolvida sob a orientação da Profª Drª Marize M. Dall’Aglio Hattnher – IBILCE/UNESP, com o apoio da FAPESP (Proc. 02/12621-5).

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**Doutorando em Lingüística (IEL/UNICAMP)1 PALAVRAS INICIAIS

Centrado na perspectiva funcionalista de autores como Dik (1989; 1997) e Hengeveld (1997)1, o presente trabalho tem por objetivo descrever a funcionalidade dos advérbios focalizadores (exatamente, principalmente, justamente, somente, também etc.) e sua co-ocorrência com a ordem especial de constituintes no português falado do Brasil (PB). Em termos gerais, o nosso objetivo é analisar as razões sintáticas, semânticas e pragmáticas que favorecem o uso desses mecanismos de focalização na atribuição de Foco a determinados constituintes da oração. Dessa maneira, por estar situado no universo da ordem de palavras, o nosso objetivo maior é verificar se o uso desses advérbios constitui um mecanismo utilizado pelo falante para focalizar e, ao mesmo tempo, preservar a ordem linear dos constituintes na oração, isto é, se esse uso está relacionado à manutenção da ordem canônica dos termos da oração. Num segundo momento, a nossa tarefa é investigar por que esse mecanismo de focalização co-ocorre com uma outra estratégia, se a ordem especial de constituintes, bastante recorrente entre as línguas do mundo, por si só já bastaria para marcar a função pragmática Foco.

Nesse contexto, considerando a importância da proeminência prosódica no Inglês, que é, segundo Van Valin & LaPolla (1997), uma língua de estrutura sintática rígida e estrutura de foco flexível, nossa expectativa é a de que os advérbios focalizadores (AdvFs) exerçam no PB a mesma função que a proeminência prosódica exerce no Inglês, que é a de focalizar qualquer constituinte da oração sem alterar sua ordem.

2 NOTAS SOBRE OS AdvÉrBIOS FOCALIZAdOrES

Em um trabalho sobre os advérbios, Ilari et alii (1990) e Ilari (1992) identificam a focalização como uma das muitas funções

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exercidas por essa classe, considerada extremamente heterogênea (cf. MACKENZIE, 2001; HENGEVELD, 1997). Advérbios como exatamente, justamente e principalmente, que “chamam a atenção para o papel semântico de uma expressão próxima” (ILARI et alii, 1990, p.76) ou “aplicam a algum constituinte um carimbo de ‘conferido’, sugerindo que o locutor está de posse dos resultados de alguma verificação” (id. ibid.) são agrupados ao lado de advérbios que indicam inclusão ou exclusão, como também e só, por “darem destaque a um constituinte da sentença”. Na ocorrência (1), por exemplo, o advérbio principalmente exerce a função de focalizador, atuando sobre um satélite s2 com a função semântica de Lugar (em Altamira).

(1) mas em alguns dos desenhos das cavernas principalmente em Altamira... há uma fidelidade...

linear à natureza que consegue mostrar os animais:: (EF/RJ/405:395)

Como se pode observar na ocorrência acima, o satélite em negrito constitui o escopo do advérbio em questão. Para o discurso, a expressão “em Altamira” caracteriza uma informação nova (CHAFE, 1976), o que justifica a atribuição da função pragmática Foco a esse constituinte. Ao fazer isso, o emissor presume que o destinatário possui uma parte de informação correta, mas também acredita numa outra que está incorreta. Contudo, focalizar uma informação que o falante considera mais importante não é, a nosso ver, a única razão para o grande número de AdvFs no PB. Assim, sem perder de vista o nível sintático da oração, lugar em que se situa um dos principais objetivos do nosso trabalho, pode-se constatar que a maior parte dos estudos publicados sobre Foco, em especial, sobre o funcionamento dos AdvFs, não procura questionar a relação existente entre a estrutura de foco e a estrutura sintática. É claro que, para muitos autores funcionalistas e gerativistas, o Foco pode ser marcado pela ordem especial de constituintes, no entanto,

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o que nos interessa saber é o que os AdvFs fazem de diferente na estrutura da oração que as outras estratégias de focalização não fazem. Como dito anteriormente, a nossa expectativa é a de que o funcionamento desses AdvFs possa ser comparado ao da proeminência prosódica no Inglês, que focaliza um elemento sem alterar a ordem da oração (cf. Van Valin; Lapolla, 1997), assim como em (2) e (3):

(2) a. dANA sent the book to Leslie yesterday. dANA enviou o livro para Leslie ontem. b. Dana sent the book to LESLIE yesterday. Dana enviou o livro para LESLIE ontem. (3) a. e você vai num país desenvolvido não há aquele que não

trabalhe... que não faça alguma coisa...até os velhos... sujeito de setenta...setenta e cinco anos está fazendo alguma coisa... (D2/RJ/355:1040)

b. eu por exemplo estou acostumada a comer só verdura e carne...eu tive muita dificuldade em me alimentar lá [no norte]... (DID/RJ/328:128)

Como se vê, em ambas as línguas, a ordem SVO da oração mantém-se inalterada, sendo o Foco marcado ora pela proeminência prosódica ora pelos AdvFs. Em (2), o sujeito e o objeto da oração são focalizados por meio da proeminência prosódica, sem provocar nenhum tipo de reestruturação sintática. Já em (3), o sujeito e o objeto são focalizados por meio de dois advérbios distintos (até e só), apresentando, assim, um comportamento bastante semelhante ao da proeminência prosódica no Inglês, em que as duas estratégias focalizam um constituinte sem alterar a ordem canônica da oração.

3 ARCABOUÇO TEÓRICO

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Segundo o ponto de vista funcional, uma língua natural deve ser considerada, primeiramente, “como um instrumento de interação social por meio do qual seres humanos podem se comunicar uns com os outros e, assim, influenciar mutuamente as atividades mentais e práticas” (DIK, 1980, p.1). Nesse sentido, o funcionalismo2 considera que “a situação comunicativa motiva, restringe, explica ou determina a estrutura gramatical” (NICHOLS, 1984, p.97). Com base nesse arcabouço teórico, Dik (1989) assinala que a atribuição de Foco a um determinado constituinte da oração é o que justifica, por exemplo, a presença de uma ordenação especial dos termos da oração ou a utilização de AdvFs, uma vez que esses mecanismos constituem dois tipos especiais de estratégias de Foco3 utilizadas pelo falante para colocar em destaque uma dada informação que ele considera importante para ser integrada à informação pragmática do ouvinte (BRAGA, 1999).

Por essas e outras colocações, Halliday (1985) destaca que a gramática funcional procura concentrar a atenção nos usuários e nos usos da língua, mediante uma valorização do receptor, do emissor e da variação lingüística no quadro gramatical. De acordo com Neves (1997), no modelo teórico de Dik (1989), os componentes sintáticos e semânticos encontram-se integrados a uma teoria pragmática, que, por sua vez, envolve a intervenção:

a) dos papéis envolvidos nos estados de coisas designados pelas predicações (funções semânticas);b) da perspect iva se lec ionada para apresentação dos estados de coisas na expressão lingüística (funções sintáticas);c) do estatuto informacional dos constituintes dentro do contexto comunicativo em que eles ocorrem (funções pragmáticas).

Trata-se de uma teoria que procura, segundo Gebruers (1984, apud NEVES, 1997), oferecer “um quadro para a descrição científica

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da organização lingüística em termos das necessidades pragmáticas da interação verbal, na medida em que isso é possível” (p. 349). Tendo em vista esse princípio, Dik (1989; 1997) destaca que para se chegar às expressões lingüísticas superficiais, são necessárias regras de colocação para atribuírem posições aos constituintes de uma dada estrutura subjacente. Essas regras, segundo o autor, obedecem a certos princípios que determinam as possíveis seqüências dos constituintes da oração. Assim, essa teoria de ordenação postula que cada língua apresenta um ou mais padrões funcionais, segundo o esquema geral em (4).

(4) P2, P1 (V) S (V) O (V), P34

A operação das regras de colocação5, segundo Dik (1989), ocorre de tal maneira que, em primeiro lugar, são alocados os constituintes que podem ocupar a posição P1, tais como palavras-Qu, pronomes relativos e conectores subordinativos. Se nenhum constituinte desse tipo estiver presente, então, podem ser colocados em P1 constituintes com as funções pragmáticas de Foco (informação de maior saliência), Tópico (sobre o que se fala) ou Organizador de Cenário (situa o EsCo em relação às coordenadas de tempo, espaço e circunstância), proposta por Hannay (1991) e Bolkestein (1998), e investigada por Cucolo (2002) em seu trabalho sobre os satélites de nível 1 e 2, no português falado do Brasil. Dessa maneira, a ocorrência (5) abaixo indica um satélite s2 de Lugar que exerce a função pragmática de Organizador de Cenário, responsável por situar o EsCo no quadro espacial (de lugar).

(5) Inf essejantar dançante... é assim vamos (lá)...eles ab...(...) então depois naquele jantar eles sorteiam outros coisas... uns:: quatro casais...para Organizarem outro...jantar (DID/POA/45:23)

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Assim sendo, para Neves (1994, p.109), qualquer abordagem funcionalista de uma língua natural, na verdade, tem como questão básica de interesse a verificação de como se obtém a comunicação com essa língua. Isso implica considerar as estruturas das expressões lingüísticas como configuradoras de funções, sendo cada uma das funções vista como um diferente modo de significação na oração. É por essa razão que autores como Dik (1989), Pezatti (1998) e Connolly (1998) assinalam que as expressões lingüísticas só podem ser devidamente compreendidas quando levadas em consideração as informações contextual e situacional disponíveis aos interlocutores no momento da interação, já que é durante esse processo em que muitas de suas propriedades (formais e funcionais) são codeterminadas.

4 ORDENAÇãO DOS CONSTITUINTES DA ORAÇãO NA PRESENÇA DE ADVFS

Como dito, uma de nossas perguntas de pesquisa está relacionada à funcionalidade dos AdvFs na oração. Dessa forma, a fim de verificarmos se o uso dos AdvFs é um mecanismo utilizado para focalizar e, ao mesmo tempo, preservar a ordem linear dos constituintes na oração, os dados6 foram analisados com o intuito de constatar se esses mecanismos de focalização estão de fato relacionados à manutenção da ordem canônica dos constituintes da oração. É o que se observa nos dados da tabela 1 a seguir:

Tabela 1: Ordenação dos constituintes da oração na presença de AdvFs

Conforme se pode verificar na tabela acima, quando analisada na presença de AdvFs, a ordem dos constituintes só se mostrou alterada em 7% (25/374) das ocorrências contra 93% (349/374)

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dos dados em que a ordem aparece não-marcada. A esse respeito, Dik (1989) assinala que uma construção é mais marcada à medida que é menos esperada no contexto, conseqüentemente, quando uma construção marcada ocorre, ela exige mais atenção. Sobre esse aspecto, Van Valin (1999), ao discutir questões de Foco, destaca que o russo, o polonês, o latim e o português são línguas que apresentam uma estrutura sintática menos rígida e, por isso, a ordenação especial de constituintes aparece como uma das estratégias mais utilizadas para a marcação de Foco, o que as difere do Inglês e do Toba Batak, língua do oeste da Indonésia, cujo Foco, em geral, é marcado pela proeminência prosódica7, em razão de sua ordenação sintática ser bem mais rígida. Segundo o autor, o que justifica a freqüência relativamente maior de proeminência prosódica no Inglês é o fato de essa estratégia não implicar nenhum tipo de reestruturação sintática para acomodar o Foco. Sendo assim, pode-se dizer que o uso expressivo de AdvFs no português brasileiro é, segundo Souza (2003b), perfeitamente comparável ao da proeminência prosódica no Inglês, tal como apontado por Martinez-Caro (1998) e Van Valin & Lapolla (1997). Além disso, quando observada juntamente com os AdvFs, nota-se que a ordem dos constituintes da oração só é alterada em razão de algum interesse especial do falante, assim como mostram as ocorrências (6) e (7), que constituem claramente casos de objetos (A2) alocados na posição inicial da oração (P1), com a função pragmática Foco:

(6) Loc a gente faz uma comida que a (titia) chama de

jardineira com couvinha mineira...faz couvinha mineira junta com...aquela couvinha bem parti-dinha ba/ faz na::...na...frigideira...depois põe em cima da carne e põe os legumes em cima... a gente usa muito esse tipo de comida aqui em casa...por exemplo... chuchu também ela refoga...faz ((confuso)) e aí a gente come com a carne as/ por exemplo faz o que a gente chama aqui em casa de trouxinha...

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(DID/RJ/328:418)

(7) L1 eu tenho um conhecido...aliás...um amigo comum nosso que ele é especialista em comida internacional então vai faze(r) uma comida chinesa india-na...qualque(r) coisa...até incenso ele queima...ah...só falta música ambiental...só falta eu me vesti(r) a rigor

(D2/POA/291:107)

Cabe notar que, em (6) e (7), os constituintes “chuchu” e “incenso”, alocados na posição inicial da oração, servem à função pragmática Foco, cujo objetivo é ressaltar a informação relativamente mais importante no contexto. Nesses casos, o que leva o falante a focalizar, por meio de um advérbio, um constituinte já alocado na posição P1 da oração é a tentativa de impedir que certos constituintes focais sejam interpretados pelo ouvinte como Tópico ou Organizador de Cenário. Assim, para evitar que isso aconteça, o falante utiliza duas ou mais estratégias de focalização para deixar bem claro qual é a sua intenção comunicativa. Ou seja, a intenção do falante é o que explica, na nossa opinião, a dupla marcação de Foco nos dados do PB (AdvFs + Ordem especial).

Resumindo o que se disse sobre essas ocorrências, temos o seguinte:

(6’) chuchu também elare foga P1Foco AdvF S V

(7’) até incenso ele queima AdvF P1Foco S V

Tanto em (6’) quanto em (7’), a ordem SVO dos constituintes da oração aparece alterada, com o objeto alocado no início da oração. Contudo ocorrências como essas correspondem, conforme já destacado, a apenas 7% (25/374) do total dos dados, o que,

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por sua vez, comprova a nossa hipótese de que os advérbios constituem uma das principais estratégias utilizadas pelo falante para focalizar algum constituinte, sem que para isso seja necessário alterar a ordem não-marcada dos constituintes da oração. Nesse sentido, os casos de co-ocorrência de estratégias de focalização atrelados à ordem especial são, certamente, os únicos exemplares do corpus que se mostraram responsáveis pela mudança de ordem dos constituintes oracionais. No tocante aos demais tipos de co-ocorrência de estratégias (AdvF + Proeminência prosódica; AdvF + Construção clivada), a ordem dos termos da oração permaneceu inalterada, com o Foco sendo marcado pelas formas adverbiais.

