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CENTRO UNIVERSITÁRIO SALESIANO DE SÃO PAULO UNISAL CAMPUS MARIA AUXILIADORA Bianca Scalon Peres de Paula A CONSTRUÇÃO DA MORALIDADE PELO ALUNO COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL: Perspectivas na Educação Sociocomunitária Americana 2016

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Page 1: A CONSTRUÇÃO DA MORALIDADE PELO ALUNO COM … · combustível, por cada sorriso, por cada abraço pedido enquanto eu não podia estar brincando com vocês, pois isso recarregou

CENTRO UNIVERSITÁRIO SALESIANO DE SÃO PAULO

UNISAL – CAMPUS MARIA AUXILIADORA

Bianca Scalon Peres de Paula

A CONSTRUÇÃO DA MORALIDADE PELO ALUNO COM

DEFICIÊNCIA INTELECTUAL: Perspectivas na Educação

Sociocomunitária

Americana

2016

Page 2: A CONSTRUÇÃO DA MORALIDADE PELO ALUNO COM … · combustível, por cada sorriso, por cada abraço pedido enquanto eu não podia estar brincando com vocês, pois isso recarregou

Bianca Scalon Peres de Paula

A CONSTRUÇÃO DA MORALIDADE PELO ALUNO COM

DEFICIÊNCIA INTELECTUAL: Perspectivas na Educação

Sociocomunitária

Dissertação apresentada como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação à comissão julgadora do Centro Universitário Salesiano de São Paulo, sob a orientação da Professora Doutora Maria Luísa Amorim Costa Bissoto.

Americana

2016

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Paula, Bianca Scalon Peres de.

P346c A construção da moralidade pelo aluno com deficiência

intelectual: perspectivas na educação sociocomunitária / Bianca

Scalon Peres de Paula. – Americana: Centro Universitário

Salesiano de São Paulo, 2016.

147 f.

Dissertação (Mestrado em Educação). UNISAL – SP.

Orientador: Maria Luísa Amorim Costa Bissoto.

Inclui bibliografia.

1. Educação especial. 2. Educação inclusiva. 3. Moralidade

4. Autonomia. 5. Educação sociocomunitária – Brasil. I. Paula,

Bianca Scalon Peres de. II. Centro Universitário Salesiano de

São Paulo. III. Título

CDD 371.9

Catalogação elaborada por Lissandra Pinhatelli de Britto – CRB-8/7539 Bibliotecária UNISAL – Americana

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BIANCA SCALON PERES DE PAULA

A CONSTRUÇÃO DA MORALIDADE PELO ALUNO COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL: PERSPECTIVAS NA EDUCAÇÃO SOCIOCOMUNITÁRIA.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu do Centro Universitário Salesiano de São Paulo, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Educação – área de concentração: Educação Sociocomunitária. Linha de pesquisa: A intervenção educativa sociocomunitária: linguagem, intersubjetividade e práxis. Orientadora: Profa. Dra. Maria Luisa Amorim Costa Bissoto

Dissertação defendida e aprovada em____/____/______, pela comissão julgadora: __________________________________________ Profa. Dra. Maria Inês Bacellar Monteiro – Membro Externo

Universidade Metodista de Piracicaba- UNIMEP __________________________________________ Profa. Dra. Fabiana Rodrigue de Sousa – Membro Interno

Centro Universitário Salesiano de São Paulo – UNISAL

_________________________________________ Profa. Dra. Maria Luisa Amorim Costa Bissoto – Orientadora

Centro Universitário Salesiano de São Paulo – UNISAL

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Para Laura e Luísa, que tornaram mais vivas as cores da minha vida.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, que plantou em mim a vontade e a vocação de educar e de lutar por

uma educação que valorize as diferenças.

Às minhas meninas, Laura e Luísa, por tão pequenas compreenderem o

tempo da mamãe que vocês tiveram que dividir. Obrigada por serem meu

combustível, por cada sorriso, por cada abraço pedido enquanto eu não podia estar

brincando com vocês, pois isso recarregou minhas energias quando eu mais

precisei.

Ao meu marido, Max, por tornar esse sonho possível.

Aos meus pais, Gilberto e Cláudia, que me ensinaram a sempre ser o melhor

que posso e investiram tempo e esforço em educar a mim e aos meus irmãos para

que respeitemos nosso trabalho. Obrigada também por assumirem tão lindamente a

função de avós nas ausências necessárias por conta das atividades acadêmicas ao

longo da construção desse trabalho.

À minha irmã, Samara, por buscar as meninas na escola nos dias que eu

tinha aula e por cuidá-las nesse momento, sinal de amor por mim e por elas. Ao meu

irmão, Marcelo, pelo apoio e amor de sempre, e pela ajuda valiosa nas traduções.

Ao meu sobrinho Rafael pela curiosidade genuína sobre “aquele meu trabalho

comprido” sempre que me via sentada à mesa escrevendo. À minha tia Fátima e vó

Ceminha por se ocuparem das minhas meninas quando eu não podia, e por todo

amor que isso significa.

Às professoras que compuseram a banca de qualificação: Prof.ª Dr.ª Maria

Inês Bacellar Monteiro e Prof.ª Dr.ª Fabiana Rodrigues de Sousa de Sante pela

leitura cuidadosa do meu trabalho e pelas preciosas contribuições para a pesquisa.

À minha orientadora, Malu, por confiar em mim e me tomar pela mão nessa

jornada. Por ser como uma mãe, por ser amiga, por contar comigo e confiar em mim.

Obrigada por ver em mim algo que eu demorei a enxergar, e só enxerguei com sua

ajuda. Obrigada por me fazer capaz de tantas coisas. Você tem um lugar muito

especial na minha vida e no meu coração, e será sempre lembrada com o carinho e

o amor que só aqueles mais especiais merecem. Jamais conseguirei agradecer o

suficiente, e por isso o farei sempre que possível.

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À melhor amiga do mundo, Paula, que dividiu comigo tantas coisas. Obrigada

por ser atenta e amável, e por representar para mim o amor de anos de convivência,

ainda que à distância. Somos a prova de que o amor não se mede pela proximidade.

Aos amigos de toda vida: Priscila, Gelly, Alexandre e Karen. Por fazerem

parte da minha vida e pela amizade cultivada com tanto cuidado e respeito.

À Nadir, Ana Cláudia, Lílian, Wildison, Alex e Beto por toda força quando mais

precisei, por acolherem minhas angústias e me ajudarem a olhar para frente. À

Helaine, Wellington, Cláudia, Gisele, Fábio, Emílio, Graça, Isabel, Daisy, Ana

Carolina, Saray, Mara, Márcia, Dani, Elis e Jose, por serem companheiros especiais

de jornada, e por se tornarem tão especiais, amigos para toda vida.

À Vaníria, pela paciência e presteza. Obrigada por toda ajuda durante esses

anos.

À equipe da Escola em que foi realizada a pesquisa, em especial à professora

do AEE pelo apoio constante, à diretora e à pedagoga, por possibilitarem a

realização do trabalho.

Às famílias que aceitaram participar desta investigação, a vocês todo meu

respeito e gratidão.

À Mayumi, Viviane e Marcelo, crianças com quem lutei por uma educação

inclusiva. Com vocês aprendi mais do que ensinei.

Vô Jesus, vô Cláudio e tio Márcio, por ter muito de vocês em mim, tem um

pouco de vocês aqui também. Saudades!

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“Na ausência do outro o homem não se constrói homem.”

(Vygotsky, 1993)

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RESUMO

O que se propõe nesse trabalho é entender e sistematizar teoricamente alguns dos

caminhos pelos quais se processa a construção da moralidade no aluno com

deficiência intelectual. A metodologia é a de investigação qualitativa, na modalidade

participante, e a coleta de dados se deu mediante discussões, no ambiente escolar,

com os alunos adolescentes deficientes intelectuais, sujeitos da pesquisa, sobre

situações de conflito moral. As assunções centrais dessa investigação consideram

que para que se constitua uma educação para a autonomia, na deficiência

intelectual, é necessário que os sujeitos com deficiência se apropriem das

habilidades sociais próprias do viver em sociedade, dentre elas, aquelas vinculadas

à moralidade. Contudo, como essa apropriação pode se dar, frente às barreiras do

preconceito, da exclusão sociocultural, além daquelas advindas da própria condição

de deficiente? E qual o papel da escola nesse processo? A primeira parte do

trabalho trata do levantamento de teorias acerca do desenvolvimento da ideia de

moralidade e na segunda parte é feito um histórico da educação inclusiva no Brasil,

mostrando como as diferentes concepções de deficiência determinavam – e

determinam – o tipo de educação destinado aos alunos deficientes intelectuais,

legitimando, muitas vezes, a situação de exclusão ainda experimentada por esses

alunos e, consequentemente, sua constituição como sujeito socialmente autônomo.

A última parte traz os pressupostos metodológicos, a coleta e a análise dos dados, e

aponta-se uma perspectiva de compreensão da construção da moralidade na

deficiência intelectual pelos princípios da educação sociocomunitária. Os

referenciais epistemológicos que sustentam a pesquisa estão na teoria histórico-

cultural. Como resultados é possível afirmar que ainda que os deficientes

frequentem o ensino regular, esse espaço é limitado, física e virtualmente, pela sua

condição de deficiente. No entanto, foi possível constatar que as aprendizagens que

fazem parte de seu desenvolvimento moral ocorrem, tanto no espaço escolar,

quanto fora dele, o que é corroborado pela teoria que guia a análise dos dados do

trabalho, de que a aprendizagem acontece na interação dos sujeitos em todos os

espaços frequentados por ele.

Palavras-chave: Educação Especial. Educação Inclusiva. Moralidade. Autonomia

Moral. Educação Sociocomunitária.

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ABSTRACT

What is proposed in this paper is to theoretically understand and systematize some of the ways in which takes place the construction of morality in students with intellectual disability. The methodology used is the qualitative investigation as a participant and the data collected occurred on discussions in school environment, with students that have intellectual disability, part of the research about moral conflict. Central assumptions of this research consider that to become an education for the autonomy, it’s required that the individuals with disabilities to take ownership of their own skills to live in society like those linked to morality. However, how such ownership can take place, facing the barriers of prejudice, social and cultural exclusion, as well as those arising from their condition of disabilities? And what`s is the school role in this process? The first part of the work deals with the survey of theories about development about the ideal of morality and in the second part a history of inclusive education in Brazil is made, showing how different conceptions of disability determined – and still determine – the education type for the students with intellectual disabilities, legitimating, most of the times, the exclusion still faced by that students and consequently, their constitution as an individual socially autonomous. The last part presents the methodological assumptions, the collection and analysis of data, and points and perspective of understanding the construction of morality in intellectual disabilities the principles of socio-communitarian education. The epistemological referential that support this research are the cultural-historical theory. As a result it can say that even if disable attend regular school, this space is limited, physically and virtually, by their disability status. However, it was established that the learning that are part of their moral development occurs both at school and outside it, which is supported by the theory that guides the analysis of labor data, that learning happens in the interaction of the individuals in all areas frequented by them. Keywords: Special Education. Inclusive Education. Morality. Moral Autonomy. Sociocommunitarian Education.

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Caracterização dos sujeitos ......................................................................66

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: No supermercado – Categoria: Prevenção de acidentes ..........................72

Figura 2: O menino – Categoria: O que estou sentindo? ..........................................74

Figura 3: Janela – Categoria: O que estou sentindo? ...............................................81

Figura 4: Crianças – Categoria: Prevenção de acidentes .........................................83

Figura 5: No banco – Categoria: Prevenção de acidentes ........................................84

Figura 6: A menina – Categoria: O que estou sentindo? ..........................................88

Figura 7: Carteira – Categoria: O que fazer? ............................................................89

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ....................................................................................................11

INTRODUÇÃO ..........................................................................................................19

PARTE I

A QUESTÃO DA MORAL E DA AUTONOMIA MORAL .........................................25

1.1 O DESENVOLVIMENTO DA MORAL E DA AUTONOMIA MORAL NO CAMPO

DA PSICOLOGIA ................................................................................................30

1.1.1 As contribuições da Psicologia Genética ..................................................31

1.1.1.1 Piaget e a psicogênese da moral ..................................................................31

1.1.1.2 A teoria cognitivo-evolutiva da moral de Kohlberg ........................................34

1.1.2 As contribuições da Psicologia Histórico-Cultural .....................................38

PARTE II

A EDUCAÇÃO ESPECIAL E A EDUCAÇÃO INCLUSIVA: A PERSPECTIVA DO

DESENVOLVIMENTO DA MORALIDADE ...............................................................49

2.1 UM HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO DO DEFICIENTE INTELECTUAL

NO BRASIL ........................................................................................................51

2.2 POR UMA ABORDAGEM SOCIOCULTURAL DA DEFICIÊNCIA .....................55

PARTE III

DO DESENVOLVIMENTO DA INVESTIGAÇÃO .....................................................64

3.1 CARACTERIZAÇÃO DO CONTEXTO DA PESQUISA ......................................64

3.2 CARACTERIZAÇÃO DOS SUJEITOS DA PESQUISA ......................................65

3.3 DA ANÁLISE DOS DADOS .................................................................................71

CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................92

REFERÊNCIAS..........................................................................................................95

APÊNDICE A – Termo de consentimento informado .........................................101

APÊNDICE B – Questionário enviado aos professores e estagiários ..............103

APÊNDICE C – Questionário enviado aos pais ..................................................105

ANEXO A – Figuras utilizadas na investigação com os alunos “O que estou

pensando” ..............................................................................................................109

ANEXO B – Figuras utilizadas na investigação com os alunos “O que estou

sentindo” ...............................................................................................................120

ANEXO C – Figuras utilizadas na investigação com os alunos “O que

fazer” ......................................................................................................................131

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ANEXO D – Figuras utilizadas na investigação com os alunos “Prevenção

de acidentes” .........................................................................................................137

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APRESENTAÇÃO

Minha história com a educação especial teve início quando da minha primeira

incursão na escola, aos 5 anos, e chegou a mim através de relatos dos meus pais.

Eles me contam que eu tinha um grande amigo, Chico, que “teve problemas no

nascimento” e carregava as sequelas disso. Mais tarde, os ouvi contando que eu

conseguia conversar com minha bisavó sem precisar levantar a voz, o que era de se

estranhar, uma vez que ela era praticamente surda. Eu realmente não me lembro

dessas conversas com minha bisavó, nem de como eu me fazia ser ouvida. Sempre

sou lembrada nas reuniões de família em relação à sagacidade no que dizia respeito

aos conhecimentos que não são da escola: saber a quantidade de buraquinhos na

trama de palha dos banquinhos da casa da minha avó, o número de franjas da

coberta...

Meus primeiros anos na escola passaram e o que ficou na memória foi o

carinho da minha professora da primeira série, o rigor da minha professora da

segunda série, a braveza e as chacotas que eu ouvia da minha professora da

terceira série, que também é minha tia, e naquela época morava conosco, e os

métodos de ensino já “batidos”, mas divertidos da minha professora de quarta série.

Minhas professoras de 2° e 4° séries, tendo ensinado minha irmã um ano antes de

mim, sempre me comparavam a ela, que não era tão “avoada” quanto eu. Na

terceira série eu me recordo de fazer uma prova de reclassificação, para saber se eu

ficaria na turma A, a de minha tia, ou na B, em outro período. Naquela época os

melhores alunos estudavam na turma A, e o restante, na turma B. Eu fiquei na A. Foi

um ano difícil esse, o fato de ter minha família envolvida em toda minha vida escolar

(além da irmã do meu pai ser minha professora, a escola era de uma tia distante) me

fazia ter medo de tudo, e ainda tinha o agravante de eu não ser como minha irmã e

dos meus pais saberem tudo o que acontecia comigo em primeira mão. Eu fazia

todas as tarefas de casa, tirava boas notas, mas a reclamação sobre ser desatenta

era frequente.

Na escola eu era uma boa aluna, se formos considerar só as notas, sempre

de 8 para cima. Na segunda etapa do Ensino Fundamental tinha algumas

dificuldades em Matemática, e me recordo de estudar com meu pai até altas horas

da madrugada, em vésperas de prova. Em uma dessas provas, minha professora

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considerou errado um exercício em que eu usava um processo longo de resolução,

chegando ao resultado correto. Meu pai, que havia me ensinado exaustivamente

aquele conteúdo, foi falar com ela sobre isso, uma vez que não havia sido solicitado

um processo específico para a resolução daquele exercício. Ganhei o ponto. E

daquele conteúdo específico, equações de segundo grau, não me lembro de nada.

Mas sei construir polígonos perfeitos. Isso eu aprendi com um tio, professor de

Matemática, que se formou no exercício da profissão, e se habilitou formalmente

depois de anos lecionando.

No ensino médio já tinha a vontade de ser professora, que não me lembro de

quando ou onde surgiu. Cogitei fazer licenciatura em História, Geografia, Biologia,

mas a namorada de um tio muito querido fez Pedagogia e se habilitou em educação

especial, na área de deficiência de áudio-comunicação. Fiquei com esse curso e

habilitação em mente, quando uma prima me falou do curso de Terapia

Ocupacional, que virou minha primeira opção. Quando fui me inscrever para os

exames de vestibular, para não ficar presa somente a uma opção, fiz a inscrição na

FUVEST para T.O. e na Unesp para o curso de Pedagogia, no Campus de Marília,

onde havia habilitação na área de deficiência da áudio-comunicação, em educação

especial. Não passei no vestibular para Terapia Ocupacional, tendo feito somente a

pontuação que garantia a nota de corte para o curso no exame do ano anterior, ou

seja, não passei da primeira fase. Mas passei na primeira chamada na Unesp, e dez

dias antes de completar 18 anos, no ano de 1998, estava em outra cidade,

estudando para ter uma profissão.

Fui morar com meus avós paternos em Marília, com quem tinha tido pouco

contato nos anos anteriores. Fui acolhida com carinho pelos meus avós, apesar do

pouco contato nos últimos anos. Para meu avô, apesar de não gostar de

demonstrar, era um orgulho ter uma neta estudando e morando com ele. Era ele

quem fazia eu me sentir em casa naquele território estranho, acordando para tomar

café comigo e me esperando para almoçar depois das aulas. Nessa fase de

adaptação meu avô e meu tio foram essenciais. Meu primeiro ano de graduação foi

cumprido de forma bastante básica: fiz todos os créditos que precisava, mas nada

além, ainda assim, em novembro daquele ano fui contemplada com uma bolsa de

iniciação à pesquisa.

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Apesar de aquela ser uma bolsa de programa de apoio, somente para auxílio

financeiro, a partir daquele ano ela teria caráter científico, e eu precisava encontrar

um orientador e desenvolver alguma pesquisa de meu interesse nos 4 meses que

restavam para encerrar o período de contemplação. Procurei a única professora

daquele semestre que era do Departamento de Educação Especial e ela aceitou me

orientar. Deixou-me livre para escolher o tema, e eu decidi pesquisar sobre os

aspectos psicomotores da criança com síndrome de Down. Ao fim do período da

bolsa eu entreguei um relatório sobre a pesquisa, que foi aprovado e elogiado, mas

a investigação não teve seguimento. A minha orientadora fez, no entanto, uma

observação: apesar do meu trabalho estar bem feito, contemplava muito mais a área

de deficiência física do que a área de deficiência mental, e que ela me colocaria em

contato com um professor da área.

No segundo ano de faculdade, ainda sem ter contato nenhum com a área de

educação especial e já sem tanta certeza de que área seguir quando pudesse

escolher, fui informada sobre a seleção de estagiários extracurriculares no que na

época era chamado de COE (Centro de Orientação Educacional), uma clinica da

Unesp em que atuavam os estagiários das habilitações em educação especial, os

estagiários do curso de Fonoaudiologia e a equipe técnica: Psicóloga, Terapeuta

Ocupacional, Fisioterapeuta, Fonoaudióloga e Pedagoga, além do setor de Serviço

Social. Quem faria a seleção da área que eu estava cogitando naquela época,

deficiência mental, seria a professora que me orientou por ocasião do recebimento

da bolsa. Assim que me viu ela disse que encaminharia minha ficha para a

professora da área de deficiência física e que se eu não gostasse, poderia procurá-

la que ela assumiria minha supervisão. Eu era a única aluna na lista de interesse na

área de deficiência física, e não era o que a professora procurava. Ela queria alguém

que pudesse monitorar as alunas do estágio curricular na área de deficiência física.

Mesmo estando apenas no segundo ano, insisti, disse que me prepararia, leria os

prontuários dos alunos, buscaria informações, estudaria, pois queria fazer algo útil

naquele ano. E assim consegui a vaga e conheci a professora Lúcia, que disse que

além do trabalho ali na clínica, queria que eu estudasse e pesquisasse, e junto com

outras duas alunas, uma delas da minha turma, formamos um grupo de estudos, que

se reunia todas as quartas-feiras, para discutir textos sobre a educação inclusiva.

Perspectiva que ainda “engatinhava”...

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Em setembro daquele ano minha supervisora/orientadora me questionou se

eu estaria disponível no ano seguinte, pois se não fosse o caso, ela teria que treinar

outra monitora e também queria saber qual habilitação eu iria fazer. Na época eu

estava decidida a ir para a área de deficiência mental, por conta do campo de

trabalho, mas ela disse que me demoveria da ideia quando fosse oportuno. No final

daquele ano perdi meu avô, e meu tio sofreu uma recidiva do câncer que tinha

tratado anos antes e eu, junto com meus pais, para poder me dedicar

exclusivamente aos estudos, achei por bem que eu morasse em outro lugar.

No início do terceiro ano, instalada com duas amigas em um bairro distante

de tudo, o que me fazia ficar o dia todo entre a faculdade e a clínica, eu já tinha um

projeto de pesquisa, disciplinas curriculares no período da manhã, estágio

obrigatório da habilitação para o magistério à tarde e disciplinas optativas à noite,

para cumprir os créditos referentes ao TCC, que eu optei por não fazer, pois já tinha

uma pesquisa em andamento. Em junho, em meio a uma greve da Universidade,

que durou três meses, fui contemplada com uma bolsa de iniciação científica do

CNPq, com um projeto que pesquisava a concepção dos professores da rede

municipal de ensino de Marília sobre a educação inclusiva, tema que estava sendo

amplamente discutido e divulgado. Foram meses de trabalho intenso, coletando e

analisando dados, apresentando o trabalho em congressos e eventos.

No final do terceiro ano, em idos de 2000, tendo que escolher a habilitação

que iria cursar, tive momentos de muita dúvida. Era apaixonada pela prática do

estágio, encantada pelos alunos que havia conhecido na clínica, ciente de tudo o

que tinha aprendido naquela área, de quão boa professora eu já tinha me tornado

ali, mas sabia também que não havia campo de trabalho fora daquela região. Minha

orientadora me convenceu a seguir minha vontade quando disse que a minha

prática deveria sempre se voltar à aprendizagem de todos os alunos, de forma que

eu, enquanto professora, pudesse garantir uma educação de qualidade a todos os

alunos que passassem por mim, e que essa prática não teria que estar atrelada à

especificidade da minha habilitação. Analisando, então, a grade curricular das

habilitações em deficiência física e deficiência mental, optei pela deficiência física,

por conta das disciplinas mais específicas, que tratavam da criação de recursos e

adaptações curriculares, que enriqueceriam minha prática.

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Na habilitação, em estágio na clínica, tive contato com alunos que tinham

desde um atraso do desenvolvimento neuropsicomotor leve a portadores de

síndromes raras, tendo que compreender a maneira diferenciada de aprender de

cada um, planejando uma intervenção coerente e eficaz, levando em conta suas

especificidades. No estágio em sala especial para deficientes físicos tive contato

com a realidade da exclusão. Salas no final do corredor, com perigos físicos a ponto

de alunos com cadeiras de rodas terem que desviar de grandes buracos no piso. A

professora vencia esses desafios com uma aula dinâmica, dando atenção específica

a cada um dos alunos. O que me inquietava naquele espaço era perceber que

grande parte dos alunos seria capaz de frequentar, sem prejuízo, a série ideal para

sua idade, em ambiente regular. Nessa época, em 2001, a filosofia ainda era a da

educação segregada, em salas especiais, e o currículo seguia aquele da primeira

etapa do Ensino Fundamental (7 a 10 anos), e os alunos da sala que eu

acompanhava já eram adolescentes. O único empecilho para que eles não

frequentassem as salas de aula regulares era o laudo da deficiência, que os

colocava como clientela da educação especial. E tendo experimentado a

segregação desde a Educação Infantil – e não tanto pelas deficiências em si –

mostravam um grande lapso na relação idade/série. Experimentávamos um grande

desconforto quando saíamos da sala para esperar o transporte dos alunos e víamos

o grande cartaz do MEC, com os dizeres “Educação para todos”, abaixo da foto de

uma garota com síndrome de Down, no “estacionamento” de cadeira de rodas. Era

comum questionarmos quem seria o alvo da campanha, uma vez que os alunos

vivenciavam diariamente a negação de uma educação para todos.

Refletíamos, com frequência, que a Educação poderia até ser para todos,

mas não ao mesmo tempo e nem no mesmo espaço. Nossas conversas no grupo de

estudos sempre giravam em torno do quanto uma presença diferente, como a nossa,

mexia com aqueles alunos. Uma das alunas, adolescente, havia comprado um par

de óculos igual ao que uma de nós, estagiárias, usava, mesmo sem ter nenhum

problema visual. A mãe dela me pediu que eu ensinasse a mesma aluna a prender

os cabelos com um lápis, como eu fazia. Ela era adolescente e tanto os óculos

quanto o lápis no cabelo faziam com que ela se sentisse parte de um grupo,

identificada com a “normalidade”.

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Ao final do curso, tendo estudado tanto sobre como ser uma boa professora

para crianças que desde muito pequenas lidavam com a própria marginalização, eu

ainda não via como aplicar tudo o que havia aprendido. Formei-me no meio do ano

de 2002 (as habilitações em educação especial duravam três semestres, então

quem optasse por essa área concluía o curso após nove semestres, e não oito,

como nas outras habilitações), época em que as escolas dificilmente contratavam

professores. Inscrevi-me em concursos públicos, cheguei a trabalhar numa ONG de

educação ambiental, mas fiquei pouco tempo ali.

