a contribuição de abraham joshua heschel para a filosofia

18
Temática Livre DOI – 10.5752/P.2175-5841.2011v9n21p321 Licença Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivs 3.0 Unported Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 21, p. 321-338, abr./jun. 2011 - ISSN: 2175-5841 321 A contribuição de Abraham Joshua Heschel para Filosofia das Ciências The contribution of Abraham Joshua Heschel to Philosophy of Science Renato Somberg Pfeffer * Resumo O presente artigo defende que a ciência moderna não é a única ou a melhor forma de explicação possível da realidade. A religião, especificamente, pode ser uma protagonista na construção de um novo paradigma de conhecimento em uma sociedade secularizada. A filosofia de Heschel busca na tradição judaica uma luz para o homem moderno. Esta tradição afirma que o mundo descansa sobre três pilares: estudar para participar da sabedoria divina, cultuar o criador e ter compaixão pelo nosso próximo. Nossa civilização subverteu esses pilares fazendo do estudo uma forma de alcançar o poder, da caridade um instrumento de relações públicas e do culto uma forma de adorar nosso próprio ego. Esta crise extrema exige uma reorientação radical: estudo, culto e caridade são fins, não meios. Os insights de Heschel podem ser fundamentais para compreensão da condição humana em sua historicidade e do mundo como lugar de realização da humanidade. Palavras chave: Heschel; ciência; religião. Abstract The article argues that modern science is not the only or best explanation of reality. Religion, specifically, can be a protagonist in the construction of a new paradigm of knowledge in a secularized society. The philosophy of Heschel seeks guidance in Jewish tradition for the modern man. This tradition states that the world rests on three pillars: to study in order to participate in the divine wisdom; to worship the creator; and to have compassion for our neighbor. The philosopher states that our civilization has subverted these pillars making the study a way to achieve power, charity a public relations tool and cult a form of worshipping our own ego. This extreme crisis requires a radical reorientation: study, worship and charity are ends, not means. The insights of Heschel may be fundamental to understand the human condition in its historicity and the world as a place of humanity’s fulfillment. Keywords: Heschel; science; religion. Artigo recebido em 05 de abril de 2011 e aprovado em 14 de junho de 2011. * Professor do Ibmec-MG e do Cefet-MG. Graduado em História pela Faculdade de Filosofia Belo Horizonte e em Jornalismo pela UFMG. Pós-graduado em História do Brasil pela PUC Minas. Mestre em Sociologia pela UFMG. Doutor em Filosofia pela Universidade Complutense de Madrid (título revalidado pela UFJF). País de origem: Brasil. E-mail: [email protected]

Upload: legioomini

Post on 19-Nov-2015

14 views

Category:

Documents


3 download

DESCRIPTION

Artigo sobre Abrahm Joshua Heschel, pensador judeu e sua contribuição à Filosofia.

TRANSCRIPT

  • Temtica Livre DOI 10.5752/P.2175-5841.2011v9n21p321

    Licena Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivs 3.0 Unported

    Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 21, p. 321-338, abr./jun. 2011 - ISSN: 2175-5841

    321

    A contribuio de Abraham Joshua Heschel para Filosofia

    das Cincias The contribution of Abraham Joshua Heschel to Philosophy of Science

    Renato Somberg Pfeffer*

    Resumo

    O presente artigo defende que a cincia moderna no a nica ou a melhor forma de explicao possvel da realidade. A religio, especificamente, pode ser uma protagonista na construo de um novo paradigma de conhecimento em uma sociedade secularizada. A filosofia de Heschel busca na tradio judaica uma luz para o homem moderno. Esta tradio afirma que o mundo descansa sobre trs pilares: estudar para participar da sabedoria divina, cultuar o criador e ter compaixo pelo nosso prximo. Nossa civilizao subverteu esses pilares fazendo do estudo uma forma de alcanar o poder, da caridade um instrumento de relaes pblicas e do culto uma forma de adorar nosso prprio ego. Esta crise extrema exige uma reorientao radical: estudo, culto e caridade so fins, no meios. Os insights de Heschel podem ser fundamentais para compreenso da condio humana em sua historicidade e do mundo como lugar de realizao da humanidade. Palavras chave: Heschel; cincia; religio.

    Abstract

    The article argues that modern science is not the only or best explanation of reality. Religion, specifically, can be a protagonist in the construction of a new paradigm of knowledge in a secularized society. The philosophy of Heschel seeks guidance in Jewish tradition for the modern man. This tradition states that the world rests on three pillars: to study in order to participate in the divine wisdom; to worship the creator; and to have compassion for our neighbor. The philosopher states that our civilization has subverted these pillars making the study a way to achieve power, charity a public relations tool and cult a form of worshipping our own ego. This extreme crisis requires a radical reorientation: study, worship and charity are ends, not means. The insights of Heschel may be fundamental to understand the human condition in its historicity and the world as a place of humanitys fulfillment. Keywords: Heschel; science; religion.

    Artigo recebido em 05 de abril de 2011 e aprovado em 14 de junho de 2011. * Professor do Ibmec-MG e do Cefet-MG. Graduado em Histria pela Faculdade de Filosofia Belo Horizonte e em Jornalismo pela UFMG. Ps-graduado em Histria do Brasil pela PUC Minas. Mestre em Sociologia pela UFMG. Doutor em Filosofia pela Universidade Complutense de Madrid (ttulo revalidado pela UFJF). Pas de origem: Brasil. E-mail: [email protected]

  • Renato Somberg Pfeffer

    Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 21, p. 321-338, abr./jun. 2011 - ISSN: 2175-5841 322

    1 Introduo

    Somos hoje protagonistas e produtos de uma nova ordem produzida pela cincia que

    tem colocado o prprio conhecimento cientfico em xeque. O vigoroso progresso das

    ltimas dcadas fez estremecer as bases do paradigma cientfico nascido na modernidade.

    Frente instabilidade do sistema presente, sempre sujeito a rupturas, Souza Santos (1988)

    levanta a hiptese de que a crise do paradigma cientfico moderno tem provocado o

    declnio da confiana epistemolgica; o que provocou a instalao entre ns de uma

    sensao de perda irreparvel tanto mais estranha quanto no sabemos ao certo o que

    estamos em vias de perder (SOUZA SANTOS, 1988, p. 47).