Com relação à ordem não-marcada, as ocorrências (8) e (9) exemplificam casos em que os advérbios também e só focalizam, respectivamente, o sujeito “o Brasil” e o complemento verbal “o legume”, conforme se observa abaixo:

(8) L1 agora...você falou em problema estatal...não é? o Brasil também está caminhando pra economia estatal...e como eu

leio aí nos jornais – a gente não é dessa área...né? quer dizer...desse setor – mas você vê... um absurdo o Brasil... a Companhia Siderúrgica Nacional no balanço apresentado...alto prejuízo...como é que uma companhia de aço...produtora...de...de...de aço...pode dar prejuízo? (D2/RJ/355:1140)

(9) Inf quando eu como muita coisa [...] ...bata::ta.. macarrão:::pão:: quando eu por um acaso...tiver comido isso de manha...à noite então eu faço um::um balanço...e procuro tirar as coisas as outras coisas que possam vir a engordar feijão então tudo aquilo arroz aí eu como só o legume realmente e a fruta...o que eu não posso realmente é deixar...de comer coisas salgadas à noite... (DID/RJ/328:18)

Nessas ocorrências, para acomodar a função pragmática Foco,

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a ordem dos constituintes da oração não sofre nenhum tipo de mudança, o que mais uma vez corrobora a nossa hipótese defendida ao longo do trabalho. Resumindo o que dissemos das ocorrências acima, temos o seguinte:

(8’) o Brasil também está caminhando para economia estatal SFoco AdvF Aux V O

(9’) eu como só o legume S V AdvF OFoco

Até mesmo em construções do tipo VS, a ordem dos termos da oração costuma se manter inalterada (não-marcada), assim como se verifica na ocorrência (10):

(10) Inf Brailowski não sei se... se esteve aqui foi Ba/Backaus... Jorge Demus... e tantos outros que têm aí que nem sei... mais outros pianistas que a gente foi...lembro quando o Rubinstein tocava mas estava CHEIO o:: . ..o teatro todo né?... até aquelas galerias o balcão de segunda a gente em PÉ... ahn:: nos corredores botaram cadeiras tudo... e depois veio também o giglio não sei se vocês já...viram:: (DID/POA/45:591)

Em construções como essas, é natural que o sujeito venha posposto ao verbo da oração, principalmente naqueles casos em que P1 já estiver ocupada. Em (10), a ordem P1VS não sofre nenhum tipo de reestruturação sintática para marcar o Foco “o Giglio”. Segundo Pezatti (2003), pelo fato de ser uma língua SVO, o PB mostra-se relativamente rígido com relação à colocação dos argumentos sujeito, objeto e oblíquo (A1, A2 e A3), preservando geralmente o esquema P1SVO. Todavia, mostra-se mais acessível

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à alteração da ordem canônica com constituintes satélites, ou seja, constituintes lexicais opcionais que veiculam informação adicional a uma das camadas no modelo hierárquico da oração. A ocorrência (11) representa um caso de satélite (adjunto adverbial) alocado no início da oração, com a Função pragmática Foco8:

(11) Inf e podendo inclusive...eleger...representantes....para que esses mesmos representantes...sejam...seus porta vozes...possam com isso propor...legislar fazer ver inclusive ao poder executivo... ver que determinadas classes...são carentes de determinadas...questões...e que só através desses representantes é que evidentemente se pode chegar... a um denominador comum...ou a uma solução... (DID/RE/131:311)

Em (11), verifica-se que, apesar de o satélite ser focalizado por meio do AdvF só e da clivada é que, ele não poderia estar em P1, visto que ela já está ocupada pelo constituinte-P19, representado pelo relator subordinativo que. Assim, o fato de ser Foco e não estar em P1 é uma das justificativas para a incidência de outras estratégias de Foco sobre o satélite, tais como o advérbio e a clivada. Em outros termos, tem-se:

(11’) que só através desses representantes é que se pode

chegar P1 AdvF PaFoco Cliv Aux V

Nesse contexto, quando um falante opta, por exemplo, por alocar os constituintes adverbiais no início da oração, a ordem não-marcada dos satélites é alterada em favor de algum interesse pragmático. No entanto, quando o falante deseja focalizar algum constituinte sem alterar demasiadamente a ordem canônica da oração, ele faz uso dos AdvFs para tal tarefa. Em (11), diferentemente das ocorrências (6) e (7), a ordem não-marcada dos termos argumentais da oração (A1, A2 e A3) não sofre nenhum tipo

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de alteração; só o satélite de instrumento através desses representantes é alocado em Pa.

A ocorrência (12), abaixo, exemplifica um caso em que o Adv focaliza um satélite s1 com a função semântica de Beneficiário, alocado em sua posição não-marcada:

(12) L2 exatamente né? então vamos tentar:: ( ) ver se conseguem

L1 isso L2 agora é uma carreira muito boa principalmente para mulher (D2/SP/360:635)

Tanto em (11) quanto em (12), a ordem SVO da oração não sofre nenhuma alteração. Em (12), o satélite “para mulher”, focalizado pelo Adv principalmente, encontra-se alocado em sua posição não-marcada, isto é, a posição final da oração10. No tocante ao princípio de ordenação do português, Cucolo (2002) e Pezatti (1998) acreditam que as alterações da ordem canônica dos constituintes da oração podem ser explicadas em função de razões pragmáticas e semânticas. Tendo trabalhado com essas mesmas funções, Martín Arista (1994) também assinala que é o componente pragmático que determina a ordem em que as estruturas prosódicas e sintáticas se sucedem, assim como a relação que se estabelece entre as mesmas.

Com base nos exemplos apresentados aqui, pôde-se verificar que para preservar a ordem não-marcada da oração recorre-se aos AdvFs. No nosso caso, a ordem SVO só é quebrada em função de algum interesse pragmático ou, mais especificamente, naqueles casos em que o AdvF co-ocorre com ordem especial para a marcação do Foco.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como vimos, para a Gramática Funcional de Dik (1989), o Foco constitui a informação mais saliente ou importante que o

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falante deseja acrescentar ao conhecimento pragmático do ouvinte. Nesse sentido, o objetivo do falante ao focalizar, por exemplo, um satélite ou um constituinte qualquer, no interior da oração, por meio de AdvFs, é fornecer informações que ele considera essenciais para o seu interlocutor. Nesse contexto, foi possível verificar que os AdvFs constituem a principal estratégia de focalização utilizada pelo falante para focalizar algum constituinte da oração, sem que para isso fosse necessário alterar a sua ordem para acomodar a Função Pragmática Foco. Isso confirma que o uso expressivo de AdvFs no português brasileiro é perfeitamente comparável ao da proeminência prosódica no Inglês, cuja função é marcar o Foco sem alterar a ordem canônica da oração para a mesma finalidade, tal como apontado por Martinez-Caro (1998) e Van Valin & Lapolla (1997). No entanto, esse resultado aponta que o PB, diferentemente da classificação dada por Van Valin (2003), não apresenta uma estrutura sintática totalmente flexível.

No caso da co-ocorrência de estratégias de focalização, quando algum constituinte é alocado em uma posição especial, mesmo com a presença de AdvFs na oração, observou-se que a ordem não-marcada é alterada em favor de algum interesse comunicativo do falante. O total de 25 ocorrências com ordem marcada refere-se exclusivamente aos casos em que os AdvFs co-ocorrem com a ordem especial para marcar o Foco. Nesse sentido, por pressupor que a sua mensagem pudesse ser interpretada de forma equivocada pelo interlocutor, o falante procura lançar mão de outros mecanismos para reforçar que determinada informação deve ser entendida como Foco, e não como Tópico ou Organizador de Cenário, por exemplo (cf. SOUZA, 2004).

NOTAS

1Conforme Neves, o que se analisa na Gramática Funcional são as frases efetivamente realizadas, para cuja interpretação se atribui especial importância ao contexto, tanto verbal como não-verbal.

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2Sobre essa corrente teórica, pode-se dizer que a Escola Lingüística de Praga, em voga nos anos 60 e 70, constitui o berço do funcionalismo atual. Nessa época, Mathesius (1970 apud FIRBAS,1974), visto como um dos principais representantes dessa corrente, já destacava, em seus trabalhos, que na comunicação as formas lexicais e gramaticais de uma língua são produzidas para servir a um propósito especial imposto sobre elas pelos falantes no momento da interação. Segundo Neves (2001), a Escola Lingüística de Praga é a designação que se dá a um grupo de estudiosos que começou a atuar antes de 1930, para os quais a linguagem, acima de tudo, permitia ao homem reação e referência à realidade extralingüística.

3Para Dik (1989), as funções pragmáticas intra-oracionais dizem respeito ao status informacional dos constituintes de uma oração em relação à situação comunicativa.

4Para Pezatti & Camacho (1997), o padrão geral de ordenação para o PB é esquematizado por: P2, P1 (S) V (S) O X, P3, em que o X é usado para indicar a posição dos satélites adverbiais.

5P2 e P3 são as posições reservadas, respectivamente, para Tema (Theme) e Antitema (Tail), e as vírgulas indicam pausas entoacionais.

6Os dados são provenientes do corpus mínimo do Projeto de Gramática do Português Falado (PGPF), de diferentes capitais brasileiras, a saber: São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Recife e Salvador.

7Em estudo sobre o uso das estratégias de focalização, Brentan (2001) verificou que a proeminência prosódica, de fato, é a estratégia mais utilizada no Inglês para a marcação de Foco.

8Como constituintes da oração propriamente dita, estamos

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considerando apenas os termos argumentais (A1, A2, A3). Já os termos não-argumentais, típicos da predicação estendida, também são considerados, porém, apenas para se referir ao processo de co-ocorrência de estratégias de focalização.

9Segundo Cucolo (2002), ocorrências como (11), no entanto, mostram que o Português, assim como outras línguas, necessita de uma outra posição (Pa) para alocar constituintes com uma função pragmática especifica, quando a P1 já estiver ocupada por um constituinte-P1.

10Para maiores esclarecimentos, conferir também o trabalho de Souza (2003a) sobre a focalização dos constituintes adverbiais no interior da oração.REFERÊNCIAS

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OS LIMITES SEMÂNTICOS DE HUMPTY DUMPTY

Luciano Amaral Oliveira*

RESUMO: Humpty Dumpty é um personagem de “Alice no País do Espelho”, de Lewis Carroll. Seu comportamento rebelde em relação ao significado das palavras é o ponto de partida para se problematizar os limites semânticos impostos aos leitores e aos falantes-ouvintes de uma língua natural. Dois livros de Umberto Eco sobre essa questão servem de base para se mostrar quais são esses limites.

PALAVRAS-CHAVE: Interpretação, Leitor, Significado Literal.

ABSTRACT: Humpty Dumpty is a character in “Alice through the Looking Glass”, by Lewis Carroll. His rebel-like behavior in relation to the meaning of words is the starting point of the problematization of the semantic limits of readers and speaker-hearers of a natural language. Two books by Umberto Eco on this matter serve as a basis for the showing what those limits are.

KEY-WORDS: Interpretation, Reader, Literal Meaning.

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*Prof. Dr. da Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFSPra começo de conversa...

“Você terá a glória!”“Eu não sei o que você quer dizer com ‘glória’” – retrucou Alice. Humpty Dumpty sorriu com desdém – “É claro que você não sabe – até que eu diga a você. Eu quis dizer que você terá um belo e incontestável argumento!”“Mas ‘glória’ não significa ‘um belo e incontestável argumento’” – contestou Alice. “Quando eu uso uma palavra” – disse Humpty Dumpty em um tom bastante zombeteiro – “ela significa exatamente o que eu quero que ela signifique, nem mais nem menos.”“A questão é” – disse Alice – “se você pode fazer com que as palavras signifiquem tantas coisas diferentes”. 1

(CARROLL, 2000, tradução minha)

Ovo simpático e rebelde é esse tal de Humpty Dumpty. Seu comportamento pós-moderno confunde a cabeça da ingênua Alice, leitora moderna de um país de espelhos desconstruídos. Afinal, como é que Humpty Dumpty se acha com o poder de dar a uma palavra o significado que ele quiser? Alice parece não perceber que, no mundo maravilhoso e espelhado vislumbrado pelo matemático Lewis Carroll, Humpty Dumpty tem esse poder. Até mesmo ela, Alice, poderia ter esse poder se quisesse.

Entretanto, no mundo positivistamente real em que os leitores carrollianos (e drummondianos, derridianos, etc.) se encontram e funcionam socialmente, os leitores e falantes-ouvintes podem dar às palavras os significados que eles quiserem? Eles se comportam como Humpty Dumpty ou eles obedecem a limites semânticos nos atos da interpretação e do uso das palavras?

Algumas pessoas responderiam prontamente que o leitor e o falante-ouvinte não se comportam como o ovo em questão. E, provavelmente, elas não abririam mão de evocarem a obviedade

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da resposta. Mas o óbvio afirmado e o acordo tácito inconteste não bastam à academia. A obviedade é tão relativa quanto a dicotomia certo/errado. O que é óbvio para muitos desconstrutivistas, por exemplo, parece absurdo para quem não compartilha das crenças desconstrutivistas. Por outro lado, a obviedade da existência do significado literal é execrada por desconstrutivistas de plantão.

Assim, é necessário que se busquem evidências para os limites semânticos impostos ao leitor e ao falante-ouvinte. E é exatamente a isso que este ensaio se propõe: mostrar que existem limites semânticos que são impostos aos leitores e aos falantes-ouvintes (note-se que o uso da voz passiva aqui não foi por acaso). Portanto, pra começo de conversa, que uma coisa fique clara: o leitor não se comporta como Humpty Dumpty, seja esse leitor moderno ou pós-moderno. Os limites semânticos impostos a esse leitor são o que interessa a este ensaio.

Então, indo ao que interessa...

Em 1992, um vendaval francês sacudiu os alicerces dos filósofos da conservadora Universidade de Cambridge. Eram as idéias desconstrutivistas construídas por Jacques Derrida na década de 1960 (COLLINS; MAYBLIN, 1997). Além de aumentar a fogueira de vaidades acadêmicas e de provocar reflexões filosóficas na terra da Sua Majestade, os ventos derridianos sopraram nos quatro cantos do mundo, influenciando não apenas filósofos, mas também teóricos da tradução e críticos literários.

De acordo com Jeff Collins e Bill Mayblin (ibidem, p. 16), o trabalho de Derrida é dominado pela idéia de um vírus que introduz desordem na comunicação e que não é vivo nem morto. Isso implica as idéias de indeterminação e de instabilidade, que foram apropriadas por teóricos da tradução e por críticos literários. Stephan Collini (2001, p. 9) deixa isso bem claro, quando comenta a respeito de Umberto Eco:

Tendo sido uma das pessoas mais influentes a chamar

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a atenção, nos anos 60 e 70, para o papel do leitor no processo de “produzir” significado, mostrou, em sua obra mais recente, apreensão quanto à maneira pela qual algumas das principais correntes do pensamento crítico contemporâneo, em particular aquele tipo de crítica americana inspirada em Derrida, autodenominada “Desconstrução” e associada sobretudo ao trabalho de Paul de Man e J. Hillis Miller, parecem dar licença ao leitor de produzir um fluxo ilimitado e incontrolável de “leituras”.

Com efeito, os teóricos que defendem o poder exclusivo do leitor para criar significados fazem questão de enfatizar a natureza indeterminada e instável do significado, negando veementemente a existência dos significados literais, i.e. estáveis, no texto. Por exemplo, Rosemary Arrojo e Kanavillil Rajagopalan (1992, p. p. 47), teóricos pós-estruturalistas da tradução, contestam o significado literal, que é “tradicionalmente associado a uma estabilidade de significado, inerente à palavra ou ao enunciado, que supostamente preserva a linguagem da interferência de quaisquer contextos e/ou interpretações.” As palavras de Arrojo e Rajagopalan merecem alguns comentários.

A associação entre estabilidade e literalidade procede. O significado literal é entendido como sendo um significado estável em uma comunidade lingüística. Entretanto, é necessário cuidado no uso do termo “inerente”. O fato de um significado ser estável não significa que uma determinada palavra tenha um significado que lhe seja inerente, fixo e imutável. Se isso fosse verdade, não haveria mudanças semânticas e expressões idiomáticas. A suposição manifestada por Arrojo e Rajagopalan, i.e., a de que o significado literal, estável, “preserva a linguagem da interferência de quaisquer contextos e/ou interpretações”, é improcedente. Há aí um radicalismo no argumento: força-se o atrelamento de “inerente” a “literal” para sustentar as idéias de indeterminação e de instabilidade do significado.

Stanley Fish (2000, p. 268), crítico literário de grande influência

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nos anos 1980 e 1990, também se apropria dessas duas idéias para defender o poder do leitor e negar o significado literal:

[...] a língua não tem uma forma independente do contexto, mas, como a língua é encontrada apenas em contextos e nunca no abstrato, ela sempre tem uma forma, embora nem sempre seja a mesma. O problema com essa formulação é que, para muitas pessoas, a determinação é inseparável da estabilidade: a razão pela qual nós podemos especificar o significado de um texto é porque um texto e seus significados nunca mudam. 2 (tradução minha)

Ora, defender-se a estabilidade do significado, na figura do significado literal, não significa defender a idéia, indefensável, de que um texto e seus significados nunca mudem. Os textos de Wilhelm Reich foram considerados subversivos e perigosos pela democracia norte-americana nos anos 1950, mas, nos últimos vinte anos, transformaram-se em importantes fontes de pesquisa para a elaboração de terapias corporais nos Estados Unidos, como a Bioenergética, de Alexander Lowen. É importante, sim, que se dê ao leitor o seu devido valor: ele não é um sujeito passivo que busca no texto o significado que o autor colocou ali. Contudo, é necessário reconheer-se que o leitor produz significados com base naquilo que o autor colocou no texto, com base nos significados literais do texto.