No início de 2003 entrou em contato comigo a mãe de uma aluna autista, de

uma escola particular de Americana, pedindo que eu fosse sua acompanhante em

sala de aula, uma exigência da escola. Eu, que nunca tive vontade de trabalhar com

autistas, me vi convivendo diariamente com uma garotinha adorável, que avançava

em sua jornada pelo ensino regular. O trabalho da professora era excelente e, nos

momentos de atividades dirigidas na sala de aula, eu trabalhava com ela conceitos

que ela ainda não tinha aprendido, mas que de forma individualizada não tardou

para tê-los em seu repertório.

No ano seguinte, aprovada em 6° lugar em um concurso para professora de

Ensino Fundamental, voltei para Marília, dessa vez para trabalhar, onde fiquei por

dois anos, o primeiro deles como professora regente e o outro como professora de

reforço. Assumi uma turma de 2° Série, atual 3° Ano, e tive uma aluna com laudo de

deficiência intelectual, sem nenhuma outra especificação e sem nenhum tipo de

acompanhamento. Ela terminou o ano ainda com um lapso considerável entre seus

conhecimentos sistematizados e aqueles exigidos pela próxima série, mas no último

dia de aula eu pude perceber como ela tinha evoluído: ela escreveu, na lousa, um a

um, o nome de todos os colegas presentes naquele dia, um recado para mim e o

nome dela. Todas as outras crianças escreviam livremente na lousa, ao final da

aula, e ela nunca havia conseguido. Eu a via treinando, percebia os seus avanços,

que foram muitos. E senti com ela um grande orgulho quando me mostrou que havia

escrito na lousa todos aqueles nomes. No ano seguinte ela escreveria, quando era a

ajudante do dia, a rotina diária na lousa, como as demais crianças.

Em 2006 fui convocada pela prefeitura de Indaiatuba, para assumir uma vaga

num concurso que tinha prestado no ano anterior; fiquei um ano lá e trabalhei com

uma turma de Nível II (crianças de 4 a 5 anos). Nessa turma tive um aluno com

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paralisia cerebral. Ele andava e falava, com alguma dificuldade, mas a marca

registrada dele na escola era o fato de não parar na sala de aula: fugia sempre! Dei

aula aquele ano todo de portas abertas, e ele não fugiu nenhuma vez. Isso porque

alguns combinados foram feitos e recordados todos os dias, mas principalmente

porque ele passou a perceber que tinha um espaço assegurado de valorização na

sala de aula. Com o tempo, este aluno, bem como os demais, conseguiam,

sozinhos, regular o clima da sala de aula, tanto em termos de aprendizagem como

comportamentais. Esse aluno com paralisia cerebral, quando encerrei o ano, havia

obtido avanços, embora discretos, na escrita, isso se comparado com o restante da

turma, mas considerando o prognóstico que ele tinha no início do ano, e os avanços

na autoestima e no processo de socialização, os ganhos foram imensos.

Em 2008 fui trabalhar em uma escola que atendia exclusivamente alunos

autistas, na prefeitura de Americana. Fiquei quase três anos ali e foi a atuação

nesse trabalho que me impulsionou a investir na continuidade dos estudos. Quando

comecei a trabalhar nessa escola, ouvi da coordenadora que minha habilitação em

educação especial de nada valeria ali e, segundo a opinião dela, só continuava ali

quem tinha boa vontade. O trabalho não tinha continuidade entre um ano e outro, os

alunos eram reagrupados no início de cada período letivo e cada professor

trabalhava a seu modo. Um ano depois de ingressar nessa escola comecei uma

pós-graduação em Psicopedagogia e voltar a ter contato com o mundo acadêmico

foi muito importante para mim. Essa primeira etapa da minha especialização foi

marcada por uma professora em especial, Malu, minha orientadora no mestrado,

que foi capaz de despertar novamente em mim a motivação para a pesquisa que eu

tinha na época da graduação. Infelizmente tive que interromper o curso, por

problemas de saúde e, dois anos depois, quando pensei em voltar, entrei em contato

com a mesma professora da especialização, que me convidou a fazer uma disciplina

do mestrado, como aluna especial.

Foi a oportunidade de resgatar um sonho guardado, ver outras possibilidades

de formação, de atuação, ter a oportunidade de agir formando outros professores na

perspectiva de uma educação voltada ao respeito à diversidade. Isso me trouxe ao

mestrado, e é o que me motiva a buscar, depois de concluída essa etapa, outras

possibilidades de continuidade de estudos, perseverando nesse caminho.

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Trouxe neste memorial minha história como aluna, e depois como professora.

Porque eu sempre busquei, com meus alunos, que eles não tivessem de mim a

memória que eu tive dos meus primeiros professores. Fui encontrar na minha

graduação e depois, na especialização e no mestrado, professores que conseguiram

diminuir as marcas que eu ainda carrego e que hoje percebo que surgiram na

escola. É o que eu busco hoje, como Psicopedagoga e professora: que não se

enfraqueça a autoestima dos alunos. Nas turmas que tenho sob minha

responsabilidade, como professora no nível superior, pretendo que os professores e

futuros professores, que estou ajudando a formar, reflitam sobre qual deve ser a

base do trabalho docente: o respeito incondicional ao ser humano.

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INTRODUÇÃO

A escola tem a dupla função de ensinar (os conhecimentos científicos, sócio-

historicamente construídos) e de educar (a introdução dos sujeitos aos processos de

socialização, de inclusão do outro na teia de sentidos, valores e regras sociais de

uma comunidade). Porém, considerando que todas as relações humanas podem

envolver algum tipo de ensino e de educação, particularmente na

contemporaneidade, com as facilidades de acesso à informação, é difícil delimitar o

que seria mais próprio à função da escola, da família, e dos demais grupos sociais.

Os limites entre essas esferas sociais são tênues, compartilhados, e as atitudes

esperadas nos diferentes grupos dos quais a criança faz parte diferem tanto quanto

diferem a função dos grupos na formação integral do indivíduo. A maneira de se

portar, o tom de voz e os tipos de linguagens usados nas diferentes atividades

cotidianas, ou como tratar as pessoas, são comportamentos sociais aprendidos para

serem usados com discernimento, de acordo com as diferentes circunstâncias.

Considerando que as aprendizagens sociais e de conhecimentos ocorrem na

interação com o outro, o indivíduo está constantemente organizando e reorganizando

suas aprendizagens, de modo que ocorrem aprendizagens significativas tanto dentro

como fora do ambiente escolar. A convivência em grupo, qualquer que seja ele, se

baseia em regras elaboradas coletivamente, mas não necessariamente elaboradas

oficialmente. O papel social de cada componente do grupo é determinado pelos

papéis dos outros componentes e, assim, cada qual com suas características,

formam um todo coeso, que não pode ser definido por cada uma de suas partes,

separadamente.

A forma como os seres humanos pensam e agem sobre o mundo, em nosso

entender, não é mera consequência da reação aos estímulos recebidos do entorno.

Ao invés disso, as transformações no modo de ser dos sujeitos ocorrem porque

somos agentes de nossas condições de existência, tendo a capacidade de modificá-

las, (re)construindo como nos posicionamos na vida. A práxis educativa, em qualquer

uma das suas múltiplas formas – aquela familiar, escolar, religiosa, esportiva, etc. – é

o meio para que os sujeitos se conscientizem dessa prerrogativa da existência

humana, e caminho para efetivá-la.

No âmbito da Psicologia Histórico-Cultural, base referencial dessa pesquisa,

nos vários grupos sociais dos quais as pessoas participam, incluindo a escola,

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transcorrem relações de mediação cultural, que objetivam a produção e a

internalização de significados. Os processos de desenvolvimento social e das

funções psicológicas superiores imbricam-se e influenciam-se mutuamente. O tomar

parte, então, de maneira ativa na diversidade das relações sociais que existem numa

comunidade é condição essencial para o desenvolvimento humano.

Contudo, para as pessoas com deficiências, tal participação se encontra, em

boa medida, reduzida; quer por razões de acessibilidade arquitetônica, quer por

razões de carência de recursos materiais ou pela presença de barreiras atitudinais,

como o preconceito.

Em relação à deficiência intelectual, objeto desse trabalho, argumentamos que

os deficientes intelectuais, enquanto alvos de preconceitos e de cerceamento, de

várias ordens, às suas possibilidades de interação e de exploração de experiências

sociais, têm, via de regra, suas vidas comportamentalmente orientadas, sobrando

pouco espaço para a constituição de formas próprias de pensar, de elaborar e afirmar

suas significações da cultura, de revelar potencialidades (BISSOTO, 2007).

A perspectiva da educação inclusiva e da inclusão social do deficiente,

rompendo com um modelo de medicalização e de ortopedia mental (CAMPOS, 2002)

com as mudanças propostas na maneira de perceber e tratar as pessoas com

deficiência, vem nos trazendo possibilidades de modificar esse quadro. Porém,

atitudes que valorizem a diferença e a riqueza da diversidade humana se

desenvolvem vagarosamente, e as relações entre as pessoas com deficiência

intelectual e as demais ainda restringem a autonomia dos deficientes. É na direção

de discutir a construção da autonomia do deficiente intelectual, principalmente

daquela moral, que está o propósito deste trabalho.

Acompanhando Delari Junior (2013), consideraremos moral como a

consciência das consequências, boas ou ruins, que advêm para o próprio sujeito ou

para a sociedade, como resultado das suas ações. E daí o discernimento para guiar

suas decisões de acordo com os princípios morais, que não existem num plano

abstrato, mas fundados na cultura de um grupo social. A construção da consciência

moral seria então, no âmbito da Psicologia Histórico-Cultural, também mediada pelas

interações sociais, amalgamada ao desenvolvimento das funções psicológicas

superiores.

Entendendo, então, que ao deficiente intelectual as interações sociais são

mais restritas, por razões a serem analisadas adiante, este trabalho tem por objetivo

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investigar como o indivíduo com deficiência intelectual participa do “jogo social” –

das/nas interações transcorridas nas várias esferas sociais cotidianas, incluindo a

escola, nas quais os valores, normas e crenças da cultura são mediadas, instituindo o

terreno em que se fundamentam as bases morais de uma coletividade - e, dessa

forma, como constitui suas concepções morais.

Partimos do princípio de que é a partir das mediações socioculturais que as

regras do jogo social são elaboradas, mantidas e modificadas pelos membros dos

grupos, que dessa maneira alteram as próprias condições da existência, sendo que a

percepção e a leitura do entorno social é de grande importância para determinar a

qualidade dessas mediações. O problema da pesquisa pode ser assim colocado: se

ao deficiente intelectual as experiências sociais levam a uma situação de descrédito

em relação à condição de portar-se moralmente de maneira autônoma, talvez pela

concepção de que o deficiente não consegue, sozinho, compreender as regras do

jogo social, fazendo com que essas experiências levem a um comportamento mais

infantilizado e dependente – quais as oportunidade que têm de aprender a fazer essa

leitura do jogo social? Isso é, decidir que atitudes tomar e qualificá-las moralmente,

em termos de seus possíveis resultados. Nossa hipótese é a de que as condições

atuais de compreensão da deficiência, na sociedade brasileira, ainda não favorecem

a construção da autonomia moral do deficiente intelectual, o que faz com que ele viva

uma relação de heteronomia, de estar sob jugo.

Qual a confiança que a sociedade deposita no deficiente intelectual no sentido

de que ele saberá comportar-se moralmente de forma adequada? A educação do

deficiente para a autonomia, em qualquer espaço no qual ações educativas possam

ocorrer, está necessariamente vinculada às respostas a essa questão.

Ponderando que a construção da autonomia moral do deficiente intelectual, em

devendo se construir nas suas várias esferas de vida, e na impossibilidade de

acompanhar os movimentos dos sujeitos em todas essas esferas, privilegiamos o

foco da análise no aluno com deficiência intelectual. A escola, como instituição

caracterizada pela convivência de sujeitos provenientes de vários grupos sociais,

favoreceria perceber como a moralidade constituída em outros ambientes sociais

reverberaria na escola. Sem desconsiderar que as próprias condições de moralidade

da escola influencia o agir dos sujeitos.

O olhar a partir da escola também possibilitaria entender como a construção

da moralidade do deficiente intelectual se processa na educação inclusiva, buscando-

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se conhecer se na dinâmica da inclusão educacional há influência sobre as

estratégias pelas quais os alunos deficientes intelectuais elaboram conceitos morais,

como o certo e o errado, de que maneira e em que espaços ocorre esta elaboração.

Acreditamos que esse conhecimento pode ser importante para que os estudos e

perspectivas da educação inclusiva se aprofundem, atingindo outras áreas de vida

dos sujeitos, para além da “escolarização”.

O desenvolvimento da moralidade, mesmo quando tratado à luz do

construtivismo piagetiano, que explica o desenvolvimento cognitivo como um

processo interno ao indivíduo, tem um componente social. No início do

desenvolvimento é a presença do outro, como figura de autoridade, que dá à criança

a noção do que pode ou não ser feito.

Dois dos mais renomados nomes no campo do desenvolvimento moral, Piaget,

com a sua teoria do desenvolvimento moral (1994), e Kohlberg (1977), cujos estudos

acompanharam aqueles de Piaget, construíram suas teorizações considerando

exclusivamente uma população “normal”, que não incluía pessoas com deficiência

intelectual. Ponderamos aqui que na medida em que tais teorias colocam o peso do

desenvolvimento moral como decorrente da progressiva racionalidade dos indivíduos,

o deficiente intelectual seria, correspondentemente, também “deficiente” moral, por

não desenvolver a racionalidade “normal”.

O enfoque sócio-histórico, ao afirmar que o imbricamento das funções

cognitivas superiores com a mediação cultural configura o desenvolvimento global do

sujeito, torna possível teorizar a questão deficiência intelectual e moralidade de forma

diferente. Indivíduo e ambiente se modificam mutuamente e, nessa relação, a pessoa

com deficiência não tem seu desenvolvimento reduzido às limitações de sua

condição, “naquilo que lhe faltaria”. Ao contrário, encontra possibilidades de se

significar em cada grupo de que participa, mostrando-se produtor de valor, não mais

como uma pessoa desviante da norma, esta também um constructo social.

Esta pesquisa é uma investigação qualitativa, na modalidade participante, e foi

realizada em uma Escola Municipal de Ensino Fundamental da cidade Americana. Os

sujeitos são 10 alunos, com idades entre 11 e 18 anos, considerados, assim, como

adolescentes (BRASIL, 1990). Esse período do desenvolvimento foi escolhido pois a

adolescência é caracterizada, nas culturas urbanas contemporâneas, como uma fase

de maior autonomia social, havendo a progressiva transição da esfera familiar para

uma variedade de outras esferas sociais. A questão da autonomia moral mostra-se,

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então, mais proeminente e mais necessária de ser estudada, e como uma pesquisa

participante intervém na realidade de vida dos sujeitos, pretendeu-se, ao longo do

processo investigativo, colaborar com esses. Todos os participantes estão

matriculados na segunda etapa do Ensino Fundamental, frequentam o Atendimento

Educacional Especializado (AEE) e são “legalmente” considerados clientela da

educação especial, segundo diretrizes da secretaria municipal de educação, uma vez

que possuem laudos médicos, ou outras avaliações psicológicas, pedagógicas ou

psicopedagógicas, que comprovam a condição de deficiente. Salientamos que

embora nenhum texto legal da esfera federal e estadual condicione a elegibilidade

para o AEE à existência de um laudo, essa tem sido uma prática constante em

muitas escolas da macrorregião de Campinas, da qual a cidade de Americana faz

parte.

A coleta e a construção dos dados fizeram uso dos seguintes instrumentos: a.

o levantamento das percepções e do conhecimento moral de adolescentes com

deficiência intelectual, mediante a discussão de situações envolvendo conflitos

morais e a interpretação que os sujeitos faziam de tais situações; b. questionário com

questões abertas realizado com os pais desses sujeitos e c. em um questionário com

questões abertas respondido pelos professores e também pelos estagiários, que

acompanham os alunos deficientes na escola. Consideramos que esses instrumentos

possibilitam a triangulação dos dados e do conhecimento construído, por

favorecerem o cruzamento das percepções e considerações sobre a moralidade e a

formação/educação moral do deficiente intelectual.

No primeiro instrumento, a estimulação de respostas a questões de conflito

moral foi baseada na apresentação de figuras com cenas do cotidiano, que versavam

sobre situações sociais diversas (SPEECHMARK, 2009). O material para a

estimulação foi divido em quatro categorias: “O que estou pensando?”; “O que estou

sentindo?”, “O que fazer” e “Prevenção de acidentes”. O protocolo de investigação

pautou-se em um guião de perguntas, a partir do qual os alunos, em duplas,

discutiam e falavam o que pensavam sobre o que percebiam nas figuras e como

resolveriam as situações expressas nessas, como aprenderam a “saber isso”, como

sabiam os conceitos “do que é certo/errado” utilizados, quem os havia ensinado e

onde haviam aprendido. Foram realizadas 18 sessões, entre os meses de abril e

setembro de 2015, gravadas em áudio (de acordo com o termo de consentimento

livre e esclarecido apresentado aos pais).

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Observamos que todos os instrumentos de coleta de dados e os

procedimentos da investigação seguiram pressupostos éticos próprios à pesquisa. Às

famílias foi entregue e explicado o termo de consentimento livre e esclarecido (o

modelo empregado encontra-se ao final do trabalho), e aos adolescentes os objetivos

da pesquisa, o que seria feito e como, com a ajuda da professora do AEE. A

pesquisadora comprometeu-se a dar um retorno à instituição, famílias e alunos dos

resultados encontrados, ao final da pesquisa.

A primeira parte do trabalho trata do levantamento de teorias, no campo da

filosofia e da psicologia, acerca do desenvolvimento da ideia de moralidade. Iniciando

pela apresentação de princípios filosóficos que caracterizaram a formação do

pensamento sobre a moral na cultura ocidental, que tanto marcou e vem marcando

as formas de educar, inclusive o deficiente intelectual, até atualmente. Passamos

depois à abordagem das teorias desenvolvidas por Piaget e Koklberg e sobre como o

desenvolvimento cognitivo pode se comparar ao desenvolvimento moral. Tratamos

também da relação da teoria sócio-histórica de aprendizagem e como essa defende

que é durante a dinamicidade interativa sociocultural dos processos de

aprendizagem, que o indivíduo pode se desenvolver indissociavelmente cognitiva e

moralmente.

Na segunda parte é feito um histórico da educação inclusiva no Brasil,

mostrando como as diferentes concepções de deficiência determinavam/determinam

o tipo de educação destinado aos alunos deficientes intelectuais. E como influenciam

a dificuldade desses sujeitos de se constituírem como autônomos. São vistos alguns

marcos legais e como alguns deles ainda segregam e excluem o aluno deficiente

intelectual, quando deveriam garantir a equanimidade, em um espaço educacional

respeitoso da dignidade humana.

Na terceira e última parte, tratamos dos procedimentos da pesquisa

propriamente dita, analisando os dados obtidos pelo viés da perspectiva histórico-

cultural e apresentando uma perspectiva de compreensão da construção moral da

deficiência pela Educação Sociocomunitária.

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PARTE I

A QUESTÃO DA MORAL E DA AUTONOMIA MORAL

O estudo sobre a moralidade e sobre a educação moral (ou para a moralidade,

visando a autonomia moral) pode ser explicada à luz de teorias que versam de

diferentes maneiras sobre como se dá o desenvolvimento da moralidade nos

indivíduos.

Desde as noções de moralidade na antiguidade, encontrada nas obras de

Platão e Aristóteles, passando por Rousseau, no Iluminismo, a questão da

moralidade se pauta na discussão do sujeito em relação ao grupo de que faz parte,

ou seja, o indivíduo em suas relações sociais. A moralidade não é algo que se

aprenda fora da interação social. Não existe uma moralidade pronta, que seja dada e

que deva ser cumprida apenas por obrigatoriedade, ou ainda uma atitude moral que

nasça com cada indivíduo, possibilitando-o a agir moralmente, ainda que não existam

regras sociais impostas.

As regras sociais, aquelas que não estão impressas em documentos legais,

mas ainda assim regem os indivíduos em sua vida cotidiana, são aprendidas nas

incursões do sujeito pela vida, considerando aqui que a educação acontece em todo

momento, em todo espaço, ou seja, em todas as relações estabelecidas pelos seres

humanos (FERNANDES, 2007).

Para Platão, o ápice da virtude “consiste em agir o mais próximo possível dos

deuses, conforme os deuses” (FREITAG, 1992, p. 23), procurando “fazer bem” todas

as atividades requeridas para a vida em comum. O que aproxima os homens dos

deuses, e assegura aos mortais a imortalidade, é a forma de produzir conhecimento

que conduz ao saber filosófico, que busca a verdade e a justiça, pautadas no

discernimento do que seria proceder de modo certo ou errado.

Platão descreve três virtudes atribuídas à alma humana: o instinto, que se

refere aos desejos carnais e que está na base da constituição da alma. A coragem,

que denota a vontade livre e autônoma do homem e, por fim, no topo dessa

constituição, está a capacidade de contemplação, a sabedoria e a temperança. A

cada uma das virtudes da alma corresponde uma virtude do Estado (corpo social), e

de cada uma dessas instâncias faz parte um grupo de pessoas (respectivamente

artesãos, guerreiros e filósofos). Em cada grupo social a educação permite a

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satisfatória execução das funções de cada grupo, aprimorando seus componentes

em cada uma das virtudes da alma, possibilitando a todos, em todos os estratos,

chegar ao topo do corpo social. Acompanhando Freitag:

O filósofo grego d’A República já introduz uma distinção entre moralidade e ética. A moralidade ocupa-se das virtudes da alma; a ética, das virtudes da polis. A primeira reflete filosoficamente as condições subjetivas da ação correta; a segunda, as condições objetivas. Uma toma como base a ação do indivíduo; a outra a ação da polis, do Estado, do todo social. A moralidade responde à pergunta do indivíduo isolado sobre como agir de forma moralmente correta em busca do bem pessoal; a ética responde à pergunta dos governantes sobre como agir de forma política correta, na busca do bem coletivo (FREITAG, 1992, p. 25).

Entre os gregos, o indivíduo e a sociedade eram instâncias indissociáveis, o

que mostra a moralidade e a ética1 como constituintes de uma mesma composição

social, com cidadãos que equilibram suas vontades e desejos e uma polis que integra

os interesses de todos os seus membros, garantindo a harmonia do corpo social.

Já Aristóteles apresenta uma teoria moral que faz uma distinção entre a justiça

moral e a justiça da lei, sendo a primeira adquirida pelo indivíduo na sua experiência

e a segunda uma justiça geral, rígida e à qual todos devem obedecer. A justiça é,

então, a virtude mais completa, pois “pressupõe a reciprocidade, a igualdade e o

respeito às leis” (FREITAG, 1992, p. 27). Ainda no entender da autora:

Agir corretamente (isto é, moralmente) significa agir de acordo com a lei (a boa medida) fixada por cada um a si mesmo. Mas agir corretamente (isto é, de forma politicamente justa) significa seguir a lei da polis, fixada pelos filósofos e políticos, empenhados na verdade e no bem coletivo, adequando-a ao caso particular (FREITAG, 1992, p. 28).

Na Idade Média, marcada pelo fortalecimento do cristianismo no continente

europeu, a moral se pautava pela teologia católica, pautada pela recompensa do

comportamento virtuoso e pela punição, inclusive no plano metafísico, ditado pelas

escrituras. A cultura popular e aquela dita culta, aristocrática, criavam simbolismos e

rituais fundamentados nos valores cristãos. Nesse mesmo cenário, como será

adiante abordado, o deficiente começa a ser reconhecido como pessoa, enquanto

1 Os significados de moral e de ética, que fundamentam as argumentações desse trabalho são os

seguintes: Moral- “(…) costumes, valores e normas de conduta específicos de uma sociedade ou cultura, enquanto que a ética considera a ação humana do seu ponto de vista valorativo e normativo, em um sentido mais genérico e abstrato. (…) Segundo Kant, a moral é a esfera da razão prática, que responde à pergunta: “O que devemos fazer?” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001, p. 134).

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portador de alma – filho de Deus – mas também podendo ser associado ao Mal. Sua

própria existência podendo ser vista como castigo aos pecados dos pais.

Acreditamos que o limiar entre as concepções que consideravam o deficiente como o

“Bem” ou o “Mal” passavam pelo nível de comprometimento acarretado pela

deficiência e pelo viés comportamental (PESSOTTI, 1984; HUIZINGA, s/d).

Na filosofia Iluminista foram apresentadas, essencialmente, três vertentes para

uma teoria da moralidade, baseadas em seguir a lei da natureza (que rege os astros,

no plano físico, e o comportamento do homem, no plano moral), satisfazer seus

interesses, porém pensando no princípio da reciprocidade, respeitando os interesses

do outro para ter os seus próprios interesses respeitados e agir segundo um princípio

interior, examinado com os instrumentos da razão. Tais vertentes são orientadores da

ação humana fora da religião e dão conta de forma secular à questão “como devo

agir”?

Rousseau, representando esse pensamento, retoma em duas obras de 17622

a mesma divisão de leis da antiguidade: a lei da natureza e a lei da sociedade,

estabelecendo aqui “a dialética entre moralidade e eticidade, entre a consciência

moral do sujeito e sua objetivação num sistema de valores éticos integrados na

estrutura do Estado (e da sociedade) contemporâneo” (SARDAS, 2003, s/p).

A respeito disso, encontramos na obra de Rousseau (2002, s/p):

Se o Estado ou a cidade só constitui uma pessoa moral, cuja vida consiste na união de seus membros, e se o mais importante de seus cuidados é o de sua própria conservação, é necessário uma força universal e compulsória para mover e dispor cada uma das partes da maneira mais conveniente para o todo. Como a Natureza dá a cada homem um poder absoluto sobre todos os seus membros, dá o pacto social ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus, e é esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, recebe, como eu disse, o nome de soberania. Contudo, além da pessoa pública, temos a considerar as pessoas privadas que a compõem e cuja vida e liberdade são naturalmente independentes delas. Trata-se, pois, de distinguir com acerto os respectivos direitos dos cidadãos e do soberano, e os deveres a cumprir por parte dos primeiros, na qualidade de vassalos, do direito natural que devem desfrutar na qualidade de homens.