    A hiptese fundamental que baliza as especulaes de Souza Santos sobre uma nova

    ordem cientfica emergente a falta de sentido na distino entre cincias naturais e

    cincias sociais e a necessidade de se operar uma sntese entre elas. Dessa primeira

    hiptese, o socilogo portugus deriva uma segunda: a cincia moderna no tolerava a

    interferncia dos valores humanos ou religiosos, pois o homem era visto apenas como o

    sujeito do conhecimento. O novo paradigma cientfico afirma que o objeto a continuao

    do sujeito e, por isso, todo conhecimento cientfico autoconhecimento. Na prtica, isso

    significa que os pressupostos metafsicos, os sistemas de crenas, os juzos de valor no

    esto antes nem depois da explicao cientfica da natureza ou da sociedade. So parte

    integrante dessa mesma explicao (SOUZA SANTOS, 1988, p. 67). A cincia moderna

    no a nica ou a melhor forma de explicao possvel da realidade. A metafsica, a

    religio, a arte ou a poesia podem ser to vlidas quanto a cincia.

    O presente artigo defende o possvel protagonismo das religies para construo de

    um novo paradigma de conhecimento em uma sociedade secularizada. O potencial das

    religies na atual sociedade foi bem percebido na mudana de posio de Habermas sobre

    esse assunto. Inicialmente, em sua obra Teoria da razo comunicativa (1987), ele

    defendia que a integrao social, historicamente levada a cabo pela religio, era na

    contemporaneidade competncia da razo comunicativa. Posteriormente (HABERMAS,

    1990), ele sugere a inconvenincia de renunciar o potencial das tradies religiosas para

    compreender os conceitos fundamentais da histria do esprito. Tambm defende que na

    religio encontramos contedos semnticos irrenunciveis para a correta modelao das

  • Temtica Livre Artigo: A contribuio de Abraham Joshua Heschel para Filosofia das Cincias

    Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 21, p.321-338, abr./jun. 2011 - ISSN: 2175-5841

    323

    sociedades modernas. Segundo Habermas, a clssica teoria da secularizao necessitava ser

    superada, pois a sociedade e o conhecimento continuavam a manter um dilogo com a

    religio.

    a partir das indagaes filosficas, teolgicas e msticas de Abraham Joshua

    Heschel (1907-1972) que esse artigo pretende discutir o papel da religio na produo do

    conhecimento na atual sociedade. Heschel foi antecedido e influenciado por sete geraes

    de mestres hassdicos. Acabou se tornando um dos maiores expoentes dessa tradio

    judaica que teve suas origens no leste europeu do sculo XVIII. Durante sua vida, ele

    manteve as tradies judaicas e, a partir delas, adotou um posicionamento poltico e social

    que postulava a humanizao de todos os homens. Sob influncia constante das correntes

    filosficas judaicas e no judaicas do sculo XX, e tendo como referncia a mensagem

    proftica, ele defendeu que a religio deveria assumir o papel de denunciar as injustias e

    criticar desumanizao da sociedade moderna.

    O que urgentemente necessrio so maneiras de ajudarmos uns aos outros na situao terrvel do aqui e agora, pela coragem de acreditar que a palavra do Senhor permanece para sempre, assim como aqui e agora, para cooperarmos na tentativa de levar a uma ressurreio da sensibilidade, um reavivamento da conscincia, para manter vivas as centelhas divinas em nossas almas, para alimentar a abertura para o esprito dos Salmos, a reverncia pelas palavras dos profetas, e fidelidade ao Deus Vivo (HESCHEL, 1991, p. 22).

    Heschel (1975) defende que a via religiosa tem muito a aportar para o conhecimento

    de forma geral e para uma melhor compreenso dos problemas contemporneos. Mais do

    que isso, a Bblia poderia abrir novas perspectivas para as nossas concepes filosficas do

    mundo. Na contemporaneidade, o racionalismo extremo, incapaz de reconhecer seus

    limites, conduz a humanidade perda de Deus. Para Heschel, a busca da verdade exige que

    a razo seja mediada pelo esprito, pois ambos no so independentes. Na vivncia dessa

    polaridade, o pensamento do homem no pode prescindir da presena do inefvel nem do

    mistrio (HAZAN, 2008, p. 40). Se a conscincia se aparta de Deus e no se subordina s

    exigncias da piedade, ela se torna cruel e destrutiva. Mais do que um embate de contrrios,

    Heschel aponta para os limites da razo no que tange compreenso do sentido do inefvel.

  • Renato Somberg Pfeffer

    Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 21, p. 321-338, abr./jun. 2011 - ISSN: 2175-5841 324

    2 O paradigma cientfico moderno e sua crise

    Iniciada com o Renascimento Cultural e a Reforma Protestante no sculo XVI, a

    modernidade marcada por um conjunto de valores e normas que colocam o homem como

    protagonista de sua prpria histria, sempre em estado de autossuperao e

    autocompreenso (Cf. GARCA GMEZ-HERAS, 2008, p. 4). A sociedade moderno-

    burguesa inaugurou o domnio cientfico da natureza e sups a desvinculao entre Deus e

    o homem.

    Esse processo culminou no processo de secularizao, no ideal democrtico e em

    uma concepo de histria baseada na ideia de progresso sujeito ao desenvolvimento da

    cincia moderna. Em suma, a racionalidade moderna se identificou com uma mentalidade

    ligada a mtodos cientficos, aos valores seculares, a legitimao do poder mediante

    cdigos escritos e a um Estado gestado pelo modelo burocrtico. Ao se fundar na

    matemtica, o rigor cientfico moderno buscou sempre quantificar e objetivar e, ao fazer

    isso, desqualificava e degradava os fenmenos que caracterizava. A cincia moderna fecha

    as portas a muitos outros saberes, um saber desencantado que transforma a natureza em

    um autmato, um interlocutor terrivelmente estpido (PRIGOGINE, 1980, p. 13).