Na verdade, o debate em torno da determinação e da estabilidade do significado está inserido em uma questão maior, chamada por Eco (2001, p. 27) de “dialética entre os direitos do texto e os direitos de seus intérpretes”. As idéias de indeterminação e de instabilidade, originadas nos pensamentos de Derrida, foram apropriadas pelos defensores do poder do leitor com o objetivo de minar os argumentos a favor do poder do texto. Segundo esses defensores, se o significado é indeterminado e instável, ele não pode estar no texto. E se o significado não está no texto, o leitor é que o produz.

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O problema da argumentação de muitos defensores do poder do leitor é o radicalismo. Arrojo (2002), por exemplo, chega a afirmar que o texto não tem conteúdo até o momento em que é interpretado pelo leitor, sendo seguida por inúmeros teóricos pós-estruturalistas da tradução no Brasil. Eco (2001, p. 27) faz uma crítica elegante a radicalismos desse tipo ao afirmar: “Tenho a impressão de que, no decorrer das últimas décadas, os direitos dos intérpretes foram exagerados”.

Eco está certo. Afinal, como é possível negar a existência de significados no texto, dando-se o poder de criação de significados exclusivamente ao leitor? E se o leitor cria significados por meio da interpretação que impõe ao texto, há limites para essa criação? O que o impede de se comportar como Humpty Dumpty? E se o texto não tem conteúdo, não possui significados antes da leitura, o que o leitor interpreta?

Os defensores radicais do poder do leitor se vêem em apuros com essas perguntas. Eles admitem que o leitor não se comporta como Humpty Dumpty. Admitem que há limites para a interpretação. Mas não conseguem dizer quais são esses limites nem responder à pergunta sobre o objeto da interpretação.

Segundo Eco (ibidem, p. 28), “[...] como Todorov sugeriu maliciosamente (citando Lichtenberg a propósito de Boeheme), um texto é apenas um piquenique em que o autor entra com as palavras e os leitores com o sentido”. Eco (ibidem, p. 28) acrescenta: “Mesmo que isso fosse verdade, as palavras trazidas pelo autor são um conjunto um tanto embaraçoso de evidências materiais que o leitor não pode deixar passar em silencio, nem em barulho”. Entretanto, apesar das evidências materiais e da dificuldade insuperável de dizer qual é o objeto da interpretação (já que, alega-se, o texto não possui significados), os defensores do poder do leitor não admitem a existência do significado literal. Resta a eles, então, radicalizar ao extremo, como faz Arrojo (1992, p. 39):

[...] para a reflexão desconstrutivista, o significado não se encontra preservado no texto, nem na redoma supostamente protetora das intenções conscientes de

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seu autor, tampouco nasce dos caprichos individualistas do leitor rebelde; o significado se encontra, sim, na trama das convenções que determinam, inclusive, o perfil, os desejos, as circunstâncias e os limites do próprio leitor.

Observe-se a saída de Arrojo: o objeto da interpretação, o leitor e o significado são todos produtos das convenções. Em outras palavras, é a comunidade que determina tudo. De onde Arrojo tirou essa posição tão radical? Do pensamento de Fish (2000), que elimina o texto e o leitor “de um só golpe” e para quem as comunidades interpretativas determinam tudo: autor, leitor, texto, significados. Nas palavras de Fish (2000, p. 14):

[...] são as comunidades interpretativas, ao invés do texto ou do leitor, que produzem significados e que são responsáveis pela emergência de traços formais. Comunidades interpretativas são formadas por aqueles que compartilham estratégias interpretativas não para a leitura mas para a escrita de textos, para a constituição de suas propriedades. Em outras palavras, essas estratégias existem anteriormente ao ato de leitura e, portanto, determinam a forma do que é lido ao invés do contrário, como geralmente se presume. (tradução minha) 3

Incapaz de manter a sua posição a respeito do poder do leitor de criação de significados sem responder às perguntas sobre o objeto da interpretação e sobre os limites da interpretação, Fish apela para o conceito de comunidades interpretativas, que passou a ser adotado por outros teóricos. Ironicamente, ao adotarem esse conceito, eles devem admitir que tudo é anterior à leitura, inclusive o significado. Adotam, também, uma postura monista radical, segundo o crítico literário Jonathan Culler (1997, p. 84):

O que vemos nas manobras de Fish são momentos de uma luta geral entre o monismo da teoria e o dualismo

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da narrativa. As teorias de leitura demonstram a impossibilidade de estabelecerem-se distinções bem fundamentadas entre o fato e a interpretação, entre o que pode ser lido no texto e o que lhe é adicionado pela leitura, ou entre o texto e o leitor, e assim conduzem a um monismo. Tudo é constituído pela interpretação – tanto que Fish admite não poder responder à seguinte pergunta: Atos interpretativos são interpretações do quê? [...] Histórias de leituras, no entanto, não deixam essa pergunta sem resposta. É preciso que haja sempre dualismos: um intérprete e algo a interpretar, um sujeito e um objeto, um ator e algo sobre o que ele age ou que age sobre ele.

Do exposto até aqui, alguns pontos ficam claros. Em primeiro lugar, teóricos têm debatido a respeito da criação de significado. Alguns defendem a existência de significados no texto antes da leitura, i.e., a existência de significados literais, sem negar o poder de criação de significados por parte do leitor. Outros negam o significado literal e conferem ao leitor o poder de criação de significados, que inexistem no texto até o momento em que é interpretado pelo leitor. Em segundo lugar, os defensores radicais do poder do leitor não conseguem responder à pergunta sobre o que o leitor interpreta se não há significados no texto antes da leitura. Em terceiro lugar, todos os teóricos envolvidos no debate admitem que há limites da interpretação, sendo que os defensores radicais do poder do leitor não esclarecem quais são esses limites. Finalmente, os defensores radicais do poder do leitor adotam o conceito fishiano de comunidades interpretativas, assumindo uma postura monista e escapando das perguntas sobre o objeto da interpretação e sobre os limites semânticos do leitor, que não se comporta como Humpty Dumpty.

Finalizando...

Humpty Dumpty não tem limites semânticos. Ele faz

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o que quiser. Tem o poder para isso. Felizmente, para o bem da comunicação e da convivência social, o leitor e o falante-ouvinte têm limites semânticos que o impedem de produzir significados caóticos. Isso é evidenciado na admissão de todos os teóricos envolvidos no debate em torno da criação de significados: há limites para a interpretação. E por quê? Porque os textos e as palavras possuem significados literais, significados a priori, significados estáveis.

É importante deixar claro o que são significados literais, estáveis. Todo falante-ouvinte de uma língua natural, ao adquirir essa língua, adquire um conjunto de palavras que fazem parte do léxico dessa língua. Ao adquirirem essas palavras, os falantes-ouvintes adquirem também os significados dessas palavras, a elas atrelados pela comunidade lingüística em um determinado momento da história. Note-se também que, ao longo da história dessa língua, a comunidade pode modificar os significados das palavras.

Assim, as palavras sempre possuem significados anteriormente ao uso que se faz delas. O falante-ouvinte ou o leitor, ao usar uma palavra, já a recebe com um significado que a ela foi atrelada pela sua comunidade lingüística. Isso não significa, entretanto, que o leitor e o falante-ouvinte não possa acrescentar significações ao significado literal. Os falantes-ouvintes e os leitores e escritores compartilham esses significados, mas cada um os interpreta a sua maneira, de acordo com sua história pessoal e com o contexto em que se encontra.

São esses significados que o leitor interpreta no texto. Os significados literais são os limites da interpretação do leitor. São os significados literais que impedem o leitor de se comportar como Humpty Dumpty. Por exemplo, imagine-se que um poema de um certo poeta apresenta a palavra “banana”. Cada leitor pode interpretar “banana” de uma forma diferente da outra, mas todos partirão do significado literal de “banana” para realizar suas interpretações, qual seja, uma fruta com tais e tais características prototípicas. É muito pouco provável que alguém parta do

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pressuposto de que “banana” significa “ornitorrinco maluco sem pernas”, como Humpty Dumpty poderia fazer.

Eco (2000, p. 10-11) lembra um episódio interessante que ocorreu em 1984. Derrida enviou a Eco uma carta informando que estava criando, junto com uns amigos, um Collège International de Philosophie e pediu-lhe uma carta de apoio. Eco comenta que partiu de alguns pressupostos para interpretar a carta de Derrida, como, por exemplo, o pressuposto de que ele estava dizendo a verdade. Eco comenta o seguinte a respeito da interpretação que fez :

É óbvio que a carta de Derrida teria podido assumir para mim outros significados, estimulando-me a fazer suspeitosas conjecturas sobre o que ele queria “dar-me a entender”. Mas qualquer outra inferência interpretativa (por mais paranóica que fosse) ter-se-ia baseado no reconhecimento do primeiro nível de significado da mensagem, literal.

É exatamente esse primeiro nível de significado que Humpty Dumpty não reconhece ao usar a palavra “glória” na sua conversa com Alice, que protesta por essa rebeldia semântica. Uma rebeldia que o pós-modernismo gostaria de ver encarnada no seu leitor, mas que não pode defender. Terry Eagleton (1998, p. 35) lembra que o pós-modernismo:

Ao mesmo tempo libertário e determinista, sonha com um sujeito livre de limitações, deslizando feito um desvairado de uma posição a outra, e sustenta simultaneamente que o sujeito é o mero efeito do conjunto de forças que o constituem.

Os limites semânticos de Humpty Dumpty são aqueles que ele quiser ter. Já os limites semânticos do leitor, moderno ou pós-moderno, desconstrutivista ou desconstruído, são os significados literais. Desses limites, ninguém escapa. Só Humpty Dumpty.

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NOTAS

1cf. trecho original:“There’s glory for you!” “I don’t know what you mean by ‘glory’,” Alice said.Humpty Dumpty smiled contemptuously. “Of course you don’t – till I tell you. I meant ‘there’s a nice knock-down argument for you!’”“But ‘glory’ doesn’t mean ‘a nice knock-down argument’,” Alice objected. “When Iuse a word,” Humpty Dumpty said in rather a scornful ton, “it means just what I choose it to mean – neither more nor less.” “The question is,” said Alice, “whether you canmake words mean so many different things.

2cf. o trecho original: [...] language does not have a shape independent of context, but since language is only encountered in contexts and never in the abstract, it always has a shape, although it is not always the same one. The problem with this formulation is that for many people determinancy is inseparable from stability: the reason that we can specify the meaning of a text is because a text and its meanings never change.

3cf. o trecho original: [...] it is interpretive communities, rather than either the text or the reader, that produce meanings and are responsible for the emergence of formal features. Interpretive communities are made up of those who share interpretive strategies not for reading but for writing texts, for constituting their properties. In other words these strategies exist prior to the act of reading and therefore determine the shape of what is read

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rather than, as is usually assumed, the other way around.

REFERÊNCIAS

ARROJO, Rosemary. A desconstrução do logocentrismo e a origem do significado. In: ARROJO, ROSEMARY. (Org.) O signo descontruído – implicações para a tradução, a leitura e o ensino. Campinas: Pontes Editores, p. 35-39, 1992.

______. Oficina de tradução: a teoria na prática. 4. ed. 3. imp. São Paulo: Ática, p. 85, 2002.

______; RAJAGOPALAN, Kanavillil. A noção de literalidade: metáfora primordial. In: ___. (Org.) O signo descontruído – implicações para a tradução, a leitura e o ensino. Campinas: Pontes Editores, p. 47-54, 1992.

CARROLL, Lewis. Alice through the looking glass. Disponível em: < http://www.cs.indiana.edu/metastuff/looking/ch6.html.gz>. Acessado em: 13/03/2004.

COLLINI, Stephan. Introdução: interpretação terminável e interminável. In: ECO, Umberto. Interpretação e

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superinterpretação. Tradução Editora Martins Fontes. São Paulo: Martins Fontes,p.1-25, 2001. Título original: Interpretation and overinterpretation.

COLLINS, Jeff; MAYBLIN, Bill. Introducing Derrida. reimp. Grã-Bretanha: Totem, 1997.

CULLER, Jonathan. Sobre a desconstrução: teoria e crítica do pós-estruturalismo. Tradução Patrícia Burrowes. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997. Título original: On deconstruction: theory and criticism after structuralism.

EAGLETON, Terry. As ilusões do pós-modernismo. Tradução Elizabeth Barbosa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. Título original: The illusions of postmodernism.

ECO, Umberto. Os limites da interpretação. Tradução Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2000. Título original: I limiti

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PRODUÇãO DE TEXTO NA ESCOLA: UMA PRÁTICA DIALÓGICA

Janete Silva dos Santos*

RESUMO: O presente texto é um resgate de uma experiência bem sucedida no ensino de produção de texto para uma clientela de ensino fundamental (5ª a 7ª séries), durante nossa atuação naquele nível. Todavia, aproveitamos a ocasião para discutir alguns pontos da aparente mudança de foco quanto ao ensino de produção de texto na escola hoje. Julgamos válido apresentar o que ficou de positivo desse trabalho, bem como refletir se estamos mudando efetivamente de atitude no tocante a essa atividade, à luz da teoria de Bakhtin (entre outros), o qual vê a linguagem como uma prática dialógica.

PALAVRAS-CHAVE: Produção de texto, Dialogismo, Ensino.

ABSTRACT: The present text is well a ransom of an experience happened in the teaching of text production for a clientele of fundamental teaching (5th to 7th series), during our performance in that level. Though, we profited the occasion to discuss some points of the apparent focus change with relationship to the teaching of text production in the nowadays school. We judged valid to present what was positive of that work, as well as to contemplate if we are changing indeed of attitude concerning that activity, to the light of the theory of Bakhtin (among other), which sees the language as a dialogic practice.

KEY WORDS: Text production, Dialogism, Teaching.

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* Profª Mestrenda Universidade Federal de Tocantins - UFTINTRODUÇãO

A produção de texto na escola vem sendo o foco da preocupação de professores, psicolingüistas e educadores em geral, numa escala cada vez maior, haja vista ser uma das metas da educação formal desenvolver no aluno, entre outras competências, a prática da comunicação escrita. Isso vem aflorando exatamente porque o alcance de tal meta tem sido uma das maiores dificuldades das instituições escolares. Contudo, pesquisas e artigos de estudiosos envolvidos com o assunto têm contribuído não apenas para a reflexão, como também para redimensionar posições teóricas, metodologias e técnicas que corroborem ou efetivem a prática da produção de texto não como uma atividade artificial, mas como uma atividade motivada por um sujeito que se assuma, ou se pretenda, como autor do texto.

Considerando os caminhos pelos quais as investigações vêm percorrendo, julgamos interessante contribuir com o debate, levando em conta nossa experiência como professora de ensino fundamental, trabalhando seqüencialmente com praticamente os mesmos alunos na 5ª, 6ª e 7ª séries, nos anos de 1996 a 1998, respectivamente, trabalho que nos deu muita satisfação. Nessa contribuição, entendemos ser relevante apresentar apenas o como nos conduzíamos em situações que envolviam a prática de produção de texto por parte de nossos alunos. Nossa inquietação surge, também, por percebermos que, apesar de todo o esforço, muitos de nós ainda andam em círculo no tocante à concepção/prática do que seja, de fato, o trabalho de produção de texto para o autor-aluno.

Nosso posicionamento parte do princípio de que só participamos de um bate-papo com interesse se houver a retro-alimentação por parte de nosso interlocutor. E isso havendo temos a oportunidade de aperfeiçoar nossa competência. Se na oralidade isso é tão real quanto à existência do ar que nos mantém vivos e se a troca enunciativa, nessa modalidade, visa à efetivação

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comunicativa, na produção escrita não é diferente. É deste diálogo que nos ocuparemos no decorrer de nossa discussão, a qual terá como suporte teórico básico o dialogismo bakhtiniano.ANTES ERA A COMPOSIÇãO

Houve uma época de nossa vivência escolar em que, na disciplina Comunicação e Expressão, éramos incitados a compor um texto para a(o) professora(o), a(o) qual verificava semanal ou mensalmente se estávamos progredindo no domínio da arte de escrever - talvez porque compor tenha a conotação de trabalho de artista - mas, e principalmente, verificava se estávamos progredindo no domínio das regras da língua. É justo destacar que, nesse tempo, durante algumas datas especiais o aluno fazia o papel de autor do escrito quando era solicitado a escrever, sob orientação da(o) professora(o), uma cartinha ou um cartão para a mãe, o pai, o avô ou avó, o tio ou a tia, ou para o Papai Noel, quer no dia dos dois primeiros, quer no Natal, entre outras comemorações, acreditando o aluno ter um interlocutor verdadeiro que reagiria aos efeitos de seu dizer, manifestando uma atitude que lhe sinalizaria retorno da mensagem enviada.