.

Constantemente Rousseau faz uma analogia entre natureza e consciência,

como busca do indivíduo para conectar-se consigo mesmo, buscando tirar da esfera

divina o sentido do Bem e do Mal e colocar o homem como ser livre para tomar as

próprias decisões. Procura “explicar a bondade e a maldade das ações humanas,

2 Emílio ou da Educação e O contrato social

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enraizadas na vida histórico-social do homem, como responsabilidade direta de suas

ações” (DALBOSCO, 2007, p. 139).

Rousseu descreve em estágios a educação de Emílio, constando cada um em

um livro. Atendo-nos no que concerne à educação moral, no primeiro estágio (até os

dois anos), Emílio é apresentando a princípios morais gerais, através do exemplo

prático das virtudes. Na infância (segundo estágio, que vai até os 12 anos), Emílio

começaria a receber uma educação moral, através do exemplo do adulto. O terceiro

livro, que trata da adolescência (12 a 15 anos), aborda a formação física e

profissional como um método para a educação intelectual, e somente no final deste

livro Emílio atinge a educação para a razão (BOTO, 2010; FREITAG, 1992). No

quarto livro é descrita a entrada de Emílio na vida adulta, em que lhe falta a

autonomia moral, que só pode ser alcançada no contato com a sociedade. Somente

essa interação possibilita ao Emílio conhecer as noções de bondade, justiça e

sabedoria, que são pautadas nas máximas da piedade e solidariedade, reciprocidade

e respeito à dignidade humana.

Para Kant (2004) toda a moral depende da vontade autônoma do sujeito e,

diferentemente de Rousseau, coloca como princípio da ação moral a prática de um

bem, somente pelo prazer em praticá-lo, e não no atendimento de uma necessidade

individual. Ou seja, o cumprimento do dever por ele mesmo, não como meio de se

conseguir algo, mas como fim, de forma que cada ação pessoal, individual, seja um

princípio geral.

Para Kant, a vontade faz o indivíduo agir conforme o conhecimento da leis, o

que pressupõe o uso da razão:

No conhecimento prático, isto é, aquele que só tem que tratar dos fundamentos da determinação da vontade, os princípios que alguém formula em si mesmo nem por isso constituem leis a que inevitavelmente se veja submetido, porque a razão na prática se ocupa do sujeito, ou seja da faculdade de desejar, segundo cuja constituição especial pode a regra referir-se por formas bem diversas. A regra prática é sempre um produto da razão, porque prescreve a ação, qual meio para o efeito, considerado como intenção (KANT, 2004, s/p).

Kant descreve duas formas de cumprimento das normas, uma delas sob a

definição de imperativo hipotético, em que a regra é cumprida visando determinado

fim, de forma que a ação moral, neste caso é um meio de o sujeito conseguir aquilo

que deseja. Quando a lei é cumprida pela vontade do sujeito, como fim em si mesma

e não como meio de consegui algo para si, configura-se um imperativo categórico.

Nas palavras de Kant (2004, s/p):

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[...] o princípio prático formal da razão pura, segundo o qual a forma vulgar de uma legislação universal, possível mediante a nossa máxima, deve constituir o supremo e imediato fundamento de determinação da vontade, é o único possível para servir aos imperativos categóricos, isto é, dar leis práticas (que fazem das ações deveres), e, em geral, para o princípio da moralidade, tanto no juízo como na aplicação à vontade humana, quanto à determinação da mesma.

A ação moral deve valer como uma lei, possível de ser aplicada a todos, uma

vez que o caráter da lei é aquele da universalidade. O componente social, para Kant,

é a realidade que propicia ao sujeito a ação da vontade.

Em Hegel (1997), sucessor e crítico de Kant, vamos encontrar duas definições

para o conceito de moral. O primeiro diz respeito a uma consciência moral subjetiva,

individual, e o segundo traz a ideia de uma moralidade coletiva, respectivamente:

moral (Moralitãt, palavra latina cujo radical diz respeito aos costumes) e ética

(Sittlichkeit, de origem germânica, cujo radical tem o mesmo sentido de Moralitãt).

Situa, então, essa moralidade individual, específica de cada indivíduo e a ética, essa

moral coletiva, como componentes de uma mesma unidade. A ação do sujeito, seu

julgamento moral, não faz sentido fora de um coletivo, de um corpo social. Nas

palavras do autor:

[...] o homem pensa e é no pensamento que procura a sua liberdade e o princípio da sua moralidade. Este direito, por mais nobre e divino que seja, logo se transforma em injustiça se o pensamento só a si mesmo reconhece e apenas se sente livre quando se afasta dos valores universalmente reconhecidos, imaginando descobrir algo que lhe seja próprio. Dir-se-ia que, atualmente, é nas questões que se referem ao Estado que se encontra a mais forte raiz daquelas representações segundo as quais a prova de que um pensamento é livre seria o inconformismo e até a hostilidade contra os valores publicamente reconhecidos e, por conseguinte, uma filosofia do Estado deveria ser especialmente formulada para inventar e expor mais uma teoria mas, bem entendido, uma teoria nova e particular (HEGEL, 1997, s/p).

Hegel coloca a lei do Estado como contraditória à lei de Deus, pois a primeira,

elaborada e expressa de acordo com os interesses dos homens, não abarca toda a

grandiosidade das leis divinas, por ser desconhecida dos homens. Sobre os

princípios éticos, encontramos em sua obra “Princípios da Filosofia e do Direito”

(1997, s/p):

os princípios do direito e do dever acabam sempre por se afirmar com seriedade e onde sempre reina a luz da consciência. Aí a ruptura tinha, desde logo, de se manifestar. É por causa desta situação da filosofia perante a realidade que os erros se evidenciam, e repito o que já antes observei: porque é precisamente o fundamento do racional, a filosofia é a inteligência do presente e do real, não a construção de um além que só Deus sabe onde se encontra ou que, antes, todos nós sabemos onde está - no erro, nos raciocínios parciais e vazios.

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Já em Nietzsche encontramos uma crítica à conceituação da moral pela

dicotomia bem-mal, pois, “ao estabilizar apenas uma forma de valoração das ações

humanas, naturaliza e hierarquiza determinada concepção moral, excluindo outras

verdades ou morais possíveis” (CARVALHO, 2006, p. 82). Nietzsche descreve,

então, o julgamento moral, tal como o julgamento religioso, como parte de um

“estágio de ignorância em que falta inclusive o conceito de real, a distinção entre real

e imaginário” (NIETZSCHE, 2012, p. 34). A moral seria a necessidade de melhorar o

homem, explicando diversas iniciativas sob este termo, tais como o “amansamento”

do indivíduo e o cultivo de raças. Em ambas, ele enfatiza a descaracterização do ser

para a “melhoria”:

A moral do cultivo e a moral da domesticação são inteiramente dignas uma da outra nos meios de se imporem: podemos colocar como princípio máximo que, para fazer moral, é preciso ter a vontade incondicional do oposto.[...] Expresso numa fórmula, pode-se dizer: todos os meios pelos quais, até hoje, quis se tornar moral a humanidade foram fundamentalmente imorais (NIETZSCHE, 2012, p. 36. Grifos do autor).

Para Nietzsche não se pode dizer de uma moral absoluta, pois as verdades

que sustentam tal constructo são criações humanas e por estarem social e

historicamente situadas são passíveis de crítica.

1.1 O DESENVOLVIMENTO DA MORAL E DA AUTONOMIA MORAL NO CAMPO DA PSICOLOGIA

A questão da moral, tão recorrente na Filosofia, também se mostra bastante

presente na história da psicologia, quer abordando o que é moralidade, como ela se

desenvolve, quer como base para o raciocínio diagnóstico e, assim, para a

delimitação dos “doentes”, como para as possibilidades de tratamento desses. Como

“ciência da vida”, relacionada ao cotidiano dos indivíduos e aos seus

comportamentos, a concepção da moral na psicologia foi e é marcada – e marca –

as próprias concepções de moral das sociedades. Não se pretende, nesse trabalho,

fazer um levantamento da história do desenvolvimento do pensamento moral, pois

isso excederia em muito os limites dessa dissertação.

Dessa forma, direcionamos esse estudo para duas das correntes psicológicas

que mais têm influenciado a educação, contemporaneamente: a psicologia genética e

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aquela histórico-cultural. Consideramos que atualmente, ao menos no cenário

brasileiro, são essas que se referem, mais de perto, como possíveis bases para o

estudo da deficiência intelectual em sua relação com a moralidade. Abordaremos,

assim, a seguir, as contribuições da Psicologia Genética e depois a Psicologia

Histórico-Cultural.

1.1.1 As contribuições da Psicologia Genética

1.1.1.1 Piaget e a Psicogênese da moral

No âmbito da teorização epistemológica piagetiana não haveria uma realidade

moral completamente inata, pois se sem a vida em sociedade não haveria

necessidade de comportamentos morais, é na e pela convivência com os outros, e

nos obstáculos cognitivos que essa convivência coloca, que o pensamento moral se

desenvolve. Para o autor há um “paralelismo entre o desenvolvimento moral e a

evolução intelectual. [...] a lógica é uma moral do pensamento, como a moral uma

lógica da ação.” (PIAGET, 1994, p. 295).

Nos estudos sobre moralidade e também dos processos de construção da

autonomia moral é possível perceber que mais importantes que as finalidades de

uma educação moral são os processos pelos quais o indivíduo passa durante a

construção de sua moralidade. Piaget (1994) descreve o desenvolvimento da

moralidade na criança pelos estágios de operações lógicas, traçando um paralelo

entre o desenvolvimento social e o desenvolvimento cognitivo (lógico-racional).

Assim, à criança no estágio sensório-motor não é atribuída um estágio de

desenvolvimento social, uma vez que esse estágio é marcado pela individualidade,

em que o desenvolvimento não se dá pelas trocas sociais. Nas crianças da fase pré-

operatória, apesar de haver o uso da linguagem, a socialização não é completamente

efetivada pelo diálogo, pois como é próprio deste estágio, não há o compartilhamento

de conceitos, e ainda que duas crianças estejam falando do mesmo assunto,

parecem ocorrer dois monólogos concomitantes, em vez de um diálogo. Falar de um

desenvolvimento social nessa fase também é difícil por conta da não existência,

ainda, de relações de reciprocidade, o que impede a criança de se colocar no lugar

do outro. No estudo da moralidade piagetiano, esse estágio é marcado pela

percepção das crianças de que as regras morais, aqui colocadas pelos adultos, são

imutáveis, como algo dado, que não pode ser modificado ou elaborado por elas. Por

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fim, o estágio operatório é o que traz a criança como parte de um todo mais amplo,

em que não há apenas a diferenciação do “eu” em relação aos outros, mas a

submissão – de forma consciente – do indivíduo às normas sociais que regem esse

todo. Ao produto desse processo Piaget (1994, p. 83) dá o nome de personalidade:

[...] não o eu inconsciente do egocentrismo infantil, nem o eu anárquico do egoísmo em geral, mas o eu que se situa e submete, para se fazer respeitar, às normas da reciprocidade e da discussão objetiva. A personalidade é, desse modo, o contrário do eu, o que explica porque o respeito mútuo de duas personalidades, uma pela outra, é um respeito verdadeiro, em lugar de se confundir com o mutuo consentimento de dois “eu” individuais, suscetíveis de ligar parte do mal e parte do bem.

Para Piaget, o estágio operatório, como último estágio do desenvolvimento

lógico, que culmina com a personalidade acima descrita, indica que o indivíduo é

capaz de situar-se de forma consciente e competente frente às demandas sociais. É

quando seria possível falarmos de autonomia moral: “Com efeito, há a autonomia

moral quando a consciência considera como necessário um ideal, independente de

qualquer pressão exterior.” (PIAGET, 1994, p. 155).

Este último estágio representa, então, um equilíbrio alcançado pela pessoa, e

esse equilíbrio, segundo Piaget, ocorre num nível biológico “no sentido de que é

próprio de todo sistema vivo procurar o equilíbrio que lhe permite a adaptação” (DE

LA TAILLE; OLIVEIRA; DANTAS, 1992, p. 18). Isto posto, cabe avaliar, então, qual o

papel das relações interindividuais no desenvolvimento do sujeito.

Nesse sentido, são descritos dois tipos de relação: a relação de coação, em

que o respeito é unilateral, e há uma desigualdade entre o sujeito que respeita e o

que é respeitado. Essa é a primeira forma de relação social à qual a criança

pertence. Na relação de cooperação os indivíduos se consideram iguais e se

respeitam reciprocamente. Geralmente ocorre entre crianças de idades próximas

e/ou que se relacionam habitualmente.

Na relação de coação, o indivíduo não participa da elaboração e a manutenção

da regra, ou das concepções emergentes dessa relação, ocorre pelo prestígio do

sujeito que é respeitado (a figura do professor, por exemplo, ou de qualquer outra

pessoa que exerça uma figura de autoridade):

A coação corresponde a um nível baixo de socialização [...]. Em primeiro lugar, não há verdadeiro diálogo, uma vez que um fala e o outro limita-se a ouvir e a memorizar. O indivíduo coagido deve atribuir valor às proposições

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daquele reconhecido como prestigioso, mas a recíproca não é verdadeira (DE LA TAILLE; OLIVEIRA; DANTAS, 1992, p. 19; Grifos dos autores.).

A relação de coação não representa uma possibilidade ao desenvolvimento,

pois fecha os componentes dessa relação em seu próprio ponto de vista, barrando o

desenvolvimento de operações mentais, que só ocorrem por necessidade do sujeito.

Em contrapartida, as relações de cooperação justamente possibilitam o

desenvolvimento das operações mentais, a produção e a manutenção de normas,

regras e ideias, pois os componentes da relação ocupam posição de igualdade, numa

relação com alto nível de socialização. No entender de Azevedo,

Desta maneira, a moralidade encontra-se fundamentada não na obediência à autoridade, não na submissão a qualquer pressão exterior, não na satisfação de interesses egoísticos, mas antes na interdependência, que pressupõe colaboração e reciprocidade. Essa reciprocidade corresponde à capacidade de pensar acerca daquilo que o outro sente, saindo de si mesmo e movendo-se em direção à integração com o outro (AZEVEDO, 2010, p. 106)

Piaget (1994) relata que a evolução de uma sociedade gerontocrática,

segmentária, para sociedades diferenciadas (que ele chama de orgânicas) e a

consequente diminuição da vigilância do grupo sobre os indivíduos, deixa mais claros

os processos que marcam a transição da relação de coação para a relação de

cooperação. Em suas palavras:

[...] quanto mais “densa” é a sociedade mais depressa o adolescente escapa à coação direta dos seus, para sofrer e comparar entre elas uma multidão de influências de modo que conquista assim sua independência espiritual. (PIAGET, 1994, p. 251. Aspas do autor.)

De La Taille, Oliveira e Dantas (1992) referem que Piaget, em seus estudos,

pouco se remete a fatores de ordem cultural, ideológica, religiosa, acesso à

escolarização – o que limita sua teoria. Quando ele determina que a coação é o

oposto da cooperação, em que a primeira apresenta a regra posta sem possibilidade

de discussão, e a segunda prescinde da aceitação do grupo para a elaboração e/ou

manutenção da norma – e que, portanto, a criança deve querer e aceitar fazer parte

de uma ou outra relação, desde que tenha o desenvolvimento cognitivo necessário

para tal, ele coloca tais relações numa perspectiva ética, uma vez que considera o

social e suas influências sobre os indivíduos, o que pressupõe a capacidade de

escolha do indivíduo. Nisto se encontra a dimensão moral dessas relações: a

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possibilidade do indivíduo escolher as relações de que faz parte, numa sociedade em

que sejam valorizados os princípios de igualdade e respeito.

Piaget (1994) relaciona ao conceito de cooperação o conceito de

responsabilidade primitiva, ou objetiva, em que o indivíduo julga os atos somente

pelas suas consequências, sendo que a obediência às normas colocadas pelos

adultos acontece pela necessidade de aceitação. Em contrapartida, o conceito de

responsabilidade subjetiva se vincula à necessidade de cooperação, em que não há

espaço pra o delito/mentira, pois o individuo é ativo no que diz respeito à criação e

manutenção de regras.

Esses conceitos de responsabilidade contemplam dois tipos de julgamentos:

pelo seu resultado ou pela intenção. Na pesquisa que deu origem ao livro “O juízo

moral na criança”, Piaget (1994) relata que, ainda que seja percebida a evolução da

consciência moral na criança de uma responsabilidade objetiva para uma realidade

subjetiva, deve-se levar em conta que os questionamentos cujas respostas

compuseram os dados da pesquisa são hipotéticos, o que justificaria uma resposta

teórica atrasada em relação à sua ação. De acordo com esse pensamento:

Ora, estando o pensamento na criança sempre atrasado em relação à ação, é natural que a solução de problemas teóricos, como esses de que nos servimos, recorra aos esquemas mais habituais e mais antigos, e não aos esquemas mais sutis e menos resistentes em via de construção atual. É assim que um adulto em pleno período de revisão dos valores e vivendo sentimentos cuja novidade o surpreende, talvez recorra a noções morais caducas para ele em direito, se se encontrar repentinamente em presença de uma dificuldade a ser resolvida para outrem: por exemplo, se não se lhe der tempo para uma reflexão suficiente, julgará os atos de uma pessoa com uma severidade incompreensível, tendo em vista suas atuais tendências profundas, mas que corresponde, efetivamente, ao seu sistema anterior de avaliação (PIAGET, 1994, p. 112).

1.1.1.2 A Teoria cognitivo-evolutiva da moral de Kohlberg

Kohlberg, como Piaget, traça uma teoria que busca uma “definição científica e

filosófica da moralidade, na qual qualquer descrição da forma ou modelo de estrutura

social é necessariamente dependente de estruturas cognitivas” (LIMA, 2004, p. 15).

Na sua teoria, o senso de justiça é o mote do desenvolvimento moral. O

desenvolvimento moral representaria não somente um “crescente conhecimento dos

valores culturais, geralmente conduzindo à relatividade ética. Ao invés, representa as

transformações que ocorrem na forma ou estrutura de pensamento da pessoa”.

(KOHLBERG; HERSH, 1977, p. 54).

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Piaget traçou um paralelo entre os estágios do desenvolvimento cognitivo e o

desenvolvimento moral do sujeito, descrevendo em cada um dos estágios um

comportamento moral, como caminho para a autonomia moral. Kohlberg também

fundamenta sua teoria em estágios, com diferenças qualitativas entre eles, em que a

estrutura de cada estágio tem como parte essencial a perspectiva sócio-moral. Suas

conclusões derivaram de uma pesquisa realizada nos Estados Unidos, com crianças

e adolescentes de 10, 13 e 18 anos, e propõe seis estágios invariantes e universais

de desenvolvimento moral, distribuídos em três níveis. Na conclusão de Kohlberg

todas as pessoas passariam pela mesma sequência de estágios de desenvolvimento

moral, embora nem todas cheguem a alcançar os últimos níveis, ou seja, aqueles que

indicariam, de fato, que seriam moralmente autônomas.

Os estágios de desenvolvimento da moralidade de Kohlberg se dividem, cada

um, em dois níveis, sendo um dos níveis marcados pela heteronomia e outro

marcado pela autonomia. Assim, no desenvolvimento de sua moralidade, o sujeito,

evolui de uma moralidade puramente heterônoma, de compreensão de uma regra

puramente pela consequência de sua transgressão, ao estágio máximo desse

desenvolvimento, em que o indivíduo transgride conscientemente as regras em prol

de outras pessoas. Tal desenvolvimento segue um padrão espiral em que evolui e

involui entre heteronomia e autonomia, ao mesmo tempo em que avança entre os

estágios e na estruturação cognitiva.

O primeiro nível descrito por Kohlberg é o pré-convencional, no qual se

enquadrariam a maioria das crianças com menos de 9 anos, alguns adolescentes e

muitos criminosos (adolescentes e adultos). Nesse nível, os indivíduos ainda não

respeitam, até por não (re)conhecer, normas e expectativas sociais referentes a elas,

e isso acontece porque as regras ainda não foram internalizadas pelo indivíduo.

Comparando com os estágios descritos por Piaget, seriam aqueles que estariam nos

períodos pré-operatório e operatório, somente capazes de condutas morais

heterônomas e que participam de relações de coação, em sua maioria.

O próximo nível é o convencional, do qual fariam parte a maioria dos

adolescentes e adultos das sociedades ocidentais (incluindo a brasileira). Os

indivíduos que se encontram nesse nível compreendem e aceitam as regras sociais

impostas, mas a compreensão se dá pelo entendimento do princípio que gerou tal

regra. É como se as normas estivessem já internalizadas, porém pela perspectiva do

outro, geralmente alguém que exerce autoridade em relação ao individuo.

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O nível pós-convencional é alcançado por cerca de 5% dos adultos, entre 20 a

25 anos. O termo convencional não se refere, aqui, à (in)capacidade de distinção

entre moralidade e convenção social, mas à moralidade como um conjunto de regras

e convenções socialmente compartilhado. Os indivíduos desse nível tem a

possibilidade de julgar as regras de acordo com suas próprias percepções,

diferenciando as expectativas dos outros e suas próprias em relação às normas

(COLBY; KOHLBERG, 1984; BIAGGIO, 2002).

No nível pré-convencional temos dois estágios: o primeiro é a orientação para

a punição e para a obediência, em que um ato, se punido, é sinônimo de moralmente

condenável. Quando não há punição, seria moralmente correto. Essa diferenciação

se coloca mesmo acima dos valores ou da ordem moral vigentes num grupo social, e

caracteriza a indicação de um caminho moral apoiado no medo à punição e à

autoridade. No segundo estágio, marcado pelo egoísmo/heteronomia há uma moral

relativa, em que uma ação é considerada correta se trouxe prazer ou satisfação ao

sujeito. A igualdade e a reciprocidade surgem segundo a lei de Talião – “olho por

olho, dente por dente”, não sendo ainda consideradas questões de lealdade ou

justiça (KOHLBERG; HERSH, 1977).

Os estágios do nível convencional já trazem as regras como contratos sociais,

dependentes da aceitação do grupo para sua manutenção. No primeiro estágio do

nível convencional (estágio três) é marcante a necessidade de aceitação e aprovação

dos outros, ainda de maneira heterônoma e egocêntrica. “Há uma compreensão da

regra ‘faça aos outros aquilo que você gostaria que lhe fizessem’, mas há dificuldade

em imaginar-se em dois papeis diferentes” (BIAGGIO, 2002, p. 25). No quarto estágio

a justiça não é apenas a opção moralmente correta, ela está relacionada à

autoridade, às leis e regras fixas, não ligada às relações interindividuais.

No nível pós-convencional o estágio cinco descreve indivíduos para quem as

leis são cumpridas não somente pelo fato de serem leis, mas porque há uma

concordância com elas. Nessa consideração, pode haver leis consideradas injustas

e, nesse caso, luta-se por mudanças pelos meios democráticos, através de canais

legais. “O indivíduo pode questionar a justiça de determinadas leis e contratos

sociais, baseando-se em princípios éticos universais tais como o direito à vida, à

dignidade e ao respeito, dentre outros” (MONTE, 2012, p. 369). No estágio seis, mais

alto do nível pós-convencional e último estágio descrito por Kohlberg, apesar de

reconhecer as leis e a necessidade de obedecê-las, a consciência individual do

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sujeito pode se sobrepor às regras consideradas injustas e, ainda que não seja

possível mudá-las de forma democrática, ele pode se rebelar. Kohlberg coloca como

exemplos desse estágio mártires e pacifistas, como Jesus Cristo e Ghandi (LIMA,

2004; BATAGLIA; MORAES; LEPRE, 2010).

Os teóricos da Psicologia Genética tratados aqui descrevem o

desenvolvimento moral como algo linear, que acompanha o desenvolvimento

cognitivo dos indivíduos, fazendo uso de situações específicas (no caso de Piaget,

usando os jogos de regras) para generalizar as atitudes morais na vida escolar e

extraescolar como um todo. Não atentam, no entanto, para diversas interferências

enfrentadas pelo indivíduo, que possam alterar as respostas desse. Consideramos

que a moral não pode ser concebida como puramente racional e a relação entre o

juízo e a ação moral não é tão estreita:

Os juízos passam a ser um dado probabilístico ou um indicador da possibilidade de agir, conforme os princípios e valores com os quais são orientados. Essa complexidade aponta para a inadequação dos modelos

tradicionais de ciência psicológica [...] As dicotomias e os binarismos devem dar lugar a uma concepção de sujeito psicológico e de moral próxima da complexidade (SOUZA; VASCONCELOS, 2009, p. 351).

Conforme Carvalho (1999) é preciso considerar que as pessoas podem agir de

diferentes maneiras em diferentes lugares, e em ambientes de relações mais

complexas daquelas descritas por Piaget em sua pesquisa a atitude moral autônoma

pode não ocorrer.

1.1.2 As contribuições da Psicologia Histórico-Cultural

Vimos, então, que a abordagem construtivista genética sobre a moral

considera que o desenvolvimento da moralidade é um processo que leva em conta

estágios de crescente competência lógico-racional, percorridos pelo sujeito para que

este atinja um padrão a partir do qual consiga determinar como corretas/incorretas

suas ações, determinando-se para agir concordantemente. Como a teoria de Piaget

trata do desenvolvimento cognitivo das crianças como algo orgânico, biológico, o

papel do sujeito, nesse desenvolvimento, “tende a se reduzir a simples regulação do

ritmo em que este desenvolvimento irá ocorrer” (MARTINS; BRANCO, 2001, p. 2).

Mesmo a teoria de Kohlberg, que mostra a existência de estágios morais tão

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avançados, que pouquíssimos indivíduos são capazes de atingir, coloca o

desenvolvimento da moralidade, em seus estágios mais básicos, como universais, ou

seja, comuns a todos os indivíduos.