    O tom otimista do humanismo moderno muda radicalmente no sculo XX aps o

    desastre das duas guerras mundiais. O humanismo doente (CAFFARENA;

    MARDONES, 1999, p. 61) da filosofia existencialista vai questionar de forma veemente a

    razo positivista da modernidade e o excessos do antropocentrismo. O sculo XX assiste,

    ento, a crise do sujeito moderno ao discutir sua consistncia. Chega-se a falar de morte

    do homem (CAFFARENA, apud RIESGO, 2010, p. 48). A essa crtica modernidade,

    pode-se acrescentar a persistncia das relaes de desigualdade nos campos do poder, do

    conhecimento e da economia, o individualismo hedonstico, a falta de solidariedade, os

    desequilbrios ecolgicos, a violncia. O projeto ilustrado em seu desenvolvimento

    histrico, portanto, se revelou irracional.

    Habermas relaciona o pensamento moderno com a f na cincia, com o progresso

    infinito do conhecimento e com as melhoras sociais e morais (Cf. HABERMAS, In: PICO

    DELLA MIRNDOLA, 1988, p. 88). O moderno significava aspirar ao rigor matemtico e

    a um tipo de conhecimento se reduzia quantificao. Tais caractersticas se puseram a

  • Temtica Livre Artigo: A contribuio de Abraham Joshua Heschel para Filosofia das Cincias

    Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 21, p.321-338, abr./jun. 2011 - ISSN: 2175-5841

    325

    servio do progresso como produo e se associaram, historicamente, com a economia de

    mercado. Por outro lado, a crematstica e o hedonismo do homo habilis propiciaram umas

    atitudes refratrias com relao sensibilidade pela dignidade humana e seus direitos

    inalienveis (RIESGO, 2010, p. 49). A conseqncia desse processo para o sujeito sua

    desintegrao frente pluralidade de possibilidades. A modernidade optou por uma cincia,

    uma poltica e uma economia sem orientao da razo moral e isso provocou a derrota dos

    ideais ilustrados. O resultado de uma sociedade dessacralizada, que enfatiza a eficcia

    pragmtica e o politesmo de valores, um sujeito individualista e narcisista.

    A ps-modernidade trouxe consigo a crise do saber totalizador e integrador dos

    metarrelatos, tais como a emancipao progressiva da razo e da liberdade, o fim do

    trabalho alienado e o enriquecimento da humanidade atravs da tecnologia. Em especial, a

    experincia histrica da humanidade desacreditou o metarrelato ilustrado que afirmava que

    as verdades cientficas levariam, necessariamente, a fins justos dos pontos de vista moral e

    poltico. Sem metarrelatos ficamos sem horizontes para dar sentido aos acontecimentos. O

    resultado prtico disso a crise de instituies permanentes que so substitudas por

    contratos temporais em todas as reas. S resta ao sujeito ps-moderno o discurso

    fragmentado.

    O sujeito ps-moderno, segundo Vattimo (2002), vincula-se com o pensamento e

    saber de fruio cujo nico objetivo desfrutar a realidade. Um pensamento sem critrios

    definitivos... um saber que se colocaria no nvel de uma verdade dbil (VATTIMO, 2002,

    p. 157). A ps-modernidade vive o presente com ato imediato perdendo o sentido da

    histria. interessante notar, porm, que por trs desse pensamento dbil e no seio da

    cultura ps-religiosa volta-se a falar do futuro da religio. Para a tradio hermenutica, em

    especial, Rorty (1997) e Vattimo (2002), a religio que pode ter relevncia na atualidade

    aquela que abdica de suas pretenses de universalidade e de legitimadora das solues

    polticas. Uma religio que preencha a solido das pessoas e se baseie no amor. Somente o

    amor pode ajudar a aceitar nossa condio fragmentada fomentando a tolerncia e a

    caridade.

    O problema desta hermenutica que, ao prescindir da metafsica, deixa sem

    soluo o problema do conhecimento. Ou seja, reduz o alcance do dinamismo intencional

    da conscincia que busca a verdade. Ao mesmo tempo, renuncia o princpio da

  • Renato Somberg Pfeffer

    Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 21, p. 321-338, abr./jun. 2011 - ISSN: 2175-5841 326

    universalidade da razo moral. Acaba, por fim, reduzindo a religio, em sua viso utilitria,

    a sentimentos morais. Esse reducionismo tico da religio no representa nenhum avano

    em relao ao discurso racional-ilustrado, ao contrrio, empobrece o sentido e o significado

    da mesma enquanto experincia de salvao tal como cr o homem religioso. necessria,

    portanto, uma hermenutica que nos ajude a descobrir os compromissos prticos da religio

    na sociedade atual.

    O relativismo e niilismo ps-moderno exigem a recuperao de um relato para que o

    ser humano possa voltar a ser o verdadeiro protagonista de sua histria. necessrio

    recuperar as referncias ticas e polticas da modernidade e construir uma nova razo

    integradora. Devemos conservar da ilustrao sua fora crtica frente ao fundamentalismo

    e, ao mesmo tempo, superar a razo unidimensional e o mito do progresso que legitima o

    imperialismo. Essa razo integral deve abarcar tanto o cientfico-tcnico como outros nveis

    do simblico, olhando mais alm do que diz a cincia nascida na modernidade. Uma

    racionalidade ampla e respeitosa com toda a complexidade do real.

    A grande questo que se coloca neste contexto a colaborao que a esquecida

    sabedoria do universo religioso pode aportar. Na crise atual, certamente, os princpios

    ticos das grandes religies podem ser recuperados atravs do dilogo. Mais do que isso,

    apesar de terem perdido sua vigncia universal, as religies oferecem aos indivduos um

    refgio frente despersonalizao de nossa sociedade. Por fim, e paradoxalmente, a mstica

    religiosa pode ser um elemento a nos ajudar em uma sociedade to descrente. No uma

    mstica que se pretende representao absoluta de Deus, mas uma mstica que fala de uma

    experincia em que nos descobrimos descobertos por Deus. A experincia mstica pode

    fortalecer a subjetividade, que passa a se sentir habitada por um fundamento originante.

    Na medida em que este fundamento amor, essa mstica tem uma notvel capacidade

    humanizadora, ao implicar uma dimenso tica e um compromisso poltico (RIESGO,

    2010, p. 67).