DEPOIS VEIO A REDAÇãO

Entendeu-se, no decurso, que redigir era o verbo mais apropriado para as tarefas escriturárias, e com ele o substantivo redação virou lugar comum, de tal maneira, que nem professores e pesquisadores o suportariam mais, pois a palavra redação por si só passou a abarcar toda a angústia da dificuldade e artificialidade de escrever. O texto do aluno, como é sabido, servia prioritariamente de instrumento para se verificar o conhecimento ortográfico e o domínio do uso adequado da pontuação e concordância, avançando para a verificação da capacidade do aluno em não fugir ao tema proposto (imposto), pouco importando o que o aluno pensava ou dominava efetivamente sobre tal tema, ou se estava motivado para desenvolvê-lo. A correção por parte do professor, numa pesquisa

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de Eliana Ruiz (2001, p. 48) “consiste, dessa forma, no trabalho de marcar no texto do aluno as possíveis “violações” lingüísticas nele cometidas contra uma suposta imagem do que venha a ser um bom” texto. Todavia, também é justo reconhecer que se trabalhou incansavelmente para proporcionar ao aluno motivos para escrever, através de dinâmicas de envolvimento com o tema: discussões, jogos, texto-estímulo etc..

AGORA É A PRODUÇãO DE TEXTO

Com o tempo, evoluiu-se para a preocupação com a mensagem, na verdade, com a coesão e coerência do texto, entre outros elementos que acusem textualidade, o que não difere, a nosso ver, do objetivo de se verificar a capacidade de se ser fiel a um tema proposto. Mas o diferencial das falas passou a ser a defesa de se acentuar o conteúdo sobre a forma, orientação que, também, já se ventilava na atividade de redação. Entretanto, hoje, procura-se defender a liberdade de expressão do aluno, a valorização de seu dizer, a quebra de padrões de escrita que inibem a autoria bem como anulam o desenvolvimento do estilo embrionário do aluno-autor. Defende-se, assim, a produção de textos de gêneros variados, levando-se em conta, de maneira mais concreta, as diversas funções da linguagem, até o fato de que conteúdo e forma não estão dissociados, não sendo coerente, portanto, sobrepor –se um ao outro.

Nessa linha, o que vem tomando corpo como objeto de estudo e aplicação na sala de aula é o processo da produção de texto, da produção discursiva com suas tentativas de conjugar a estabilidade e a instabilidade da língua (FIORIN, 1999), daí a valorização do como o aluno constrói um texto coeso, do como a coerência se apresenta em seu texto, do que interessa ao aluno dizer; fomenta-se, principalmente, o incentivo, mais ainda no ensino fundamental, a assunto de interesse público, de preferência que envolva o contexto imediato do aluno-autor. Por isso as várias empreitadas para se convencer o aluno de que é capaz de escrever, de que escrever é bom, evitando-se, inclusive, devolver-lhe o texto pichado de sangue. Nesse novo

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contexto, muitos professores sentem-se até inibidos de apontar as incoerências do texto, causadas por quebra de regras básicas na comunicação escrita.

Sem dúvida, todo esse nosso esforço é válido e necessário, uma vez que tateamos caminhos mais promissores para a inculcação da escrita como competência lingüística necessária para a vida em sociedade letrada, competência lingüística na prática social de indivíduos que têm obrigação, pelos anos de vida acadêmica, de manifestar níveis satisfatórios de letramento nessa habilidade. Mas o que nos inquieta é que saltamos de um alvo para outro sem mudarmos o foco.

A questão parece paradoxal colocada nesses termos, porém, recuperando o princípio que propusemos na introdução deste texto, o dialogismo bakhtiniano, não cedemos, ainda, o devido lugar ao diálogo com o texto do aluno.

Bakhtin (1997) concebe a língua como um lugar de conflitos em busca de ajustes e um produto gerado e sustentado na (e pela) interação verbal, cujo objetivo precípuo é a troca enunciativa. A língua é vista, fundamentalmente, como a base da comunicação verbal, com todas as implicações que ela, elemento complexo, envolve. Ao discordar das posições de teóricos que defendem o processo comunicativo como a relação entre locutor e ouvinte, em que o primeiro tem uma fala ativa e o segundo uma percepção passiva, diz o autor (p. 290; 291):

... o ouvinte que recebe e compreende a significação (lingüística) de um discurso adota simultaneamente, para com este discurso, uma atitude responsiva ativa: ele concorda ou discorda (total ou parcialmente), completa, adapta, apronta-se para executar, etc., e esta atitude do ouvinte está em colaboração constante durante todo o processo de audição e de compreensão desde o início do discurso, às vezes já nas primeiras palavras emitidas pelo locutor. A compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa (conquanto o grau dessa atividade seja

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muito variável); toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte torna-se locutor.

Este destaca a impossibilidade de real inércia frente aos enunciados que nos são propostos, por mais que não manifestemos resposta imediata e na mesma freqüência que os recebemos, ao prosseguir dizendo:

A compreensão passiva das significações do discurso ouvido é apenas o elemento abstrato de um fato real que é o todo constituído pela compreensão responsiva ativa e que se materializa no ato real da resposta fônica subseqüente. Uma resposta fônica, claro, não sucede infalivelmente ao enunciado fônico que a suscita: a compreensão responsiva ativa do que foi ouvido (por exemplo, no caso de uma ordem dada) pode realizar-se diretamente como um ato (a execução da ordem compreendida e acatada), pode permanecer, por certo lapso de tempo, compreensão responsiva muda (certos gêneros do discurso fundamentam-se apenas nesse tipo de compreensão, como, por exemplo, os gêneros líricos), mas neste caso trata-se, poderíamos dizer, de uma compreensão responsiva de ação retardada: cedo ou tarde, o que foi ouvido e compreendido de modo ativo encontrará um eco no discurso ou no comportamento subseqüente do ouvinte.

E esse dialogismo não fica apenas no que o autor classifica como gêneros primários, ou seja, os gêneros da comunicação verbal espontânea, que dão suporte ao surgimento dos gêneros secundários. É o que mostra na finalização do parágrafo em comento, ao esclarecer:

Os gêneros secundários da comunicação verbal, em sua maior parte, contam precisamente com esse tipo de compreensão responsiva de ação retardada. O que acabamos de expor vale também, mutatis mutandis,

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para o discurso [lido ou escrito].

O discurso lido ou escrito (grifo nosso) de que fala Bakhtin é o foco de nossa argumentação. O autor chama a atenção para o processo de troca enunciativa como uma prática de provocação mútua que dá sustentação, sentido e prosseguimento aos atos comunicativos.

O aluno provocado pelo professor a um diálogo oral na sala de aula, em geral, só se furta a participar visivelmente se for muito tímido, ou se não tiver o mínimo domínio sobre o assunto, ou se julgar o papo chato. Mesmo assim sua atitude de contenção ou indiferença, para Bakhtin, seria considerada uma atitude responsiva, responsiva muda ou de ação retardada.

Entendemos que, se o professor estivesse, de fato, pretendendo a participação manifesta imediata e concretamente de um aluno durante as discussões, a atitude descrita provavelmente poderia causar-lhe um certo desânimo ou frustração. Por outro lado, que professor experiente não percebe que certos alunos, ao se manifestarem, o fazem apenas para cumprir protocolo? Assim, o diálogo tende a morrer ou a tornar-se um faz-de-conta enfadonho.

Um texto escrito é uma proposta (expectativa) de diálogo com o outro, ausente no momento da produção, mas que se interessará, ou não, pelo enunciado captado, devolvendo-nos a resposta, esperada ou não. E isso, de alguma forma, é do conhecimento intuitivo do aluno. Não fica difícil, assim, suspeitar a dimensão do desânimo que dá àquele que tem que fazer de conta que quer dizer algo a alguém que ( já sabe de antemão) pouco se importa com o que ele diz, mas com o como ele diz, quando se importa.

Evidentemente que não podemos generalizar, todavia, só trazemos à baila o dizer do aluno escrevente, só permitimos que ele, o dizer, nos incomode, se tivermos interesse, de fato, pela vida de nosso aluno. Na vida, evitamos dialogar com pessoas desagradáveis ou que nos são desinteressantes: ou elas, ou seu dizer. Em suma, nossa análise nos faz perceber que ainda lidamos com a produção

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de texto como uma atividade mecânica, já que não há espaço em nossos interesses ao discurso do aluno, considerando que, segundo Ruiz, a leitura feita pelo professor, via correção, não é [em momento algum] a mesma que a leitura realizada por um leitor comum (RUIZ, 2001, p. 48). Esforçamo-nos por tratar o texto do aluno como um objeto sagrado: se não para reconhecer seu domínio da ortografia e dos usos adequados da pontuação e concordância, ou ainda de sua fidelidade ao tema, mas para analisar como ele consegue amarrar seu texto de forma a dar-lhe um sentido, sentido este que não nos interessa, pois concebemos, na prática, o aluno como uma cabeça oca. Alguns ainda diriam: não é cabeça oca, pois ela está cheia de tudo o que já estamos carecas de saber. Mas, se diálogo é provocar o outro a uma participação no dito...

As experiências negativas e positivas por que passamos é que nos fizerem refletir e mudar nossa visão de produção de texto e nossa prática de sala de aula. Daí o interesse em socializá-la, na tentativa de contribuir para o tratamento dado à questão.

EXPERENCIANDO O DIÁLOGO COM O DIZER DO OUTrINhO

Ao palestrar sobre os interesses do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra-MST, Stedile (apud CHEVITARESE, 2002, p. 240-241), líder do movimento, declara:

nós procuramos incorporar na nossa organização o valor da mística, que para nós é a forma de organizar o sentimento coletivo; e o sentimento não tem razão (...) ele aglutina pessoas através de símbolos (...) de práticas pedagógicas, de posturas sociais...

O sentimento que, segundo Stedile, move montanhas e impulsiona

ideiais (p. 240) é sempre bem vindo a uma prática pedagógica que foge ao mecanicismo e à artificialidade. Penso ter sido isso que nos fez experenciar uma relação diferente com os textos dos alunos. O aluno precisa sentir que seu texto vale, que o professor tem interesse

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por suas idéias, mesmo infantis, mesmo podendo estas não serem novidades para o professor.

DIRETO AO PONTO

Marcos1, como muitos de seus colegas, era um aluno de 6ª série, muito falante, mas com uma particularidade: na escrita, era muito sucinto, indo direto ao assunto. Seus interesses não diferiam dos garotos de sua idade. Como aprendera a ver a escrita como uma modalidade de comunicação, tinha oportunidade de comunicar em seus textos sua subjetividade, expectativas e frustrações, críticas e defesas ao que o circundava. No momento de socializar para a turma seu dizer, não ficava inibido, pois desde a 5ª série sabia que não escrevia apenas para a professora.

Beto2 passou a ser nosso aluno somente a partir da 6ª série, tinha ojeriza à palavra redação. Para ele era um labor inútil. Ao perguntar-lhe, certa vez, se não iria participar “daquele momento”, respondeu-nos perguntando se poderia escrever o que quisesse, o que estava sentindo. Dissemos que sim. No momento da socialização do texto, agradecemos, juntamente com a turma, a crítica que fez, por escrito, acerca da atividade – para ele, sem propósito - e tentamos argumentar a favor da prática. Percebendo que nos incomodou o que havia dito, na semana seguinte mostrou-nos um livro que estava lendo O mundo de Sofia, justificou a atitude: sabe, fessora, depois que a senhora deu bola pro que escrevi, fiquei interessado pela atividade; conversei com papai e ele me deu esse livro... que vai me ajudar a pensar melhor sobre as coisas...

É interessante notar que Beto3 percebeu que não basta dizer, mas que o como dizer facilita ou não o entendimento acerca do que se diz. Essa relação parece que já estava impregnada nele. Daí, talvez, a razão de recorrer a suportes. Penso que o nosso maior esforço é convencer o aluno disso sem mecanicismo.

Carlão4, numa semana em que não dedicamos tempo às produções individuais e às leituras dos textos, reclamou e cobrou o tempo para a “redação” (atividade discursiva na modalidade

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escrita), sendo apoiado por outros colegas. Isso nos fortaleceu o entendimento de que o aluno tem o que dizer e acredita que isso vale a pena ser dito. Só precisa o professor confirmar sua hipótese.

Desde a 5ª série iniciamos, sem nos dar conta, um trabalho dialógico com o texto do aluno. Evidentemente que usávamos de qualquer expediente que julgássemos motivador para sua discursividade através da escrita, mas o que conta aqui é o como interagíamos com seus textos. Não nos propomos a dar receitas infalíveis sobre como fazer o aluno escrever, nem apontar gêneros a serem priorizados, apenas procuraremos trazer à baila como procedemos e o que ficou de positivo na nossa avaliação.

Nesse primeiro segmento, trabalhamos com produções de textos que priorizavam o desenvolvimento de sua capacidade de descrever: a si mesmos, a família, a casa, a rua, a escola, a professora, os colegas, a sala de aula, a praça que mais freqüentavam, enfim, aquilo que achassem interessante para descrever, quer em prosa, quer em verso. Na 6ª, trabalhamos a capacidade de narrar: sua história, fatos marcantes de suas vidas ou que presenciaram, projeções, suas fantasias de vida boa e a dos outros, e outras situações, quer em texto humorístico, quer por mero relato, quer história de ficção, fosse parodiando, fosse compondo letra de música, entre outros gêneros. Na 7ª, eram instigados a discutir idéias, opinar, argumentar, contestar etc., por meio escrito. Vale dizer que, desde que iniciamos o trabalho nas três quintas séries, foi-nos informado que acompanharíamos os alunos nas séries seguintes. Na última série5, a 7ª, os alunos não desperdiçavam a oportunidade para manifestar sua versão da vida, com seus conflitos, anseios, idealizações, preconceitos e contradições.

Através de textos de alunos, pudemos sentir mais de perto o sofrimento de quem enfrentava a separação dos pais; perceber as fragilidades e expectativas próprias dos adolescentes, o despertar do namoro, da paquera; compreender algumas razões da auto-estima muito elevada de uns e muito baixa de outros. E por que a escrita não era um terror para a quase maioria? Por que era um momento

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de diálogo (BAKHTIN, 1997) à distância com a professora, que respondia à provocação, e com os colegas no momento da socialização. Alguns, é verdade, eram anarquizados por certos colegas irônicos que desdenhavam de suas histórias, opiniões, sonhos, vivências etc.. No entanto, isso só reforçava que não escreviam para o nada ou apenas para o professor [ter sua] redação [para corrigir] como tarefa de “caça erros” (RUIZ, 2001, p. 47). Tinham um (uns) interlocutor (es) atento (s) ao seu dizer; evidentemente, também, ao seu modo de dizer, pois havia momento em que salientávamos suas habilidades e deficiências, mas, como o conhecimento já nos era percebido como construção, víamos como natural a manifestação das deficiências, pois só assim poderiam ser reconhecidas e analisadas, inclusive por eles mesmos, a fim de serem superadas ou minimizadas.

Vale reconhecer que nesse período não estávamos isentas dos conflitos por que passam muitos professores, como, por exemplo, a indagação: e a conclusão do programa? Entretanto, a participação quase que espontânea da maioria dos alunos nos fazia enfrentar a consciência confiantemente, priorizando no ensino da língua materna o trabalho com o texto verbal e não-verbal, oral e escrito.