Nessa perspectiva, seria correto pensar que o sujeito constrói uma realidade

moral e se constrói nessa realidade em relação a um determinado grupo ou grupos,

mas as construções seriam outras se também os grupos fossem outros? Isso é:

haveria mesmo uma moral universal? Ou essa seria fruto do desenvolvimento sócio-

histórico dos sujeitos e das sociedades, resultante, assim, dos embates pela

transformação do entorno pelos seres humanos, das disputas pelo poder e pela

dominação, que parecem percorrer a história humana?

As teorias construtivistas de base psicogenética tratam de indivíduos cujo

desenvolvimento orgânico, biológico-cognitivo, acontece de forma normativa. Como

compreender, então, ou explicar, o desenvolvimento da moralidade em sujeitos que

não alcançaram, na idade esperada – dentro da padronização teórica do

desenvolvimento proposto por essas teorias, os estágios previstos para seu

desenvolvimento cognitivo? Seguindo essas premissas as crianças portadoras de

deficiências intelectuais, com comprovado déficit cognitivo, devem ser consideradas

indivíduos que jamais alcançarão um nível autônomo de moralidade? Ficariam

restritos àqueles níveis mais básicos, sempre heterônomas?

Sob outra ótica, a psicologia histórico-cultura, coloca na cultura3, entendida

como construção sócio-histórica, o ponto fundamental do desenvolvimento humano,

considerando que a pessoa só se constitui como tal, inclusive do ponto de vista das

suas faculdades cognitivas superiores, fazendo sentido, atribuindo significado, à sua

existência no entorno social. Essa compreensão nos parece mostrar maiores

possibilidades de que se compreenda a construção de uma postura e julgamentos

morais autônomos, a despeito das deficiências que possam existir na vida das

pessoas.

A psicologia histórico-cultural desenvolveu-se juntamente com a formação da

Rússia socialista, comprometida com a solução de problemas relacionados à

construção de uma nova sociedade (socialista) e de indivíduos formados com os

valores dessa nova sociedade. Baseada no materialismo dialético, procurava explicar

3 Cultura, no âmbito da psicologia histórico-cultural tem o sentido lato de “produto da vida em

sociedade e da atividade social do homem” (VIGOTSKI, 2011, p.864).

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a constituição histórica e cultural do desenvolvimento humano no processo de

aquisição de cultura mediante a interação dos sujeitos e do sujeito com o meio.

Para Vygotsky4 (1989; 1993) não se pode considerar o sujeito separado de seu

ambiente e das relações que se estabelecem ali. Sendo instâncias indissociáveis e

sempre em desenvolvimento, não há como prever uma terminalidade para o

processo de desenvolvimento, um estágio tal que não haja mais evolução possível

para o homem e a sociedade na qual ele se insere. Considerando indivíduo e

sociedade/cultura como constituintes de um mesmo sistema, o desenvolvimento

cognitivo é, então, um processo de imersão/aquisição da cultura, que se dá em duas

etapas. A primeira é interpessoal, e acontece no contato do indivíduo com o que se

chama de “outro social”. A segunda etapa é intrapessoal, e acontece na relação do

indivíduo com suas próprias e mais antigas aprendizagens; e a reorganização dos

processos cognitivos que ocorrem como resultantes desses processos é definida

como interiorização.

A cultura é o que dá sentido ao mundo, e os artefatos culturais, sejam objetos,

sejam produtos do conhecimento, se tornam, também abarcando a linguagem, nas

“ferramentas” de interação social com o entorno, e intra-individualmente (indivíduo-

entorno e indivíduo-indivíduo). Constituem-se, assim, como signos5 e medeiam as

interações entre a constituição biológica e mental, compondo o desenvolvimento

humano, incluindo aquele moral. Podem ser indicadas, nesse sentido, o rol de regras

e valores morais presentes nos jogos infantis. Criados nas especificidades das

interações sociais de determinados contextos, mediados pelos artefatos culturais

próprios a esses, tais regras e valores, indicando as possibilidades do “fazer

certo/errado”, vão configurando as formas de pensar (e do sistema nervoso se

organizar), materializando as ações e comportamentos cotidianos. Em outra análise,

a cultura pode ser encarada como a configuração por meio da qual confere-se o

sentido do que se está conhecendo, como vem acontecendo o conhecimento e os

significados a esse atribuídos, levando a considerar que o que pode ser pleno de

sentido em um grupo social pode parecer sem nexo em outro.

4 Seguimos a grafia do nome segundo consta na obra consultada, quando citada. Por este motivo encontram-se duas grafias diferentes para o nome do mesmo autor ao longo do trabalho. 5 “Um signo é qualquer símbolo convencional, que possui um certo significado” para alguém

(LEONTIEV, 1979, s/p). Como (re)apresenta algo para quem emite o signo e para quem o interpreta, posições que nem sempre coincidem, o signo é caracterizado por essa flexibilidade representativa, o que abre espaço para modificações culturais.

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No âmbito da psicologia histórico-cultural as funções mentais mais elevadas

(memória, atenção, percepção, pensamento e vontade), emergem dos processos

socioculturais. Acompanhando a análise que Leontiev (1979, s/p), faz das teorizações

efetivadas por Vigotski, ele afirma que uma das principais conclusões a que Vigotski

chegou foi que

As funções mentais se desenvolvem ao longo do desenvolvimento histórico da humanidade. O fator decisivo neste desenvolvimento são os signos. [...] “em uma estrutura superior, o signo e a forma como é usado são o todo funcional decisivo, ou o foco de todo o processo”. [...] Uma função mental superior se desenvolve com base em uma função elementar , que se torna mediada por signos no processo de internalização.

Esses processos que formam as funções psicológicas superiores só têm origem

na relação entre os indivíduos, não são inatos. São diferentes das ações reflexas e de

comportamentos psicológicos mais básicos. O sujeito muda o ambiente como

resultado da sua ação sobre esse: processo intencional, que se faz possível pelo signo

e nas mediações simbólico-culturais, produzindo e refazendo significados, e sendo

também modificado. Para compreender esses processos é preciso que se entenda o

conceito de mediação, como “a relação indissociável e dialética entre a atividade

psíquica e o meio sociocultural” (LONGAREZI; PUENTES, 2013, p. 59). O conceito de

mediação se refere à criação em emprego dos signos, como instrumentos que regulam

o pensamento e a ação do homem. Leontiev (1979, s/p), ao se referir à origem do

conceito de mediação na obra de Vigotski, assim se coloca:

Ele conseguiu ver que para a psicologia marxista a atividade objetiva humana deveria se tornar a categoria central. [...] a primeira manifestação dessa categoria na psicologia foi a teoria histórico-cultural de Vigotski, com a ideia de mediação dos processos mentais por ferramentas psicológicas – por analogia com o modo com que ferramentas materiais de trabalho medeiam a atividade humana prática.

A dimensão simbólica é fundamental na mediação, pois é o que permite que o

mundo físico material adquira uma representatividade mental. No desenvolvimento

infantil, naquilo que se refere à apropriação da cultura, e ao desenvolvimento das

funções superiores, a educação escolar significa uma imersão cultural num universo

sígnico particular, daqueles símbolos que dizem respeito aos conceitos científicos.

O desenvolvimento infantil, desde o nascimento, revela a relação entre o

aprendizado e o próprio desenvolvimento. Ao nascer, toda relação do bebê com o

mundo é mediada pelos adultos. Relação que começa mesmo antes da criança

nascer: o bebê já nasce representado num contexto sociocultural determinado.

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Conforme vai crescendo, os objetos e as ações vão se tornando crescentemente

imbuídas e plenas dos significados culturais aí existentes. Todo desenvolvimento

individual se articula às características do grupo social em que o sujeito está inserido.

Dessa forma, para que a pessoa com deficiência intelectual desenvolva o

conhecimento e a configuração mental que lhe permitirá compreender o conteúdo e o

sentido da moralidade de um grupo social, é preciso que se aproprie desses por meio

das interações socioculturais (simbólicas) que vivenciar, mediadas pelos outros

sujeitos.

Em relação à aprendizagem, Vygotsky (1989) ressalta que essa ocorre numa

zona de desenvolvimento que ele chama de proximal. Para ilustrar esse processo ele

descreve dois círculos concêntricos, de tamanhos diferentes. Ao menor ele dá o

nome de zona de desenvolvimento real, que descreve o nível de desenvolvimento já

alcançado pelo sujeito, representado pelas funções que ele é capaz de realizar

sozinho. O círculo maior é chamado de zona de desenvolvimento potencial e se

refere às funções que potencialmente o sujeito será capaz de realizar/desenvolver. À

diferença entre o círculo menor e o maior Vigotski dá o nome de zona de

desenvolvimento proximal, que é “a distância entre o nível de desenvolvimento real

[...] e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de

problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros

mais capazes” (VYGOTSKY, 1989, p. 97).

Esses conceitos permitem justificar a diferença entre os processos de

aprendizagem de crianças com idade e níveis de desenvolvimento semelhantes, pois

o desenvolvimento de cada indivíduo segue seu próprio curso. Se considerarmos que

a chegada a uma nova zona de desenvolvimento real sempre representará a abertura

a uma outra zona de desenvolvimento potencial, é possível compreender que o que

antes fazia parte da zona de desenvolvimento potencial passa a fazer parte do

desenvolvimento real do indivíduo, e assim sucessivamente. Usando estes conceitos

na discussão da educação do aluno deficiente intelectual, é possível, então, entender

que sempre haverá uma zona de desenvolvimento proximal em que seja possível

trabalhar, pois é ali, no que o aluno não consegue ainda realizar de forma

independente, que ocorre a aprendizagem. Ainda em Vygotsky (1989, p. 61)

encontramos que:

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Resumindo, o aspecto mais essencial de nossa hipótese é a noção de que os processos de desenvolvimento não coincidem com os processos de aprendizado. Ou melhor, o processo de desenvolvimento progride de forma mais lenta e atrás do processo de aprendizado; desta seqüenciação resultam, então, as zonas de desenvolvimento proximal. Nossa análise modifica a visão tradicional, segundo a qual, no momento em que uma criança assimila o significado de uma palavra, ou domina uma operação tal como a adição ou a linguagem escrita, seus processos de desenvolvimento estão basicamente completos. Na verdade, naquele momento eles apenas começaram. A maior conseqüência de se analisar o processo educacional desta maneira, é mostrar que, por exemplo, o domínio inicial das quatro operações aritméticas fornece a base para o desenvolvimento subseqüente de vários processos internos altamente complexos no pensamento das crianças.

Essa maneira dinâmica de representar a aprendizagem e o desenvolvimento

torna possível falar em uma educação que inclua todos os alunos. Observa-se

também que esse processo de aprendizagem e desenvolvimento não ocorre somente

no espaço escolar. Em se pensando no desenvolvimento e na aprendizagem das

formas de ser social, consideramos que as relações sociais, nas sociedades urbanas

modernas estão muito restritas à família, ou à supervisão dessa, ou à substituição do

contato presencial pelo virtual. Isso faz com que espaços de interação (e mediação)

estejam cada vez mais fechados, embora no campo do virtual pareçam mais abertos.

Isso dificulta a vivência social das crianças e adolescentes, o que acaba, em nosso

entender, dificultando o desenvolvimento da moralidade.

Quando se aborda o processo de inclusão do deficiente intelectual, pode-se

pressupor que o estamos tirando de um estado de exclusão. E não podemos fazê-lo

somente dentro do espaço físico da escola, à parte do “processo educacional

marcado por intervenções educativas que articulam a comunidade para

transformações sociais” (GOMES, 2008, p. 6), mas fazendo o sujeito perceber-se – e

ser percebido – como produtor de valor dentro dos seus diferentes espaços de

convivência. Ou seja, para que a inclusão de qualquer sujeito ao seu entorno cultural

ocorra é essencial que ele compartilhe efetivamente desse. À falta disso ele não

conseguirá apropriar-se das ferramentas culturais e dos instrumentos psicológicos

que mobilizam e medeiam o processo do desenvolvimento.

Em relação às crianças portadoras de deficiência, Vygotsky (1989) refere que

o erro das escolas que as atendem está em basear o ensino quase que unicamente

em situações concretas, em que nada se faz além de pautar a aprendizagem no

binômio observar – agir conforme o que foi observado, quando a função da escola

deveria ser a de levar o indivíduo a agir autonomamente, sem a necessidade de

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controlar demasiadamente os processos cognitivos de aprendizagem e os

comportamentos. O que é muito forte no caso dos deficientes intelectuais, e que

acaba por inibir seu próprio processo de desenvolvimento:

Uma vez que a criança tenha aprendido a realizar uma operação, ela passa a assimilar algum princípio estrutural cuja esfera de aplicação é outra que não unicamente a das operações do tipo daquela usada como base para assimilação do princípio. Consequentemente, ao dar um passo no aprendizado, a criança dá dois no desenvolvimento, ou seja, o aprendizado e o desenvolvimento não coincidem (VYGOTSKY, 1989, p. 94).

Considerando a construção da atitude moral, segundo a teoria histórico-

cultural, essa construção se daria, como em todos os outros aspectos dessa

abordagem, apoiada no contexto social em que a criança está inserida. Dessa forma,

mais do que considerar isoladamente a idade, a constituição biológica, ou o estágio

de desenvolvimento cognitivo, o que pesa no desenvolvimento moral do indivíduo é

o ambiente físico e social, pela sua estrutura organizacional e econômica, sendo guiados por funções, regras, rotinas e horários específicos. Eles definem e são definidos pelo número e características das pessoas que os frequentam, sendo ainda marcados pela articulação da história geral e local, entrelaçadas com os objetivos atuais, com os sistemas de valores, as concepções e as crenças prevalentes. São, também, definidos por e definem os papeis sociais e as formas de coordenação de papeis/posicionamentos [...]. Nesse sentido, o contexto desempenha um papel fundamental, visto que, inseridas nele, as pessoas passam a ocupar certos lugares e posições – e não outros –, contribuindo com a emergência de determinados aspectos sociais – e não outros – delimitando o modo como as interações pode se estabelecer naquele contexto (ROSSETTI-FERREIRA, 2004, p. 26).

Sobre isso, encontramos em Talizina (2000, p. 19), outra teórica da psicologia

histórico-cultural, e que foi aluna de Leontiev, que: “gracias a la natureza social de la

psique humana, la gente no nace com las capacidades preparadas del pensamento,

de la memoria, etc. Todo esto se assimila durante la vida, convirtiendo la experiencia

social en la experiencia personal”. Dessa forma, ainda segundo Talizina, as ciências

da educação devem partir do princípio de que as possibilidades cognitivas dos alunos

não são inatas, e devem ter como papel principal identificar as condições que

possibilitem aos educandos seu desenvolvimento. O foco do trabalho de Talizina está

na atividade do sujeito e em como a realização da atividade, inicialmente mediada e,

posteriormente, de acordo com a internalização feita por ele, de forma espontânea e

autônoma, numa relação prática com o objeto (de conhecimento), o que torna

possível que “o aluno assimila o conceito como resultado de sua própria atividade

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dirigida, não somente para as palavras, mas para os objetos cujos conceitos se quer

formar” (LONGAREZI; PUENTES 2013, p. 94).

Essa relação da atividade com o “processamento” de contextos e de objetos

do conhecimento, vai sendo melhorada conforme o desenvolvimento do sujeito vai se

procedendo, e o aumento no número e na qualidade de suas interações se

complexifica. Segundo Elijah (2014) as mudanças quantitativas e qualitativas no

conhecimento social das crianças, que ocorrem conforme seu desenvolvimento se

dá, também modificam, em quantidade e qualidade, as estratégias utilizadas para

responder às mais diversas situações sociais. Essa mudança de repertório ocorre

não somente na forma de lidar com as situações de conflito, por exemplo, como

também na habilidade de aquisição de novas maneiras de resolvê-los.

O modelo de aprendizagem do ser social, como preconizado pela teoria da

percepção social, se aproxima das ideias acima quando destaca a habilidade que os

sujeitos precisam ter para fazer a leitura do ambiente social, selecionando em seu

próprio repertório o comportamento adequado em cada determinada situação. Dessa

forma,

Essa discriminação implica reconhecer e decodificar os sinais presentes no contexto interativo, especialmente as mensagens verbais e não verbais dos interlocutores, e algum conhecimento sobre as normas e valores associados à situação e às condutas esperadas, tanto para apresentar um desempenho compatível com tais expectativas, como para explorar outros objetivos em função de novos sinais sobre sua probabilidade de sucesso” (DEL PRETTE; DEL PRETTE, 1996, p. 237).

Contudo, para fazer a leitura do ambiente social é necessário estar conectado

aos modos e regras de socialização da cultura de determinados grupos sociais. Tal

conexão se desenvolve conforme a criança vai sendo introduzida nessa cultura da

sua comunidade, pela mediação dos adultos ou de pares mais capazes. Ela aprende

a decodificar, interpretar, recodificar os signos sociais presentes em dada situação.

Se o deficiente intelectual não tem essa vivência, ou a tem superficialmente, ou

restritamente, ou seja, está presente num ambiente de interação social, mas sem que

as mediações acompanhem/aconteçam na sua zona de desenvolvimento proximal,

como aprenderá a fazer tal leitura? Como se desenvolverá moralmente?

Derivado da Psicologia Social, o modelo da teoria de papeis também relaciona

as habilidades sociais à compreensão do próprio papel e do papel do outro em dado

contexto, bem como dos elementos simbólicos (verbais ou não-verbais) a ele

associado. Novamente questionamos: quais os papeis que são facultados ao

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deficiente intelectual assumir em nossa sociedade? Bandura (2008), em seu modelo

de aprendizagem social, considera que as habilidades sociais são aprendidas através

de experiências interpessoais vicariantes, onde a observação do desempenho do

outro (modelo) é considerada como processo básico na aquisição do repertório

social.

O deficiente intelectual, por fazer interpretações diferenciadas do contexto,

quer por falta de experiência social, quer pela mediação insuficiente, quer por

características da própria deficiência, pode focar-se em desempenhos que nem

sempre são os mais válidos para a compreensão da moralidade vigente em dado

grupo social. Um exemplo disso é que no ambiente escolar muitas vezes os

deficientes intelectuais são “usados” pelos demais alunos para realizar atos

considerados moralmente errados, como pequenos furtos, provocar outros alunos,

etc. E, no mais das vezes, como pudemos observar na escola onde a pesquisa foi

realizada, os alunos deficientes faziam tais ações, ou para não desagradarem os

colegas, ou sem aperceberem-se de que o que estavam fazendo era errado, ou sem

medir as consequências do que estão fazendo. Como argumentamos, se não há uma

moralidade inata, também não há o aprendizado ou o desenvolvimento “por osmose”

da moral. O deficiente intelectual precisa ser intencionalmente inserido no mundo do

aprendizado moral, das habilidades sociais presentes numa cultura, e ter consciência

de que está participando disso, até chegar a poder discutir tal aprendizado.

Del Prette e Del Prette (1998, p. 211) ressaltam a importância da área de

habilidades sociais ser desenvolvida na educação especial, pois além de contribuir

efetivamente para o desenvolvimento interpessoal, “amplia os requisitos para a

comunicação com pares e para um melhor aproveitamento das condições sociais de

desenvolvimento e de aprendizagem”. Assim, mais do que produtos do processo de

aprendizagem, as habilidades sociais são também necessárias para o

desenvolvimento dessa aprendizagem. As interações psicossociais, positivas

(trabalho cooperativo, escuta do outro) ou negativas (provocar os colegas e

professores), têm o potencial de afetar a aprendizagem e o desenvolvimento.

Elijah (2014) elenca padrões de desenvolvimento psicossocial fundamentais

para uma ação autônoma em relação ao entorno do aluno, que ela chama de

percepção psicossocial, e que remetem à teoria de papéis descrita por Del Prette e

Del Prette (1996). Ambas afirmam que o sujeito deve aprender a interpretar a

simbologia presente no ambiente social, agindo conforme o que é esperado dele em

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determinadas situações. Ou a contestar quando o esperado contraria seus direitos e

formas de ser.

A percepção social, como aqui entendida, é fruto do papel que o sujeito ocupa

no grupo. Da mesma forma que não há um determinismo social, em que o sujeito é

produto puramente do meio social, não há um sujeito que seja livre agente,

independente dos parâmetros históricos, sociais e culturais do seu entorno, o que

Spink (1993) chama de voluntarismo. Voltamos então à base da teoria histórico-

cultural, que afirma que o desenvolvimento ocorre imbricado à atividade, sempre

mediada cultural e socialmente, do sujeito em suas circunstâncias. Poderíamos dizer,

então, que o aluno deficiente intelectual, participante de uma comunidade, é

influenciado pelas regras sociais ali implícitas e/ou explícitas, ao mesmo tempo que

influencia a manutenção (ou não) dessas regras. Durante a realização da

investigação, uma das reflexões por nós feita é a de que a educação inclusiva, ou

seja, a presença do deficiente intelectual (e outros) na escola, vem colaborando para

a configuração das bases morais existentes no cotidiano escolar. Nem sempre de

forma positiva, pois ainda percebemos que há aí muitas atitudes moralmente

incorretas, num ambiente que deveria priorizar o respeito e a dignidade dos sujeitos.

Mas transformações vem ocorrendo...

O papel desempenhado pelo aluno deficiente intelectual no grupo escolar

depende também do papel de outros componentes desse grupo e, ao mesmo tempo,

seu papel determina a ação dos outros. Considerando esse grupo com uma unidade,

conceito descrito por Vygotsky (1993, p. 4) como o “produto de análise que, ao

contrário dos elementos, conserva todas as suas propriedades básicas do todo, não

podendo ser dividido sem que as perca”, argumentamos que isso significa que todos

os sujeitos participantes do grupo escolar, quer alunos, quer professores,

funcionários ou gestores, são responsáveis pelo clima moral existente na escola. E

se constituem como agentes de mudança, sem determinar o nível de atuação de

cada um.

Quando nos conscientizamos disso, podemos perceber que se propiciamos a

todos os sujeitos a possibilidade de serem plenos, participando do contexto cada um

da sua forma, e na medida que lhes aprouver, mobilizamos situações de

desenvolvimento para todos. Quando retiramos da constituição do sujeito o molde do

que ele pode vir a ser, colocando suas possibilidades de desenvolvimento no aspecto

social, não limitamos, em quantidade ou qualidade, o que ele pode ser tornar.

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Dependerá, então, da sua própria ação, e da ação do entorno social e da qualidade

de interações estabelecidas ali, a formação dos sujeitos. Inclusive aquela moral.

Na obra Educational Psychology (2011), Vigotski explana suas ideias sobre

como a pedagogia do comportamento moral deveria proceder. Rejeitando toda

concepção de uma moralidade inata, argumenta que do ponto de vista psicológico o

comportamento moral, como todos os demais comportamentos, emerge de uma base

inata e indistinta de reações e evolui sob a influência do contexto de vida dos

sujeitos. Os fundamentos do comportamento moral devem ser buscados no “instintivo

senso de simpatia pela outra pessoa, em instintos sociais, e muito mais além disso.”

(p. 221). Conclui que o comportamento moral é passível, então, de aprendizagem e

desenvolvimento, da educação, através do contexto social, pautado nos demais

princípios de sua teoria.

Na mesma obra, o autor discute também a questão da consciência e do

desenvolvimento moral, importante nesse trabalho, pois uma das razões para que ao

deficiente intelectual seja mais dificultado o status de autonomia moral é a ideia de

que esse não teria a consciência (racionalidade) mais aprimorada, dos seus próprios

atos. Porém, como defendido por Vigotski, não se pode reduzir a questão da

consciência a um determinado fator, no caso, a capacidade intelectual. Obviamente,

a compreensão racional de que algo é errado é relevante para o comportamento

moral, mas não suficiente. O exemplo dado por Vigotski se refere ao consumo do

álcool. Todos sabemos que é nocivo à saúde e também o pode ser à vida social, se

consumido em excesso, mas nem esse conhecimento e nem a consciência racional

são suficientes para que as pessoas parem de beber. Mesmo em excesso. A relação

consciência e moralidade não seria, então, nem direta e nem comporta a

complexidade do comportamento moral. A consciência é constituída na estrutura

biológica, mas também é afetada pelas emoções, pela cultura, pela pressão das

relações sociais, pelas mediações simbólicas, pela biologia... Isso significa dizer que

o comportamento moral pode ser construído a partir da aprendizagem, impulsionando

o desenvolvimento das funções psicológicas superiores e, dessa forma, o próprio

aperfeiçoamento da moralidade. Nessa direção,

a análise da dimensão moral, presente no discurso do indivíduo, nos dá acesso tanto a algo que é expressivo de sua inserção em uma dada cultura coletiva, como também nos habilita a captar a peculiaridade referente a uma modalidade pessoal de reelaboração (significado pessoal) de conteúdos morais a partir dos significados coletivos compartilhados no âmbito da cultura (MARTINS; BRANCO, 2001, p. 179).

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A perspectiva histórico-cultural contribui para uma interpretação ampliada

acerca da construção da moral, entendendo que tal desenvolvimento ocorre no

indivíduo inserido em dada realidade social e afetiva, possibilitando a compreensão

do julgamento e da ação moral em contexto, não somente levando em conta a faixa

etária e a constituição biológica/cognitiva do sujeito,

A questão do pensamento moral na psicologia histórico-cultural será retomada

na última parte do trabalho, embasando a análise dos dados construídos na

pesquisa.