    A mstica assim concebida pode ajudar a desenvolver a hermenutica aludida

    anteriormente e fortalecer a liberdade madura. A aliana entre intelecto e a dimenso

    espiritual pode incorporar vivncias axiolgicas e convices profundas. Os msticos

    ensinam que o cultivo de moradas interiores nos faz mais abertos aos outros. A mstica

    porta a comunicao, a harmonia e o consenso, propiciando o dilogo e o descobrimento de

  • Temtica Livre Artigo: A contribuio de Abraham Joshua Heschel para Filosofia das Cincias

    Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 21, p.321-338, abr./jun. 2011 - ISSN: 2175-5841

    327

    um bem maior e da verdade. Frente ao hedonismo, consumismo e falta de solidariedade

    ps-moderno, a religio, em especial seu aspecto mstico, pode ser uma alternativa de

    coeso e reabilitao social. Isso no significa que a sociedade moderna deva abandonar

    sua neutralidade em relao s concepes religiosas, porm, sem uma abertura interior

    para o transcendente praticamente impossvel conceber mudanas humanizadoras em

    nossa sociedade.

    3 As cincias sociais e a crise do paradigma cientfico moderno

    A revoluo cientfica iniciada no sculo XVI criou um modelo de racionalidade

    que foi dominado pelas cincias naturais. Tal modelo global de racionalidade totalitrio

    na medida em que nega a racionalidade de outras formas que no se pautam pelos seus

    princpios epistemolgicos e pelas suas regras metodolgicas. Ao se tornar o modelo de

    racionalidade dominante, a cincia moderna, pouco a pouco, amplia seu escopo do estudo

    da natureza para o estudo da sociedade. A nascente cincia social se dividiu em duas

    vertentes principais. A corrente dominante, sujeita ao jugo positivista, consistia em aplicar

    ao estudo da sociedade os princpios epistemolgicos e metodolgicos do estudo da

    natureza. A segunda corrente, baseando-se na especificidade do ser humano, reivindicava

    para as cincias sociais um estatuto epistemolgico e metodolgico prprio.

    Essa segunda vertente das Cincias Sociais, ao questionar a aplicabilidade

    automtica de mtodos das cincias naturais s sociais, fornece indcios da crise do modelo

    de racionalidade cientfica nascido na Revoluo Cientfica do sculo XVI. No incio do

    sculo XX, Dilthey (1978) estabelece um marco importante nessas discusses: ele distingue

    o mtodo da explicao vlido para os fenmenos naturais e utilizado por iluministas e,

    depois, por positivistas do modelo da compreenso empregado pelas cincias do esprito.

    O modelo da explicao buscava estabelecer relaes de causa e efeito entre os fenmenos

    atravs da pesquisa emprica. O modelo compreensivo, por sua vez, prope captar a

    experincia germinal que estaria na base dos fenmenos sociais e, indo alm da

    reconstruo histrica, objetivava-se uma interpretao ou um sentido para os mesmos.

    Nessa mesma linha de crtica racionalidade moderna, nascia, na na dcada de 1920, a

    Escola de Frankfurt. Seus tericos denunciavam a estrutura ideolgica que existia por trs

  • Renato Somberg Pfeffer

    Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 21, p. 321-338, abr./jun. 2011 - ISSN: 2175-5841 328

    da racionalidade cientfica pretendida pelo paradigma cientfico moderno. A cincia, ao se

    desconectar da realidade social, servia apenas aos interesses das classes dominantes. Ao

    abandonar sua autonomia, afirmavam os frankfurtianos, a razo se converteu em

    instrumento, adotando uma materialidade e uma cegueira que a transformava em um

    fetiche. Noes como justia, igualdade, felicidade, tolerncia, consideradas em sculos

    anteriores inerentes razo, perderam a instncia racional autorizada para lhes outorgar um

    valor e as vincular a uma realidade objetiva (Cf. HORKHEIMER, 1973, p. 34). A razo

    iluminista, ao invs de libertar, se mostrou repressiva, totalitria e reificante.

    Na dcada de 1960, um segunda gerao de tericos da escola de Frankfurt passa a

    defender a necessidade de um novo mtodo cientfico liberto das ideologia impostas pela

    sociedade capitalista. Habermas (1987) diferencia a lgica objetiva das cincias naturais da

    lgica interpretativa das cincias humanas. Caberia ao pensamento crtico aplicado s

    cincias sociais a tarefa de superar a falsa dicotomia entre o saber e o fazer, entre a cincia

    e a sociedade. Ele vai propor, a partir da negao da objetividade e neutralidade cientfica,

    uma cincia que interviesse e transformasse a sociedade.

    O complemento do processo de fundamentao da conscincia humana pelo

    progresso cientfico-tcnico, segundo Habermas, uma despolitizao do homem que

    garante o estabelecimento de uma organizao cientfico-tecnocrtica. Associada a esse

    processo, ocorre a progressiva destruio da filosofia nas cincias. De teoria crtica da

    sociedade, a filosofia reduzida metodologia cientfica ou teoria da cincia, submetida,

    ela mesma, ao domnio tecnocrtico. Habermas chama de positivismo essa dissoluo da

    filosofia. O positivismo significaria o final da teoria do conhecimento que seria substituda

    por uma teoria da cincia. Em outras palavras, o positivismo nascido com as cincias

    modernas elimina a questo lgico-transcendental acerca das condies e sentido do

    conhecimento (Cf. HABERMAS, 1984, p. 96-99).

    A filosofia enquanto pensamento crtico se levanta contra o objetivismo do

    positivismo. Indo alm do interesse tcnico orientado pela manipulao da natureza e do

    interesse prtico que rege a comunicao intersubjetiva entre os homens, a filosofia crtica

    assume para si um interesse de emancipao. nesse sentido que Habermas se encaminha

    para formulao de um novo conceito de razo: a razo comunicativa. Seu objetivo

  • Temtica Livre Artigo: A contribuio de Abraham Joshua Heschel para Filosofia das Cincias

    Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 21, p.321-338, abr./jun. 2011 - ISSN: 2175-5841

    329

    fundamental , de um lado, que a sociedade possa assegurar-se de seus prprios

    fundamentos normativos, de outro, que a crtica leve a cabo sua tarefa de emancipao.