Destaque-se aqui que a valorização do texto do aluno, mormente no ensino fundamental, é crucial para que este veja a prática de produção de texto escritos como uma atividade dialógica, dinâmica, com objetivos concretos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para concluir, gostaríamos de ressaltar que há trabalhos com a produção de texto em sala de aula até mais eficazes, todavia, nosso intuito foi o de chamar a atenção para o lado prático e muitas vezes esquecido dessa atividade, isto é, se tratada como uma atividade discursiva, como de fato é, teremos mais condições de desmitificá-la para o estudante, que, como aluno, não deixou de ser um praticante da linguagem, um usuário da língua, alguém cheio de coisas a dizer, mesmo sem muita importância para outros. Ele só espera a retro-alimentação, ou seja, encontrar alguém disposto

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a ouvir/ler e dialogar com seu dizer, mais que unicamente com seu modo6 de dizer. Lidar com a discursividade em sala de aula é lidar com sentimentos, também.

NOTAS

1Nome fictício.

2Nome fictício.

3Nome fictício.

4Nome fictício.

5Esta foi a última série em que acompanhamos os alunos, pois o segmento de 5ª a 8ª, nesse período, foi finalizado nesta escola, o que vinha sendo protelado havia tempo, por mudanças no projeto institucional.

6A palavra modo aqui não deve ser entendida da forma que a Análise do Discurso a toma, mas sim como a Gramática Normativa a concebe.

REFERÊNCIAS

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qUANDO AS OVELHAS PASTAM NO ORIENTE:ESPAÇOS INTERSEMIÓTICOS ENTRE CAIO

FERNANDO ABREUE O I ChINg: O LIvrO dAS MUTAçõES

Anselmo Peres Alós*

RESUMO: A proposta do presente estudo é a de desenvolver uma leitura intersemiótica da obra Ovelhas Negras, do escritor gaúcho Caio Fernando Abreu (1995), fazendo emergir da superfície textual seu hipotexto oriental. Se a linguagem poética sempre é ao menos dupla, interagindo com o corpus de textos a ela contemporâneos ou antecessores, em Caio Fernando Abreu o diálogo que estabelece a ambivalência semiótica de seus contos remonta ao I Ching, obra clássica chinesa que se configura como expoente de duas importantes correntes filosóficas orientais: o taoísmo e o confuncionismo.

PALAVRAS-CHAVE: Conto Sul-riograndense, Filosofia Oriental, Intertextualidade

RÉSUMÉ: L’avant-propos de cet étude est la élaboration d’une lecture intersémiotique de l’oeuvre Ovelhas Negras, écrite par Caio Fernando Abreu (1995). L’intention de cet lecture est met en relief, dans la surface textuel, son hypotexte oriental. Si le langage poétique se configure toujours comme un double qui dialogue avec un corpus de textes antérieurs ou contemporaines d’elle, dans l’oeuvre de Caio Fernando Abreu on peut affirmer que le dialogue établi par les textes de cet livre de contes remonte au I-Ching, une oeuvre classique de la philosophie chinoise, qui est l’expoent de deux importantes tendences philosophiques de l’Orient: le taoísme et le confuncionisme. MOTS-CLÉ: Conte Sul-riograndense, Philosophie Orientale, Intertextualité.

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*Doutorando pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS

As palavras só contam o que se sabe.Mas quem disser: Deus é um espírito de paz,

Está repetindo um menino de sete anos, que acrescentou:Eu tenho medo é de dia; de noite não,

Porque é claro. (ADÉLIA PRADO, 2001, p. 39)

INTRODUÇãO

Ovelhas Negras, livro de contos publicado por Caio Fernando Abreu em 1995, reúne 24 textos escritos entre 1962 e 1995. O título do livro fala por si mesmo: trata-se de uma coletânea de manuscritos produzidos durante 33 anos de vida literária. A respeito da obra, afirma o autor à orelha do livro: “[n]ão consigo senti-lo (...) como reles fundo-de-gaveta, mas sim como uma espécie de autobiografia ficcional, uma seleta de textos que acabaram ficando fora de livros individuais”.

O que se pode apreender deste comentário é que Ovelhas Negras se configura como a obra marginal par excellence de Caio Fernando Abreu. Destarte, faz-se necessário pensar até que ponto essa “marginalidade” não é intencional, se mantivermos em mente que Abreu não apenas escreveu sobre sexo, drogas e rock’n roll, mas também carregou os estigmas da homossexualidade e da contaminação pelo vírus da AIDS. Talvez justamente por ser o mais “maldito” de seus livros, Ovelhas Negras seja a chave de leitura para sua obra (pensada enquanto um todo orgânico), ocupando assim esse livro o mesmo lugar privilegiado que Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres ocupa na obra de Clarice Lispector (aliás, influência confessa de Abreu1, deveras citada em epígrafes, mencionada constantemente pelos narradores criados pelo autor e mesmo pelos personagens).

Ovelhas Negras traz um arranjo estrutural arrojado e intrigante: os contos estão divididos em três grandes blocos, contendo cada bloco oito contos. Cada um destes blocos encontra-se sob o signo

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de um hexagrama oriundo do I Ching, o Livro das Mutações. Ainda que o I Ching seja considerado o mais antigo dos oráculos chineses, faz-se necessário ressaltar que, muito mais do que um oráculo, o Livro das Mutações é uma importante fonte de duas grandes correntes do pensamento chinês: o taoísmo e o confuncionismo.

Ainda no âmbito estrutural do livro, cada conto traz um pequeno prefácio, ou “o conto do conto”, como os chamou Abreu na orelha de seu livro:

[Esses contos] foram às vezes publicados em antologias, revistas, jornais, edições alternativas. Mas grande parte é de inéditos relegados a empoeiradas pastas dispersas por várias cidades, e que só agora - como pastor eficiente que me pretendo - consegui reunir. Cada conto tem seu “conto do conto”, freqüentemente mais maluco que o próprio, e essas histórias também entram em forma de mini-prefácios. A ordem é quase cronológica, mas não rigorosa: alguns tinham a mesma alma, embora de tempos diversos, e foram agrupados na mesma, digamos, enfermaria.

Mais do que dar informações sobre a gênese de cada conto, esses pequenos prefácios remetem à própria estrutura do I Ching. Composto por 64 hexagramas, corresponde a cada hexagrama um texto fragmentário, segmentado em quatro partes distintas: O Julgamento (texto acrescido a cada um dos hexagramas pelo Rei Wen), As Linhas Mutáveis (incorporadas pelo Duque de Chou) e A Imagem e O Comentário, (incluídos por Confúcio). Os prefácios de Abreu funcionam de forma análoga aos comentários de Confúcio em cada hexagrama.

Se a influência de Clarice Lispector é um dado afirmado e reiterado pelo próprio autor, como pode ser averiguado no prefácio à segunda edição de Inventário do Ir-Remediável, o mesmo pode ser dito da influência do I Ching em sua obra. Caio Fernando Abreu foi um escritor profundamente interessado em estudos esotéricos, particularmente na Astrologia, no Tarot e no I Ching. Ao explorar

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tais referências presentes em sua obra, a intenção que se quer mostrar não é a de tornar Abreu uma espécie de “profeta místico” ou “personalidade iluminada”; ao contrário, o que se pretende é, a partir da explicitação desses elementos tornar possível uma leitura de sentidos aparentemente herméticos, presentes na obra de Abreu e ainda não completamente explorados2. Assim, este trabalho tem como meta, pois, investigar como se dão as relações intertextuais entre as três primeiras narrativas do livro e o I Ching, dado que a primeira parte do livro está colocada sob o signo de Ch’ien, O Criativo.

Para operacionalizar as relações estabelecidas entre os textos, utilizar-me-ei da categoria intertextualidade, forjada por Julia Kristeva em Sèméiotikè: recherches pour une sémanalyse (1969). Kristeva parte de Bakhtin para desenvolver a noção de intertextualidade. Se o lingüista russo defende que a constituição de todo o enunciado lingüístico se dá a partir de relações dialógicas entre o texto literário e o texto histórico-social, Kristeva por sua vez avança a partir destas reflexões, operacionalizando esse raciocínio a partir de uma visada semiótica, formulando a já mencionada categoria:

(...) tout texte se constituit comme mosaïque des citations, tout texte est absortion et transformation d’un autre texte. À la place de la notion d’intersubjectivité s’intalle celle d’intertextualité, et le language poétique se lit, au moins, comme double (1969, p. 146).

Logo, a intertextualidade fica sendo definida como a interação semiótica de um texto com outro texto. Intertexto, por sua vez, é o texto ou o corpus de textos com os quais um determinado texto mantém aquele tipo de interação. Michael Riffaterre (1978) propõe que seja estabelecido - para definir a intertextualidade - que se leve em consideração uma relação estabelecida através de qualquer tipo de identidade estrutural (como se texto e intertexto se configurassem como variantes de uma mesma estrutura). Aguiar e Silva discorda dessa postura de Riffaterre, lembrando que tal afirmação está ligada a uma “metafísica estruturalista” (SILVA, 1993, p. 626) que falseia

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- ao mesmo tempo em que não compreende - a dinâmica semiótica em toda a sua abrangência. O intertexto, por sua existência anterior e subterrânea ao texto, pode ser lido “debaixo” - por assim dizer - da superfície do texto. Assim, há um texto outro, palimpséstico, oculto sob o texto, o que justifica a utilização de termos como subtexto e hipotexto no lugar da consagrada categoria intertextualidade (RIFATERRE, 1978 e 1979).

REALIZANDO A PRIMEIRA LEITURA

É sob o signo do Criativo que Caio Fernando Abreu organiza a primeira seqüência de narrativas. Neste primeiro bloco de contos, oito textos estão subordinados à seguinte epígrafe: “aparece uma revoada de dragões sem cabeça”. Esta frase corresponde às Linhas Mutáveis do primeiro hexagrama do I Ching. A revoada de dragões sem cabeça ocorre quando todas as linhas do hexagrama são mutáveis. Sendo Ch’ien composto unicamente por linhas yang, a mutação das seis linhas conduz ao segundo hexagrama (K’un, o Receptivo), composto de linhas ying. Ch’ien e K’un são hexagramas que correspondem à cristalização das essências yang e ying, respectivamente. Ying e yang são paradigmas complementares e não excludentes na cultura chinesa, ao contrário dos binarismos da cultura ocidental. É importante manter em mente que é a complementaridade e a permanente alternância entre o ying e o yang, e não a exclusão simultânea entre estes dois pólos que dá sustentação à filosofia oriental. Para compreender tais paradigmas, deve-se pensar as duas colunas abaixo como simultaneidades complementares, e não como pólos excludentes, tal como elas se organizam e se opõe na cultura ocidental:

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Assim, ao utilizar os aspectos ligados à coincidência das seis linhas mutáveis em Ch’ien (identificável pela frase e, tal ocorrência correspondente), transformando-o em seu outro complementar, Abreu condensa ao mesmo tempo tais narrativas sob o signo dúplice da origem e fim, materializando a idéia do eterno retorno e da permanente transformação. Observe-se agora como tal dominância de sentido refletir-se-á nas três primeiras narrativas deste bloco, todas elas versando sobre a busca do amor.

O primeiro conto, intitulado “A Maldição dos Saint-Marie”, é na verdade um romance escrito pelo autor em 1962, quando tinha 12-13 anos, por ocasião de um concurso escolar. O conto traz como personagem principal a jovem Adriana, camponesa seduzida por um nobre chamado Fernando Saint-Marie. O cenário é composto por um castelo e bosques franceses, às voltas dos Pirineus. Ao contar ao nobre que está grávida, é insultada por Fernando, que a espanca e a abandona. Voltando ao castelo, encontra-se com Eleonora, prima distante e noiva de Fernando. Quando cai a noite, os três personagens têm seus pensamentos observados pelo narrador: Fernando está tenso, pensando na possibilidade de que Adriana conte à sua (dele) mãe que está grávida; Eleonora começa a desconfiar que seu noivo tem uma amante na vila, e dorme afogando lágrimas no travesseiro; finalmente, Adriana planeja sua vingança, se preparando para infiltrar-se no castelo como criada. Enquanto isso, Eleonora está em seu quarto, gritando apavorada, atormentada por fantasmas. Acudem-na Amália e Dona Ilsa, a matriarca Saint-Marie, e ambas comentam que Eleonora deve estar enlouquecendo.

Mais um dia começa, e a família Saint-Marie reúne-se para o café. Adriana começa a trabalhar no castelo. Durante o café, Ilsa anuncia que seu outro filho, George, voltará em breve a morar

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com a família, no castelo. A notícia desagrada Amália. Fernando, que havia ficado em seu escritório trabalhando sem descer para o café, nota que Adriana está no castelo, e fica preocupado, pensando que esta falará de sua gravidez para Dona Ilsa. Puxa-a então para o seu quarto e pergunta o que ela faz ali, ao que ela responde “[e]stou empregada aqui, Fernando, e aqui ficarei até meu filho nascer” (ABREU, 1995,p. 25).

À hora do almoço, ocorre o anunciado retorno de Georges ao castelo. Logo os olhos dele e os de Adriana cruzam-se: “George sorriu para Adriana, simpatizara com ela. A moça retribuiu-lhe o gesto, sorrindo timidamente. E ficariam ali a fitar-se se Ilsa não os interrompesse” (ABREU 1995, p. 26). Fernando tudo percebe e sente-se enciumado. À noite, Adriana serve o jantar a George em seus aposentos, e se descobre apaixonada: “Adriana sentia que encontrara o seu verdadeiro amor e estava feliz. Ela amava George como nunca tinha amado ninguém. Era um sentimento puro, calmo, belo, muito diferente da violenta paixão que sentira por Fernando” (ABREU, 1995, p. 27). No dia seguinte, George declara estar apaixonado por Adriana. O conflito estava posto.

Após o almoço, Dona Ilsa e Adriana saem para uma caminhada, e a matriarca diz: “[m]inha filha, sou velha e experiente, não procure esconder nada de mim. Eu sei o que há. Você... você vai ter um filho, não é isso?” (ABREU, 1995, p. 29). Entretanto, Ilsa se mostra piedosa e comunica a Adriana que não tem intenções de expulsá-la do castelo. Mais tarde, durante o jantar, Eleonora tem um mal-estar súbito, oportunidade para que o velho Danilo de Saint-Marie (patriarca praticamente inválido, mas cujos conselhos eram sempre ouvidos) fale sobre a maldição que paira sobre a família: “[m]inha filha, ouça um conselho ditado por um homem velho e experiente. O que você tem sempre aconteceu com as noivas dos Saint-Marie, algumas chegam a morrer antes de casar e...” (ABREU, 1995, p. 31). Em seguida, revelando à Eleonora que esta é a maldição da família, sugere que se casem o mais rápido possível. Marca-se então o casamento entre Eleonora e Fernando para o próximo mês. Após o jantar, George e Adriana decidem comunicar seu noivado

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no dia do casamento de Fernando. Eleonora, por sua vez, continua tendo alucinações até o dia do casamento.

Chegando o dia da cerimônia, Adriana vai até o quarto de Eleonora para preparar a jovem para a celebração. Realiza-se então a cerimônia, e George anuncia seu noivado; todos se dirigem então para o castelo, no qual um grande almoço seria servido. Entretanto, logo em seguida, Eleonora se lança de um precipício, suicidando-se.

O clima fica então muito pesado sobre a família Saint-Marie nos dias seguintes, e logo Adriana começa a ter as mesmas visões de Eleonora. Apressam-se todos a realizar o casamento, desta vez praticamente em segredo. Cinco dias depois, durante a madrugada, ouviram-se gritos enlouquecidos vindos do quarto de Amália. Esta, enlouquecida, corria pelos corredores austeros do castelo com um toco de vela na mão, ateando fogo em tudo, enquanto gritava: “Eleonora morreu! E Adriana morrerá também! Os Saint-Marie morrerão todos! Eu os matarei um a um! Sempre fui tratada como uma criada, mas me vingarei! Hei de matar a todos, todos!” (ABREU, 1995, p. 41).