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PARTE II

A EDUCAÇÃO ESPECIAL E A EDUCAÇÃO INCLUSIVA E A PERSPECTIVA DO DESENVOLVIMENTO DA MORALIDADE

A ideia de uma educação inclusiva, hoje amplamente discutida e alvo de

políticas públicas que visam garantir o direito das pessoas com deficiência a uma

educação de qualidade, que ocorra no espaço do ensino regular, passou a existir,

internacionalmente, pela preocupação de que aos deficientes (mas não só a esses)

fossem conferidas as mesmas oportunidades de inserirem-se na vida coletiva de

uma sociedade. A defesa, então, de valores e princípios de equanimidade e justiça

social está nas bases da educação inclusiva. Encontramos na declaração de

Salamanca (DE SALAMANCA, 1994, s/p) tais princípios:

• toda criança tem direito fundamental à educação, e deve ser dada a oportunidade de atingir e manter o nível adequado de aprendizagem, • toda criança possui características, interesses, habilidades e necessidades de aprendizagem que são únicas, • sistemas educacionais deveriam ser designados e programas educacionais deveriam ser implementados no sentido de se levar em conta a vasta diversidade de tais características e necessidades, • aqueles com necessidades educacionais especiais devem ter acesso à escola regular, que deveria acomodá-los dentro de uma Pedagogia centrada na criança, capaz de satisfazer a tais necessidades, • escolas regulares que possuam tal orientação inclusiva constituem os meios mais eficazes de combater atitudes discriminatórias criando-se comunidades acolhedoras, construindo uma sociedade inclusiva e alcançando educação para todos; além disso, tais escolas provêem uma educação efetiva à maioria das crianças e aprimoram a eficiência e, em última instância, o custo da eficácia de todo o sistema educacional.

A forma pela qual a sociedade enxerga a pessoa com deficiência está ligada

ao que essa sociedade espera como atribuições físicas, cognitivas e

comportamentais dos indivíduos, alterando-se, historicamente, conforme essas

atribuições se modificam, em virtude das transformações no modo de vida. Ser

analfabeto, um século atrás, não provocava maiores rejeições sociais, pois ser

letrado não era uma atribuição esperada para todos. Atualmente, a criança que não

sabe ler ou escrever, após ultrapassar a idade em que se espera que essa habilidade

seja alcançada, é tida como enfrentando/”portando” algum “problema de

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aprendizagem”. Muitas vezes sendo isso considerado uma patologia e requerendo

tratamento. Por outro lado, essa condição de não letramento linguístico, numa

sociedade altamente letrada, lhe interpõe diversas dificuldades de inserção social,

laboral, etc.

Fundamentando tais afirmações, acompanhando as concepções de deficiência

intelectual da época pré-cristã sabe-se que havia, em determinadas culturas, uma

interpretação mística acerca das características peculiares de algumas deficiências,

podendo tal interpretação fazer com que os deficientes fossem mais bem

aceitos/tratados, ou opostamente, segregados e mesmo mortos. Com o advento do

Cristianismo, que coloca o homem como ser criado à imagem e semelhança de

Deus, a dubiedade em relação à figura do deficiente se mantém. Se a caridade

mandava aceitar a todos como filhos de Deus, indicando formas mais dignas de tratar

o deficiente, a falta da perfeição física e mental, e mais profundamente, a falta de

controle comportamental, poderiam ser indicativos de “possessão pelo Mal”,

requerendo medidas duras no trato do deficiente. Com o surgimento das sociedades

industriais o modelo de sociedade tornou-se baseado na produtividade do indivíduo,

e aqueles não aptos física, cognitiva ou comportamentalmente, eram excluídos da

“normalidade”, mais uma vez por não terem os atributos valorizados pelas relações

sociais nesse determinado contexto (JANUZZI, 1992; MAZZOTTA, 2011).

Em suma, considerando que a sociedade é regida por um conjunto de

normas, as pessoas desenvolvem expectativas acerca das demais, em especial que

se enquadrem dentro de tais normas, e quando essas expectativas não se

concretizam, os desviantes passam a ser considerados anormais (TELFORD;

SAWREY, 1988). Argumentamos, dessa forma, que a formalização da deficiência se

baseia, prioritariamente, em um modelo de construção social; e são as maneiras de

tratar o deficiente, derivadas desse modelo, a base para os obstáculos que esse

encontra em seu viver.

Pelas diferenças tão desconcertantes de tratamento social do deficiente, e do

deficiente intelectual, e as demais pessoas, consideradas normais, se justifica a

necessidade, por tanto tempo, e ainda hoje, de políticas públicas que garantam o

acesso dos deficientes a direitos básicos. A Constituição Federal (BRASIL, 1988), em

seu Artigo 5° garante o direito à igualdade e no Artigo 6° garante o direito à

educação, ambos sem nenhuma distinção quanto à constituição do sujeito. Também

na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu Artigo 26, há a

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recomendação de garantia à instrução, gratuita e obrigatória nos níveis elementares

e fundamentais, visando o desenvolvimento pleno da personalidade humana (ONU,

1948).

2.1 UM HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO DO DEFICIENTE INTELECTUAL NO BRASIL

Aspectos históricos da educação brasileira revelam a luta, por parte da

população, pelo tratamento equânime do deficiente (mas também de outras

populações excluídas, como afrodescendentes, indígenas, pobres...) e a necessidade

da instituição de políticas públicas que garantam tal equidade. Essa luta ainda

continua, contudo, apesar da excelência das leis brasileiras para a educação

inclusiva, elogiada por vários países. Não se pode afastar o olhar do quanto os

indivíduos que fogem daquela normalidade socialmente estabelecida são

desumanizados para que se justifique um tratamento que negue direitos garantidos a

todos os seres humanos, no que Foucault descreve como “um outro relacionamento

do homem com aquilo que pode haver de mais inumano em sua existência” (2014, p.

56).

E essa exclusão, no Brasil, tem um longo percurso, remontando ao período

colonial e imperial. Em uma época em que a aristocracia rural detinha o comando

político no Brasil Império, em que a educação escolar não era favorecida, pois os

indivíduos eram considerados em relação à sua produtividade, em um ofício

basicamente instrumental, os únicos registros de uma educação para as pessoas

com deficiências intelectuais são duas instituições, uma especializada no

atendimento a deficientes mentais, em Salvador (BA) e uma escola regular que

atendia os alunos com deficiência mental, no Rio de Janeiro (RJ), porém não há

registro algum sobre seus alunos, que

Eram provavelmente os mais lesados: os que se distinguiam, se distanciavam, os que incomodavam, ou pelo aspecto global ou pelo comportamento altamente divergente. Os que não o eram assim a olho nu estariam incorporados às tarefas sociais simples, numa sociedade rural desescolarizada (JANNUZZI, 1992, p. 28. Grifos da autora.).

Segundo Jannuzzi (1992) as primeiras atividades educacionais voltadas à

criança com deficiência mental se davam em ambiente médico-hospitalar: crianças

com estado geral bastante comprometido eram internadas juntamente com adultos

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loucos. Por pensarem que as crianças ali mantidas em situação de segregação total

poderiam se beneficiar de alguma atividade educativa, foram construídas nesses

espaços de internação alas destinadas especialmente às crianças ou pavilhões que

funcionavam como escolas. Passavam, assim, a receber alguma orientação

pedagógica, além do tratamento clínico, mostrando a preocupação, e a crença, de

que a educação, dada ali de forma diferenciada, poderia auxiliar aquelas crianças no

que concerne não só à sistematização de conteúdos escolares, mas também de

aspectos importantes ao convívio social, como atividades de vida diária mais básicas,

de modo a torná-las independentes no ato de vestir-se, alimentar-se e na

manutenção de hábitos de higiene.

Ainda que houvesse a preocupação em atender os alunos com deficiências

mentais (chamados de retardados), essa não era a clientela primeira dos hospitais

psiquiátricos, e com o aumento da demanda de atendimento desse novo grupo,

houve a necessidade de criação de escalas de níveis de comprometimento, em que

somente poderiam ser atendidos naquele espaço os que apresentavam o que era

chamado de “anormalidade pedagógica”, classificadas de acordo com grau de

inteligência. A classificação era a seguinte: supernormais/precoces, normais e

subnormais/tardios. Os subnormais deveriam ser classificados em: anormais

escolares e patológicos/sociais, sendo que somente os primeiros eram alvo dos

trabalhos educacionais, juntamente com os precoces, usando-se, como critério de

corte, a comparação com crianças normais da mesma idade. A citação abaixo, que

explicita tais critérios, pode ser, infelizmente, considerada ainda válida na escola

atual:

O comportamento é corolário do caráter do escolar, segundo a variedade intelectual verificada e nem sempre traduz o aproveitamento, pois em regra são os apáticos ou indiferentes os mais quietos e, como tais, julgados de excelente comportamento, quando, no entanto, seu desenvolvimento intelectual ou aproveitamento é inferior aos alunos irrequietos, cujas notas médias são mais baixas. O médico deve, portanto, chamar a atenção do professor para este particular, quando tiver que classificar o aluno do ponto de vista pedagógico (MELLO, 1917, apud JANNUZZI, 1992, p. 37).

Apesar do atendimento dispensado às crianças com deficiência mental, as

instituições para a educação dos mesmos fora do ambiente hospitalar foram

organizadas somente na segunda década do século XX, num modelo de organização

de serviços para o atendimento dessas crianças. Nesse novo sistema de educação

especial, destaca-se o Instituto Pestalozzi (no RS, MG e SP), que destinava-se ao

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amparo das crianças com deficiência em diversos regimes de funcionamento, que

iam desde o internato ao atendimento ambulatorial. Em São Paulo houve a fundação

de uma escola para atendimento de alunos excepcionais com possibilidade de

aprendizado, que funcionava com duas salas e oficina pedagógica, e os professores

tinham sua formação complementada na própria instituição, para atender os alunos

em suas especifidades (MAZZOTTA, 2011). Este sistema de serviços se firma com a

criação das APAEs, primeiro no Rio de Janeiro, depois em São Paulo, em que

funcionavam clínicas para atendimento em diversas áreas, como Psicologia, Terapia

Ocupacional, Oficinas Terapêuticas e Pedagógicas.

Nesse intervalo temporal era comum o uso do termo “ensino emendativo”, ou

“ortopédico”, dando a entender que o trabalho era o de diminuir as falhas, deixando o

aluno deficiente em um nível mais próximo dos normais (JANNUZZI, 2012). Esta é

uma visão de educação especial que define o aluno por sua deficiência, em um

trabalho pouco pautado pela educação escolar, e sim no treino de habilidades para

inserção social. Daí o trabalho com oficinas e habilidades acadêmicas mais básicas,

tais como uma leitura e escrita rudimentares e contas simples, a fim de garantir uma

formação para o trabalho. A tônica do desenvolvimento moral se mantinha, contudo,

na regulação dos comportamentos e formas de ser, pautados por modelos de

normalidade, que os deficientes deveriam ter como base do “agir corretamente”.

A primeira iniciativa oficial para o atendimento educacional das crianças com

deficiência mental surgiu por força do decreto n. 48.961 de 22 de setembro de 1960,

em que foi instituída a Campanha Nacional de Educação e Reabilitação de

Deficientes Mentais (CADEME), com o intuito de cooperar técnica e financeiramente

com as entidades criadas para o atendimento dessas crianças. Atuava-se na criação

de convênios para a formação de professores e equipe técnica para trabalharem

nessas entidades, criação de locais de atendimento, como consultórios, classes

especiais, atendimento domiciliar, entre outras ações indiretas (MAZZOTTA, 2011),

porém ainda não havia uma política pública de acesso universal à educação, e sim

políticas especiais, num modelo de institucionalização, de uma educação que ainda

não ocorria nas escolas.

Na primeira LDB (Lei n. 4.024/61), a educação do deficiente era tratada

separadamente da Educação de 1° Grau, legalizando assim o aspecto peculiar e

segregado da educação especial, o que ocorreu também na LDB de 1971. É possível

perceber que, nesse contexto, o espaço dedicado ao aluno com deficiência na escola

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condiz com a concepção de deficiência corrente na época. As pessoas com

deficiência eram chamadas de excepcionais ou retardadas, o que coloca a deficiência

como uma falha, e esses termos acabavam por tornar a deficiência o único atributo

definidor dessas pessoas, que continuavam sendo classificadas em relação às suas

dificuldades e em comparação com pessoas classificadas como normais.

A definição sobre quem seria o deficiente acompanhava aquela da Associação

Americana de Deficiência Mental, e condicionava o diagnóstico a um baixo

funcionamento intelectual, desde que esse déficit tivesse se originado no período de

desenvolvimento e com prejuízo social. Prevalece, nessa concepção, “a visão da

própria deficiência como um problema individual/familiar – de não-adaptação/não-

adequação do deficiente à sociedade e de seu atendimento como filantrópico-

caritativo” (KASSAR, 2000, p. 43). De forma que, incapacitadas por uma condição

orgânica, as pessoas com deficiência não conseguiriam se beneficiar da educação

nas escolas comuns, tendo que frequentar espaços mais terapêuticos que

educacionais.

Já na década de 1980 houve a criação de um plano para a redefinição da

educação especial no Brasil, com a proposta de solução de problemas relativos à

caracterização da demanda da educação especial, falta de atendimento aos

deficientes considerados mais graves e programas de ação para atendimento dos

adultos com deficiência. A declaração oficial é a de que se buscava uma

universalização do ensino, seguindo os princípios de participação de todos os

membros da sociedade, num esforço no sentido de integrar o indivíduo portador de

deficiência à sociedade, incentivar iniciativas locais, possibilitando uma vida tão

normal quanto possível aos deficientes. Tal proposta teria as seguintes linhas de

ação, dentre outras:

- Lutar pela integração efetiva do ensino especial no quadro do sistema geral de educação [...] - Expandir ao máximo possível a oferta de educação especial [...] - Assegurar a prevenção de deficiências, em todos os seus aspectos [...] - Lutar pela possibilidade de acesso da pessoa portadora de deficiência aos diferentes espaços da comunidade [...] - Apoiar o ensino regular [...] - Promover a valorização dos recursos humanos que atuam em educação especial [...] - Desenvolver programas voltados para o preparo profissional das pessoas portadoras de características especiais e sua integração na força de trabalho [...] (MEC/CENESP, 1995 apud MAZZOTTA,2011, p. 112).

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O que se percebe nessas linhas de ação é que ainda não se lida, aqui, com

garantia de direitos do deficiente como pessoa, cidadão. Há o apoio, a luta, a

promoção da valorização dos profissionais, mas não se trata, ainda, de assegurar um

espaço educacional e social para que a pessoa deficiente participe mais

incisivamente da vida social. A concepção que se mantém é aquela de colocá-las à

margem, porém de forma mais suavizada. Afinal, a ideia de compreensão da

deficiência permanece aquela de falta, de déficit. Para mudar a forma de conceber a

deficiência é necessário um outro paradigma, que possibilite perceber a pessoa com

deficiência sob outras lentes.

2.2 POR UMA ABORDAGEM SOCIOCULTURAL DA DEFICIÊNCIA

À luz da psicologia histórico-cultural, ontologicamente o desenvolvimento da

criança com deficiência não difere do desenvolvimento da criança não deficiente. O

que se diferencia nesse processo são aspectos qualitativos em relação à ontogênese

do indivíduo com deficiência, de forma que não há um desenvolvimento menor ou

insuficiente, mas um desenvolvimento que se processa de outras formas (BEZERRA,

2010; FREITAS, 1998). Nesse sentido, considerando os indivíduos e suas relações,

bem como as aprendizagens constantes que ocorrem nesse sistema de interações,

pode-se pensar em um movimento constante de adaptações e aprendizagens,

individuais e coletivas, favorecendo os ajustes sociais que permitam o

desenvolvimento. O que significa que na falta de espaços de interação diversificados,

e de restrição às bases culturais de uma comunidade ou grupo social, o

desenvolvimento será prejudicado.

Vigotski (2011) aponta para um ponto essencial nas concepções que temos da

deficiência e do deficiente como indivíduos “deficitários”. Argumenta que a cultura

humana é toda criada e fundada em atenção aos indivíduos normais, que apesar das

diferenças individuais se encontram dentro de um certo padrão de desenvolvimento

(assim, mais regular). E, acrescentamos, dentro dessa normalidade, a cultura ainda é

mais direcionada (serve mais) àqueles grupos que exercem mais poder e influência

social. É desse princípio, que segundo o autor, emerge “aquela ilusão de

convergência, de passagem natural das formas naturais às culturais” (2011, p. 867).

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Em nível individual, Canguilhem (2002) relaciona a norma vital à plasticidade,

ao aspecto dinâmico da capacidade do organismo se adaptar sempre que houver

uma exigência do meio. Por este ponto de vista, a deficiência já não pode ser a

característica definidora do indivíduo, pois ainda que este não tenha atingido o

desenvolvimento cognitivo considerado normal, o fato de estar em constante

desenvolvimento e adaptação não nega essa possibilidade, e nem garante que os

indivíduos não deficientes sejam absolutamente livres de qualquer atributo que os

torne “anormais”, ainda que em menor escala.

Essa relação entre o “normal” e o “anormal” é repleta de significados sociais

que dão um peso maior ou menor à deficiência, causando a impressão de que todas

as pessoas deficientes são iguais e que esse grupo é muito diferente e inferior ao

grupo dos não deficientes (OMOTE, 1996). Para esse autor: “As pessoas deficientes,

mesmo que sejam portadoras de alguma incapacidade objetivamente definida e

constatável, não constituem exceções à normalidade, mas fazem parte integrante e

indissociável da sociedade” (OMOTE, 1994, p. 69).

A característica orgânica do indivíduo, apesar de gerar a deficiência, não limita

por si só sua funcionalidade. Apesar de ser um sinal social de desvantagem, os

conceitos de normal e anormal, e todas as suas consequências, só fazem sentido na

relação entre os componentes dos grupos sociais. Em cada um desses grupos, que

Omote (1996) chama de audiências, as características próprias do indivíduo têm um

peso diferente: “As relações interpessoais e sociais entre o deficiente e suas

audiências constituem elementos importantes para a construção e legitimação da

deficiência sobreposta à pessoa identificada como deficiente” (OMOTE, 1996, p.

131). Dessa forma, trata-se a deficiência como uma lacuna entre a pessoa e o

ambiente e o aumento da capacidade dos deficientes em relação à demanda

diminuiria essa lacuna. Porém, consideramos que mesmo nesse sentido o deficiente

estaria em posição de “inferioridade”, pois por mais que prove que é capaz, como os

parâmetros estabelecidos são aqueles da “normalidade”, ele nunca os alcançará. E

por que deveria fazê-lo? Não se trata de perseguir um ideal de normalidade, mas de

enriquecer e discutir a normalidade pelo viés das formas de ver o mundo e de ser dos

deficientes.

A função da escola, nessa perspectiva, é a de garantir um espaço de

interações produtivas, de forma que todos os alunos, inclusive aqueles com

deficiências, possam ter modelos diversos de atitudes sociais e um espaço de

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aprendizagem em que sejam valorizados seus conhecimentos, suas possibilidades e

suas limitações.

Retornando ao pensamento vigotskiano, em especial em seus estudos sobre a

defectologia, encontramos o claro posicionamento de oposição à concepção da

deficiência como falha, e do deficiente como faltoso:

O olhar tradicional partia da ideia de que o defeito significa menos, falha, deficiência, limita e estreita o desenvolvimento da criança, o qual era caracterizado, antes de mais nada, pelo ângulo da perda dessa ou daquela função. [,,,] o novo ponto de vista prescreve que se considere não apenas as características negativas da criança, não só suas faltas, mas também um retrato positivo de sua personalidade, o qual apresenta, antes de mais nada, um quadro de complexos caminhos indiretos de desenvolvimento (VIGOTSKI, 2011, p.869).

É por meio do envolvimento social e da mediação cultural que se abririam,

então, caminhos indiretos para o desenvolvimento das funções mentais superiores

nas deficiências. É sobre as bases do pensamento da teoria histórico-cultural,

principalmente como colocado por Vigotski, já no início do século XX, que se ergueu

o modelo social de deficiência. Esse modelo se contrapõe àquele médico, pautado na

falha e na correção dos déficits, e que ignora a força das estruturas sociais para a

dominação e a marginalização daqueles considerados “fora do normal”. No entender

do modelo social é a falta de sensibilidade atitudinal, de respeito à diversidade e de

disposição para superar situações de conflito sociais (que implicam em cessão de

espaços de poder), que acarretam os problemas e obstáculos que os deficientes

encontram para o seu viver em sociedade (BAMPI, GUILHEM, ALVES, 2010).

A educação especial, que dá conta da educação do deficiente, pauta sua

conduta na premissa de corrigir as falhas causadas pela deficiência. Atualmente ela

funciona de forma paralela à educação regular, na forma de serviços específicos e,

especificamente no caso desse trabalho, nos moldes de um Atendimento

Educacional Especializado (AEE). Em contrapartida, a educação inclusiva enquadra-

se no contexto do modelo social da deficiência. Pressupõe um espaço educacional

onde não haja nenhum tipo de discriminação, seja ela das deficiências, de cultura ou

gênero, onde todos os alunos têm o mesmo direito de acesso aos saberes em sua

complexidade, fazendo parte desse espaço com pares da mesma faixa etária.

Tendo como princípio um sistema de educação em que a educação especial e

o ensino regular fossem unificados, e visando uma educação que abrangesse todos

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os alunos em idade escolar, organismos como UNICEF6 e UNESCO7 promoveram

ações e reuniões internacionais a fim de organizar linhas de ação acerca da

educação inclusiva. Essas geraram documentos importantes à causa da inclusão,

entre eles a Conferência Mundial de Educação para Todos, realizada em 1990, em

Jomtiem, na Tailândia, que trata da educação do aluno com deficiência no Artigo 3°,

parágrafo 5°:

As necessidades básicas de aprendizagem das pessoas portadoras de deficiências requerem atenção especial. É preciso tomar medidas que garantam a igualdade de acesso à educação aos portadores de todo e qualquer tipo de deficiência, como parte integrante do sistema educativo (UNESCO, 1990).

Na Conferência Mundial sobre “Necessidades Educativas Especiais”, realizada

em 1994, em Salamanca, na Espanha, houve um aprofundamento da temática da

educação inclusiva, e as discussões sobre a educação inclusiva foram mais

decisivamente impulsionadas.

O documento originado da conferência realizada em Salamanca propõe que as

escolas devem atender todas as crianças, independentemente de deficiências,

origem, classe social ou etnia (DE SALAMANCA, 1994). A educação inclusiva trata,

portanto, das situações que levam à exclusão social e educacional de qualquer aluno,

referindo-se não somente aos alunos portadores de alguma deficiência, como mais

comumente se pensa.

Segundo Sassaki (2005), na prática, quando aplicados corretamente os

princípio da educação inclusiva, ampliam-se as formas de aprendizagem de todos os

alunos, uma vez que novas metodologias e intervenções diferenciadas e

individualizadas, com todos os alunos, se fazem necessárias. São incorporados

conceitos de autonomia, independência e empoderamento nas relações entre todas

as pessoas que compõe a comunidade escolar e, ainda

Práticas baseadas na valorização da diversidade humana, no respeito pelas diferenças individuais, no desejo de acolher todas as pessoas, na convivência harmoniosa, na participação ativa e central das famílias e da comunidade local em todas as etapas do processo de aprendizagem, e, finalmente, na crença de que qualquer pessoa, por mais limitada que seja em sua funcionalidade acadêmica, social ou orgânica, tem uma contribuição significativa a dar a si mesma, às demais pessoas e à sociedade como um todo (SASSAKI, 2005, p. 23).

6 Fundo das Nações Unidas Para a Infância.

7 Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura.

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Também Stainback e Stainback (1999, p. 22) referem benefícios da educação

inclusiva à toda comunidade escolar:

Quando existem programas adequados, a inclusão funciona para todos os alunos com e sem deficiências, em termos de atitudes positivas, mutuamente desenvolvidas, de ganhos nas habilidades acadêmicas e sociais e da preparação para a vida na comunidade.

O ganho nas habilidades sociais, por estarem envolvidos na questão da

moralidade, são tão importantes quanto as habilidades acadêmicas, uma vez que as

diretrizes para uma educação inclusiva preconizam a interação social e o

compartilhamento da cultura de uma coletividade, incluindo o acesso aos saberes

científicos, além de conscientizar a sociedade da questão da igualdade de direitos e

do quão positiva é a experiência do convívio com a diversidade.

A Lei n. 9.394 de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) traz

uma definição de educação que extrapola o espaço escolar:

Art. 1º. A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais (BRASIL, 1996).

Reconhece-se aqui a importância do aspecto social da aprendizagem e pode-

se ressaltar o fato de ela não acontecer somente dentro do espaço escolar. O

contexto sociocultural é de fundamental importância para o desenvolvimento do aluno

com deficiência, oferecendo subsídios para compensar dificuldades e impondo limites

a serem transpostos, fazendo com que crie formas de adaptação e entrosamento

social (GAI; NAUJORKS, 2006)

No que diz respeito à educação especial, a LDB de 1996, na redação alterada

pela Lei n. 12.796/13, garante:

Artigo 4°, inciso III: Atendimento educacional especializado gratuito aos educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, transversal a todos os níveis, etapas e modalidades, preferencialmente na rede regular de ensino. Artigo 58: Entende-se por educação especial, para os efeitos desta Lei, a modalidade de educação escolar oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação. Artigo 59, Parágrafo Único: O poder público adotará, como alternativa preferencial, a ampliação do atendimento aos educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação na própria rede pública regular de ensino, independentemente do apoio às instituições previstas neste artigo (BRASIL, 1996).

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No texto original da Lei já se encontra a palavra “preferencialmente” quando se

refere ao local de educação do aluno com deficiência, o que dá margem à

interpretação de que é objeto de escolha, e não condição prioritária, a matrícula

desse aluno.

O Brasil é signatário da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com

Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU/2006), que teve o texto

ratificado como emenda constitucional (Decreto n. 6.949/2009) e coloca, com o

propósito de garantir às pessoas com deficiências, equitativamente, o gozo de todos

os direitos humanos universais, que:

Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas (BRASIL, 2009).

Em 2011, com a instituição do decreto 7.611/11, a educação especial passa a

funcionar no esquema do Atendimento Educacional Especializado (AEE), devendo

este ser oferecido de forma transversal e ocorrer em todos os níveis de ensino.

Nesse sistema, os alunos frequentam o ambiente regular de ensino, e em horários

específicos, de acordo com suas necessidades individuais, realiza atividades

específicas, com a finalidade de diminuir o lapso entre os conhecimentos

sistematizados pelos alunos e aqueles exigidos pela série cursada, utilizando, para

tanto, recursos adaptados de forma a garantir o desenvolvimento global do aluno.