    4 Heschel e a crtica modernidade

    O encontro intelectual do pensamento de Abraham Joshua Heschel com a Escola de

    Frankfurt ocorreu em meio conturbada situao poltica da Alemanha da dcada de 1930.

    Forado a deixar Berlim, Heschel se dirige para Frankfurt que era, nos fins dos anos 30, um

    importante centro de estudos judaicos que tinha como expoentes Martin Buber e Franz

    Rosenzweig. Lwy (1990) chamou aquela gerao de intelectuais judeus de messinicos-

    libertrios, pois suas obras expressavam a articulao dos ideais humanistas e libertrios

    do ocidente com a viso de redeno judaica. A viso romntica deste grupo os colocou

    como crticos ferozes da modernizao que, segundo eles, era profundamente

    desumanizante.

    Nessa mesma poca se reunia, no Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, o grupo

    que mais tarde veio a ser conhecido como Escola de Frankfurt. Tambm eram crticos

    veementes da modernizao, porm, eram guiados pelo pensamento marxista e no pelo

    religioso. Apesar desta diferena, notria a matriz judaica presente na crtica da

    modernidade do comunista Walter Benjamim, o que coloca seu pensamento muito

    prximo ao do religioso Heschel.

    Messinicos-libertrios e a Escola de Frankfurt foram atingidos diretamente

    pela ecloso da segunda guerra mundial. Heschel acaba conseguindo emigrar para os

    Estados Unidos, sendo forado a abandonar sua famlia, a maior parte dela morta pelos

    nazistas. Na nova ptria, em uma poca de crise espiritual profunda, ele se transforma em

    um importante porta voz da transcendncia, do estudo e da orao como formas de

    reverenciar o ser humano.

    Foi apenas na dcada de 1960 que Heschel passou a militar ativamente na luta pelos

    direitos civis e nos movimentos em favor dilogo inter-religioso. Tais lutas eram, na sua

    percepo, atos religiosos originados na tradio proftica que acreditava e representavam

    uma guerra contra a profanao da pessoa humana. Paralelamente segunda gerao da

    Escola de Frankfurt, que negava a objetividade e neutralidade cientfica e propunha uma

  • Renato Somberg Pfeffer

    Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 21, p. 321-338, abr./jun. 2011 - ISSN: 2175-5841 330

    cincia que interviesse e transformasse a sociedade, Heschel passa a defender um religio

    com caractersticas emancipadoras.

    A posio poltica hescheliana, originada na sua concepo do apelo proftico,

    defende que so nossas aes no mundo, como parceiros de Deus na criao, que podem

    permitir superar a situao humana e alcanar a redeno. O homem, segundo Heschel,

    seria o portador de uma dignidade sagrada que o tornaria capaz de chegar humanizao. O

    caminho para humanizao e transformao do homem em imagem divina ocorreria atravs

    das mitzvot, os preceitos ordenados por Deus na Tor, que explicitam a responsabilidade

    individual pelo coletivo. O sofrimento do outro passa ser visto, portanto, como algo a ser

    eliminado.

    Essa preocupao com o outro em Heschel, que tambm est presente em Levins

    (1988), uma reao crise da civilizao ocidental na primeira metade do sculo XX.

    Diante da degradao das relaes interpessoais entre o Eu e o Outro, urgente que o

    sujeito se d conta que um ser responsvel:

    De facto, trata-se de afirmar a prpria identidade do eu humano a partir da responsabilidade, isto , a partir da posio ou da deposio do eu soberano na conscincia de si, deposio que precisamente a sua responsabilidade por outrem. A responsabilidade o que humanamente me incumbe, no posso recusar. Este encargo uma suprema dignidade do nico. Eu, no intercambivel, sou apenas na medida em que sou responsvel. (LEVINS, 1988, p. 92-93).

    Heschel acredita que a modernidade ofuscou a imagem divina do homem e

    transformou a existncia em algo sem sentido. A modernidade, ao coisificar a vida

    transformando a existncia em mera satisfao de necessidades materiais, representa para

    ele a essncia da desumanizao. Ele prope repensar a crise da humanidade e suas

    possibilidades de renovao atravs da renovao do mistrio que envolve a existncia. A

    religio, concebida por ele como dimenso sagrada da existncia, seria o caminho para isso.

    Ao descrever a espiritualidade dos hassidim no leste europeu, Heschel (1973)

    rompeu com o paradigma predominante entre os cientistas da religio norte-americanos no

    que se refere interpretao da experincia religiosa e de suas possibilidades. Mais do que

    uma experincia de devoo psicolgica ou fenmeno irracional, Heschel considerava que

    a experincia religiosa no poderia ser racionalizada; ela deveria ser pensada em seus

    prprios termos. Tambm criticava as concepes que viam o evento religioso como algo

  • Temtica Livre Artigo: A contribuio de Abraham Joshua Heschel para Filosofia das Cincias

    Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 21, p.321-338, abr./jun. 2011 - ISSN: 2175-5841

    331

    restrito no tempo ou como uma resposta a momentos de crise social. Heschel defende que a

    religio deveria assumir o papel de denunciar as injustias e criticar a desumanizao da

    sociedade moderna.

    A aproximao do pensamento de Habermas e de Heschel notria. Para o

    primeiro, os crentes dispem de uma fundamentao particular para abordar questes de

    ordem moral. As tradies religiosas, de forma geral, so fontes muito teis de

    conhecimento e motivao para o entendimento mtuo. Mais do que isso, o jogo

    democrtico pressupe atitudes morais que so pr-polticas, entre elas, as religiosas (Cf.

    HABERMAS; REDER; SCHMIDT, 2009, p. 25-26). Nesse contexto, ele prope a

    recuperao da bagagem moral das tradies religiosas, tais quais justia, liberdade,

    dignidade humana,...