Todos fogem do castelo em chamas, e Fernando, pouco antes de morrer, pede perdão à Adriana. Amália finalmente confessa seus crimes Finalmente, abandonando as ruínas do castelo os noivos caminham abraçados, “parecendo uma promessa de esperança e fé no futuro” (ABREU, 1995, p. 43). Dois traços dessa narrativa ficam muito evidentes pelo que foi visto até aqui. O primeiro deles diz respeito às histórias de contos de fadas enquanto uma espécie de matriz para o texto; o segundo diz respeito à técnica de releitura-adaptação tão cara a Caio Fernando Abreu, que pode ser observada pela superposição da matriz fabular a questões contemporâneas do jovem contista, como as intrigas e os triângulos amorosos, o sexo antes do casamento e a vingança passional. O fato de estar sob o signo de Ch’ien traduz também a importância dessa narrativa - vista pelo próprio autor como tosca e imatura - para o conjunto de sua obra. Sendo Ch’ien o primeiro hexagrama, o hexagrama da origem, esta narrativa primeira permite captar algumas preocupações que

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vão se repetir ao longo da obra do escritor: os contos de fada (retomados na segunda narrativa, intitulada “O Príncipe Sapo”), o sexo, a solidão e o abandono (leitmotiv do livro Morangos Mofados) e a preocupação com o místico e com o sobrenatural (a velha negra que aparece en passant no conto e que pode ser vista como prenúncio das influências da afro-religiosidade em narrativas como “Dodecaedro”, incluída em Triângulo das Águas). Sob o signo das mutações, tudo flui e evolui, e a “tosca narrativa” acaba dando origem a uma peça de teatro, tal como afirma Abreu no “conto do conto” deste texto.

Na segunda narrativa, intitulada “O Príncipe Sapo”, o tema do amor e o mote das fábulas infantis é retomado. Entretanto, ao contrário de “A Maldição dos Saint-Marie”, este conto não segue o típico script narrativo dos contos de fada; ele vai trazer a história de Teresa, uma mulher quase quarentona, solteira e ainda virgem. Teresa foi vendo a vida passar, esperando a chegada do grande amor e vendo suas irmãs casarem. Todas elas. Após a morte dos pais, Teresa herda a casa, recebe visitas das irmãs e começa a dedicar o tempo ocioso a ler histórias infantis, desenvolvendo então o curioso hábito de se pôr à janela para espiar a vizinhança (e procurar marido). Vai colocando apelidos nas pessoas, todos tirados de histórias infantis. Até que surge o príncipe sapo.

O príncipe sapo, que a princípio apenas desperta o humor de Teresa, começa a atormentá-la em seus sonhos, até que ela finalmente se encoraja e resolve procurá-lo, embora sem sucesso. Indagando por ele pela vizinhança, descobre que o príncipe sapo se chama Francisco: “[e]ra professor de piano, pobre solteiro, morava na pensão da esquina. O nome: Francisco, todos chamavam de Chico (ABREU 1995, p. 50; 51). Teresa decide comprar um piano, despertando a ira e a desaprovação de todas as irmãs e cunhados. Procura então Chico para começar suas lições de piano:

No começo tinha nojo dele. O Homenzinho apagado demais, humilde demais, sempre quieto, como

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consciente do desprezo que provocava, e por isso mesmo mais desprezível. Mas ao cair de uma tarde, Teresa surpreendeu-se a olhá-lo com pena, depois com compreensão, depois com simpatia, depois... Bem, noutro dia suas mãos tocaram-se rápidas sobre o teclado. Afastaram-se logo. A dele trêmula, nervosa; a dela hesitante; ambas, encabuladas. No dia seguinte buscaram-se discretamente, tocando-se como que por acaso, as quatro mãos. Uma semana mais tarde olharam-se nos olhos. Olhos fatigados, de gente quase velha, quase sem ilusões (ABREU, 1995, p. 52).

Finalmente, Teresa toma coragem e pede Chico em casamento, ao que ele responde com uma negativa: “[f]oi no quartel, há muitos anos. Uma granada, você sabe, explosão, um acidente, estilhaços. Não sou um homem inteiro. Só meio homem, entende, Teresa? Não me obrigue a falar nisso!” (ABREU, 1995,p. 55). Chico então se retira lentamente, e nunca mais retorna. Quanto a Teresa, vendeu o piano e fez uma grande fogueira no quintal, onde jogou todos os livros infantis que com tanto afinco lera. E, com eles, queima também suas esperanças.

No terceiro conto, “A Visita”, Abreu trabalha ainda com uma história de amor (ou a sua respectiva busca), mas desta vez sem lançar mão da “moldura” dada pelos esquemas narrativos dos contos de fadas, tal como nas duas narrativas vistas anteriormente. Ainda lançando mão do “conto do conto”, Abreu adianta ao leitor desatento que “A Visita” traz inúmeras relações intertextuais com a literatura latino-americana, particularmente Fuentes e García Márquez.

Tudo começa quando um estranho homem chega devagar e senta-se à varanda de uma casa, um homem “de pés descalços, semelhante a raízes” (ABREU, 1995, p. 58). As crianças o evitavam a princípio, mas aos poucos ninguém mais dava atenção para aquela figura plantada na varanda. Aos poucos, entretanto, a presença daquele homem na varanda começa a perturbar a ordem natural das coisas:

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Mas com o dia avançando, as sombras ampliavam a presença do homem pela casa inteira. Essa sombra se infiltrando devagar em cada quarto jogava no rosto de cada um aquilo que não haviam sido, que não haviam feito, tudo aquilo que tinham apenas ameaçado ser, intensos e cheios de sangue, para depois se amoldarem num dia-a-dia feito de automatismos. Quieta, remota, a presença do homem era uma afronta (ABREU, 1995, p. 59).

Valentina, a matriarca da família, começa aos poucos a se mostrar mais perturbada por aquela presença do que as outras pessoas da família:

Valentina viu que seus pés descalços pareciam raízes grossas ameaçando entrar pelo chão de tijolos, viu que suas unhas eram longas, ovaladas e quase verdes, feito folhas, e que seu rosto pétreo parecia um fruto sendo aos poucos esculpido, ainda verde, mas cheio de sementes que transpareciam no olhar (ABREU, 1995, p. 61).

Assustada, Valentina retorna para casa, indo dormir. No dia seguinte, quando os filhos estavam no trabalho, os netos na escola e as noras ocupadas com os afazeres domésticos, subiu até o quarto de sua mãe, e afirma: “[e]le voltou”, ao que sua mãe responde: “[é] tempo” (ABREU, 1995, p. 62). A partir daí, Valentina começa a perceber e a reagir ao mundo de forma ímpar. Finalmente, ao final do conto, Valentina aproxima-se do homem-árvore e percebe que o fruto está maduro. Esmagando-o entre os dedos, leva seu sumo aos lábios “[e] quando finalmente sentiu-se protegida e úmida, e limpa e sorridente outra vez, e confortável e em paz, deixou que seus movimentos se espaçassem, suspirou e morreu” (ABREU, 1995, p. 66).

Cortando a narrativa, várias cenas do conto lembram o realismo mágico latino-americano. Valentina tecendo sua trama azul-marinho, as crianças comendo terra no quintal ou as orgias promovidas pelos filhos lembram muito certos episódios de Cem Anos de Solidão. Entretanto, o que chama a atenção é o amálgama

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entre o marido de Valentina (supostamente falecido) e a figueira no quintal. A relação travada entre Valentina e a figueira/marido, culminando com a compreensão e a súbita morte desencadea um desfecho epifânico, constante em várias narrativas de Abreu. Não é à toa que seu livro de crônicas se chama Pequenas Epifanias, e curiosamente publicado apenas depois de sua morte.

EVIDENCIANDO O INTERTEXTO ORIENTAL

Para entender a relação entre essas três narrativas e o intertexto chinês, cabe retomar as Linhas Mutáveis do I Ching. De acordo com o Tao, princípio subjacente ao oráculo, apenas a não-ação é capaz de permitir que a consciência visualiza claramente os problemas e suas possíveis soluções. Assim, as imagens contidas no I Ching funcionam de forma análoga às parábolas bíblicas, ilustrando princípios a partir dos quais se deve seguir para enfrentar obstáculos. As três narrativas aqui analisadas rondam todas em torno de uma mesma questão, a saber, a busca do amor. E, se forem analisadas à luz das máximas do I Ching, é possível observar que elas apontam para uma trajetória que parte de pequenas mutações e deslocamentos, abarcando as seis máximas das Linhas Mutáveis.

Comecemos pensando a primeira protagonista, Adriana. Seu percurso na narrativa começa com a gravidez e o abandono, e culmina com o encontro de seu grande amor. Ora, logo após o primeiro conflito com Fernando, Adriana porta-se de acordo com a primeira máxima (“O Dragão se esconde. Não é o momento de agir”). Ao invés de se deixar conduzir pela raiva contra Fernando, Adriana aguarda pela oportunidade de concretizar seus planos de vingança, o que acaba ocorrendo quando, mais tarde, adentra o castelo como criada. Após seus primeiros atritos com Fernando, Adriana comporta-se novamente como se estivesse ouvindo a segunda máxima do I Ching (“O Dragão aparece em campo. É favorável encontrar pessoas”); ela não apenas encontra pessoas, firmando um pacto de amizade e cumplicidade com Dona Ilsa, como aceita George como seu novo amor. Fernando morre ao final da narrativa,

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não por obra nem graça de Adriana; ao contrário, ele redime-se, pedindo perdão a ela (que por sua vez aceita). Em síntese: Adriana transformou não apenas a si mesma, mas também ao ambiente que a cercava e teve a sua justiça feita. A justiça não é vista aqui como algo normativo ou punitivo, ela não tem esse caráter de valor; ao contrário, é vista como o resultado do re-ordenamento natural do universo a partir do momento em que alguém (no caso da narrativa, o príncipe Fernando) desestabiliza com suas ações o fluir natural dos acontecimentos.

Na segunda narrativa, o comportamento de Teresa mostra-se condizente com a terceira máxima (“O homem está atento e ativo. Suas preocupações o acompanham até o anoitecer”). Ainda que aturdida pela espera de um marido, Teresa se mantém atenta, observando da janela possíveis candidatos para casar entre os passantes. Até que, finalmente, conhece Chico-Príncipe-Sapo. Ao propor-lhe casamento, vê-se frustrada, dado que Chico teve a genitália atingida por um estilhaço de granada enquanto estava no exército. É neste ponto que a quarta máxima se faz ouvir: “O Dragão, ainda escondido, prepara-se para sair”. Para compreendê-la, entretanto, faz-se necessário observar o comentário do Duque de Chou incorporado às Linhas Mutáveis:

Embora se tenha atingido uma posição elevada, ainda é possível subir mais. É uma encruzilhada; há dois caminhos possíveis: renunciar à luta e isolar-se, para desenvolver a própria vida interior, ou continuar, para alcançar uma posição muito importante e influente. A escolha deve ser feita segundo a própria consciência (I CHING, 1989, p. 15).

É a partir deste comentário que pode ser entendida a atitude de Teresa: Teresa opta pela primeira opção, a de continuar sozinha e desenvolver a própria vida interior. Isso fica claro no momento em que a protagonista queima todos os livros infantis que lia e relia obsessivamente. Romper com as narrativas de “príncipes-

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encantados” não significa aceitar a frustração e interromper a busca; ainda que Teresa termine com um acesso piromaníaco, faz-se necessário lembrar que o fogo não funciona apenas como símbolo da intensidade/insanidade, mas também da iluminação espiritual. Logo, esse acesso piromaníaco de Teresa pode ser visto como a mesma loucura que se abateu sobre os apóstolos quando tomados pelas línguas de fogo do Espírito Santo, cena relatada nos Evangelhos das Sagradas Escrituras. Não é difícil aceitar que após atear fogo a seus livros infantis Teresa tenha desenvolvido uma forma outra de conduzir sua existência, e talvez o fato de encararmos seu fim como o de uma pessoa derrotada pelas convenções seja ilustrativo de nossa própria capacidade de não entender o entusiasmo de Teresa com seu novo caminho interior. Lembremos que o entusiasmo, a criatividade e o impulso inicial são conceitos que também estão sob o signo de Ch’ien na tradição oriental.

Finalmente, no terceiro conto (“A Visita”), a personagem Valentina, que não é apenas a protagonista, mas também a focalizadora3 da narrativa, parte da quinta máxima (“o Dragão está voando no alto do céu. É preciso encontrar pessoas importantes”), tanto que rapidamente ela apercebe-se que o homem sentado na varanda é seu marido. Entretanto, todo um processo de assimilação é necessário para que Valentina compreenda no todo a extensão de sua visão. Quando vislumbra o rosto do falecido marido no figo ainda verde, consulta a sabedoria da mãe para saber o que deve fazer. O hermético diálogo que mãe e filha estabelecem assemelha-se muito ao processo de consulta ao milenar oráculo chinês. Segundo especialistas no processo de utilização do I Ching como oráculo, suas respostas são muitas vezes tão herméticas que só fazem sentido quando o problema está solucionado. Ainda que pareça, desta maneira, que uma consulta a tal oráculo se revele inútil, de acordo com o pensamento oriental isso serve para indicar que as coisas caminham no ritmo certo, no mesmo fluxo que o restante dos acontecimentos do universo.

A mensagem lacônica da mãe de Valentina é tempo é análoga

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à sexta máxima: “o Dragão invade um território que não é seu, ultrapassando os limites”. O Dragão, que pode ser visto como a própria Valentina, ultrapassa seus limites ao invadir os limites do “marido-árvore”. Ao ultrapassar os limites da vida, osculando o simbólico fruto que não é mais do que o próprio rosto de seu marido, Valentina morre. Entretanto, ela ultrapassa seus próprios limites, na medida em que se funde com o marido, aceitando uma existência que não é mais a da vida carnal, passando a habitar o mesmo mundo etéreo do marido, com o qual pode finalmente se reencontrar.

Assim, da busca plenamente realizada da primeira narrativa, Caio Fernando Abreu trata a busca afetiva como renúncia em favor da reflexão interior em “O Príncipe Sapo” para, finalmente, encontrar uma saída metafísica de caráter similar ao realismo mágico latino-americano. Neste percurso, pontua sua trajetória com máximas implicitamente situadas, deixando para seus leitores o papel de refazer percursos a partir de pequenas pistas, como o hexagrama colocado no início de cada bloco de Ovelhas Negras. A partir do I Ching, foi possível reconstruir parte do percurso, extraindo sentidos e produzindo uma interpretação que leva em conta não apenas insigts, mas referências textualmente citadas pelo escritor, que abrem margem a um percurso singular de leitura, que conjuga a filosofia oriental como intertexto explícito da obra. Para finalizar, retomo uma frase do contista, pronunciada a respeito do suposto hermetismo de seus contos: “talvez seja um pouco cifrado, mas para um bom leitor certo mistério nunca impede a compreensão” (ABREU, 1995, p. 244).

NOTAS

1“Creio que o mais perigoso neste Inventário é a excessiva influência de Clarice Lispector, muito nítida em histórias como Corujas ou Triângulo Amoroso: Variações Sobre o Tema. Mas há ainda outras

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influências (...)” ABREU, C. F. Inventário do Ir-Remediável. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 1995. p. 6.

2Um dos poucos trabalhos que conheço que se encaminha em direção a uma exploração da simbólica de Abreu é a dissertação de mestrado de Mairim Piva, intitulada Uma Figura às Avessas: Triângulo das Águas, de Caio Fernando Abreu, na qual a autora trabalha a partir da crítica do imaginário (calcada sobre o pensamento de Gilbert Durand e Gaston Bachelard) sobre a obra Triângulo das Águas.

3Mieke Bal desenvolve em seu Narratology: introduction to the theory of narrative (2nd ed. Toronto/Buffalo/London: University of Toronto Press, 1997) a noção de focalizador, que ela diferencia da de narrador,partindo de algumas considerações já feitas por Gerard Genette. Segundo a autora, é possível identificar o focalizador de uma narrativa a partir dos verbos de percepção utilizados por este (por exemplo, “fulano observava que beltrano estava pálido”); a partir desses verbos é que se torna possível observar de que ponto os eventos estão sendo narrados.Afirma também a autora que as funções de focalizador podem ou não se acumular em uma mesma voz; assim, no caso do conto “A Visita”, não há a coincidência entre o narrador (homodiegético intruso, pois ele pode “ver” o pensamento da protagonista) e a focalizadora (a personagem Valentina). A coincidência entre narrador e focalizador em uma mesma voz resulta naquilo que Genette chama de narrador autodiegético, combinação que não merece ser aqui explorada, visto que não ocorre em nenhuma das narrativas analisadas.