Apesar de o acesso à educação escolar ser garantido pela lei, o que ocorre,

em alguns órgãos oficiais de educação, a exemplo da unidade de ensino em que foi

realizada esta pesquisa, é atrelar o atendimento ao fornecimento de um laudo

confirmando e especificando a deficiência, o que não é encontrado de maneira

expressa em nenhum dos textos legais estaduais e federais que tratam da educação

inclusiva ou do AEE, como aqui já referido.

O Plano Nacional de Educação (PNE)8 que determina as diretrizes e metas

para a educação dos próximos dez anos, com vigência a partir de 26/06/2014, tem

como uma das metas, a de número 4, a universalização do ensino, visando a

educação especial. A estratégia referente ao acesso ao AEE, serviços especializados

ou complementares se dará “conforme a necessidade identificada por meio de

8 Dados disponíveis no site: http://www.observatoriodopne.org.br/metas-pne/4-educacao-especial-

inclusiva

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avaliação, ouvidos a família e o aluno”. Ou seja, ainda que requeira uma avaliação,

essa diz respeito principalmente ao conhecimento das especificidades das

necessidades de aprendizagem daquele aluno. Mesmo na estratégia referente à

articulação pedagógica não se levanta a necessidade de comprovação documental

da deficiência, ficando proibida a matrícula fora do ensino regular em qualquer tipo de

instituição de educação exclusiva/segregada. Contudo, a questão de acesso a

serviços de reabilitação e de AEE ainda se configura como um problema, frente à

disponibilidade das políticas públicas de destinar recursos para essa área, e à

insuficiente formação de profissionais aptos para agir nesse campo.

Percebe-se que ainda que o acesso e a permanência no ensino regular sejam

garantidos em dispositivos legais, não há a garantia de atendimento adequado à

proposição de, pela cultura e pela socialização, estimular o desenvolvimento de

caminhos alternativos para o aprimoramento das funções psicológica superiores, se

formos acompanhar o pensamento vigotskiano. A necessidade mesma do laudo para

que o aluno com deficiência usufrua de serviços especializados atravanca o processo

de inclusão. Mas está longe de ser o único. Dados do censo escolar de 2010

apontam que menos de 20% das escolas brasileiras reúne condições de

acessibilidade arquitetônica ou a recursos didático-metodológicos apropriados

(BRASIL, 2010). Em muitos casos o aluno permanece à margem do que ocorre na

escola, numa educação e num ensino onde ele não é plenamente aceito ou partícipe.

Sabe-se da sua condição, reconhece-se o direito de frequentar o espaço educacional

da escola e os serviços complementares e especializados a ele destinados. Fica à

margem por ter sua deficiência conhecida e continua à margem por ter que

comprová-la legalmente para ter acesso a um direito já conquistado.

Essa dificuldade e o excesso de burocracia são verificados em todos os

setores da sociedade, começando pelo serviço que deveria fornecer o laudo exigido

para inscrição do aluno nos serviços de apoio. No setor da saúde a pessoa com

deficiência lida com uma quantidade de profissionais insuficiente para atender à

demanda, ou atender à solicitação de exames que, por sua vez, também demoram a

ser realizados. Os serviços de reabilitação, e os de educação complementar e/ou

suplementar, quando necessários, também contam com listas de espera e o quadro

de exclusão, que deveria ter ficado nas décadas passadas, volta a ser vivenciado.

Não se trata simplesmente de colocar os alunos com deficiência nas classes

regulares e esperar que eles aprendam no mesmo ritmo e da mesma forma que os

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outros alunos. Cada um aprende à sua própria maneira, e as pessoas com

deficiência têm necessidades específicas em relação à aprendizagem e têm direto de

tê-las atendidas. Não se trata de oferecer a mesma situação de aprendizagem a

todos os alunos sem distinção, é preciso que cada um tenha suas especificidades

atendidas.

Uma vez frequentando o AEE, o aluno não encontra nesse espaço um

entrosamento, na maioria das vezes, com a educação dada em sala de aula. O

professor do AEE identifica as necessidades específicas doas alunos, planeja a

intervenção e faz o levantamento das técnicas e recursos necessários para o

processo de intervenção. Mas sem praticamente discussão com o professor da

classe regular, com isso

[...] torna-se explícita a responsabilidade do professor especializado que atua no AEE em oferecer aos alunos acompanhados neste serviço aquilo que é específico às suas necessidades educacionais, auxiliando-os na superação das limitações que dificultam ou os impedem de interagir com o meio, relacionar-se com o grupo classe, participar das atividades, ou melhor, de acessar os espaços, os conteúdos, os conhecimentos que são imprescindíveis ao processo de escolarização. Apesar de as atividades desenvolvidas no AEE diferenciarem-se daquelas realizadas na sala de aula comum, devem constituir o alicerce sobre o qual a aprendizagem do aluno se apoia, ou seja, os programas de enriquecimento curricular, o ensino de linguagens e sistemas específicos de comunicação e sinalização, bem como todos os recursos utilizados devem estar atreladas à proposta pedagógica do ensino comum (GIROTO, POKER, OMOTE, 2012, p. 12).

Entende-se, então, que o processo de inclusão está em um constante

(des)equilíbrio entre os conteúdos curriculares, em que o aluno está em contato com

os colegas e em um espaço onde ocorrem as aprendizagens acadêmicas e sociais,

em que a convivência e suas regras possibilitam a todos a elaboração de maneiras

para lidar com as demandas sociais. E com o aprendizado da moralidade. Para

Vigotski o ato educativo é entendido num sentido antropológico:

[...] transmissão/apropriação da cultura nas relações sociais das novas gerações com suas predecessoras. Porque para Vigotski, o educador é o “organizador do meio social educativo” (1926/1991, p. 159) e “educar significa organizar a vida (VIGOTSKI, 1924/2003, p. 220), na escola e além dela (DELARI JUNIOR, 2013, p. 46).

A questão da educação do deficiente intelectual e do desenvolvimento da

autonomia moral continuará a ser discutida na próxima parte desse trabalho,

juntamente com os dados constituídos no decorrer da pesquisa, cuja caracterização

está exposta adiante.

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PARTE III

DO DESENVOLVIMENTO DA INVESTIGAÇÃO

3.1. CARACTERIZAÇÃO DO CONTEXTO DA PESQUISA

A escola em que foi realizada a pesquisa foi fundada em 04/02/1999, e fica

localizada em um bairro de classe média, próximo ao centro da cidade. Conta com

15 salas de aula, sala para a pedagoga, sala para a diretora, sala dos professores,

cozinha, biblioteca, refeitório em pátio coberto, secretaria, sala de AEE, arquitetura

adequada para o acesso de pessoas com deficiência física e/ou mobilidade

reduzida, banheiro situado dentro do prédio. A escola contava, em 2015, com 48

professores e 967 alunos. A unidade atende do 1° ao 9° ano do Ensino

Fundamental, em dois períodos, matutino e vespertino, sendo que de manhã são

atendidos os alunos dos 5°s anos da primeira etapa do Ensino Fundamental e os

alunos da 2° etapa, e à tarde os alunos dos 1°s aos 4°s anos. O AEE funciona nos

dois períodos, com atendimentos individuais conforme cronograma elaborado pela

professora responsável pelo serviço e pela gestão da escola, conforme a

disponibilidade da profissional e dos alunos, em horários fixos.

Em um jornal da cidade, de circulação regional, há uma reportagem datada do

início do segundo semestre de 2014, que trata da boa nota do IDEB obtida por essa

escola, divulgada naquele ano (7,5). No texto, a gestão da escola e os pais referem

que a boa nota obtida se dá pela parceria entre família e escola. Tanto há os relatos

de familiares atestando o bom trabalho da escola, quanto relato da gestão sobre a

participação das famílias nas decisões acerca da educação dos alunos, bem como o

investimento de seus profissionais na própria formação, o que contribui para a

melhoria do trabalho pedagógico na escola.

Antes de dar início aos encontros com os alunos foi solicitada à gestão

escolar autorização para a realização da pesquisa. Em várias reuniões da

pesquisadora com a pedagoga/coordenadora pedagógica do Ensino Fundamental I,

com outra profissional que exercia a mesma função no Ensino Fundamental II e com

a diretora da escola, a pesquisa foi explicada em termos dos seus procedimentos,

registros, sujeitos e instrumentos a serem realizados. Depois das dúvidas sanadas

foi apresentado o Termo de Consentimento Esclarecido e Informado à escola, sendo

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que foi dada a garantia de retorno acerca dos resultados da pesquisa à comunidade

acadêmica e aos pais, quando esta fosse finalizada.

Com a autorização da direção da instituição explicamos a pesquisa à

professora do AEE, que indicou possíveis alunos como sujeitos da pesquisa, dentro

dos requerimentos expostos pela pesquisadora (estar no Ensino Fundamental II, ser

deficiente intelectual ou portador de condição afim, frequentar o AEE, ter condições

de comunicação/oralidade). Após esse levantamento inicial dos possíveis sujeitos a

escola chamou os respectivos pais para que a dinâmica da pesquisa lhes fosse

explicada. Aos pais foi entregue e explicado, pela pesquisadora, o termo de

consentimento esclarecido e informado, específico para cada aluno. A ideia era a de

conversar com todos os pais conjuntamente, mas pelas necessidades de trabalho e

outras, de organização das famílias, isso não foi possível, atendendo-se aos pais

individualmente, em duplas ou em trios. Todos os pais assinaram os respectivos

termos, sem restrições. O modelo do termo empregado encontra-se aposto ao final

do trabalho. Após a anuência dos pais a pesquisadora e a professora do AEE

conversaram, conjuntamente, com os possíveis sujeitos, divididos em 2 grupos,

explicando-lhes a pesquisa, seus objetivos, o que e como seria feito, e convidando-

os a participar. Todos os alunos concordaram em participar.

Destaca-se que foram fundamentais, ao longo de todo o processo de

investigação, os encontros com a professora do AEE, que, no caso dessa escola,

não é uma profissional itinerante, mas atua cotidianamente na escola, sendo

formada em Educação Especial, em nível de graduação, com mais que uma

especialização em áreas afins, e com mais de 20 anos de atuação profissional. E

que abraçou a investigação com entusiasmo e parceria.

3.2 CARACTERIZAÇÃO DOS SUJEITOS DA PESQUISA

Os participantes da pesquisa foram selecionados, como já dito, seguindo os

seguintes critérios: que estivessem cursando o Ensino Fundamental II, que

frequentassem o Atendimento Educacional Especializado, possuindo, portanto,

algum tipo de avaliação ou de laudo médico que afirmava a condição de deficiência,

e apresentassem bom nível de oralidade. Foram selecionados, com a participação

da professora do AEE, 10 sujeitos, a saber:

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Tabela 1: Caracterização dos sujeitos

Idade Sexo Motivo da elegibilidade ao AEE Série

S1 16 M Transtorno do espectro autista; epilepsia (CID F.

84.0 e G.40)

8° ano

S2 12 M Nível intelectual abaixo do esperado para a faixa

etária (relatório da APAE/ 2013)

6° ano

S3 11 M Distúrbio da fala (CID F70.0), atraso cognitivo

(F06.7)

5° ano

S4 14 F Síndrome de Down (CID Q90) 7° ano

S5 17 F Transtorno de memória operacional verbal (CID

R48.0, R48.2, R41.3)

9° ano

S6 18 M Deficiência mental leve (atraso intelectual e

emocional ligado à diminuição da massa

encefálica), conforme diagnóstico do seu

neurologista.

9° ano

S7 14 M Transtorno de leitura e escrita, transtorno de

atenção. Em avaliação anterior (feita no ano de

2013, por uma psicopedagoga, de uma instituição

municipal da cidade onde foi realizada a pesquisa,

especializada na atenção a problemas de

aprendizagem) foi levantada a hipótese de

deficiência mental leve.

7° ano

S8 17 F Síndrome de Down (CID Q90) 9° ano

S9 16 M Atraso intelectual (não há documentação no

prontuário do aluno, apenas as avaliações de

diversas professoras do AEE, a partir do ano de

2006)

9° ano

S10 14 M Perda auditiva (diagnosticada por profissional 9° ano

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especializado como leve à direita e moderada à

esquerda). Encaminhamento anterior por suspeita

de atraso intelectual (avaliado pela professora do

AEE, em 2012).

Fonte: Arquivo pessoal da autora

Desses alunos, somente dois (S2 e S10) frequentam a série ideal para a

idade.

A construção dos dados da pesquisa ocorreu de três formas: a primeira

consistiu em sessões com os alunos, em que eram apresentadas figuras

representando situações de conflito moral, em que a pesquisadora questionava aos

sujeitos sobre o que eles percebiam na figura, o que eles percebiam como certo ou

errado, as razões, onde eles haviam aprendido isso e quem os havia ensinado.

Foram realizadas 18 sessões de aproximadamente 30 minutos cada uma,

preferencialmente com duplas de alunos. Cabe ressaltar que nem todas as sessões

resultaram produtivas, no sentido estrito da enunciação pretendida com as questões

apresentadas. Em alguns encontros os alunos não respondiam aos

questionamentos, ou repetiam a fala do colega. Nos encontros que por alguma

razão aconteceram de forma individual (realização de outras atividades, faltas,

dinâmica escolar, etc), os alunos geralmente solicitavam a presença da/o

estagiária/o, responsável por acompanhá-los na escola, e a interação era

prejudicada, pois acabavam por responder ou se manifestar, influenciando as

respostas dos alunos. A questão do uso de estagiários como forma de efetivar a

educação inclusiva será adiante tratada.

As entrevistas foram gravadas em áudio, conforme descrito no Termo de

Consentimento Informado enviado aos pais dos alunos participantes, que também

foi entregue e assinado pela direção da escola. Em conjunto com os dados orais

dessas entrevistas foi feita a observação do desenrolar das mesmas em termos de

comportamento dos sujeitos, nos atendimentos do AEE. Foram feitas também

observações dos alunos nos momentos do recreio. Observações na sala de aula

não foram realizadas pois, apesar de permitidas pela direção sob a condição da

anuência do professor, os professores não permitiram, alegando que a presença de

alguém estranho na sala poderia prejudicar o andamento da aula. As observações

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feitas no pátio, bem como a análise dos elementos não textuais do discurso gravado,

serão abordados mais adiante.

A segunda forma de coleta de dados se deu pelo contato com os profissionais

da educação que lidavam com esses alunos na escola. Foram aplicados

questionários com 4 questões abertas aos professores, acerca da postura em

relação a situações de conflito e sobre como acreditam que o aluno com deficiência

demonstra conhecer o que é certo e errado. O contato direto entre a pesquisadora

com os professores não foi possível, sendo sempre mediado pela professora de

AEE. Quando a pesquisadora indagou à equipe gestora sobre a possibilidade de

realizar um encontro breve com os professores no único horário em que todos

estariam reunidos no mesmo espaço e ao mesmo tempo, aquele das reuniões

semanais, a equipe gestora da escola ressaltou a dificuldade de dispor de um

momento da reunião pedagógica para tanto, por se tratar de um momento de

transmissão de recados importantes, bem como de outras atividades relevantes para

o cotidiano da escola. Dessa forma, foram entregues 15 questionários impressos,

distribuídos pela professora de AEE, solicitando a devolução num prazo de uma

semana, de forma que conseguíssemos informações de professores de cada um

dos sujeitos da pesquisa. No entanto só devolveram o questionário respondido 3

professores.

Um questionário, no mesmo modelo foi enviado, sob as mesmas condições,

aos estagiários que acompanham os alunos com deficiência na sala de aula. Foram

enviadas 10 cópias – considerando que ao início da pesquisa cada aluno com

deficiência tinha um acompanhante – obtivemos respostas de 5 estagiários, com a

ressalva de que alguns estagiários, estavam a cargo de mais de um aluno naquela

época do ano (final do mês de novembro/2015). Com os estagiários, no entanto, o

contato era mais próximo, pois estavam a todo o momento com os alunos

participantes da pesquisa, sendo que sempre era possível conversar antes e/ou

depois das sessões, ou quando a pesquisadora chegava na escola para as

entrevistas com os alunos. Deve-se ressaltar, ainda, que um dos fatores que

reforçaram a necessidade de coletar dados com os professores e estagiários veio

das afirmativas dos sujeitos da pesquisa de que haviam aprendido determinada

atitude moral “na escola”.

Por último tentou-se contato com os pais. A primeira ideia era a de realizar um

grupo focal, para que discutíssemos os dados construídos no contato com os

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alunos. Realizou-se um contato prévio com alguns pais, durante uma reunião de

pais ocorrida na escola, e após questionamentos sobre uma data e horário

adequados, levando em conta os períodos em que a sala de AEE, espaço

disponibilizado pela escola, estivesse livre, foi enviado um convite com uma

antecedência de 7 dias. Dois pais responderam que não poderiam ir ao encontro por

conta de compromissos de trabalho, e na data marcada para o encontro não houve

a presença de nenhum pai. Dois dias depois optou-se pelo contato telefônico com os

pais para averiguar possibilidade de agendarmos nova data, ainda que com grupos

menores, mas não foi possível entrar em contato com todos os pais e a

disponibilidade deles não coincidia com a disponibilidade do espaço cedido pela

escola, o que não possibilitou o encontro. Como alternativa para obter algum registro

sobre a percepção dos pais acerca da construção da moralidade dos sujeitos, fez-se

o uso de questionários, cuja entrega foi também intermediada pela professora do

AEE, sendo solicitado o mesmo prazo de devolução dos professores e estagiários,

tendo sido enviado na mesma data. Foram devolvidos 5 questionários, dos 10

enviados.

No início do primeiro encontro com cada um dos sujeitos a pesquisadora se

apresentou e explicou novamente o objetivo do encontro. Em todos os encontros foi

pedida autorização para realizar a gravação da conversa aos sujeitos. Nos primeiros

encontros a pesquisadora questionou os sujeitos se já tinham ouvido a própria voz

no gravador, e se queriam fazer um teste, ocasião em que mostrava o

funcionamento do aparelho, sendo que esse era deixado no local onde ficaria

durante todo o encontro.

No primeiro encontro com cada um dos sujeitos houve, a princípio,

estranheza. Alguns alunos entravam na sala acompanhados pelos estagiários

designados para acompanhá-los durante as aulas, e estes perguntavam se

deveriam ficar ou sair da sala. A pesquisadora deixava a decisão a cargo dos

sujeitos, receosa de que a ausência da figura dessa pessoa de confiança dos alunos

pudesse trazer inseguranças aos mesmos. No entanto, essa postura não resultou

frutífera em alguns casos. No primeiro encontro com S4 e S5, a acompanhante de

S4 entrou com ela na sala e, ao passo que S5 mostrou-se falante e bastante

desenvolta, S4, a todo o momento, buscava o olhar da estagiária, como se

esperasse a anuência dela para poder dar suas respostas. Percebendo a hesitação,

a estagiária sugeriu sair da sala e retornar depois, o que resultou em extrema

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agitação em S4, que queria ficar ali, mas na presença da acompanhante. Ao final da

sessão foi combinado, de maneira reservada, com a acompanhante deixar a aluna

sozinha comigo na sala, com o compromisso de que, ao menor sinal de agitação ou

descontentamento, ela seria chamada. O que não foi necessário e, sozinha, na

presença da pesquisadora e de outros colegas na sala, ela expôs suas

considerações de forma mais segura. Assim, ficou combinado entre a pesquisadora

e os sujeitos que os respectivos estagiários não participariam das nossas conversas,

uma vez que o interesse da pesquisa era saber a opinião deles sobre determinados

assuntos.

O planejamento da investigação segue os pressupostos de uma pesquisa

qualitativa participante, adotando-se o viés do interacionismo simbólico proposto por

Blumer e Flick. De acordo com os pressupostos tratados por Blumer (1969, apud

Flick 2009, p. 69):

A primeira premissa é a de que os seres humanos agem em relação às coisas com base no significado que as coisas têm para eles. A segunda premissa é a de que o significado destas coisas origina-se na, ou resulta da, interação social que uma pessoa tem com as demais. A terceira premissa é a de que esses significados são controlados em um processo interpretativo e modificado através desse processo, que é utilizado pela pessoa para lidar com as coisas com as quais se depara.

Nessa abordagem, a pesquisa qualitativa pode ser entendida como o tipo de

pesquisa em que o pesquisador toma parte do contexto da pesquisa enquanto

observa tal contexto, de forma que este contexto é modificado por sua presença.

Como discurso moral “há uma postura mais pragmática, que a vê como extensão

das ferramentas e dos potenciais da pesquisa social para entender o mundo e

produzir conhecimento sobre ele” (FLICK, 2009, p. 22).

No interacionismo simbólico coloca-se em destaque os pontos de vista

subjetivos dos sujeitos, buscando-se compreender determinada realidade pelos

significados que são atribuídos pelos sujeitos às suas vivências. A interpretação dos

dados pode se dar pela análise dos conteúdos expressos pelos sujeitos em suas

narrativas, como foi feito nessa investigação, a partir das colocações dos sujeitos

sobre as situações observadas nas imagens, e das respostas aos questionários e/ou

entrevistas.

O principal interesse do interacionismo simbólico são os processos de

interação e os significados dados pelo sujeito ao seu entorno.

Toma como modelo o indivíduo autônomo, que, além de dominar seu próprio corpo, age voluntariamente. As possibilidades que os agentes têm

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de atuar e construir regras normativas a partir de conhecimentos coletivos são pressupostos centrais para essa corrente (GOSS, 2006, p. 155).

No interacionismo simbólico a ação não é vista como simples reflexo da

resposta às regras impostas, mas

[...] é definida nas relações de forma recíproca e conjuntamente proposta e estabelecida. Assim, as relações sociais são vistas como algo aberto e subordinado ao reconhecimento contínuo por parte dos membros da comunidade, e não como algo estabelecido de uma vez por todas (CARVALHO; BORGES; REGO, 2010, p. 154).

Assim, é por meio da interação que os indivíduos constroem e interpretam a

realidade. Não há, segundo as premissas do interacionismo simbólico, sujeito

determinado e passivo em relação ao seu entorno, e sim constituintes e

determinantes em relação à sociedade e às comunidades de que participam. Dessa

forma, a pesquisa que segue essas premissas não utiliza os dados de forma

automática, de forma que os processos são analisados e interpretados de acordo

com o contexto em que foram observados.

3.3. DA ANÁLISE DOS DADOS

A análise dos dados, de acordo com os pressupostos acima expostos, se deu

pelas seguintes categorias, elaboradas após a construção dos dados, todas,

conjuntamente, envolvendo a construção do funcionamento moral: a. a

autoconsciência quanto ao que é certo ou errado (o sentido individual do julgamento

moral); b. a consciência social (o significado do julgamento moral para além da

esfera individual) e c. a racionalidade prática (como o julgamento moral é – ou não –

empregado nas situações cotidianas).

Por funcionamento moral entende-se aqui, acompanhando os princípios da

teoria histórico-cultural, o discernimento do sujeito quanto ao que é certo ou errado

fazer em determinada situação, o que é substancialmente mediado pela linguagem e

outras ferramentas culturais, no contexto social da vida dos sujeitos (TAPPAN,

1997). Como essas 3 categorias estão vinculadas entre si, e causaria danos à

compreensão dos dados se separadas, serão, assim, tratadas de forma integrada,

procedendo-se à triangulação dos dados, com base nos diversos instrumentos de

coleta de dados empregados.

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Nos primeiros encontros alguns sujeitos associavam, quase que

instantaneamente, ao ouvir o termo “aprender”, aquele “escola”, como se segue no

trecho abaixo (encontro n° 2 do dia 14/04/2015):

Figura 1: No supermercado - Categoria: Prevenção de acidentes

Fonte: Speechmark, 2009

(Antes da pesquisadora mostrar a figura) P: Antes de começar, vou explicar o que nós vamos fazer. S2: Vai demorar? P: Não vai, vai ser rápido. Eu vou mostrar algumas figuras, e vocês vão me contar o que veem, tudo bem? S3: Vamos ter que fazer uma história? Vai ter que escrever? P: Não, vocês vão me contar o que vocês veem na figura, o que pensam que está acontecendo. S2: Entendi. (Após a revelação) P: E então, o que veem na figura? S3: O menino está mexendo nas coisas do mercado. A mãe dele vai ficar brava! P: Você mexe nas coisas do mercado quando vai com a sua mãe? S3: Ah, só quando ela não está olhando, né? S2: Ih, eu mexo! Mas ela fica brava. P: Porque ela fica brava? S2: Porque não pode, ué. P: Alguma vez ela disse a você que não podia? S2: Não, mas ela briga. S3: Minha mãe fala toda hora que não pode. P: E como você sabe que não pode? Onde você aprendeu que não pode? S2: Eu aprendo as coisas na escola. Mas isso eu não aprendi na escola P: E como você sabe que não pode? S2: (...)pensativo Ah... S3: Eu acho que ele sabe porque ela briga. S2: É. Porque ela briga.

Pensar a aprendizagem da moralidade na deficiência como algo que acontece

em decorrência da coação parece plausível pela fala dos sujeitos acima. A não

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explicação das razões do “porque não pode” teria como causa um viés

preferencialmente de controle coercitivo dos comportamentos, na descrença de que

haveria um entendimento dessas razões, por parte do deficiente? Isso limitaria a

possibilidade de constituição da moralidade do sujeito em outros espaços, pois

aquilo “não pode” em determinado contexto, mas não em outros, ou, pelo contrário,

poderia ser uma inibição para comportamentos de exploração e experiências em

outros espaços – “tudo não pode”.