    Tal posio de Habermas no significa que a filosofia devesse subestimar a

    importncia da ilustrao. O Estado liberal no necessita de supostos normativos pr-

    polticos como os religiosos. Para ele, o liberalismo prescinde da religio e da metafsica. O

    importante que os cidados, enquanto agentes sociais ativos, construam a ordem

    democrtica mediante a razo comunicativa e a prtica da solidariedade. O discurso de

    Habermas, no entanto, no termina aqui. Sua observao sobre a degradada realidade atual

    faz com que ele reconhea o papel que a religio pode aportar na sociedade ps-secular. A

    solidariedade no pode ser imposta por decreto. Na vida prtica fazem falta as virtudes

    morais e polticas, por isso, conveniente que pensamento liberal-ilustrado e tradies

    religiosas se deixem influenciar mutuamente. A f pode ajudar a comunidades polticas que

    convivem com um sentido de solidariedade e justia cada vez mais escassos (Cf.

    HABERMAS, 2006, p. 123).

    Para uma modernidade desgastada (RIESGO, 2010, p.123) pode ser til certas

    orientaes religiosas que so fontes de solidariedade e conscincia moral. O Estado ps-

    secular e plural deve alimentar-se do dilogo entre ilustrao e religio na elaborao de

    suas normas de convivncia. Frente s limitaes da ilustrao, Habermas sustenta que

    todas as fontes culturais que alimentam a conscincia normativa e a solidariedade podem

    ser teis para os problemas de convivncia. As religies, Habermas reconhece, so

    especialmente sensveis ao enigma do mal e do sofrimento, e, por isso, podem ajudar as

    pessoas a sublevar a dor, a solido e a morte.

  • Renato Somberg Pfeffer

    Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 21, p. 321-338, abr./jun. 2011 - ISSN: 2175-5841 332

    Do dito acima, podemos concluir que o posicionamento de Habermas conjuga uma

    fundamentao autnoma do Estado, vida moral e da poltica com a ajuda que pode aportar

    a cultura e espiritualidade religiosas. Todas as vozes sociais devem ser escutadas em um

    dilogo aberto e respeitoso entre seus protagonistas. Uma sociedade democrtica e plural

    deve permitir a livre circulao das diversas concepes ticas e religiosas que existem na

    sociedade civil para, a partir do consenso e do dilogo, construir uma tica aberta que

    servir como referente para articulao de um Estado de direito. A religio, portanto, pode

    e deve exercer sua denncia proftica nas questes morais e polticas.

    As idias de Heschel, porm, vo alm de denunciar as injustias e criticar a

    desumanizao e despersonalizao da sociedade moderna a partir da mensagem proftica.

    Se assim fosse, a religio seria reduzida a sentimentos morais e empobreceria o sentido e o

    significado da mesma enquanto experincia de salvao. Heschel pretende recuperar outro

    nvel do simblico: o misticismo enquanto experincia em que nos descobrimos

    descobertos por Deus (Cf. LEONE, 2007, p. 71).

    O misticismo hescheliano enxerga em cada pgina da Bblia os gritos agressivos de

    Deus em busca de reconhecimento (pathos divino). O Deus concebido na filosofia

    hescheliana no , decididamente, o Deus dos filsofos gregos. Ele no abstrato,

    autossuficiente e tampouco representa a perfeio absoluta. O Deus da Filosofia grega no

    se importaria com a condio moral, social ou espiritual do ser humano. O Deus dos

    profetas pensado por Heschel, ao contrrio, se preocupa, se envolve, se emociona com o

    mundano. Por outro lado, o pathos divino exige uma contrapartida humana, uma espcie de

    habilidade de percepo para experimentar a presena de Deus. Heschel chama esta

    sensibilidade religiosa de arrebatamento radical (GILLMAN, 2007, p. 168). O

    arrebatamento radical nega a normalidade do mundo, supera a simples curiosidade e prope

    que tudo no mundo seja enxergado como se fosse pela primeira vez. Esta forma primitiva

    de ver as coisas a maneira que os poetas, as crianas e os artistas veem o mistrio do

    cotidiano. A experincia religiosa que proporciona o arrebatamento e que destri o

    entorpecimento no qual estamos envolvidos ocorre em momentos isolados de nossas vidas,

    de forma efmera, pessoal e inefvel.

    Ser maravilhado ou radicalmente surpreendido a principal caracterstica da atitude da pessoa religiosa com relao histria e natureza. Assumir que as

  • Temtica Livre Artigo: A contribuio de Abraham Joshua Heschel para Filosofia das Cincias

    Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 21, p.321-338, abr./jun. 2011 - ISSN: 2175-5841

    333

    coisas so como elas so e que os eventos seguem o curso natural da histria so atitudes estranhas ao seu esprito. Encontrar uma causa aproximada para um fenmeno no d resposta sua sensao de estar maravilhado. Ele sabe que h leis que regulam os processos naturais; ele est consciente da regularidade e padro das coisas. No entanto, este conhecimento no diminui seu senso de surpresa permanente frente ao fato de que este fatos ocorrem (HESCHEL, 1975, p. 43).

    Sendo a experincia de Deus pr-conceitual, ela no pode ser provada, ela

    autolegitimvel. Ou seja, no estamos falando de um ato da mente, mas em atos de f que

    se manifestam atravs de insights facilmente dissipveis e que exigem um grande esforo

    por parte do crente. So esses insights humanizadores que podem fornecer ao indivduos

    comunidades de sentido e um refgio frente despersonalizao contempornea.

    A humanidade no vai perecer por falta de informao; mas por falta de apreciao. O comeo de nossa felicidade passa por entender que uma vida sem senso de estar maravilhado no vale a pena ser vivida. O que nos falta no e a falta de disposio para acreditar, mas a falta de disposio para nos maravilhar (HESCHEL, 1975, p. 46).

    Heschel aceita o Deus pessoal e transcendente da Bblia, no entanto, afirma (1975)

    que Ele est totalmente alm de toda conceituao humana. O mximo que podemos

    almejar so insinuaes de sua presena. Partindo desse pressuposto, a Bblia seria uma

    interpretao humana de um contedo revelador anterior, que est alm da compreenso

    humana. A Bblia o movimento perptuo do esprito, num oceano de significado

    (HESCHEL, 1975, p. 306). No Sinai teriam ocorrido dois eventos simultneos segundo

    Heschel: Deus dando a Tor e Israel recebendo a Tor, ou seja, o encontro no monte Sinai

    deve ser entendido tanto a partir de sua origem divina como de sua apropriao humana.