REFERÊNCIAS

ABREU, Caio Fernando. Triângulo das Águas. 2. ed. rev. pelo autor. São Paulo: Siciliano, 1991.

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______. Ovelhas Negras. Porto Alegre: Sulina, 1995.

______. Inventário do Ir-Remediável. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 1995. AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da Literatura. v. 1. Coimbra: Almedina, 1993.

BAL, Mieke. Narratology: introduction to the theory of narrative. 2nd ed. Toronto/Buffalo/London: University of Toronto Press, 1997.

BRIK, O.; et all. Teoria da Literatura: Formalistas Russos. Tradução: Ana Maria Ribeiro, Maria Aparecida Pereira, Regina L. Zilberman e Antônio Carlos Hohlfeld. Revisão: Rebeca Peixoto da Silva. Org., Apresentação e Apêndice de Dionísio de Oliveira Toledo. Prefácio de Boris Schnaiderman. Porto Alegre: Globo, 1971.

DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

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VARIAÇÕES GRAFEMÁTICAS EM TRÊS TRATADOS MEDIEVAIS PORTUGUESES

Rita de Cássia Ribeiro de queiroz*

RESUMO: Os três tratados medievais – “Dos benefícios de Deus”, “Livro da consciência e do conhecimento próprio” e “Da amizade e das qualidades do amigo”, compõem a tradição portuguesa do texto ascético-místico “Castelo Perigoso”, compilado em dois manuscritos alcobacenses: ALC 199 e ALC 214, pertencentes à Biblioteca Nacional de Lisboa. A partir do estudo das variações grafemáticas que as duas versões apresentam, analisar-se-á alguns aspectos que marcam a ortografia portuguesa medieval.

PALAVRAS-CHAVE: Variação Grafemática, Português Medieval, Literatura Religiosa.

RÉSUMÉ: Les trois traités médiévaux – “Dos benefícios de Deus”, “Livro da consciência e do conhecimento próprio” e “Da amizade e das qualidades do amigo”, font partie de la tradition portugaise de l’oeuvre ascétique-mystique “Castelo Perigoso”, qui est compilée dans les deux manuscrits alcobacenses: ALC 199 et ALC 214, appartenant à la Bibliothéque Nationale de Lisbonne. À partir d’étude de les variations graphémátiques qui présent les deux versions, quelques aspects de l’orthographie médiéval portugaise seront analisés.

MOTS-CLÉ: Variation Graphémátique, Portugais Médiéval, Littérature Religieuse.

*Professora Adjunta do Departamento de Letras e Artes - UEFS

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A obra “Castelo Perigoso”, tradução de uma longa epístola francesa, escrita por Frère Robert, monge cartuxo, para sua prima, Soeur Rose, freira da Ordem Fontevrault, encontra-se entre as obras do período medieval português.

Em Portugal foi traduzida no Mosteiro de Alcobaça, existindo atualmente dois códices de posse da Biblioteca Nacional de Lisboa.1 A versão portuguesa constitui, na realidade, uma adaptação livre do original francês, pois não há uma correspondência precisa que possa ter originado a tradução.

A obra “Castelo Perigoso” contém sete tratados, assim designados: 1 Castelo Perigoso; 2 Dos benefícios de Deus; 3 Livro da consciência e do conhecimento próprio; 4 Da amizade e das qualidades do amigo; 5 Das penas do inferno; 6 Das alegrias do paraíso; 7 Livro dos três caminhos e dos sete sinais do amor embebedado.

A partir da edição dos segundo, terceiro e quarto tratados: “Dos benefícios de Deus”, “Livro da consciência e do conhecimento próprio” e “Da amizade e das qualidades do amigo” (QUEIROZ, 2002), apresentar-se-á as variações grafemáticas que figuram intra e entre os dois manuscritos alcobacenses: ALC 199 e ALC 214.

Diante desta perspectiva, realizou-se três edições – uma semidiplomática, uma crítica e uma modernizada dos três tratados (QUEIROZ, 2002). Para o estudo das variações grafemáticas, foi eleita a edição semidiplomática, cuja interferência do editor ocorreu somente quanto ao desdobramento das abreviaturas, sendo a mais conservadora e a que permite que se detecte elementos que possibilitam uma análise da scripta do texto.

No entanto, é importante esclarecer que este tipo de estudo, ou seja, da scripta do texto, só é possível a partir de edições críticas de caráter conservador. Ao se eleger este tipo de edição, levou-se em consideração o que diz Tavani (1988, p. 35):

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(...) a constatação de que cada texto é um produto histórico, no qual se refletem a situação pessoal do autor, a sua concepção de mundo, seus conflitos sócio-econômicos, suas experiências existenciais, seus conhecimentos teóricos e práticos, o grau de sua adesão a todas as convenções do seu tempo e a coletividade a que pertence.

Seguindo esta orientação, buscou-se oferecer o texto mais próximo possível do original, tentando com isso chegar ao português corrente no período medievo português.

1 O CONTEÚDO DOS TRÊS TRATADOS

O segundo tratado, Dos Benefícios de Deus, assim como o primeiro, Castelo Perigoso, foi traduzido do francês. Contudo, as Horas da Cruz, em verso francês, foram suprimidas da tradução portuguesa. Esse tratado desdobra, amplamente, um trecho do primeiro acerca da comunhão (capítulo 47). O próprio autor, a partir de uma nota no capítulo 69 acentua o fato, levando-se a supor ser ele o autor do primeiro tratado. Nos capítulos 70 a 81 são apresentados os doze frutos espirituais do Santíssimo Sacramento, voltados para a Paixão.

O terceiro tratado, Livro da Consciência e do Conhecimento Próprio, traz conselhos do autoconhecimento. São abordados os seguintes temas: alma enamorada de Deus (capítulo 83), vaidade do mundo (capítulos 84 e 85) e conselhos espirituais (capítulos 86 a 88). A partir do capítulo 89 passa-se a tratar do autoconhecimento. No capítulo 91, há uma passagem referente aos sofrimentos de Jesus. Esse trecho remete ao primeiro tratado, no qual, o autor, em sete capítulos (40 a 46), refere-se à Paixão de Cristo.

O quarto tratado, Da Amizade e das Qualidades do Amigo, é o mais breve de todos. Apresenta-se em oito capítulos, sendo cinco dedicados às qualidades que se deseja num amigo: discrição,

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bondade, boa consciência, modéstia, fidelidade e que “nom seja sanhudo nem bravo”. Sem isso, a amizade não será preservada.

2 A GRAMÁTICA DO PORTUGUÊS MEDIEVAL

A variação da escrita do texto medieval é constante, pois até então não havia uma normatização ortográfica, prevalecendo a representação da letra tanto no sentido de “sinal gráfico” quanto no sentido de “pronúncia”, ou seja, “som”.

Pêro de Magalhães de Gândavo (1981, p.9-10) diz:

As letras que se costumão muitas vezes trocar hu)as por outras, e em que se cometem mais vicios nesta nossa linguagem, são estas que se seguem, conuem a saber, c, s, z, e isto nace de não saberem muitos a differença que ha de hu)as às outras na pronunciação.

Muitos estudiosos do português medieval afirmam que, durante esse período, os livros eram copiados, freqüentemente, pelo processo do ditado para vários copistas ao mesmo tempo, os quais cometiam erros e diversificavam a grafia ao sabor do ouvido e da ignorância. Assim, mesclavam formas mais arcaicas com as da sua época em decorrência da falta de informações. Esse período da língua portuguesa é considerado fonético e, segundo Williams (1986, p. 33):

Cabe ressaltar que, oriundos de uma cultura escrita em Língua Latina, cabia aos copistas e/ou escribas representar muitos novos sons que não existiam em latim, sendo obrigados, portanto, a adaptar velhas grafias ou a inventar novas.

Michaëlis de Vasconcelos (1946, p. 33) afirma que eles realmente escreviam o que falavam, às vezes de forma perfeita ou imperfeita, de acordo com os vinte e cinco caracteres do alfabeto herdado.

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2.1 AS VARIAÇÕES GRAFEMÁTICAS

Serão analisadas as variações vocálicas e as variações consonânticas ocorridas inter e entre os manuscritos 199 e 214.2.1.1 As variações vocálicas2.1.1.1 Vogais orais

Variações entre os grafemas <e> e <i>

Variações entre os grafemas <o> e <u>

As vogais mediais simples alternam-se na passagem do latim para o português com uma boa freqüência. Essa oscilação poderia ser uma variação gráfica livre; poderia ser uma representação da variante dialetal fônica de um mesmo vocábulo; ou seria uma indecisão de como grafar o segmento fônico.

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Variações entre os grafemas <e> e <o>

Variações entre os grafemas <e> e <a>

Segundo Mattos e Silva (1989, p. 77) há, para os casos acima, uma dissimilação que evita a repetição do mesmo segmento nas sílabas sucessivas.

Variações entre os grafemas <i> / <j> / <y>

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Nestes exemplos, o fonema / i / aparece representado poligraficamente por <i>, <j> e <y>.

2.1.1.2 Vogais nasais

Serão apresentadas aqui as seguintes variações:· Vogal com til sobreposto: V)· Vogal seguida de <m>· Vogal seguida de <n>

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Os exemplos acima mostram que a scripta das vogais nasais apresentam uma variação grafemática, cuja nasalidade é marcada ora pelo diacrítico ~, ora pelo grafema <m>, ora pelo grafema <n>.

2.1.2 As variações consonânticas

Variações entre os grafemas <b> / <v> / <u>

As consoantes: oclusiva bilabial sonora / b / e a fricativa labial sonora / v / são representadas, graficamente, pelos grafemas <b>, <u> e <v>. Esta variação aponta, segundo Leão (1983, p. 54), para uma confusão existente entre / b / e /B / nos dialetos setentrionais portugueses. São variações que documentam a cadeia etimológica. Ex.: povo: lat. populus, i > poboo (séc. XIII) > poblo (séc. XIII) > pobro (séc. XIII) > pouoo (séc. XIV) – povoar – povoblar (séc. XIII) > povobrar (séc. XIII) > pouar.

Variações entre os grafemas <ll> e <l>

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Variações entre os grafemas <f> e <ff>

A simplificação do grafema <ll> para <l> e do grafema <ff> para <f> decorre de um processo etimológico: na passagem do latim para o português as consoantes geminadas foram simplificadas. A duplicação que ocorre nos exemplos acima pode ser caracterizada por uma ultracorreção etimológica ou pseudoetimológica do copista.

Variações entre os grafemas <gu> / <g> e <qu> / <c>

Tanto o grafema <g> seguido das vogais <a>, <o> e <u>, quanto o grafema <gu> seguido por <e> e <i> representam a oclusiva velar sonora, assim como os grafemas <c> diante de <a>, <o> e <u> e <qu> diante de <e>

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e <i> representam a velar surda. Os exemplos acima mostram que o grafema <u> não possui valor fonético. O uso de <gu> e <qu> nos contextos apresentados é meramente um grafismo, representando apenas uma tradição gráfica latina. A alternância <c> / <qu> diante de <a> é, de acordo com Huber (1986, p. 51), freqüente em português desde o século XIII. Mattos e Silva (1989, p. 96) questiona se esses segmentos representariam a mesma articulção ou seriam variantes fônicas de um mesmo vocábulo. Para Maia (1986, p. 429), trata-se de um fenômeno de ultracorreção gráfica, pois a semivogal / u / não mais era pronunciada, tanto quando seguida por <e> ou <i>, como também por <a> ou <o>.

Variações entre os grafemas <ç> e < z>

Nestes exemplos a representação gráfica recebe influência fonológica. O grafema <ç> representava o fonema africado surdo / ts /, que evoluiu para / s /, estando no contexto intervocálico passa a / z /, o que levou os copistas a oscilaram quanto à sua representação gráfica.

Variações entre a presença e a ausência do grafema <h>

Em latim o grafema <h> representava uma aspiração. No processo evolutivo essa aspiração foi-se perdendo, o que gerou

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confusão no que se refere à grafia, pois ora se grafava com <h> ora não. O que pose ser comprovado de acordo com os exemplos acima.

Variações entre os grafemas <ss> e <s>

O fonema / s / deveria ser representado, etimologicamente, pelo grafema <s> em posição inicial absoluta, em posição inicial de sílaba depois de vogal nasal e de consoante. Em posição medial intervocálica deveria ser representado pelo grafema <ss>, quando não antecedido por nasal.

Os exemplos pessoa / pesoa, oriundos do latim persona, ae, o grupo -rs- latino modifica-se para –ss- por assimilação já em latim vulgar.

Os exemplos senom / ssenam e sam / ssam referem-se apenas a um grafismo sem valor distintivo.

Variações entre os grafemas <ç> e <c>

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Segundo Maia (1986, p. 442), o grafema <ç> desde o final do

século XIII e início do século XIV passa a representar a fricativa pré-dorsal surda, independente do contexto, seguido de vogal anterior ou posterior. Mas, desde o século XIII que o grafema <c> ocorre com mais freqüência que <ç>. O uso desses grafemas indica que o copista pode ter uma realização diferente e hesitar quanto à representação mais apropriada da consoante.

Variações entre os grafemas <rr> / <r> / <R>

Os grafemas <r> e <rr> representavam os fonemas vibrantes / R / e / r /, respectivamente. A alternância entre os grafemas <rr> <R> e <r> parece ser meramente gráfica, dependendo da opção do copista. Geralmente o <R> tem valor de / r / dobrado : / rr /.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo da variação grafemática em três tratados medievais portugueses, referentes a dois códices de datação variada: o manuscrito 199 é da segunda metade do século XV e o manuscrito 214 é da primeira metade do século XVI, revela que algumas oscilações na grafia são decorrentes de fatores diversos, tais

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como: influência etimológica, simples grafismo, ultracorreção ou influência fonológica.

NOTA

1 Cota na Biblioteca Nacional de Lisboa: ALC 199 e ALC 214.

REFERÊNCIAS

CARDEIRA, Esperança Maria da Cruz Marreiros. Contributo para o estudo da norma ortográfica no scriptorium de Alcobaça (1431-1446). Lisboa: Faculdade de Letras, 1990.

GÃNDAVO, Pero de Magalhães de. Regras que ensinam a maneira de escrever e a ortografia da língua portuguesa: com o diálogo que adiante se segue em defensão da mesma língua. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1981. GUERRA, António Joaquim Ribeiro. Os escribas dos documentos particulares do Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça - 1155-1200: Exercícios de análises de grafias. 1988. Dissertação (Mestrado em Paleografia e Diplomática) Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, Lisboa.

HAUY, Amini Boainain. História da língua portuguesa: séculos XII, XIII e XIV. São Paulo: Ática, 1989.

HUBER, Joseph. Gramática do português antigo. Tradução Maria Manuela Gouveia Delille. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986.

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LEÃO, Duarte Nunes do. Ortografia e origem da língua portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1983. Introdução, notas e leitura por Maria Leonor Carvalhão Buescu.

MAIA, Clarinda de Azevedo. História do galego-português: estado lingüístico da Galiza e do Noroeste de Portugal desde o século XIII ao século XVI (com referência à situação do galego moderno).

MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Estruturas trecentistas: elementos para uma gramática do português arcaico. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989. ______ . O português arcaico: fonologia. São Paulo/Salvador: Contexto/EDUFBa, 1991.

MICHAËLIS DE VASCONCELOS, Carolina. Lições de filologia portuguesa. Lisboa: Revista de Portugal, 1946. OLIVEIRA, Fernão de. A gramática da linguagem portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1975. Introdução, leitura actualizada e notas por Maria Leonor Carvalhão Buescu.

PAIVA, Dulce de Faria. História da língua portuguesa: século XV e meados do século XVI. São Paulo: Ática, 1988.

QUEIROZ, Rita de Cássia Ribeiro de. “Dos benefícios de Deus”, “Livro da consciência e do conhecimento próprio”, “Da amizade e das qualidades do amigo”: Edição e vocabulário onomasiológico de três tratados da obra ascético-mística “Castelo Perigoso” (Cód(s). ALC 199 e ALC 214. 2002. 475 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.

SANTANA NETO, João Antônio de ; QUEIROZ, Rita de Cássia

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Ribeiro de. Variação grafemática no texto do “Castelo Perigoso”. Estudos Lingüísticos, São Paulo, v. 28, p. 188-193, 1999. SILVA NETO, Serafim da. História da língua portuguesa. Rio

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CINEMA BRASILEIRO: DO SERTãO PARA O MUNDO...