Estudos de Silva e Dessen (2014), sobre as relações familiares envolvendo

crianças deficientes, apontam que a parentalidade dessas crianças se baseia,

prioritariamente, em práticas coercitivas, pautando-se em imposição de regras e

modos de conduta, agressões físicas, castigos e restrições à vida social. Para as

autoras:

Neste estudo, as relações parentais foram fortemente caracterizadas pelas práticas coercitivas. Considerando que tais práticas estão associadas a comportamentos de incompetência social por parte das crianças (BOLSONI-SILVA et al. 2010; NEWMAN et al. 2008), é de se esperar que as crianças se encontrem em situação de risco em decorrência do uso de práticas coercitivas e não pela deficiência propriamente dita. Esta situação de risco é agravada ainda mais pelo fato de que o uso de práticas educativas não coercitivas favorece a promoção da autonomia e da responsabilidade dos filhos (SALVADOR; WEBER, 2008). No presente caso, o predomínio de práticas coercitivas pelos genitores, sobretudo por parte das mães, aliado às dificuldades inerentes ao tipo e à severidade da deficiência da criança, muitas vezes, exige maior esclarecimento, paciência, determinação e treino por parte dos pais, para que possam exercer com maior eficiência a sua parentalidade. (SILVA; DESSEN, 2014, p. 428)

A maneira como se dá a orientação frente às atitudes consideradas erradas

ou inaceitáveis podem influenciar a interpretação que o sujeito faz da situação. Uma

das perguntas do questionário entregue aos pais era referente à atitude tomada

quando o filho faz algo que os pais consideram errado. A mãe de S3 deu a seguinte

resposta:

“Eu peço para parar, e falo que não pode fazer o que está fazendo.” (Mãe de S3)

A intenção da mãe ao tomar tal atitude é a de, segundo ela:

“Só fazer ele parar de fazer coisa errada. Às vezes precisa brigar, tem vezes que não.” (Mãe de S3)

Reforça-se a ideia de que as relações de parentalidade se preocupam em

ensinar o que é certo/errado, mas predominantemente num viés de restrição do

comportamento, antes do que de levar o sujeito à compreensão do contexto da

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situação, o que favoreceria que houvesse a generalização dessa compreensão para

outras situações.

Em nível individual, S3 parece compreender a norma de não mexer nas

prateleiras do supermercado puramente pelo receio de uma possível punição, por

infringir uma regra dada por outrem, numa atitude de autoridade da mãe. O sentido e

o significado do funcionamento moral estão baseados numa relação de heteronomia,

o que acaba influenciando a racionalidade prática de S3: “se ela não está olhando,

eu mexo”. No entanto, em outra sessão, realizada no dia 16/06/2015, sessão de n°

08, observou-se o seguinte:

Figura 2: O menino – Categoria: O que estou sentindo

Fonte: Speechmark, 2009. P: O que está acontecendo nessa foto? S6: O menino está bravo. P: E por que você acha que ele está bravo? S6: Acho que ele brigou com as meninas lá de trás. P: O que será que aconteceu? S3: Ele está bravo porque estão rindo dele. P: Estão rindo dele? Por que você acha isso? S3: Olha essa menina (aponta a garota de blusa branca, na foto). Está apontando e rindo dele. S6: O que ele fez? Você sabe o que ele fez? P: Você acha que ele fez alguma coisa? S6: Ele deve ter feito alguma bobeira. S3: Ou fez alguma coisa errada na classe.

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P: Que bobeira? Será que foi alguma brincadeira? S3: Não. Quer dizer, não sei. Parece que ele está bravo, não é de brincadeira. S6: Ele deve ter feito uma bobeira sem querer, quando alguém faz alguma coisa que não é muito engraçada, mas todo mundo ri. Bobeira assim. P: Entendi. Então por que as meninas estão rindo? S6: Pra zoar ele. P: E vocês acham certo, que tudo bem elas rirem dele? S3: Eu não acho não. S6: Eu acho que também não. P: Por quê? S3: Por que rir assim é feio. Eu acho que é errado. P: E por que é errado? S6: Porque ninguém gosta. Eu não gosto quando riem de mim. P: Por que riem de você? S6: Por que eu faço algumas coisas erradas às vezes, e tem gente que acha que é graça. S3: Riem de mim por causa da minha voz. Eu acho que é errado. Rir. Porque eu não gosto que façam comigo.

Na transcrição acima, encontram-se dois tipos de normatização moral: aquele

socialmente determinado – não rir de um colega de escola –, e o da moralidade

subjetiva – que diz respeito ao bem estar e ao senso de justiça, de não fazer ao

outro o que se sabe, por experiência, que não é agradável – (NUCCI, 2000, p. 75).

Ou seja, o sentido e o significado do funcionamento moral são expressos pelos

sujeitos como construções suas, baseadas em experiências vivenciadas e

socialmente compartilhadas. S3 transfere, inclusive, a questão para sua própria

possibilidade de ação – não quero fazer aos outros o que não gosto que façam

comigo. A identificação da problemática moral encontrada na situação representada

na imagem, de gozação de uma criança por outras, pelos sujeitos da pesquisa, foi

também apontada em estudos realizados por Leffert, Siperstein e Widaman (2010).

Ambos dependem de habilidades sociais importantes, como aquelas de

autoconhecimento e daquelas de empatia. Saber colocar-se e comportar-se da

maneira adequada, o que Elijah (2014) chama de Habilidade Psicossocial, tem

grande influência sobre o clima da sala de aula. De acordo com a autora

Muitas das interações psicossociais que ocorrem em uma sala de aula são caracterizadas por comportamentos positivos ou pró-sociais (tais como ouvir os outros e trabalhar cooperativamente ou por comportamentos negativos (tais como o de provocar os outros) (ELIJAH, 2014, p. 84).

Ainda segundo Elijah (2014), os professores, em suas interações com os

alunos, influenciam a qualidade da aprendizagem e o processo do desenvolvimento

desses alunos. Os professores que retornaram o questionário enviado pela

pesquisadora relatam dificuldades ao lidar com os comportamentos do aluno com

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deficiência, não somente aquela intelectual, e atribuem tal dificuldade à falta de

formação específica que os habilitasse a lidar com os alunos deficientes. Novamente

a deficiência surge aqui como atributo definidor do sujeito, uma vez que a ela é

atribuída a dificuldade dos professores em lidar com os alunos.

Como explicitado por um dos professores, respondente do questionário

aplicado, frente à pergunta se haveria alguma diferença na postura adotada ao

corrigir disciplinarmente os alunos com deficiência, em relação ao aluno sem

deficiência:

“Sentimento de impotência, pois não tenho preparo algum, mas tento dentro de minhas possibilidades pois não possuo formação específica” (Professora 1)

Contudo, o comportamento dos alunos deficientes intelectuais investigados,

como observado no pátio, pouco se diferiam daqueles dos demais adolescentes. É

como se o aluno deficiente, para os professores, ficasse reduzido à categoria

“deficiente”, sujeito estranho e com demandas para as quais eu “não estou

preparado”, ofuscando o fato de que esse aluno é, principalmente, um adolescente.

Diferentemente do que preconizam os documentos sobre a educação

inclusiva, tratados na segunda parte desse trabalho, que preveem um espaço

educacional que atenda todos os alunos sem distinção, como uma modalidade de

educação que dê conta de alunos com todos os tipos de necessidades educacionais

especiais, não só aquelas que afetam a funcionalidade biológica do indivíduo (ou

seja, diferente da educação especial, ela não serve somente aos deficientes), a fala

dos professores mostra que, por não terem uma formação específica, não se sentem

capazes de lidar com o aluno deficiente em demandas comuns a todos os tipos de

aluno. A falta da “normalidade” e a dificuldade do professor em lidar com o aluno

com deficiência faz desse aluno alvo de uma atenção diferenciada, que nem sempre

é positiva. Em vez de investir nesse aluno, justifica-se na deficiência e na falta de

preparo do professor a marginalização desse aluno. Ao questionamento sobre como

pensa que os alunos demostram o conhecimento do que é certo e errado dentro da

sala de aula, tivemos a seguinte resposta:

“Em muitos casos eles sabem o certo e o errado em algumas situações. Pois no caso do S3, quando ocorre situações de certo e errado ele por muitas vezes me surpreende com respostas dando sua posição ou opinião sobre algo ocorrido na sala de aula ou fora dela. Mas em geral penso que nem sempre eles conseguem entender tudo com clareza, precisando assim que se repita várias vezes ou se exemplifiquem atitudes e comportamentos para fazê-los entender o certo e errado.” (Professora 3)

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Há a negação da compreensão do aluno quando a professora fala que

precisa repetir várias vezes até que o aluno compreenda o que é ou não correto, e

essa negação se comprova quando ela se surpreende com as respostas e com o

posicionamento do aluno, que não são esperados de um deficiente.

Observa-se que essa percepção do professor é também uma forma de

funcionamento moral, baseado numa dubiedade de concepções que parece estar

por trás de toda a discussão sobre a educação inclusiva: afinal, é moralmente certo

ou errado o aluno deficiente estar na escola regular? Nessa indefinição, como é

possível, de maneira intencional, pensando-se na zona de desenvolvimento

proximal, o professor estimular o desenvolvimento moral do aluno deficiente?

Na unidade escolar em que foi feita a pesquisa cada aluno com deficiência,

desde que tenha um laudo, ou uma avaliação psicológica, pedagógica ou

psicopedagógica, que comprove sua condição, é acompanhado por um estagiário,

normalmente alunos do curso de Pedagogia. As atividades escolares cotidianas,

realizadas pelos alunos participantes da pesquisa, eram elaboradas pelos

estagiários. Em quatro situações a pesquisadora presenciou vários alunos com

deficiência, acompanhados por seus estagiários, realizando atividades diversas

daquelas que estariam ocorrendo em sala de aula, no refeitório da escola. Eram

agrupados por nível de ensino, e acompanhados de perto na realização das

atividades. Na primeira vez que essa prática foi observada a pesquisadora não pode

questionar nem os alunos nem os estagiários sobre o que estava sendo feito ali. O

recreio começaria em pouco tempo e os alunos precisariam sair do refeitório. Nesse

dia, houve a oportunidade de observar o pátio no momento do lanche, e a dinâmica

desse momento chamou a atenção naquilo que diz respeito ao tratamento

dispensado aos alunos com deficiência: eles se sentam à mesa, os estagiários

buscam as suas refeições, e ficam por perto enquanto os alunos se alimentam.

Quando os porquês dessa atitude foram perguntados, pela pesquisadora, a uma das

serventes da escola, ela disse que assim era possível organizar melhor a hora da

refeição e as estagiárias terem um maior controle sobre o comportamento dos

alunos.

A tutela até dos atos mais básicos, como a alimentação, é a negação do

princípio freireano de respeito à autonomia e à dignidade do educando (FREIRE,

2006). Como construir uma educação para a autonomia moral, nesse cenário?

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Depois de comerem, alguns dos alunos deficientes se agruparam entre si e

outros buscaram os colegas de turma. A pesquisadora foi alertada pela estagiária

que acompanha S1 sobre a agitação apresentada por ele naquele dia. Ele se juntou

a um grupo de meninos, e pareciam conversar, até que um deles pareceu bravo e se

retirou seguido pelos outros meninos. Quando voltou para perto da estagiária, esta

lhe perguntou o que tinha acontecido, pois ele estava rindo. Ele não respondeu, mas

a estagiária relatou que ele tem o hábito de falar “sem usar os filtros”9, e que os

colegas não costumam aceitar essa atitude, mas que na maior parte das vezes

passa o tempo com os colegas sem grandes problemas.

Nesse dia ele pediu para que a sessão não tivesse nenhum aluno além dele,

e como o dia estava chuvoso e muitos alunos tinham faltado, foi possível atender

seu pedido (sessão 04, do dia 11/05/2015):

Utilizando a mesma figura do relato anterior:

P: O que aconteceu no pátio hoje que seu amigo ficou bravo? S1: Ah, ele estava com o cabelo esquisito. P: E o que aconteceu. S1: Eu falei, ué. Falei que estava feio. P: Mas ele foi embora depois disso. S1: Ele não gostou. P: Você gostaria que fizessem isso com você? S1: Eu não ligo. P: Eu não gosto quando falam que meu cabelo está esquisito. S1: Meu cabelo não é esquisito. P: Vamos falar sobre essa figura? S1: Ele está triste. Ele está com a mão no queixo. P: Por que você acha que ele está triste? S1: Porque ele está com o olho fechado. P: E o que você acha sobre isso? S1: Que não é amigo. P: E onde você aprendeu isso? S1: Com meus amigos.

Entendemos que a escola como espaço de relações, não só com o objeto de

conhecimento, mas de interações que resultam em conhecimento social, vai formar

o sujeito em sua complexidade. Aprender na escola, mas não com os professores,

mostra que os alunos, independente de sua condição de deficiência, são capazes de

obter pistas de como se portar no grupo social. O relato da estagiária sobre esse

aluno, após a sessão realizada com ele, foi de que ele raramente fica sozinho com

outros alunos, de modo que quando ocorrem situações como essa aqui narrada, que

aconteceu no pátio, não são corrigidas pelo pelo próprio grupo social de pares da

9 A estagiária refere como comportamento usual do sujeito em questão o ato de falar o que lhe vem à cabeça, sem pensar antes nas consequências desse ato, atribuindo tal comportamento ao Transtorno do Espectro Autista, do qual o aluno é portador.

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mesma idade, no exato momento em que acontecem. O que é importante, mas

poderiam ser mais potencializadoras de construção da autonomia moral se

mediadas, refletidas com todos os envolvidos por adultos ou pares mais capazes,

levando-se a uma melhora na qualidade das relações sociais para todos.

Sobre a postura em relação às atitudes consideradas inadequadas, as 5

estagiárias que retornaram o questionário responderam que conversavam com os

alunos em separado, explicando porque tal ou qual situação é considerada uma

atitude errada. Contudo, ao agir dessa forma, e tomando-se por base a atitude

direcionadora e coercitiva que os estagiários têm com os deficientes, a percepção do

erro se dá pelo olhar do outro, e a construção do conceito de certo e errado passa a

se dar não na relação direta com a outra parte do conflito, mas através da

percepção de uma terceira pessoa. Ainda, destaca-se a percepção, por parte dos

estagiários, mas também por parte de outros adultos da comunidade escolar e

coetâneos, de que o aluno com deficiência não é capaz de compreender a

magnitude das suas ações e os tipos de reações desencadeadas por elas no outro.

Estagiários relataram, nos questionários, que a postura adotada em relação

ao aluno com deficiência depende do “grau” de deficiência apresentado. Quando

questionados sobre como pensam que os deficientes demonstram o conhecimento

do que é certo e errado dentro da sala de aula:

“Depende do grau de deficiência. A aluna que eu acompanho consegue diferenciar o certo do errado, sabe dizer se uma coisa é boa ou ruim” (Estagiária de S8). “Vai depender da deficiência. Tem uns que são mais comprometidos e acabam não entendendo muito bem como se comportar” (Estagiária de S2).

Nota-se que não se fala que o deficiente intelectual pode ter uma maneira

diferente de interpretar os sinais de tensão do ambiente ou as pistas sociais dadas

pelo outro, mas sim de um tipo de quantificação da interpretação sobre o como se

comportar (como se isso fosse possível), associado ao “grau da deficiência”. Não

trata da diferença de interpretação de cada um dos membros de determinado grupo,

quanto a determinado fato, pois cada um compreende e reage ao mundo à sua

própria maneira, mas sim de entender a pessoa com deficiência como alguém que

interpreta de forma menos eficiente que os demais, não deficientes, tais situações.

Sobre essa questão, percebemos que o grau de deficiência e o nível de

compreensão são colocados como empecilho para situações de aprendizagem além

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do conteúdo escolar. Sobre a postura adotada quando da ocorrência de alguma

situação de conflito, professores e estagiários referem situarem-se de acordo com o

nível de deficiência do aluno, e percebe-se que a “falta de formação específica”

relatada pelos professores como empecilho para a efetivação da educação desses

alunos, faz com que ora exista um delegar da tarefa de educar esse aluno, no caso,

para os estagiários, que pouca ou nenhuma formação recebem para tanto, e ora

essa função seja assumida pelo professor, mas sempre tendo como modelo o

“comportamento normal”.

“Dependendo da situação ocorrida procuro impedir de imediato, mas sempre explico o ‘porque’ tal atitude foi errada ou inadequada, considerando sempre ouvi-lo, respeitando seus limites.” (Professora 3) “Tento fazê-lo da mesma maneira que com os alunos normais, considerando o nível de compreensão do mesmo” (Professora 2) “Eu corrijo meu aluno de inclusão, com o restante da sala é a professora da sala que resolve, não eu. Mas ele precisa entender que existem regras para viver em sociedade e elas valem para todo mundo, deficiente ou não.” (Estagiária de S1)

Pode-se fazer uma leitura dessa situação em dois níveis. Num primeiro, a

discussão do papel extremamente normativo e autoritário que a escola assume para

lidar com aquilo que é considerado “indisciplina”. Na escola em questão a rigidez na

ordem e na disciplina são valorizados por professores, gestores e família, pois são

vistos como garantidores do bom desempenho escolar dos alunos. Chegou-se até

mesmo a “convidar” policiais para falar com as classes sobre essa questão. Outras

estratégias de autorregulação para manter um bom clima escolar, como a existência

de assembleias, ou da participação dos alunos em conselhos de classe, mediação

de conflitos ou justiça restaurativa não são buscadas. O aluno deficiente deve

enquadrar-se a esse esquema. Num outro nível, observa-se a inexistência de

recursos ou de atitudes que favoreçam ao aluno deficiente intelectual expressar-se

melhor em relação aos seus comportamentos. Embora haja o relato de uma

professora de que faz a “escuta” do aluno, “respeitando seus limites”, pode-se

indagar: quais seriam esses limites? Com recursos de comunicação aumentativa, ou

de imagens, ou outros, que favorecessem a comunicação e a expressão de ideias

do deficiente intelectual sobre as razões do seu comportamento, ou a compreensão

que ele fez de determinada situação, haveria, em nosso entender, um impulso à

construção da moralidade, por parte desse aluno.

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Vigotski propôs um novo enfoque para a deficiência intelectual. Baseando-se

na ideia de que as crianças deficientes teriam um desenvolvimento qualitativamente

diferente, mas não seriam menos desenvolvidas (em termos quantitativos),

ressaltando que partir de premissas negativas para a educação do deficiente é

contraproducente. Para Bezerra e Martins,

A deficiência provocaria uma luxação social, a tal ponto que a pessoa se isolaria da sociedade, alterando suas antigas estruturas com os indivíduos e com o meio. Dessa maneira, tudo seria posto fora do lugar e o deficiente acabaria por ser um peso, ou alvo de atenção ilimitada, colocado em uma nova condição social, que projetaria seu desenvolvimento psicossocial para uma nova direção. Em outras palavras, seriam as consequências sociais que, primeiramente, levariam a pessoa a se sentir “anormal” e “deficiente”, pois estas acentuariam e consolidariam o próprio defeito. Percebe-se então que as peculiaridades não estariam no biológico e sim no social (BEZERRA, MARTINS, 2010, p. 76).

Ainda segundo Bezerra e Martins (2010), a maneira mais eficiente de

combater a exclusão social é através do convívio com outras pessoas, de forma que

o aluno com deficiência possa (re)estruturar seu papel social, aumentando suas

habilidades psicossociais. Colocando o foco sobre suas habilidades, e não sobre

seus defeitos.

Sobre a eficiência do convívio com outras pessoas, podemos perceber no

relato de uma sessão em que fica claro que as aprendizagens que não emergem de

uma situação específica de explicação de um conceito, acadêmico ou não, são

construídas socialmente.

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Figura 3: Janela – Categoria: O que estou sentindo (Sessão 09, data 22/06/2015)

Fonte: Speechmark, 2009. P: O que está acontecendo aqui? S4: Eu acho que essa pessoa pode estar escutando a outra pessoa falar. P: E isso é bom? S4 e S5: Não! P: Por que a gente não pode escutar o que o outro está falando? S5: Porque isso é errado. S4: Porque quando uma pessoa está falando com a outra, o outro não tem que olhar. P: E como vocês aprenderam que isso é errado? S4: Eu aprendi na minha outra escola. S5: Eu não aprendi isso em lugar nenhum. P: Alguém te ensinou? S5: Não, acho que não. Mas é errado. Ninguém precisa ensinar.

Utilizando a mesma figura em uma sessão com outro sujeito (Sessão 14, em

11/08/2015):

P: O que está acontecendo aqui? S7: Ele está espiando pela janela. P: E pode ficar espiando pela janela? S7: Não? P: Quem falou pra você que não pode espiar os outros? Você aprendeu isso em algum lugar? S7: Não, mas a pessoa pode não gostar. Eu não ia gostar.

Nessas falas é possível, novamente, observar-se a interação entre o

autoconhecimento e o conhecimento social guiando o funcionamento moral dos

sujeitos deficientes. As palavras de Tappan (1987, p. 85) são esclarecedoras para a

compreensão desse processo:

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Uma ação, para ser considerada “moral”, quer por um ator, quer por um observador, um sentido específico deve estar associado com aquela ação [...] porque a designação “moral” é uma interpretação da ação em questão, gerada a partir de assunções e compreensões compartilhadas que constituem a cultura, o funcionamento moral nunca pode ser sem mediação. Antes, é sempre refinado com o uso de “ferramentas psicológicas” (mais importantemente, palavras, linguagem, e formas de discurso moral), que capacitam a pessoa a pensar, sentir e agir de um modo particular – ou seja, de um modo que, em seu contexto sociocultural específico, é compreendido como “moral” ou “imoral”. (Grifos do autor)

Reforçando o impacto que a cultura assume no desenvolvimento do ser

moral, argumentamos que Vigotski (2011) trata a questão da deficiência como um

desenvolvimento diferenciado de forma que, na presença de um “defeito” biológico,

o aspecto orgânico não é determinante no desenvolvimento do indivíduo. Em

Carvalho,

Retomando a ideia do desenvolvimento humano como processo de síntese entre as dimensões biológicas e culturais, quando esse processo é marcado pela existência de deficiências, as características orgânicas são transformadas pela formação de novas funções, e que nesse processo, o que é orgânico e causa dos distúrbios não deixará de existir, mas será impregnado pela cultura, pela emergência de funções qualitativamente diferentes que têm sua origem nas vivências sociais da pessoa (CARVALHO, 2004, p. 24).

Contrapondo as teorias psicogenéticas à abordagem histórico-cultural de

Vigotski, sendo que as primeiras preveem estágios de desenvolvimento que ocorrem

de maneira similar em todos os indivíduos, em que não se encaixam aqueles

deficientes, em consequência de um aporte biológico disfuncional, pode-se inferir

que os alunos com deficiência muito provavelmente atinjam somente os estágios

menos elevados do desenvolvimento cognitivo, e, assim, do desenvolvimento moral.

A teoria histórico-cultural, por sua vez, permite uma representação mais dinâmica do

processo de aprendizagem e do desenvolvimento. Utilizando o conceito de zona de

desenvolvimento proximal, é possível conhecer o que há de conhecimentos,

acadêmicos e sociais, sistematizados pelo indivíduo e aqueles que ele é capaz de

sistematizar, através das mediações, sendo possível atuar, nesses princípios, para o

incremento nos processos de regulação e, posteriormente, autorregulação.

Conforme Fino (2001, s/p):

Durante esta participação guiada, e à medida que se desenvolvem os conhecimentos e as habilidades do aprendiz, o guia vai lhe entregando, cada vez mais o controlo das operações. O aprendiz, enquanto vai

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assumindo maior responsabilidade cognitiva sobre a gestão da actividade, vai gradualmente interiorizando os procedimentos e o conhecimento envolvidos enquanto se vai tornando mais autorregulado na tarefa ou na habilidade. É deste modo que a regulação interior se transforma em autorregulação.

Já vimos que o processo de internalização se inicia nas relações

interpessoais (entre sujeitos) e culmina com um processo intrapessoal (de

reorganização dos conhecimentos em nível individual). Dessa forma, a mediação

tem papel importante na construção de uma base de conhecimentos que possibilite

ao aluno saber agir em situações consideradas de risco.

Continuando a análise das sessões com os alunos, a figura 4 trata dos

comportamentos de risco (sessão 5, data: 22/05/2015)

Figura 4: Crianças – Categoria: prevenção de acidentes

Fonte: Speechmark, 2009.

P:O que essas crianças estão fazendo? S10: Estourando bombinha. S9: Estão estourando bombinha na lata? P: Será que estão estourando dentro da lata? S10: É sim, pra lata voar. P: Como é isso? S10: Você acende a bombinha e coloca a lata em cima, aí quando a bomba estoura, a lata voa. P: Vocês já fizeram isso? S9: Eu só fiz com bombinha, sem lata. S10: Eu fiz com bombinha, mas pode machucar. P: Você já se machucou? S10: Não, mas meu vizinho já. Ele queimou o dedo. P: É perigoso mesmo. S9: No final do ano, meu pai solta rojão, mas o barulho é forte, mais que a bombinha. S10: Se soltar rojão na lata a lata voa alto! S9: Mas pode machucar feio! Eu já me queimei e nunca mais soltei.

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Além da questão moral do outro servir como modelo de comportamentos,

como na situação acima, descrita pelos participantes, existe também a compreensão

do risco em situações que, ainda que não tenham sido vivenciadas por alguém

próximo, fazem parte do repertório dos alunos, quer por meio de narrativas feitas por

colegas ou familiares, quer pelos meios de comunicação, e evidenciam também as

aprendizagens ocorridas em casa e em outras esferas sociais. Muitas vezes não

está explícito o “guia” que o levou a essa construção, mas as bases para o

funcionamento moral estão ali, já internalizadas pelo sujeito deficiente.

Figura 5: No banco – Categoria: Prevenção de acidentes. (Sessão 11, data 22/06/2015)

Fonte: Speechmark, 2009.

P: E aqui? S8: Olha, uma saidinha de banco. S9: Ele vai roubar a moça. S8: E é errado pegar as coisas dos outros. Não pode roubar. P: Isso mesmo, e onde vocês aprenderam isso? S9: O que é certo é certo, não precisa ensinar. S8: Minha mãe me disse que é errado.