    Disso se deduz que a fonte da autoridade a compreenso de Israel acerca do texto bblico

    e no a palavra do texto em si. Na viso deste telogo judeu, portanto, a Tor no a

    palavra explcita de Deus. Ela , na verdade, a expresso do interesse de Deus para com a

    humanidade.

    Busc-lo no apenas interesse do homem, mas tambm Dele e esta busca no deve ser considerada um labor exclusivamente humano. Sua vontade est envolvida em nossos anseios. Tudo a respeito da histria humana como descrito na Bblia pode ser resumido numa frase: Deus est procura do homem. (HESCHEL, 1975, p. 178).

  • Renato Somberg Pfeffer

    Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 21, p. 321-338, abr./jun. 2011 - ISSN: 2175-5841 334

    Nessa mesma linha de raciocnio esto de acordo outros filsofos judeus

    contemporneos como Martin Buber, Franz Rosenzweig, Mordechai Kaplan. Essa corrente

    de pensamento se ope viso teolgica tradicionalista judaica que defende o

    supranaturalismo da revelao do Sinai.

    O tradicionalismo judaico no sculo XX tem como importante representante

    Yeshayahu Leibowitz. Ele postulava que o nico propsito dos mandamentos religiosos era

    a obedincia a Deus e que as mitzvot estavam alm de qualquer compreenso humana.

    Nesse sentido, era inteiramente descabido atribuir um significado emocional a realizao

    desses mandamentos ou mesmo vincul-los a algum tipo de recompensa. O valor da lei,

    portanto, estava nela mesma e se sobrepunha a qualquer benefcio social ou pessoal (Cf.

    RYNHOLD, 2011).

    Dentre os pensadores citados que se ope a essa viso tradicionalista, o mais radical

    Mordechai Kaplan (2001). Representante convicto do naturalismo, ele afirmava que o

    impulso humano em direo religio se manifestava por meio da comunidade, pois este

    impulso inato ao homem. Para Kaplan, primeiro existiu um povo judeu, depois este povo

    criou a sua religio. Ele desloca a autoridade de um Deus supranatural para a comunidade

    humana.

    Heschel e Rosenzweig situam-se em uma posio intermediria em relao a

    Kaplan e os tradicionalistas. Eles negam o supranaturalismo defendido pela viso

    tradicional mas, ao mesmo tempo, compreendem a revelao como experincia singular

    que confere autoridade Tor. Deus e a comunidade de Israel estariam envolvidos na

    revelao, o que significa que a comunidade tem um papel ativo na experincia reveladora.

    Ao contrrio de Kaplan, por outro lado, Heschel e Rosenzweig so mais conservadores

    acerca de como e quando ocorrem as mudanas na vida judaica. A comunidade no cria

    autonomamente a religio como defendia Kaplan, ela tambm recebe o chamamento de

    Deus.

    A teologia de Rosenzweig (1997), assim como a do filsofo Martin Buber (2001),

    afirma que a revelao a criao do relacionamento Eu-Tu entre o Deus pessoal da Bblia

    e a comunidade bblica e, mais tarde, com a humanidade. A revelao teria sido carregada

    de significado e emoo, transitria, porm, renovvel. O contedo da revelao a

    revelao em si. Segundo Buber, o que se revela o que se revela. O ente est presente,

  • Temtica Livre Artigo: A contribuio de Abraham Joshua Heschel para Filosofia das Cincias

    Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 21, p.321-338, abr./jun. 2011 - ISSN: 2175-5841

    335

    nada mais (BUBER, 2001, p.129). A Tor, por sua vez, seria a reao de Israel a este

    encontro revelador, explicando como o povo entendeu este relacionamento com Deus e

    como se determinou a viver. A lei, portanto, no parte do contedo da revelao. Se

    afastando de Buber, que entende que a relao Eu-Tu no pode ter a predominncia de uma

    das partes, Rosenzweig afirma que Deus teria comandado os israelitas. Para ele, na

    experincia concreta que ocorre a relao com Deus. A revelao, mais que uma

    experincia religiosa, consiste no cumprimento dos mandamentos de acordo com a

    tradio. Na imediaticidade ns no podemos expressar Deus, mas sim se dirigir a Deus

    no mandamento individual (ROSENZWEIG, 2002, p. 122). no fazer do mandamento

    que o conhecimento de Deus se produz.

    Heschel, por sua vez, no concebe a relao da comunidade israelita com Deus

    atravs da relao Eu-Tu. Que tipo de Deus seria este se pudssemos nos encontrar face a

    face com ele? Fazendo referncia orao, Leone (2007, p. 71) assinala que Heschel no a

    interpreta como sendo um dilogo com Deus. Enquanto oferenda, a orao no pode ser

    concebida como uma relao Eu-Tu: incorreto definir a orao por analogia com a

    conversao humana. Ns no nos comunicamos com Deus. Ns nos tornamos

    comunicveis com Ele. (A orao) um esforo para que a pessoa se torne objeto de seus

    pensamentos (HESCHEL, 1974, p. 97). Enquanto Buber enxerga a Tora no seu

    relacionamento ntimo com Israel e Rosenzweig como um comando, Heschel percebe a

    compreenso do contedo da Tor pelo povo representando a vontade de Deus para Israel.

    A partir dessa concepo, Heschel vai utilizar a mensagem proftica para criticar a

    civilizao ocidental. Ele faz isso, porm, sem abandonar a linguagem da filosofia ocidental

    e objetivando o resgate da dignidade humana. A interpretao das sutis modalidades da

    emoo, utilizando o paradigma filosfico da poca, a Fenomenologia, permitiu a ele

    alcanar pessoas fora da comunidade. A Fenomenologia se constituiu a matriz do

    pensamento hescheliano e o elemento de interface entre a viso tradicional judaica e os

    temas considerados relevantes na filosofia ocidental. A fenomenologia embasou a tese de

    doutorado de Heschel na Universidade de Berlim sobre os profetas bblicos (HESCHEL,

    2001). Ali, ele investiga o encontro do homem com Deus, buscando identificar o sentido

    deste encontro para o homem bblico. O profeta bblico analisado por Heschel possuiria

    uma sensibilidade para o mal que seria a fonte capaz de canalizar a compaixo divina para a

  • Renato Somberg Pfeffer

    Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 21, p. 321-338, abr./jun. 2011 - ISSN: 2175-5841 336

    dor humana. Ao se revelar sem revelar sua essncia inefvel, Deus exprime sua mensagem

    de compromisso com o homem.