Cláudio Novaes*

A importância do cinema sertanejo no projeto de identidade

nacional brasileira, bem como a retomada desse tema no nosso cinema contemporâneo, constituem os dois focos principais nas análises sobre as imagens sociais, políticas e culturais do Brasil apresentadas no livro Cinema et Littérature au Brésil – Les mythes du Sertão: émergence d’une identité nationale, da professora Sylvie Debs1, no qual a autora afirma que o sucesso da nossa cinematografia implica na nossa própria imagem internacional, confirmando “a que ponto a imagem do país está ligada à sua expressão cinematográfica”.

Li o texto original deste livro ainda em forma de tese de doutorado, quando fora apresentada na universidade de Grenoble, França. Percebi a preocupação da pesquisadora em informar, para os leitores/espectadores estrangeiros, certos aspectos da cultura brasileira, particularmente aqueles que se internacionalizaram através das representações literárias e cinematográficas, como o foi o mito do sertão, em meio a outros mitos da identidade brasileira, representados numa literatura e numa cinematografia bastante equilibrada entre o estereótipo e a reversão de tais mitos.

A pesquisa da professora Sylvie Debs é de grande densidade informativa, também para leitores, espectadores e pesquisadores brasileiros, porque apresenta uma perspectiva estrangeira bastante produtiva nas interpretações de documentos históricos, literários e cinematográficos importantes para uma reflexão sobre o Brasil contemporâneo. Apesar da metodologia de investigação privilegiar a tomada panorâmica da história cultural brasileira, fazendo um recorte cultural datado entre 1902-1995, a autora aprofunda algumas problemáticas culturais e políticas; e são pertinentes algumas mitologias geopolíticas e culturais enfocadas a partir do tema sertanejo. Por exemplo, quanto à relação entre os discursos * Prof. Dr. da Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS

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nacionais do ‘centro’ e os chamados ‘regionalistas’, para ela, “o Nordeste apresenta a particularidade de ter sido tratado dentro de uma dupla perspectiva: regional e nacional, tanto por escritores originários do Sul, quanto do Nordeste. O romance regional pode ser percebido como um dos fatores de cristalização da identidade nacional”.

Partindo destas considerações gerais para nós brasileiros, mas repleta de sutilezas discursivas, Sylvie Debs mergulha num amplo projeto de historiografia, de crítica estética e de crítica da cultura, para refletir em sua leitura dados sobre aspectos geopolíticos e culturais das representações literárias e cinematográficas do nosso país, tomando principalmente o cinema do/sobre o sertão como corpus de análise no século XX - (1902 e 1995), datas limites para ela, dividindo esta temática entre as publicações de Os sertões, de Euclides da Cunha; e do filme Central do Brasil, de Walter Sales. Duas obras de grande impacto no Brasil e no estrangeiro, que, apesar de distanciadas no tempo, são amalgamadas num movimento de passado/presente/futuro que transcende num gesto elíptico a memória lírica/trágica da nossa arte nacional referenciada no sertão brasileiro. Como ela mesma escreve, “a imagem do sertão exprime uma diversidade que se organiza dentro de uma linha passado/futuro representado por um espaço sagrado e mítico...”

Discutindo traços da nossa história social e cultural, tomando o espaço compreendido entre uma narrativa do inicio do século XX e a outra do final deste mesmo século, Sylvie Debs percorre vários movimentos e obras da cultura brasileira, para remover detalhes de obras sociológicas, antropológicas e ficcionais. Um olhar interessado em entender a realidade brasileira atual, a partir do viés diacrônico da investigação sobre a ética/estética representada na literatura e no cinema de tema do sertanejo, movimento que ela traduz na 3a parte do livro, que tem como título: “realidade ao mito: as representações do sertão”, em que conclui que os interesses da literatura e do cinema, ao ficcionalizar o nordeste brasileiro como tema da Identidade Nacional, passa pela evolução do movimento do olhar do Sul em direção ao Norte. Segundo ela, “podemos constatar

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que esta olhar progride da exterioridade para a interioridade, da distinção para a assimilação, da exclusão para a integração”. Sylvie Debs considera importante, nesta evolução cultural e política, os efeitos concretos da história social e os simbólicos da arte em obras nacionalistas, destacando a transformação por dentro do olhar positivista de Os sertões, até a versão sertaneja atual em Central do Brasil; tomando estas e outras obras como memórias flutuantes/atuantes na desconstrução do sujeito nacional brasileiro.

A documentação elencada por Sylvie Debs em sua tese de doutoramento é aproveitada no livro: releituras de muitos documentos históricos/sociais; reflexões sobre movimentos literários e cinematográficos; interpretações de obras de ficção da literatura e do cinema; além das preciosas entrevistas com pesquisadores e diretores de cinema (estas entrevistas infelizmente menos exploradas nas análises críticas do texto, mas que estão sendo divulgadas paulatinamente em revistas especializadas em vários países); documentos estes que, em conjunto, privilegiam o tema sertanejo, tornando este livro uma importante fonte bibliográfica sobre o Brasil na França; e também importante para os pesquisadores brasileiros interessados em constatar como as problemáticas da literatura e do cinema nacionalistas do nosso país são assimiladas fora daqui. Para ela, da mesma forma que Os sertões pode ser considerado como uma resposta às mudanças sociais na virada do século XIX brasileiro, além de ainda forjar uma ‘legitimidade nacional’ da República; também o cinema novo exerce o papel de legitimar a nossa cinematografia internacionalmente e acompanhar o desenvolvimento técnico e político nacional depois dos anos 1950/60, porque estas questões chegam renovadas aos filmes atuais da virada do século XX, que dialogam de forma produtiva com o cinemanovismo, preservando a memória coletiva elaborada pelos modernistas da literatura e do cinema no século XX; assim como o livro Os sertões dialogou produtivamente com o Romantismo e o Naturalismo do século XIX, construindo a integração simbólica de cada região no complexo nacional da brasilidade, tomando o tema sertanejo como paradigma do

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discurso lírico da identidade, mas dramatizando a tragédia social em documentos e monumentos literários, depois cinematografadas a partir de efeitos éticos/estéticos regionais/nacionais/internacionais. As principais obras analisadas no livro articulam uma geopolítica local com a federativa, construindo estatutos políticos e artísticos aos quais a literatura modernista e o cinema moderno retornam, para vislumbrar uma utopia nacional-popular progressista pautada na alteridade da cultura brasileira.

NOTAS

1DEBS, Sylvie. Cinema et Littérature au Brésil – Lês mythes du sertão:

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O HOMEM DO CAMISãOAo município de Ipirá e à lenda do Homem do Camisão.

Cláudio Novaes*

Aparecia sempre pontualmente e sereno todos os dias. Cumpria sua vida sem exceção. Sua pontualidade já era a marca da sua existência e apontava um mistério. Os seus mistérios eram amplificados no silêncio barulhento dos cochichos da população, esta dividida entre o medo e a curiosidade despertada pelo Homem do Camisão.

Despertara fascínio e revoltas da população humilde daquele lugar. Se pudermos chamar de população aquelas poucas almas agregadas ou aparecidas quase do nada, que começaram a ocupar aquele vale entre A serra do Espinhaço e o Monte Alto, antes povoado por índios, os quais legaram suas fantasias nos nomes dos acidentes geográficos da passagem, como aquele rio temporário - Rio do Peixe, que só desfila as águas em épocas de chuva, todo o resto do ano parece um espinhaço de peixe morto.

O Homem do Camisão aparecia sempre pontual e vestido no sobretudo escuro, mas de cor indefinível, que a cada olhar parecia mudar de coloração, como se esta vestimenta fosse extensão da pele. A roupa era sempre a mesma, não desbotava e nem amarrotava. Ele parecia estar sempre esperando uma entrevista especial com imperadores e rainhas. E isso espantava os demais viventes...

- Impossível! Para que sempre alinhado nessas paragens tão distantes da capitá? Indagavam os curiosos.

Sua fama crescia proporcionalmente ao lugar. As novas casas construídas em torno da fazenda eram frutos que brotavam da sua fama. As terras tomadas aos índios e as doações do império ainda não eram grandes atrativos, mas os novos habitantes ouviram falar do Homem do Camisão e foram arrastadas pela curiosidade para aquelas bandas.

* Prof. Dr. da Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS

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- Não tenho mesmo destino! Vou acampar por aqui nessa baixada. Diziam alguns passantes, tropeiros, mascates. E o que era pouso rápido, tornava-se, muitas vezes, estadia definitiva. E para isso contribuiu muito o mistério do Homem do Camisão. Aquele homem distante do presente, trajando permanentemente a postiça pele escura.

Se fosse já a época do cinema clássico, ele teria seus modelos nos filmes noir ou nos misteriosos personagens de Hitchcock; ou quem sabe não era nosso Homem da Capa Preta no começo das suas desventuras. Estes parâmetros de imagens têm hoje suas projeções sombrias sobre o passado, mas as interpretações do povo, por mais distantes, eram elas que singularizavam o apelo do mistério romântico e febril, seja ele atribuído ao divino ou ao diabólico. Lumière ainda não havia plantado a força da imagem movimento no coração dos homens com o glamour da arte cinematográfica, mas muitos Quixotes já escapavam das páginas de Cervantes, para recomporem-se em novos imaginários e participações especiais nos filmes e romances de toda a humanidade.

Esse Homem do Camisão lançava sua atração para fora do tempo, pelo menos fora do tempo dos habitantes daquele lugar. Não eram pouco impressionantes as expressões de espanto, buscando explicações no sobrenatural, quando ele desfilava pontualmente aquele corpo esguio e impassível.

Todo dia na mesma hora ele aparecia entre olhares e comentários, como se surgisse de qualquer lugar; de lugar algum... Mais uma página de romance aberta e o personagem vivendo livremente seu papel; autor desconhecido e anônimo e a história seguindo além das palavras, silenciosamente... O silêncio dele só reforçava a curiosidade de todos. Ficavam torcendo para ouvir uma réstia de luz em forma de voz do Homem do Camisão, porque qualquer palavra daquela figura iluminaria o lugar com um clarão; todos pensavam assim! Mas o que aconteceria se ele revelasse ser um homem comum, descendo do mistério construído em torno do seu traje e pelo silêncio nebuloso?

Melhor não falar, porque as palavras podem revelar falhas e

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ruídos. Nem o som dos seus pés tocando o chão seco do sertão, nem as folhas mortas pelo sol incessante se permitiam debulhar qualquer música que não fosse de mistério, quebrando gravetos ou esmagando folhas secas. Parecia não haver nem respiração, seu sopro ia e vinha com o movimento da brisa e seu vital aconchego na noite morna do sertão. Parecia uma vida fora da vida e rodeada por um vácuo, que o acompanhava a cada passo nas caminhadas sob o crepúsculo.

O Homem do Camisão não fazia nenhum mal imediato, somente o sofrimento da curiosidade naqueles pobres devotos do destino, dos mitos e das assombrações. Ele inundava o espaço de cortesia e fineza, porque não incomodava a ninguém, mesmo que alguns mais afoitos já o tivesse escolhido para adoração, aproximando-se tanto dele, que, às vezes, esbarravam em seu corpo que quase tombava mediante os obstáculos. Sua atitude cortês permanecia, apesar do recolhimento imediato, assim que via o atropelo de gente curiosa. Essa imagem o fazia respeitado; e ninguém, mesmo aqueles mais valentes forasteiros, que já haviam apeado muitas vidas nas vendas e becos do pequeno arraial, tinham coragem de se indispor com ele. Não conseguiam ignorá-lo e até criavam um clima de rejeição, mas sufocado à distância, pois a força do mistério que o rodeava não estimulava os mais corajosos a desafiá-lo; a não ser em momentos de bebedeira, quando gritavam impropérios, mas sempre bem longe do Homem do Camisão. Quando ele se aproximava, todos se comportavam como cabritos enjeitados diante da altivez.

Aquele camisão era sua marca. O que traria por baixo dele? Era um punhado de incógnitas. A vestimenta de um rei, que se completava na elegante bengala, substituindo um cetro imperial. Era dono de boa parte daquelas terras por heranças e conquistas. Ninguém o vira por ali antes. Todos diziam que vivia sozinho no casarão recuado no sopé da serra do Monte Alto. Fora, por certo, o primeiro habitante branco daquela região, a desbravar sistematicamente a natureza pastoril e agrária. Pois, os homens que estavam ali antes dele, eram nômades ou coletores do imprevisível.

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Depois os tropeiros, que continuaram lhe fornecendo o trabalho, carregando malas e caixotes para a fazenda, transportando coisas que os próprios carregadores não sabiam ao que se destinavam. Por certo, móveis, objetos de luxo, roupas vindas de longe e outras coisas, que o Homem do Camisão demonstrava apreço, mais cuidadoso do que com as pessoas. Ninguém imaginava o que continha naqueles caixotes tão bem protegidos. Ele só os abria quando todos já houvessem dispersado.

Depois da chegada do Homem do Camisão acendera-se essa novidade na localidade tão isolada. Substituindo os hábitos corriqueiros por aquelas idiossincrasias, que mobilizaram o povo em torno dele. Depois de cada passeio pontual e invariável vestido em seu Camisão, tudo passara a ser diferente. O silêncio o acompanhava pelo campo, quando ele observava o céu detidamente, admirando os pássaros mais comuns. E quando estava distante – geralmente na direção do Rio do peixe! – parecia fazer uma conferência para alguma platéia invisível, gesticulando pausadamente, como se dialogasse com o invisível. Sempre gesticulava a cabeça para cima e para baixo, com as mãos e dedos apontando, espalmando ou fechando no ar, como afirmando uma certeza. Alguns moradores mais afoitos o acompanhavam ocultos os seus quilômetros de caminhada e voltavam cada vez mais assustados com aqueles movimentos distribuídos sem palavras. E a população crescia cada vez mais no embalo desse mistério.

Moradores mais antigos diziam que no início se assustavam com “aquele fantasma”, que parecia viver no “mundo da lua”, acenando para as árvores e os bichos. Mas agora, eles continuavam morando ali e já se acostumaram com “essas novidade da gente do litorá”.

Passaram-se muitos anos... Os moradores já se divertiam com aquelas “malucagens” do Homem do Camisão. Mas o segredo e o mistério dele não desvanecera, atraía sempre a atenção dos novos. A notícia ganhara do sertão ao litoral, todos já falavam sobre o Homem do Camisão. Os habitantes de lugares distantes se deslocavam em verdadeiras romarias só para visitar aquele lugar,

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pois já corria a estória de que ele poderia ser um “santo”, ou um sábio enviado da cidade para guiar os destinos dos pecadores.

-Ele inté conversa sem palavra! Diziam os crentes mais obstinados, vindos de muito longe na esperança de encontrar o Homem do Camisão.

Nesse fluxo, novos moradores chegavam a vila crescia. Tudo que acontecia era atribuído à onipresença do Homem do Camisão. Alguns esperavam sua bondade na concessão de um ‘taco terra’ e acampavam em torno da sua fazenda. Aquele era o lugar escolhido, chegavam com a proteção do céu.

A aglomeração, pouco tempo, fez desaparecer os últimos índios, assimilando-os na família ou na bala; os pássaros começavam a rarear; o Rio do Peixe perdia seu leito de cristal. A confusão de gente quebrava a antiga tranqüilidade do lugar: recém nascidos fuzilavam o silêncio; brigas traziam incertezas, fumaça das queimadas acinzentavam o céu e a tapera virara campo de extermínio de animais: porcos gritando, galinhas chocando, bois mugindo entre meninos e trapaças dos novos cidadãos.

Mas o Homem do Camisão ainda aparecia pontualmente, como sempre! Driblava a avalanche de curiosos, ouvia silenciosamente muitas reclamações de homens e mulheres, era atacado por cachorros vadios, mas ele parecia eterno e avesso à nova ordem, mantendo suas caminhadas metido no Camisão.

Um dia, ele andava normalmente na mesma direção do Rio do Peixe, como sempre fizera sem falhar um só dia e desapareceu.

Agora, depois de muito tempo, não se sabe de onde ele veio

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