A vinculação causal entre deficiência intelectual e comportamento delinquente

(em conflito com a lei) é apontada, por Gelb (1989), como estando nas bases da

construção histórica de exclusão social do deficiente intelectual. Os deficientes

intelectuais que se envolviam em delitos ou crimes, tomando como base, de acordo

com o autor, o século XVIII, eram considerados não somente maus, mas

incorrigíveis, pois considerados “incapazes” de discernimento e controle das suas

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ações, bem como de compreender as necessidades dos outros e as regras de

convivência social. Um trabalho de revisão de literatura feito por Fazel et. al. (2008)

indicou que dentre 12000 dos presos das cadeias dos Estados Unidos, Inglaterra,

Nova Zelândia, Emirados Árabes e Austrália, entre 0,5-1,5% eram deficientes

intelectuais. Estudos de Derr (1986), comparando o julgamento moral de

adolescentes do sexo masculino, com dificuldades de aprendizagem, pela

perspectiva de Kohlberg, apontaram que esses adolescentes, comparados com

adolescentes do sexo masculino sem problemas de aprendizagem, tinham mais

dificuldade de compreender dilemas morais pela ótica do grupo social, assumindo

um raciocínio moral egocêntrico, baseado na atenção às próprias necessidades e

desejos. Será mesmo que os deficientes intelectuais se envolveriam em mais

situações de conflito com a lei por não conseguirem desenvolver um funcionamento

moral próprio à vida em sociedade, como esses estudos levam a crer? Ou será que

o preconceito, a exclusão, a descrença da sociedade na sua capacidade moral e,

principalmente, a falta de estimulação e de cuidados para o compartilhamento do

sentido e do significado moral presentes em seu entorno cultural, não seriam

possíveis chaves explicativas?

Leffert, Siperstein e Widaman (2010), investigando a percepção social de

crianças com deficiência intelectual, em relação a boas e más intenções praticadas

por outras pessoas, usando narrativas e imagens, afirmam que essas crianças

apresentam mais dificuldades, quando comparadas com crianças sem deficiência

intelectual, a identificar boas e más intenções quando há informações sociais

conflitantes. Por exemplo, alguém que roube alguma coisa, mas com uma intenção

benigna (roubar dinheiro de alguém para comprar um remédio que uma outra

pessoa estaria precisando muito). A complexidade da situação não seria bem

compreendida pelas crianças com deficiência intelectual, sendo que elas se fixariam

mais na intenção negativa ou naquela benigna.

No caso da figura 5, trabalhada com os sujeitos da pesquisa, as provas

sociais poderiam ser interpretadas de várias maneiras, mas a leitura que os sujeitos

fizeram dirigiu-se a imaginar uma situação de perigo, bastante próxima ao contexto

da figura apresentada e das vivências cotidianas de violência urbana, tão presentes

nas mídias, nas conversas dos adultos, nas narrativas de pessoas diversas, etc.

Consideramos, dessa forma, que houve uma leitura adequada da situação pelos

sujeitos da pesquisa, mesmo frente a informações que poderiam ser conflitantes. E

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que tanto a autoconsciência acerca do roubar como erro (“roubar é errado”) como a

internalização das normas sociais (a interpretação da situação de roubo como

prejudicial a alguém e “o que é certo não precisa ensinar”) estavam presentes, e

foram expressas como base para o funcionamento moral (“é errado pegar coisas

dos outros”). Leffert, Siperstein e Widaman (2010), reconhecem, em seu estudo, a

importância de se considerar, na avaliação do desenvolvimento moral, o contexto

situacional no qual o funcionamento moral se dá

Embora tenhamos nos focado, então, nas capacidades do indivíduo, o presente estudo demonstra que as características da situação também importam. As situações sociais colocam diferentes níveis de desafios ao processamento cognitivo, dependendo se as situações apresentam informações contraditórias e, quando um conflito está presente, da saliência relativa dessa informação. Assim, precisamos considerar as características da situação, bem como aquelas dos indivíduos com deficiência intelectual, quando descrevemos as capacidades e limitações de indivíduos com deficiência intelectual para desempenhar comportamento social adaptativo (LEFFERT, SIPERSTEIN E WIDAMAN, 2010, p. 178).

E, como vem sendo aqui argumentado, isso faz todo o sentido, considerando-

se que o funcionamento moral não ocorre num vácuo, mas em situações da vida

concreta dos sujeitos.

Nessa pesquisa, os relatos de aprendizagem de conceitos acerca da moral

que ocorrem em casa/família ou em outros grupos é mais frequente do que os que

ocorrem na escola. O retorno dado pelos professores, por meio dos questionários,

mostrou uma interação pouco frequente desses com os alunos deficientes, uma vez

que mesmo na sala de aula o tempo dos alunos incluídos é reduzido, pois conforme

os relatos dos estagiários é comum que os “alunos de inclusão” estejam no refeitório

fazendo atividades que sequer foram elaboradas pelos professores. Mesmo a

interação com os colegas na escola é reduzida, pelos mesmos motivos. As

interações que não dizem respeito às atividades acadêmicas ou de situações

específicas da escola ocorrem no seio da família.

Quando questionados sobre os tipos de lazer frequentados e ou efetuados

pela família junto dos filhos com deficiência, as 5 mães que devolveram o

questionário disseram que levam uma vida normal, saem para comer lanche,

atividades religiosas, passeios em geral, e sobre a participação dos filhos nessas

atividades relatam que ocorre normalmente, de forma tranquila.

“Passeamos no shopping, vamos comer lanche. Ele gosta bastante, pede. Ele fica bem, não se comporta mal. Tem o jeito dele de fazer as coisas. Não dá trabalho.” (Mãe de S10)

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“Ela gosta de passear, de ir ao shopping e de ir comigo ao salão, fazer a unha, cuidar do cabelo. Nunca tive problemas, ela se comporta bem, fica feliz. Levamos uma vida normal.” (Mãe de S8)

Percebe-se nos relatos dos pais que, na família, a rotina é a mais normal

possível. Esses adolescente não ficam restritos à casa, em um convívio restrito à

família. O fato de não darem trabalho, como cita a mãe de S10 ou de levar uma vida

normal, segundo o relato da mãe de S8, mostra que, socialmente, o convívio se dá

em termos de normalidade, como em qualquer família:

“Vamos comer lanche, vamos ao shopping. Não costumamos sair muito, mas sempre fazemos churrasco, e vem bastante gente em casa, ele gosta. Às vezes vem os primos e alguns amigos, e eles ficam na rua, conversando ou fazendo outras coisas, no computador ou na TV. Acho que é da idade isso.” (Mãe de S6)

O relato da mãe de S6 cita as características do filho levando em conta a

idade, e não sua situação de deficiente. Fora da escola, em seu grupo formado por

amigos e primos da mesma faixa etária, ele vive como um adolescente comum, em

que seus gostos são descritos como uma de suas muitas características, de forma

que não se sobressai a deficiência como aspecto impeditivo para as aprendizagens

que possam ocorrer, e ocorrem, nessas interações.

Em algumas das sessões, durante os contatos iniciais e cumprimentos, os

alunos acabavam comentando coisas que tinham acontecido na escola, ou

atividades que tinham feito. Em um desses dias, uma das turmas tinha feito pão, e

enquanto o pão assava os alunos estavam na sala, à exceção dos “alunos de

inclusão”, que estavam no refeitório com as estagiárias, alguns fazendo exercícios

de um livro didático e outros registrando a receita do pão. A pesquisadora sentou-se

ao lado de S1 e ao ver que essa observava o registro da receita, perguntou se a

pesquisadora sabia cozinhar, e se queria provar do pão que ele tinha feito. Que se

ela quisesse, ele até pedia para a servente da escola servir um café, porque pão

fresco só é gostoso com café. Analisar as narrativas desses alunos à luz da teoria

histórico-cultural permite observar o processo de construção da moralidade através

dos aspectos sociais, cognitivos, culturais e afetivos da constituição humana, bem

como a maneira como eles se inter-relacionam.

Em uma das sessões (a de n° 16, em 19/08/205), não conseguimos chegar a

discutir as figuras. Na primeira delas S4 estava preocupada com uma atividade

sobre bullying que tinha que fazer, e não sabia o que escrever. A pesquisadora

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preferiu não interromper a atividade, com receio da aluna se retrair, pois tende a ser

tímida. A pesquisadora questionou o que ela considerava ser bullying, se já tinha

ouvido essa palavra antes da discussão sobre a atividade, e o que pensava sobre

isso. Ela respondeu que bullying era algo ruim, que já tinha aprendido sobre isso na

escola que estudava anteriormente e que fazia as pessoas se sentirem mal. Quando

questionei se ela já havia presenciado alguma situação em que acontecera bullying

ela disse que não, mas que os meninos da turma tiravam sarro de tudo, mas sem

ofender ninguém, então não era bullying. Na semana seguinte, em nova sessão com

essa aluna o assunto voltaria à tona.

Figura 6: A menina – Categoria: O que estou sentindo (sessão 17, data 24/08/205)

Fonte: Speechmark, 2009 P: O que está acontecendo aqui? S7: Ela está sozinha, muito triste. S4: Ela não tem amigos. P: E o que pode ter acontecido pra ela estar triste? S4: Ela está chorando. S7: Os amigos devem ter brigado com ela. S4: Eles podem ter feito bullying. P: É mesmo? E porque você acha isso? S4: Bullying é fazer o colega sofrer. S7: Eu acho que os amigos brigaram com ela. S4: Ou provocaram ela, falaram coisas que ela não gostou e ela está chorando. Bullying não é brigar de discutir, é rir do colega, fazer ele sofrer.

Identificar formas de sofrimento e diferenciá-las, pela sua causa, demonstra

sistematização dos conceitos acadêmicos (o bullying, aqui, como um conteúdo

escolar), demonstrar empatia e o conhecimento social de que “os outros podem

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fazer sofrer” e que isso tem consequências negativas, só pode ser adquirido nas

incursões do sujeito nos grupos sociais dos quais faz parte. Mostrando o

funcionamento moral como construção sociocultural. “A linguagem ocupa um papel

chave para o entendimento da dimensão psicológica da experiência moral, uma vez

que é apenas através da linguagem que esta dimensão é expressa na cultura”

(MARTINS; BRANCO, 2001, p. 173). Ainda segundo os autores, a análise do

desenvolvimento moral da criança deve se dar considerando três dimensões: a

contextualização do nível de desenvolvimento (levando as mudanças do conceito de

certo e errado que ocorrem em nível cultural – o que é considerado certo em uma

cultura, pode ser inaceitável em outra); os processos afetivos envolvidos quando da

atribuição de significados ao que é vivenciado e, por último o poder da linguagem de

situar o processo de desenvolvimento (cognitivo e moral).

Figura 7: Carteira – Categoria: O que fazer (sessão 15, data 11/08/2015)

Fonte: Speechmark, 2009. P: E isso, o que é? S2: Uma coisa no chão, uma carteira. E tem dinheiro, olha! S5: Será que caiu? S2: Acho que sim, tá no meio do mato. P: E se vocês achassem essa carteira, o que fariam? S2: Eu dava pra minha mãe. S5: Se tiver alguma coisa dentro, pode descobrir de quem é. Não dá? P: Pode ser, se tiver algum documento. S5: E será que tem como descobrir? S2: Pode entregar pra algum adulto procurar. Mas se tiver dinheiro alguém pega. P: Pega? Por quê? S2: Porque não sabe de quem é, dai a pessoa não vai ver?

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S5: Eu não pego. S2: Eu não pego também. P: Pode pegar o que tiver dentro da carteira, então, já que não tem ninguém olhando? S2: Não pode, mas tem gente que pega.

Quando Nucci (2001) diferencia a moral da convenção social ou seja, aquilo

que não é aceito de maneira nenhuma em nenhum lugar e aquilo que não é aceito

em determinados grupos, mas que podem ser aceitos em outros, ressalta também

que um e outro não existem separadamente, como unidades estanques:

[...] a heterogeneidade das compreensões sociais das pessoas e as imbricações contextuais dos componentes normativos morais e não morais na vida cotidiana significam que uma abordagem honesta para a educação moral sempre precisará lidar com a contradição e a controvérsia. Tal imbricação é inevitável dado que todas as interações sociais acontecem dentro de sistemas sociais delimitados por convenções. Assim, embora muitos assuntos cotidianos sejam exemplos diretos de moralidade ou convenção, muitos outros contêm aspectos de mais de um domínio. Em tais casos, as pessoas podem diferir entre si em termos da informação que elas possam trazer para uma situação, ou do peso que elas podem dar a uma ou outra característica de um determinado assunto (NUCCI, 2001, p. 76).

Utilizando a mesma figura 7, com outros dois alunos (sessão 12, data:

03/08/2015), temos o que se segue:

P: O que pode ser isso? S9: Uma carteira. Está no mato. S10: Alguém deixou cair. P: E o que você faria se encontrasse? S10: Eu ia tentar achar o dono. S9: E se tivesse dinheiro dentro? S10: Eu acho que tem que devolver, mas ia dar vontade de pegar. Eu acho que pode pegar, não tem dono. S9: Pode esperar um tempo o dono aparecer, e se ele não vier, acho que pode pegar. P: E se fosse a carteira de vocês? O que vocês esperariam que a pessoa que achou na rua fizesse? S10: Devolver, mas é difícil achar. S9: Eu queria que me devolvesse, mas se não acharem acho que vão pegar o dinheiro.

No caso da figura da moça no banco, em que S9 disse que o rapaz ia roubá-

la e que isso era errado, ele o afirmou com segurança. Na figura acima, a carteira

não é fruto de um roubo, ela foi encontrada. E ainda que não afirme categoricamente

que ficaria com o dinheiro que pode haver dentro dela, encontra meios de justificar

tal ato. Sobre isso, Nucci (2001, p. 77) refere:

Em resposta a questões que envolvem elementos de mais de um domínio, indivíduos podem tanto subordinar a questão a uma única dimensão e reduzir um caso de sobreposição a um que é essencialmente moral ou convencional, quanto se esforçarem para coordenar a natureza multifacetada da questão, levando em conta tanto os aspectos morais como

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os não-morais de uma dada situação ou episódio. Tais respostas à sobreposição, no plano individual, ajudam a explicar as inconsistências que observamos nas pessoas quando elas respondem às situações em diferentes contextos. Elas também ajudam a explicar como grupos ou subgrupos culturais chegam a diferentes leituras de questões sociais que eles consideram ser moralmente neutras ou carregadas de significado moral.

Dessa forma, podemos pensar que o aluno elabora as regras sociais em

termos de ter desenvolvido um sentido de moral e justiça – não posso roubar e

também em termos de interiorização do significado das convenções sociais (achado

é roubado?) fundamentando seu funcionamento moral: se o dono da carteira

demorar, ou não aparecer, eu posso ficar com o dinheiro. Lembrando que as

convenções são normas ditadas conforme a cultura de cada grupo, dessa forma fora

daquele grupo formado pelo colega e pela pesquisadora, talvez nem essa regra

convencionada fosse tolerada.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Todo o histórico da educação especial se pautou na negação. Na falta de

características que tornam o ser completo, na falha biológica que coloca o foco

somente no que é disfuncional e diferente. O deficiente, quando passou a ser

“enxergado”, iniciou uma trajetória de lutas por direitos que já eram garantidos a

qualquer pessoa. De início foram colocados em instituições assistencialistas não

educacionais, como se toda deficiência intelectual significasse a mesma coisa.

Depois passaram a classificá-los de acordo com a funcionalidade, de forma que se

pudesse treinar aqueles com a capacidade intelectual rebaixada, para que

exercessem alguma atividade produtiva. E muitas leis, decretos, projetos, políticas

públicas depois, ainda temos uma educação especial, ainda que inclusiva, pautada

no foco sobre a deficiência.

Pensar a construção da moral pelo aluno com deficiência intelectual foi

intrigante. Fala-se muito sobre a moralidade na escola, sobre educar crianças que

tenham empatia, senso de justiça e que convivam bem em grupo, dentro e fora da

escola. Na busca sobre a teorização do assunto pouco se encontra sobre como o

deficiente constrói esses conceitos, uma vez que, pertencente ao corpo escolar,

deve-se esperar dele também um comportamento social adequado.

A educação inclusiva tem como principal característica a educação de todos

os alunos, sem nenhum tipo de distinção (de raça, gênero, constituição biológica,

entre outras tantas características, permanentes ou transitórias). Ou seja, ela não é

só para o deficiente. Quantas necessidades surgem da diversidade? O uso de lentes

corretivas para quem não enxerga bem, as muletas para quem tem a mobilidade

reduzida (permanente ou temporariamente), atividades diferenciadas para quem não

consegue acompanhar o ritmo ditado pelo grupo e/ou pelo professor. Mas para

todas essas necessidades existem ferramentas que corrigem essa falha. E uma vez

corrigida, a falha, ainda que não deixe de existir, ao menos deixa de ser notada. Não

há, no entanto, correção para a falha naquilo que é mais definidor do ser humano: o

pensamento.

Se analisarmos a deficiência pelo aspecto social, pelo olhar depositado no

deficiente intelectual pela sociedade, a maneira com que vem sendo enxergado,

historicamente, pode nos dizer muito sobre o desenvolvimento do indivíduo. Ser

encarado como um ser disfuncional em sua capacidade cognitiva pode interferir na

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maneira como os conteúdos escolares são apresentados ao sujeito na escola, de

forma que se justifique a não-aprendizagem de conceitos pela inabilidade individual,

não pela maneira com que esses conceitos são passados – se não aprende da

forma que o professor ensina, não há de aprender de forma nenhuma? Da mesma

maneira, acaba-se revestindo de cuidados excessivos a rotina dessas crianças,

como foi observado na escola em que foi feita a pesquisa. Não ficam na sala, pois

precisam de uma forma diferenciada de ensino (no entanto essa diferenciação só se

dá em termos de espaço, pois como há um estagiário por aluno, ou por dupla de

alunos, a atenção individualizada se daria também dentro da sala). No momento em

que poderiam ter um contato menos restrito com jovens da mesma idade, são

cerceados, pois nem se servir da refeição, com autonomia, lhes é permitido fazer. O

momento livre desses alunos é totalmente vigiado, ainda que a uma certa distância,

segura, para em caso de conflito, este poder ser resolvido, pela estagiária,

rapidamente.

Se lhes fosse permitido vivenciar essas experiências de conflitos

interpessoais, cada um à sua maneira, como forma de respeito à diversidade

humana, a aprendizagem e o desenvolvimento moral desses alunos seguiria seu

curso. Vimos, durante a revisão bibliográfica deste trabalho, e seguindo a corrente

epistemológica em que nos apoiamos para realizar a análise dos dados, que é

através das mediações que o desenvolvimento e a aprendizagem ocorrem. Das

mediações com o professor com cada aluno dentro da sala, das mediações com o

grupo, e dos alunos entre si. Vimos, com a resposta dos alunos aos

questionamentos específicos feitos durante a pesquisa, que essa aprendizagem

ocorreu, e se demonstra através da linguagem e das atitudes desses alunos.

Foi possível perceber que, ainda que não cumpram os critérios que os situem

nos estágios de desenvolvimento cognitivo de acordo com sua idade, a

aprendizagem segue seu curso dentro da possibilidade de cada um dos sujeitos

dessa pesquisa, pois mesmo em alunos não deficientes a aprendizagem não ocorre

de maneira igual, em especial de processos tão dependentes da cultura como o é o

desenvolvimento moral. A educação deve tratar de agir nas possibilidades de cada

aluno, naquilo que eles trazem consigo que possa ser ampliado, guiado para algo

mais amplo. Educar baseados na falha não nos leva muito longe, pois a falta, o

lapso, sempre existirão.

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Ainda que na escola façam parte, durante quase todo o tempo, de um grupo

de alunos classificados da mesma maneira (alunos do AEE), essa vivência social já

permite que participem de um processo de elaboração, interiorização e, por que não,

produção, de regras sociais. Que tomam como base para o seu funcionamento

moral, que também se modifica conforme vão envelhecendo, enfrentando outras

situações sociais, etc. Isso se confirma na percepção dos alunos acerca das atitudes

esperadas em situação de conflito moral. Expressam o que é certo e errado dentro

de seu conjunto de crenças e valores, construídos socialmente, e isso se reflete na

vida em grupo, na maior parte das vezes.

Nenhum ser humano é refratário às situações de aprendizagem. Estamos

sempre aprendendo, em qualquer tempo e em qualquer espaço. Isso acontece com

todos, sem distinção. Mesmo naqueles que tem a experiência escolar condicionada

a um rol de condições que devem ser cumpridas (e não são, pois há falhas no

aparato biológico), a aprendizagem e o desenvolvimento ocorrem. A maneira

peculiar de aprender e desenvolver-se é própria do ser humano. Se

quantitativamente o aluno não atinge o patamar esperado para a série, ou o estágio

de desenvolvimento cognitivo próprio da idade, qualitativamente a aprendizagem

está ocorrendo a todo o momento.

Acreditamos que não podemos encerrar aqui este trabalho, o de conhecer as

formas diferenciadas de aprendizagem moral do deficiente, de como ele se coloca

em seu grupo, em sua família, na sociedade como um todo. Formas tão

diferenciadas e ricas de compreensão da moralidade circundante que possibilitam a

eles uma construção rica de significados e conceitos, que mesmo com o acesso a

um espaço educacional ainda condicionado a categorizações de níveis de

aprendizagem e relegado a um espaço (tanto físico quanto virtual) segregado,

insistem em manter-se. Garantir o acesso e a permanência dos alunos com

deficiência intelectual na escola não é suficiente. Reconhecer a diversidade é

garantir que todos, por serem parte dessa diversidade, possam conviver

indistintamente, como de direito. E que nessa convivência o deficiente intelectual

não somente constrói seu funcionamento moral como deixa sua marca na produção

de sentidos e significados de cunho moral, no seu grupo social.

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APÊNDICE A - Termo de consentimento informado

Eu, Bianca Scalon Peres de Paula, aluna regularmente matriculada no

programa de Pós-graduação stricto sensu do Centro Universitário Salesiano-

unidade de ensino de Americana, gostaria de convidar a EMEF a participar do

trabalho investigativo a ser por mim desenvolvido como parte da minha pesquisa de

Mestrado, sob a orientação prof. Dra Maria Luisa Bissoto e cujo objetivo é investigar

como se dá a construção da autonomia moral pelo aluno de inclusão (nesse caso,

deficientes intelectuais ou com quadros de atraso no desenvolvimento

neuropsicomotor de diversas gêneses) regularmente matriculados nessa instituição

de ensino.

A participação nessa investigação envolve atividades de natureza

psicossocial, com o uso de histórias, jogos, e outras, de desenho e escrita, além

questionários e entrevistas, com os alunos e suas famílias. Essas atividades serão

realizadas na própria escola e terão a duração prevista de 1h, sendo uma vez por

semana, às segundas, terças e sextas, no período de matricula dos alunos e será

registrada em relatórios escritos e gravações. Gostaria de deixar bem claro que a

participação nessa investigação é voluntária. Se qualquer dos sujeitos decidir não

participar ou quiser desistir de participar, em qualquer momento, da referida

investigação, tem absoluta liberdade de fazê-lo. Nenhuma restrição lhe será

imposta.

As atividades desenvolvidas nessa investigação, bem como os resultados

alcançados com a mesma, poderão ser eventualmente publicados, mas será

mantido o mais rigoroso sigilo, através da omissão total de quaisquer informações,

que permitam identificar participantes ou instituição; salvo expressa concordância,

por parte de todos os envolvidos, quanto ao contrário.

A investigadora também se compromete a apresentar uma devolutiva quanto

à investigação desenvolvida, ao término dessa, à instituição e aos sujeitos

efetivamente participantes; e a seguir rigorosa conduta ética, no curso da

investigação.

A participação nessa investigação não envolve nenhum benefício material ou

econômico para nenhuma das partes: os prováveis benefícios advirão da

contribuição para o desenvolvimento profissional e da produção de conhecimento,

que favoreçam o avançar de questões relacionadas à esfera educacional.

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Se você tiver qualquer pergunta em relação ao programa, por favor, entre em

contato comigo, pelo telefone (19)98133-6769 ou pelo e-mail [email protected].

Atenciosamente,

Assinatura ____________________ Data ________________________

Consinto na participação

Nome:______________________________________________________________

Assinatura _____________________ Data _________________________

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APÊNDICE B – Questionário enviado aos professores e estagiários

Prezados professores e estagiários;

Realizo minha pesquisa de mestrado nesta escola e investigo a construção da

moralidade pelo aluno com deficiência intelectual. Durante as sessões de coleta de

dados com os alunos, em que apresentava figuras com diversas situações sociais,

estes relataram que a aprendizagem do que é certo/errado ocorria na escola. Para

averiguar como ocorrem essas situações de aprendizagem, elaborei o questionário

abaixo, Não é necessário identificar-se. .

Grata,

Bianca Scalon Peres de Paula

1.) Qual é sua postura em uma situação em que ocorra algo considerado errado

(brigas, agressões físicas e/ou verbais, comportamentos considerados inaceitáveis)?

2.) Qual sua intenção quando toma a atitude relatada na questão anterior?

3.) Em relação aos alunos com deficiência, qual sua postura ao corrigir algo

considerado inadequado?

4.) Como você pensa que os alunos com deficiência demonstram o conhecimento do

que é certo e errado dentro do ambiente escolar?

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APÊNDICE C – Questionário enviado aos pais

Prezados pais;

Realizo minha pesquisa de mestrado na escola em que seu filho está

matriculado e investigo a construção da moralidade pelo aluno com deficiência

intelectual. Durante as sessões de coleta de dados com os alunos, em que

apresentava figuras com diversas situações sociais, estes relataram que a

aprendizagem do que é certo/errado ocorria em casa, com a família. Para averiguar

como ocorrem essas situações de aprendizagem, elaborei o questionário abaixo.

.

Grata,

Bianca Scalon Peres de Paula

NOME DO ALUNO:

1.) Em uma situação em que ocorra algo considerado errado (brigas, agressões

físicas e/ou verbais, comportamentos considerados inaceitáveis) qual é sua postura?

2.) Qual sua intenção quando toma a atitude relatada na questão anterior?

3.) Como você ensina a seu filho o que considera certo ou errado?

4.) Como você pensa que seu filho demonstra o conhecimento do que é certo e

errado em casa e fora dela?

5.) De que tipo de lazer vocês participam na vida cotidiana? Como é participação de

seu filho nessas situações?

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ANEXO A – Figuras utilizadas na investigação com os alunos “O que estou

pensando”

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ANEXO B – Figuras utilizadas na investigação com os alunos “O que estou sentindo” .

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ANEXO C – Figuras utilizadas na investigação com os alunos “O que

fazer”

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ANEXO D – Figuras utilizadas na investigação com os alunos “Prevenção

de acidentes”

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