    A fenomenologia hescheliana a mais completa abordagem judaica contempornea

    do experimentalismo. Se opondo s correntes racionalistas que afirmavam que a existncia

    de Deus poderia ser demonstrada dedutivamente e s correntes existencialistas que

    pretendiam encontrar Deus atravs de relaes pessoais, Heschel acredita que a presena

    divina pode ser sentida no mundo atravs de uma experincia religiosa especial. As obras

    de Heschel intentam, justamente, inspirar o fiel a olhar o mundo de forma imprevista,

    levando-o experincia de Deus. Ele traa os contornos da luta entre Deus e o ser humano

    e que atrapalha o compromisso mtuo. Nessa luta, Deus e o ser humano possuem posturas

    ativas: Deus busca o homem, mas, tambm, o homem deve ser capaz de responder o Seu

    chamado.

    Referncias

    BUBER, Martin. Eu e Tu. So Paulo: Centauro, 2001. CAFFARENA, J. G.; MARDONES, J. M. Ateismo moderno: increencia ou indiferencia religiosa. Mxico: Universidad Ibero Americana, 1999. DILTHEY, Wilhelm. Estructuracin del mundo histrico por las ciencias del espritu. Mxico: FCE, 1978. GARCA GMEZ-HERAS, J. M. Un paseo por el laberinto: sobre poltica e religin en el dilogo entre civilizaciones. Madrid: Biblioteca Nueva, 2008. HABERMAS, J. Ciencia y tcnica como ideologia. Madrid: Tecnos, 1984. HABERMAS, J. Teora de la accin comunicativa I: Racionalidad de la accin y racionalizacin social. Madrid: Taurus, 1987. HABERMAS, J. Pensamiento Ps-Metafsico. Madrid: Taurus Humanidades, 1990. HABERMAS, J. La religin en la esfera pblica. Los presupuestos cognitivos para el uso pblico de la razn de los ciudadanos religiosos y seculares. In: HABERMAS, J. Entre naturalismo y religin. Barcelona: Paids, 2006. p. 121-155. HABERMAS, J; REDER, M.; SCHMIDT, J. Carta al Papa: Consideraciones sobre la fe. Barcelona: Paids, 2009.

  • Temtica Livre Artigo: A contribuio de Abraham Joshua Heschel para Filosofia das Cincias

    Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 21, p.321-338, abr./jun. 2011 - ISSN: 2175-5841

    337

    HAZAN, Glria. Filosofia do judasmo em Abraham Joshua Heschel: conscincia religiosa, condio humana e Deus. So Paulo: Perspectiva, 2008. HESCHEL, Abraham Joshua. Between God and man: an interpretation of Judaism. New York: Collier Macmillan Press, 1969. HESCHEL, Abraham Joshua. A passion for truth. Woodstock: Jewish lights publishing, 1973. HESCHEL, Abraham Joshua. O homem procura de Deus. So Paulo: Paulinas 1974. HESCHEL, Abraham Joshua. Deus em busca do homem. So Paulo: Paulinas, 1975. HESCHEL, Abraham Joshua. The Earth Is the Lord's: The Inner World of the Jew in: Eastern Europe. Woodstock: Paperback, Jewish Lights Pub, 1995. HESCHEL, Abraham Joshua. No religion is an island. In: KASIMOW, Harold; SHERWIN, Byron L. (Ed.). No religion is an island: Abraham Joshua Heschel and interreligious dialogue. Maryknoll: Orbis Books, 1991. p. 3-22. HESCHEL, Abraham Joshua. The Prophets. Nova York: Perennial Classics, 2001. HESCHEL, Abraham Joshua. O ltimo dos profetas. Barueri: Ed Manole, 2002. HESCHEL, Abraham Joshua. Quem o homem?. So Paulo: Centro de Estudos Marina e Martin Harvey Editora e Comercial. 2010. HORKHEIMER, Max. Crtica de la razn instrumental. Buenos Aires: Sur, 1973. KAPLAN, Mordecai M. Communings of the Spirit: the Journals of Mordecai M. Kaplan: v. 1, 1913-1934. Detroit: Wayne State University Press, 2001. LEONE, A. G. A imagem divina e o p da terra: humanismo sagrado e crtica da modernidade em A. J. Heschel. So Paulo: Humanitas-FFL-CH/USP-FAPESP, 2002. LEONE, A. G. A mstica judaica refletida na obra de Heschel. Numem, Juiz de Fora, v. 10, n. 1-2, p. 61-80, 2007. LEVINAS, E. Totalidade e infinito. Lisboa: Edies 70, 1988. LWY, M. Messianismo judeu e utopias libertrias. Romantismo e messianismo. So Paulo: Perspectiva, 1990. PRIGOGINE, I. From Being to Becoming. San Francisco: Freeman, 1980.

  • Renato Somberg Pfeffer

    Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 21, p. 321-338, abr./jun. 2011 - ISSN: 2175-5841 338

    RIESGO, Manuel Fernndez Del. Secularismo ou secularidade?: El conflicto entre el poder poltico y el poder religioso?. Madrid: PPC, 2010. RYNHOLD, Daniel. Yeshayahu Leibowitz. The Stanford Encyclopedia of Philosophy, Summer 2011 Edition. Disponvel em: http://plato.stanford.edu/archives/sum2011/entries/leibowitz-yeshayahu. Acesso em: 22 maio 2011. RORTY, R. Objetivismo, relativismo e verdade: escritos filosficos I. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1997. ROSENZWEIG, F. La estrella de la Redencin. Salamanca: Sigueme, 1997. ROSENZWEIG, F. On Jewish Learning. Madison: The University of Wisconsin, 2002. SOUZA SANTOS, Boaventura de. Um Discurso sobre as Cincias. Porto: Afrontamento, 1988. VATTIMO, G. O fim da modernidade: Niilismo e hermenutica na cultura ps-moderna. So Paulo: Martins Fontes, 2002.